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O Decreto-Lei no 25/1937
e a proteção de áreas urbanas
Da cidade-monumento à cidade-documento 91
1934. O marco político que possibilitou a institucionalização das
práticas de preservação é, contudo, melhor compreendido se nos
reportarmos, inicialmente, ao contexto da Primeira República.
Entre 1889 e 1930, as oligarquias paulistas e mineiras do-
minaram a cena polídca e detiveram o poder económico no país.
Boris Fausto (1989, p. 112) observa que a burguesia cafeeira cons-
dtuía então a única classe nacional, no sentido de que somente ela
reunia as condições políticas e econômicas para conduzir o país
segundo seus interesses. O Estado era instrumento de execução da
polídca econômica e social favorável a essa classe. Um indicador
do nível dessa hegemonia é a própria Constituição promulgada
em 1891. A autonomia que conferia aos estados da Federação a
possibilidade de tomar emprésdmos externos e formar milícias,
por exemplo, mosffa o nível de descentralização do poder e a
intenção de manter fortes as oligarquias em seus locais de origem.
Embora isso possa parecer, à primeira vista, um sinal de fraqueza
do poder cenffal, era, ao conffário, uma estratégia para o seu for-
talecimento, tendo em vista que reconhecia as situações estaduais
que lhe davam suporte (FAUSTO, 1989, p.90). O período se
caracteñzou por uma economia fechada e centrada na produção
e no comércio do café. As vozes discordantes eram representadas
por facções militares e grupos polídcos regonais, para os quais
a moldagem das instituições em função da economia do café
era prejudicial aos seus interesses. Entretanto, só na década de
1930, essas facções enconffaram as condições para empreender
a tomada das rédeas do governo.
Segundo Alfredo Bosi (1992, p.283-284), o Estado que se
formou a pardr de 1930 começou a ser gestado no final do século
XIX, e sua primeira experiência concreta teria ocorrido no Rio
Grande do Sul, durante o governo de Júlio de Casdlhos. O mo-
92 Marcia Sant'Anna
delo transposto pelo castilhismo para a Constituição Estadual, em
1891, era calcado no positivismo social de Comte, que atribuía ao
Estado o papel de condutor do desenvolvimento econômico, re-
tificadordo capitalismo e administrador dos conflitos. Em outras
palavras,um modelo que pressupunha a expansão do aparelho
estatal para a implantação de serviços públicos e a intervenção
em vários setores da economia, opondo-se francamente ao mo-
delo liberal. O Estado de "modelagem positivista", conforme a
expressão de Bosi, é um Estado que prevê e provê os termos e
os meios do desenvolvimento e se acredita acima dos interesses
de classe. Essa tradição castilhista será seguida por Getúlio Vargas
como deputado e depois como presidente da nação, quando a
facção gaúcha subiu ao poder central em 1930.
A nova forma de Estado que se implantou na década
de 1930 foi também resultado da composição política entre
vários segmentos da sociedade, representados pelas burguesias
dissidentes gaúcha e mineira, pela facção rebelde das Forças
Armadas, pelas classes médias dos grandes centros e, de modo
urbano. Nenhum desses segmentos
possuía poder polfico e econômico suficiente para governar
sozinho e, assim, a saída encontrada foi a montagem de um
governo baseado no que Boris Fausto (1989, p. 104) denomina
"Estado de Compromisso" , que abriu espaço à participação
das classes médias e dos militares e buscou aumentar o apoio
popular na implementação de novas relações com o operariado.
Fizeram parte dessa estratégia a instituição do salário mínimo,
a consolidação das leis trabalhistas e a regulamentação da ativi-
dade sindical. A proteção da indústria nacional, a implantação
de_serviços públicos e outras medidas de cunho spcialigante
contribuíam para neutralizar oposição das esquerdas, Mas o
Da cidade-monumento à cidade-documento 93
compromisso envolvia também a burguesia cafeeim que,
i fora do aparelho de Estado, era contetnplada em seus
sess uma vez que o café continuava sendo o eixo economiA,
Somente na década de 1950 a indústria tomou esse lugar,
Com a Revolução de 1930, as relações de
foram alteradas. A economia marcadatnente agroexport0(lora
permaneceu hegemónica ainda por tuuito tetnpo, Tampouco
houve substituiçào de classe no governo central, Emborn tenha
sido firmado um compromisso de governabilidade entre vários
segmentos, o governo continuou sendo liderado por uma frnçvi()
da classe dominante, com o apoio das outras classes que lhe
eram subordinadas. Os compromissos políticos "diversifica.
