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CAPÍTULO3

O Decreto-Lei no 25/1937
e a proteção de áreas urbanas

Contexto histórico e jurídico da criação


do Decreto-Lei no 25/1937
O Decreto-Lei no 25, de 30 de novembro de 1937, organiza
a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional e e a
matriz da legislação brasileira voltada para a matéria. Foi o
pnmeiro diploma legal elaborado nesse senddo, não por acaso,
num momento da nossa República em que se operaram grandes
mudanças no cenário político. econômico e jurídiço, A Revo-
lução de 1930 é o marco mais importante dessas mudanças, e
seu principal produto foi de natureza polídca: uma nova forma
de Estado caracterizada pelo crescimento do próprio aparelho,
pela centralização da administração e pela intervenção em vários
setores da economia e da sociedade. Esse Estado foi montado
com base num compromisso polfro das classes dominantes
que permitiu a confecção de um organograma jurídico de cunho
socializante,a partir da Consdtuição Federal promulgada em

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1934. O marco político que possibilitou a institucionalização das
práticas de preservação é, contudo, melhor compreendido se nos
reportarmos, inicialmente, ao contexto da Primeira República.
Entre 1889 e 1930, as oligarquias paulistas e mineiras do-
minaram a cena polídca e detiveram o poder económico no país.
Boris Fausto (1989, p. 112) observa que a burguesia cafeeira cons-
dtuía então a única classe nacional, no sentido de que somente ela
reunia as condições políticas e econômicas para conduzir o país
segundo seus interesses. O Estado era instrumento de execução da
polídca econômica e social favorável a essa classe. Um indicador
do nível dessa hegemonia é a própria Constituição promulgada
em 1891. A autonomia que conferia aos estados da Federação a
possibilidade de tomar emprésdmos externos e formar milícias,
por exemplo, mosffa o nível de descentralização do poder e a
intenção de manter fortes as oligarquias em seus locais de origem.
Embora isso possa parecer, à primeira vista, um sinal de fraqueza
do poder cenffal, era, ao conffário, uma estratégia para o seu for-
talecimento, tendo em vista que reconhecia as situações estaduais
que lhe davam suporte (FAUSTO, 1989, p.90). O período se
caracteñzou por uma economia fechada e centrada na produção
e no comércio do café. As vozes discordantes eram representadas
por facções militares e grupos polídcos regonais, para os quais
a moldagem das instituições em função da economia do café
era prejudicial aos seus interesses. Entretanto, só na década de
1930, essas facções enconffaram as condições para empreender
a tomada das rédeas do governo.
Segundo Alfredo Bosi (1992, p.283-284), o Estado que se
formou a pardr de 1930 começou a ser gestado no final do século
XIX, e sua primeira experiência concreta teria ocorrido no Rio
Grande do Sul, durante o governo de Júlio de Casdlhos. O mo-

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delo transposto pelo castilhismo para a Constituição Estadual, em
1891, era calcado no positivismo social de Comte, que atribuía ao
Estado o papel de condutor do desenvolvimento econômico, re-
tificadordo capitalismo e administrador dos conflitos. Em outras
palavras,um modelo que pressupunha a expansão do aparelho
estatal para a implantação de serviços públicos e a intervenção
em vários setores da economia, opondo-se francamente ao mo-
delo liberal. O Estado de "modelagem positivista", conforme a
expressão de Bosi, é um Estado que prevê e provê os termos e
os meios do desenvolvimento e se acredita acima dos interesses
de classe. Essa tradição castilhista será seguida por Getúlio Vargas
como deputado e depois como presidente da nação, quando a
facção gaúcha subiu ao poder central em 1930.
A nova forma de Estado que se implantou na década
de 1930 foi também resultado da composição política entre
vários segmentos da sociedade, representados pelas burguesias
dissidentes gaúcha e mineira, pela facção rebelde das Forças
Armadas, pelas classes médias dos grandes centros e, de modo
urbano. Nenhum desses segmentos
possuía poder polfico e econômico suficiente para governar
sozinho e, assim, a saída encontrada foi a montagem de um
governo baseado no que Boris Fausto (1989, p. 104) denomina
"Estado de Compromisso" , que abriu espaço à participação
das classes médias e dos militares e buscou aumentar o apoio
popular na implementação de novas relações com o operariado.
Fizeram parte dessa estratégia a instituição do salário mínimo,
a consolidação das leis trabalhistas e a regulamentação da ativi-
dade sindical. A proteção da indústria nacional, a implantação
de_serviços públicos e outras medidas de cunho spcialigante
contribuíam para neutralizar oposição das esquerdas, Mas o

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compromisso envolvia também a burguesia cafeeim que,
i fora do aparelho de Estado, era contetnplada em seus
sess uma vez que o café continuava sendo o eixo economiA,
Somente na década de 1950 a indústria tomou esse lugar,
Com a Revolução de 1930, as relações de
foram alteradas. A economia marcadatnente agroexport0(lora
permaneceu hegemónica ainda por tuuito tetnpo, Tampouco
houve substituiçào de classe no governo central, Emborn tenha
sido firmado um compromisso de governabilidade entre vários
segmentos, o governo continuou sendo liderado por uma frnçvi()
da classe dominante, com o apoio das outras classes que lhe
eram subordinadas. Os compromissos políticos "diversifica.
dos" conferiram grande autonomia ao Estado para centralizar
administração, para intervir em áreas estratégicas da vida social
e económica e, consequentemente, para consolidar todo um
reordenamento jurídico que impulsionou o desenvolvimento
de políticas públicas de importância social. Para isso, foram
fundamentais as conquistas da nova Constituição,
Promulgada em 16 de julho de 1934, a Constituição Fede.
ral instituiu a função social da ro t: ade como um rincf io
co ) \rtigo 133, inciso 17, garantiu o direito de
propriedade, mas estabeleceu que não poderia ser exercido
"contra o interesse social ou que a lei deter-
nar".Bntes, na Constituição republicana de 1891,o direito
de propriedade era mantido "em toda sua plenitude, salvoa
desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante
indenização prévia". I A comparação desses dois artigos mostra
que, em 1934, o direito de propriedade passou a ser um instituto

1 Artiqo 72, parágrafo 17.

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jurídico cuja amplitude era determinada em lei ordinária, regido
pelo princípio do interesse social ou coletivo. Em torno desse
dispositivo,se operou o reordenamento jurídico que produziu
um conjunto de leis de cunho social extremamente significativo e
duradouro, permitindo, na época, notáveis avanços em domínios
como os da legislação fundiária, trabalhista, urbanística e tam-
bém de proteção ao património histórico e artístico. Em outras
palavras,a instituição da função social da propriedade como
princípio constitucional proporcionou o desenvolvimento, no
Brasil, de todos os ramos do direito vinculados à codificação da
interferência do Estado na propriedade privada.

As transformações do direito de propriedade


Na realidade,o direito de propriedade nunca foi assim tão
absoluto aqui ou no resto do mundo. No direito romano, a
propriedade, atributo do cidadão, já sofria restrições, espe-
cialmente no que toca a intervenções urbanísticas.Na Grécia
antiga, por exemplo, a desapropriação já era utilizada para obras
públicas e, em Roma, a "Lei das Doze Tábuas" determinava a
observância de intervalos de 1,50 m entre duas casas tar a
ropaga ã cêndios(HAROUE131990, .19,30 urbanismo
pré-moderno, por preocupações com a segurança, a circulação
e a estética, forçava a elaboração de disposições legais que, em-
bora não sistêmicas ou completamente estruturadas, foram aos
poucos estabelecendo nas cidades limites mais nítidos entre o
domínio público e o domínio privado e estruturando as bases
para o ento do direito urbanístico, ontu-
do, o intenso processo de urbanizaçãodesencadeadocom a
RevoluçãoIndustrial foi o fenômeno que mais contribuiu para

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a estruturação do conceito moderno de propriedade
imobili-
e também para a codificação de um novo direito em
torno dele
Como mostra Álvaro Pessôa, o direito de
propriedad
ainda com conteúdo derivado do período
acolhido na Declaração dos Direitos do Homem e feudal
do Cidadão
e no Código Napoleão, só foi atacado em termos
discursivos
século XIX a partir das ideias de Comte e Durkheim. F
intelectuais positivistas, os "engenheiros sociais", que oramos
ram a base conceitual que legitimou a definição da forneces
propriedade
não mais como um direito intocável e sagrado, mas
como
"direito 'continuadamente cambiante' que deve se
modelaràs
cessidades sociais às quais deve
1981
p.54). Na raiz desse novo discurso estava a industrialização
necessidade de implantação de uma nova ordem que ea
garantisse
a reprodução desse tipo de capital. A propriedade
"absoluta"
e "sagrada", com o fenómeno de urbanização deflagado
e as
necessidades de organização do território, foi crescentemente
regulamentada e limitada. Tomou o seu lugar uma
concepção
modelada às necessidades sociais, que legitimava as limitações
impostas pela nova ordem, notadamente no plano urbanístico
e
no campo da saúde pública. Mais tarde, no início do séculoXX,
passou também a legitimar uma nova modalidade de interven-
ção, dessa vez derivada da reservação do patrimônio histórico.
O •spositivo de patrimônio, em sua codificaçãolegal,
ro uziu um novo tipo de propriedadeque, grossomodo,
pertenceria ao mesmo tempo ao e à sociedade.A ar-
gumentação jurídica se desenvolveu no sentido de que o direito
de propriedade teria uma "face pública", relaó«raà sua existência
social, e uma "face privada", "que se expressa pela apropriação
individual da coisa, pela sua expressão econômica e pelasrelações

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privadasdaí decorrentes" (CASTRO, 1991, p.12). O disposidvo
de património incidiria justamente sobre o aspecto público da
propriedade,instaurando um regime especial em que o dtular da
"coisacorpórea" ou do "objeto da ação" — o particular— não
se identificariacom o titular do objeto rotegido ou 'bem jurídi-
etividade 196 sta última passana a ser,
por força do valor cultural atribuído ao bem, sua coproprietária,
ou melhor, uma parte legalmente consdtuída a quem o titular
do bem material deveria satisfações quanto à sua conservação.
Conviveriam,na coisa tombada, portanto, duas dimensões: uma
material, pertencente ao domínio privado e relativa ao fundamen-
to económico da propriedade; e uma imaterial, que expressaria
"valores não económicos" e "inapropriáveis individualmente" e
que se identifi aria c lico.
propriedade, na sociedade moderna, é, na realidade
um composto resultante de interesses públicos e privados qu
lhe dão seus contornos reais. Em outras palavras, o resultado
desse embate de forças que o direito busca compatibilizar o
legitimarem determinadasconfi ações. Como o serva
varo Pessôa (1981, p.51), " propriedade tem um damento
econo ncl , ten o sua existência ligada aos fatores de
produção", isto é, o capitalismo depende da pñvrada
para porque dela também depende a produção. Assim
se pode compreender a extrema codificação da propriedade
na sociedademoderna e a necessidadede todo um discurso
jurídico para sua conceituação. Assim também se compreende
a necessidade de agenciar dispositivos,2 envolvendo discursos
e visibilidades, para limitá-la e, na realidade, redefini-la. A divisão

2 No sentido foucaultianodo termo.

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do direito de propriedade numa "face pública" e numa "face
privada" seria, portanto, resultado de um processo de redefini-
ção da propriedade, de cunho socializante, no qual a legislação
de preservação do patrimônio ocupa um importante luga É
a aletória do Decreto-Lei no
25/1937 em muitos pontos se confundiu com esse processo,
pois, embora desde o início apoiado num princípio constitucio-
nal, sua constitucionalidade 'ndubitável teve de ser c nquisgada
nas barras dos tribunais ntretanto, a concepção privatizante e
in VI u sta apropnedade era, e continua sendo, muito forte.
A propriedade é, assim, um campo de luta em dois níveis: dos
indivíduosentre si e desses com a sociedade. Todos os seus
conceitos derivam necessariamente desse embate.
Como já vimos, a elite que assumiu o governo em 1930
conhecia bem as ideias positivistas. Antes de 1934, todas as
Constituições, do Império ou da República, mandnham o caráter
III absoluto da propriedade, apesar da possibilidade de desapro-
priação por uüade pública.3 Esse expediente era, entretanto,
muito pouco acionado, somente se tornando uma prática mais
corrente por ocasião das grandes reformas urbanas, do início
do século, nas principais cidades do país e, de modo semelhante
à Europa, quando da implantação das nossas primeiras ferro-

3 A Constituição Imperial de 1824 estabelecia em seu Artigo 179: "A inviolabilidade


dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, tem por base a liberdade,
a segurança individual e a é garandda pela Consdtuição do Impao,
pela seguintemaneira:[...] 22 - É garantido direito de propriedade em toda sua
plenitude. Se o bem público, legalmente verificado, exigir o uso e o emprego
da propriedade do cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A
lei marcará os casos em que terá lugar esta única exceção e dará as regras para
se determinar a indenização". A primeira republicana, de 1891,
manteve, como já mencionamos, essa mesma linha conceitual.

