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Prefácio
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Frederick Charles Glass
Segundo ele, depois de vender sua “grande tropa de animais”, desceu o Rio
Cuiabá “em direção a Buenos Aires, três mil e duzentos quilômetros abaixo”.
Pode-se perceber a longevidade do ministério com o texto em que ele se refe-
re ao ano 1941, em evidente demonstração de vigor e intensidade ministerial
em plena época e região de Lampião, “o rei do cangaço”, quando, diz ele, “nos-
sa circulação excedeu a 61.000 Escrituras”.
Um dos trechos que mais me impressionam registra a viagem ao ex-
tremo norte do Brasil, até a Colômbia: “... três mil quilômetros e mais, subin-
do o Rio Amazonas, viajando noroeste sobre o afluente Japurá, atravessamos
a fronteira brasileira em direção à Colômbia... Eu sofria de dor de dentes e
dormi febril”. Pode-se ter uma ideia da dimensão geográfica do ministério,
na menção que ele faz da visita à região de São Borja, Rio Grande do Sul, em
plena “região das missões”, controlada na época pelos jesuítas. O Rev. Tipple,
que também registra em um livro (Bandeirantes da Bíblia) essa época de tra-
balho missionário no interior do Brasil, fala que as viagens de Glass cobrem
um período de cerca de cinquenta anos.
Naturalmente que Aventuras com a Bíblia no Brasil não é uma
exclusividade da Igreja Cristã Evangélica do Brasil. O texto fala de evangelização no
interior do país, e o resultado foi a formação de comunidades de cristãos em lugares
onde nem mesmo existe a denominação evangélica que tenho a honra de liderar
atualmente. Muitos desses grupos se tornaram igrejas evangélicas independentes ou
filiadas a outras denominações irmãs. Do outro lado, temos nessa obra o DNA da
ICEB. Humanamente falando, a Igreja Cristã Evangélica existe porque o ministério
de Frederico Glass se tornou realidade.
A presente obra foi publicada primeiramente em inglês, em Glasgow,
1923, sendo que a versão em português, publicada no Rio de Janeiro pela
Livraria Evangélica Ltda (que não registra a data de publicação) veio à luz por
volta dos anos cinquenta, mediante trabalho de seu filho, o editor e amante
dos livros, Charles Glass. A variedade das histórias, sua inestimável relevân-
cia histórica e o caráter inspirativo foram apelo mais do que suficiente para
a produção de uma versão revisada de Aventuras com a Bíblia no Brasil. Um
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Aventuras com a Bíblia no Brasil
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Capítulo 1
Lembranças
Aventuras com a Bíblia no Brasil
Q
uando, no ano de 1892, embarquei para o Brasil, trazendo comigo um
contrato feito com uma grande companhia brasileira de estradas de fer-
ro, não poderia absolutamente imaginar quão variada e cheia de aven-
turas seria a trajetória que estava à minha frente. Chegando ao Brasil,
tive um começo não muito bom: fui preso por uma noite em uma dependência mi-
serável da prisão do lugar, sob a falsa acusação de perturbação da ordem pública. As
horas que ali passei, em companhia de criminosos e de homens de tipo repugnante,
foram medonhas e cheias de pressentimentos horríveis, tão cruéis, que prometi a
mim mesmo, que, se eu dali saísse, deixaria o Brasil pelo primeiro vapor que partisse.
Felizmente o engano foi esclarecido. Sem a menor cerimônia fui posto em liberdade
na manhã seguinte e desisti da resolução que tomara. Desde esse dia, senti sempre
profunda simpatia pelos encarcerados.
Estranho que pareça, muitos anos depois, preguei o Evangelho a um grupo
de convictos, presos na cela escura e sem conforto que me servira de prisão por uma
noite, embora dessa vez eu me encontrasse do lado de fora de suas barras. Passa-
dos muitos anos, eu estava nas Minas de Ouro de Morro Velho, no estado de Minas
Gerais; ocupava a posição de oficial de experiências, trabalho extraordinariamente
interessante, com excelentes oportunidades para o futuro.