dos" conferiram grande autonomia ao Estado para centralizar
administração, para intervir em áreas estratégicas da vida social
e económica e, consequentemente, para consolidar todo um
reordenamento jurídico que impulsionou o desenvolvimento
de políticas públicas de importância social. Para isso, foram
fundamentais as conquistas da nova Constituição,
Promulgada em 16 de julho de 1934, a Constituição Fede.
ral instituiu a função social da ro t: ade como um rincf io
co ) \rtigo 133, inciso 17, garantiu o direito de
propriedade, mas estabeleceu que não poderia ser exercido
"contra o interesse social ou que a lei deter-
nar".Bntes, na Constituição republicana de 1891,o direito
de propriedade era mantido "em toda sua plenitude, salvoa
desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante
indenização prévia". I A comparação desses dois artigos mostra
que, em 1934, o direito de propriedade passou a ser um instituto
94 Marcia Sant'Anna
jurídico cuja amplitude era determinada em lei ordinária, regido
pelo princípio do interesse social ou coletivo. Em torno desse
dispositivo,se operou o reordenamento jurídico que produziu
um conjunto de leis de cunho social extremamente significativo e
duradouro, permitindo, na época, notáveis avanços em domínios
como os da legislação fundiária, trabalhista, urbanística e tam-
bém de proteção ao património histórico e artístico. Em outras
palavras,a instituição da função social da propriedade como
princípio constitucional proporcionou o desenvolvimento, no
Brasil, de todos os ramos do direito vinculados à codificação da
interferência do Estado na propriedade privada.
Da cidade-monumento à cidade-documento 95
a estruturação do conceito moderno de propriedade
imobili-
e também para a codificação de um novo direito em
torno dele
Como mostra Álvaro Pessôa, o direito de
propriedad
ainda com conteúdo derivado do período
acolhido na Declaração dos Direitos do Homem e feudal
do Cidadão
e no Código Napoleão, só foi atacado em termos
discursivos
século XIX a partir das ideias de Comte e Durkheim. F
intelectuais positivistas, os "engenheiros sociais", que oramos
ram a base conceitual que legitimou a definição da forneces
propriedade
não mais como um direito intocável e sagrado, mas
como
"direito 'continuadamente cambiante' que deve se
modelaràs
cessidades sociais às quais deve
1981
p.54). Na raiz desse novo discurso estava a industrialização
necessidade de implantação de uma nova ordem que ea
garantisse
a reprodução desse tipo de capital. A propriedade
"absoluta"
e "sagrada", com o fenómeno de urbanização deflagado
e as
necessidades de organização do território, foi crescentemente
regulamentada e limitada. Tomou o seu lugar uma
concepção
modelada às necessidades sociais, que legitimava as limitações
impostas pela nova ordem, notadamente no plano urbanístico
e
no campo da saúde pública. Mais tarde, no início do séculoXX,
passou também a legitimar uma nova modalidade de interven-
ção, dessa vez derivada da reservação do patrimônio histórico.
O •spositivo de patrimônio, em sua codificaçãolegal,
ro uziu um novo tipo de propriedadeque, grossomodo,
pertenceria ao mesmo tempo ao e à sociedade.A ar-
gumentação jurídica se desenvolveu no sentido de que o direito
de propriedade teria uma "face pública", relaó«raà sua existência
social, e uma "face privada", "que se expressa pela apropriação
individual da coisa, pela sua expressão econômica e pelasrelações
96 Marcia Sant'Anna
privadasdaí decorrentes" (CASTRO, 1991, p.12). O disposidvo
de património incidiria justamente sobre o aspecto público da
propriedade,instaurando um regime especial em que o dtular da
"coisacorpórea" ou do "objeto da ação" — o particular— não
se identificariacom o titular do objeto rotegido ou 'bem jurídi-
etividade 196 sta última passana a ser,
por força do valor cultural atribuído ao bem, sua coproprietária,
ou melhor, uma parte legalmente consdtuída a quem o titular
do bem material deveria satisfações quanto à sua conservação.