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vias.4Apesar da defesa da função social da propriedade feita pela
elite posidvista no Sul e no Rio de Janeiro, o sistema escravocrata
e agroexportador favorecia a sedimentação de um conceito de
propriedade em bases individualistas e liberais. Nenhuma iniciaó,ra
no sentido da codificação legal da preservação do pôde,
então, ser implementada antes de 1934, embora tenha havido pro-
postas nesse sentido.

promulgadas, sem que se cons sse roduziros efeitos es erados


em função da falta de disposióvroconstitucional que os apoiasse.5

4 Leonardo Benevolo, no seu livro As otigensda urbanísticamoderna(Lisboa: Pre-


sença, 1987, p.93-94), mostra que o direito relativo à desapropriaçãoobteve
grande desenvolvimento a partir da implantação de ferrovias para escoamento
da produção nos países europeus industrializados.
5 Em ordem cronológica, as propostas apresentadas foram: 1. Projeto de autoria
de WandefleyPinho, lido em Sessão do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia em 10 de julho de 1917, propondo a instituição de comissão para pro-
ceder ao inventário do patrimônio estadual (PINHO, 1918);2. Proposta de lei
elaborada por Alberto Childe, em 1920, sobre a descoberta e a exploração de
sídos arqueológicos; 3. Proposta de lei elaborada por José Marianno, filho, em
1921,propondo a criação da "Inspetoria de Monumentos Públicos de Arte";
4. Projeto de Lei no 350, de autoria do Deputado Luiz Cedro, apresentado ao
CongressoNacional em 3 de dezembro de 1923,propondo a criação da Ins-
petoria dos Monumentos Históricos; 5. Projeto de Lei no 181, de autoria do
Deputado Augusto de Lima, apresentado ao Congresso em 16 de outubro de
1924,proibindo a saída do país de "obras de arte retrospectivanacional" sem
permissão do governo federal; 6. Anteprojeto de lei federal elaborado pelo jurista
Jair Lins, em 1925, a pedido do presidente de Minas Gerais, Dr. Mello Vianna;
7. Projeto de Lei no 230, apresentado pelo Deputado -WanderleyPinho em 29
de agosto de 1930,organizando a proteção do paüimônio histórico e arústico
nacional. As leis estaduais promulgadas nesse sentido foram: 1. Izi no 2.032,
de 08/08/1927, do Estado da Bahia (regulamentadapelo Decreto no 5.339, de
06/09/1927), que criou a Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais; 2.
Lei no 1.918,de 24/08/1928, do Estado de Pernambuco, também criando, nos
moldes da legslação baiana, a Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais.

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de 1933, que erigiu
Mesmo iniciativas como o Decreto no 22.928,
a cidade de Ouro Preto em monumento nacional, ou o Decreto
Museu Histórico
no 24.735, de 1934, que criou, na estrutura do
Nacional, o Serviço de Proteção aos Monumentos, resultaram
legal que limitasse
inócuas pela mesma razão: a falta de disposidvo
histórico e artísdco.
a ação particular em favor do patrimônio

Os antecedentes do Decreto-Lei no 25/1937


Nfinisffo da Educação e Saúde
Em 1936, Gustavo Capanema, então
ideia de levantar as obras de
do Governo Getúlio Vargas, a parár da
existentes no Rio de Janeiro,
arte particulares de valor excepcional
que aquele empre-
decidiu iniciar um trabalho mais consistente do
endido pelo Museu Histórico Nacional em favor da preservação
dos monumentos nacionais, e encomendou a Mário de Andrade
um anteprojeto para a criação, no âmbito do seu Ministério, de um
serviço dessa natureza. De posse da proposta elaborada pelo poeta
paulista, Capanema solicitou à Câmara dos Deputados a inclusão do
Serviço do Patrimônio Históñco e Artístico Nacional (SPHAN) na
nova estrutura a ser aprovada para o seu Ministério. 6 Mediante

6 0 Serviço do Paüimônio e Artístico Nacional pela LÁ


no 378 em 13 de janeiro de 1937, foi transformado pelo Decreto-Lei no 8.534, de
2 de janeiro de 1946, em Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(DPHAN). Em 27 de julho de 1970, através do Decreto no 66.967, a Diretoria
foi, por sua vez, transformada em Insútuto do Paffimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN). O Decreto-Lei no 84.198, de 13/11/1979, transformou 0
Instituto em Secretaria, mais tarde transformada em Subsecretaria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, pela Portaria Ministerial no 274, de 10/04/1981.
A Subsecretaria voltou a ser Secretaria, em 22/07 / 1985, pela Portaria Ministerial
no 48, até que, com o Decreto no 99.492, de 03/09/1990, foi substituída pelo
Insdtuto Brasileiro do Património Cultural (IBPC). A medida provisória de 1992
recuperou o nome da instituição, transformando-a novamente em Insdtuto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

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autorização do Presidente da República, iniciou o funcionamento
expeñmental do Serviço, ainda em 1936, convidando Rodrigo Melo
Franco de Andrade para dirigi-lo e acatando indicação do próprio
Mário de Andrade OflNC/SPHAN/FNPM, 1980, p.22-23).7
Mineiro como Capanema, advogado brilhante, homem de cultura,
jornalista e escritor, Rodrigo M. F. de Andrade, como gostava
de se assinar, foi o verdadeiro autor do Decreto-Lei no 25/1937,
aproveitando em sua redação muito pouco do anteprojeto ela-
borado a pedido de Capanema.A exceçãodo termo "tomba-
mento", da nomenclatura sugerida para os Livros do Tombo,
da exclusão das obras de arte pertencentes às representações
estrangeiras e algumas disposições sobre a saída de obras de arte
do país, Rodrigo M. F. de Andrade excluiu sua essência. Segun-
do avaliação do primeiro diretor do SPHAN, esse anteprojeto,
do ponto de vista legal, "não tinha o préstimo desejável" e, do
ponto de vista da organização do Serviço, "previa insdtuições
que as condições do país não comportavam" (ANDRADE, R.
M. F. de, 1952, p.54-55).
Na verdade, o anteprojeto de Mário de Andrade propunha
simplesmente a organização de um sistema de proteção e de
um serviço público fundamentalmente vinculado à educação.
A novidade desse trabalho residia no fato de que seu autor
não ficava preso às formas de proteção legal já consagradas na
Europa, desú1adas somente à proteção de monumentos histó-
ricos e obras de arte. Criava uma nova ideia de patrimônio que
envolvia o regstro de manifestações culturais de natureza variada,

7 Entretanto, há outra versão para o fato. Segundo Judith Martins, funcionária do


SPHAN entre 1936 e 1973, Manuel Bandeira teria sido a pessoa que indicou
Rodrigo M. F. de Andrade a Capanema (entrevista concedida em 9/5/1994).

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o que poderia ter gerado uma nova matriz legal completamente
original, se tivesse havido a intenção de traduzi-la juridicamen-
te. Entretanto, Rodrigo M. E de Andrade e os juristas que o
assessoraram estavam ptesos-às-soluções-jufídicas-já testadas e
c a Euro a. instituto do tombamento, cria o
francês, não daria conta do universo cultural
partir do classement
abrangdo por Mário de Andrade, e algo realmente novo em
termos jurídicos teria de ser criado. O anteprojeto foi criticado
como inviável — e de fato o era, porque sua ideia de património
não atendia aos interesses políticos em jogo e porque não havi
visão •urídi uficiente para traduzir sua ideia em lei.
O anteprojeto de ar e a e visava a criação de
uma agência estatal que se incumbisse de inventariar e registrar
as manifestações que representassem a cultura brasileira. Em-
bora não utilize o termo "cultura", a definição de arte adotada
na explicação mostra que as duas noções são, no seu discurso,
equivalentes:"Arte é uma palavra geral, que neste seu sentido
geral significa a habilidade com que o engenho humano se utiliza
da ciência, das coisas e dos fatos". Além disso, era essencialmente
educativo. Com ele pretendia suprir uma "feia lacuna do siste-
ma educativo nacional", que não se utilizava da imagem como
um instrumento básico de educação (MINC/SPHAN/FNPM,
1980, p.97), Na concepção andradiana, o sistema de inventário
e registro do patrimônio artístico nacional estaria intimamente
vinculado a um sistema de divulgação e exposição. Sua principal
finalidade seria organizar a seleção das obras de arte arqueológi-
ca, ameríndia, popular, histórica ou erudita definidoras do caráter
nacional, registrá-las, e colocar essa informação ao alcance do
público por meio de museus, publicações ou qualquer outro
meio de divulgação. O educaóvo está também patente na

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vinculação que estabelece entre os quatro Livros de Tombamen-
to e os quatro museus pertencentes ao Serviço do Patrimônio
Artístico Nacional (SPAN).No Livro de Tombo Arqueológico
e Etnográfico, estariam inscritos os exemplares de arte arqueo-
lógica, ameríndia e popular. No museu correspondente, seriam
expostas as obras possíveis de serem colecionadas. O mesmo
seria feito com relação aos outros livros. O Livro de Tombo
Histórico corresponderia às manifestaçõesde arte pura ou
aplicada que "de alguma forma refletem, contam, comemoram
o Brasil e a sua evolução nacional" (MINC/SPHAN/FNPM,
1980, p.93). No Livro de Tombo das Belas Artes seriam inscritas
as obras de arte erudita nacional e estrangeira consideradas "de
mérito", isto é, consagradas por concursos oficiais,pela História
da Arte ou por decisão do Conselho Consulóvro do SPAN; e,
finalmente, no Livro de Tombo das Artes Aplicadas seriam reu-
nidos os objetos utilitários cuja elaboração refletisse ou
influenciasse o caráter do engenho nacional. O interesse básico
de Mário de Andrade era registrar e preservar o que considerava
uma produção genuinamente nacional, bem como os objetos e
ideias que a influenciaram ou originaram. Daí estar a produção
estrangeira também contemplada.
A análise do conteúdo dos Livros do Tombo propostos
mostra que, na concepção andradiana, o que hoje denominamos
patrimônio ambiental estava vinculado ao interesse arqueoló-
gico, etnográfico e histórico. Os Livros das Belas Artes e das
Artes Aplicadas estão claramente à inscrição de pe-
ças a serem catalogadas, recolhidas e expostas nos respectivos
museus. E no conteúdo do Livro Arqueológico e Etnográfico
e nas definições de arte arqueológica, ameríndia e popular que
a concepção de registro e preservaçãodo poeta paulista se

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mostra bastante ampla. Segundo sua definição, essas artes não
estariam representadas apenas por artefatos colecionáveis,mas
incluiriam também monumentos, paisagens e folclore. Surgem,
então, como objetos de preservação, as jazidas funerárias, os
sambaquis, as cidades lacustres, os aldeamentos, os caminhos,
e cruzes na beira da
as grutas, a arquitetura popular, as capelas
um morro do Rio de
estrada, um agrupamento de mocambos,
e culinária indí-
Janeiro, vocabulários, cantos, lendas, medicina
provérbios, ditos
genas, música popular, contos, superstições,
manifestações. Como se vê,
e danças dramáticas, entre outras
anteprojeto, quase sempre
a proteção da paisagem está, nesse
vinculada à produção indígena ou popular. A cidade de Ouro
Preto ou o largo da igreja em São João del Rei são utilizados
como exemplos do trabalho de tombamento mas não necessa-
riamente ligados a uma concepção de arte erudita. Sua ideia de
preservação paisagísticavai, sem dúvida, além dos conjuntos
coloniais. Sua noção de patrimônio também ultrapassa o crité-
rio de antiguidade da coisa e, nos exemplos que fornece sobre
arte erudita nacional e estrangeira, deixa perceber que o critério
fundamental de seleção desses bens seria estabelecido de acordo
com noções bem definidas de qualidade artística, autenticidade
e caráter nacional. No próximo capítulo, ao tratarmos das prá-
ticas de seleção do patrimônio na chamada "fase heroica" do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, teremos
oportunidade de melhor esses conceitos.
Dentre as propostas de lei produzidas no Brasil antes de
1934, visando a a preservação do patrimônio
histórico e nacional, cabe destacar o anteprojeto mineiro
de 1925 e o projeto de lei elaborado em 1930 pelo deputado
Wanderley Pinho. Além do anteprojeto de Mário de Andrade

104 MarciaSant'Anna
e da legislação francesa de
1913 e 1930, esses
trabalhos nos quais, como já foram os outros
mencionamos, Rodrigo M. F.
Andrade buscou inspiração para de
a confecção do Decreto-Lei
25/1937 (ANDRADE, R. M. F. no
de, 1952, p.55-56).
O anteprojeto de lei federal
elaborado pelo jurista mineiro
Jair Lins, em 1925, foi resultado de
um trabalho encomendado
pelo então Presidente de Minas Gerais,
Mello Viana, a fim de
evitar os constantes roubos e vendas de
obras de arte do acervo
das igrejas mineiras. Foi montada uma comissão
constituídade
representantes do alto clero, da intelectualidadee da
política
para desempenho dessa tarefa. Jair Lins foi escolhido relator
(LINS, 1989, p.90) e estudou várias legislações estrangeiras,as-
sim como as propostas já elaboradas no Brasil. Seu trabalh08 é
o primeiro que enfrenta com argumentos jurídicoso problema
da intervenção do Estado na propriedade privadaem favor da
preservação do património nacional. Em função dessa inter-
venção, já percebida por Lins como necessária,propõe-seque
o âmbito da legslação seja federal e não estadual, como cogitado
de início. Embora a Constituição de 1891, então vigente, e o
Código Civil, promulgado em 1916, não fornecessem o apoio
legal necessário à efetivação do anteprojeto, Lins defendiaa
validade jurídica da sua proposta com a seguinte tese: o Estado
artísüco
poderia intervir diretamente na tutela do patrimônio
porque o direito
sem ferir o interesse legítimo do proprietário,
limitações em favor da
de propriedade já toleraria restrições e
conceituaçãolegal,isto
coletividade, desde que preservada sua

Forense,v.2, p.5, 1928 e


Lins
8 0 texto elaborado por Jair Central do IPHAN, na Pasta no 1,
sob o título
também no Arquivo
se encontra
Legslação.