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Frederick Charles Glass
Eu não era ainda cristão. Acreditava em Deus, lia a Bíblia, orava, era pessoa
abstinente, não fumava nem jogava, e isto em um campo de mineração. Havia sido
batizado e confirmado, entretanto nada sabia, nada, absolutamente, sobre conversão
ou sobre a sua necessidade. Interiormente, na minha consciência, sentia que me fal-
tava alguma coisa, e no meu caminho de cegueira, tateava inquietamente à procura
dessa coisa. Certo dia, alguém me contou que um novo homem ingressara em nossa
companhia, como datilógrafo. Era um canadense chamado Reginaldo Young1; di-
ziam que era um missionário. Por isto, pensando em tudo que eu havia visto e ouvi-
do sobre os missionários que ocasionalmente visitavam o campo de mineração, fui
levado a desprezá-lo imediatamente. Surpreendeu-me, entretanto, notar que Young
não fumava, era abstêmio e, principalmente, que parecia muito feliz com sua religião
e nunca estava tão satisfeito como quando falava sobre ela. Afinal, um dia, ele contou
a história de sua vida. Disse-me como, de bêbado inveterado, desordeiro notório e
jogador terrível, subitamente, durante o curto espaço de uma hora, se transformara
completamente. Essa mudança maravilhosa foi duradoura e finalmente ele se tor-
nou evangelista de uma New York Bowery Mission2 (trabalho muito semelhante ao do
Exército de Salvação).
Young falava sempre sobre ser salvo e feliz, parecendo verdadeiramente go-
zar felicidade perfeita. Era, a meu ver, digno de admiração. Ninguém poderia ne-
gar sua sinceridade e a realidade de seu testemunho. A minha própria experiência,
em comparação, tornou-se mais fraca e enfadonha. Pouco tempo antes, eu havia
persuadido o superintendente da mina a caiar3 e mobiliar a nossa capela bastante
abandonada, tendo em mente realizar ali cultos noturnos, aos domingos. Convenci
o engenheiro a fazer a leitura do Livro de Oração, e o engenheiro eletricista a tocar o
1 Chegou ao Brasil em 1892 e alguns anos mais tarde incorporou-se ao trabalho de datilógrafo da Mineração nas
Minas de Morro Velho, em Minas Gerais. Em 25 de agosto 1901 fundou a Igreja Cristã Evangélica Paulistana e um
Instituto Bíblico, onde diversos ex-policiais e outros crentes fizeram um curso prático de teologia bíblica, entre
estes: Ricardo do Valle, Arthur Lino Tavares, Galdino e outros. Reginaldo Young morreu na cidade de São Paulo
em outubro de 1923.
2 A Bowery Mission foi fundada em 1879 pelo reverendo Albert Gleason Ruliffson e esposa, sendo a terceira missão
de resgate estabelecida nos Estados Unidos e a segunda em Nova Iorque. O nome se refere à área e região da cidade
com o mesmo nome.
3 Pintar com uma mistura de cal, água e cola, dando cor branca a.
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Aventuras com a Bíblia no Brasil
órgão, enquanto eu, tomando coragem, decidi apresentar a primeira e segunda lição.
Naturalmente, não haveria sermão. Essas reuniões foram consideradas grande su-
cesso social. Eram realizadas domingo após domingo para benefício da comunidade
britânica. Logo depois da chegada do Sr. Young, fiquei tão bem impressionado com
seu testemunho, que obtive permissão, embora com alguma dificuldade, para que ele
pregasse na capela consagrada.
Grande número de pessoas veio para ouvi-lo, mas como a audiência era cem
por cento ortodoxa e o pregador estava nervoso, acharam que não era realmente o
que eu esperava. Entretanto, o texto que ele escolhera gravou-se em minha memó-
ria, e dela não saiu até que tivesse movido em mim uma série de pensamentos, que,
eventualmente, foram a causa de minha conversão. O texto era o v.8 do capítulo 16
do Evangelho segundo S. João. “Quando Ele vier convencerá o mundo do pecado”.
Eu nunca havia me dado conta antes que existia Espirito Santo. Tornei-me muito
desanimado e descontente. Tentei encontrar alívio distraindo-me em longos pas-
seios a cavalo, entre as montanhas e torrentes dos campos circunvizinhos. Um dia,
quando eu cavalgava por certo caminho estreito que marginava um riacho, vindo da
montanha, trotando descuidado, com a rédea solta, o cavalo colocou a pata em um
buraco, caindo com estrondo. Fui atirado para fora da sela, percebendo com horror
que ficara com um pé preso no estribo.