Conviveriam,na coisa tombada, portanto, duas dimensões: uma
material, pertencente ao domínio privado e relativa ao fundamen-
to económico da propriedade; e uma imaterial, que expressaria
"valores não económicos" e "inapropriáveis individualmente" e
que se identifi aria c lico.
propriedade, na sociedade moderna, é, na realidade
um composto resultante de interesses públicos e privados qu
lhe dão seus contornos reais. Em outras palavras, o resultado
desse embate de forças que o direito busca compatibilizar o
legitimarem determinadasconfi ações. Como o serva
varo Pessôa (1981, p.51), " propriedade tem um damento
econo ncl , ten o sua existência ligada aos fatores de
produção", isto é, o capitalismo depende da pñvrada
para porque dela também depende a produção. Assim
se pode compreender a extrema codificação da propriedade
na sociedademoderna e a necessidadede todo um discurso
jurídico para sua conceituação. Assim também se compreende
a necessidade de agenciar dispositivos,2 envolvendo discursos
e visibilidades, para limitá-la e, na realidade, redefini-la. A divisão
Da cidade-monumento à cidade-documento 97
do direito de propriedade numa "face pública" e numa "face
privada" seria, portanto, resultado de um processo de redefini-
ção da propriedade, de cunho socializante, no qual a legislação
de preservação do patrimônio ocupa um importante luga É
a aletória do Decreto-Lei no
25/1937 em muitos pontos se confundiu com esse processo,
pois, embora desde o início apoiado num princípio constitucio-
nal, sua constitucionalidade 'ndubitável teve de ser c nquisgada
nas barras dos tribunais ntretanto, a concepção privatizante e
in VI u sta apropnedade era, e continua sendo, muito forte.
A propriedade é, assim, um campo de luta em dois níveis: dos
indivíduosentre si e desses com a sociedade. Todos os seus
conceitos derivam necessariamente desse embate.
Como já vimos, a elite que assumiu o governo em 1930
conhecia bem as ideias positivistas. Antes de 1934, todas as
Constituições, do Império ou da República, mandnham o caráter
III absoluto da propriedade, apesar da possibilidade de desapro-
priação por uüade pública.3 Esse expediente era, entretanto,
muito pouco acionado, somente se tornando uma prática mais
corrente por ocasião das grandes reformas urbanas, do início
do século, nas principais cidades do país e, de modo semelhante
à Europa, quando da implantação das nossas primeiras ferro-
98 Marcia Sant'Anna
vias.4Apesar da defesa da função social da propriedade feita pela
elite posidvista no Sul e no Rio de Janeiro, o sistema escravocrata
e agroexportador favorecia a sedimentação de um conceito de
propriedade em bases individualistas e liberais. Nenhuma iniciaó,ra
no sentido da codificação legal da preservação do pôde,
então, ser implementada antes de 1934, embora tenha havido pro-
postas nesse sentido.
Da cidade-monumentoà cidade-documento 99
de 1933, que erigiu
Mesmo iniciativas como o Decreto no 22.928,
a cidade de Ouro Preto em monumento nacional, ou o Decreto
Museu Histórico
no 24.735, de 1934, que criou, na estrutura do
Nacional, o Serviço de Proteção aos Monumentos, resultaram
legal que limitasse
inócuas pela mesma razão: a falta de disposidvo
histórico e artísdco.
a ação particular em favor do patrimônio
104 MarciaSant'Anna
e da legislação francesa de
1913 e 1930, esses
trabalhos nos quais, como já foram os outros
mencionamos, Rodrigo M. F.
Andrade buscou inspiração para de
a confecção do Decreto-Lei
25/1937 (ANDRADE, R. M. F. no
de, 1952, p.55-56).