à cidade-documento 105
Da cidade-monumento
é, "usar, gozar e dispor de seus bens e reavê-los do poder de
quem injustamente os possua". Com base nisso, segundo Lins
o Estado teria alguns meios legalmente assegurados para exercer
a proteção do patrimônio artístico e histórico. O primeiro deles
seria o direito de preferência em qualquer transmissão intervivos.
O segundo seria o direito de impedir que o objeto patrimonial
se estragasse. Por fim, haveria ainda o direito de desapropriação.
Embora em suas pesquisas a comissão mineira tenha verificado
que muitos países utilizavam como instrumento de preservação
o direito de impedir a saída de tais bens para o exterior, Jair Lins
reconhecia que, no Brasil, esse dispositivo seria inconstitucional.
Por força de nossa economia ainda marcadamente agroexporta-
dora, havia disposição constitucional expressa permitindo essa
prática. O Artigo 72, parágrafo 10, da primeira constituição
republicana estabelecia que, em tempo de paz, qualquer pessoa
poderia entrar ou sair do país com sua fortuna e bens, quando e
como lhe fosse conveniente, Com base nesses pressupostos, foi
elaborado um anteprojeto de lei alicerçado na ideia de que o
Estado poderia conservar o bem, se o proprietário não o fizesse
— por inércia ou incapacidade financeira — , ou desapropriá-lo,
se o detentor do domínio quisessedestruí-lo ou exportá-lo.
E surpreendente a quantidade de pontos de contato dessa
proposta com o texto do Decreto-Lei no 25/1937. O próprio Ro-
drigo M. F. de Andrade (1952, p.28) afirmou que esse "foi o texto
de que se originaram as disposições principais do sistema atual
de proteção aos monumentos históricos e arústicos neste país".
O instituto de proteção criado por Jair Lins, a "catalogação",
é muito semelhante ao tombamento. Assim como este úlúno,
a catalogação também pode ser integral ou parcial, voluntária
ou compulsória.Neste úlúno caso, a decisão da catalogação

106 Marcia Sant'Anna


se daria pela via judicial, ficando para o proprietário o ônus de
provar que o bem não teria valor. O anteprojeto previa também
a possibilidade de cancelamento da catalogação e a necessidade
de prévia autorização para a execução de qualquer intervenção
no bem, sob pena de multa e prisão.A conservaçãodo bem
seria feita pelo Estado, com ou sem desapropriação da coisa, e
o proprietário poderia requerer o cancelamento da catalogação,
caso essa disposição não fosse cumprida. Por outro lado, teria
o dever de comunicar a necessidade de conservação. Uma das
disposições mais interessantes dessa proposta diz respeito à
proteção da vizinhança do bem catalogado.O Artigo 14 esta-
belece que nenhuma construção nova poderia ser feita a menos
de 1,5 m do objeto integral ou parcialmentecatalogado,salvo
com autorização do diretor do serviço de tutela do patrimônio.
O anteprojeto mineiro prevê ainda que os estados organizem os
seus respecóvos serviços. O universo patrimonial mencionado se
resfringe a bens móveis e imóveis tomados individualmente. A
catalogação de conjuntos urbanos ou paisagens não está prevista.
O projeto de lei apresentado ao Congresso Nacional em
1930 por Wanderley Pinh09amplia o conceito de patrimônio em
comparação com o anteprojeto de Minas Gerais porque inclui
a beleza "peculiar e notável" como um valor, além do histórico
e do artístico, a determinar a proteção do bem. Além disso,
estende a proteção aos conjuntos de edificações e aos sítios de
"reconhecida e peculiar belleza". A questão da ambiência assu-
me na proposta de Pinho uma importância e uma abrangência

9 A íntegra do texto do projeto de lei no 230, de 1930, encontra-se no Arquivo


Central do IPHAN, na Pasta no 1, sob o título Legislação. Foi também publicado
pela Imprensa Nacional.

Da cidade-monumento à cidade-documento 107


bngtantc atuais, vizinhança é alçada ao do
loem cat ali 'gado, Sendo ígualmcntc pastívcJ dc paga
sua conbcrvaçhoou cjjmínaçho,ujnformc írnpcça ou favoreça
a visibilidadedo bem, As açócs nega área dcvcm também
autorizadas pela "Inspctoría dc Defesa do Património f litt/jricu,
e Artístico Nacional", sendo prevista a pot#ibilidadc dc dcgapr,»
priaçáo dc imóveis aí situados, sem índcní'zaçho, «c for
nicntc "h conservação, h luz, perspcctjva c moldura dc um
Segundo essa conccpçao — muito avançada para
- o bctn protegido é pcrccbído como um quadro, urn
conjunto em ncccgsáríaharmonia com o seu entorno, A paisa-
gem que envolve o bem é vista como extremamcntc importante
para sua apreensão, O projeto dc Wandcrlcy Pínho modifica o
processo de catalogação,tornando-o completamcntc adrnínís-
trativot Para isso, cría o Conselho Dclíberatívo e Consultivo de
Defesa do Património Hístófíco c Aftístíco Nacional, que, entre
outras atribuições, funcionaría como ínstâncía dc recurso em
casos de impugnação da catalogação por parte dos propríetíríos,
Assim como no antcprojeto dc Jair Líns, a desapropriação c o
exercício do direito de preferência são colocados como medí-
das de salvaçãonos casos cm que o conceito de propriedade
expresso na Constituíçao e na legislação cívíl facultasse ao
proprietário ações que prejudicassem ou ímpossíbílítassema
conservação do bem, Cabe também destacar, no projcto de lei
de Wanderley Pinho, o papel destinado aos municípios na tarefa
de preservação. São definidos como os principais titulares do
direito de preferência e responsáveis pela execução da política

10Artigo 14,

108 Marcia Sant'Anna


de proteção, sob a superintendência dos estados e da União. O
sistema proposto é bastante descentralizado e de acordo com
o esquema constitucional então vigente, que conferia grande
autonomia aos estados. Assim, essas entidades arcariam com
o ônus da catalogação dos bens existentes em seus territórios.
O projeto ainda traz disposições sobre o controle do comércio
de obras de arte muito mais sofisticadase detalhadas do que
as constantes no Decreto-Lei no 25/1937. O projeto chegou
a iniciar uma tramitação na Câmara dos Deputados, mas foi
abandonado por força da Revolução de 1930, que fechou o
Congresso, sendo reapresentado em 1935, sem, entretanto, ter
ido adiante. Segundo Rodrigo M. F. de Andrade, o texto de
Wanderley Pinho também foi fonte do Decreto-Lei no 25/1937
e apresentava algumas vantagens com relação ao de Jair Lins:
conceito de património mais
[...] alargado e esclarecido, disposições mais eficazes e
completas para resguardar a visibilidadee o destaque dos
monumentos e disposiçõesque tornavam o
processo de catalogaçãodos bens a proteger (ANDRADE,
R. M. F. de, 1952, p.45).
Vale notar que nesse projeto os conjuntos urbanos, os sídos e
paisagens surgem pela vez como objetos de preservação.
As propostas de Jair Lins e Wanderley Pinho são exemplos
das discussões que, bem antes do fim da República Velha e da
promulgação da Constituição de 1934, já ocorriam em torno
do conteúdo do direito de propriedade e da possibilidadede
sua limitação em favor de um interesse público. Mesmo sob a
vigência de uma Constituição liberal, eram vislumbradas saídas
legais para a proteção do patrimônio histórico e nacio-
nal. E verdade que, por força dos dispositivos constitucionais e

Da cidade-monumento à cidade-documento 109


do Código Civil, as soluções jurídicas encontradas resultavam
em usfi úblico. o se analisar
0 texto do Decreto-Lei no 25/1937, vê-se que seu principal
avanço com relação aos textos que o antecederam foi poder
estabelecer a tutela do patrimônio histórico sem grande ônu
ara o Estado, repass bem
rao ropriet' • . Ao desvincularo tombamento da obrigação
de desapropriaçãoou conserva ão do bem, o Decreto-Lei
25/1937 tornou possível uma a ão estatal am Ia e e etlva
Inventariaçao e proteção, im ensável anteriormente.

Odi 10
Decreto-Lei no 25/1937 divide-se em cinco capítulos referentes,
respectivamente,ao conceito de patrimônio histórico e artístico
nacional, ao tombamento, aos efeitos desse instituto de proteção,
ao direito de preferência sobre a coisa tombada e às disposições
erais.O tombamento é o ato mediante o qual os bens selecion
os são inscritosnos Livros do Tombo do SPHAN Constitui ato

a o porque pressupõe um processo que se desenvolve


no âmbito da administraçãofederal, sem envolver instâncias do
Poder Judiciário, as quais podem, entretanto, ser acionadas pelos
em caso de quesüonamentoda lisura do r
ou do mérito da a ão, a ós sua conclusão. indicação de deter-
ado bem para tombamento pode de qualquer pessoa,
mas toda a avaliaçãoda oportunidade do ato e do valor da coisa
deverá ser feita pelo SPHAN, o que torna o to bamento um ato
dis áfio e unilateral o Oderpúblic Deci o o tom a-
mento, cumpre-se o procedimento de noü cação do proprietário
que, por sua vez, poderá anuir ou não ao ato. No primeiro caso, o

110 Marcia Sant'Anna


tombamento torna-se voluntário e, no segundo, compulsório, se
as razÕes contrárias apresentadas pelo proprietário ao Conselho
do SPHAN — cumpridos os prazos estabelecidos
para impugnação — forem julgadas improcedentes. No que diz
respeito a bens públicos, o tombamento é simplesmente feito de
ofício, isto é, por ordem do Diretor do SPHAN. Assim, a lei se
aplica indisúltamente às pessoas naturais e às pessoas jurídicas
de
direito público ou privado. Concluído o processo, o bem é inscrito
em um dos Livros do Tombo previstos no Decreto- •. Os efeitos
o om amento sao, aslcamente, os seguintes: restrição à aliena-
bilidade da coisa mediante o exercício do direito de preferência
pela União, estados e municípios; proibição da exportação do
bem tombado ou de sua saída do país sem expressa autorização
do SPHAN; proibição de desfruir, desnaturar ou descaracterizar a
coisa; e de, sem autorização do SPHAN, intervir no bem tombado
ou fazer em sua vizinhança qualquer construção que impeça ou
reduza sua visibilidade. Esses efeitos passam a ser produzidos
ainda durante o processo de tombamento, como forma de garantir
a integridade do bem até a inscrição final.
o apl o eresse público a
ser protegido pelo Serviço do Patrimônio Histórico e
Nacional:
Art. 10 - Constitue o patrimônio histórico e artístico
nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existen-
tes no país e cuja conservação seja de interêsse público,
quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história
do Brasil, quer por seu excepcionalvalor arqueológico
ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

S 20 - Equiparam-se aos bens a que se refere o presente

Da cidade-monumento à cidade-documento 111


artigo e são também sujeitos a tombamento os monu-
mentos naturais, bem como os sítios e paisagens que
importe conservar e proteger pela feição notável com que
tenham sido dotados pelo [sicl natureza ou agenciados
pela indústria humana.
Com uma redação mais sintética, essa definição é semelhan-
te à encontrada no Projeto de Lei no 230, de autoria de Wanderley
Pinho, A diferença básica é a inclusão dos valores arqueológico,
etnográfico e bibliográfico na avaliação do interesse público sobre
o bem, além da exigência de que esses valores sejam excepcionais.
O património histórico e arústico nacional fica assim constituído
exclusivamente por bens móveis e imóveis. Se, por um lado, essa
definição agrega contribuições de Mário de Andrade, ao consi_
derar o valor etnográfico, bibliográfico ou arqueológico do bem,
por outro, inviabiliza ou, pelo menos, não fornece respaldo legal
à proteção das manifestações culturais folclóricas ou populares
proposta pelo poeta modernista,
Os livrospropostos por Mário de Andrade são
mantidos integralmente, em nomenclatura e conteúdo, embora
um deles, o Livro do Tombo das Artes Aplicadas, jamais tenha
sido utilizado,Ao longo dos quase 60 anos de prática do tom-
bamento pelo SPHAN, verifica-seque o conteúdo oriÚnaldos
Livros do Tombo da proposta andradiana não foi rigorosamente
obedecido, sendo adaptado às conveniências da instituição e às
transformações do discurso sobre o patrimônio. A lei estabelece,
entretanto, que os bens incluídos nas categorias correspondentes

aos quaffo Livros do Tombo sejam "definidos e especificados no


regulamento que for expedido para execução da presente o

11Artigo 4 0, parágrafo 2 0.

112 Marcia Sant'Anna


ue também nunca foi feito. É importante
observar que se montou,
ao longo de 50 anos, no meio juídico
ao SPHAN, a tese
de que o Decreto-Lei no 25/1937 era autorregulamentáveL
isto é,
específico o suficiente para dispensar a confecção
de regulamento.
Como veremos adiante, essa não era a opinião
dos seus autores,
pois o decreto de regulamentação, além de mencionado no texto
da lei, chegou a ser realmente elaborado. Enfretanto, por razões
políticas, e não tecnojurídicas, esse decreto jamais foi
implementado.
O Capítulo III, "Dos Efeitos do Tombamento",
constitui
o cerne da legislação juntamente com o Capítulo I, que deter-
mina o seu universo de aplicação. Nele ficam estabelecidas as
limitaçÕesadministradvas ao direito de propriedade, as restrições
à alienabilidade, assim como os direitos e deveres dos proprie-
tários e do serviço público com relação ao bem tombado. O
primeiro ponto a destacar é que a lei não torna públicos os bens
tombados, isto é, o tombamento não consdtui uma expropria-
ção em favor do poder público. Os bens tombados
pertencendo aos seus donos, podendo ser usados e vendidos,
apenas com algumas restrições, Isso significa que o do
domínio pode auferir receita a partir de sua venda, desde que
previamente o ofereça à União, aos estados e aos municípios.
pode também usá-lo, emprestá-lo ou alugá-lo,desde que essas
ações não acarretem re•uízo ara a in
O propnetano eve ainda zelar por sua conservação e, caso não
tenha capacidade financeira, comunicar ao SPHAN a necessida-
de de obras de conservação verão ser, então, executadas
com recursos da União.l O tombamento do bem poderá ser
cancelado, caso o SPHAN não cumpra esta última determinação.