Meu cavalo era excessivamente bravo e facilmente excitável; em vista do lo-
cal onde se dera a queda, parecia que me aguardava morte violenta. Por intervenção
divina, o cavalo continuou deitado, calmamente, sem dar ao menos um coice, conce-
dendo-me assim os poucos momentos vitais indispensáveis para que eu soltasse o pé
da sua prisão. Ajudei o animal a levantar-se, logo que pude. Não havia nele a menor
arranhadura, nem tão pouco encontrei algo que pudesse, de um modo qualquer, ex-
plicar seu comportamento, tão fora assim do comum. Tornei a montar e voltei para
casa, muito mortificado e consideravelmente abalado pelo incidente. “Escapei por
um pouco!”, pensei. “Se eu tivesse morrido, onde estaria agora a minha alma?”. “No
inferno”, respondia a minha consciência. Eu sabia que essa era a verdade e que minha
moralidade, minha Bíblia e os cultos de domingo eram coisas vazias, inúteis, sem
valor. Meu coração foi tomado por grande angústia. Aterrorizado, julguei que, como
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Frederick Charles Glass
fazia tão boa ideia de mim mesmo e como outros assim julgavam que eu era, estava
incapacitado de ser pretendente à graça de Deus, que, sempre aberta aos mineiros
bêbados e dissolutos, era privada aos justos fariseus.
Fiquei apavorado, todos os planos que eu fizera para o meu futuro e para a
minha reputação ruíram por terra, quando surgiu o desejo ardente que me tomou
todo (que tomou conta de mim), de possuir a verdade que Reginaldo Young conhe-
cia tão bem. A vida era tão incerta e centenas de perigos e riscos ameaçavam o fim
soberbo e o destino eterno. Os acidentes, em minas tão grandes como a nossa, eram
terrivelmente comuns, tanto nos trabalhos subterrâneos, mais ou menos de cerca de
um quilômetro e meio de profundidade, como nos trabalhos e moinhos da grande
superfície, e eu poderia ser a próxima vitima, e então?
Estremeci ao pensar no risco que eu corria. Esporeei meu cavalo com uma
simpatia ardente pelo desejo impetuoso que me enchia completamente de, a qual-
quer custo, mesmo o de minha vida, encontrar paz com Deus. Quando os pensa-
mentos de um homem são tais, ele não tem de esperar muito tempo. Se o orgulho e
a indignação do homem podem algumas vezes produzir uma grande manifestação
divina, então dez mil vezes mais, o clamor de um pecador arrependido poderá apres-
sar a resposta imediata do Pai, mesmo que seja necessário realizar-se algum milagre
poderoso, do qual o mundo nunca ouvira, nem a ciência pudesse decifrar.
Pouco antes de eu chegar à rua particular que me conduzia à minha morada,
um Filipe parou no meu caminho. Era o datilógrafo Young. Desci do cavalo e co-
meçamos a conversar, eu manifestei quase imediatamente a inquietação que sentia
por minha alma. Young tirou do bolso um Novo Testamento e me disse: “O senhor
crê que este livro é a Palavra de Deus?”. “Sim”, respondi sinceramente, jamais, nem
por um instante, duvidei que é assim. “Graças a Deus por isso! Crê que Deus é fiel e
justo?”. Fitei-o, cheio de espanto e disse-lhe então com ênfase: “Creio sim, natural-
mente!”. Olhando com firmeza para o meu rosto, o jovem falou: “Se não possui então
conhecimento do perdão dos pecados, apenas uma pessoa é por isto responsável.
Esta pessoa é Frederick Charles Glass, porque este livro afirma: ‘Se confessarmos os
nossos pecados, Ele é fiel e justo para nos perdoar e nos purificar de toda a culpa’”
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Aventuras com a Bíblia no Brasil
(1 João 1.9). Fiquei surpreso. Como, repentinamente, tudo me parecia tão simples!
Pensar que, como frequentador assíduo da Igreja, conhecendo tão bem esse versícu-
lo, eu não havia, entretanto, lembrado de aplicá-lo ao meu uso pessoal. Disse-lhe um
“boa noite” apressado e, em poucos momentos estava eu em minha casa. O empre-
gado encarregou-se do meu animal, enquanto, apressado, corri a fechar-me no meu
quarto.
Do meio de grande quantidade de livros, tirei a minha Bíblia e abri-a. Sim!