O anteprojeto de lei federal
elaborado pelo jurista mineiro
Jair Lins, em 1925, foi resultado de
um trabalho encomendado
pelo então Presidente de Minas Gerais,
Mello Viana, a fim de
evitar os constantes roubos e vendas de
obras de arte do acervo
das igrejas mineiras. Foi montada uma comissão
constituídade
representantes do alto clero, da intelectualidadee da
política
para desempenho dessa tarefa. Jair Lins foi escolhido relator
(LINS, 1989, p.90) e estudou várias legislações estrangeiras,as-
sim como as propostas já elaboradas no Brasil. Seu trabalh08 é
o primeiro que enfrenta com argumentos jurídicoso problema
da intervenção do Estado na propriedade privadaem favor da
preservação do património nacional. Em função dessa inter-
venção, já percebida por Lins como necessária,propõe-seque
o âmbito da legslação seja federal e não estadual, como cogitado
de início. Embora a Constituição de 1891, então vigente, e o
Código Civil, promulgado em 1916, não fornecessem o apoio
legal necessário à efetivação do anteprojeto, Lins defendiaa
validade jurídica da sua proposta com a seguinte tese: o Estado
artísüco
poderia intervir diretamente na tutela do patrimônio
porque o direito
sem ferir o interesse legítimo do proprietário,
limitações em favor da
de propriedade já toleraria restrições e
conceituaçãolegal,isto
coletividade, desde que preservada sua
à cidade-documento 105
Da cidade-monumento
é, "usar, gozar e dispor de seus bens e reavê-los do poder de
quem injustamente os possua". Com base nisso, segundo Lins
o Estado teria alguns meios legalmente assegurados para exercer
a proteção do patrimônio artístico e histórico. O primeiro deles
seria o direito de preferência em qualquer transmissão intervivos.
O segundo seria o direito de impedir que o objeto patrimonial
se estragasse. Por fim, haveria ainda o direito de desapropriação.
Embora em suas pesquisas a comissão mineira tenha verificado
que muitos países utilizavam como instrumento de preservação
o direito de impedir a saída de tais bens para o exterior, Jair Lins
reconhecia que, no Brasil, esse dispositivo seria inconstitucional.
Por força de nossa economia ainda marcadamente agroexporta-
dora, havia disposição constitucional expressa permitindo essa
prática. O Artigo 72, parágrafo 10, da primeira constituição
republicana estabelecia que, em tempo de paz, qualquer pessoa
poderia entrar ou sair do país com sua fortuna e bens, quando e
como lhe fosse conveniente, Com base nesses pressupostos, foi
elaborado um anteprojeto de lei alicerçado na ideia de que o
Estado poderia conservar o bem, se o proprietário não o fizesse
— por inércia ou incapacidade financeira — , ou desapropriá-lo,
se o detentor do domínio quisessedestruí-lo ou exportá-lo.
E surpreendente a quantidade de pontos de contato dessa
proposta com o texto do Decreto-Lei no 25/1937. O próprio Ro-
drigo M. F. de Andrade (1952, p.28) afirmou que esse "foi o texto
de que se originaram as disposições principais do sistema atual
de proteção aos monumentos históricos e arústicos neste país".
O instituto de proteção criado por Jair Lins, a "catalogação",
é muito semelhante ao tombamento. Assim como este úlúno,
a catalogação também pode ser integral ou parcial, voluntária
ou compulsória.Neste úlúno caso, a decisão da catalogação
10Artigo 14,
Odi 10
Decreto-Lei no 25/1937 divide-se em cinco capítulos referentes,
respectivamente,ao conceito de patrimônio histórico e artístico
nacional, ao tombamento, aos efeitos desse instituto de proteção,
ao direito de preferência sobre a coisa tombada e às disposições
erais.O tombamento é o ato mediante o qual os bens selecion
os são inscritosnos Livros do Tombo do SPHAN Constitui ato
11Artigo 4 0, parágrafo 2 0.