0 0
12Ardgo 19, parágrafos 1 , 20 e 3 ,

Da cidade-monumento à cidade-documento 113


As disposições relativasà preservação e manutenção
da
—Jintegridade do bem tombado, expressas no Artigo 17, são com_
plementadas no Artigo 18, que estabelece:
Art. 18 - Sem prévia autorização do Serviço do Patri-
mônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá
na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que
lhe impeça ou reduza a visibilidade,nem nela colocar
anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir
a obra ou retirar o objéto, impondo-se nêste caso a multa
f do mesmo ob'éto.
Esse ardgo do Decreto-Lei no 25/1937 é particularmente
importante porque, além de estender para fora do âmbito do bem
tombado ao direito de institucionaliza a ideia
de que a apreensão do bem não depende apenas da preservação
de sua própria imagem e materialidade, mas também das relações
que mantém com aquilo que o cerca. Embora os sífios e paisagens
de feição notável, consüuídos ou não pelo homem, sejam citados
na lei como objetos de preservação, a aplicação das disposições
do Artigo 1 para levar a proteção a contextos
urbanos. •cialmente,apenas em frnção da valorização
do monu-
mento mas, no decorrer do tempo, cada vez com mais
É importante notar que, se sua redação avança consideravelmente
com relação àquela proposta por Jair Lins, fica, enfretanto,
muito
aquém das disposições constantes do projeto de Wanderley
Pinho
sobre a ambiência do bem tombado, que foi,desde o
início,uma
fonte de problemas para o SPHAN. Em tomo dos
conceitos de
vizinhança e visibilidadeque introduz,
toda uma
foi gerada, assim como uma infindável discussão
jufdica que até
hoje divide os estudiosos da matéria.
Além da discussão
quanto
aos limites fisicos da vizinhança, o cenffo
do problema tem sido
a

14 Marcia Sant'Anna
00

possibilidade de do conceito de sisibilidade


óticos ou ambientais. O SPHAN sempre praticou o conceito em
essa foi também a ideia que mais venceu pro-
cessoSe firmou-se como juñsprudência.13Contudo, alguns juristas
ainda defendem como correta a primeira forma de interpretação.
Resta entender o motivo da escolha de uma redação tão tímida
para o Artigo 18, se seus autores tinham consciência da neces-
sidadede um tratamento muito mais completo e abrangente
da questão. Acreditamos que existem duas razões que podem
explicar essa opção.
A primeira, e a mais importante, se vincula ao problema da
limitação do direito de propriedade. Apesar de as discussões em
torno desse tema já virem ocorrendo no país desde a década de
1920, devemos nos lembrar que a promulgação do Decreto--Lei
no 25/ 1937 se dá num momento de grande convulsão política e
institucional em decorrência do golpe que implantou o Estado
Novo. Ao lado disso, a função social da propriedade, instituída
pela Constituição de
tltulça de 1937,14era algo recente e, e certa orma, apenas um
pnnC1p1 constituciongvainda sem muita objetivação ou concreó-
a -o mediante legislaçãoordináñopent.teas-leisg--—-gradas-ngssg—
época no sentido de um uso social da propriedade, a que organiza

e sem
13"A Questão dos Entornos de Bens Tombados", p. 4. Documento sem data
assinatura, encontrado no Arquivo Central do IPHAN, no arquivo referente à
Legislação, pasta no 3A.
de 10/11/ 1937 - "Art. 122 - A Constituição assegura aos
14Carta Constitucional
brasileirose estrangeiros residentes no país o direito à liberdade,à segurança
propriedade,
individual, à propriedade, nos termos seguintes: [...]14 - o direito de
salvo a desapropriação por necessidade ou uüade pública, mediante indeni-
zação prévia.
regularem o exercício" (grifo nosso).

Da cidade-monumento à cidade-documento 115


a proteção do património histótico e
artístico
pHmeiras.15 Uma das principais tarefas
de Rodrigo
drade à frente do SPHAN foi, sem
dúvida,
no 25/1937 como umalegislação sólida, . de
do tombamento como instrumento de
constitucional e válido, em face dos proteçào e Olhs
judiciaisimpetrados no início da muitos
atuação do question
demos que a redação deficiente do SI)
Artigo 18
de inconstitucionalidade.De fato,
durante a
jeto de lei no Congresso, a Comissão tramitação
de constituição d
do Senado havia considerado a limitação
de
do artigo,16uma disposição inconstitucional.17
a orma do artigo
teveo que

Além da legislaçãode proteção ao património


histórico e
odo, a lei das artístico
do inquilinato, das águas e da mineração desapropriações,
(lembremos que
de propriedade não previa limites para o seu 0 conceitodas
exercício
até o céu): "A propriedade em si, o domínio
além do solo para 'todo o inferior até o inferno e particular
todo ar superior
até
do loteamento urbano e venda de lotes, etc.
16Antes do parecer da Comissão de Constituição
en
do senado,
artigo era a seguinte: "Art. 19 - Nenhuma construcção nova a
proximidade da coisa tombada, importando impedir ou se poderá
reduzir sua
nem se poderá levantar qualquer anteparo, muro ou obstáculo
nada coisa, nem ahi colocar annuncios ou cartazes de qualquerjunto à

automação expressa do Serviço do Pat•imônio Histórico e especie,


sob pena de ser mandado destruir a obra ou o objecto,
impondo-se,
ultimo caso, ao responsavel a multa de 50% do valor do mesmo
objecto"
17Parecer no 252 e 248, de 1937, da Comissão de Consdtuição e Justiça
do Senado
Arquivo CenEal do IPHAN, 62.01/11, Legslação, 002.

116 Marcia Sant'Anna


de driblar as arguições de inconsdtucionalidade, aparentemente
restringindo à contiguidade do bem as restrições ao direito de
construir e, ao mesmo tempo, mantendo a possibilidade de uma
interpretação mais larga.
A segunda razão da adoção da redação
do Artigo 18 diz
respeito à própria noção de valorização do bem tombado
vigente
na época. Como mostra o texto do projeto de Wanderley Pinho,
a intenção principal da proteção da ambiênciaera garantir o
desimpedimento da perspectiva do bem. Era destacá-lo
na paisa-
gem, menos do que inseri-lo num contexto urbano homogêneo.
Valelembrar que a proteção à vizinhança do bem tombado não
era ainda utilizada como um instrumento de preservação do
co texto urbano como seria mais tarde.
Cabe ainda ressaltar, nessa apresentação sumária do
Decre-
to-Lei no 25/1937, algumas disposições gerais nele conddas. A
primeira, expressa no 24, retoma de modo simplificado
e um tanto desvirtuado a ideia andradiana de divulgar perma-
nentemente o acervo tombado, mantendo-o mais próximo da
sociedade,pela ação de museus e outros instrumentos de di-
vulgação. Nesse caso, os museus ficaram reduzidos à exposição
do acervo histórico e de propriedade da União, sem
necessáriavinculação com o patrimônio tombado. A segunda
diz respeito ao instrumento de proteção do acervo histórico e
arúsdco, insdtuído pelo controle do comércio de obras de arte.
Os andquários e comerciantes do gênero ficam obrigados a
registrar seu acervo no SPHAN, que, por sua vez, o autentica
e exerce eventualmente o direito de preferência,18tombando o

18Ardgos 26 a 29.

Da cidade-monumento à cidade-documento 117


que julgar importante. Essa atividade,
entretanto
a ser completamente implantada em âmb•
Ito nunca
É necessário observar que o nacional
Decreto-lc•
complementado por apenas cinco diplomas
anos de existência, Um deles, a Lei no / 193)
3.924/1961 ' se foi
camente da proteção ao património , trata
arqueológico es 60
outros modificam o procedimento
instituído oti
Decreto-Lei no 3.866/1941 , que dispõe
sobre o
tombamento de bens integrantes do
património his e:
co e a Lei no 6.292/1975, que
introduz a
0
e constitui a maior derrota já sofrida pelo e o mais
existência. É, sem dúvida, a disposição importante
que mais tod
embora tenha sido pouco utilizada.O Ih
simplesmente não estava previsto no
Decreto-Lei
sua necessidade quando os interesses no debe
do 25/1937
ram a se chocar com interesses políticos
mais cotheça
por exemplo, os envolvidos na construção poderosos
da Av. , cotho
gas, no Rio de Janeiro, que demandou a Presidente
demolição
ou
tes como a Igreja
de Sãop ao
edto
190 primeiro é o Decreto-Lei no 2.809, de 23/11/1940
,
aceitar e receber donativos particulares para trabalhos que autoriza o
e SP
O segundo é o Decreto-Lei no 3.866, de 29/11 / 1941, atividadesde
que preservação
de cancelamento do tombamento de bens integrantes estabelecea
do patrimóniopossibilidad
nacional pelo Presidente da República. A
terceira lei
que histórico e
monumentos arqueoló#cos e pré-históricos, e é
considerada muito
especialistas.Por fim, complementam ainda 0 texto
básico a Lei fracapelos
19/11/1965, que proíbe a saída, para 0 exterior, de obras no4.845,
de arte e
zidos no país até o fim do período monárquico, e a Lei no ofícios
6.292,de
que institui a obrigatoriedade de homologação do 15/12/1975
tombamentopelo
Mini stro

118 Marcia Sant'Anna


o Campo de Sant'Ana. A principal insatisfação do
dos Clérigos e
SPHAN residia no fato de que a lei do cancelamento não previa
a abertura de um processo no qual se pudesse atestar, de fato, a
necessidadede cancelar-seo tombamento (ANDRADE, R. M.
p.62-63).
F. de, 1987,
por sua vez, a Lei no 6.292/75, que instituiu a homologação
do tombamento, criou um obstáculo à autonomia do SPHAN,
por permitir ao Ministro responsável pela área cultural retardar
ou simplesmente não efetivar um tombamento. Não por acaso
essa lei foi promulgada justamente no momento em que a insti-
tuição se voltava mais sistematicamente para a proteção de áreas
urbanas e lidava, portanto, com interesses muito mais poderosos.

A jurisprudência firmada
Nesses 60 anos de vigência, as principais questões que geraram
ações judiciais e firmaram jurisprudência em torno do instituto
do tombamento foram relativas à constitucionalidade do ato em
face do direito de propriedade, à perda de conteúdo econômico
dapropriedade, ao processo de divulgação e publicidade do tomba-
mentodeconjuntos urbanoseàlimita ao do direitode ro rie
navlz ança o em tombado. A seguir. relataremos. em linhas
rais clusões so
O célebre caso judicial que firmou a
do Decreto-Lei no 25/1937 correu em torno do tombamento
do Arco do Teles no Rio de Janeiro, entre 1942 e 1943. Os
proprietários impugnaram o tombamento e, uma vez que o
seu recurso foi indeferido pelo Conselho Consulóvro,abriram
ação contra a União, requerendo a anulação do ato. O caso foi
julgado, e dada sentença a favor da União, em primeira instân-
cia. Os proprietários apelaram à instância superior, alegando a

Da cidade-monumento à cidade-documento 119


inconstitucionalidade e a ilegalidade do tombamento, com base
no seguinte: 1) o imóvel não constituía monumento histórico ou
arústico; e 2), ainda que o fosse, o seu tombamento fora feito
sem sua aquiescência, atentando assim contra o direito de
priedade garantido pela Consdtuição. O caso foi a julgamento
no Supremo Tribunal Federal, e esta foi a primeira vez que essa
corte se manifestou sobre o regme legal do património histórico
e artísdco. O acórdão considerou constitucional a limitação do
direito de propriedade imposta pelo tombamento, estabelecendo
a argumentação jurídica que até hoje apoia a desvinculação entre
tombamento e desapropriação. Segundo ela, o tombamento não
acarreta necessariamente a perda da propriedade, uma vez que
o propne no nao é su stltul o eo stado. A desapropriação
mente seria cabívelquan o o onus conserva ão d
em face da inca acidade financeira ou da omissão do proprietá-
no, osseassumi Estado? Ainda nessa oportunidade, os
stros do Supremo confirmaram a competência do Judiciário
para apreciar a legalidade do tombamento, isto é, o seu mérito, e
não apenas o seu aspecto processual, como pretendia, de início,o
SPHAN. Dessa forma, tornaram inoperante o Artigo 90do De-
creto-Lei no 25/1937 e redraram do Conselho Consulüvo a úldma
palavra sobre a avaliaçãodo valor histórico e arústico do bem.
Embora as conclusões resultantes da ação judicial que se
seguiu ao tombamento do Arco do Teles tenham prevalecido
nas ações subsequentes contra outros atos do SPHAN, e tenham
firmado o entendimento do tombamento como uma limitação

20A foi firmada a partir dos Acórdãos do Supremo Tribunal Federal


na apelação cível no 7.377, proferidos em 17 de junho de 1942 e 19 de agosto
de 1943, no processo Jaime Lino da Cunha Souto Maior versusUnião (Revistade
DireitoAdministrativo,Rio de Janeiro, v.2, n.1, p.100-143, jul.1945).

