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ANTONIO
CONSELHEIRO
uma invenção “biblada”
PRÓLOGO 17
INTRODUÇÃO 19
1. HERMENÊUTICAS EM CONFLITO 21
2. MOTIVAÇÕES 22
3. PRETENSÕES 23
4. HISTÓRIAS QUE A BÍBLIA FAZ 24
5. ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO 30
NOTAS 36
CAPÍTULO I
1. SAINDO DA “GAIOLA DE OURO” 49
Vozes dos sertões 50
Uma falsa consciência e o misticismo dos pobres 54
A anomia e o messianismo 56
2. OS IMPACTOS DE UM CADERNO 59
Um manuscrito do Peregrino 60
Mais um olhar marxista 61
Uma comparação necessária 63
Uma visita às prédicas 65
Revisitando as prédicas 67
3. OS CENTENÁRIOS 70
Avanços frente ao já dito 70
Os discursos e sua ideologia 73
Campo em chamas 75
Reverberações 78
O cristianismo beato 80
O beato endiabrado 82
O império de Belo Monte 84
O cerco discursivo sobre Antonio Conselheiro e o Belo Monte 86
4. A COMPOSIÇÃO DO OLHAR 88
Questões 89
O olhar 90
História e Antropologia 90
Apropriação/Recepção/Inscrição 96
NOTAS 99
CAPÍTULO II
1. MASSETÉ: “NÃO DEIS A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR” 120
2. REINVENTANDO O COTIDIANO: A VIDA DE BELO MONTE 126
O estabelecimento de Belo Monte e a proveniência de sua gente 127
Plantavam, colhiam, criavam 132
Edificavam 135
Rezavam 140
Vínculos 144
3. DELENDA, EM NOME DO PROGRESSO E DA RELIGIÃO 149
Mudar para conservar 150
A Igreja condena as revoltas 161
CONCLUSÃO 162
NOTAS 164
CAPÍTULO III
1. VOZES DO SERTÃO E A BÍBLIA 188
O êxodo 189
A terra prometida e o Anticristo 190
O dilúvio vindouro 198
Impressões provisórias 201
2. BELO MONTE E A BÍBLIA DO PEREGRINO 202
Rompendo a interdição: os cadernos de prédicas de Antonio Conselheiro 202
“Apontamentos” e “Tempestades” 203
A originalidade das prédicas 204
Passado e presente 206
Versículos: o amor de Deus e o peregrinar 208
As igrejas em Belo Monte 211
O Conselheiro e as tradições apocalípticas do sertão 213
3. A IGREJA, SUA BÍBLIA E BELO MONTE 216
A missão e o relatório 216
Argumentos revisados 217
Novos argumentos para um tempo novo 219
15
CAPÍTULO IV
1. OS OLHARES, OS LUGARES 264
A terra da promissão, os agentes do Anticristo e o fim 264
O amor de Deus e sua salvação 267
Todo poder vem de Deus 272
“Um heresiarca do século II em plena idade moderna” 279
2. CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 286
O Conselheiro e sua gente 286
A Igreja e o positivista 290
Disjuntivas, a guerra 293
CONCLUSÃO 300
NOTAS 301
ALGUMAS CONCLUSÕES
1. O RELIGIOSO EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 321
2. MESSIÂNICO? MILENARISTA? 323
3. MOVIMENTOS “BIBLADOS” 327
NOTAS 331
EpÍLOGO 341
BIBLIOGRAFIA
1. Fontes 349
2. Sobre o sertão, Belo Monte e Antonio Conselheiro 352
3. Euclidiana 361
4. História e cultura do Brasil 367
5. Exegese, hermenêutica, teologia e recepção da Bíblia 372
6. Ciências Sociais e da Religião, História, Hermenêutica e outros campos 373
ANEXOS 379
17
PRÓLOGO
Foi numa discussão empolgante com colegas de várias áreas das Ciências Hu-
manas que a ideia deste trabalho surgiu. Eram os anos 1997-98. Ali, entre estupe-
fato e entusiasmado, tomava contato pela primeira vez com a saga de Henequim,
o atrevido português encantado pelo Brasil que, por sua leitura da Bíblia, localiza-
va por essas bandas o paraíso terrestre descrito no livro do Gênesis, algo que não
passaria despercebido aos inquisidores que, em meados dos anos 1740, haveriam
de lhe ordenar a execução. Até então minha investigação sobre os textos bíblicos
concentrava-se em buscar-lhes o contexto original (o Sitz im leben dos alemães),
com a convicção de que, descoberto, chegaria a apreender deles as significações
pretendidas por seus autores. E, a partir daí se desnudariam as inconveniências,
manipulações mesmo – essa era a concepção nos estudos que fazia – das leituras
correntes da Bíblia, especialmente aquelas desenvolvidas nos diversos ambientes
teológicos e eclesiásticos, numa história bimilenar.
A referida discussão foi reveladora por muitas razões. Lançou a semente da
dúvida sobre a nossa possibilidade (e a pretensão aí embutida) de captar, com pre-
cisão cirúrgica, as intencionalidades dos autores bíblicos. Mas principalmente me
obrigou a pensar que, deturpadas ou não, corretas ou não, têm sido exatamente
essas leituras feitas ao longo da história – e não só por eclesiásticos e teólogos re-
nomados – que têm garantido à Bíblia o lugar fundante que ele ocupa na cultura
ocidental. Foi porque marcado de forma indelével pelo referido texto, que lhe
chegou das mais variadas formas, que um sem-número de homens e mulheres,
em múltiplas conjunturas, empenhou vida e morte, significando as experiências
do cotidiano, em vistas a defender “a” verdade, concretizar ideais, exorcizar temo-
res, ensaiar utopias, afastar demônios. Essas inscrições do bíblico na cultura não
poderiam ficar relegadas ao rodapé das discussões exegéticas sobre o texto origi-
nal; pelo contrário, também este precisaria ser considerado à luz de um processo
de muito maior duração: se o evangelho segundo Mateus resulta do impacto que
aquele segundo Marcos produziu para além da suposta intencionalidade de seu
redator, o que pensar dos efeitos que o primeiro passou a produzir, por exemplo ao
ser incorporado ao Novo Testamento como sua porta de entrada?
Dessas questões até o desembarque no Belo Monte de Antonio Conselheiro
foi um salto gigantesco. Novos títulos a serem conhecidos, a literatura sobre o Bra-
sil e o sertão a ser (re)visitada, outros referenciais teóricos, temporalidades e espa-
cialidades até então inéditas para mim se apresentavam desafiadoras. Por que exa-
tamente o Belo Monte, que até então eu conhecia como Canudos? Aulas no ensino
fundamental, o drama do Nordeste seco alargado até as periferias miseráveis de São
Paulo, o fascínio pelas lutas populares dos tempos da Bíblia e aquelas vividas em
solo brasileiro. E Os sertões, que nunca havia lido, mas dele algo sabia, à espreita...
E ali, como em tantas outras fontes, eu haveria de descobrir que entendimentos e
significações do Belo Monte à luz de inscrições bíblicas na cultura brasileira com-
punham, já à superfície, um feixe densíssimo, um soberbo emaranhado, tecido de
consistências e contradições, de encontros e conflitos, como sói ocorrer em todas
as situações em que os humanos são desafiados a desenharem para si a existência
e suas condições. O que se demandava era a disposição para buscar as tramas do
feixe, as linhas constitutivas do emaranhado, as interações que elas perfaziam.
Ali, portanto, no Belo Monte do Conselheiro se iniciava uma nova viagem.
Uma viagem cujo destino era o mesmo da partida; o viajante é que se deslocaria
a cada passo do percurso. Dos campos encharcados de sangue de Israel trucidado
pelos romanos (incluído aí o do crucificado Jesus!) às ribanceiras sertanejas amon-
toadas de corpos degolados pelos agentes da (des)ordem e do progresso o percurso
foi grande, embora tivesse de ser ágil. A viagem no Belo Monte, por suas vielas
e casinholas, passando pela praça das igrejas ao encontro dos barrancos de cus-
cuz, das preces murmuradas, da regra proclamada pelo peregrino Antonio Vicente
Mendes Maciel, das denúncias de heresia e de subversão, bem como das fuzilarias e
canhões, essa viagem foi longa, muito longa. As páginas seguintes são testemunho
dela.
INTRODUÇÃO
20
1. HERMENÊUTICAS EM CONFLITO
no embarque de alguns dos batalhões de linha, que partiam para a Bahia, que o
primeiro magistrado de uma nação cristã e civilizada, no fim do século das luzes,
proferiu este famoso discurso, que pena é não fique ad perpetuam rei memoriam, no
qual recomendava aos soldados: – “não fique pedra sobre pedra”.1
Quem disso nos informa é César Zama, autor de uma das mais importantes
denúncias da brutal violência praticada pelo exército brasileiro contra a gente serta-
neja que vivia junto ao Conseiheiro no vilarejo às margens do rio Vaza-barris. Mas
teria ele notado que Prudente de Morais, ao pedir o extermínio completo do arraial
maldito, recorreu a uma expressão que, em suas origens, remete para os anúncios
de Jesus sobre a iminente destruição de Jerusalém: “não fique pedra sobre pedra”?2
São incontáveis as referências à Bíblia judaico-cristã para a configuração dos
argumentos e dos sentidos que se pretendeu impor à trajetória de Belo Monte,
feitas por várias partes envolvidas no conflito que levou a vila à destruição. Tra-
tarei de mapear essas tantas recorrências e verificar-lhes as motivações, e com isso
evidenciar facetas importantes de uma das experiências mais dramáticas da histó-
ria brasileira. A tarefa não é pequena, pois as fontes a toda hora nos colocam em
contato com o Anticristo e com maldições proféticas; o livro do Apocalipse e suas
imagens espetaculares; a história de Moisés e dos hebreus rumo à terra prometida.
Juntem-se referências ao paraíso edênico, à árvore do bem e do mal, ao dilúvio e
22
à arca de Noé. Sem contar anúncios de juízo final e proclamações sobre o pecado
e a graça divina, e ainda tantas alusões à capital dos judeus; Euclides da Cunha
caminha nessa esteira ao batizar a vila conselheirista como a “Jerusalém de taipa”.3
E não se trata apenas de metáforas bíblicas aqui e ali encontradas, por motivo
de adornamento literário ou assemelhado. O recurso à Bíblia nessas circunstâncias
implicou profundamente: impactou na definição de territórios, na nomeação e
qualificação de lugares, na estigmatização ou engrandecimento de pessoas e insti-
tuições. A seleção de material bíblico encontrada em cadernos que levam o nome
do Conselheiro não é fortuita, e configura a visão que ele imprimia ao vilarejo que
liderava. Por meio dele que o ímpeto salomônico de construções circula em Belo
Monte e estimula a edificação de suas igrejas. Já Euclides verá nele um retrógrado,
um “falso apóstolo”, um “messias de feira”4, em sugestivo acordo com o que dele
diziam figuras destacadas do clero baiano: contestador da doutrina, transgressor
da religião e desconhecedor das autoridades eclesiásticas. Mas se perguntássemos à
gente que vivia em Belo Monte o que diria de seu líder, provavelmente escutaría-
mos alguma referência, não ao messias, mas a Moisés!
Olhares distintos se entrecruzaram e se chocaram à beira do Vaza-barris, com
um terrível saldo de mortos e feridos. Investigo, num lugar em que interesses e
cosmovisões se confrontaram tão violentamente, em que termos se deu o “conflito
de interpretações” em torno da Bíblia, capaz de evidenciar facetas importantes do
confronto entre o Conselheiro e seu povo, de um lado, e a instituição eclesiástica
com seus missionários e as forças republicanas, de outro. Mas note-se que aliados,
aqui, não têm necessariamente a mesma leitura dos eventos, nem a mesma apro-
priação de referenciais bíblicos. Tais articulações e desencontros, que mostram a
complexidade do fenômeno histórico, são o foco desse trabalho. Que condicio-
namentos possibilitaram apropriações da Bíblia às vezes complementares, outras
vezes antagônicas?
2. MOTIVAÇÕES
A Bíblia, por força de sua autoridade como livro divino, na América Latina
forjou e legitimou comportamentos, forneceu e configurou argumentos, justificou
atitudes, contraditórias em muitas oportunidades. Momentos particularmente con-
flitivos e ao mesmo tempo decisivos tiveram a Bíblia presente nos diversos lados e
interesses. A Bíblia não é apenas um livro; é um meio pelo qual muitas coisas ficam
legíveis, são criadas e recriadas. Visitar Belo Monte e projetar sobre esse momento da
história do Brasil uma luz particular tem sua razão de ser. Investigar de que maneira
INTRODUÇÃO 23
3. PRETENSÕES
Não há como colocar em dúvida que a Bíblia tenha sido o livro que mais im-
pactou, em suas contínuas leituras e releituras, a constituição do mundo ocidental,
embora a percepção dessas marcas, talvez exatamente por sua pujança e quase oni-
presença, venha sendo no mínimo insuficiente. Se Gadamer tem razão ao incluir,
como tarefa da hermenêutica, a percepção “do rastro que uma obra deixou atrás de
si”8, quanto mais esse desafio não se colocará à Bíblia!
Mas existem trabalhos estimulantes. Christopher Hill, num estudo provoca-
dor, procura mostrar como o livro sagrado dos cristãos jogou papel decisivo “na
vida dos homens e mulheres daí Inglaterra revolucionária do século XVII”. Essa
presença é multiforme: “todas as ideias que dividiram os dois partidos na Guerra
Civil e que, depois, entre os parlamentaristas vitoriosos, separaram os conservado-
res dos, podem ser encontradas na Bíblia”. Mas não é só: é possível rastrear “seus
efeitos sobre a economia, a literatura e a vida social em geral”.9
INTRODUÇÃO 25
um inexaurível manancial de bons conselhos para uma vida conveniente; não cos-
tuma ser vista como um corpo imutável de doutrina, como a viam os fundamenta-
listas brancos. Por isso as figuras bíblicas devem ser vivas, devem estar presentes e de
alguma forma constituir exemplos históricos a serem aplicados ao momento atual.10
O Brasil, junto com o conjunto dos territórios desde o século XVI passou a
fazer parte do mundo político, econômico e cultural dos europeus, foi introduzido
a um universo cheio de esperanças e convicções inspiradas na Bíblia. Colombo cria
que suas incursões para o Ocidente confirmavam dados da Escritura que, articu-
lados aos anúncios de Joaquim de Fiore e outros influxos, indicavam claramente
o fim dos tempos para meados do século XVII. Suas viagens somavam-se a em-
preendimentos como a expulsão dos judeus e mouros da Península lbérica, para
reunir povos e nações que nunca tinham ouvido falar de Deus e seu filho, para
que proclamassem a sua glória, sinal insofismável da proximidade do fim: “mile-
narismo joaquimita, filosofia hermética, messianismo judaico, profetismo, guerras
santas internas e externas para a vitória sobre o anticristo, poderio onipresente da
Inquisição, intrigas universitárias e palacianas: eis o mundo onde habita Cristóvão
Colombo”.12 A própria empreitada da conquista suscitará acalorados debates, onde
não faltarão passagens bíblicas, arroladas por quem apoiava os empreendimentos e
por quem discutia alguns de seus termos:
para os teólogos da Idade Média não representava o Paraíso Terreal apenas um mun-
do intangível, incorpóreo [...] nem simplesmente alguma fantasia vagamente piedo-
sa, e sim uma realidade ainda presente em sítio recôndito, mas porventura acessível
[.,.] Não admira se, em contraste com o antigo cenário familiar [...] a primavera
incessante das terras recém-descobertas devesse surgir aos seus primeiros visitantes
como uma cópia do Éden. Enquanto no VeIho Mundo a natureza avaramente re-
gateava suas dádivas [...] no paraíso americano ela se entregava de imediato em sua
plenitude, sem a dura necessidade – sinal de imperfeição – de ter de apelar para o
trabalho dos homens. 15
Detalhe, esse último, que logo seria corrigido... Outros tópicos evidenciam
o contínuo processo de construção do Brasil por meio de categorias bíblicas: por
exemplo, o pecado do Cam fez longa história por aqui, e seu relato em Gênesis 9
tanto dá conta da impiedade indígena, manifesta em sua escandalosa nudez, como
“pode ser chamado o texto ‘gerador’ da ideologia escravista cristã”.16
A despeito destes dados, no entanto, é quase impossível aquilatar a presença
da Bíblia nos primeiros séculos de colonização do Brasil. Há desde a constatação de
que, no século XVII, “a Bíblia era praticamente ignorada” nas bibliotecas particula-
res até mesmo de conventos, nas quais, contudo, abundavam os devocionários, até
aquela segundo a qual, no século anterior, uma mulher em Pernambuco “solicitava
ao mestre-escola Bento Pereira ‘para lhe declarar a Bíblia de latim em linguagem’
(isto é, em português), conjugando a leitura oral e privada à tradução”.17 Sabe-se,
por exemplo, que “em muitas experiências catequéticas com as crianças indígenas
no Brasil, foram utilizadas as representações das cenas bíblicas”.18 E, de forma mais
geral, “o contato do povo com a Bíblia se fazia através de representações principal-
mente no ciclo do Natal e na Semana Santa”.19
INTRODUÇÃO 27
Mas não podem ser esquecidos os sermões, entre os quais os de Antonio Viei-
ra, certamente, se destacam, e não apenas do ponto de vista literário. Contudo, “o
comentário que o sermão bíblico faz da Bíblia segue uma argumentação alegórica,
misturada de mística, de poesia, de eruditismo verbal, de sorte que se torna de di-
fícil compreensão para o povo”.20 Tal perspectiva, que permitia adaptar as palavras
bíblicas às mais variadas circunstâncias, se somava a outra, que aparecerá inclusive
nas prédicas atribuídas a Antonio Conselheiro: a hermenêutica em que temas e
personagens da Bíblia judaica são tidos como prefigurações de realidades do Novo
Testamento.21 O processo costumeiro a que os sermões de Vieira submetiam os tex-
tos bíblicos será reencontrado em outras oportunidades, com as devidas variações:
Esses dados permitiriam supor uma familiaridade mais ampla com as pala-
vras e temas da Bíblia, nesses tempos e espaços? Embora possamos suspeitar que
o tempo se encarregou de internalizá-los, é impossível avaliar o quanto o caso de
Pedro de Rates Henequim é representativo de uma situação mais geral. Atraído
pelas notícias de ouro e outras preciosidades no Brasil, particularmente na região
hoje chamada Minas Gerais, este português chegou ao Brasil perto de 1702. De pai
flamengo e mãe portuguesa, oscilando desde o começo entre o universo católico
28
em que Adão foi criado, está na América debaixo da Linha Equinocial, e perpen-
dicular ao lugar em que Deus tem seu Trono no Céu; e o prova de nesta nova terra
se achar tudo o que a Escritura diz dele: porque nela se acha o fruto da Árvore da
Vida, que são as Bananas compridas, e o da Ciência, que são as Bananas curtas, e
frutas, rios, e delícias.25
nuel, o soberano da então colônia ultramarina. O que seria de imensa valia para
os portugueses estabelecidos nas Minas e vingaria alguns revezes que Henequim
sofrera em sua estada aí até pelo menos 1720, época de inúmeras manifestações
de descontentamento contra Portugal e suas medidas fiscais.29 Assim, se a impor-
tância do pensamento de Henequim vem “especialmente de sua capacidade de
reatualizar e reverter o mito do Quinto Império em favor da Colônia, rompendo
com a organização espacial e temporal subjacente ao imaginário do colonialis-
mo”30, é fundamental reconhecer a importância da hermenêutica de Daniel 2 e
outros textos bíblicos para a configuração da teia mítica que marcou Portugal e
sua relação com as colônias além-mar, e que Henequim reinterpretou criativa-
mente, sugerindo novas definições, quanto ao lugar do Brasil e em particular das
Minas Gerais que tanto o marcaram.
E o que dizer do caso, cercado de detalhes obscuros, de Nuno Marques Pe-
reira, autor de uma obra muito lida no século XVIII, o Compêndio narrativo do
peregrino da América, cujo manuseio da Bíblia é impressionante?31
Passo ao século XIX, ao encontro de Antonio Conselheiro, conhecido nos
sertões como “homem biblado”, que pelo menos desde 1874 “lia direto” a Bíblia.32
Ele teve à sua disposição uma versão feita pelo pe. Antonio Pereira de Figueiredo,
a partir do texto latino oficial da Igreja católica, definida nos anos posteriores ao
Concílio de Trento (1545-1563), mas herdeira da tradição da Vulgata de são Jerô-
nimo, editada no fim do século IV e início do seguinte. A Bíblia do pe. Figueiredo
foi a de mais largo uso entre os católicos de língua portuguesa no século XIX até
meados do século XX. Isto foi possível pois em 1757 o papa Pio IV, alterando
disposição estabelecida no contexto do Concilio de Trento, permitiu traduções
da Bíblia em língua vulgar, desde que acompanhadas de notas e explicações feitas
pelos teólogos católicos e aprovadas eclesiasticamente.33
A primeira edição brasileira da referida Bíblia apareceu em 1864 (apenas o
texto português), aprovada pelo arcebispo da Bahia, D. Manoel Joaquim da Silvei-
ra, que, em texto do ano anterior, dizia esperar que se tirassem “lições das Sagradas
Escrituras, livre dos erros e subtrações das Bíblias falsificadas e truncadas que em
tanta quantidade correm pelo país”.34 Este detalhe nos remete a outro, de grande
importância: a chegada dos primeiros grupos protestantes no Brasil do século XIX
levou a uma apropriação da tradução de Figueiredo, adaptada aos seus propósitos
missionários35, já que por aqui “não há escolas e nenhuma Bíblia à vista, exceto oca-
sionalmente, aqui e acolá, nas casas dos comerciantes europeus”.36 É nesse contexto
que encontramos o “biblado” dos sertões, emergido de uma cultura bíblica popular
bastante enraizada. O quadro se completa ao se notar que os setores que militaram
pela eliminação de Belo Monte também eram marcados pelo texto sagrado, e dele
faziam seus próprios usos.37
30
5. ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO
O primeiro dos quatro capítulos deste livro parte da constatação, feita há mais
de quarenta anos, de que o chamado “movimento de Canudos” não fizera surgir
uma monografia abrangente, ao contrário do ocorrido à história do Contestado ou
ao Juazeiro do pe. Cícero. À época Os sertões, de Euclides da Cunha, era a única
obra a oferecer uma visão da complexa trajetória da vila conselheirista.38 Talvez, por
suas proporções gigantescas, inibisse qualquer revisão do tema.
Hoje o quadro está notavelmente modificado. Na verdade, os elementos que
propiciariam a mudança já estavam postos há algumas décadas, por despretensiosas
entrevistas com sobreviventes do massacre e pesquisas esparsas; elas começaram a
colocar em cheque e progressivamente fizeram ruir o edifício euclidiano, impo-
nente, aparentemente inexpugnável. E eis que, um século depois da carnificina,
descobre-se Belo Monte como tema inesgotável, e Euclides, ou ao menos Os sertões,
deixa de ter a última palavra sobre o ocorrido.
Assim, inicio com uma resenha do que José Calasans, o grande renovador
dos estudos sobre Belo Monte, considerava um desafio, que a morte o impediu de
realizar: a “história da história de Canudos”. Dois marcos determinam a escolha
dos textos e autores. Primeiramente, recuo até 1947, ao encontro das primeiras
reportagens e entrevistas com sobreviventes do arraial.39 Por outro lado, a escolha
dos textos se guia pela maior ou menor capacidade deles em evidenciar aspectos
relevantes da experiência religiosa vivida em Belo Monte, seja em seus aspectos
intrínsecos, seja em sua conexão com outros elementos que fizeram o arraial e suas
relações com o seu entorno. Mais especificamente, quero notar o destaque dado
pelos autores à presença de referenciais bíblicos interferindo nos rumos trilhados
pelo arraial e pelas forças que militaram por sua destruição. Na esteira do percurso
feito nesses quase setenta anos, e à luz de limites e desafios que nele serão identifica-
INTRODUÇÃO 31
O livro, por tantos títulos notável, do sr. Euclides da Cunha, é ao mesmo tempo o
livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um ho-
mem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem
de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever, que
vibra e sente tanto aos aspectos da natureza como ao contato do homem e estre-
mece todo, tocado até ao fundo da alma, comovido até às lágrimas, em face da dor
humana, venha ela das condições fatais do mundo físico, as secas que assolam os
sertões do Norte brasileiro, venha da estupidez ou da maldade dos homens, como
a Campanha de Canudos.50
Não caberia, diante de uma obra que recebe uma avaliação desse teor, que se
atente para uma faceta aparentemente tão pouco relevante no conjunto. No entan-
to, a questão deve ser colocada de outra forma. A temática que tomou a atenção de
Euclides por um bom tempo, e acabou por lhe trazer fama e um nome único na
literatura brasileira, o exige.