0 0
12Ardgo 19, parágrafos 1 , 20 e 3 ,
14 Marcia Sant'Anna
00
e sem
13"A Questão dos Entornos de Bens Tombados", p. 4. Documento sem data
assinatura, encontrado no Arquivo Central do IPHAN, no arquivo referente à
Legislação, pasta no 3A.
de 10/11/ 1937 - "Art. 122 - A Constituição assegura aos
14Carta Constitucional
brasileirose estrangeiros residentes no país o direito à liberdade,à segurança
propriedade,
individual, à propriedade, nos termos seguintes: [...]14 - o direito de
salvo a desapropriação por necessidade ou uüade pública, mediante indeni-
zação prévia.
regularem o exercício" (grifo nosso).
18Ardgos 26 a 29.
A jurisprudência firmada
Nesses 60 anos de vigência, as principais questões que geraram
ações judiciais e firmaram jurisprudência em torno do instituto
do tombamento foram relativas à constitucionalidade do ato em
face do direito de propriedade, à perda de conteúdo econômico
dapropriedade, ao processo de divulgação e publicidade do tomba-
mentodeconjuntos urbanoseàlimita ao do direitode ro rie
navlz ança o em tombado. A seguir. relataremos. em linhas
rais clusões so
O célebre caso judicial que firmou a
do Decreto-Lei no 25/1937 correu em torno do tombamento
do Arco do Teles no Rio de Janeiro, entre 1942 e 1943. Os
proprietários impugnaram o tombamento e, uma vez que o
seu recurso foi indeferido pelo Conselho Consulóvro,abriram
ação contra a União, requerendo a anulação do ato. O caso foi
julgado, e dada sentença a favor da União, em primeira instân-
cia. Os proprietários apelaram à instância superior, alegando a
do Mu-
26Entre eles está a Dra. Sônia Rabello de Castro, atualmente Procuradora
23/06/1994,
nicípio do Rio de Janeiro, que, em entrevista que nos concedeu em
manifestou essa opinião.
62.01/11, Ingislação, 002.
27Manuscfto encontrado no Arquivo Central do IPHAN,
IPHAN, 62.01/ 11, Legslação, 002.
28Manuscrito encontrado no Arquivo Central do
cidade-documento 129
Da cidade-monumento à
to de áreas urbanas torna-se específico.Procura-se consagrar
legalmente a notificação do tombamento apenas às autoridades
municipais e estaduais e estabelecer efeitos especiais.De
do com eles, a abertura, construção ou remodelação de ruas
praças, jardins ou quaisquer logradouros públicos, bem como
as intervenções em grupos de edifícios ou edifícios isolados de_
pendem de autorização prévia do SPHAN. Da mesma forma, a
execução de planos de desenvolvimento urbanísticos. Os efeitos
desse tombamento ficariam, portanto, dirigidos especificamente
ao controle das intervenções no espaço público, na morfologia
urbana e no aspecto externo das edificações. Pretenderiam
também o controle dos rumos do desenvolvimentourbano
levando a tutela do SPHAN para fora dos limites da área tom-
bada e demonstrando a preocupação com o crescimento desses
monume ais e ece que as
intervenções na cidade tombada seriam necessariamente estu-
dadas pelo corpo técnico do SPHAN, que, além de elaborar os
projetos, se encarregaria também da fiscalização de sua execução.
30 Marcia Sant'Anna
no Decreto-Lei no 25/ 1937 e institui-se um certificado de registro
que condiciona o licenciamento do comerciante do ramo.
O capítulo relaóvroao processo das infrações é um dos
mais extensos e mais importantes, pois trata de uma parte do
Decreto-Lei no 25/1937 que não foi utilizadapor longo tempo,
justamente por falta de regulamentação. Constitui, na verdade,
um regulamento para viabilizar a aplicação das penas previstas
na lei e a cobrança das multas. Cabe observar que, com relação
à proteção de imóveis e áreas urbanas, esse aspecto da lei é
considerado muito importante porque a sua utilização ajudaria
a conter pequenas infrações relativas à descaracterização desses
bens. De fato, a maioria delas fica impune ou demora muito a ser
punida, em função da morosidade dos processos judiciais que
a instituição era obrigada a abrir por falta de alternativa. Além
disso, a impunidade tem gerado o desrespeito da população e
contribuído para a descaracterização acelerada de imóveis e
áreas urbanas. De acordo com essa proposta de Prudente de
Morais Neto, os processos de infração seriam instruídos por
técnicos da administração central ou por delegados regonais do
SPHAN, após o prazo fatal de 15 dias para a defesa do infrator.