120 Marcia Sant'Anna


direito de propriedade, alguns juristas ofere-
'strativa ao situações
interpretaçÕes que não poucas vezes criam
cemoutras União. Carlos Medeiros Silva (1972), por exemplo,
a
dificeispara tombamento esvazia o conteúdo econômico da
editaque o no
e alega que a lei da desapropriação (Decreto-Lei
propriedade
21/06/1941) foi modificada em função da promul-
3.365,de no 25/1937 para que os bens tombados
do Decreto-Lei
desapropriados. Para ele, o SPHAN sempre
fossemefetivamente
o tombamento sem desapropriação, perpetrando,
quis"impor
casos, atentados flagrantes ao texto constitucional da
em muitos 1).
depro
tia do direito
Leme Machado (1982, p. 13-36) e Toshio Muk
pauloAffonso
por sua vez, defendem que o tombamento
(1988,p.158-159),
não deve prever indenização, pois resultaria numa
de conjuntos
criaria um regime único para toda uma
limitaçãogeral que
igualdade de todos perante a lei e
zonaou setor, mantendo a
legitimando,assim, a gratuidade da ação estatal. Entretanto,
entendemque o tombamento de um bem isolado institui um
regimeespecialnum contexto regido por outras normas, o que
dariadireito a indenização.
a egislação e proteção
é, sem dúvida, criado pela controvérsia em torno do possível
esvaziamentoeconômico da propriedade ou sua desnaturação
emfunçãodo tombamento, O caso do destombamento do Pico
do Itabirito, em Minas Gerais, por exemplo, constituiu uma
dasmais sérias derrotas judiciais do SPHAN. Julgou-se que o
tombamento,nesse caso, ao pressupor a proibição da atividade
de mineração na área, teria esvaziado seu conteúdo econômlco,
configurando,assim, uma apreensão inconstitucional da pro-
priedade (COSTA, A. M. da, 1965, p.341-346).

Da cidade-monumentoà cidade-documento 121


O tombamento de conjuntos ou de bens
10, S 10, do em
previsto no Decreto-Lei
no
tanto, sua aplicação a áreas urbanas também tem 25/193}nto
sido
fonte de r lemas para o órgão federal de
tem preservação
judiciais contra esses atos partido quase sempre
quanto ao procedimento de
mentos destinado a dar
ato do tombamento e, mais recentemente, quantopublicidad
A primeira ordem de questionamentos ocorre ao seu
desde
da ação do SPHAN e somente nos anos 1980 foi
solucionada. Desde os primeiros tombamentos parci CIO
de
juntos urbanos, ainda em 1938, adotou-se o cidades ente
proceA: e
umento
,
e notificar , tlào
eglda. Partia-se do princípio de o I)
que
e erreno ne situa os estanam sujeitos aos re cas
poder de polícia
do
ara que o tombamento do conjunto produzisse
efeito b
que a municipal fizesse cumprir as
disposiçõesda
federal (ANDRADE, R. M. E de, 1987, p.68). lei
como
Prefeito ficava realmente notificado, e a lei previa a
notificação
do proprietário, inúmeras ações judiciais arguirama
validade
desses tombamentos, por falha processual. Na verdade,
essaera
uma estratégia dos particulares para evitar o tombamento
receio de perda de valor económico dos seus ,por
imóveis.A Ia
permaneceu até 1986, quando a Portaria no II, de 11 de
setem-
bro, regulamentou uma série de procedimentos para a instrução
os processos de tombamento e estabeleceu a ossibilidade
de

210 Artigo 90 determina que o proprietário seja notificado pessoalmente


do
tombamento, para que possa manifestar sua aquiescência ou impugnação. Não
estabelece, entretanto, procedimento específico para a notificação da população
de uma cidade ou área em função -do seu tombamento.

122 Marcia Sant'Anna


notificação dos proprietários de imóveis no interior de conjuntos
tombados, mediante edital publicado na Imprensa Oficial e nos
periódicos locais de maior circulação.
Outra grande fonte de demandas judiciaissão as dispo-
sições constantes do Artigo 18. O próprio Rodrigo M. F. de
Andrade considerava sua redação insatisfatória
[...]pela omissão de referência a construções ou quais-
quer elementos que perturbem ou prejudiquem, pela sua
proximidade, o aspecto adequado das coisas tombadas,
embora não lhes reduzam a visibilidade(ANDRADE,
R. M. F. de, 1987, p.72).
Assim como ele, muitos outros juristas já tiveram a oportu-
nidade de expressar opinião semelhante.22Como já mencionamos
anteriormente, foi através da jurisprudência firmada em torno
dos conceitos de vizinhança e de visibilidade que as disposições
desse artigo foram sendo paulatinamente alar adas no sentido
a roteção da ambiência do bado oram exemplares
os casos judiciais referentes à construção do Edifício Torrosêlo,
no Outeiro da Glória, no Rio de Janeiro; do Ginásio de Esportes
junto ao Convento de São Francisco, na Paraíba; e o caso da in-
dústria próxima à Igreja de São Pedro dos Clérigos, em Recife.23
O pñncipal ponto de discussão quanto ao conceito de vizi-
nhança diz respeito aos seus limites métricos ou à sua delimi-
tação. Diferentemente da legislação francesa, que estabelece um
raio de 500 metros a do monumento para a configuração da
vizinhança, aqul optou-se pela análise dessa questão caso a caso,
de acordo com as especificidades topográficas, de implantação e

22A esse respeito, ver Machado, P. A. L, (1982)e Berguedof Elliot (1974).


23Arquivo Central do IPHAN, 66.03 - 11, Casos Judiciais, pastas 009, 004 e 005.

Da cidade-monumento à cidade-documento 123


de contexto urbano dos monumentos. Estabeleceu-se, na
prática,
que a vizinhança de cada monumento seria determinada pelo
órgão
federal de proteção ao património, de acordo com suas característi-
cas. As demandas judiciais,juntamente com a prática
operaram um alargamento do conceito e, hoje, a "vizinhança"
abarca tudo aquilo que é passível de interferência na apreensão do
bem tombado, esteja localizado em sua proximidade ou não.
Com relação ao conceito de visibilidade,o ponto de
discórdia sempre esteve ligado à sua interpretação em termos
(ficos ou de ambiência.Na ação judicialsobre a construção
de um edifício na vizinhança da Igreja e do Outeiro da Glória
iniciada em 1949, firmou-se o seguinte conceito de visibilidade:
O conceito de visibilidadepara fins da proteção legal
dispensada às coisas de valor histórico ou artístico,não
se limita à simples percepção ótica. Determinada obra
poderá permitir a visão fisica, em nada a reduzindo, no
senddo materialquanto ao bem tombado. Este, entretanto,
embora fisicamente visível, poderá vir a ser
altamente prejudicado por construção que se faça em sua
vizinhança, quer como resultado da comparação entre as
respecfivas dimensões, quer por prejudicar o novo edificio,
o conjunto paisagísticoque emoldura, tradicionalmente,
o bem tombado. Não é só isso. A própria diferençade
estilos arquitetônicos,quebrando a harmonia do conjunto
imprescindível à obra de arte integrada no aspecto urbano,
poderá, no sentido legal, reduzir a "visibilidade" da coisa
protegida. Esse é o espírito do artigo 18 do Decreto no 25.24

24Voto proferido pelo Ministro João José de Queirós no julgamento da 1aTurma


do Tribunal Federal de Recursos da apelação cível no 41.114. Arquivo Central
do IPHAN, 66.03 - 11, casos Judiciais, pasta 009.

124 Marcia Sant'Anna


A visibilidadeentendida
no sentido da preservação do
ambiente do bem, ou da sua valorização
a partir das relações
com o ambiente, prevaleceu como
jurisprudência. O conceito
de visibilidade se consolidou enquanto
visibilidade estética ou
artística.Tornou-se também um instrumento de manutenção
e defesa da aura do bem tombado, possibilitando eliminação,
a
em sua vizinhança, de objetos que pudessem prejudicar a "res-
peitabilidade do seu aspecto venerável", como ocorreu no caso
do pórtico de ginástica que não pôde ser construído junto ao
Convento de São Francisco, na Paraíba. Entretanto, apesar da
jurisprudência, a questão nunca se tornou pacífica, e algumas
ações foram perdidas em função de uma interpretação "ótica"
do conceito legal de visibilidade.25Não resta dúvida de que a
redação do Artigo 18 contribuiu para isso.
Mas os questionamentos jurídicos que decorrem da aplica-
ção desse artigo não se esgotam nos problemas conceituais. Na
verdade, em grande parte, as divergências conceituais encobrem
um problema básico: a extensão das limitações ao direito de ro-
rie à vizinhança dos bens tom a os. ultos particulares
não se conformam com o a o e possuir um imóvel que não
lhes parece ter nenhum valor histórico ou arústico e não poder
modificá-lo ou obter um maior índice de aproveitamento do
seu solo por estar esse imóvel próximo ou no ângulo de visão
de um bem tombado. Alguns juristas defendem que os vizinhos
devem ser também do tombamento do bem, para
que possam impugná-lo, e que os efeitos do tombamento sobre
a vizinhança só são válidos após a averbação do tombamento no

25Caso dos edifícios de oito pavimentos que foram construídos na vizinhança do


Museu Imperial de Petrópolis.

Da cidade-monumento à cidade-documento 125


registro de imóveis. Em falta da notificação, essa providência
ria um meio de divulgação do ato, protegendo o particular da
Sorte de comprar um imóvel na vizinhança de um bem tombado
(SILVA, C. MO,1972, p.429, 435). Outros, como Paulo Affonso
Leme Machado, reivindicam que a proteção da vizinhança deve
estar refletida na legislação municipal, como forma de evitar
conflitos entre o SPHAN e as Prefeituras no licenciamento
de intervenções.Esse jurista compreende ainda que o Artigo
18 somente resguardaa visão do bem tombado, "podendo a
vizinhança deixar de apresentar homogeneidade com a coisa ou
ser alterada de modo prejudicial a ela". Não daria, Portanto, à
administração os meios para impedir sua alteração ou exigir que
se integre com o bem tombado (MACHADO, P. A. L., 1982)
De to o mo orça da jurisprudência firmada em vários
casos judiciaise em decorrência de a opinião da maioria dos
juristas ser favorável à interpretação larga dos conceitos
criados
no Artigo 18, prevalece,de um modo geral, a doutrina
assim
expressa por Hely Lopes Meirelles (1977, p.534):
O conceito de visibilidadepara fins da Lei de
mento é amplo, alcançando não só a tirada Tomba-
da vista da
coisa tombada, como a modificação do ambiente
paisagem adjacente, a diferença de estilos ou da
e tudo o mais que contraste ou afronte aarquitetônicos
conjunto, harmonia do
o valor histórico ou a beleza
da obra protegida. original

126 Marcia Sant'Anna


A questão da regulamentação
do Decreto-Lei no 25/1937
Os problemas suscitados
pelas diferentes possibilidades de inter-
pretação das disposições
do Decreto-Lei no 25/1937 são dignos
de nota, mas não resta dúvida
de que, ao longo de 60 anos, se
construiU uma cultura de
aplicação e uma jurisprudência que, na
opinião da maioria dos juristas
que militam no campo da preser-
vação, tornam desnecessária
e até perigosa uma regulamentação
do texto legal.26Entretanto,
de início, tal regulamentaçãofoi
cogitada, e um esboço de decreto
foi produzido logo em 1940
(Anexo A).27Esse esboço constitui um
documento de grande
importância histórica, porque, além de
atestar que o Decreto-Lei
no 25/1937 não foi elaborado pata ser autoaplicável, conforme
já se argumentou, revela, claramente, as principais preocupações
de Rodrigo M. F. de Andrade quanto às fragilidadese pontos
vulneráveis do texto original, indicando as principais dificuldades
enfrentadas pelo antigo SPHAN na aplicação da recém-promul-
gada lei. O documento também constitui uma prova de que a
regulamentação do Decreto-Lei no 25/1937 chegou a ser redi-
gida, mas nunca foi efetivada por opção política do Diretor do
SPHAN, que, do mesmo modo decidira não efeóvrar uma ou
proposta e lei, elaborada na mesma é oca dis ondo es eci-
camente sobre o "tombamento em conjunto" de cidades ou
areas ur anas exo B).28A fragilidade a lei nesse parücular

do Mu-
26Entre eles está a Dra. Sônia Rabello de Castro, atualmente Procuradora
23/06/1994,
nicípio do Rio de Janeiro, que, em entrevista que nos concedeu em
manifestou essa opinião.
62.01/11, Ingislação, 002.
27Manuscfto encontrado no Arquivo Central do IPHAN,
IPHAN, 62.01/ 11, Legslação, 002.
28Manuscrito encontrado no Arquivo Central do

Da cidade-monumento à cidade-documento 127


e a possibilidade de s s demandas •udiciais eram sem dúvida
a principal preocupação tecnojurídica dos ioneiros do patri-
monlo. uc10 osta, na época já trabalhando para a instituição,
Decreto-Lei no 25/1937 eo
Fêêãaõque a regulamentação do
o tombamento
estabelecimento de disposições específicaspara
este último acabou
de áreas urbanas eram discutidos. Entretanto,
or causa da
sendo considerado"uma coisa muito co
poderiam acusar o
provável reação contrária dos prefeitos que
deliberações municipais 29
governo federal de "intromissão nas
época, apoiado pelo
Apesar de o trabalho do SPHAN ser, na
limitação do direito de
regime autoritário de Vargas,o nível de
inaugurava era tão
propriedade que a legislação do patrimônio
inviabilização política, especialmente
novo, que temia-se sua
caso
quando essas limitações atingiam grandes áreas, como no
das cidades tombadas.
no 25/1937
O projeto de regulamentação do Decreto-Lei
foi elaborado por Prudente de Morais Neto, advogado e amigo
de Rodrigo M. F. de Andrade, que sempre assessorava informal-
mente o SPHAN em assuntos jurídicos.30Diferindo do texto
originalda lei,exceto quanto aos novos poderes conferidos ao

Diretor do SPHAN para denunciar ao Presidente da República,

29Depoimento de Lucio Costa em enüevista que nos foi concedida em 14/06/1994,


no Rio de Janeiro.
30Na pasta em que se enconffam os documentos sobre a regulamentação do De-
creto-Leino25/1937 existem frês bilhetes de Dr. Rodrigo M. F. de Andrade diñ
gidos a Plínio Travassos, "Carlito" (Carlos Medeiros Silva) e ' 'Galloti", nos quais
pede a esses senhores que examinemo texto do anteprojeto que foi elaborado
por Prudente de Morais,Neto, o "nosso amigo Prudente", a seu pedido, a fim
de "habilitar êste Serviço a aplicar as sanções estabelecidas na lei que organizou a
proteção do paü•imônio histórico e artísdco nacional". Solicita também sugestões
sobre o assunto. Arquivo Central do IPHAN, 62.01/ 11, I..,egslação, 002.