Com efeito, os processos históricos são brutos e não se interpretam com recur-
sos e metodologias definidos totalmente a priori. Eles de alguma forma sugerem as
ferramentas com que serão melhor abordados e compreendidos. O processo que
Euclides desenvolveu pessoalmente com o Belo Monte me parece uma contínua
abertura, a mais ampla que lhe fora possível, visando captar mais adequadamente
a lógica dos eventos que via à sua frente. Uma dinâmica sem sentido e brutal, mas
carente de explicação. Os sertões, em sua versatilidade e polissemia, é fruto dessa
trajetória peculiar, que exigiu de seu autor uma metodologia que de alguma forma
incorporasse elementos teológicos na abordagem de Antonio Conselheiro e seu
arraial. Claro que tudo, em última instância, se subordina ao determinismo geo-
INTRODUÇÃO 35
NOTAS
1 César Zama. Libelo republicano acompanhado de comentários sobre a guerra
de Canudos. Diário da Bahia, Salvador, 1899 (edição fac-símile pelo Centro de
Estudos Baianos, 1989), p.31 [destaque do autor]). Prudente de Morais retomará
a expressão no fim da guerra: "Em Canudos não ficará pedra sobre pedra, para
que não mais possa reproduzir-se aquela cidadela maldita” (texto no Jornal do Co-
mércio de 08/10/97, citado por Roberto Ventura. “Euclides no vale da morte”. In:
Rinaldo de Fernandes [org.] O clarim e a oração: cem anos de Os sertões. Geração,
São Paulo, 2002, p.457). Quanto à dupla nomenclatura da vila, considere-se que
“no momento crítico em que ocorreu o episódio de Canudos, a contradição, mais
claramente, explicita-se em torno da luta pela definição da territorialidade, pois
se encontra entre os de ‘cá’, de fora, a denominação de ‘Canudos’, enquanto os
moradores do vilarejo lutaram pela imposição e preservação do nome Bello Monte
[...] Esta territorialidade foi definida não somente enquanto espaço geográfico,
mas como construção histórica” (Sérgio Guerra. Universos em confronto: Canudos
x Bello Monte. Uneb, Salvador, 2000, p.49).
2 Veja Marcos 13,2; Lucas 19,44.
3 Euclides da Cunha. Os sertões: campanha de Canudos. 4 ed., Ateliê, São
Paulo, 2009, p.327.
4 Euclides da Cunha. Os sertões..., p.253.498.
5 Walnice Nogueira Galvão. No calor da hora: a guerra de Canudos nos jor-
nais. 3 ed., Ática, São Paulo, 1994.
6 Alexandre Otten. “Só Deus é grande”: a mensagem religiosa de Antonio
Conselheiro. Loyola, São Paulo, 1990, p.87.
7 Expressão citada por Laura de Mello e Souza (O diabo e a terra de Santa
Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. 6 ed., Companhia das
Letras, São Paulo, 1999, p.16).
8 Hans-Georg Gadamer. Verdade e método: traços fundamentais de uma her-
menêutica filosófica. Vozes, Petrópolis, 1997, v.1, p.505. A abordagem científi-
ca da Bíblia se deu pelo recurso aos chamados “métodos histórico-críticos”, pelos
quais se procura entrar no universo histórico, social e cultural no qual os textos
foram gestados, em busca de recuperar o que terá sido o sentido original, ou ao
menos o pretendido inicialmente, do texto investigado. Empreitada complexa,
quiçá impossível de ser realizada, mas de toda forma importante para salientar
a relatividade das interpretações dogmáticas e autoritárias dadas pelos agentes
eclesiásticos, mostrando-lhes a ambiguidade e, mais ainda, a arbitrariedade com
que muitas leituras de textos bíblicos (historicamente datáveis!) eram apresenta-
das como definitivas (para uma história do método histórico-crítico, pode-se ler
INTRODUÇÃO 37
Martin Volkmann, Friedrich Erich Dobberahn e Ely Éser Barreto César. Método
histórico-crítico. CEDI, São Paulo, 1992, especialmente as p.9-75). A aplicação de
perguntas oriundas da Sociologia, Antropologia e outras ciências humanas só veio
aprofundar esse caminho, ao que parece sem volta (Gerd Theissen. Sociologia da
cristandade primitiva. Sinodal, São Leopoldo, 1987, p.9-14). Mas justamente o
fato de a exegese histórico-crítica se ter preocupado em recuperar aquele que teria
sido o sentido original de determinado texto fez saltar à vista os diversos sentidos
dados a ele no decorrer da história. Para além de descartá-los como adulterações
artificiais, a questão que se coloca é reconhecer que o texto bíblico sobreviveu e
impactou na cultura não por conta do seu presumido sentido original, mas pelas
inúmeras releituras dele feitas no decorrer dos séculos, obedecendo a interesses e
a perspectivas surgidas dos diversos contextos em que ele era lido, e dos diversos
sujeitos que o leram.
9 Christopher Hill. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 2003, p.9. Veja também, do mesmo Hill, O mundo de
ponta-cabeça: ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640 (Companhia das
Letras, São Paulo, 2001).
10 Eugene D. Genovese. A terra prometida: o mundo que os escravos cria-
ram. Paz e Terra / CNPq, Rio de Janeiro / Brasília, 1988, p.352. Os sonhos da
gente escrava por liberdade nessa vida e/ ou na outra se alimentavam das histórias
bíblicas, particularmente as relativas a Moisés e ao êxodo dos hebreus. E na associa-
ção entre Moisés e Jesus articulavam-se libertação política e salvação além-morte:
“Moisés se tornara Jesus, e Jesus se tornara Moisés; e, nessa fusão, os dois aspec-
tos da busca religiosa dos escravos, libertação coletiva enquanto povo e redenção
de seus terríveis sofrimentos pessoais, tornaram-se uma só coisa, pela mediação
do poder criativo que se manifesta com tanta beleza nos spirituals” (p.365). Em
síntese: as narrativas bíblicas nas bocas e ouvidos da gente escravizada trouxeram
fundamentalmente duas consequências. Primeiramente a criação de “uma sensibi-
lidade nacional negra”, que pode ser ilustrada, pelas palavras de um pregador negro
que “contava a história dos israelitas identificando-a à da nação negra oprimida e
fazendo dos negros o Povo Eleito, que Deus punha à prova por meio da escravidão
e da opressão” (p.380). A outra implicação deu à religião negra nos Estados Unidos
um perfil escatológico peculiar: “a religião dos escravos não era essencialmente
messiânica, no sentido político. Não surgiram nas senzalas linhagens de pretensos
libertadores que arregimentassem seguidores em grande número. [...] O libertador
do povo seria o próprio Deus, configurado em Moisés (ou Moisés-Jesus), e era
preciso atraí-Lo pela fé” (p.387-388).
11 Jorge Pixley. “O aspecto político da hermenêutica”. In: Revista de Interpre-
tação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis, 1999. n 32, p.99.
38
12 Marilena Chauí. “Profecias e tempo do fim”. In: Adauto Novaes [org.] A
descoberta do homem e do mundo. Companhia das Letras, São Paulo, 1998, p.459.
13 Juan Stam B. “Exégesis bíblica en la teología de los conquistadores”. In:
Boletín Teológico. Flórida, 1992. v.24, n.47/48, p.267.
14 Citado por Marilena Chauí. “Profecias e tempo do fim”..., p.490; veja a
apresentação de Tzvetan Todorov sobre “a crença mais surpreendente de Colombo”
(A conquista da América: a questão do outro. 2 ed., Martins Fontes, São Paulo,
1999, p.19-20).
15 Sérgio Buarque de Holanda. Visão do paraíso: os motivos edênicos no
descobrimento e colonização do Brasil. Brasiliense / Publifolha, São Paulo, 2000,
p.X-XI; para Nóbrega, veja p.290-291.
16 Ronaldo Vainfas. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no
Brasil. Nova Fronteira, Rio da Janeiro, 1997, p.32; Eduardo Hoornaert “A leitura
da Bíblia em relação à escravidão negra no Brasil-colônia (um inventário)”. ln:
Estudos Bíblicos. Petrópolis, 1983. n.17, p.20-22.
17 Luis Carlos Villalta. “O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitu-
ra”. In: Laura de Mello e Souza (org.) História da vida privada no Brasil: cotidiano
e vida privada na América portuguesa. Companhia das Letras, São Paulo, 1999,
p.361.375.
18 Valmor da Silva, Hermínio Quaresma e Rosana Pulga. “Historia de la
lectura de la Biblia en América latina”. In: La Palabra hoy. Santafé de Bogotá, 1994.
v.XIX, n.71/72, p.44.
19 João Fagundes Hauck, Hugo Fragoso, José Oscar Beozzo, Klaus van der
Grijp e Benno Brod. História da Igreja no Brasil. Segunda época, século XIX. 2 ed.,
Vozes / Paulinas, Petrópolis, 1985, v.II/2, p.106.
20 Eduardo Hoornaert, Riolando Azzi, Klaus van der Grijp e Benno Brod.
História da Igreja no Brasil. Primeira época. 3 ed., Vozes / Paulinas, 1983, v.lI/1,
p.332.
21 Trata-se da chamada “leitura tipológica”, uma prática comum de leitura
dos textos da Bíblia judaica, cujo princípio básico é o seguinte: “Na Bíblia há
acontecimentos, coisas e pessoas que prefiguram, quais alusões na penumbra, uma
realidade visível só no nível superior da Redenção. A figura alusiva é o tipo (ou pro-
tótipo), a realidade é o antítipo” (Josef Scharbert. Introdução à Sagrada Escritura.
3 ed., Vozes, Petrópolis, 1980, p.174). Cabe ainda “a distinção entre antítipo tele-
ótipo: antítipo [...] exprime uma oposição entre figura e realidade; Adão e Cristo:
Adão causou a morte, Cristo a Vida [...] Teleótipo [...] exprime o fato do Novo
Testamento como cumprimento e aperfeiçoamento da figura vétero-testamentária.
Assim, Páscoa cristã é o teleótipo Páscoa judaica, ou seja, a libertação da escravidão
do pecado e da morte é mais sublime do que a libertação da escravidão egípcia”
INTRODUÇÃO 39
32 José Calasans. “Belo Monte resiste”. In: Revista da Bahia. Salvador, 1997.
n.22, p.47. Calasans atribui a expressão “biblado” a “um homem de Masseté”,
vilarejo com que logo nos encontraremos. Outro depoimento indica que o Con-
selheiro seria “inteligência superior e conhecedor da leitura da Bíblia” (citado por
Bartolomeu de Jesus Mendes. Formação cultural e oratória de Antônio Conselheiro.
BDA-Bahia, Salvador, 1997, p.35, nota 52).
33 O Concílio de Trento, realizado entre 1545 e 1563, quis ser a respos-
ta da Igreja Católica ao movimento da Reforma Protestante; nesse contexto
adotou posições rígidas quanto à doutrina, à formação dos padres e à leitura
da Bíblia pelos leigos, entre outras. A liberalização quanto a este item propor-
cionou à tradução do pe. Figueiredo, de reconhecidos méritos literários, uma
rápida difusão: o Novo Testamento foi publicado em 1778 e reeditado em
1781; o Antigo Testamento foi saindo aos poucos: em 1790 a Bíblia inteira
perfazia vinte e três volumes. A década seguinte viu sair uma nova edição do
conjunto (completado em 1805), e entre 1794 e 1819 saiu outra, agora em sete
volumes, dedicada ao futuro D. João VI. Houve ainda outras edições, sempre
baseadas na tradução de Figueiredo, mas com notas alteradas ou suprimidas,
surgidas em Lisboa, a primeira em 1852-53 (em dois volumes); a segunda em
1854 (Antigo Testamento em dois volumes) e 1857 (Novo Testamento em
um volume). As sucessivas edições foram motivadas também pelo fato de, ao
contrário da tradução, os prefácios e notas explicativas terem sofrido vários
tipos de restrição eclesiástica, e foram progressivamente alterados, suprimidos
ou substituídos. Para detalhes, J. Pereira. “Portugaises (versions) da la Bible”.
In: F. Vigouroux. Dictionaire de la Bible. Letouzey et Ané, Paris, 1922, t.5,
col.559-569; Simão Voigt. “Versões em português”. In: Josef Scharbert. Intro-
dução à Sagrada Escritura..., p.167-168. Todas essas edições são bilíngues, isto
é, trazem o texto latino oficial da Igreja católica numa coluna e a tradução por-
tuguesa ao lado. Como nos manuscritos atribuídos ao Conselheiro muitas das
passagens bíblicas aparecem em latim e em português, imagina-se que ele terá
tido acesso à edição de 1852-53 (opinião da Bartolomeu de Jesus Mendes. For-
mação cultural e oratória de Antônio Conselheiro..., p.34-35) ou à de 1854-57
(como pensa Fernando da Rocha Peres. “Fragmentária”. In: Walnice Nogueira
Galvão e Fernando da Rocha Peres (org.) Breviário de Antonio Conselheiro.
Edufba, Salvador, 2002, p.23-25).
34 A Bíblia Sagrada, traduzida em português segundo a Vulgata Latina.
Ilustrada com prefações por Antonio Pereira de Figueiredo. Garnier, Rio de Ja-
neiro, 1864, v.1, p. inicial. É desta edição que serão extraídas todas as citações
encontradas neste livro, exceto aquelas que se encontrem no interior de textos
de outros autores.
INTRODUÇÃO 41
fizeram da Bíblia. São famosas, porque recolhidas por Euclides, as trovas em que a
gente de Belo Monte externou sua visão sobre os vários aspectos da sua vida e do
seu entorno (República, o Anticristo, o Conselheiro). Muitas delas estão dispostas
em forma (quase) alfabética, de forma que as iniciais de cada uma determinem o
seu lugar no conjunto, denominado, segundo Euclides, “ABC das incredulidade”
(Caderneta de campo. Cultrix / Instituto Nacional do Livro. São Paulo / Brasília,
1975, p.59-61). Confirma-se aqui o diagnóstico de Ong: “o alfabeto, este redutor
impiedosamente eficaz do som ao espaço, é obrigado a prestar serviço direto para
estabelecer as novas sequências definidas no espaço” (Oralidad y escritura: tecnolo-
gías de la palabra. Fondo de Cultura Económica, México, 2001, p.101).
38 Alba Zaluar Guimarães. “Os movimentos ‘messiânicos’ brasileiros: uma
leitura”. In: O que se deve ler em Ciências Sociais no Brasil. Cortez / Anpocs, São
Paulo, 1986, v.1, p.142-143 (o texto foi publicado originalmente em 1979).
39 Não abordarei aqui, portanto, os textos escritos durante a vida de Anto-
nio Conselheiro e a existência do arraial, nem aqueles escritos nos anos subsequen-
tes: romances, diários de guerra, relatos de viagem. Todos eles servirão, de alguma
forma, de fontes. E a contribuição euclidiana receberá tratamento detalhado em
momento oportuno.
40 Encontram-se as duas tendências em Os sertões. Os aspectos do cotidia-
no do arraial (que de nenhum modo Euclides deixa de considerar) são subor-
dinados à apresentação de “O homem” (a segunda parte da obra), o sertanejo e
Antônio Conselheiro, este apresentado a partir de referenciais mais que discutí-
veis. Mas o belomontense praticamente não é sujeito. Por outro lado, a pregação
que Euclides atribui ao Conselheiro tem caráter milenarista e principalmente
associada ao fim do mundo próximo, o que contribui para deslocar a atenção do
intérprete mais para o mundo do além, supostamente em vias de se realizar, do
que para a experiência que se materializava às margens do Vaza-barris. Terei de
voltar ao assunto.
41 Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes..., p.21.
42 João Evangelista de Monte Marciano. Relatório apresentado, em 1895,
pelo reverendo Frei João Evangelista de Monte Marciano, ao Arcebispado da Bahia,
sobre Antonio Conselheiro e seu séquito no arraial dos Canudos. Correio da Bahia,
Salvador, 1895 (fac-símile pelo Centro de Estudos Baianos, 1987, p.7 (destaque
meu)
43 Plínio Freire Gomes. Um herege vai ao paraíso..., p.18.
44 José Calasans. “Canudos não euclidiano”. In: José Augusto Vaz Sampaio
Neto, Magaly de Barros Maia Serrão, Maria Lúcia Horta Ludolf de Mello e Vanda
Maria Bravo Ururahy. Canudos: subsídios para sua reavaliação histórica. Casa de
Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 1986, p.16-17.
INTRODUÇÃO 43
52 As obras de Euclides sobre Belo Monte não se reduzem a Os sertões, pu-
blicado em 1902. Os dois primeiros textos são artigos, ambos intitulados “A nossa
Vendeia”, publicados em O Estado de São Paulo a 14 de março e 17 de julho de
1897, respectivamente. Vendeia, um vilarejo francês, reagiu aos rumos da Revolu-
ção Francesa, e teve sua saga imortalizada por Victor Hugo em seu romance Qua-
tre-vingt treize. Já que Belo Monte era alardeado como um reduto monarquista,
Euclides considerou viável (antes de seguir para o palco da guerra) aproximá-lo da
vila francesa. As reportagens e telegramas que enviou ao mesmo jornal entre agosto
e outubro do mesmo ano, no período final da guerra, foram reunidos, junto aos
artigos, sob o título Diário de uma expedição ('Companhia das Letras. São Paulo,
2000). Já foi citado um caderno de anotações do período em que Euclides esteve
nos sertões (Caderneta de campo...).
53 A formulação é de Maria Cristina Pompa (“As muitas línguas da conversão:
missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial”. In: Tempo. Niterói, 2001. n.11, p.27),
que, no entanto, se refere ao contexto da colonização. Mas seus termos são precisos:
nesse processo de “invenção”, as definições dos “outros” são funcionais, “principal-
mente para a identificação da civilização ocidental, que, discorrendo sobre o ‘diverso’,
fala sobre si mesma, verificando-se”. O “outro” de Os sertões, o sertanejo, é inventado
de forma similar, algo, aliás, intuído já por Afrânio Peixoto quando, ao tomar posse
na Academia Brasileira de Letras em lugar de Euclides, comentava: Os sertões “não é
livro de história, estratégia ou geografia, é apenas o livro que conta o efeito dos sertões
sobre a alma de Euclides da Cunha” (“Euclides da Cunha: o homem e a obra”. In:
Afrânio Peixoto. Poeira da estrada. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1921, p.32).
54 Não satisfaz a posição que, talvez por tomar Euclides por um agnóstico
(quando não ateu), marcado pelas tendências científicas do seu tempo que lhe
configuraram uma perspectiva anticlerical e mesmo antirreligiosa, desconsidera,
tendo por irrelevantes, suas ideias sobre religião. Olímpio de Souza Andrade afirma
ser Euclides alguém “supersticioso e preocupado com o problema religioso, embora
se classificasse “livre pensador” (História e interpretação de Os sertões. 4 ed., Acade-
mia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 2002, p.184). Uma das reportagens de Eu-
clides mostra bem sua pessoal sensibilidade para com a religião. Ao registrar missa
de que participou, em meio a “espingardas, cinturões e cantis e um selim suspenso
no teto”, quando estava a caminho do palco da guerra (depois da missa Flávio de
Barros fez uma fotografia: veja Canudos: imagens da guerra. Museu da República /
Lacerda, Rio de Janeiro, 1997, p.96-97), Euclides visivelmente se incomoda com a
situação, em que, por se ter ajoelhado com os que se ajoelharam e levado as mãos
ao peito em sinal de reconhecimento de culpa, pareceria estar mentindo “às mi-
nhas crenças”, ele que às “opulentas catedrais da cruz” garante ter sido indiferente.
“Não: não traí a nossa fé, transigindo com a rude sinceridade do filho do sertão...”
INTRODUÇÃO 45
(Gereba/Ivanildo Vilanova)
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 49
conteúdo de suas palavras, permanecendo na memória apenas aquilo que ainda fosse
considerado válido. Mesmo que assim fosse, caberia pensar no surgimento de alguém
que, em nome do não-cumprimento do supostamente vaticinado pelo Conselheiro,
se apoiasse exatamente nisso para desautorizá-lo. O que não terá ocorrido. Além dis-
so, os relatos recolhidos a respeito da vida no arraial, de sabor inegavelmente edênico,
ao mesmo tempo em que expressam um lamento e um protesto quanto à situação do
tempo dos depoimentos, evidenciam que Belo Monte era entendido como o lugar da
fartura e da abundância, para o qual a própria natureza se mostrava dócil.
Assim, as falas registradas por Tavares contribuíram poderosamente para de-
sautorizar a versão euclidiana sobre a vida e a morte de Belo Monte como palavra
definitiva. Evidenciava-se o caráter conflitivo manifesto também nas memórias dos
sobreviventes, para quem a carnificina que arrasou o arraial não era a única pos-
sibilidade. Nunca mais haveria o consenso que a obra euclidiana havia logrado
estabelecer sobre o destino do arraial liderado por Antonio Conselheiro.
A iniciativa de Tavares fez escola. José Calasans, que com o tempo se torna-
ria a principal referência nas inúmeras abordagens revisionistas feitas nas décadas
seguintes, dirigiu-se ao sertão, no início dos anos 50, à busca de sobreviventes. Se
não chegou a registrar os depoimentos num único livro, estes são a matéria-prima
de tantos artigos, ensaios e livros produzidos ao longo dos anos, junto com outras
pesquisas destinadas a esclarecer aspectos obscuros da história de Belo Monte e
Antonio Conselheiro, afastando-se sempre mais do que ele mesmo chamava de a
“gaiola de ouro” em que Euclides aprisionara a saga conselheirista.6 Sempre preo-
cupado com os fatos, com o que efetivamente teria ocorrido, o episódico, e avesso
a teorizações, que lhe pareciam generalizantes e pouco confiáveis. Conforme suas
próprias palavras, “meu empenho foi ser o tradutor do universo sertanejo”.7
O último empreendimento no sentido de recuperar as vozes da gente que so-
breviveu ao massacre do arraial conselheirista deve-se ao jornalista Nertan Macedo,
autor de uma memorável e extensa entrevista com Honório Vilanova, irmão do mais
importante comerciante do arraial, Antonio Vilanova, em 1962, sessenta e cinco anos
após o massacre.8 Mesmo com alguns ajustes na linguagem utilizada pelo depoente,
o jornalista garante não ter alterado “a estrutura íntima de tão espontâneo memorial,
a que não falta um certo toque de ingênua humanidade”.9 Em alguns capítulos a fala
de Vilanova é contextualizada, ou então serve de pretexto para longas exposições.
O depoimento é precioso. Define inúmeros) aspectos da vida do arraial, em
tom edênico e saudoso ainda mais intenso que aquele encontrado por Tavares.
Sobre o Conselheiro, de liderança inconteste, o depoente fala de suas leituras e ati-
vidades literárias, bem como de milagres: “o Peregrino conhecia a fundo a maldade
dos homens”.10 Surgia um perfil de Antonio Maciel diferente daquele desenhado
por Euclides, aterrorizante e sombrio.
52
Ficamos sabendo muito sobre os líderes da vila, das relações entre eles. Sobre
as visitas de pe. Vicente Sabino dos Santos, vigário da paróquia a que o território
do Belo Monte pertencia em termos de jurisdição eclesiástica e amigo há certo
tempo do Conselheiro, descobre-se que ele vai frequentemente ao arraial. Con-
firma-se, de um lado, o perfil da vivência religiosa belomontense vislumbrada por
outras fontes, a saber, marcada pelos santos e devoções do catolicismo popular; por
outro lado, um dado até certo ponto surpreendente, a liberdade, e não a coação,
de participação nas rezas e ofícios, o que destoa do relato de Euclides; o próprio
Honório “só uma vez ou outra aparecia pela igreja. Não gostava muito de reza”.11
Mas o Conselheiro não deixava de exigir em outros campos, como no tocante a
“desordens, mancebias, depravações, bebedeira, pagode dentro do arraial”.12 Não
existem, também aqui, quaisquer alusões a um teor milenarista da pregação do
Conselheiro ou da religião belomontense.
Importantes também são os detalhes sobre a já mencionada missão dos capu-
chinhos, capazes de elucidar meandros delicados sobre a relação do Conselheiro
com a hierarquia eclesiástica e questões doutrinais, ao mesmo tempo em que mos-
tram como o empreendimento ocorrera com a finalidade de exacerbar a tensão,
se não conseguisse a dissolução do arraial.13 Algumas páginas nos colocam ainda
em contato com facetas da guerra, reveladoras das táticas e estratégias sertanejas,
testemunhas do horror. Quando da morte do Conselheiro, o abandono do arraial,
enquanto a grande maioria decidiu findar-se com seu pai.
De alguma forma valem para esse memorial as considerações feitas sobre as re-
portagens de Odorico Tavares, com a diferença de que o trabalho de Nertan logrou
recolher muito mais detalhes, que conferem ao todo uma sensação de conjunto sobre
o arraial e a percepção de que em Belo Monte se cruzaram olhares e perspectivas que,
ao conflitarem entre si, provocaram a guerra. O depoimento do já quase centenário
Vilanova veio confirmar que uma história de Belo Monte não poderia mais ser escrita
ou contada sem que as esperanças e desilusões dos belomontenses fossem incorpora-
das ao cenário. E ainda era tempo de fazê-lo.