Ali estava o versículo, tão simples e com tanta clareza quanto possível. Prostrei-me
então de joelhos, e de modo fácil e cheio de simplicidade, apropriei-me daquilo que
essa leitura me proporcionava. Acreditei no Senhor Jesus como meu Salvador pes-
soal, e, ao levantar-me, era já um pecador perdoado, nova criatura em Jesus Cristo,
no dia 20 de junho de 1897. Depois desse momento comecei a sentir que havia sido
salvo para objetivo mais alto e maior do que as experiências com o ouro e sua refi-
nação, e senti também que Deus tivera um propósito especial quando me trouxe ao
Brasil. Desanimava-me, contudo, só o pensar em que não poderia eu ser aceito por
alguma Sociedade Missionária. Não possuía o preparo necessário para o trabalho de
evangelização; não era conhecedor bastante da língua portuguesa, era muito tímido
e, finalmente, me sentia incapaz de enfrentar as lutas e privações que, bem sabia,
faziam parte da vida de qualquer verdadeiro missionário. Não conseguia, entretanto,
escapar à convicção do meu dever, até que um dia Satanás se lembrou de que eu
tinha um contrato de quatro anos com a companhia de mineração e que, para com-
pletá-los me restavam ainda dois anos e meio. Como cristão eu tinha obrigação de
completar meu contrato.
Esta solução parecia ser satisfatória e acertada para resolver uma posição di-
fícil, mas, verdadeiramente, era uma solução covarde e infiel, porque o Senhor pode
remover dificuldades, grandes e pequenas, quando estamos dispostos a obedecer-
-Lhe. Escondi-me, contudo, atrás do contrato e julguei que decorreriam dois anos e
meio antes que eu tivesse de preocupar-me com a questão, e até lá, talvez o Senhor
não precisasse mais dos meus serviços. Era uma suposição verdadeira; se o Senhor
nos chama hoje e endurecemos o coração, Ele bem pode não tornar a chamar-nos
amanhã. Esta atitude que tomei Deus não a poderia honrar. Aconteceu que, logo
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Frederick Charles Glass
depois, enquanto fazia experiências com ouro que contém arsênico, fui envenenado
violentamente com hidrogênio arseniurado. Tentei encobrir meu estado, esperando
que Deus me curasse. Comecei, contudo a piorar rapidamente. Afinal, meus amigos
se alarmaram e chamaram o médico da mina para examinar-me. Fui levado ao Hos-
pital para morrer. Telegrafaram aos meus parentes, preparando-os para a notícia de
minha morte, que parecia certa dentro de um ou dois dias. Quando estava quase
reduzido a esqueleto, comecei, pelo amor de Deus, a melhorar.
Semanas depois deixei o hospital, uma simples sombra do homem que era
antes e objeto de pena para todos os meus amigos. Entre envenenados, como fui,
raramente se salva um em cada cem. Tive, dias depois, uma conversa com o superin-
tendente. “Glass”, disse-me ele, “o médico e eu temos trocado ideias sobre o que se
passou. Diz ele que você precisa ir para casa assim que sua saúde permita e tratar de
sua recuperação. Infelizmente você não ficará forte bastante e não poderá voltar ao
Brasil. Os diretores da Inglaterra considerarão o seu caso com simpatia, no que diz
respeito ao seu contrato, que nós consideramos imediatamente cancelado”.
Concordei com tudo o que me dissera. No meu estado de saúde parecia não
haver alternativa; tive grande tristeza e pena de mim mesmo. Porém, coisa estranha!
Muito pouco tempo depois do cancelamento do meu contrato, comecei a recuperar
as forças e a saúde com rapidez maravilhosa. Todos ficaram surpresos. No fim de
poucas semanas minha saúde, fisionomia e cor eram tão perfeitas como haviam sido
antes de eu adoecer. Tive então de enfrentar a questão vital do trabalho. Sem estar
preso a contrato e depois de difícil e considerável luta interna, eu abdiquei. Minha
passagem de primeira classe havia sido “tomada”, mas recusei partir. Quiseram reno-
var meu contrato, mas não consenti. Deixei a mina sem mesmo saber o que poderia
fazer e para onde iria. O caminho abriu-se imediatamente à minha frente. As dificul-
dades que julgava do tamanho de montanhas e, como tal, insuperáveis, desaparece-
ram como a névoa fina, ficando provado que todas as minhas dúvidas eram ridículas,
porque o Senhor me tomara para Si.
Descobri, em seguida, que possuía uma grande dádiva de Deus, verdadeira
capacidade para vender bíblias, coisa em que antes jamais pensara. Foi essa a época
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Aventuras com a Bíblia no Brasil
mais feliz da minha vida. Temo ter sido, desde aí, hesitante, vagaroso em percep-
ção, possuidor de fé tímida, mas quando a hora da provação chegou, curvei-me e de
boa vontade consenti que Deus agisse conforme a Sua vontade em relação a mim.
Somente à Sua bondade e paciência inesgotáveis é devido o fato extraordinário de
poder a minha fraqueza ter sido utilizada para Sua honra e glória.
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