128 Marcia Sant'Anna


a mlnlstros e
governadores os atentados
casos, apenas detalha ao património. Nesses
procedimentos que o texto da lei deixava
implícitos.
As inovações da
proposta de regulamentaçãoestão nas
disposi oe erentes a
le do comércio de
prev1Stasna lei
tam claramente da
experiência prádca adquirida com os pri-
meiros tombamentos e das
dificuldades enfrentadas na aplicação
de alguns princípios do
Decreto-Lei no 25/1937. O CapítuloV,
"Das cidades-mon esse caso,
roc a-se reso ver, através da
regulamentação,os principaispro-
blemas enfrentados no exercício dessa
proteção, ou seja,a forma
da notificação, o tipo de intervençãopassívelde autorizaçãoe
o relacionamento com as autoridadeslocais.O primeiroponto
que se observa é a Vsocup@çãoem conceituar esse ti o de bem
patrimonial e estabelecer os efeitos específicosda sua rote ao.
As cidades-monumento sao e n1 as como aquelasque tive-
ram "papel primacial em fato histórico de grande importância e
significação nacional" ou que possuem "feição arquitetônicaou
urbanísdca caracterísdca de um período relevante da vida e da
arte brasileira". Como se vê, o conceito pouco difere daquele do
Decreto-Lei no 25 / 1937, mantendo a ênfase nos valores históricos
e arústicos. O tombamento de uma cidade ainda se jusdficariapela
iminência de destruição de "exemplaresvaliososde arquitetura
ão ou
ou de paisagem", em consequência de planos de remodela
de intervenções articulares. ro eçao é conservar
e respeitar
as cidades-monumento em seu aspecto e fisionomia,
onal.
as linhas de seu desen
de tombamen-
o projeto de regulamentação, o processo

cidade-documento 129
Da cidade-monumento à
to de áreas urbanas torna-se específico.Procura-se consagrar
legalmente a notificação do tombamento apenas às autoridades
municipais e estaduais e estabelecer efeitos especiais.De
do com eles, a abertura, construção ou remodelação de ruas
praças, jardins ou quaisquer logradouros públicos, bem como
as intervenções em grupos de edifícios ou edifícios isolados de_
pendem de autorização prévia do SPHAN. Da mesma forma, a
execução de planos de desenvolvimento urbanísticos. Os efeitos
desse tombamento ficariam, portanto, dirigidos especificamente
ao controle das intervenções no espaço público, na morfologia
urbana e no aspecto externo das edificações. Pretenderiam
também o controle dos rumos do desenvolvimentourbano
levando a tutela do SPHAN para fora dos limites da área tom-
bada e demonstrando a preocupação com o crescimento desses
monume ais e ece que as
intervenções na cidade tombada seriam necessariamente estu-
dadas pelo corpo técnico do SPHAN, que, além de elaborar os
projetos, se encarregaria também da fiscalização de sua execução.

Essas disposições deixam claro que havia uma perfeita noção


da necessidade de instrumentos específicos para a preservação
do objeto urbano, e a prova disso é a menção a planos de de-
senvolvimento urbanístico e as restrições relafivas à intervenção
no espaço público. Se, no que diz respeito ao monumento iso-
lado, a principal preocupação naquele momento fundador era
legifimara interferência do Estado nos direitos decorrentes da
propriedade, com relação às cidades a preocupação era defendê-las
do próprio poder público. Era limitar a ação remodeladora
e
modernizadora do poder municipal.
O confrole do comércio de obras de arte ganha um
destaque
especialnesse regulamento. Detalham-se as disposições
constantes

30 Marcia Sant'Anna
no Decreto-Lei no 25/ 1937 e institui-se um certificado de registro
que condiciona o licenciamento do comerciante do ramo.
O capítulo relaóvroao processo das infrações é um dos
mais extensos e mais importantes, pois trata de uma parte do
Decreto-Lei no 25/1937 que não foi utilizadapor longo tempo,
justamente por falta de regulamentação. Constitui, na verdade,
um regulamento para viabilizar a aplicação das penas previstas
na lei e a cobrança das multas. Cabe observar que, com relação
à proteção de imóveis e áreas urbanas, esse aspecto da lei é
considerado muito importante porque a sua utilização ajudaria
a conter pequenas infrações relativas à descaracterização desses
bens. De fato, a maioria delas fica impune ou demora muito a ser
punida, em função da morosidade dos processos judiciais que
a instituição era obrigada a abrir por falta de alternativa. Além
disso, a impunidade tem gerado o desrespeito da população e
contribuído para a descaracterização acelerada de imóveis e
áreas urbanas. De acordo com essa proposta de Prudente de
Morais Neto, os processos de infração seriam instruídos por
técnicos da administração central ou por delegados regonais do
SPHAN, após o prazo fatal de 15 dias para a defesa do infrator.
A decisão seria proferida pelo Diretor, cabendo recurso ao antigo
Ministro da Educação e Saúde. O infrator, entretanto, mesmo
que recorresse, seria obrigado a depositar o valor da multa ou
uma caução, a ser devolvida em caso de reforma da decisão.
Caso o infrator não acatasse essa disposiçãoou não pagasse
a multa, o valor seria inscrito no registro da Dívida Pública e
depois cobrado judicialmente.
Por fim, o capítulo relativo à estrutura organizacional do
SPHAN mostra que a intenção era fazer com que essa estrutura
correspondesse ao que se considerava serem as suas principais

Da cidade-monumento à cidade-documento 131


funções. O órgão seria enxuto, baseado em poucos funcionários
fixos e muitas prestações de serviço. A estrutura seria composta
pela Diretoria, pelo Conselho Consultivo e pelos Órgãos Técni_
cos que iriam sendo criados conforme as necessidades do Ser
_
viço. Previa-se ainda a implantação de oito delegacias regionais
abrangendo todo o país. O esquema era bastante centralizado
com a Diretoria assumindo as várias funções que, na medida em
que fossem se tornando complexas, seriam assumidas pelos (()r_
gãos Técnicos. Por isso estava estruturado em Secretaria, Seção
de Obras e Tombamentos, Seção de Arqueologia, Etnografia
e História, Seção de Belas Artes e Artes Aplicadas e Seção de
Estudos Esta última foi, obviamente, proposta em
função das cidades-monumento e também atesta a intenção de
propiciar um tratamento específico dessa questão. A proposta
revela a necessidadeque havia de dotar o órgão recém-criado
de alguma estrutura para fazer face ao seu funcionamento real
e ideal. Revelatambém a intenção de atuar na maior parte das
frentes propostas no anteprojeto de Mário de Andrade, isto
é, na preservaçãodos bens de interesse para a Arqueologia
Etnografia, História, Artes e Urbanismo. Cabe observar que,
em 1946,quando o SPHAN ganha finalmente uma estrutura
formal, passando a Diretcñ do Paffimônio Histórico e
Arústico
Naaonal (DPHAN), o organograma ficou bem mais
restrito do
que nessa proposta. Além da Diretoria e do Conselho
Consul-
e de apenas quatro Distritos regionais, as seções
técnicas
ficaram reduzidas a Seção de Arte, Seção de História,
Seção de
Projetos e Seção de Obras, deixando clara a opção
de atuação
apenasnos domínios da História e da Arte. Nas
Disposições
Gerais do regulamento, institui-se a Revista do
Património Histórico
eArtísticoNacionalcomo veículo permanente do Serviço.

132 Marcia Sant'Anna


As tentativas de alteração e complementação
do Decreto-Lei no 25/1937
A preocupação com o exercício da preservação
de áreas urbanas
não ficou restrita ao projeto de regulamentaçãojá comenta-
do. Na mesma época, foi também elaborada
por Prudente de
Morais Net031uma proposta de decreto-lei dispondo sobre o
tombamento em conjunto de cidades ou áreas urbanas, aparen-
temente com a intenção de fornecer uma base
legal mais sólida
a essa proteção e, provavelmente, como alternativa ao projeto
de regulamentação. Percebe-se que tanto um quanto outro do-
cumento constituíram ensaios ou esboços, através dos quais se
tentava encontrar a melhor maneira de resolver o problema. O
texto é curto, desenvolvido em cinco artigos que estabelecem
os termos gerais do tombamento de cidades ou áreas urbanas.
Resolve-se que será feito por um só ato, relativo a todo o con-
junto. A notificação permanece endereçada apenas ao Prefeito,
dispensando-se taxativamente as notificações individuais aos
proprietários de imóveis incluídos no conjunto, que ficariam
cientes do tombamento por meio de edital publicado pelas pró-
prias prefeituras. Institui-se a obrigatoriedade da delimitação da
área urbana a ser tombada e, assim como no projeto de regula-
mentação, a da notificação, qualquer intervenção pública
ou privada fica dependente de aprovação prévia do SPHAN.
As autoridades que infringissem essa disposição seriam pessoal-
mente responsabilizadas.O documento propõe, portanto, de
modo muito semelhante àquele do projeto de regulamentação,
a criação de um novo de tombamento — o "tombamento

31A letra desse manuscrito é a mesma do manuscrito do projeto de regulamentação


(Anexos A e B).

Da cidade-monumento à cidade-documento 133


de conjunto" —-,com características e procedimentos próprios,
ainda que muito parecidos com os estabelecidos na lei em vigor.
A primeira proposta de revisão do Decreto-Lei no 25/ 1937
ocorreu em 1953,por iniciativado então Ministro da Educação
e Cultura, António Balbino, que criou uma comissão especial de
juristas, composta por Rodrigo M. F. de Andrade, Gabriel Passos,
Oscar B. Tavares, Carlos Medeiros Silva, Seabra Fagundes e Sa_
boia de Medeiros, para proceder à tarefa. Os documentos encon_
frados no Arquivo Central do IPHAN 32mostram que, de início,
houve uma certa mobilização dos técnicos da casa no sentido de
encaminhar propostas de revisão ou inclusão de novos artigos
na lei. Com base nelas e em observações de Rodrigo M. F. de
Andrade, a comissão chegou a produzir uma análise do Decre-
to-Lei no 25/1937 e parte de uma minuta de alteração do seu
texto. Apesar de o projeto ter sido abandonado, os documentos
que foram então encaminhados e produzidos33 mostram que a
intenção era modificar a lei nos seguintes pontos: 1) restrição
do universo do patrimônio histórico e artístico nacional
bens de valor histórico, artístico e arqueológico, eliminando-se
os valores bibliográfico e etnográfico;342) instituição de dois
tipos de tombamento, destinados, respectivamente, a monu-

32Arquivo Central do IPHAN, 62.01/11, Legislação, 002.


33Carlos Drummond de Andrade, então chefe da Seção de História da Divisão de
Estudos e Tombamento da DPHAN, encaminhou, em 28/07/ 1953, à
comissão
o documento indtulado "Revisão do Decreto-lei no 25", onde faz sugestões
para
a eliminação e inclusão de artigos no decreto. Lygia Mardns Costa acredita
que,
na realidade,as sugestões foram elaboradas por Lucio Costa, então chefe
da
Divisão de Estudos e Tombamento, e apenas encaminhadas por
Drummond.
Segundo ela, Rodrigo M. F. de Andrade ouvia muito o "Dr. Lucio", de
quem
partiam as principais sugestões técnicas.
34Esse ponto permaneceu polêmico.

134 Marcia Sant'Anna


mentos nacionais e a edifícios ou bens de importância menor;
3) reformulação total do Artigo 18, tornando-o mais eficiente
na proteção da ambiência do bem tombado; 4) explicitação da
obrigação do proprietário de conservar o bem e ao
seu estado original, em decorrência de intervenção ilegal; 5)
inclusão, no Artigo 10,das expressões "cidades coloniais, con-
juntos arquitetÔnicos e urbanísticos e logradouros públicos", ao
lado dos bens suscetíveisde tombamento; 6) criação de novo
instituto de proteção denominado "inventário", provavelmente
inspirado no InventaireSupplémentaire francês, cujos efeitos não
chegaram a ser estabelecidos.
Segundo Lygia Martins Costa, funcionária do SPHAN
desde 1952, naquela época, Rodrigo M. F. de Andrade defendia
ardentemente que não fosse alterado o texto orignal do decreto
por considerar arriscado mexer numa lei ainda em processo de
sedimentação.35Acreditavaque, somente quando estivesse termi-
nada a obra educativa em prol do património, se poderia alterá-la.
Embora, de início, fosse favorável à regulamentação do Decre-
to-Lei no 25/1937 e apontasse suas falhas e lacunas em diversas
oportunidades, a pardr do episódio de sua revisão em 1953, Rodri-
go M. F. de Andrade fez o possível para que o decreto não fosse
alterado. Tudo indica que, como membro da Comissão Especial
de Revisão, concluiu que a reforma da lei poderia comprometer
o trabalho de preservação até então realizado.Daí por diante,
e até o final da década de 1960, dedicou-se a neutralizar todas
as tentaóvras nesse sentido, ajudando a criar dentro do SPHAN
toda uma cultura de preservação do Decreto-Lei no 25/1937,

35LygiaMartins Costa prestou esse depoimento em entrevista que nos concedeu


em 08/04/1994, no Rio de Janeiro.