Cabe destacar um outro trabalho, situado no campo dessas primeiras pesquisas
que contribuíram para impedir que a tragédia de Belo Monte continuasse a ser ape-
nas “um capítulo da biografia de Euclides”14: a obra de Abelardo Montenegro, por
bom tempo considerada a melhor biografia sobre Antonio Conselheiro, embora o
autor pareça “mais preocupado em registrar o mistério e as contraditórias opiniões
em torno da figura de Conselheiro do que em aprofundar as suas interessantes ob-
servações acerca da situação da Igreja e da conjuntura política e nacional”.15 De toda
forma, encontra-se neste trabalho uma ampla gama de informações sobre os mais
variados aspectos da problemática Antonio Conselheiro e Belo Monte, que abririam
caminho para investigações futuras. Por exemplo, lemos uma rápida caracterização
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 53
Montenegro parece ter lido atentamente a obra de Manuel Benício, O rei dos
jagunços, publicada em 1899, mas suplantada em repercussão pelo livro de Euclides da
Cunha, para descrever com cuidado os traços da vida cotidiana no sertão, bem como
a trajetória do Conselheiro.17 Levanta questões que serão retomadas em investigações
posteriores; delas cito apenas três. Primeiramente, ao comentar a biografia do Con-
selheiro, suas desventuras familiares e amorosas, recomenda: “Não sejamos ingênuos
afirmando que a causa fundamental da guerra de Canudos foi o matrimônio infeliz do
Conselheiro”.18 Depois, encontramos em Montenegro as primeiras indicações apon-
tando numa direção que se tornará fértil nos anos seguintes: a vida curta e a morte
horrenda de Belo Monte devem ser entendidas no bojo das seculares tensões e conflitos
sociais do sertão. O “estranho socialismo cristão” vivido às margens do Vaza-barris não
era compatível com os interesses dos grandes comerciantes e proprietários da região.
E, enfim, as considerações de Montenegro sobre as questões religiosas atinentes
a Belo Monte permanecem em boa parte atuais, embora por vezes um tanto impre-
cisas. Uma afirmação como “nos sertões nordestinos, a massa camponesa esperava a
vinda do Messias”19, para caracterizar a insatisfação social traduzida em efervescência
religiosa, ajuda pouco. Mas Montenegro tem páginas preciosas sobre características da
religiosidade sertaneja, capazes de mostrar como a ação itinerante do Conselheiro, um
de seus frutos, encontrou terreno tão fértil para se enraizar e atrair tanta gente. E vale,
como conclusão, o alerta: “não convém, ainda, esquecer a atuação da Igreja Católica
que viu, na singular religião cristã praticada em Canudos, um sério perigo para a sua
evangelização nos sertões”.20
54
É diante da figura de Pajeú na luta ativa que se reduz às suas verdadeiras pro-
porções aquele que fora inicialmente o chefe supremo dos insurretos – Antônio
Conselheiro. Percebe-se que ele realmente congregou os camponeses pobres, em
certo momento deu expressão ao seu descontentamento e à sua revolta. Mas,
durante a luta armada foi completamente suplantado pelos verdadeiros líderes
da sublevação de pobres do campo: aqueles homens rudes que não se conten-
tavam com promessas de salvação e felicidade do reino dos céus, e combatiam
de armas nas mãos, com o máximo de firmeza e heroicidade, contra seus piores
inimigos, os defensores dos grandes fazendeiros, os soldados do Governo e do
latifúndio.30
A anomia e o messianismo
2. OS IMPACTOS DE UM CADERNO
Um manuscrito do Peregrino
Em 1976 surge a primeira edição de uma das obras mais polêmicas a respeito
de Belo Monte e Antonio Conselheiro: A guerra social de Canudos, de Edmun-
do Moniz, reeditada com ampliações cerca de dez anos depois. Elogiada por uns,
que viram nela a obra madura de um autor que mostrou pela primeira vez a teia
política, na Bahia e na capital, sem a qual não se entende a guerra; execrada por
outros, que censuram nela o marxismo tacanho, as afirmações gratuitas e absurdas,
é certo que a obra se constituiu num marco, tendo aberto muitas frentes de que se
serviriam estudiosos posteriores, tendo sido elaborada a partir de uma perspectiva
muito clara: “dou apenas uma interpretação materialista aos acontecimentos deste
período histórico”. 58 Como o livro, de estilo que por vezes beira a ficção, é por
demais amplo, considero aqui apenas alguns aspectos que tocam esta pesquisa.
62
Antônio Maciel compreendeu que era preciso apelar para o sentimento religioso
[dos camponeses], independentemente da Igreja. Passou então a falar em nome de
Deus e de seus desígnios por conta própria, sem dar importância ao que diziam os
padres, sempre favoráveis aos ricos e poderosos.60
[Os padres] não protestavam contra as terras tomadas, contra os salários que não
davam para matar a fome, contra os abusos das autoridades com as quais viviam
na melhor harmonia, visitando-se e banqueteando-se juntos. O mesmo não se dava
com Antônio Conselheiro que, além da prédica religiosa e da condenação das injus-
tiças sociais, organizara, na prática, uma comunidade igualitária, transferindo para
a terra o que os padres prometiam no céu.63
dos lances da guerra é minuciosa. Mas a maior surpresa que nos aguarda na leitura
de Moniz é a atenção que o autor concede às prédicas de Antonio Conselheiro,
que acabavam de vir à luz. Poder-se-ia falar mesmo de entusiasmo diante do ma-
terial que tem em mãos. Claro, tudo no fim serve à causa da organização social e
dos conflitos inevitáveis: “na parte exegética em que fala do 6o mandamento, ele
[o Conselheiro] exalta o poder da vontade que [...] julgava imprescindível à luta
dos camponeses contra os proprietários rurais e as autoridades civis e policiais no
resguardo de seus interesses e direitos”.64
Também em relação aos trechos recolhidos da Bíblia, e que compõem a ter-
ceira parte do caderno publicado, Moniz não tem dúvidas: estão todos “imbuídos
do igualitarismo da igreja primitiva”.65 Mas feliz teria sido se houvesse notado que
uma passagem das prédicas a que atribui grande valor, pois por ela o Conselheiro
“separava os ricos dos pobres, preferindo a convivência destes últimos”, nada mais
é que transcrição de um versículo do evangelho segundo Lucas!66
Assim, apesar dos tropeços, em boa parte fruto de um olhar pré-concebido e
com insuficientes condições para aquilatar a relevância do religioso na configuração
de Belo Monte, e por outro lado resultado de uma tendência a idealizar Antonio
Conselheiro e seu movimento, o trabalho de Moniz é importante. Fica o desafio
de, entre outras coisas, verificar com a devida acuidade a incidência das prédicas na
vida do arraial, a articulação entre a experiência social do Belo Monte – em que a
questão ética, levantada pelo feixe diverso de apelos desamparados, no intrincado
jogo comunitário, foi endereçada a seu líder – e a apropriação que o Conselheiro
fez da Bíblia e da tradição religiosa que herdou, incluído aí o horizonte escatológico
que o norteava, para com sua gente ensaiar as respostas possíveis a partir de suas
íntimas referências espirituais.
Em 1977 surgiu importante estudo, que marcou época, por inovações meto-
dológicas e conclusões sugestivas.67 Nele Duglas Teixeira Monteiro se situa decidi-
damente numa perspectiva que combina análise social com uma profunda percep-
ção do sentido do religioso para os movimentos que se propõe a analisar: Juazeiro,
Canudos e Contestado. Isso lhe permite, desde o início, superar a dicotomia que
vimos em autores precedentes, que para acentuar um aspecto precisam desconside-
rar ou pelo menos minimizar o outro. O marco sociológico estabelecido no início
não o impede de abordar a dinâmica religiosa em sua autonomia e conexão com
outras instâncias da realidade:
64
Nota-se que Duglas supera um olhar que percebe a religião de modo funcio-
nalista ou como epifenômeno, e reconhece nela uma realidade relevante do ponto
de vista antropológico e político. Destaque também para perspectiva comparativa
que sustenta o estudo, que permite a Duglas encaminhar-se para ir além de sínte-
ses apressadas, que apresentam os referidos movimentos a partir de generalidades
como messianismo (Maria Isaura) ou luta pela terra (Facó e Moniz). Sua análise
possibilita evidenciar as especificidades encontradas junto ao pe. Cícero, aos mon-
ges do Contestado ou ao Conselheiro. Para o conhecimento do Belo Monte deste
último as conquistas são muitas.
Saliento inicialmente a consideração do personagem Antonio Vicente Mendes
Maciel, cuja biografia é rapidamente traçada.69 Duglas busca superar “o viés eucli-
diano” e compreendê-lo a partir das alternativas de vida indicadas pelo Riobaldo
de Grande sertão: veredas: “padre sacerdote” ou “chefe de jagunços”. O futuro líder
de Belo Monte “principiava a encontrar um caminho intermediário. Em certo sen-
tido, acabou por ser ambas as coisas a um só tempo”.70
Quanto ao perfil do arraial estabelecido em 1893, depois de comentar alguns
detalhes, como a composição social, a acolhida da missão capuchinha de 1895 e o
seu envolvimento em questões eleitorais, Duglas levanta uma questão, que haveria
de ser decisiva para a pesquisa posterior, sobre a necessidade de se perguntar sobre
Para dar conta do problema, o autor faz uma rápida apreciação das prédicas
do Conselheiro editadas por Ataliba Nogueira. Se um primeiro comentador delas
assinalava uma “incoerência entre esse ‘discurso’ e a ‘obra’ de Antônio Conselheiro;
entre as concepções indicadas nestes documentos e a prática social que desenvol-
veu”, para Duglas “essa incoerência não existiu. Pelo menos, é possível encontrar
uma compatibilidade acentuada entre a ortodoxia acima descrita e a vida social de
Canudos”.72 Afirmação que teria de esperar o trabalho de Alexandre Otten para se
ver detalhada. E mais: o arraial conselheirista parece que
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 65
Se isso basta, como avaliar os conflitos que o Conselheiro travou com os padres
durante mais de duas décadas? Como compreender sua resistência às investidas dos
freis missionários que foram tentar a dissolução do arraial, em 1895, afirmando:
“Conheço os padres falsos. Os que eu quero, abraço. Aceito quem acredita no Bom
Jesus”?87 Muito difícil também entender a queixa do frei João Evangelista de Monte
Marciano, que acusa o Conselheiro de desconhecer as autoridades eclesiásticas e
não lhes dar importância.88 E é interessante notar que nas duas prédicas que tratam
de sacramentos, sobre a missa (eucaristia) e a confissão, o enfoque justamente deixa
em segundo plano a dependência da gente leiga em relação ao clero, ou o vínculo
com a instituição eclesiástica, ou ainda o lugar do padre como mediador entre o
divino e o humano; enfatiza, em lugar disso, os benefícios que destas práticas os
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 67
fiéis podem haurir! Por exemplo, sobre a confissão se diz: “Não há cousa mais útil
ao cristão nem indispensável para comungar dignamente do que descer à sua cons-
ciência e escrutar, com saudável severidade, seus tristes esconderijos”.89 Não é diferente
o que se diz em relação à missa: ela “é o tempo mais oportuno que há para a oração e para se falar com
Deus [...] é a melhor obra, de mais proveito, que podemos oferecer pelas almas do purgatório”!90
As comparações que Fiorin propõe, entre as prédicas atribuídas ao Conse-
lheiro e o então famoso Missão abreviada, vão na mesma direção: enfatizam a de-
pendência de Antonio Conselheiro frente a este livro e a reprodução de suas idéias
fundamentais.91 A insatisfação a que esta análise conduz leva a perguntar se outras
possibilidades de apropriação de discurso prévio, além da simples reprodução, não
seriam mais adequadas para a consideração das prédicas do Conselheiro. Penso no
Menocchio de Ginzburg, criador de um universo mental completamente novo a
partir da leitura de fontes tradicionais, ou na multidão inglesa do século XVIII,
que Thompson percebeu ser capaz, a partir de princípios religiosos convencionais,
de questionar a ordem de coisas que ia sendo instalada pelo triunfo da burguesia
e do capitalismo.92 Será preciso esperar pelo trabalho de Alexandre Otten para se
perceber o quanto o Conselheiro “descola” de suas fontes e constitui um discurso
alternativo93, bem como para vermos enfrentada adequadamente a questão sobre
“se o dizer e o fazer do beato são concordes”; Fiorin não trata dela.94 E só assim, evi-
tando o problema, pode não concluir como Francisco Benjamin de Souza Netto,
sobre uma dissociação entre o suposto teor conservador das prédicas e a ação reno-
vadora do beato, posição que seu próprio mestre Duglas Monteiro se encaminhava
para superar.
Desta forma, mesmo que seja preciso retornar à análise cuidadosa a que Fio-
rin submeteu as prédicas, para recuperar nela aspectos importantes, o resultado
representa um recuo frente às possibilidades abertas por Duglas. Fiorin permanece
refém de seus pressupostos, e a leitura das prédicas só confirmou aquilo do que ti-
nha certeza prévia. Metodologias alternativas, que apontariam para outras direções,
não foram consideradas, e o confronto com a história foi simplesmente rejeitado.
Revisitando as prédicas
Como diz num artigo em que resume os resultados de sua pesquisa, Otten
não quer preterir as análises que defendem a instância econômica como condicio-
namento determinante do movimento, mas quer tomar a espiritualidade, o estilo
religioso de Antônio Maciel, como chave de leitura dos acontecimentos que se de-
ram no sertão baiano na segunda metade do século XIX.96
seja entendida [em Belo Monte] como uma peregrinação”.100 O que não impede
que preocupações de ordem social sejam particularmente significativas em suas
palavras, que são determinantes no modo de ser e viver que Belo Monte assu-
miu. Otten faz eco, portanto, à famosa expressão de Honório Vilanova, segundo
a qual a “regra do Peregrino” foi responsável pelas formas que a vida em Belo
Monte tomou.
Cabe também salientar aspectos em que Otten retoma questões polêmicas
e as encaminha para soluções originais. Por exemplo, no tocante à dependência
do Conselheiro frente ao já citado Missão abreviada, sua conclusão é oposta à de
Fiorin, apontando corretamente para o distanciamento do líder de Belo Monte
frente a perspectivas importantes do livro do padre português.101 E o autor deixa
apenas indicada uma rica possibilidade, que pretendo aprofundar: a “teologia
condescendente do Conselheiro” se afasta da visão rigorista e autoritária expressa
na Missão abreviada quando “se aproveita da própria Bíblia”.102 Assim Otten
supera de longe análises anteriores, que simplesmente vinculavam o discurso do
Conselheiro àquele oficial da Igreja Católica, fundamentado nas conclusões do
Concílio de Trento. Embora tecnicamente o Conselheiro não possa ser classifica-
do como herege, nem por isso seu discurso se identifica com as preocupações da
Igreja Católica de seu tempo. Essa observação talvez mereça algum reparo, mas
aponta para um aspecto fundamental, relativo ao lugar ocupado pelo Conselhei-
ro em sua relação com a hierarquia eclesiástica.
Quanto ao Belo Monte, Otten não tem dúvida em reconhecer nele uma
organização social “em função da religião”.103 As estruturas de comando ecoam
nomes bíblicos. Quase todo o tempo do arraial foi tomado pela construção das
duas igrejas, nas quais havia rezas (ladainhas, novenas) o dia inteiro, segundo
alguns testemunhos, oportunidade em que Antonio Conselheiro se dirigia ao
povo. As cerimônias religiosas, que incluíam o beija das imagens e receberam a
desaprovação de frei João Evangelista, expressam um clima do qual todo o arraial
se revestiu, sintetizam sua identidade.
Como já foi dito, cabe um diálogo constante com o trabalho de Otten.
Um problema a que retornarei refere-se às fontes utilizadas para se caracterizar o
universo religioso vivido em Belo Monte. Talvez seja possível identificar alguns
focos de tensão entre o Conselheiro e (ao menos parte de) seus liderados. Otten
já insinua algo nesse sentido quando considera o apocalíptico em Belo Monte
mais fruto de uma tradição popular amplamente difundida no sertão do que um
traço fundamental da pregação do Conselheiro (afinal, ele é praticamente inexis-
tente nas prédicas). De toda forma, trata-se de uma questão a ser retomada.104 E,
na linha do trabalho analítico que Otten realizou sobre as prédicas editadas por
Ataliba Nogueira, há um outro caderno para ser estudado.105
70
3. OS CENTENÁRIOS
Não se entende bem por que o sociólogo cearense João Arruda deu à sua obra,
surgida em 1993, o título de Canudos: messianismo e conflito social. Maurício
Vinhas de Queiroz já escrevera Messianismo e conflito social sobre o movimento do
Contestado, certamente para dar um viés de cunho marxista a um tema que Maria
Isaura Pereira de Queiroz acabara de abordar na perspectiva do messianismo. De
toda forma, este termo parece indicar a filiação a uma tradição de estudos que
assim qualifica movimentos surgidos em contextos sociais em que “o sagrado e o
profano se intercruzam”, propiciando o ambiente
Com a decisão tomada [de abandonar a vida itinerante e se fixar em Belo Monte]
[...] Antônio Conselheiro mais uma vez faz uso de sua memória religiosa. Sendo
um profundo conhecedor da história do cristianismo, principalmente em sua fase
inaugural, ele não teve muita dificuldade em rememorar uma das formas clássicas
que tinham marcado profundamente o estilo de vida dos primeiros cristãos. É no
Novo Testamento, principalmente nos Evangelhos e nos Atos dos Apóstolos, e em
um grande número de livros apócrifos que descreviam os primeiros anos do cris-
tianismo, onde se relata a vida das comunidades primitivas, nas formas prediletas
que aqueles cristãos encontravam para vivenciar os ensinamentos evangélicos, que
Antônio Conselheiro encontra inspiração para a criação de sua nova forma de apos-
tolado.112
As prédicas, que Arruda cita, mas não submete a uma análise mais detida,
não permitem afirmar que o Conselheiro tivesse realizado todo esse trabalho de
recuperação das formas de vida do cristianismo primitivo. Tem-se a sensação de
que Arruda generaliza, a partir de indícios muito frágeis e de uma abordagem
muito precária das fontes, para chegar ao que realmente lhe importa: “o modelo de
organização social das comunidades cristãs” se constituía “na contraproposta dos
oprimidos social e politicamente às formas de organização social opressora”.113 O
vínculo com o cristianismo primitivo (ele seguramente existe) terá de ser entendido
por outros caminhos.
Basta por ora. Também essa obra, como a de Moniz, traduz uma simpatia pelo
componente religioso de Belo Monte, elogiável para uma obra surgida da tradição
marxista brasileira. Contudo, paradoxalmente, vemos um descuido na análise dos
pormenores, pois, afinal de contas, o religioso é tido por secundário, veiculador de
expectativas e anseios apenas sociais. Nisso reside, a meu ver, ao mesmo tempo a
positividade e a limitação da obra de Arruda.
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 73
que o projeto conselheirista estivesse, dada a sua raiz religiosa, desde o início fada-
do ao fracasso. Vê-se que o problema não é muito diferente daquele encontrado
em autores já analisados: uma certa concepção, de corte iluminista, sobre a religião,
que pela consideração das generalidades do discurso e das funções institucionais
desta não dá conta das possibilidades até surpreendentes que podem surgir de seu
interior.121
Campo em chamas
Em 1995 foi publicado por Marco Antonio Villa um trabalho ambicioso, com
a pretensão de se estabelecer como marco na pesquisa sobre Belo Monte. Mas já
é preciso começar dando um desconto: o título Canudos: o povo da terra122, não
corresponde ao conteúdo. É pouco o espaço que a obra reserva ao povo que, com o
Conselheiro, fez a vida do Belo Monte: a conjuntura política da época e a história
da guerra ocupam mais da metade do volume, três dos cinco capítulos em que a
obra se divide.
Villa já fizera uma apresentação parcial dos dados de seu trabalho em texto de
menores pretensões123, no qual garantia não visar a “uma análise original sobre a
comunidade de Belo Monte, mas [...] apenas reconstruir historicamente os aconte-
cimentos”.124 Essa pretensão à objetividade total parece ignorar mais de um século
de discussões teórico-metodológicas em historiografia, e marca também sua obra
seguinte, deixando no ar algumas indagações básicas, inclusive porque no período
que vai da aparição do primeiro à escrita do segundo livro o autor mudou de idéia
em pontos importantes, como o tamanho do arraial conselheirista, a influência do
padre Ibiapina sobre o Conselheiro, as implicações do conflito de Masseté sobre o
estabelecimento de Belo Monte. De toda forma, interessa aqui no momento seu
trabalho de maior fôlego, nas contribuições que tenha trazido para a compreensão
da religião em Belo Monte. Também nela se encontrará esse conjunto de afirma-
ções categóricas, em nome da objetividade, ao lado de outras que reconhecem a
necessidade do debate.125 Por esse caminho destaco três aspectos, que reaparecerão
em discussões posteriores.
Ao propor um vínculo entre o beatismo sertanejo e a tradição bíblica, Villa
sugere que nesta se busque o movimento profético, pois neles temos “uma dura
crítica à trivialidade dos rituais e sacramentos, ao automatismo das cerimônias
e à predominância do aparato decorativo no culto”.126 Nessa milenar corrente se
encontram, como elos intermediários, os profetas e mártires do cristianismo pri-
mitivo, a tradição milenarista e o monaquismo do fim da Antiguidade, as heresias
76
A situação não se modifica quando lemos que “a força dos valores societários, a
solidez da ligação entre o destino individual e coletivo”131 são fatores que precisam
indispensavelmente ser considerados para se explicar a tenaz resistência da gente
belomontense até o fim. Donde vêm tais valores? Quais são eles? Pelo menos o dis-
curso religioso não é visto na perspectiva de uma “falsa consciência”, mas daquela
possível e pertinente ao sertanejo.
Enfim, é simplista considerar que catolicismo oficial e religiosidade sertaneja
perfaçam “dois mundos diferentes” entre os quais não há contato; as reflexões de
Ginzburg sobre a circularidade cultural, por exemplo, evidenciam que a questão é
bem mais complexa.132
Ligada à questão precedente, surge outra. Villa repele veementemente “qual-
quer explicação do arraial como uma comunidade messiânica, sebastianista, mile-
narista...”133 Ele sabe que está entrando em terreno delicado, pois desde Euclides as
interpretações sobre o arraial conselheirista compreendem a religião ali praticada
e as esperanças então vividas a partir de uma ou algumas dessas perspectivas. Mas
considera o sebastianismo em Belo Monte uma suposição euclidiana, construída
a partir do fato de vários movimentos de contestação da época, de tendência mo-
narquista ou não, serem caracterizados desta forma.134 Sobre expectativas de cunho
milenarista é categórico: “Não houve em Belo Monte a espera coletiva do milênio,
a crença de uma idade futura em que todos os males seriam corrigidos, as injusti-
ças, reparadas e abolidas as doenças e a morte”. Logo a afirmação é matizada:
Mais uma vez se pode concordar, em linhas gerais, com as conclusões de Villa.
Mas não é possível tomá-las de forma totalizante; elas não dão conta de toda a pro-
blemática. Nem cabe esposar sua metodologia de análise; para ficar apenas na ques-
tão das fontes: o que fazer com as quadras populares que Euclides recolheu quando
esteve em Belo Monte, várias delas com menções a D. Sebastião? Como avaliar a
famosa “Profecia”, da qual Euclides transcreveu parte em Os sertões e que anunciava
algum tipo de fim para a virada do século? É verdade que o simples anúncio de um
fim iminente não caracteriza necessariamente uma expectativa de cunho milena-
rista, mas desconsiderar a fonte não resolve o problema. Será necessário reconhecer
que o universo religioso da gente de Belo Monte é mais complexo do que se pensa
à primeira vista, e D. Sebastião e anúncios de fim próximo o povoam, mesmo
78
Reverberações
O cristianismo beato
inclusive movimentações da mais alta hierarquia baiana, nos anos 1880-90, des-
tinadas a atingir o Conselheiro. Também com os padres do sertão as relações são
complexas, indo desde conflitos no tocante à autoridade clerical até disputas para
levar o vilarejo conselheirista para esta ou aquela paróquia, dado o dízimo rentável
que proporciona. Resultado desse processo de negociação que o Conselheiro viveu
intensamente é o estabelecimento de “um novo parentesco” em Belo Monte: pelo
batismo “os habitantes de Canudos com o tempo vão se inter-relacionando numa
complexa rede de compadrio que ao mesmo tempo cimenta a união e diferencia a
comunidade em relação ao mundo de fora”.149 No final o autor se pergunta se em
Belo Monte teríamos tido “uma seita, ou uma forma nova de igreja, ou então outra
forma de as pessoas se reunirem como cristãos”.150 Este será o tema também do
mini-ensaio que fecha a obra, e deixo então para tratá-lo mais abaixo.
A terceira parte comenta os aspectos que foram progressivamente conferindo
a Belo Monte o estigma de perigo e ameaça, e precipitaram a guerra: a missão ca-
puchinha de 1895, a mão-de-obra que os latifundiários perderam para o arraial, a
reação aos novos impostos autorizados pela República.
Os mini-ensaios que perfazem quase metade da obra são altamente sugestivos.