A decisão seria proferida pelo Diretor, cabendo recurso ao antigo
Ministro da Educação e Saúde. O infrator, entretanto, mesmo
que recorresse, seria obrigado a depositar o valor da multa ou
uma caução, a ser devolvida em caso de reforma da decisão.
Caso o infrator não acatasse essa disposiçãoou não pagasse
a multa, o valor seria inscrito no registro da Dívida Pública e
depois cobrado judicialmente.
Por fim, o capítulo relativo à estrutura organizacional do
SPHAN mostra que a intenção era fazer com que essa estrutura
correspondesse ao que se considerava serem as suas principais
37Enl carta diHgidaao Deputado Rômulo Galvão, Fernando da Rocha Peres, então
chefe do 20Distrito do IPHAN-Bahia, afirma que o projeto de Magalhães
Pinto
é "contrário aos interesses do IPHAN" (Carta de 10/05/1977, Arquivo
Central
do IPHAN, Legislação,pasta 20.
Constituição Federal.
43Artigo 216 da encaminhada em 1965 pelo arquitetoLuís
é o da proposta
44Um bom exemplo DPHAN. Tentava dar à DPHAN melhores
meios
Distrito da
Saia, chefe do 40 de obras de arte, instituindo um selo
de
do comércio
para exercer o controle conferido pelo Patñ•nônio
mediante
e valor do objeto,
autenócidade, procedência
143
à cidade-documento
Da cidade-monumento
legislação encaminhadas e defendidas por esses ót•gàos
ravam a essência da lei e objetivavam semptv o detalhatnento
a atualização de certas disposições, há nnuito reconhecidas cot)io
frágeis ou incompletas. No que diz respeito à proteçào de
urbanas, por exemplo, as propostas se a recolocar as
observações feitas por Rodrigo M, E de Andrade já etn
isto é, ampliação do conceito de visibilidade, detalhamento (Io
procedimento de notificação e aprovação de planos urbanístic«
A única que chegou a propor algo diferente, o financiamento
pelo BNH da recuperação de imóveis antigos para habitaçóes
populares, foi apenas rascunhada e hoje é até dificil saber quem
foi o seu autor.45Essa atitude centrada na defesa no Decreto-Lei
no 25/1937 ajudou a sedimentar no Brasil a equivalência entre
tombamento e preservação.46 Ou seja, o instituto de Proteçã()
passou a ser confundido com a atividade, não se concebendo
outra forma de preservar senão através do tombamento,
A história das tentativas de complementação e alteração
do Decreto-Lei no 25/1937 é também a história da sua defesa
cidade-documento 145
Da cidade-monumento à
trabalhovitorioso.O que o põe em risco é justamente o seu
fechamentoem torno de práticas que não atendem aos anseios
sociais,e cuja transformação passa pela reestruturação do sis_ posiçü
tema estatal de preservação e, consequentemente, também pela aí pare«
complementação da levslação. O problema da proteção de áreas 18 e IS
urbanas ilustra de modo privilegiado essa questão. nos, pr
A trajetóriado Decreto-Leino 25/1937 mostra que a isolado
proteção de áreas urbanas sempre foi vista como uma lacuna ou ruír
legal.A consciência da precariedade da lei, nesse caso, é mas gr;
muito
antiga, como demonstram as experiências de Rodrigo outro
M. F. de
Andrade e Prudente de Morais Neto, em 1940. A de pres
da lacunametodológicafoi mais difícil no âmbito dopercepção seus va
apesar de ter sido apontada, em
SPHAN
1959, na proposta de
é possí
Rômulo
Almeida e, exaustivamente, como veremos, na situaçã(
década de 1970
pelo arquiteto Paulo Ormindo de Azevedo. Em
outras palavras:
tambémhá muito tempo se sabe que a plemen
preservação de áreas
urbanasnão passa somente pela das out
conservação das formas
controle de intervenções físicas. e pelo
forma.
