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catuos Os indios esto se acabando O mito da desolacao nativa “A histéria do México [contrapée] um nobre ¢ valoroso Cortés a um Montezuma timorato ¢ covarde cujo povo, ao desertar {iniguamente seu Iider natural, demonstrou sua indiferenca pelo bem da comunidade.” Joan Ginés de Sepiilveda (1543) “Tais mistérios s6 podem ser compreendidos quando se aceita 0 cumprimento da profeca, feita pelo santo padre Frei Domingo de Betanz0s, de que os fndios como tzis nao tardariam a desaparecer, € ‘osque vieram a estas plagas sequer saberiam de que cor haviam sido.” Agustin Davila Padilla (1595) “O monatea indio [0 taraseano Cazonci] contemplou em siléncio at6nito a cena de desolagio, ¢ avidamente ansiou pela protesio dos seres invenciveis que a heviam causado.” ‘William Prescott (1843) “Ja basta, jé basta; submisso a0 meu destino Retorno agora & minha sina dolorosa.” (© governante nativo de The Fall of Mexico, da Sra, Edward Jemingham (1775) “Nao hi remédio, ¢ 05 indios estio se acabando.” Dom Felipe iuamaa Poma de Ayala (1615) SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANKOLA ‘No comego do século XVII, um descendente da dinastia imperial dos incas, Dom Felipe Huaman Poma de Ayala, escreveu uma carta— vo- Jumosa como um livro — ao rei da Espanha, delatando tudo o que havia de errado na colénia do Peru. Suas dentincias das préticas cor- ruptas de certas autoridades coloniais foram particularmente vividas, pontuadas aqui ali pela declaragio de que a situacéo jé se encontrava além de qualquer possibilidade de solucao e pela aparente previsio da ‘extingdo dos andinos nativos.* Ecos do clamor de Huaman Poma podem ser encontrados no estu- do da conquista do Peru realizado em 1971 pelo historiador francés Nathan Wachtel, La vision des vaincus (Avisdo dos derrotados). Wachtel ita um lamento andino, escrito em espanhol e provavelmente datado do século XVI, em que os sons de um tesremoto so convertidos em canto ftinebre, a espuma das corredeiras de um rio tornam-se légri- ‘mas, o sol escurece, a lua se encolhe Tudo e todos se escondem, desaparecem padecendo. ( todo y todos se esconden, desaparecen padeciendo) Segundo Wachtel, a elegia, escrita para a morte de Atahuallpa, descre- ve “o nascimento de uma espécie de caos (...), um abismo vazio pelo qual o universo se deixa devorar. Tudo 0 que resta é 0 sofrimento.” Essa, alega o autor, seria a natureza do “trauma da Conquista” para os povos andinos, cuja razdo de ser ¢ senso de harmonia com o mundo deterioraram-se de forma inconsolével no rastro da destruicéo provo- cada pela invasio espanhola? Com efeito, a clegia mencionada por Wachtel referia-se especifica- mente A morte de Atahuallpa ¢ ilustra a tradigao retérica, anterior & ‘Conquista, do pranto formal pelo inca recém-falecido; nao constitui nem indicio nem simbolo do impacto traum4tico da Conquista sobre Os InvIos EsTAO se AcABANDO os habitantes dos Andes. Analogamente, o lamento de Huaman Poma nao passou de um mecanismo retérico que tinha por objetivo chamar a. atengdo do monarca para 0 declinio populacional e a pobreza ctes- cente dos nativos da regido. Todavia, suas palavras, bem como as de outros que denunciaram as préticas coloniais, tais como Las Casas, representavam uma corrente de pensamento critico acerca do impacto da conquista ¢ da colonizagio sobre os indigenas americanos. Ao longo dos séculos, tal vertente se foi consolidando num mito a respeito da natureza das civilizagées nativas antes da Conquista, das suas reagées & Conquista e, a longo prazo, do impacto da coloni- zago sobre essas sociedades. Entre os diversos aspectos do mito fi- guram © lamento pelos povos nativos, tal como introduzido por Huaman Poma e Wachtel, e sua perpetuag3o hoje em A