A abordagem da obra-prima euclidiana pelo viés da teoria sacrificial de Girard é
estimulante. A avaliação da obra do mestre Calasans, generosa. A consideração so-
bre termos como “fanatismo”, “messianismo” e “milenarismo” abre possibilidades
a serem exploradas. Em “Antonio Conselheiro escritor”, Hoornaert não só apresenta
aspectos relevantes das prédicas editadas por Ataliba Nogueira (no que parece retomar Otten), como
um Deus bondoso e um Jesus comprometido com a história dos pobres, mas tam-
bém reflete sobre o sentido que elas poderiam ter naquele contexto cultural e reli-
gioso. Além disso, repele com vigor a indicação de que o milenarismo seria a tônica
da pregação do Conselheiro.
Mas o mini-ensaio mais importante, porque polêmico e original, é sem dúvida
o último, intitulado “o cristianismo beato”.151 Nele Hoornaert se pergunta sobre a
melhor terminologia para caracterizar o cristianismo vivido em Belo Monte, mas
principalmente sobre “o tipo de institucionalidade religiosa” ali vivida.152 Reconhe-
ce que a questão foi tratada por Duglas, Otten e Villa. Simpatiza com os postulados
deste último, e considera que o primeiro não fez senão abrir caminho. Em relação
ao trabalho de Otten manifesta mais reservas, pois estaria marcado por um eclesio-
centrismo inconsciente, manifesto, entre outras coisas, na insistência do autor em
que o conflito do Conselheiro se deu com “a Igreja em reforma” e não “com a Igreja
‘tout court’”.153 É estranho que o autor adote essa posição se em outro momento,
fazendo eco a Ataliba Nogueira, afirmara que, não fora a guerra, certamente teria
acontecido a visita pastoral do arcebispo a Belo Monte.154 Ademais, vimos acima o
próprio Hoornaert salientando o processo de reformas pelo qual a Igreja Católica
82
no Brasil estava passando como algo alimentador do conflito em que Belo Monte
se viu envolvido. De toda forma, Hoornaert reconhece que a temática é complexa.
E propõe a tipologia tripartite de Ernst Troeltsch, pela qual se deve acrescentar
ao conhecido binômio igreja-seita o elemento “mística”: Belo Monte se explicaria
como um intercâmbio entre estas três vertentes, em que a última daria o tom:
vemos [em Canudos] o eclesial aflorar na ânsia de se construir uma “grande igreja”
em Canudos [...] O sectário está presente em algumas afirmações a respeito de
milagres, proibições, etc. Mas sem dúvida a mística é o fulcro, exprime a vivência
da grande maioria. E pensamos que o próprio Conselheiro viveu Canudos como
experiência mística.155
O beato endiabrado
Foi esse o título que Walnice Nogueira Galvão deu a sua monografia sobre
a trajetória do arraial conselheirista.168 Esta conhecida estudiosa da obra eucli-
diana, que vem há certo tempo se dedicando ao tema Belo Monte, homenageia a
Maria Isaura Pereira de Queiroz, que assim nomeara a sua abordagem sobre Belo
Monte em seu clássico, a partir de Euclides da Cunha169 e Macedo Soares.170 O
que não retira a impropriedade do título, fruto menos do que Belo Monte efe-
tivamente terá sido e mais dos alardes alarmistas vindos de todas as partes que a
própria Walnice mostrou em escritos anteriores.171
De toda forma, ao lado de algumas informações interessantes e até suges-
tivas, não se pode dizer que a obra que ora passamos a comentar traga alguma
novidade maior. No tocante ao ponto que nos interessa, a religião em Belo Mon-
te e ao seu redor, as considerações são esparsas e rápidas, e marcadas por alguns
equívocos. Em primeiro lugar, a autora reconhece a centralidade dela na vila
conselheirista: nela
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 85
Na primeira das três partes que compõem a obra, Bartelt propõe uma
“história social do movimento de Canudos”, dividida em dois momentos prin-
cipais: a trajetória do Conselheiro, entendida como tragédia, e o povoado do
Belo Monte. Quanto a este último, centra-se nas questões de ordem política
e socioeconômica, mas um tópico é reservado à prática da religião no arraial.
Concentro-me nele, embora a temática reapareça, obviamente, em tantas ou-
tras páginas do livro.
Bartelt reconhece que “a prática religiosa estruturava a vida cotidiana” do Belo
Monte, embora atingisse seus habitantes de forma diferenciada.181 Só isso deman-
daria ao autor um cuidado maior na apresentação do assunto. A precisão dos ter-
mos é fundamental, e não se entende que, ao mesmo tempo em que afirma que o
Conselheiro “respeitava a igreja oficial e suas leis”, não havendo nunca ministrado
sacramentos, “cuja realização era reservada a um padre ordenado”, logo a seguir
Bartelt garanta que, “de vez em quando Maciel celebrava a missa para seus fiéis”!182
Reconhece o qualificado manuseio da Bíblia e do Missão abreviada pela Conse-
lheiro, livros subjacentes aos dois manuscritos que levam o nome do Conselheiro,
material que infelizmente não é explorado (exceto por uma rápida abordagem do
sermão sobre a República, presente no caderno editado por Ataliba Nogueira);
pelo contrário, o conteúdo que nele aparece tende a ser minimizado pelo autor
na configuração do pensamento do Conselheiro. Com efeito, Bartelt dá alguma
atenção ao que denomina “teologia de Maciel”, avaliando de forma bastante rastei-
ra as posições de Otten e Hoornaert a esse respeito183, e tendendo a concordar, ao
final, com a avaliação de Fiorin, segundo a qual o Conselheiro “não deu indícios de
querer enfrentar as relações eclesiásticas, políticas ou sociais de poder”.184 E prefere
confiar em testemunhos externos e fragmentários para afirmar o caráter messiânico
da figura do líder do Belo Monte e, por consequência, do perfil do arraial. Também
aqui a falta de precisão terminológica se mostra patente, bem como o descaso para
com as fontes autógrafas do Conselheiro
Portanto, não estranha encontrar, na última das três conclusões a que ele che-
ga nesse tópico, a afirmação de que a novidade social representada pelo Belo Monte
terá ocorrido à revelia do Conselheiro, e foi experimentada de forma privilegiada
principalmente por aqueles que, no arraial, “se libertaram da dimensão apocalípti-
ca e transcendental [que supostamente caracterizava, de maneira exclusiva, a pre-
gação do Conselheiro], voltando-se para a vida terrena. Nesse caso a teologia de
Maciel não ajudava muito, pelo contrário”.185 Uma ponderação completamente
infundada e gratuita, não fora o entendimento insuficiente e equivocado da “teolo-
gia de Maciel”, que conduz àquela “esquizofrenia” que Fiorin só pode evitar recusando-se
a confrontar os textos do Conselheiro com os inventos sociais por este liderado. Bartelt precisa supor
uma rebeldia subversiva da gente sertaneja em relação a seu líder, sem nenhum
88
fundamento para tal, para garantir, mais uma vez de forma gratuita, que no Belo
Monte se experimentou “uma práxis frequentemente contrária aos princípios da
teologia defendida por Maciel”...186 Estaria Bartelt reproduzindo a descabida suges-
tão, já encontrada em Facó, de uma dupla liderança no arraial?
Não é preciso avançar mais, por ora: a religião, particularmente aquela encar-
nada no Conselheiro e por ele estimulada, é um acidente que, embora importante
na configuração do arraial (como dito ao início do tópico), conta pouco para a
análise proposta por Bartelt. Não se entende muito aonde o autor quer chegar. Mas
se percebe claramente seu descaso para com o tema, que não mereceu a atenção
acurada que outras dimensões do problema “Belo Monte” dele receberam. Afortu-
nadamente há numerosas outras páginas do livro muito mais felizes, com as quais
é possível e necessário estabelecer diálogo: aquelas relativas à “heretização” do Con-
selheiro pelos padres da arquidiocese baiana e ao Relatório de frei João Evangelista
estão entre elas.187 Na verdade, ao interessar-se mais pela produção discursiva sobre
o Belo Monte que efetivamente terá impactado na opinião pública mais ampla,
e assim na configuração dos entendimentos que o Brasil republicano ia tecendo
a respeito de seu passado e presente, Bartelt passa de forma muito rasante sobre
os sentidos que a gente que fez o Belo Monte imprimia a seu empreendimento.
Reproduz, sem o pretender, o descuido para com as expressões da cultura popu-
lar sertaneja e, em particular, o preconceito eclesiástico e euclidiano a respeito do
Conselheiro, cujos termos tão bem identifica e denuncia.
Ao final se sente, na consideração dos mais relevantes trabalhos da terceira
fase dos estudos sobre Belo Monte, que com Bartelt se encerra, uma certa descon-
tinuidade em relação à fase anterior, em especial no tocante à temática religiosa. Os
promissores caminhos abertos por Ataliba, Duglas e Otten foram trilhados apenas
parcialmente. É hora de recuperá-los.
4. A COMPOSIÇÃO DO OLHAR
Não há mais por que se queixar: os estudos sobre Belo Monte e Antonio Con-
selheiro se multiplicaram nos últimos anos, motivados principalmente pelo cente-
nário do estabelecimento e da destruição do arraial. E, às vezes intencionalmente,
outras vezes não, a temática religiosa não poderia deixar de ser considerada, com
resultados os mais variados, e até contraditórios. Identifico, a título de conclusão
dessa etapa, algumas questões que decorrem das leituras feitas e necessitam ser
retomadas, ampliadas e aprofundadas. E aponto também com quais referências
proponho o encaminhamento desta tarefa.
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 89
Questões
Começo pela tradicional configuração de Belo Monte como um arraial messi-
ânico e/ou milenarista. Tese euclidiana, reiterada por Maria Isaura, ela reaparece em
algumas abordagens mais recentes, como a de Levine, embora tenha sido fortemente
bombardeada por Villa. É necessário maior precisão em relação a conceitos aproxi-
mados, mas não idênticos, como expectativas adventistas imediatas e esperanças mi-
lenaristas. Nesse sentido, cabe retornar às perspectivas abertas por Monteiro, Otten
e Dobroruka. E buscar entender como Euclides chegou a tal perfil de Belo Monte.
Também é preciso maior clareza quanto à terminologia destinada a qualificar
a vivência religiosa em Belo Monte. Certamente já se avançou muito, e dificil-
mente encontraríamos hoje alguém falando, como Rui Facó, de gente que vivia
“repetindo trechos deturpados da Bíblia”.188 Mas ainda há o que fazer. Se Dobro-
ruka, em sua análise cuidadosa, empresta de Maria Isaura o conceito “catolicismo
rústico”, Villa o combate, tendo-o por inadequado. Alexandre Otten fala de “ca-
tolicismo popular”; Hoornaert propõe “cristianismo beato”. E como se incluiriam
aí as evidentes manifestações que, a rigor, não costumamos imaginar no seio do
catolicismo, mas se devem a proveniências distintas?
É ainda importante prestar atenção às relações entre o Conselheiro e sua gente.
Não convém simplesmente identificar a cosmovisão do líder com a de seu séquito,
nem estabelecer uma polarização entre ambas. Antonio Maciel de alguma forma
transita entre o universo cultural sertanejo e o de outros setores sociais, particular-
mente o eclesiástico; as prédicas a ele atribuídas o indicam. O próprio título de Con-
selheiro, anexado com o tempo ao seu nome, aponta na mesma direção. Otten parece
sugerir uma complementaridade entre ambas as visões, enquanto outros nem se dão
ao trabalho de diferenciá-las. Há ainda quem considere o ethos experimentado em
Belo Monte uma decorrência direta dos princípios religiosos proclamados pelo Con-
selheiro. Existe aí um campo fértil para ulteriores aprofundamentos.
Este livro se debruça sobre estes dois mundos, o do Conselheiro e o de sua
gente, não de todo identificados, a partir da perspectiva da apropriação da Bíblia
que neles se deu. Mas, reconhecendo que a problemática é mais complexa, aborda,
na mesma perspectiva, os olhares eclesiástico e dos envolvidos diretamente na guer-
ra que destruiu o arraial, representados pela figura do jornalista e militar Euclides
da Cunha. Imagino que de alguma forma nossa abordagem seja iluminadora (de
algumas) das tensões e encontros que fizeram a vida e a morte de Belo Monte.
Perceber-se-á como nos encontramos diante de universos culturais e simbólicos
diferenciados, mas surpreendentemente relacionados, que de alguma forma expli-
cam como a emergência de Belo Monte se tornou possível, mas também como sua
eliminação foi tida como uma urgência.
90
O olhar
Este livro situa-se no campo de intersecção entre várias áreas do saber, mor-
mente a História e a Antropologia. Alguns temas específicos também oferecem su-
gestões promissoras. Identifico algumas referências que orientam meu olhar sobre
a saga de Belo Monte.
História e Antropologia
as percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem es-
tratégias e práticas [... Estão] sempre colocadas num campo de concorrências e
de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação.
As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para
compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua
concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio.196
não o sujeito histórico, ou o grupo de sujeitos históricos que porta uma formação
ou consciência política, ou ainda aqueles que, com base numa certa prática social
do discurso, desenvolvem uma configuração organizada e polarizada [...] As pessoas
comuns são [...] aquelas que se inserem num dado modo de vida – do qual emana
uma certa experiência – que, por sua vez, faz emergir uma cultura que lhe é, via de
regra, correspondente.207
uma sociedade governada [...] pelo costume. Havia práticas agrárias costumeiras,
formas costumeiras de iniciação às artes de oficio (aprendizagem), expectativas cos-
tumeiras quanto a certos papéis (domésticos ou sociais), modos de trabalho costu-
meiros e expectativas consuetudinárias, bem como “desejos” ou “necessidades”.209
Não estranhará, portanto, encontrar a igreja como local de reunião das mulheres
para fixar o preço dos cereais.218 Ou então, nas portas das igrejas, folhetos convocan-
do os pobres à rebelião.219 Vieram à tona convicções arraigadas e valores tradicionais,
segundo os quais “não parecia ‘natural’ que um homem lucrasse com as necessidades
dos outros, e quando se admitia que, em tempos de escassez, os preços dos ‘artigos de
primeira necessidade’ deviam continuar no seu nível habitual”.220 Havia, portanto,
a sensação de um consenso comunitário a ser defendido, nas diversas manifestações
públicas das multidões, contra as agressões do mercado livre.221
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 95
Apropriação/Recepção/Inscrição
são recebidas por indivíduos que estão situados em contextos sócio-históricos espe-
cíficos, e as características sociais destes contextos moldam as maneiras pelas quais
as formas simbólicas são por eles recebidas, entendidas e valorizadas. O processo
de recepção não é um processo passivo de assimilação; ao contrário, é um processo
criativo de interpretação e avaliação no qual o significado das formas simbólicas é
ativamente constituído e reconstituído. Os indivíduos não absorvem passivamente
formas simbólicas mas, ativa e criativamente, dão-lhes um sentido e, por isso, produ-
zem um significado no próprio processo de recepção [...] As maneiras pelas quais
as formas simbólicas são entendidas e pelas quais são avaliadas e valorizadas podem
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 97
diferir de um indivíduo para outro, dependendo das posições que eles ocupam
em instituições ou campos socialmente estruturados [...] Ao receber e interpretar
formas simbólicas, os indivíduos estão envolvidos em um processo contínuo de
constituição e reconstituição do significado [...].229
Mas até aqui se insistiu em uma faceta da questão: o efeito que a leitura pro-
duz no leitor, na relação que estabelece com o que é lido. Há que se considerar
também o passo que daí decorre: como, a partir do que foi lido e assumido, o leitor
(singular e/ou comunitário) impregna de significados as experiências que vive, e
ao fazê-los, reinventa-as, redireciona-as: “pense-se na frequência com que a leitura
alterou o curso da história – a leitura de Paulo por Lutero, a leitura de Hegel por
Marx, a leitura de Marx por Mao”.232 Mas não basta a constatação: é preciso dar o
98
__________
NOTAS
106 Para citar alguns exemplos, o período dos centenários viu surgirem as re-
edições dos trabalhos de Manoel Benício, Alvim Martins Horcades e Constantino
Nery (para os dados completos, ver bibliografia no item “Fontes”).
107 João Arruda. Canudos: messianismo e conflito social..., p.15.
108 João Arruda. Canudos: messianismo e conflito social..., p.16-17.
109 João Arruda. Canudos: messianismo e conflito social..., p.10.
110 João Arruda. Canudos: messianismo e conflito social..., p.81.
111 João Arruda. Canudos: messianismo e conflito social..., p.91.
112 João Arruda. Canudos: messianismo e conflito social..., p.82. Arruda não
cita que textos apócrifos seriam esses.
113 João Arruda. Canudos: messianismo e conflito social..., p.82.
114 José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro inimigo:
a guerra simbólica contra Canudos. Edufba, Salvador, 1995; A ideologia dos discur-
sos sobre Canudos. Dissertação de Mestrado, UFBA, Salvador, 1979.
115 José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro inimi-
go..., p.187.
116 José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro inimi-
go..., p.187.
117 Euclides da Cunha. Os sertões..., p.278.-279.
118 José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro inimi-
go..., p.119.
119 José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro inimi-
go..., p.107-146.
120 José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro inimi-
go..., p.123.
121 José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro inimi-
go..., p.118-119: “É precisamente essa determinação insensata de reeditar uma an-
terioridade consumada [da Igreja Católica] que configura a grandeza e o malogro
da empresa profética de Antônio Conselheiro” (p.119).
122 Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra. Ática, São Paulo, 1995.
123 Marco Antonio Villa. Canudos: o campo em chamas. Brasiliense, São
Paulo, 1992.
124 Marco Antonio Villa. Canudos: o campo em chamas..., p.9.Na obra
seguinte o autor não diz diferente: “procurei retratá-los [os acontecimentos relati-
vos ao arraial conselheirista] como eles eram e não como eu gostaria que fossem”
(p.10).
125 Ivânia Campigotto Aquino mostrou vários exemplos em que as opções
subjetivas de Villa se fazem presentes na redação de seu trabalho (Literatura e his-
tória em diálogo: um olhar sobre Canudos. UPF, Passo Fundo, 2000, p.71-88).
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 109
Para uma crítica importante a aspectos gerais da obra de Villa pode-se ler Edwin
Reesink. “Curiosidades em torno de Canudos”. In: http://www.portfolium.com.
br/resenha-edwin.htm (10/03/03).
126 Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.43.
127 Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.39-43.
128 Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.11. Um pouco antes
constatava: “Há uma certa insistência deliberada em retirar o componente religioso
[das análises sobre Belo Monte], como se a presença da religião colocasse o movi-
mento em um patamar inferior frente a movimentos laicos” (p.9).
129 Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.83.
130 Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.81 e 39, respecti-
vamente.
131 Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.203.
132 Penso aqui no já citado O queijo e os vermes (p.24-26).
133 Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.12.
134 Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.231-234.
135 Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.239. Em relação ao
messianismo, Villa afirma que Antonio Conselheiro não estimulou nenhum reco-
nhecimento de sua pessoa nesse sentido e que no vilarejo não se viveu nenhuma
desse teor (p.240-241).
136 Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.236.
137 Robert Levine. O sertão prometido: o massacre de Canudos. Edusp, São
Paulo, 1995. A avaliação é de Eduardo Hoornaert. (Os anjos de Canudos: uma re-
visão histórica. Vozes, Petrópolis, 1997, p.103).
138 Robert Levine. O sertão prometido…, p.30.33.
139 Nesse sentido, deve ser lida uma vigorosa crítica à obra de Levine, por
Mario Maestri (“Elogio à dominação: R. M. Levine e a república sertaneja de Belo
Monte”. In: http://www.portfolium.com.br/resenha-maestri.htm [09/03/03]).
140 Robert Levine. O sertão prometido…, p.179. A última frase é simples-
mente ridícula...
141 Robert Levine. O sertão prometido…, p.288 (a citação é de Gurevitch).
142 Robert Levine. O sertão prometido…, p.308.
143 Robert Levine. O sertão prometido…, p.301. Logo no início do livro
se diz que as milhares de pessoas que seguiam o Conselheiro eram atraídas por
sua “loucura carismática” (p.22). No fim do livro a sentença definitiva: nos
seus últimos anos, portanto em Belo Monte, a “psicose” do Conselheiro se
encontrava “bem mais séria” (p.339).
144 Robert Levine. O sertão prometido…, p.304, 288 e 193, respectiva-
mente.
110
198 Clifford Geertz. A interpretação das culturas. LTC, Rio de Janeiro, 1989,
p.15 (foi preciso alterar a pontuação adotada pela tradução, para que o texto se
fizesse legível).
199 Adam Kuper. Cultura: a visão dos antropólogos..., p.132.
200 Adam Kuper. Cultura: a visão dos antropólogos..., p.140. Num artigo
intitulado “A religião como sistema cultural”, Geertz afirma que cultura “denota
um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbo-
los, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio
das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento
e suas atividades em relação à vida” (A interpretação das culturas..., p.103). São
esses significados que devem ser descritos e decifrados.
201 Aletta Biersack. “Saber local, história local: Geertz e além”. In: Lynn
Hunt (org.) A nova história cultural. 2 ed., Martins Fontes, São Paulo, 2001,
p.105-113.
202 Adam Kuper. Cultura: a visão dos antropólogos..., p.157.
203 Roger M. Keesing, citado por Aletta Biersack (“Saber local, história lo-
cal...”, p.110).
204 Giovanni Levi. “A micro-história”. In: Peter Burke (org.) A escrita da
História: novas perspectivas. 2 ed., Unesp, São Paulo, 1992, p.149.152.
205 Marshall Sahlins. Ilhas de história. Zahar, Rio de Janeiro, 1999, p.63. Em
Sahlins a articulação História – Antropologia aparece de imediato: “o que os antropólo-
gos chamam de ‘estrutura’ – as relações simbólicas de ordem cultural – é um objeto his-
tórico” (Ilhas de história., p.7-8). E o caminho já está aberto: “Os antropólogos elevam-se
da estrutura abstrata para a explicação do evento concreto. Historiadores desvalorizam o
evento único em favor das recorrentes estruturas subjacentes. E também paradoxalmente,
os antropólogos têm sido tão diacrônicos em pontos de vista quanto os historiadores têm
sido sincrônicos [...] O problema agora pertinente é o de explodir o conceito de história
pela experiência antropológica da cultura” (Ilhas de história..., p.93).
206 Marshall Sahlins, citado por Adam Kuper. Cultura: a visão dos antropó-
logos..., p.229.
207 Luiz Geraldo Santos da Silva. “Canoeiros do Recife: história, cultura e
imaginário”. In: Jurandir Malerba (org.) A velha História: teoria, método e histo-
riografia. Papirus, Campinas, 1996, p.94.
208 Jim Sharpe. “A História vista de baixo”. In: Peter Burke (org.) A escrita
da História..., p.61-62. Veja coletânea de artigos no volume organizado por Fre-
derick Kranz, A outra história: ideologia e protesto popular nos séculos XVII a
XIX (Zahar, Rio de Janeiro, 1990). Nota-se claramente o influxo do marxismo,
presente não só em Thompson, mas em Eric J. Hobsbawm e Keith Thomas, outros
cultores da “história vista de baixo”.
114
tornam mais visível uma “economia moral” que percorre todo o século XVIII inglês e
perturba continuamente o governo e o pensamento econômico de um Adam Smith,
que procura por todos os meios eliminar da economia “imperativos morais” tidos por
“importunos” (p.161). Eles reivindicam uma consciência popular insatisfeita, e negam
o pretenso consenso que haveria de levar à Revolução Industrial e ao capitalismo liberal.
216 As inquietações de Thompson giram em torno da “formação cultural das
atitudes e da consciência da classe trabalhadora” (Suzanne Dezan. “Massas, comunida-
de e ritual na obra de E. P. Thompson”..., p.66).
217 Book of orders de 1630, citado em “A economia moral da multidão inglesa
no século XVIII”..., p.198-199.
218 Edward P. Thompson. “A economia moral da multidão inglesa no século
XVIII”..., p.184.
219 Edward P. Thompson. “A economia moral da multidão inglesa no século
XVIII”..., p.178. Mas seria preciso cobrar a Thompson uma explicitação maior da ma-
triz religiosa dessa “economia moral”.
220 Edward P. Thompson. “A economia moral da multidão inglesa no século
XVIII”..., p.198.
221 Edward P. Thompson. “A economia moral da multidão inglesa no século
XVIII”..., p.152.
222 Dominique Julia. “Religião: história religiosa”. In: Jacques Le Goff e Pierre
Nora (org.) História: novas abordagens. 3 ed., Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1988.
p.110-112 (original de 1974).
223 Em Ginzburg confluem as várias tendências interpretativas comenta-
das acima, desde as preocupações historiográficas advindas dos Annales até aque-
las trazidas pela Antropologia Cultural, passando pelas questões suscitadas pela
“História vista de baixo” de Thompson, sem contar uma particular influência do
marxismo de Gramsci. Para se avaliar a importância do trabalho do historiador
italiano leia-se, de Jacqueline Hermann, “História das religiões e religiosidades”.
In: Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas (org.) Domínios da História...
p.343-345.
224 Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes..., p.25.