Da cidade-monumento à cidade-documento 135


que passou a ser entronizado como um texto legal extremamente
avançado e amplo o suficiente para acompanhar, sem necessidade
de adaptações, a evolução do pensamento preservacionista.
Excetuando-seo projeto de regulamentação,entre 1940
e 1980 foram discutidas ou encaminhadas ao SPHAN quinze36
36Em ordem cronológica, foram as seguintes as propostas encaminhadas: I.
de Decreto-lzi dispondo sobre o tombamento em conjunto de cidades ou
urbanas para os efeitos do Deceto-Lei no 25/1937, elaborada por Prudente de Mas
rais, Neto, em 1940.2. Proposta de Revisão do Decreto-Lei no 25/ 1973,esboçada
por Comissão Especial criada pelo MEC em 1953.3. Proposta de Lei federal
estas
belecendo condições especiais de financiamento para a conservação e restauração
de monumentos e conjuntos urbanos, elaborada pelo economista Rômulo Almeida
por solicitação do Governador da Bahia,Juracy Magalhães, em 1959;4.
de alteração dos Artigos 26 a 28 do Decreto-Lei no 25/1937 introduzindo
novos
dispositivos legais sobre o exercício do controle do comércio de obras de
atte
elaborada por Luís Saia, chefe do 40Distrito da DPHAN, em 1965.5. Proposta
Izi complementar ao Decreto-Lei no 25/1937 abrindo linha de crédito no de
BNH
para financiamento de recuperação de imóveis para habitação popular nas
cidades
e sítios históricos, elaborada pela DPHAN, por volta de 1967.6. Anteprojeto
de
lei complementar às disposições do Decreto-Lei no 25/1937 proibindo o
uso de
imóveis tombados para instalação indusü•ial,comercial ou de qualquer
natureza
que lhes possa causar dano, elaborada por Rodrigo M. F. de Andrade, no
Conselho
Federal de Cultura, em 1968.7. Anteprojeto de lei complementar ao
Decreto-lRi
no 25/1937 englobando as sugestões do item 6, acrescidas de outras
sobre a
portação de bens culturais, sua integridade e ambientação, elaborada
por Afonso
Arinos de Melo Franco, no Conselho Federal de Cultura, em 1969.8.
de lei complementar ao Decreto-Lei no 25/1937 atendendo às Proposta
Recomendações
da UNESCO relativasà preservação de monumentos e conjuntos
históricos
em
face das necessidades de melhoramentos urbanísticos e industriais,
pelo Conselho Federal de elaborada
Cultura, em 1970. 9. Projeto de Lei no
alterando disposidvos do Decreto-Lei no 25/1937 e estendendo 143/1973
a Proteção
do Estado a todos os bens de interesse histórico e
tombados ou não
de iniciativa do Senador Magalhães Pinto, apresentado ao
Congresso Nacio-
nal em 1973. 10. Proposta de lei complementar ao Decreto-Lei
no 25/1937
detalhando as obrigações dos proprietários de imóveis tombados,
iniciativa do IPHAN e do Conselho Federal de Cultura, em 1973. elaboradapor
11. Projetode
Lei do Senado no 152/1974, incluindo artigo no Decreto-Lei no
25/1937 sobreo
restabelecimento da grafia tradicional no nome das cidades
tombadas, elaborado

136 Marcia Sant'Anna


propostas de alteração ou complementação do Decreto-Lei no
25/1937. Até o final da década de 1960, seis das sete propostas
discutidasforam de iniciativado próprio SPHAN, do MEC ou
do conselho Federal de Cultura (CFC), e apenas uma originou-
se fora desse circuito, em 1959, a partir de iniciativado então
Governador da Bahia, Juracy Magalhães. Em 1968, pouco antes
de morrer, Rodrigo M. F. de Andrade foi relator de uma das
propostas de complementação origináriasdo CFC. De modo
geral, as propostas do circuito SPHAN/MEC/CFC eram des-
tinadas a complementar ou detalhar disposições do Decreto-Lei
no 25/1937, e dispunham sobre o uso inadequado de imóveis
tombados, sua ambientação, a exportação de bens móveis e so-
bre incentivos fiscais para a atividade de conservação. Rodrigo
M. F. de Andrade foi também responsável pelo arquivamento
desses projetos na Receita Federal ou no Ministério da Fazenda.
A proposta de lei federal encaminhada pelo governo baia-
no foi elaborada pelo presidente da Comissão de Planejamento
Econômico da Bahia, economista Rômulo Almeida. Estabelecia
condições especiais de financiamento para obras de conservação
em edifícios e conjuntos tombados, e determinava a criação de
leis estaduais e municipais de isenção de impostos para esses

pelo Senador Vasconcelos Torres, em 1974. 12. Projeto de Lei do Senado no


34/1975 instituindo regisfro no Ministério da Indústria e Comércio para peças de
valor histórico quando de sua comercialização,elaborado pelo Senador Vascon-
celos Torres, em 1975. 13. Projeto de Lei no 105/1976 propondo a isenção de
impostos prediais e territoriais urbanos para os imóveis tombados, de autoria do
Deputado Fernando Coelho, em 1976.14. Projeto de Lei no 2.648/1976 alterando
vários ardgos do Decreto-Lei no 25/1937 no senddo de seu aperfeiçoamento e
atualização,de autoria do Deputado Marco Maciel, em 1976. 15. Projeto de lei no
4.346/1977 incluindo novo parágrafo no Artigo 17 do Decreto-Lei no 25/1937
que estabelece a proteção especial dos bens tombados sujeitos às intempéries,
elaborado em 1977, sem referência de autor.

Da cidade-monumento à cidade-documento 137


imóveis. O prazo mínimo do financiamento era previsto para
20 anos, com juros de 6% ao ano. A União assumiria o ónus da
diferença entre esses juros e a taxa normal praticada no mercado
pagando-a à entidade financiadora. Ou seja, propunham-se
préstimos a juros subsidiados para os proprietários que se subme_
serviços de projetaçào
tessem às normas da então DPHAN. Seus
fiscalização e assistência técnica ao proprietário seriam incluídos
no capital mutuado. O projeto previa ainda o financiamento para
aquisição,por parte do poder público, de prédios para a instalação
de serviços públicos ou instituições de utilidade pública, e a abertura
de um crédito de 5 milhões de cruzeiros para que a DPHAN realis
zasse os estudos técnicos necessários à execução dessa proposta de
lei. A intenção do projeto era buscar uma saída económica para a
preservação dos conjuntos urbanos, tornando-a um bom negócio
e uma atividade autossustentável. Procurava-se reverter a menos _
-valiagerada pelo tombamento, agregando-se um valor económico
ao bem. Dessa forma, tentava-se viabilizar a preservação de grandes
áreas por meio da parceria entre o particular e o poder público. É
a primeira proposta de legislação que estimula a atividade privada
de preservação e também a primeira no sentido do aproveitamento
económico do patrimônio. Uma vez encaminhado à DPHAN
projeto foi completamente emendado e desvirtuado no Conse_
lho Consultivopara "adequar-se ao Decreto-Lei no 25/1937"
gerando o desinteresse dos proponentes na sua implementação.
Nos anos 1970,além de duas propostas oriundas do
CFC
vários projetos de lei complementando ou alterando o
Decreto-
-Lei no 25/1937 foram apresentados ao Congresso Nacional,
por
iniciativa de deputados e senadores. Uma delas, como já
vimos,
apresentada pelo Senador Petrônio Portela, transformou-se
na
Lei no 6.292/1975, que instituiu a necessidade de
homologação

138 Marcia Sant'Anna


do ato do tombamento pelo Ministro da Educação e Cultura.
O exame das propostas do CFC todas elas feitas de comum
acordo com o IPHAN mostra que, àquela altura, o campo
preservacionista formado por essas instituições
defendia a com-
plementação do no 25/1937 nos seguintes pontos: 1)
definição do património cultural como elemento
integrante do
desenvolvimento e da segurança nacionais;
2) incentivos fiscais
à atividade de conservação e imunidade tributária para os bens
tombados; 3) proteção mais larga e específica
para a vizinhança
de monumentos; 4) disposições especiaispara o comércio e a
saída de obras de arte do país; 5) utilização adequada dos imóveis
tombados e de sua vizinhança; 6) detalhamento e explicitação
das obrigações dos proprietários; 7) inventário de imóveis de
interesse cultural; 8) instituição de seguro obrigatório para bens
tombados.
Entre os projetos de lei apresentados no Congresso, cabe
destacar aqueles propostos pelo Senador Magalhães Pinto, em
1973, e pelo então Deputado Marco Maciel, em 1977. Ambos
pretendiam promover alterações no texto orignal do Decreto-Lei
no 25/1937, adequando-o e atualizando-o conforme o que se
entendia ser uma moderna de preservação. O projeto do
Senador Magalhães Pinto estendia a proteção do Estado a todos
os bens de interesse histórico e artístico existentes no país, in-
dependentemente de tombamento. Foi simplesmente demolido
pelo IPHAN, com a ajuda de Gustavo Capanema, então presi-
dente da Comissão de Educação e Cultura do Senado, e de João
Calmon. A estratégia adotada foi convencer Magalhães Pinto a
aceitar um ao projeto que resguardava a integridade
do Decreto-Lei. Em seguida, foram acionados contatos com
congressistas envolvidos no exame do projeto para deixar claro

Da cidade-monumento à cidade-documento 139


que ele era contrário aos interesses do IPHAN.37 De fato, trata_
va-se de uma proposta inviável, mas o projeto é digno de nota
porque procurava responder aos crescentes questionamentos de
setores intelectualizados à prática de preservação desenvolvida
pelo IPHAN, que já era considerada fechada e extremamente
voltada para a conservação dos chamados monumentos de
dra e cal, deixando de fora outras frações do universo cultural
também julgadas de grande importância.
Já a proposta do Deputado Marco Maciel,em 1977, foi
mais difícil de ser contornada pelo IPHAN, visto que era melhor
estruturada e elaborada com o apoio de Berguedof Elliot, jurista
estudioso do Decreto-Lei no 25/1937 que, em 1974, já havia
apresentado publicamente um trabalho sobre a necessidade de
reformulação dessa lei. De um modo geral, o projeto de lei previa
alterações que complementavam e procuravam atualizar o texto
do Decreto-Lei no 25/1937, mas que não apresentavam grandes
novidades no trato da matéria. A mais digna de nota é aquela
que, acrescentada ao Artigo 20, ao IPHAN fixar, por
meio de Resoluções, as "condições particulares de proteção à
coisa tombada", além das gerais previstas na lei. Propunha-se
também que a notificação dos tombamentos fosse feita por edi-
tal publicado no órgão da imprensa oficial local, dando ciência
aos proprietários de imóveis incluídos em conjuntos tombados.
Elliot defendia a tese de que, no caso do tombamento de áreas
urbanas,a simples ao prefeito não era suficiente
para dar validade ao ato. O projeto previa ainda a reformulação

37Enl carta diHgidaao Deputado Rômulo Galvão, Fernando da Rocha Peres, então
chefe do 20Distrito do IPHAN-Bahia, afirma que o projeto de Magalhães
Pinto
é "contrário aos interesses do IPHAN" (Carta de 10/05/1977, Arquivo
Central
do IPHAN, Legislação,pasta 20.

140 Marcia Sant'Anna


do Artigo 18, o detalhamento das obrigações dos proprietários
e a reestruturação dos cálculos das multas previstas na lei. O
projeto de Maciel foi acolhido com reservas no IPHAN, que,
embora afirmasse gostar do seu conteúdo, temia que o Con-
gresso aproveitasse a oportunidade para alterar essencialmente
o Decreto-Lei no 25/ 1937.38Uma estratégia de lobbysemelhante
àquela adotada com relação ao projeto de Magalhães Pinto foi
acionada para neutralizar politicamente as chances de imple-
mentação do projeto.39
Ainda no final dos anos 1970, surgem no Congresso vários
projetos de lei que procuram influir na práfica de seleção dos
bens que compõem o patrimônio histórico e arústico nacional,
assim como no processo decisório do tombamento. Quase inva-
riavelmente, são projetos que indicam o tombamento de cidades
ou conjuntos urbanos, e foram, na maioria, apresentados pela
Deputada Lygia Lessa Bastos.40A ideia básica era determinar
o tombamento por via legislativa,subtraindo do IPHAN a
exclusividadedo processo de seleção e decisão quanto à opor-
tunidade dos tombamentos. O objetivo principal da deputada
era criticar os critérios que presidiam tradicionalmente esses

38Oficio no 3.403/76, de 11/10/76, de Renato Soeiro ao Chefe de Gabinete do


MEC, Arquivo Central do IPHAN, Legislação,Pasta 2C.
39Fernando da Rocha Peres, então chefe do 20 Disfrito do IPHAN, dirige carta ao
Deputado Rômulo Galvão, relator do projeto na Comissão de Educação e Cultura
da Câmara, solicitando que este "ajude a conter a imaginação dos congressistas
para que não estraguem demais o Decreto-lei 25" (Ver nota 40, neste capítulo).
401. Projeto de Izi no 5.330/1978 propondo a elevação de Petrópolis a Monumento
Nacional. 2. Projeto de Lei no 273/1979 insfituindo o tombamento da Lapa e da
encosta de Santa Teresa, no Rio deJaneiro. 3. Projeto de Izi no272/ 1979instituindo
o tombamento do síúo cultural da Cinelândia, no Rio de Janeiro. 4. Projeto de Lei
no 271/1979 instituindo o tombamento da Rua da no Rio de Janeiro.