conquista da América vista pelos fndios, uma compilagio de tradugées de relatos nauas da Conquista do México. O livro foi publicado h4 quatro dé- cadas mas continua sendo muito lido e utilizado em salas de aula, Em sua introdugao, Miguel Leén-Portilla refere-se A Conquista como “a trégica perda decorrente da destruigo da cultura indigena” — frase citada na ementa de um curso criado pelo Yale-New Haven Teachers Institute em 1992 para uso nas escolas péblicas de ensino médio nos Estados Unidos (e ainda encontrada no site do instituto na Internet). O curso, intitulado “A descoberta de Colombo pelos indios”, tem como finalidade, no espirito da “consciéncia (...) multicultural”, ana- lisar a Conquista da “perspectiva dos préprios astecas”. Ao enfatizar a “perda” ¢ a “destruigéo”, porém, inadvertidamente perpetua um mito pouco favoravel 3s culturas nativas com que os alunos devem supostamente simpatizar.? ‘Outra dimensao do mito corresponde a idéia de que as civilizagdes nativas constitufam alguma espécie de Arcédia, tal como habilmente ilustrado pelo titulo do livro A conquista do paraiso, de Kirkpatrick Sale. Segundo esse ponto de vista, a perfeigao das sociedades nativas ‘ainocéncia de seus habitantes ndo poderiam sobreviver & experiéncia da invasio, depredagio ¢ imperialismo cultural europeus. Uma tercei SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANNOLA ra faceta vem da diregio contréria, decorrente de um desdém, com freqiiéneia racista, pelas culturas indfgenas da América— em lugar de sua romantizagio. Tal abordagem defende que as Américas, antes da chegada dos europeus, eram amplamente “subutilizadas e subdesen- volvidas” e “a vida era desagradével, brutal e breve” (nas palavras de Michael Berliner, entlo diretor-executivo do Ayn Rand Institute, insti- tuigdo de pesquisa de direita). As posigdes de Berliner e Sale com rela- so A Conquista séo diametralmente opostas, pois Berliner considera © resultado da Conquista favoravel tanto para nativos quanto para europeus, na medida em que estes trouxeram “uma cultura objetiva- mente superior” para as Américas.* Ambos, no entanto, contribuem para esse mito por partirem do principio de que as culturas indigenas foram destrufdas, incapazes que se mostraram de resistir & arremetida dos invasores europens. CChamo este de 0 mito da desolagio nativa, Ao longo dos séculos, os europeus imaginaram e inventaram a derrocada cultural e social das sociedades nativas americanas. Em sua forma mais extrema, essa pers- pectiva néo s6 enfatiza o despovoamento ea destruigo como detecta uma desolagao mais profunda, que chega as raias da anomia. Quando uma sociedade encontra-se nesse estado, seus membros sofrem de uma sensagio de inutilidade, vazio emocional, desespero psicol6gico e con- fusio perante o aparente desmoronamento dos antigos sistemas de valor e crenga.' Foi esse o estado de espirito que Le Clézio imagina ter tomado as comunidades ind{genas americanas no século XVI, nas quais a Conquista acarretou um “silencio imenso, aterrador, que engolfou 0 mundo dos indios [e](..) reduziu-o a um vazio. Essas culturas nativas — pujantes, diversificadas, herdeiras de conhecimentos € mitos téo antigos quanto a hist6ria do homem — no espago de uma gera¢io foram condenadas e reduzidas a p6 e cinzas”.® Este capitulo vai tracar o desenvolvimento do mito da desolagao nativa, comegando por Colombo e pelo exame das primeiras vis6es, coloniais com relagéo as culturas pré-colombianas das Américas e par- tindo em seguida para a andlise da apreensio, pelos europeus, das rea- 05 InDIOs EsTAO Se ACABANDO g6es dos indfgenas aos processos de invasio ¢ colonizagao, Entendo que as culturas natives no eram nem barbaras nem idiflicas, mas tio

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