225 Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes..., p.25. Este livro trata exatamente
de Menocchio; já os benandarti, grupo da mesma época, praticante de cultos de
fertilidade de matriz não cristã, são estudados por Ginzburg em Os andarilhos do
bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII (2 ed., Companhia das
Letras, São Paulo, 2001).
226 Costumam ainda ser destacadas a explicitação do “paradigma indiciá-
rio”, baseado na observação dos detalhes, na consideração do que aparentemente
tem pouca ou nula importância (“Sinais: raízes de um paradigma indiciário". In:
116
Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Companhia das Letras, São Paulo,
1999, p.143-179), e uma sugestiva apresentação, inspirada em Bakhtin, do con-
ceito de “cultura popular”, a partir do que chamou de “circularidade cultural”,
ou seja, “a influência recíproca entre a cultura das classes subalternas e a cultura
dominante” (O queijo e os vermes..., p.24).
227 Artur Oscar Ribeiro Guimarães. Relatório apresentado ao Presidente da Re-
pública dos Estados Unidos do Brasil, citado por José Augusto Cabral Barretto Bastos.
Incompreensível e bárbaro inimigo: a guerra simbólica contra Canudos. Edufba, Sal-
vador, 1995, p.148.
228 Roger Chartier. A história cultural: entre práticas e representações. Difel/
Bertrand Brasil, Lisboa/Rio de Janeiro, 1990, p.26-27.
229 John B. Thompson. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na
era dos meios de comunicação de massa. 6 ed., Vozes, Petrópolis, 2002, p.201-202
(destaque do autor).
230 Michel de Certeau. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. 6 ed., Vo-
zes, Petrópolis, 2001, p.264-265.269-270 (citando Michel Charles). Peter Burke
afirma: “o que é recebido é sempre diferente do que foi originalmente transmiti-
do, porque os receptores, de maneira consciente ou inconsciente, interpretam e
adaptam as ideias, costumes, imagens e tudo o que lhes é oferecido” (Variedades de
história cultural. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000, p.248.249).
231 Peter Burke. As fortunas d’O cortesão: a recepção europeia a O cortesão
de Castiglione. Unesp, São Paulo, 1997, p.14.
232 Robert Darnton. O beijo de Lamourette..., p.172.
233 As duas variantes podem ser ilustradas, respectivamente, pelos trabalhos
de Burke e Ginzburg. Analisando as diversas leituras que O cortesão (publicado em
1528) recebeu, Burke constata: “Durante a própria Renascença, esse livro foi lido por
razões muito diferentes. Ele foi tratado como guia de conduta na época, não para os
valores de uma época passada [...] Os inocentes criticaram-no por ser cínico demais,
e os cínicos, por ser inocente demais. Ele tem sido visto como idealista e pragmático,
sério e frívolo” (As fortunas d’O cortesão..., p.7). O que se poderá dizer das leituras da
Bíblia e seus enunciados, em palavras, imagens, temas? Por outro lado, o Menocchio
estudado por Ginzburg teve acesso a uma literatura muito variada, que ia da Bíblia a
crônicas de viajantes, que ele absorvia agressivamente (o termo é de Darnton), esbo-
çando a partir daí uma cosmovisão radicalmente distinta daquela cristã hegemônica.
Por isso Ginzburg procura “a chave de sua leitura, a rede que Menocchio de maneira
inconsciente interpunha entre ele e a página impressa – um filtro que fazia enfatizar
certas passagens enquanto ocultava outras” (O queijo e os vermes..., p.89).
234 Robert Darnton. O beijo de Lamourette..., p.148-149.
II
O ARRAIAL REBELDE E OS
BENEFÍCIOS DO BOM JESUS:
UM PANORAMA DO BELO MONTE DE
ANTONIO CONSELHEIRO E SUA GENTE
118
uma horda de mais de 500 homens, carregados com armas de fogo, cacetes e chuços,
fora os índios de Mirandela, com arcos e flechas, percorreu as ruas com ameaças,
insultos e impropérios, protestando que se de novo fossem colocadas as tabuletas
seriam outra vez despedaçadas, e que ninguém, absolutamente ninguém, pagaria
um real de imposto porque não reconheciam e nem obedeciam as leis da república.5
segunda tropa, enviada logo depois, voltou à capital quando já estava no meio do cami-
nho, por razões que o próprio barão de Jeremoabo dizia desconhecer, mas lamentava.7
Belo Monte, arraial edificado a partir destes movimentos anti-fisco, será o
baluarte da rebeldia que se espalha: “não pago, por que não vai cobrar em Canu-
dos?”8 Com efeito, os incidentes que provocaram Masseté viraram exemplo mau,
contagioso: “Na povoação do Uauá em princípio de maio levantou-se um grupo
contra o agente Joaquim José Rodrigues concitando o povo para não pagar direitos,
e este vendo-se sem força pediu exoneração ficando por algumas feiras acéfala a
arrecadação”.9
Euclides minimizou a importância destes eventos em torno de Masseté, o
que acabou levando boa parte da historiografia posterior a fazer o mesmo. Avalia-
ções depreciativas, qualificando pejorativamente os manifestantes como fanáticos
(o termo preferido, de uso generalizado nos mais diversos documentos), jagunços,
criminosos, canibais e assemelhados foram a tendência dominante, desde muito
cedo, e enquanto durou o arraial conselheirista. Mas urge uma atenção maior.
Masseté apresenta aspectos significativos, e é preciso perceber a lógica destes epi-
sódios que culminaram com o confronto armado e com o imediato aparecimento
de Belo Monte.
Na verdade, a centralidade desses acontecimentos pode ser considerada em
três dimensões. Primeiramente eles permitem vislumbrar o quadro de dificuldades
em que vivia a população sertaneja que mais tarde engrossará a população da vila
conselheirista. A economia sertaneja dos séculos XVIII e XIX assentava-se num
tripé básico: a pecuária (oriunda dos caminhos abertos pela “civilização do couro”,
de que falava Capistrano de Abreu), a cultura do algodão, e, nos espaços que ainda
restavam, a economia de subsistência, que florescia na contramão da prosperidade
econômica advinda de exportações. Assim, o sertão viu, desde o tempo da Colônia,
pecuária e agricultura ocupando a terra em grande escala em fazendas por todo
lado.10 Deste quadro maior dependia a subsistência da população, residente e tra-
balhadora nelas como agregado, meeiro; de qualquer forma sujeita ao fazendeiro,
disputando a pouca água com rebanhos e plantações cujos frutos se destinavam
ao mercado externo. Também porque este modelo exportador estava decadente,
a economia de subsistência apresentava certo dinamismo na segunda metade do
século XIX. Os novos impostos incidirão justamente aí.
Além disso, tais eventos mostram a importância do que já foi chamado “cam-
po da tradição”: um conjunto de valores e práticas populares confrontado com
mudanças, sociais e políticas, consideradas prejudiciais. Aí temos a raiz básica dos
protestos contra os impostos e, em última análise, do estabelecimento de Belo
Monte. Segundo o barão de Jeremoabo, os protestos populares são dirigidos a todos
os impostos. Mas ele é contraditado por um morador de Queimadas, que escreve
122
ao Jornal de Notícias garantindo que o Conselheiro “não aconselha o povo que dei-
xe de pagar impostos, como informaram à ilustrada redação do Diário; aconselhou,
sim, num dos lugares por onde passou, que não pagassem os impostos municipais
por serem excessivamente vexativos, o que é coisa muito diversa”.11
É praticamente certo que o Conselheiro, ainda em vida andarilha, não foi o
mentor dos referidos protestos, mas se envolveu neles quando já estavam em curso.
A documentação disponível a respeito destes conflitos não permite conclusão mais
taxativa, mas a busca, e posterior consecução, do apoio e participação de Antonio
Conselheiro e seu séquito nas manifestações reforça a sensação de estarmos diante
de “multidões sendo inspiradas por tradições políticas e morais que legitimam e até
prescrevem sua violência”.12 Os pronunciamentos do beato a respeito dos inciden-
tes que estão ocorrendo dão consistência de palavra e de sentido aos protestos da-
quela gente anônima: isso pode verificar-se no episódio seguinte, que, aliás, enfeixa
vários aspectos acima comentados:
À feira em questão [na vila de Chorroxó] chegara uma pobre curuca [Benta], a ven-
der uma esteira que deitara no chão. O arrematante do imposto exigia cem réis pela
porção de terreno que a esteira e a pobre velha ocupavam. Esta, que apreciava o va-
lor da esteira em oitenta réis, reclamou, queixou-se em voz alta ao povo, chorando,
lastimando-se [...] Conselheiro, na prédica que fez nesta noite, referiu-se ao caso da
velhota alegando: “eis aí o que é a República, o cativeiro, trabalhar somente para o
governo. É a escravidão anunciada pelos mapas que começa. Não viram a tia Benta,
é religiosa e branca, portanto a escravidão não respeita ninguém?!”13
Cabe, portanto, falar aqui numa “economia moral da multidão”, para usar os
termos de Thompson: os homens e mulheres participantes das manifestações con-
tra os recém-criados tributos nas vilas sertanejas “estavam imbuídos de que estavam
defendendo direitos ou costumes tradicionais; e de que, em geral, tinham o apoio
do consenso mais amplo da comunidade”. E tais manifestações se desenvolveram
“dentro de um consenso popular a respeito do que eram práticas legítimas e ilegíti-
mas” no tocante à arrecadação dos tributos.15 Assim, a distinção entre os impostos
tradicionais e os recém-estabelecidos é fundamental para se perceber o espírito das
manifestações e evitar expressões generalizantes, que só contribuíram para a desca-
racterização de seus sujeitos e objetivos.
Além disso, os novos impostos incidem no espaço talvez único de organização,
socialização e alguma autonomia de que dispunha aquela gente sem-terra (junto
com alguns poucos pequenos proprietários): a feira. Isso é particularmente grave,
pois, principalmente no sertão, esse espaço era fundamental na configuração da
sociabilidade popular: além das trocas, vendas e compras, a feira é o lugar da co-
municação, da confecção de acordos, e mesmo de lazer, podendo ainda propiciar a
oportunidade de audiências com autoridades.
Por último, mas não menos importante, tais eventos evidenciam que o protes-
to contra a nova ordem político-econômica que está sendo implantada sem romper
com os velhos esquemas, baseados no latifúndio e no poder dos coronéis, e one-
rando ainda mais a já precária vida dos sertanejos, se articula indispensavelmen-
te àquelas motivações de ordem especificamente teológica ou religiosa (separação
igreja-estado, instituição do casamento civil e de eleições), normalmente salienta-
das para explicar a oposição do Conselheiro e sua gente à República.
Desta forma, os protestos e as quebras de editais de impostos parecem tradu-
zir conscientemente a defesa de valores, interesses e formas próprias da vivência
cotidiana no contexto daquele cenário coronelista. E se em tantos momentos se-
melhantes a violência não é “casual e sem limites, mas dirigida a alvos definidos
e escolhida dentro de um repertório de punições e formas de destruição tradicio-
nais”16, aqui não será diferente: os documentos veiculadores da extorsão, as tabule-
tas e editais com as taxas, são destruídos no próprio lugar em que o poder estatal se
manifestava, as câmaras municipais.
Assim, quando Machado de Assis, com sua habitual perspicácia e ironia, der o
tom da percepção que o incidente de Masseté, provocou na capital, estará acertan-
do em cheio, ao destacar um componente básico da mentalidade que viabilizava
tais manifestações: “Um fanático anda aconselhando aos contribuintes que não
paguem impostos. Já destroçou cinquenta policiais, matando alguns; marcharam
contra ele forças de linha. Não deis a César o que é de César, tal é a máxima desse
chefe de seita”.17
124
Deve se recordar quando lhe escrevi no tempo do governo do Sr. Rodrigues Lima,
de eterna memória, sobre a questão de Masseté, onde dizia ou que o governo não
abafava logo esta revolta no começo, depois se enraizaria, outras iriam sucedendo-
lhe, depois o governo encontraria sérias dificuldades para debelá-las...21
Esta ruptura definitiva (não de todos os padres) terá papel decisivo na consti-
tuição de Belo Monte, que, entre outros aspectos, ensaiará uma forma peculiar de
autonomia em suas expressões religiosas e de relação com a instituição eclesiástica.
Ela consolidará a liderança do Conselheiro frente a seu séquito. Ao mesmo tempo,
este movimento do clero sertanejo, afastando-se do Conselheiro, se articula com
outro, em curso nas mais altas esferas da igreja baiana (e brasileira, estimulada
pelo próprio papa Leão XIII24) de reaproximação com a República, em busca de
recuperar a situação privilegiada que usufruiu até a queda do Império. O resultado
mais evidente deste movimento, em nosso âmbito, será a missão dos frades capu-
chinhos, enviada a Belo Monte em 1895, a pedido do governo baiano, visando
dispersar a população estabelecida no arraial. Assunto para mais adiante.25
Assim, as manifestações em repúdio aos novos impostos municipais, de que
participaram o Conselheiro e seus seguidores em várias vilas do sertão baiano, e que
desembocaram no incidente de Masseté, não podem ser minimizadas, por colocarem
em cena fatores fundamentais da vida baiana (e brasileira), decisivos para a compre-
ensão da trajetória ousada, acidentada e terrível de Belo Monte. A precariedade da
vida da gente sertaneja encontrou espaço de protesto e rebeldia nas manifestações,
que ganharam peso e rumos particulares pela presença legitimadora do Conselheiro
com suas palavras e de sua gente. As oligarquias políticas da Bahia se viram atingidas;
seus titubeios no agir não negaram, em nenhum momento, a certeza da necessidade
de debelar aqueles focos de rebeldia e, mais tarde, de destruir Belo Monte. Também
os movimentos da instituição eclesiástica, em seus vários graus de comando, indicam
as posturas que serão tomadas em relação ao Conselheiro e ao arraial que estabelece-
rá. Afinal, como dirá mais tarde frei João Evangelista, “a igreja condena as revoltas”.26
viável negar ao Conselheiro preocupações deste tipo. Ele próprio, dois anos mais
tarde, diante de frei João Evangelista, que lhe censura os homens armados que
encontrou no caminho, expressará as apreensões que o episódio de Masseté lhe
suscitou, decisivas para seus passos futuros e modificadoras de seu cotidiano, bem
como preocupações quanto a sua proteção:
É para minha defesa que tenho comigo estes homens armados, porque v. revma. há de
saber que a polícia atacou-me e quis matar-me no lugar chamado Maceté (sic), onde
houve mortes de um e de outro lado. No tempo da monarquia deixei-me prender,
porque reconhecia o governo; hoje não, porque não reconheço a República.32
E, mais ainda, eram terras sagradas aquelas, pertencentes, “numa área de uma
légua em quadra, [...] à capela de Santo Antônio desde tempos remotos”.35 O lugar
onde Belo Monte surgiu era, mesmo, único. O velho arraial de Canudos, à beira
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 129
do rio Vaza-barris, teria, antes da chegada de Antônio Conselheiro com sua gente,
cerca de 250 habitantes. Havia ali “a igreja velha e duas casas de negócio”.36 Mas
começa a ampliar-se, ao mesmo tempo que muda de nome37, tornando-se lugar ao
mesmo tempo de refúgio, de construção de alternativas e de vivência da fé junto ao
“pai Conselheiro”. E, efetivamente, o arraial receberá nos meses seguintes alguns
milhares de pessoas, das mais variadas proveniências. E terá alcançado desenvolvi-
mento surpreendente. As evidentes reservas das autoridades locais não terão impe-
dido – muito pelo contrário – o deslocamento das famílias. E um certo vácuo na
ação direta da polícia/política baiana também concorreu nesse sentido.
É hora então de fazer a pergunta pela proveniência dos diversos contingentes que
seguiram o Conselheiro em sua vida andarilha, participaram com ele das rebeliões
contra os impostos, do enfrentamento em Masseté, e, finalmente, se estabeleceram
em Belo Monte no curto espaço (pouco mais de quatro anos) de sua atribulada
existência. Algo a esse respeito já foi falado, mas há mais a ser comentado, pois o
vilarejo conselheirista foi verdadeira criação histórica e cultural, não redutível aos
esquemas das imposições do coronelismo vigente ou do catolicismo dominante. Para
lá acorreram “o pardo, a tapuia domesticada, o preto, o curiboca, o mulato, o cabra e
o branco, toda a descendência resultante da miscigenação nordestina”.38 Basicamente
são famílias, mas na maioria mulheres oriundas das inúmeras fazendas espalhadas
pelo sertão, desejosas de livrar-se de sua situação presente, encontrar-se com o Con-
selheiro e partilhar com ele o cotidiano. Gente de praticamente todas as vilas em
redor. No começo de 1894, em uma única semana saíram de Tucano rumo ao Belo
Monte “umas 16 a 20 famílias, é um horror!”39 Outro testemunho dá conta de que “o
Antônio Conselheiro continua a ser o motivo da saída de muita gente daqui, e outros
pontos, que ameaça ficarão despovoados. O êxodo agora de nossa gente é grande e o
Governador não pode agora tomar providências, que são urgentes”.40
Os testemunhos são unânimes em destacar tanto a quantidade de pessoas que
buscaram Belo Monte quanto o impacto provocado por tais deslocamentos. No
fim de 1894 “continua em grosso o êxodo para Canudos”41, mas o movimento ti-
nha mais tempo: “o povo em massa abandonava as suas casas e afazeres para acom-
panhá-lo [a Antonio Conselheiro] [...] A população vivia como que em delírio ou
êxtase”. O resultado não podia ser outro:
de Pernambuco, Piauí, Ceará, Alagoas, Sergipe, Minas Gerais e São Paulo, não fal-
taram romeiros à Jerusalém do Vaza-barris. Canudos transbordava de gente que ia
compartilhar a sorte dos seus irmãos já glorificados na luta; povoavam-se os montes
e os vales; edificava-se por toda a parte no grande perímetro da cidadela; o que se
queria era um cantinho, um abrigo, nessa terra desejada.48
Chamo a atenção a dois grupos, senão por sua importância numérica, difícil
de estabelecer, pela relevância simbólica e política que carregam: os “negros treze
de maio” e os indígenas. Quanto aos primeiros, ausentes por completo do olhar de
Euclides, cabe notar que na região por onde o Conselheiro passou anos peregrinan-
do existiram vários quilombos. E testemunhos ressaltam a presença do contingente
negro no séquito do Conselheiro:
A gente escrava já era atenta ouvinte das prédicas do Conselheiro desde quan-
do iniciou sua vida errante, quase vinte anos antes do estabelecimento de Belo
Monte.52 E no arraial essa marca se manteve: “Os vultos que estão desenvolvendo
a revolta [refere-se ao conflito com as tropas de Moreira César], é o mesmo conse-
lheiro com seus sequazes dentre estes soldados desertores de diversos Estados e o
povo do 13 de maio, que é a maior parte”.53 Em resumo,
lham de plantações. As terras mais arenosas não deixam de ser cultivadas, princi-
palmente pelos homens, geralmente “metidos nas suas calças de algodão listrado,
camisas brancas da mesma fazenda e calçando alparcas de couro cru”.63 Aqui e ali
plantação de pomares e criação de rebanhos de cabras e bodes. O testemunho a
seguir é insuspeito, oriundo de alguém que a toda hora qualifica os conselheiristas
como criminosos e vagabundos:
nos tempos ditosos dessa vida sem normas seguiam para diferentes pontos distantes,
onde o solo era suscetível de cultura; faziam as suas derrubadas na mataria virgem,
de quem quer que fosse, pelas encostas das serras ou pelas margens dos rios; dei-
tavam-lhes fogo para reduzirem a cinza as madeiras desgalhadas; cercavam o sítio
queimado, depois, e regressavam a Canudos satisfeitos do seu trabalho. Na estação
das chuvas voltavam às roças, dessa forma preparadas; faziam as suas plantações de
mandioca, milho, feijão, abóboras e com as recoltas sucessivas que transportavam
em cargueiros, abasteciam a terra santa de recursos alimentícios para um ano intei-
ro.64
Quanto aos bodes e cabras, sua criação desempenhou papel decisivo na eco-
nomia de Belo Monte. Foi a base da Canudos anterior ao Conselheiro e, com
a gente dele, gerou divisas significativas, inclusive da exportação para fora do
país: “O maior comércio era o de couros, especialmente de bode e carneiro, que
abundam como peste pelas caatingas [...] Estava feito o sal [...] para suprir os
inúmeros curtumes que ladeavam a beira do Vaza-barris”.65
Na proporção de duas para cada homem, chegando na guerra a três, as mu-
lheres, “trajadas pobremente”, algumas exibindo “toilettes relativamente apresen-
táveis”, fazem a farinha, ou o sal. Moças, que às vezes “não tinham mais do que a
saia de chita ordinária, ou de algodão branco, comum, sobre a camisa aliás frou-
xa, descuidosa, que expunha a olhares de vadios os seios e braços completamente
nus”, tecem redes. Professoras ensinavam a meninos e meninas conjuntamente66
e tiveram uma rua nomeada com a atividade delas. Euclides disso sabia, de cem
alunos e da escola, embora em Os sertões tenha omitido essa informação decisi-
va.67 Das rezadeiras se falará à frente.
Jovens à caça. Ferreiros nas bigornas fabricam foices, facas e machados. A
feira na praça das igrejas. O mutirão permite que todos enfrentem a escassez
constante. E princípios religiosos reforçam a tendência distributivista da organi-
zação ensaiada.
E a arqueologia tem sugerido que Belo Monte tenha sido o pivô de um
complexo sistema no qual formas alternativas de trabalho se desenvolveram e a
sobrevivência cotidiana foi construída:
134
[...] cartas e mapas [faziam] ressurgir uma Canudos cada vez mais dilatada [...] co-
meçávamos a articular as partes de um imenso sistema que via seus limites confun-
direm-se aos próprios limites da bacia hidrográfica do Vaza-Barris. Para entender
Canudos, teríamos de colher informações na Várzea da Ema, para saber se de fato
era de lá que vinham os suprimentos proteicos, para além da Serra Vermelha, na
região da Toca de Pedra. [...] E a pólvora era fabricada em Canudos? Trazida do São
Francisco? Ou garantida dessas duas formas?68
Desta forma, se é verdade que a fronteira da penúria não chegou a ser trans-
posta, nem por isso Belo Monte deixou de representar, para a população que a
ela se dirigiu e que com ela manteve expressivo contato, novas possibilidades de
vida, manifestadas, entre outras coisas, no significativo comércio estabelecido com
diversas aldeias da região, atraindo pessoas com algumas posses a mais, como An-
tônio Vilanova; com sua gente, ele exerceu forte liderança no terreno comercial, a
ponto de seus vales serem amplamente aceitos na região como substitutos do di-
nheiro.69 Euclides, a contragosto, reconheceu: “O certo é que [Antonio Conselhei-
ro] abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas e produtos do trabalho
comum”.70 Honório Vilanova não teve dificuldade em identificar no Belo Monte
“um pedaço de chão bem-aventurado. Não precisava nem mesmo de chuva. Tinha
de tudo. Até rapadura do Cariri [...] Não havia precisão de roubar em Canudos,
porque tudo existia em abundância, gado e roçado, provisões não faltavam”.71
Assim, trabalho coletivo e a apropriação também coletiva de parte de seus
produtos fundam uma outra lógica econômica, reforçada pelo caixa comum des-
tinado a atender as necessidades do arraial, especialmente de quem portasse mais
necessidades e fosse incapaz de supri-las. Feito de parte do excedente da produção
e dos salários de quem eventualmente trabalhasse nas redondezas, nutria-se tam-
bém dos recursos que os novos habitantes do arraial traziam, bem como de doa-
ções que peregrinos deixavam e de esmolas conseguidas nas redondezas. A prática,
tornada preceito, rezava: “Quem tiver bens, disponha deles e entregue o produto
da venda ao bom Conselheiro, não reservando para si mais que um vintém em
cada cem mil réis”.72 Já vimos o barão de Jeremoabo mencionando a “aluvião de
famílias”, desejosas de tudo “vender, apurar algum dinheiro e ir repartir com o
Santo Conselheiro”, indício claro, para ele, de comunismo.73 O resultado é mar-
cante: “[O Peregrino] não dormia com um tostão de um dia para o outro. Se rece-
bia esmolas, logo as passava a quem se achasse junto dele. Ou mandava comprar
panos para vestir os necessitados”.74
O que para Euclides soava aberração, para o barão denunciava comunismo,
para a gente belomontense instituía a solidariedade como valor econômico, viabi-
lizador da existência em outros moldes:
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 135
Cada pessoa tinha o direito de conservar sua criação e roçado. No ato da chegada,
cada um entregava metade do que possuía. Os desvalidos eram alimentados. Os
demais viviam do seu trabalho [...] Canudos ia, assim, vivendo sob a vigilância de
Conselheiro. Havia gado para o açougue. Os paióis continham provisões. As roças
estavam plantadas. Enquanto isso, a influência de Conselheiro se estendia pelos
sertões, aumentando, por isso, o temor dos fazendeiros e das autoridades.75
Edificavam
Belo Monte se tornava visível pelo afluxo cada vez maior de pessoas que a
ela se dirigiam, esvaziando as fazendas da redondeza, como já vimos o barão de
Jeremoabo lamentar. E seu porte ia tornando-se sempre mais perceptível por conta
da frenética atividade de construção de casas para receber os novos habitantes. O
engenheiro-escritor Euclides não esconde ao mesmo tempo seu incômodo e admi-
ração em relação a este empreendimento, por conta de sua quantidade e grandio-
sidade, e principalmente por sua aparente desordem, que tanta serventia haveria
de ter na guerra.