Da cidade-monumento à cidade-documento 141


atos. Na justificativado Projeto de Lei que indica o
da Rua da Carioca, no Rio de Janeiro, ela prega a tombamento
ampliação d
conceito de património utilizado pelo IPHAN, reivindicando
que seja direcionado no sentido da valorização das tradições
da proteção do valor cultural dos bens e não mais em ccmi e
de perfeccionismo arquitetônico".41Ainda segundo a
os organismos de proteção ao património e ao meio ambiente,
por meio de sua prática ou omissão, seriam também responsáveis
pela "despersonalizaçãoda individualidade cultural no B
No IPHAN, os tombamentos por ela propostos foram desrasil"
lificados, observando-se que não possuíam interesse para tombquas
mento federal. Avaliou-se ainda que os pressupostos da
ptoteção
federal deveriam ser "tecnicamente" aferidos pelo IPI-IAN
e pelo
Conselho Consultivo — organismos "altamente especializados"
e competentes para desempenhar essa tarefa o que
desacon-
selharia, definitivamente, o tombamento pela via legislativa.42
As propostas de tombamento originadas do
devem ser vistas como uma crítica à prática elitista e Congresso
centralizada
do SPHAN. Constituem, na realidade, tentativas de
uma discussão em torno do processo decisório de provocat
do património constituição
histórico e artístico nacional, procurando
duzif o valor para a sociedade como um outro a ser intros
considerado
No início da década de 1980,com o
fortalecimento
e administrafivodo SPHAN e com a emergência
político
de um
discurso de preservação, as propostas de novo
complementação ou
Projeto de Lei no 271, de 19/03/1979,
Arquivo Central do
IPHAN,
Legislação,
42Documento intitulado "Notas Acerca
dos Projetos de lei no
273/79 e 5.330/78", Arquivo
Central do IPHAN, 271/79, 272/79
Legislação, Pasta no 6.

142 Marcia Sant'Anna


alteração da lei pararam de ser
encaminhadas.Nessa época, o
Decreto-Lei no 25/1937 consagrou-se
como uma lei perfeita e
avançada, imune a alterações. O
problema recorrente da roteção
de áreas urbanas se reduziu, em
termos legais,ao problema da
explicitação e da "transparência" dos
critérios de intervenção. Sur-
gram, então, as "portarias de entorno",
que passaram a funcionar
como solução para algumas fragilidades da lei, com a vantagem
de não expô-la à avaliaçãodo poder legslativo.Apesar de todo
o discurso da então criada Fundação NacionalPró--Memória
(FNPM) no sentido da ampliaçãodo conceitode patrimônio
nacional e da sua democratização,não ocorreram, no período,
propostas de criação de novos institutos de proteção que atendes-
sem a essa expansão. Nem mesmo a Constituição Federal de 1988,
que recomenda expressamente a adoção de "outras formas de
acautelamento e proteção" além do tombamento, para a defesa
do património cultural, serviu de esúmulo para novas iniciadvas
de atualização ou complementação da legslação de proteção.
A trajetória das propostas de alteração ou complementação
do Decreto-Lei no 25/1937 mostra que quase todas aquelas que
se originaram fora do campo institucionalizadoda preservação
poliúcamente
foram sistematicamente rejeitadas, esvaziadas ou
oriundas
neutralizadas pelo IPHAN e pelo CFC. As propostas,
disposições do Decreto-Lei no
do próprio IPHAN, que alteravam
foram também abandonadas
25/ 1937 ou influíam no seu texto,
sumariamente vetadasY As iniciadvas de complementação da
ou

Constituição Federal.
43Artigo 216 da encaminhada em 1965 pelo arquitetoLuís
é o da proposta
44Um bom exemplo DPHAN. Tentava dar à DPHAN melhores
meios
Distrito da
Saia, chefe do 40 de obras de arte, instituindo um selo
de
do comércio
para exercer o controle conferido pelo Patñ•nônio
mediante
e valor do objeto,
autenócidade, procedência

143
à cidade-documento
Da cidade-monumento
legislação encaminhadas e defendidas por esses ót•gàos
ravam a essência da lei e objetivavam semptv o detalhatnento
a atualização de certas disposições, há nnuito reconhecidas cot)io
frágeis ou incompletas. No que diz respeito à proteçào de
urbanas, por exemplo, as propostas se a recolocar as
observações feitas por Rodrigo M, E de Andrade já etn
isto é, ampliação do conceito de visibilidade, detalhamento (Io
procedimento de notificação e aprovação de planos urbanístic«
A única que chegou a propor algo diferente, o financiamento
pelo BNH da recuperação de imóveis antigos para habitaçóes
populares, foi apenas rascunhada e hoje é até dificil saber quem
foi o seu autor.45Essa atitude centrada na defesa no Decreto-Lei
no 25/1937 ajudou a sedimentar no Brasil a equivalência entre
tombamento e preservação.46 Ou seja, o instituto de Proteçã()
passou a ser confundido com a atividade, não se concebendo
outra forma de preservar senão através do tombamento,
A história das tentativas de complementação e alteração
do Decreto-Lei no 25/1937 é também a história da sua defesa

peritagem. A proposta foi vetada por Rodrigo M, E de Andrade porque introdu-


zia a cobrança de uma taxa de 5% do valor da obra de arte, para os serviços de
peritagem, com a seguinte alegação: "Negligenciando, como temos negligenciado,
a parte educadva de nossa missão e descurado quaisquer providências para favo.
recer ou estimular os proprietários e colecionadores de bens culturais existentes
no Brasil, talvez seja imprudente passar a coagi-los em nosso proveito" (Oficio
no 1594, de 17/12/65, Arquivo Central do IPHAN, Legislação, Pasta no 2).
45Em entrevista que nos concedeu em 24/05/1994, Augusto Carlos da Silva Telles,
funcionárioaposentado e ex-diretor do IPHAN, informou que essa proposta
foi elaborada por volta de 1967, provavelmente por Raphael Carneiro da Rocha,
à época assessor jurídico do órgão. Lembra-se de que a discussão em torno da
abertura de uma linha de crédito para restauração no BNH surgiu em função
do problema do Pelourinho,em Salvador.
46Sobre a distinção entre tombamento e preservação, ver Sónia Rabello de Castro
(1991, p.5-8).

144 Marcia Sant'Anna


em função da manutenção
do espaço institucional
criar. Ao longo do tempo, que ajudou a
observa-se que a luta
ção desse instrumento vai pela preserva-
saindo de um patamar
suas conquistas legais relativas de defesa das
à limitação do
dade, para a preservação de direito de proprie-
um espaço de
tecnificada e, muitas vezes, institucional
arbitrária. O motivo alegado
a rejeição ou abandono para
de todas as propostas
ou complementação da legislação de atualização
é sempre o de não se pôr
em risco o que já se conquistou em termos
de legiúnidade do
tombamento. Receia-se que, à menor
abertura, as forças con-
trárias à preservação
estejam prontas a atacar e
arrasar o que foi
duramente construído. Age-se como se, em
todos esses anos, o
IPHAN não tenha sido capaz de realizarminimamente
o que
Rodrigo M. E de Andrade chamava de "trabalho educadvo
em
prol do património" ou "processo de sedimentaçãoda lei".
Na verdade, todas as vezes em que se quis diminuir realmente
o poder do SPHAN, se conseguiu, como atestam as derrotas
polficas das leis de cancelamento do tombamento e de obri-
gatoriedade de sua homologação. Nesses casos, o cuniculumdo
SPHAN, o presúgio de Rodrigo M. F. de Andrade e daqueles
que o apoiavam não foram suficientes para impedir as alterações.
Entretanto, o teor das outras propostas de complementaçãoe
alteração encaminhadas indica mais uma intenção de reforçar e
aperfeiçoar a atividade estatal de preservação do que o contrário.
Da mesma forma, a história das batalhas judiciaisem torno
do tombamento atesta que, embora atacado em suas fragilida-
des, o obteve o apoio suficiente para sair incólume de
trabalho
quase todas elas. Isso, sem dúvida, demonstra que o
empreendidopor
de sedimentação do Decreto-Lei no 25/1937
foi, sem dúvida, um
Rodrigo M. F. de Andrade e pelo SPHAN

cidade-documento 145
Da cidade-monumento à
trabalhovitorioso.O que o põe em risco é justamente o seu
fechamentoem torno de práticas que não atendem aos anseios
sociais,e cuja transformação passa pela reestruturação do sis_ posiçü
tema estatal de preservação e, consequentemente, também pela aí pare«
complementação da levslação. O problema da proteção de áreas 18 e IS
urbanas ilustra de modo privilegiado essa questão. nos, pr
A trajetóriado Decreto-Leino 25/1937 mostra que a isolado
proteção de áreas urbanas sempre foi vista como uma lacuna ou ruír
legal.A consciência da precariedade da lei, nesse caso, é mas gr;
muito
antiga, como demonstram as experiências de Rodrigo outro
M. F. de
Andrade e Prudente de Morais Neto, em 1940. A de pres
da lacunametodológicafoi mais difícil no âmbito dopercepção seus va
apesar de ter sido apontada, em
SPHAN
1959, na proposta de
é possí
Rômulo
Almeida e, exaustivamente, como veremos, na situaçã(
década de 1970
pelo arquiteto Paulo Ormindo de Azevedo. Em
outras palavras:
tambémhá muito tempo se sabe que a plemen
preservação de áreas
urbanasnão passa somente pela das out
conservação das formas
controle de intervenções físicas. e pelo
forma.
Desde 1938,quando ocorreram SPHA
os primeiros
tos, a proteção legal de tombamen-
áreas urbanas se apoiou no BIN
Artigos 17 e 18 do Decreto-Lei basicamente nos
no 25/1937, discut
pelas disposições do
Arügo 19, que obrigavam complementados apres
SPI-IAN a conservar0 o proprietário
bem. como se vê, o eo criaç:e
a preservaçãoda tombamento coloca
dimensão física do bem e Pai
sua conservação.As como suficiente
dimensões social, para uma
funcionaldo objeto econômica, simbólica
urbano não são e pela
disposiçõesda legislação contempladas
não foram porque as
isso e sim para a originamente pensadas glol
obra isolada, para
arquitetônica ou
47
O modelo não.47Foram
jurídicodo
tombamento
dis- afe
é0
francês, criado
na França,
em
48 •
146 Marcia
Sant'Anna
posições adaptadas e levadas
ao objeto urbano por analogia,48e
aí parece residir o erro básico.
A interpretação dos Artigos 17,
18 e 19, no sentido da
proteção de cidades e conjuntos urba-
nos, pressupõe a equivalência
de natureza entre o monumento
isolado e o conjunto. Em certos
casos, pequenos conjuntos
ou ruínas podem ter a mesma
natureza de um monumento,
mas grandes áreas ou cidades são,
certamente,objetos de um
outro tipo. E possível reduzir o monumento,
enquanto objeto
de preservação, às suas dimensões culturais,
isto é, à atenção aos
seus valores históricos, artísticos, arqueológicos,
etc., mas não
é possível fazer o mesmo com áreas urbanas, sem criar uma
situação completamente artificial.
Entre as propostas oficialmente encaminhadas para com-
plementação da legislação, pelo menos duas procuraram tratar
das outras dimensões do fenómeno urbano que não apenas a sua
forma. Foram as do governo da Bahia, em 1959, e do próprio
SPHAN, em 1967, com a criação da carteira de financiamento
no BNH. Além dessas, outras propostas foram divulgadase
discuódas em encontros e seminários, entre as quais se destaca a
apresentada por Paulo Ormindo de Azevedo, em 1973, sobre a
criação de uma legislação específica para "Setores Monumentais
e (AZEVEDO, P. O. D. DE, 1973b). Trata-se de
uma proposta baseada no esquema de preservação introduzido
pela Lei Malraux (1962), em que, mediante a adoção de um plano
global de preservação supervisionado por uma Comissão Inter-
urbano"
ministerial, se define o setor histórico como um "fato
apenas a cultural.
afeto a outras áreas de intervenção que não

sobre essa
considerações de Rodrigo M. F. de Andrade
48Ver, no capítulo 4, as
questão.

cidade-documento 147
Da cidade-monumento à
O plano envolve os aspectos formais, sociais e econômicos da
preservação, dando margem também à participação da iniciativa
privada na tarefa. Entretanto, essa e outras ideias que surgiram
sobre o assunto não foram sequer testadas pelo SPHAN. Se-
dimentou-se a opinião de que o Decreto-Lei no 25/1937 ou o
tombamento era amplo o suficiente para dar conta de qualquer
objeto, ficando o tratamento de possíveis especificidadesvin-
culado à implementação de políticas especiais de preservação.
Reduziu-se também, dessa forma, o problema da preservação
de áreas urbanas à exclusivaintervenção estatal, ignorando-se
sua dimensão econômica básica, que depende da participação
da sociedade e de investimentos privados para ser sólida e du-
radoura. Em resumo, se o mito da perfeição do Decreto-Lei no
25/ 1937 por um lado, a preservação de um importante
espaço institucional,por outro, fechou o SPHAN ao exame e
à implementação de propostas renovadoras que poderiam ter
fornecido, pelo menos, pontos de partida para a transformação
de uma práúca anacrônica,insuficiente e metodologicamente
equivocada no que diz respeito à preservação de áreas urbanas.

148 Marcia Sant'Anna

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