Desde 1938,quando ocorreram SPHA
os primeiros
tos, a proteção legal de tombamen-
áreas urbanas se apoiou no BIN
Artigos 17 e 18 do Decreto-Lei basicamente nos
no 25/1937, discut
pelas disposições do
Arügo 19, que obrigavam complementados apres
SPI-IAN a conservar0 o proprietário
bem. como se vê, o eo criaç:e
a preservaçãoda tombamento coloca
dimensão física do bem e Pai
sua conservação.As como suficiente
dimensões social, para uma
funcionaldo objeto econômica, simbólica
urbano não são e pela
disposiçõesda legislação contempladas
não foram porque as
isso e sim para a originamente pensadas glol
obra isolada, para
arquitetônica ou
47
O modelo não.47Foram
jurídicodo
tombamento
dis- afe
é0
francês, criado
na França,
em
48 •
146 Marcia
Sant'Anna
posições adaptadas e levadas
ao objeto urbano por analogia,48e
aí parece residir o erro básico.
A interpretação dos Artigos 17,
18 e 19, no sentido da
proteção de cidades e conjuntos urba-
nos, pressupõe a equivalência
de natureza entre o monumento
isolado e o conjunto. Em certos
casos, pequenos conjuntos
ou ruínas podem ter a mesma
natureza de um monumento,
mas grandes áreas ou cidades são,
certamente,objetos de um
outro tipo. E possível reduzir o monumento,
enquanto objeto
de preservação, às suas dimensões culturais,
isto é, à atenção aos
seus valores históricos, artísticos, arqueológicos,
etc., mas não
é possível fazer o mesmo com áreas urbanas, sem criar uma
situação completamente artificial.
Entre as propostas oficialmente encaminhadas para com-
plementação da legislação, pelo menos duas procuraram tratar
das outras dimensões do fenómeno urbano que não apenas a sua
forma. Foram as do governo da Bahia, em 1959, e do próprio
SPHAN, em 1967, com a criação da carteira de financiamento
no BNH. Além dessas, outras propostas foram divulgadase
discuódas em encontros e seminários, entre as quais se destaca a
apresentada por Paulo Ormindo de Azevedo, em 1973, sobre a
criação de uma legislação específica para "Setores Monumentais
e (AZEVEDO, P. O. D. DE, 1973b). Trata-se de
uma proposta baseada no esquema de preservação introduzido
pela Lei Malraux (1962), em que, mediante a adoção de um plano
global de preservação supervisionado por uma Comissão Inter-
urbano"
ministerial, se define o setor histórico como um "fato
apenas a cultural.
afeto a outras áreas de intervenção que não
sobre essa
considerações de Rodrigo M. F. de Andrade
48Ver, no capítulo 4, as
questão.
cidade-documento 147
Da cidade-monumento à
O plano envolve os aspectos formais, sociais e econômicos da
preservação, dando margem também à participação da iniciativa
privada na tarefa. Entretanto, essa e outras ideias que surgiram
sobre o assunto não foram sequer testadas pelo SPHAN. Se-
dimentou-se a opinião de que o Decreto-Lei no 25/1937 ou o
tombamento era amplo o suficiente para dar conta de qualquer
objeto, ficando o tratamento de possíveis especificidadesvin-
culado à implementação de políticas especiais de preservação.
Reduziu-se também, dessa forma, o problema da preservação
de áreas urbanas à exclusivaintervenção estatal, ignorando-se
sua dimensão econômica básica, que depende da participação
da sociedade e de investimentos privados para ser sólida e du-
radoura. Em resumo, se o mito da perfeição do Decreto-Lei no
25/ 1937 por um lado, a preservação de um importante
espaço institucional,por outro, fechou o SPHAN ao exame e
à implementação de propostas renovadoras que poderiam ter
fornecido, pelo menos, pontos de partida para a transformação
de uma práúca anacrônica,insuficiente e metodologicamente
equivocada no que diz respeito à preservação de áreas urbanas.