136
construídas muito toscamente, sendo as paredes feitas com paus grossos amarrados
sob varinhas e cobertos de barro branco. Os tetos de algumas eram feitos de folhas
de icó e palha cobertas de barro com pedrinhas roliças. Tinham apenas uma sala,
um quarto e um compartimentozinho que servia de cozinha e sala de jantar ao
mesmo tempo.80
Mas elas não se distinguem das casas de que a maioria dos sertanejos dispunha nos
lugares de onde vinham. E se dão conta de uma “pobreza repugnante”, não o fazem
simplesmente no tocante ao arraial, mas também ao universo em que a gente sertaneja
vivia mergulhada, bem como do contingente que ia para lá instalar-se, mesmo que
precariamente, com a mesma precariedade de seus lugares de proveniência. Mas com
esperanças renovadas e possibilidades outras. E isso Euclides não podia compreender, já
que para ele tal rusticidade e modéstia expressavam, “mais que a miséria do homem, a
decrepitude da raça”. Como seu símbolo mais eloquente, o oratório:
Às vezes cinco ou seis casas alinham-se como numa tentativa de arruamento, mas
logo adiante em ângulo reto com a direção daquelas, alinham-se outras, formando
martelo e dando ao conjunto uma feição indefinível, constituindo um largo
imperceptível e imperfeito para o qual dão simultaneamente os quintais, a frente
das casas que se enredam desordenadamente. As mais das vezes, porém, nem isso se
dá: as casas acumulam-se em absoluta desordem, completamente isoladas, algumas
entre quatro vielas estreitas, unidas outras, com as testadas voltadas para todos os
pontos, cumeeiras orientadas em todos os sentidos, num baralhamento indescrití-
vel, como se tudo aquilo fosse construído rapidamente, vertiginosamente, febril-
mente – numa noite – por uma multidão de loucos!85
E a pergunta fica, mais para surpreender que para imaginar resposta: como
terão os belomontenses viabilizado cuidados ao mesmo tempo com a guerra e com
a construção de casas, já que depois do início dos combates a população do arraial
cresceu bastante?
Mas em meio a tão frenéticas e cotidianas atividades de construção, outras
edificações se faziam tão necessárias e decisivas, como que a dar sentido ao rápido
crescimento do arraial: as igrejas, que deveriam dar a Belo Monte a expressão mais
clara de sua identidade. E Antonio Conselheiro, que em 1876 (nos dias de sua
prisão na Bahia e julgamento no Ceará) declarara que “minha ocupação é apanhar
pedras pelas estradas para edificar igrejas”91, com a sua experiência de mais de vinte
construções feitas ou restauradas (entre igrejas, capelas e cemitérios)92, se dedicou
intensamente à construção delas, tendo sido conservados vários testemunhos dan-
do conta de sua presença na coordenação das obras e na mobilização para conse-
guir recursos para elas.93 E se novas indicações quanto à datação da igreja de santo
Antônio, propondo 1896 e não 1893 como ano do seu término e inauguração,
têm razão94, pode-se dizer que Belo Monte viveu, em grande parte, em função da
edificação das “duas altivas igrejas sinistramente célebres”95, sendo que a última, a
do bom Jesus, não chegou a ser terminada, destruída que foi em meio ao bombar-
deio da quarta expedição enviada contra o arraial. Aliás, foi um incidente relativo
a madeiras compradas, e não entregues aos conselheiristas, o pretexto para o envio
da primeira expedição policial contra o vilarejo.
A construção das igrejas envolveu grande parte da gente belomontense, e ca-
lou fundo entre os inimigos e algozes do arraial:
É de se notar o lugar que têm os relatos sobre a construção das igrejas nas
memórias dos grupos indígenas envolvidos com Belo Monte97, bem como naque-
las de sobreviventes ao massacre: “Trabalhei carregando pedras para a igreja nova,
trazendo cal da Vargem, a nove quilômetros daqui. Quando a carga era muito
pesada, bastava ele [o Conselheiro] tocar, para o pessoal achar que ficava leve”.98
A leveza do trabalho duro se insere num contexto muito mais amplo, e da maior
relevância para a gente conselheirista: a abertura para o alto e a comunicação com
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 139
o outro mundo, que organizam seu mundo e seu cotidiano. E, mesmo que não
tenha sido percebido “como um centro do mundo, fulcro de um espaço sagrado”99,
Belo Monte não deixou de realizar sua “construção ritual do espaço”100: os templos
o evidenciam, com o afluxo de peregrinos, as doações, as festas. Algo que Euclides
não teria podido apreender senão pela ótica do fanatismo e da irracionalidade, e
por isso lhe soou apenas desordem.
Assim, mais que a óbvia ressonância do referencial eclesiástico e sua lógica,
deve-se notar no santuário o lugar da congregação. Mais que o espaço do sacerdote
que ministra os sacramentos, é o ambiente das imagens colocadas em comum e em
que acontecem as liturgias, devoções e cantorias. Na prédica sobre a construção do
templo por Salomão, o Conselheiro retoma a oração lida em 1 Reis 8, destacando
que o santuário foi erguido “para que ouvísseis as orações do vosso povo. Ouvi,
pois, Senhor, a todos os que neste lugar orarem e sede-lhes propício”.101 Na inau-
guração da igreja de santo Antonio, a ênfase recai de novo na coletividade que erige
um santuário para se reunir:
foi o Bom Jesus (nutro a mais íntima satisfação de declarar-vos) que tocou e moveu
os corações dos fiéis para me prestarem as suas esmolas e os seus braços a fim de
levar a efeito a obra de seu servo. [...] eles devem ficar plenamente satisfeitos por
terem concorrido para a construção da Igreja do servo do Senhor, [...] testemunho
que demonstra o zelo religioso que tanto os caracteriza.102
Rezavam
que congregam a gente da vila para eventos e momentos densos de graça, justamente
por isso contribuem para reforçar a coesão da comunidade. Muito da identidade do
arraial conselheirista se define a partir daí. A convergência de grupos indígenas, de
gente oriunda do trabalho escravo e outros setores terá produzido uma cosmovisão
irredutível aos cânones estritamente católicos do seu tempo, o que certamente torna
o quadro mais complexo e excitante. As rezas belomontenses estão articuladas pro-
fundamente com a autonomia que desenvolviam em outros âmbitos do seu cotidia-
no. Soam tão perigosas quanto o traço “comunista” que vimos o barão de Jeremoabo
denunciar. Expressam uma incômoda liberdade perante a instituição eclesiástica. De
alguma forma as rezas do povo junto com o Conselheiro e as palavras deste cheias
de espírito religioso dão a consistência maior ao arraial.111 Ao Relatório de frei João
Evangelista de Monte Marciano tais detalhes não passaram despercebidos.
No entanto, neste, como em tantos outros aspectos, Belo Monte não está sozi-
nho. As imagens que trazem os santos mais para perto das pessoas estão presentes em
todos os cantos das comunidades sertanejas, em todos os lugares em que se expressa
o catolicismo popular brasileiro, fruto inclusive de diversos intercâmbios que este
constrói com tradições de outras origens.
Mas temos também o dado da veneração da coletividade reunida às imagens
trazidas para o santuário, lugar onde o Conselheiro habitava, enquanto as igrejas não
ficavam prontas. Esta passagem do plano privado para o público, das imagens do ora-
tório doméstico para os espaços de veneração coletiva é que talvez tenha chamado a
atenção de frei João. Ele destacará particularmente o beija das imagens, que o deixou
horrorizado:
Surpreende que o frei, com mais de vinte anos de Brasil, não se tivesse ainda acos-
tumado com uma realidade cuja história é longa, em que a proximidade dos santos se
contrapõe e substitui o Deus patriarcal e implacável.113 Belo Monte materializa este veio
secular e tão característico, “que permite tratar os santos com uma intimidade quase
desrespeitosa”, materializando o “horror às distâncias que parece constituir [...] o traço
mais específico do espírito brasileiro”.114 E se Gilberto Freyre tem razão em apontar a
impossibilidade do entendimento do catolicismo “luso-brasileiro sem essa intimidade
entre o devoto e o santo”115, onde identificar a efetiva razão do horror manifestado pelo
missionário? Em outras vilas por ele catequizadas terá expressado similar espanto?
142
Honório confirma, com seu elenco de santos, a afirmação do frei, que reclama
da indistinção, por parte dos belomontenses, entre Jesus e os santos, para evidente
vantagem destes. Mas a questão é mais ampla que as expressões populares de matriz
católica acima apresentadas. Afinal de contas, na expressão enviesada de Euclides,
a religião sertaneja é “uma mestiçagem de crenças. Ali estão, francos, o antropismo
do selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio aspecto emocional
da raça superior”.118 Em Belo Monte não terá sido diferente. A autonomia frente
à instituição católica, de que se falou, ao mesmo tempo se mostra e se explica pela
existência de elementos religiosos de outras proveniências, que se intercambiam
com aquele de origem branca e portuguesa, formando um conjunto peculiar. A
religião do arraial conselheirista é fruto de um intercâmbio cujos caminhos foram
decisivamente marcados pelas vicissitudes da colonização. Para retomar o caso das
imagens, a proeminência delas no catolicismo se deve, entre outras razões, ao con-
tato dos primeiros missionários com as tribos autóctones a serem catequizadas; a
intimidade com os santos tem a ver com ancestrais procedimentos delas em relação
à divindade. Ao final, onde está o propriamente branco e o propriamente indígena
desta expressão secular?
No entanto, parece adequado salientar alguns aspectos da vivência religiosa
em Belo Monte que complexificam o desenho que sobre esta se costuma fazer e
mostram uma convivência expressiva entre dados de diversas proveniências cultu-
rais. As memórias indígenas sobre a vila conselheirista mencionam traços explícitos
de uma religiosidade fruto de uma circulação criativa de elementos do cristianismo
e expressões autóctones. Por exemplo, segundo depoimentos de descendentes dos
índios Kiriri, eles
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 143
Haveria a festa da jurema em Belo Monte? De toda forma, o que esses e tantos
outros dados exigem é que, na avaliação da religiosidade belomontense, e do sertão
em geral, o tema do intercâmbio religioso, comumente denominado sincretismo,
seja considerado com acuidade. Com efeito, estas confluências que resultam na
“religião mestiça” a que Euclides se refere, viabilizam um Pai Cabungá, que fazia
mandingas e enfeitiçava bebidas121, e a ação do curandeiro Manoel Quadrado, di-
vulgador das proezas do anterior, misturador de “meizinhas e rezas”122, conhecedor
não só de mandingas contra cobra, mas dos atributos de inúmeras ervas e outros
recursos utilizados em benzeduras.123
Não tenho condições aqui de detalhar mais essas e contribuições similares,
seja porque faltam informações, seja porque me distanciaria em demasia do alvo
aqui perseguido. Mas é importante ressaltar que, ao detalhar a presença e o sentido
das imagens, referenciais e temas bíblicos em Belo Monte e ao seu redor, tomo em
conta este universo de intercâmbios e influências mútuas e, dentro dele, a apro-
priação e reinterpretação que os bens simbólicos oriundos do texto sagrado católico
sofreram. A importância dessa questão se verifica também na medida em que boa
parte dos entraves que Belo Monte suscitou tem a ver com a relação conflitiva que
estabeleceu com a instituição religiosa católica e os bens que ela oferece a seus fiéis,
junto com a dependência que esta pretende impor. Tomada na sua relação com o
todo do arraial, a experiência religiosa ensaiada evidencia, no geral, uma comuni-
dade em busca da salvação no além a partir de vivências renovadas aqui. Em relação
144
Vínculos
inscrita nas relações de poder. Ela é parte integrante do sistema abrangente de do-
minação do “coronelismo”. O coronelismo vivia tanto da ausência institucional do
Estado como da sua conivência. Foi a disputa pela posse da terra e pelo poder que
deu, na maioria das vezes, origem a conflitos violentos [...] historicamente, a violên-
cia em nome do Estado contra a sua população foi fundadora do Sertão e formou a
sua tradição mais antiga.130
ensinar rezas, fazer prédicas banais, rezar terços e ladainhas com o povo; servindo-se
para isso das igrejas, onde, diante do viajante civilizado, se dá a um irrisório espe-
táculo, especialmente quando recita um latinório que nem os ouvintes entendem.
O povo costuma afluir em massa aos atos religiosos do Conselheiro, a cujo aceno
cegamente obedece, e resistirá, ainda mesmo a qualquer ordem legal, por cuja razão
os vigários o deixam impunemente passar por santo, tanto mais quando ele nada
ganha, e, ao contrário, promove extraordinariamente os batizados, casamentos, de-
sobrigas, festas, novenas, e tudo mais em que consistem os vastos rendimentos da
igreja. Nessa ocasião havia o Conselheiro concluído a edificação de uma elegante
igreja no Mucambo, e estava construindo uma excelente igreja no Cumbe, onde a
par do movimento do povo, mantinha ele admirável paz.135
O Conselheiro não é padre, não pode ser tomado como usurpador do minis-
tério clerical, muito menos seu representante. Também não foi o simples fato de os
sacerdotes rarearem no sertão de seu tempo que lhe permitiu consolidar a lideran-
ça. O beatismo, de que o Conselheiro é dos mais expressivos representantes, deita
raízes profundas em aspectos da tradição judaico-cristã, de distanciamento frente a
padrões estabelecidos, com forte acento na dimensão ética-comportamental e mís-
tica. É tecida, portanto, uma expressão religiosa em que a autonomia frente a ins-
tituições, inclusive a eclesiástica, é marca significativa. Essa descontinuidade (que
não significa necessariamente ruptura) é elemento fundamental para se entender a
trajetória do Conselheiro e do arraial por ele liderado.
Destaco as formas da liderança que, como beato e conselheiro, este homem
“forte, perseverante, calmo, dominado por uma esperança no triunfo, só compará-
vel à fagueira sedução do seu ideal”, constituiu no arraial.136 O fato de não ser or-
denado exige que o reconhecimento da sua autoridade seja interpretado de forma
alternativa a simplesmente situá-lo no campo da mediação, tida como indispensá-
vel, que os padres afirmam exercer entre os fiéis e o sagrado. Este é o ponto central,
notado claramente por frei João: a liderança do Conselheiro, se não substitui a
dos padres, assenta-se em outras bases, que têm a ver com sua forma de vida (“um
porte grave e ar penitente que não pouco teria contribuído para enganar e atrair
o povo simples e ignorante dos nossos sertões”, bem como “uma certa reputação
de austeridade de costumes”137), com uma autoridade alcançada no cotidiano da
experiência. A acusação de que o líder consente em que seus liderados “lhe prestem
homenagem que importam um culto”, com “vivas” dirigidos a ele e às pessoas da
Trindade, mostra certamente o respeito que lhe dão, embora aos olhos vigilantes e
pouco simpáticos do frei capuchinho tenham soado como “idolatria”.138
A liderança do Conselheiro é de outra ordem, o que a torna ao mesmo tempo
mais vulnerável, pois não garantida de antemão pela força da instituição, e profun-
148
das elites que comandavam a região (incomodadas por razões de ordem variada),
aguçando conflitos internos a elas na disputa pelo poder estadual, ao ponto de
interferirem decisivamente nos rumos que a jovem República estava tomando. E
dou especial destaque à participação da Igreja Católica, particularmente de sua hie-
rarquia na Bahia, no seio do processo que haveria de levar Belo Monte à completa
destruição; ela teve, aí, envolvimento semelhante ao assumido em outras oportu-
nidades. E caberá, na medida das informações disponíveis, avaliar o que significou
a guerra para a gente belmontense, e perguntar pelas razões da incrível resistência
que ofereceu, “rezando e caindo na bala”153, até a destruição completa.
lheiro também não logrou enfraquecer a liderança deste; pelo contrário, terá confirmado
a autonomia de sua pregação e legitimado a sua ação diante da gente sertaneja.
Ligado a estes detalhes, e de alguma forma decorrente deles, surge o dado já mencio-
nado da vinculação a Antonio Conselheiro, que não se resume aos milhares de habitantes
do arraial, mas estava espalhado pelo sertão. Este é um aspecto fundamental para se ava-
liar a importância – e o perigo – que Belo Monte representava: muita gente, de diversos
pontos do sertão, vinha solicitar que a expedição mandada contra Antonio Conselheiro
e seu séquito, e que finalmente os combateu em Masseté, desistisse de seu intento, “a fim
de evitar-se imerecida perseguição a um homem puramente pacífico e a uma gente que
mal algum produzia a quem quer que fosse”.155 Mais: além dos pedidos, “os habitantes da
região tinham instalado emboscadas ao longo do caminho a ser percorrido pelas tropas,
com o objetivo de retardar o seu avanço”.156 Também a missão de frei João Evangelista
encontrara conselheiristas, no que interpretou como “uma guarda avançada do Antonio
Conselheiro”, quando ainda se encontrava a três léguas do Cumbe!157
Tal teia terá sido fundamental no fortalecimento da resistência às expedições
oficiais, como se vê pelas afirmações aterrorizadas, do comissário de polícia de
Pombal, após o combate de Uauá:
parece que se decorrerem mais alguns dias, sem que se trave novo combate entre as
forças legais e os sequazes de Antonio Conselheiro, a população deste município e
a dos limítrofes ficarão reduzidas a menos da metade, tendo em vista os numerosos
grupos que têm saído em direção a Canudos, no propósito de reforçar os fanáticos
de Antonio Conselheiro. Todos os dias chegam notícias verdadeiras, trazidas por
pessoas que moram à margem das estradas que conduzem a Canudos, da passagem
de grandes grupos de homens armados, que se dirigem para ali, no empenho por
eles confessado de se baterem e morrerem por seu Bom Jesus, pois tal é o modo por
que eles tratam esse homem pernicioso [...] Infelizmente, não são somente municí-
pios desta zona que têm contribuído com reforços numerosos para continuação da
luta entre Antonio Conselheiro e o Governo, pois é público e notório nesta vila, por
notícias vindas de diversos pontos do rio S. Francisco, que de numerosas localidades
daquele sertão têm descido para Canudos grandes contingentes de homens armados
e de munições bélicas.158
Esta rede tinha perfil inusitado, ao incorporar algumas poucas pessoas que exer-
ciam função de liderança no sertão. Por exemplo, o chefe de polícia de Itiubá, em plena
guerra, é acusado de proteger conselheiristas.159 Enfim, a força dela dificilmente pode
ser minimizada. Febrônio de Brito reconheceu-a como uma das causas do fracasso
da expedição por ele comandada: para destruir o arraial maldito, dizia, é necessário
“desconfiar de tudo e de todos”, pois “quem lá [em Belo Monte] não tem filho, tem
152
genro, tem irmão e as exceções são raras”.160 E aos soldados da quarta expedição chegar
perto da “cidadela do crime” trazia a sensação de se estar cercado pelo sertão, vigiado
por todos os lados: “Estávamos nas imediações dessa população dominadora de vastas
regiões, dilatadas pelo seu poder expansivo para os quatro pontos cardeais do sertão”.161
Até aqui uma fonte dos reclamos quanto ao arraial maldito. Mas a queixa
mais imediata dos fazendeiros e líderes políticos nos primeiros tempos do estabe-
lecimento de Belo Monte foi sobre a perda da mão-de-obra barata e abundante
de que dispunham; grande parte dela estava largando tudo e se dirigindo para
junto do Conselheiro. Parecia-lhes o segundo grande golpe, depois da abolição da
escravatura: “Com a abolição do elemento servil ainda mais se fizeram sentir os
efeitos da propaganda [conselheirista] pela falta de braços livres para o trabalho”.162
E ocorreu que se engrossaram as fileiras do pseudo-enviado divino. As cartas en-
viadas ao barão evidenciam essa percepção generalizada entre os fazendeiros: “por
causa do flagelo do Conselheiro não há trabalhadores”.163 O apelo representado por
Belo Monte se revelou tão incisivo que “nem os proprietários, nem os fazendeiros,
podem contar com os moradores e vaqueiros”.164 Desta forma é que “foi escasse-
ando o trabalho agrícola e é atualmente com suma dificuldade que uma ou outra
propriedade funciona, embora sem a precisa regularidade”.165
Por outro lado, para os fazendeiros a abolição da escravatura oficializou o ócio,
e Belo Monte é o seu lugar privilegiado. Aliás, desde que o Conselheiro começou
sua vida peregrina não aconteceram senão “a desorganização do trabalho e os efei-
tos da ociosidade”. O fato de mencionar os trabalhos de construção de capelas e
cemitérios mostra que ao barão e a seus amigos importa apenas o “labor costumei-
ro”166, pensado obviamente a partir da relação patrão-empregado. A identificação
da gente sertaneja como ociosa faz parte da estratégia de sua estigmatização.167
Até aqui o não-funcionamento das propriedades e a ociosidade suposta. Mas o
problema não se reduzia a isso, segundo os apavorados fazendeiros. O deslocamento
para Belo Monte não foi inocente ou despretensioso; de alguma forma se voltaria
contra eles, na forma de ameaça à existência das propriedades, como diz um dos ami-
gos do barão: “compreendo que, quando a miséria, que já começa a manifestar-se em
Canudos, tomar proporções maiores, os roubos e assassinatos serão a consequência
do pouco caso com que se olha para os primeiros atos daqueles monomaníacos”.168 O
receio da invasão das propriedades alimentou a imaginação. E virou boato:
Mas a situação causada pelo malogro da nova empreitada acabou por transferir
a responsabilidade pela eliminação de Belo Monte para o governo federal. O próprio
Febrônio o pediu, por considerar o governo estadual “impotente no caso”, preocu-
pado em fazer “política desgraçada”.185 À oposição a proposta não podia ser melhor,
já que “o doutor Luís Viana [...] ou auxilia indiretamente a gente do Conselheiro ou
não lhe opõe resistência séria”.186 Os acontecimentos ecoam em todo o país:
O Poder executivo da república [...] entendeu que a honra da pátria e o futuro das ins-
tituições corriam o risco de ser sacrificados nessa emergência que [...] poderia ser fatal.
Era provável, senão certo, que os adversários da situação política dominante viessem a
lucrar com qualquer desastre, que algum dia sofressem as tropas legais; pois assim eles
cobrariam forças e estímulos, em proveito de seus interesses, e aspirações insensatas.189
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 157
Nesse contexto Belo Monte é apresentado pelos grupos jacobinos como parte
estratégica dos projetos restauradores monarquistas, inclusive com financiamento
externo. A indicação do coronel Moreira César para comandar a terceira expedição
(algo que causou temores até nas próprias elites baianas190), e a posterior nomeação
do general Artur Oscar como chefe da campanha seguinte, para dar conta da “santa
causa”191, são significativas: ambos eram ligados aos setores jacobinos da Repúbli-
ca.192 A inesperada derrota de Moreira César, no início de março de 1897, que to-
dos aguardavam submetesse “ao domínio da lei o formidável núcleo de rebeldes ao
mando de um vesânico”193, só fez agravar as tensões entre jacobinos e monarquis-
tas, elevando o tom das matérias jornalísticas de lado a lado. E, em relação a Belo
Monte, o sentimento de que deveria a todo custo ser destruído só ficou reforçado:
em nome da civilização e do progresso o inimigo terá contornos fabricados e seu
monarquismo será o grande pretexto para a guerra:
o desfecho da batalha [pelo poder] será ajudado [...] pelo desprestígio do Exército.
Canudos lançará, sob o fogo do entusiasmo jacobino de suas primeiras promo-
ções, a desconfiança na sua eficiência, debandado e sangrado por um punhado de
sertanejos broncos [...] Um sagaz e contundente ensaísta veria bem a extensão do
desastre, que se projeta além da mente inculta de Antônio Conselheiro: “[...] ope-
rou-se a grande transformação política do Brasil, a maior revolução operada entre
nós – a passagem do poder das mãos da Federação, das mãos do Brasil, para as mãos
dos Estados. Não teria sido tão rápida a passagem se não tivesse havido a Guerra de
Canudos [...]. No desprestígio que daquela guerra resultou para o Exército, o poder
havia de ficar nas mãos de quem tivesse mais força: São Paulo”.205
Por que não se retiram como fizeram os outros? [...] Os senhores se apoderaram das
nossas casas, dos nossos potes, das nossas roupas, de tudo quanto tínhamos e, agora,
andamos ao sol e ao sereno, sem termos em que carregar uma gota d’água, nem o
que vestir e nem o que comer. Por que se não retiram daqui e não nos entregam as
nossas casas onde tínhamos fartura de farinha, feijão e milho? [...] Estávamos [...]
sossegados e vocês vieram nos matar.211
Além disso, ficam pelo menos relativizados aqueles argumentos que justificaram a
necessidade da guerra pela suposta violência praticada pelos habitantes de Belo Monte:
E já que “nenhum remédio eficaz” tem sido aplicado por parte daqueles que,
pela “reconhecida autoridade de seu ofício”, devem “defender a verdade e o decoro
da Religião”, importa “tratar particularmente com o Sr. Arcebispo da Bahia para
convencê-lo a despender seu esforço e toda a possível influência no sentido de faci-
litar a pacificação dos ânimos”.214
Feito o devido desconto ao eufemismo, não é preciso pensar que foi apenas
por conta de tão autorizado apelo que ajudas materiais, como o acolhimento das
tropas militares pelas cidades onde passavam, tenham ocorrido em muitas situa-
ções pelo engajamento dos respectivos vigários, como se lê no relatório da coluna
Savaget.215 E, finalmente, a assistência espiritual oferecida aos militares da quarta
expedição216 e as cerimônias promovidas quando da derrocada final da vila conse-
lheirista são manifestações políticas e simbólicas que não deixam dúvidas sobre a
conjugação de interesses materializada na ação contra Antonio Conselheiro e seu
séquito. Nem o ofício fúnebre realizado em Salvador pelas vítimas da guerra de
ambos os lados ocultaria a colaboração que entre Estado republicano e Igreja se
estabelecia, e que o desenrolar da guerra se encarregava de estreitar.217
CONCLUSÃO
sem assumir funções de padre, mas tomando a condição de conselheiro [...] An-
tônio Vicente Mendes Maciel buscou conduzir-se como uma autoridade religiosa
exemplar, isto é, hipertrofiando certos traços de um modelo ideal de sacerdote. Na
realização deste modelo, as atribuições de diretor espiritual e as condições de bea-
to e de místico dificilmente poderiam ter-se mantido dentro dos limites traçados
pelas estruturas religiosas e políticas dominantes. Isto, principalmente na medida
em que a ascendência adquirida sobre numeroso grupo de sertanejos significou o
aparecimento de uma alternativa para as formas costumeiras de subordinação e um
eventual desafio à autoridade de sacerdotes e de “coronéis”.220
Para manter esta alternativa, o empenho até a morte, capaz de paralisar os sol-
dados de Moreira César: “não havia reagir contra adversários por tal forma transfi-
gurados pela fé religiosa”.221
164
NOTAS
1 Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos. Jornal do Recife, 1912, p.11.
2 Sidney Chalhoub. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial.
Companhia das Letras, São Paulo, 1999, p.15-59. Ao menos parte dos moradores
do cortiço se teria estabelecido num morro que, quatro anos mais tarde, receberia
os soldados vindos da última campanha contra Belo Monte, e que passou a ser
chamado de Morro da Favela, nome de uma colina donde se avistava o arraial con-
selheirista e onde se assentaram os acampamentos militares para os ataques finais.
3 José Aras. Sangue de irmãos. Museu do Bendegó, Salvador, 1953, p.24.
4 Conforme o deputado Artur Rios, aliado do governador baiano Rodrigues
Lima (citado por Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra. Ática, São Paulo,
1995, p.54).
5 Cícero Dantas Martins (barão de Jeremoabo). Carta publicada no Jornal de
Notícias, de Salvador, edição de 4 e 5 de março de 1897, datada de 24 do mês ante-
rior, quando a expedição comandada por Moreira César se acercava de Belo Monte.
Sirvo-me aqui da transcrição feita por João Arruda. Canudos: messianismo e conflito
social. UFC / Secult, 1993, p.173-183 (a citação é da p.176). Segundo seu trineto,
o barão possuía 59 fazendas na Bahia, em municípios destacados na história do es-
tabelecimento e destruição de Belo Monte, como Itapicuru, Soure, Bom Conselho,
Cumbe, Tucano e outros; possuía ainda outras duas em Sergipe (Álvaro Dantas de
Carvalho Jr. “A posição do barão de Jeremoabo”. In: Consuelo Novais Sampaio (org.)
Canudos: cartas para o barão. Edusp, São Paulo, 1999, p.18). Ele incentivou a em-
preitada de Masseté e todas as ações que levariam Belo Monte à destruição.
6 Cícero Dantas Martins. Carta ao Jornal de Notícias, em 4 e 5/3/1897. In:
João Arruda. Canudos..., p.176.
7 Cícero Dantas Martins. Carta ao Jornal de Notícias, em 4 e 5/3/1897. In:
João Arruda. Canudos..., p.176-177. José Aras fala de um acordo, não citado por
outros autores, entre o Conselheiro e o líder da expedição policial, que a teria feito
recuar (Sangue de irmãos..., p.27). Algo improvável, já que as tropas iniciaram o
recuo ainda longe do palco dos acontecimentos.
8 Dizeres de sertanejos, segundo o relatório do intendente de Monte Santo,
João Cordeiro de Andrade. In: Marco Antonio Villa. Canudos..., p.70.
9 Relatório do intendente de Monte Santo. In: Marco Antonio Villa. Ca-
nudos..., p.69. Aí se lê que também em Cumbe, vila que, como Uauá, teria papel
importante na guerra, a situação não foi muito diferente: aí “levou muitos meses
sem cobrar-se [os impostos] desde fins de maio, quando por ali passou Antônio
Conselheiro, até outubro e depois foi um serviço feito com desânimo sem garantia
e o povo fugia constantemente ao pagamento de direitos”.
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 165
31 Salomão de Souza Dantas, citado por José Calasans. “Canudos – origem e
desenvolvimento de um arraial messiânico”. In: Cartografia de Canudos. Secretaria
de Cultura e Turismo do Estado da Bahia / Conselho Estadual de Cultura / Em-
presa Gráfica da Bahia, Salvador, 1997, p.54.
32 João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.4.
33 Paulo Eduardo Zanettini. “Por uma arqueologia de Canudos e dos brasi-
leiros iletrados”. In: O olho da história. Salvador, 1996. v.2, n.3, p.102. O fotógrafo
Flávio de Barros acompanhou o último contingente militar que se dirigiu para Belo
Monte, chegando dez dias antes de os combates cessarem por completo. Seu registro
é cuidadoso, buscando mostrar a harmonia das tropas e sua eficiência, de um lado,
e, de outro, mas raramente, os conselheiristas, sempre como derrotados. Assim não
aparecem detalhes como a precariedade dos hospitais e dos atendimentos, ou a dego-
la sistemática de conselheiristas. Assim, com a pretensão de representarem fielmente
a realidade, fazem-se simulacros dela, peças de exaltação do Exército (Cícero Antônio
F. de Almeida. “Que nos ficará depois da vitória da lei?” In: Canudos: imagens da
guerra. Museu da República / Lacerda, Rio de Janeiro, 1997, p.11-27).
34 Nélson de Araújo. Pequenos mundos. Um panorama da cultura popular da
Bahia. Edufba / Casa de Jorge Amado, Salvador, 1988, v.2, p.42.
35 Testemunho de Manoel Ciriaco (José Calasans. “Canudos – origem e de-
senvolvimento de um arraial messiânico”. In: Cartografia de Canudos..., p.58; veja
ainda, de Calasans, “Solidariedade sim, igualdade não: aspectos controvertidos do
episódio de Canudos”. In: Didier Bloch [org.] Canudos: cem anos de produção.
Fonte Viva, Paulo Afonso, 1997, p.41; em outro lugar Calasans fala de “apropria-
ção da área disponível no capelato de Santo Antônio” (“‘Meu empenho foi ser o
tradutor do universo sertanejo’ (Entrevista com José Calazans)” In: Luso-Brazilian
Review. Wisconsin, Madison, 1993. v.30, n.2, p.27).
36 Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.89. Sobre o arraial pré-conselhei-
rista, José Calasans, “Canudos – origem e desenvolvimento de um arraial messiâ-
nico” (In: Cartografia de Canudos...., p.49-60).
37 Ainda segundo Aras, em sua estada anterior em Canudos o Conselheiro
teria chamado o vilarejo de Belos Montes (Sangue de irmãos..., p.22).
38 Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros. Henriqueta Galeno, For-
taleza, 1973, p.130.
39 Carta de Marcelino Pereira de Almeida (intendente de Tucano) ao ba-
rão de Jeremoabo, de 12/1/1894. In: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos...,
p.90.
40 Carta de Aristides da Costa Borges ao barão de Jeremoabo, de 9/2/1894.
In: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.94. O missivista escreve em sua
fazenda.
168
o século XVIII, com a ocupação de suas aldeias, partilhavam com os outros mo-
radores as mesmas expectativas e oportunidades; e mesmo os pequenos sitiantes
e criadores, que possuíam terras suficientes para a manutenção da família, viam,
na mudança para o arraial, a oportunidade de não perder seus parcos ganhos em
virtude de novas leis ou imposições” (Fronteiras movediças: a comarca de Itapicuru e
a formação do arraial de Canudos. Hucitec/Fapesp, São Paulo, 2007, p.437-438).
61 Euclides da Cunha. Os sertões..., p.299.
62 Baseio-me principalmente em Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.92-93.
63 Estas e as demais citações sobre o vestuário da gente belomontense foram
tiradas de Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos..., p.11-17.
64 Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos..., p.14 (destaque do au-
tor).
65 Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.89.93.
66 Para detalhes, Vicente Dobroruka. Antonio Conselheiro..., p.141-142.
67 Euclides da Cunha. Caderneta de campo (Cultrix / Instituto Nacional do
Livro, São Paulo / Brasília, 1975, p.23). Mas nas reportagens enviadas ao jornal
que o contratou ele dizia que a maior vitória sobre os rudes belomontenses estaria
no envio do mestre-escola assim que a guerra terminasse (Diário de uma expedi-
ção..., p.92)...
68 Paulo Eduardo Zanettini. “Por uma arqueologia de Canudos e dos brasi-
leiros iletrados”..., p.102.
69 Nertan Macedo. Memorial de Vilanova. 2 ed., Renes / Instituto Nacional
do Livro, Rio de Janeiro / Brasília, 1983; José Calasans. Quase biografias de jagun-
ços: o séquito de Antônio Conselheiro. Centro de Estudos Baianos da Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 1986, p.58-59. Na economia de Belo Monte não era
permitido o uso do dinheiro republicano.
70 Euclides da Cunha. Os sertões..., p.305.
71 Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.39.70. A memória da abun-
dância vivida em Belo Monte permanece viva no imaginário sertanejo.
72 João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.5.
73 Cícero Dantas Martins. Carta ao Jornal de Notícias, em 4 e 5/3/1897. In:
João Arruda. Canudos..., p.177.
74 Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.40.
75 Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros..., p.131-132.134. Se há
divergências quanto ao percentual a ser entregue ao Conselheiro, dúvida não há
quanto à realização de tais doações.
76 Alvim Martins Horcades. Descrição de uma viagem a Canudos. Litho-
Typografia Tourinho, Bahia, 1899 (edição fac-símile pela Empresa Gráfica da
Bahia / Edufba, Salvador, 1996), p.183.
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 171
77 Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.96. Um tema que mereceria
maior desenvolvimento é justamente o de como Belo Monte atraiu tantas pessoas
por conta de sua aura de lugar da saúde e da cura dos males, obra de Antonio Con-
selheiro e do curandeiro Manoel Quadrado. Infelizmente não tenho como tratar
dele aqui.
78 Eufemismo de Dantas Barreto (Destruição de Canudos..., p.8).
79 Euclides da Cunha. Os sertões..., p.291. Também sobre o número de casas
há intensa controvérsia; o próprio Euclides contribui para isso ao falar inicialmente
de “mais de duas mil casas” (Caderneta de campo..., p.54) e depois de cinco mil e
duzentas, de acordo com a contagem do Exército (Os sertões..., p.779).
80 Alvim Martins Horcades. Descrição de uma viagem a Canudos..., p.178-
179. Segundo Dantas Barreto, os belomontenses “habitavam pequenas casas de
taipa, cobertas de ramas de coirana, sob uma camada espessa de barro amassado,
normalmente com três peças de pequenas dimensões, em que nada mais se en-
contrava além de uma rede de fibras de carauá, na sala, e um girau de varas presas
entre si por meio de cipós resistentes ou embiras de barriguda, no quarto exíguo de
dormir” (Destruição de Canudos..., p.12).
81 Euclides da Cunha. Os sertões..., p.292.293.
82 Alvim Martins Horcades. Descrição de uma viagem a Canudos..., p.178.
83 Euclides da Cunha. Os sertões..., p.291. É interessante notar que a forma
de as casas se disporem no arraial permitia a Euclides arriscar uma hermenêutica,
que revelasse traços mais profundos da vida belomontense. Aliás, em todas as
descrições elencadas o que predomina é a constatação do absurdo, do desordena-
do, o que faz suspeitar que estejamos diante de um processo narrativo em que a
descrição das cenas obedece a um plano previamente definido. A insistência da
descrição no irracional e no desordenado quer, efetivamente, levar à conclusão
da inviabilidade do arraial. De forma que o problema não são tanto as casas e sua
disposição, mas o fato de perfazerem aquela “cidade selvagem” (p.296).
84 Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.176.
85 Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.201.
86 Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos..., p.139.
87 Carta ao Jornal de Notícias, de Salvador. In: Walnice Nogueira Galvão. No
calor da hora..., p.392.
88 Duglas Teixeira Monteiro. “Um confronto entre Juazeiro, Canudos e
Contestado”. In: Boris Fausto (org.) História geral da civilização brasileira. 4 ed.,
Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1990. t.3, v.2, p.61.
89 A expressão é de Michel de Certeau e Luce Giard (in: Michel de Certeau,
Luce Giard e Pierre Mayol. A invenção do cotidiano. 3 ed., Vozes, Petrópolis, 2000,
v.2, p.342).
172
24/3/1897, dias após o combate dez praças da expedição Moreira César e feitos
prisioneiros teriam fugido “quando [os belomontenses] rezavam o terço” (veja
Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.164).
126 Euclides da Cunha. Os sertões..., p.593. E no final da guerra, quando a
perspectiva da derrota fatal se avizinhava, “não mais se ouviam as ladainhas me-
lancólicas no intervalo das fuzilarias” (Os sertões..., p.678). Enquanto aconteceram,
apavoraram os soldados: “o som monótono dos sinos das igrejas e dos cânticos dos
fanáticos, a agonia dos moribundos, e os gemidos dos feridos, ainda mais agrava-
ram o ânimo dos retirantes, já exaustos de cansaço, de fome e de sede” (Nota de
jornal sobre a retirada de soldados da expedição Moreira César, in: Aristides Mil-
ton. “A campanha de Canudos”..., p.75).
127 Duglas Teixeira Monteiro fala do “compadrio interclasses” e da ruptura
que a gente rebelde do Contestado realizou no tocante a esta questão, ao mesmo
tempo frente à estrutura sócio-política circundante e à instituição eclesiástica; veja
Os errantes do novo século. Um estudo sobre o surto milenarista do Contestado.
Duas Cidades, São Paulo, 1974, p.57-80.
128 Antônio Conselheiro já há muito tempo nos sertões vinha sendo toma-
do por padrinho, e a madrinha era sempre Nossa Senhora (José Calasans. “Apare-
cimento e prisão de um messias”. In: Cartografia de Canudos..., p.36).
129 Marco Antonio Villa (org.) Calasans, um depoimento para a história.
Uneb, Salvador, 1998, p.27-28. O levantamento feito Consuelo Pondé de Sena
mostra que, só na Vila de Itapicuru, o Conselheiro aparece como padrinho, ou
testemunha, em noventa e dois batizados, entre 1880 e 1892, e em quase metade
a madrinha é Nossa Senhora (Introdução ao estudo de uma comunidade do agreste
baiano: Itapicuru, 1830/1892. Fundação Cultural do Estado da Bahia, Salvador,
1979, p.157).
130 Dawid Danilo Bartelt. “Os custos da modernização: dissociação, ho-
mogeneização e resistência no sertão do Nordeste brasileiro”. In: Revista Canudos.
Salvador, 1999. v.3, n.1, p.89.
131 Esta última razão, que José Calasans considera improvável (Quase bio-
grafias de jagunços..., p.56-57), é apresentada por uma sobrevivente, Francisca Gui-
lhermina, a Odorico Tavares como o motivo da eliminação do comerciante e seus
filhos homens (Canudos: cinquenta anos depois..., p.41-42). Também é aduzida
por Manoel Benício (O rei dos jagunços..., p.94-95). Veja documento da época
citado por Rogério Souza Silva (Antônio Conselheiro. A fronteira entre a civilização
e a barbárie. Annablume, São Paulo, 2001, p.89-90).
132 Teria sido esse o caso do controvertido Jesuíno Correia Lima que, afas-
tando-se do arraial, haveria de se tornar o guia das expedições que foram comba-
ter Belo Monte (Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros. “Um fuzil da Guerra de
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 175
(César Zama)
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 187
O êxodo
Certamente o percurso que a gente do Conselheiro fez com ele após o com-
bate de Masseté, em fins de maio, passando pelo Cumbe e chegando a Canudos
em meados de junho de 1893 para ali se fixar, foi decisivo. Para o Conselheiro, o
fim de sua vida itinerante; para a gente que o seguia, a aposta em dias promisso-
res, sem que com isso afastasse os receios de represálias.
Os poucos testemunhos disponíveis indicam que a Bíblia se fez presente
de forma significativa já neste momento. Se para o líder os ares seriam apoca-
lípticos, com prenúncios de batalhas iminentes e juízos categóricos (como será
visto), para seu povo o tempo era de reminiscências. A marcha rumo às margens
do Vaza-barris “lembrava [a seus participantes] o povo de Israel acompanhando
Moisés na fuga para o Egito, ansiosos de atravessarem o mar Vermelho para se
livrarem do Faraó”.4
Sobre essa afirmação preciosa, apenas rápidas observações. Primeiramente,
em relação ao possível equívoco, relativo à fuga de Moisés para o Egito passando
pelo mar Vermelho. Como se sabe, o que se narra no livro bíblico do Êxodo foi
uma fuga do Egito, em que o povo de Israel teria atravessado o mar sob o coman-
do de Moisés. No entanto se pode pensar que, mais do que de um engano, esta-
ríamos diante de um resultado original dos caminhos da memória e da oralidade,
fundindo o êxodo de Moisés, do Egito, com o de Jesus, ainda criança, este para o
Egito, fugindo do rei Herodes (Mateus 2,13-23). Difícil dizer algo seguro sobre
a possível bricolage entre as duas conhecidas narrativas bíblicas. Como difícil é,
pela leitura de Aras, inferir que a reminiscência do êxodo bíblico em tal situação
tenha sido da gente conselheirista ou da retórica do escritor. Contudo, se não foi
nessa oportunidade, a memória da saga do povo hebreu liderado por Moisés não
demoraria a incidir significativamente nas falas do povo estabelecido em Belo
Monte. Note-se ainda que a figura de Antonio Conselheiro é ainda suposta; logo
a veremos manifesta.
190
Eu, naquela época [alguns anos após o massacre final] já conhecia alguma coisa do
Antigo Testamento pelo que ouvia, e lembrava as comparações dos fanáticos: “o
Conselheiro era Moiséis (sic), o Vazabarrís (sic) seria o Nilo ou o mar Vermelho e o
píncaro do Cocorobó era o monte Sinai”.5
Aqui, mais uma vez, pouco importa a exatidão dos dados, ou que o Vaza-bar-
ris oscile em sua associação entre dois marcos das terras bíblicas. Aliás, a liberdade
nas associações é que nos remete para a densidade de seus significados. O Conse-
lheiro, mais que a Jesus, é referido a Moisés, o grande líder da libertação do povo
de Israel frente ao poderio do faraó egípcio. Por tal associação se percebe muito
sobre a compreensão que tinha a gente sertaneja do Belo Monte a respeito do seu
líder, junto a outras identificações, como por exemplo a de bom Jesus. E ainda: o
Conselheiro, por suas prédicas e conselhos, é associado ao Moisés comunicador das
leis de Deus ao povo.
Já a associação do sertanejo Vaza-barris com o Nilo egípcio deve se basear no
caráter indispensável das águas para a vida. Se o Egito era “uma dádiva do Nilo”, na
feliz expressão de Heródoto, Belo Monte não dependia diferentemente de seu rio.
Se, doutra forma, a associação do Vaza-barris for feita com o mar Vermelho, o sen-
tido é distinto, mas não menos relevante: a travessia deste, narrada com contornos
épicos em Êxodo 14, foi a passagem de Israel para a liberdade. Mais uma vez temos
aí uma expressiva possibilidade de compreensão sobre como o povo sertanejo expe-
rimentava a vida em Belo Monte: a liberdade frente aos faraós atuais.
E há ainda a identificação do píncaro do Cocorobó com o monte Sinai, lugar
onde, segundo a narrativa bíblica, Moisés recebeu de Deus as tábuas que conti-
nham, entre outras coisas, o Decálogo. Sabemos da importância deste para An-
tonio Maciel: os dois manuscritos que dele se conservaram apresentam um longo
comentário a cada um dos mandamentos. E para o povo sertanejo o Sinai-Coco-
robó apontará para a nova organização, querida e revelada por Deus, levada a cabo
em Belo Monte. Se para os hebreus libertos a promessa e a conquista da terra estão
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 191
Antônio Conselheiro falou de sua “missão” que seria para o bem de todos e chamou
os índios [...] Correu a notícia, “nóis vamo, nóis vamo” lá tinha um rio de leite os
morros, os barrancos e as ribanceiras eram de cuscuz para encher a barriga. Na terra
do rio de leite e ribanceira de cuscuz começaram a construção da igreja.
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 193
No tempo do Conselheiro, não gosto nem de falar para não passar por mentiroso,
havia de tudo, por estes arredores. Dava de tudo e até cana de açúcar de se descascar
com a unha, nascia bonitona por este lado. Legumes em abundância e chuvas à
vontade. Esse tempo, parece mentira...15
194
Sebastião já chegou
comta muito rijimento
acabando com o civil
e fazendo os casamento.
Tanta gente que siassigna
nesta lei da falcidade
Xamemos por Jesus
que tenha de nós piedade.21
Nassio o Antecristo
p.a o mundo governar
ahi estar o concelheiro
p.a dele nos livrar.
se diz: “Corre a notícia do rio de leite...”29. Um depoente diz que sua mãe, jovem na
época, “queria ir, espiar a beleza que tava em Canudos [...] Ela achava que aquilo era bo-
nito que dizia que ali era um rio de leite e uma ribanceira de cuscuz”.30 Entre os Kiriri as
notícias não tinham outro teor: a apresentação do arraial conselheirista como reedição
da terra prometida bíblica teve importância fundamental neste processo que levou ao
abandono das fazendas, das vilas e do trabalho semi-escravo e ao aumento significativo
da população da aldeia sagrada, que veio com seus poucos bens e os partilhou, apostan-
do nas palavras do bom Conselheiro.
Pode-se associar à apresentação de Belo Monte como terra prometida o que se
dizia de Antonio Conselheiro nessas convocações para que mais gente se dirigisse
para lá.31 Esse aspecto terá, obviamente, tido sua importância, como se vê pela
seguinte quadra:
Belo Monte é um lugar privilegiado porque nele está o santo que tem remédio
para tudo. Antonio Conselheiro entra na cadeia extensa, no interior do catolicismo
popular, dos milagreiros, cuja vida, exemplar em termos de generosidade para com
o próximo, levou-os a serem tomados por santos.33 Destaca-se no Conselheiro a
capacidade, referida em mais de uma fonte, de alimentar toda a gente reunida em
Belo Monte: vimos Bombinho articulando a fartura do arraial à santidade de seu
líder; já dos Kaimbé há o seguinte depoimento: “A comida era por conta do Con-
selheiro, o povo era assombrado – esse homem é Deus, fazer um trabalho desse, dá
comida a tanta gente!”34
A partir dessas considerações é possível reconhecer uma particular densidade
nos testemunhos que vinculam Belo Monte com a cidade bíblica de Jerusalém.
Para além da “Jerusalém de taipa” de Euclides35, encontramos indicações, ainda
que poucas, de que, para sua gente, Belo Monte tinha contornos significativos da
cidade sagrada dos judeus. Temos a seguir palavras de um militar, sargento partici-
pante das expedições Moreira César e Artur Oscar:
O dilúvio vindouro
Uma carta publicada pelo Diário da Bahia, de uma mulher cuja assinatura
o jornal omitiu, é significativa ao reproduzir a reviravolta no estado de espírito e
nas expectativas da gente que vivia no Belo Monte, com o advento dos combates
que, ao cabo de quase um ano, aniquilariam completamente o arraial. Ela é datada
de alguns dias após o combate de Uauá, onde a primeira expedição enviada pelo
governo baiano foi rechaçada pelos guerreiros de Belo Monte:
Outra carta, alguns dias após, faz análise semelhante e se funda em espera
similar:
O nosso Conselheiro disse que aqueles que não vierem para cá se perderão, pois
agora chegou a hora do Salvador. O sertão não irá proteger ninguém, assim, você
deve vir agora [...] ninguém sabe o que pode acontecer. Depois você não pode mais
entrar. Fique sabendo que a destruição dos republicanos já começou e que por cinco
léguas não há uma só casa que o Conselheiro tenha mandado derrubar que ainda
esteja em pé. Não se arrisque sem necessidade, como você já fez antes. Eu já lhe
escrevi antes, e não foi só uma ou duas vezes.42
na carta o mesmo convite que lemos nas anteriores: ainda há tempo de se alistar
nas fileiras do Conselheiro.
Mas para caracterizar o lugar privilegiado de Belo Monte no âmbito das trans-
formações cósmicas que estão para ocorrer, Ezequiel recorre à conhecida imagem
bíblica da arca de Noé: o arraial conselheirista configura-se como a nova “barchinha
de Noél” e assim ocupa lugar privilegiado no contexto das mudanças radicais que
se avizinham. Urge, portanto, decidir. A apocalíptica belomontense é um misto de
temores e esperanças. E é mais para o fim do regime republicano que para alguma
catástrofe cósmica que a carta aponta. A derrota de Moreira César e suas tropas era
uma senha indiscutível de que Deus havia decidido agir em favor de seus fiéis.
Neste contexto terá surgido a famosa “Profecia”, que Euclides recolheu em sua
Caderneta de campo. Mas o que lhe deu maior relevância foi a transcrição de um
fragmento seu em Os sertões. A ambiguidade – que parece intencional – do texto
euclidiano levou a que tal profecia resumisse, para tantos, o conteúdo da pregação
de Antonio Conselheiro e a razão de existir de Belo Monte.44 A Caderneta de campo,
porém, evidencia que se trata de um texto anônimo (portanto, não oriundo da pena
do Conselheiro), que se apresenta como uma reescrita de uma profecia de Jeremias.45
Nele temos a apresentação de fatos ocorridos desde 1822 até o fim de tudo, previsto
para 1901. O fragmento seguinte mostra a época que mais recebe a atenção do autor:
Já se propôs ter havido um erro na datação, já que em 1890 Belo Monte não existia.47
Imagino aqui outra possibilidade: o texto, embora deva ter surgido antes do aparecimento da
quarta expedição, se localiza intencionalmente no quase mítico 1890, anterior ao estabeleci-
mento do Belo Monte. O autor se situa, ficcionalmente, logo após a proclamação da Repú-
blica, e “anuncia” eventos já ocorridos quando da escrita e outros a serem aguardados, para
os quais se deve estar preparado.48 Destaque-se que o fim é previsto para 1901, momento
em que se confirmará a existência de “um só rebanho e um só pastor” (expressão que o texto
atribui ao profeta Jeremias, mas cuja referência bíblica mais imediata é João 10,16). De toda
forma, tal rebanho, ao enfrentar a guerra (iniciada em 1896) e a carestia (1897), aguarda o
fim, num cenário de mortes (1898) e cataclismos cósmicos (1899), descritos com imagens
que evocam cenários apocalípticos. Se algum elemento pode ser de difícil identificação, a
expectativa de fundo é clara: “Até o dia do Juízo”, eis o que diziam algumas pessoas nos dias
finais do cerco e do massacre.49
Como se vê, o enfrentamento da guerra se terá alimentado das esperanças apocalípticas
centradas no fim do mundo próximo. Elas explicam a resistência hercúlea aos hereges repu-
blicanos, a deserção quase nula; deram sentido ao último esforço por manter de pé a cidade
sagrada. O que o Anticristo não permitiu, embora não tivesse conseguido seduzir os fiéis do
Conselheiro. Um outro mundo os aguardava, garantiam-no as certezas oriundas do universo
bíblico-católico do sertão, secularmente construído e vivenciado.
Mas por outro lado, numa variação extrema (e última), há testemunhos, de setembro
de 1897, em que habitantes do arraial já cercado, praticamente em ruínas, diziam aos invaso-
res, numa fidelidade espantosa: “Não temos fome e no dia em que o Conselheiro quiser, con-
verterá em fubá as barrancas do rio e as águas em leite. Vão embora, enquanto é cedo [...]”50
Impressões provisórias
Surpreende que “eventos bíblicos, como os relatados no Êxodo, venham a ter efei-
to tão poderoso sobre os camponeses instalados” à beira do Vaza-barris.51 Por outro
lado, também chama a atenção o fato de esse aspecto ter passado quase despercebido,
obscurecido que foi pela construção euclidiana da religiosidade conselheirista. De toda
forma, Belo Monte soa plenamente compreensível, aos olhos de sua gente, a partir das
tradições religiosas que já há séculos configuravam o sertão. Pausa frente à interminável
história de sofrimentos e dores, o arraial adquiriu contornos especiais. E é importante
considerá-los, para além dos dramáticos lances da guerra. Esta, para seus habitantes,
não era inevitável, como seria, por exemplo, para Euclides.
202
Frei João Evangelista afirma que “os aliciadores da seita” levavam as pessoas a se
dirigirem a Belo Monte apelando ao desejo de salvação. Este é um ponto fundamental.
Seria o arraial o lugar da salvação? Ou mediação para ela? Como se articulam salvação e
história? É interessante notar que, em todos os testemunhos arrolados e em outros, não
haja, antes da guerra, menção à iminência do fim deste mundo, embora o Anticristo
esteja em ação, por força de seus agentes. Nesse contexto, por conta da presença e ação
do Conselheiro, Belo Monte torna possível a salvação, justamente o que a Igreja dos
padres, corruptos e mancomunados com a maldita República, tornou-se incapaz de
proporcionar. Eis o sentido da afirmação que espantou frei João Evangelista e selou o
fracasso de sua missão: “a gente foi se reunindo [...] gritando que não precisavam de
padres para se salvar, porque tinham o seu Conselheiro”.52 Por meio deste se abre a
possibilidade de uma salvação aqui (a terra da promissão) e no além (o céu).53 Em Belo
Monte “a reapropriação profética de Deus resultou num otimismo histórico”.54 Ao me-
nos até a eclosão da guerra, que alterou dramaticamente os sentimentos e percepções. O
rio de leite converteu-se em sangue corrente. Mas, até o fim, a história estava nas mãos
de Deus: ele não haveria de abandonar seus fiéis. Mesmo com a morte se avizinhando.
Quero agora investigar como a Bíblia contribuiu para forjar a trajetória de An-
tonio Conselheiro, particularmente em relação a seu Belo Monte. Terá sua leitura da
Bíblia contribuído para definir suas posturas de ordem teológica e política? De que
maneira? O caminho passa necessariamente pela análise das prédicas contidas nos dois
cadernos atribuídos a ele. Como esse percurso é objeto de controvérsias, são necessárias
algumas justificativas complementares àquelas já apresentadas no início deste livro.
“Apontamentos” e “Tempestades”
Vimos no primeiro capítulo que as poucas abordagens que se fizeram das pré-
dicas de Antonio Conselheiro, aquelas contidas no caderno publicado por Ataliba
Nogueira, desmentem o juízo de Euclides da Cunha a respeito da sua (falta de)
qualidade literária e conceitual. No entanto é preciso lê-las em articulação com o
conjunto da obra histórica do Conselheiro, e ao mesmo tempo estabelecer os nexos
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 205
decoravam ipsis verbis esses sermões vertidos do italiano e revistos por algum mestre
do vernáculo em que eram iniciados. Guardam vestígios da língua original, trazem
pequenos erros nas citações latinas, refletem terminologia relativamente erudita
quando se tem em conta a grande maioria de seus ouvintes.61
Passado e presente
fala dos alimentos que, segundo os relatos bíblicos, sustentaram o povo no percurso
pelo deserto (Êxodo 16-18). Logo depois lemos uma prédica sobre os mandamentos
entregues por Deus a Moisés no monte Sinai, e o sacrifício oferecido como sinal da
aliança aí constituída (Êxodo 19-24). A próxima prédica versa sobre o episódio do
bezerro de ouro (Êxodo 32), em que se destaca a violência de Moisés matando os infi-
éis e o perdão conseguido de Deus. Após ela são descritas as inúmeras regras relativas
ao culto (Êxodo 25-40). A penúltima prédica deste conjunto trata dos derradeiros
momentos de Moisés, com a admoestação aí dada e sua morte (Deuteronômio 34).
E a final trata dos juízes, os “libertadores que Deus lhe [ao povo de Israel] mandou
durante esse tempo” após o ingresso na terra prometida.66
Como se vê, trata-se de um enredo completo, estruturado a partir da história
da liderança de Moisés, que expõe o momento fundante da trajetória do povo de
Israel. Mas não é só. Em praticamente todas as prédicas é clara a perspectiva her-
menêutica com que as histórias bíblicas são recuperadas: trata-se da já mencionada
“leitura tipológica”, em que um elemento anterior, normalmente tirado das Escri-
turas judaicas, serve de modelo para realidades posteriores, particularmente aquelas
encontradas no Novo Testamento.67 Tomo alguns exemplos. O final da terceira
prédica, sobre a celebração da Páscoa, traz o seguinte comentário:
O Cordeiro Pascoal é figura do Cordeiro de Deus, que por nós se imolou. Fomos
marcados com o seu Sangue, e assim preservados da morte eterna. No Santíssimo
Sacramento do Altar Ele nos dá em alimento sua Carne e seu Sangue, debaixo das
espécies de pão ázimo. O livramento dos Israelitas do cativeiro do Faraó por Moisés
representa, ao vivo, o livramento de toda a humanidade da escravidão do demônio
por Jesus Cristo.68
A segunda citação que parece dissociada dos temas preferenciais desta coletâ-
nea é Lucas 19,42: “Ah! Se ao menos neste dia que agora te foi dado, conhecesse
(sic) ainda tu o que te pode trazer a paz; mas por ora tudo isto está encoberto aos
teus olhos”.87 Assim isolado, não pareceria ter maior importância, nem se poderia
sugerir a que estaria referido. Mas se se considera que este versículo reproduz um
lamento de Jesus sobre a Jerusalém incrédula, que terá inspirado frei João Evange-
lista ao ser obrigado a deixar Belo Monte, após sua missão fracassada ao arraial, a
presença dele nesse conjunto começa a fazer sentido.88 De toda forma, será necessá-
rio aguardar a análise do relatório do missionário capuchinho para que seja possível
dar conta do universo conflitivo em que esse versículo bíblico é recolhido e se possa
fazer a pergunta pelo seu sentido.
Percebe-se então, no todo, que as citações bíblicas recolhidas configuram um
quadro coerente que contextualiza a pregação do Conselheiro. O amor de Deus
pela humanidade solicita dela retribuição em dupla direção: amor a Deus e ao
próximo. Esse marco fundamental determina as inserções na realidade presente (o
olhar sobre a sociedade), as motivações do agir e as expectativas do porvir escato-
lógico. Em suas grandes linhas esse perfil pode ser notado também na coletânea de
versículos bíblicos do manuscrito de 1897, que passo a comentar.89
Com efeito, a nova seleção representa uma ampliação da anterior, principal-
mente numa segunda parte, que “não é mais citação de textos bíblicos, mas ostenta
um caráter discursivo apologético”, onde “é sensível a atmosfera de confronto”.90
No entanto a primeira, centrada fundamentalmente na transcrição dos versículos
bíblicos, também se constitui de forma mais ampliada. Todas as citações encontra-
das em “Textos” se fazem presentes na nova coletânea, que, por sua vez, traz novas
passagens. Estas, se não chegam a mudar o quadro acima percebido, reforçam al-
guns aspectos que vale considerar.
Em “Textos” (1895) encontram-se três citações dos evangelhos aproximadas, por
razões que logo comentarei: Mateus 10,32.33; 6,33; 5,44. Em duas delas supõe-se al-
gum tipo de conflito: a necessidade de confessar o Filho do Homem em situações arris-
cadas, e a de amar os inimigos. Na nova coletânea, contudo, inscrevem-se mais três pas-
sagens, que aguçam essa perspectiva. Trata-se de Lucas 10,7; Mateus 6,21; Lucas 6,22.
Mateus 6,21 soa bastante apropriado aos esforços do Conselheiro de mostrar a seus
seguidores as verdadeiras e promissoras opções.91 Já Lucas 6,22 poderia soar como um
conforto à gente conselheirista, mas terá também relevância autobiográfica: estimula o
Conselheiro, consciente de ser perseguido por sua fidelidade a Jesus, a resistir.92
Por outro lado, o aforismo recolhido de Lucas 10,7: “O trabalhador é digno do
seu jornal”93, pode ter dupla repercussão. Primeiramente indicaria um aspecto do olhar
do Conselheiro, sua discordância frente às formas aviltantes de exploração do trabalho
sofridas por grande parte da gente que agora constituía seu séquito, e a nova organiza-
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 211
ção das atividades e tarefas em Belo Monte. Mas podemos articular esse versículo, e o
conjunto de Lucas 10, à trajetória missionária do Peregrino. Com efeito, o trabalhador
a que o texto diretamente alude é aquele que sai anunciando o Evangelho. Se damos
crédito a Euclides, o que o Conselheiro recupera é uma recomendação de Jesus em
Lucas 10, ao ver negada pelo padre de uma vila a licença para pregar na igreja local: “O
peregrino, então, encarou-o fito por algum tempo, e sem dizer palavra tirou de sob a
túnica um lenço. Sacudiu o pó das alpercatas. E partiu. Era o clássico protesto inofen-
sivo e tranquilo dos apóstolos”.94
A presença, nas duas coletâneas que estamos considerando, destes versículos evan-
gélicos que tematizam a missão ambulante, a precariedade de seu exercício, as possíveis
rejeições e perseguições, não terá sido casual. Todos eles provêm, segundo as pesquisas
exegéticas mais recentes, de um evangelho, hoje perdido, que terá servido de base para
a escrita dos evangelhos segundo Mateus e Lucas, chamado, na falta de outro nome,
“Q” (do alemão “quelle”, que significa “fonte”).95 A redação deste hipotético evangelho
poderia ser originária dos chamados “carismáticos itinerantes”, grupos de pessoas que
tinham como programa de ação o texto de Lucas 10,2-12: renúncia à família, à proprie-
dade, à moradia e à riqueza.96 Os textos de Q fundam uma longa tradição, que passa
pelo ascetismo siríaco, por Francisco de Assis e os “espirituais”, e chega ao beatismo am-
bulante do sertão nordestino.97 A recepção deles pelo Conselheiro diz muito a respeito
do que ele pensava sobre si mesmo: a fixação no Belo Monte não lhe tirou a percepção
de que, de toda forma, estava a caminho, era peregrino, imitava o caminhar de Jesus e
seguia seus indicativos nesse sentido.
Deus deu a Moisés outros preceitos para o povo com relação ao culto divino; e tudo
quanto o Senhor lhe ordenou, Moisés executou ponto por ponto. Construiu Moisés
uma imagem sagrada que é a figura da nossa Igreja. A igreja católica, porém, é obra
de Aquele que diz não ter vindo destruir a lei, mas aperfeiçoá-la.101
Mas cabe destacar outros pontos. A primeira prédica destaca aquele aspecto
para o qual o edifício religioso deveria atrair: a oração. Cita-se, do texto bíblico de
1 Reis 8-9, particularmente o momento da prece de Salomão e a resposta divina:
“Ouvi a tua oração, santifiquei esta casa e meus olhos e meu coração aqui estarão
sempre atentos para todos os que me invocarem”.102 Já a obra concluída é sinal
das maravilhas que Deus faz para louvor de seu filho, cujo nome é sobre todos os
nomes (numa menção a Filipenses 2,9-10). E o tom apologético na prédica sobre o
templo de Salomão se acentua naquela da inauguração. O recebimento das chaves
da igreja é a oportunidade para se fazer um apelo à fidelidade, em que se censura
quem não vê ser
de grande utilidade e agradável aos divinos olhos do nosso Bom Deus a construção
dos templos. À vista destas verdades quem deixará de concorrer para a construção
dos templos? Quem ainda se nutrirá da tibieza e indiferentismo para fim tão útil e
importante, que se bem considerasse a criatura os merecimentos que em vida mes-
mo alcança de Deus, certamente não deixaria de concorrer com suas esmolas e com
os seus braços para construção de tão belas obras.103
salvação; contudo atribui ao próprio Jesus essa exclusividade, recorrendo a João 10,9:
“Eu sou a porta e se alguém por mim entrar será salvo”. A Igreja católica deriva de seu
fundador a verdade de que é portadora, e o edifício construído é o espaço adequado
para reunir a “congregação dos fiéis que, por dever inalienável, devem curvar-se reve-
rentemente diante de Deus, rendendo-lhe as devidas orações, invocando seu nome com
amorosa confiança, tendo por certo que Deus lhe seja propício”.104
Esse é apenas um exemplo do que podemos considerar a compreensão conse-
lheirista sobre a igreja católica. Outras páginas o reforçam.105 Mas cabe assinalar que
tais afirmações são feitas por alguém cuja autoridade não tem qualquer legitimidade
institucional e, pelo contrário, é fortemente combatida. De toda forma, o Conselhei-
ro orienta para sua obra os termos com que a igreja católica fundava sua legitimidade.
Eles fundamentam a peculiar existência de Belo Monte, amaldiçoado pelo frade, mas
visitado frequentemente pelo vigário: um lugar onde se busca intensamente a salva-
ção, que se alcança de Jesus, como os patriarcas e profetas anunciaram.106
Meus irmãos, o anti-Cristo é chegado. Está aqui nesse livro [a Missão abreviada].
O ataque de Maceté (sic) constituiu uma prova para nós. O meu povo é valente. O
satanás trouxe a república, porém em nosso socorro vem o Infante rei D. Sebastião.
214
Virá depois o Bom Jesus separar o joio do trigo, as cabras das ovelhas. E ai daquele
que não se arrepender antes, porque tarde não adiantará. Jejuai que estamos nos fins
dos tempos. Belos Montes será o campo de Jesus, a face de Jeová. Os republicanos
não devem ser poupados pois são todos do anti-Cristo. De hoje em diante será
“dente por dente e olho por olho”.108
Sim, o desejo que tenho da vossa salvação (que fala mais alto quanto eu pudesse
aqui deduzir) me forçou a proceder daquela maneira [...] aceitai a minha despedida,
que bem demonstra as gratas recordações que levo de vós, que jamais se apagarão
da lembrança deste peregrino, que aspira ansiosamente a vossa salvação e o bem da
Igreja.111
Por esta salvação o Conselheiro apostou no Belo Monte até a morte, e pela
sua defesa prometeu a salvação a quem morresse em luta. Nesse sentido, é sinto-
mático que um único versículo extraído do livro do Apocalipse apareça no ma-
nuscrito de 1897 (e não no de 1895, o que deixa as coisas ainda mais sugestivas):
“Bem-aventurados são os que morrem no Senhor” (Ap 14,13).112 Ele aparece
após aqueles que falam da hostilidade e da perseguição a quem se mantém fiel à
religião. É tentador pensar que o Conselheiro tenha conscientemente recolhido
uma passagem situada logo após a apresentação que o Apocalipse faz da ação da
Besta-fera e das pessoas marcadas pelo Cordeiro, entre as quais devem ser bus-
cadas aquelas que “morrem no Senhor”. Tanto num caso como noutro temos a
mesma retórica da fidelidade, da recusa da ordem estabelecida. Assim, mais que
alimentar expectativas de fim dos tempos (e muito menos de milênio), a passa-
gem do Apocalipse evidencia o perfil dramático do futuro que o Conselheiro
divisa para si e os seus. Sustenta o Belo Monte no momento em que ele está
prestes a ruir. Fundamenta biblicamente a morte em vias de ocorrer (e que já está
acontecendo, pois estamos em cenário de guerra). Fortalece a luta, pois garante a
salvação: reitera a presença do Senhor dentro do arraial. Sua eventual proclama-
ção não terá tido pouca importância na aguerrida resistência, inexplicável para
Euclides e tantos outros.
216
A missão e o relatório
missão especial no povoado dos Canudos, capela filial da freguesia do Cumbe, pre-
gada juntamente ao Frei Caetano de S. Leo, principiou no dia 13 de maio [segue-se
um trecho riscado] e por justos motivos suspendi a dita missão no dia 21 do mesmo
mês, como declarei em meu relatório publicado na folha, Correio de Notícias de 27
de junho de 1895 e pois reproduzido em todas as folhas do Brasil, desmascarando
completamente o célebre fanático Antonio Conselheiro que tanto mal tem feito à
Religião e ao Estado, leiam o dito relatório: assim mesmo fizeram-se 55 casamentos,
Batizados 102, confissões 400, e dispersou-se [sic] muitos conselheiristas”.116
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 217
Argumentos revisados
Deve-se notar que o frei espera – ou parece pretender – alcançar com sua
palavra o acordo do Conselheiro. A argumentação começa recorrendo à pertença
histórica do beato de Belo Monte: “Senhor, repliquei eu, se é católico...”124 Pode-se
dizer, no intuito de resumir, que a argumentação expressa no Relatório se desenvol-
ve em duas vertentes. A primeira não é nova, o Conselheiro já tinha sido atingido
anteriormente por ela: diz respeito ao lugar de leigo por este ocupado e sua con-
sequente falta de autoridade para liderar uma comunidade religiosa à margem e à
218
inculcando zelo religioso, disciplina e ortodoxia católica, [ele] não tem nada disso;
pois contesta o ensino, transgride as leis e desconhece as autoridades eclesiásticas,
sempre que de algum modo lhe contrariam as ideias, ou os caprichos; e arrastando
por esse caminho os seus infelizes sequazes, consente ainda que eles lhe prestem ho-
menagem que importam um culto, e propalem em seu nome doutrinas subversivas
da ordem, da moral e da fé.
E, mais adiante:
Senhor, repliquei eu, se é católico, deve considerar que a igreja condena as revoltas,
e, aceitando todas as formas de governo, ensina que os poderes constituídos regem
os povos, em nome de Deus [...] Somente vós não vos quereis sujeitar [ao governo
atual]? É mau pensar esse, é uma doutrina errada a vossa.127
Todo o homem esteja sujeito às potestades superiores; porque não há potestade que
não venha de Deus; e as que há, essas foram por Deus ordenadas. Aquele pois que
220
O texto parece não dar margem a dúvidas; vejamos agora o texto que leva o
nome do líder dos doze apóstolos:
Submetei-vos pois a toda humana criatura, por amor de Deus, quer seja ao rei,
como a soberano, quer aos governadores, como enviados por ele para tomar vin-
gança dos malfeitores e para louvor dos bons; porque assim é a vontade de Deus,
que, obrando bem, façais emudecer a ignorância dos homens imprudentes; como
livres, e não tendo a liberdade como véu para encobrir a malicia, mas como servos
de Deus. Honrai a todos, amai a irmandade, temei a Deus, respeitai ao rei (1 Pedro
2,13-17).
Mostrei que tinha sido aquilo um desacato sacrílego à religião e ao sagrado caráter
sacerdotal, e que, portanto, punha termos à santa missão, e, como outrora os após-
tolos às portas das cidades que os repeliam, eu sacudia ali mesmo o pó das sandálias,
e retirava-me, anunciando-lhes que se a tempo não abrissem os olhos à luz da ver-
dade, sentiriam um dia o peso esmagador da Justiça Divina, à qual não escapam os
que insultam os enviados do Senhor e desprezam os meios de salvação.134
Poder-se-ia pensar se a força a que frei João faz referência se abateria sobre a
gente belomontense no contexto do juízo divino a que cada um é submetido após
a morte, nos dizeres da catequese católica convencional. Mas outras indicações
apontam para uma ação divina mais imediata: a repressão, pedida com o eufemis-
mo “providência”135, é vingança à rejeição de que os enviados de Deus são vítimas.
Que não há mais o que fazer fica evidente pela repetição do gesto sugerido por
Jesus aos discípulos, quando não forem aceitos num determinado lugar: “saindo
pelas praças, dizei: vede que até o pó que se nos pegou da vossa cidade sacudimos
contra vós” (Lucas 10,10-11). Frei João recorre à mesma passagem que vimos o
Conselheiro atualizar, quando proibido pelo padre de uma vila de dirigir a palavra
ao povo. Lá o protesto foi inofensivo, reconhece Euclides; aqui deu a senha para a
guerra.
Mas não é só. A saída abrupta da vila permitiu selar a ruptura definitiva:
Galgando a estrada, ao olhar pela última vez o povoado, condoído da sua triste
situação, como o Divino Mestre diante de Jerusalém, eu senti um aperto n’alma e
pareceu-me poder também dizer-lhe:
Ah! se ao menos neste dia, que agora te foi dado, conhecesses ainda tu o que te
pode trazer a paz! Mas por ora tudo isto está encoberto aos teus olhos. Porque virá
um tempo funesto para ti, no qual os teus inimigos te cercarão de trincheiras, e te
sitiarão, e te porão em aperto de todas as partes, e te derribarão por terra a ti e a teus
filhos que estavam dentro de ti, e não deixarão em ti pedra sobre pedra; porquanto
não conheceste o tempo da tua visitação (Lucas 19,42-44).
Resultados
O próprio frei, reagindo ao monarquista católico Carlos de Laet, que lhe cen-
sura os termos do Relatório e o fato de se ter transformado em “um propagandista
político” da República, antecipa o que a guerra produzirá: “Nem há de causar
surpresa a nova de um fim desastroso” de Belo Monte.148
E nem mesmo o massacre efetivado impediu que, anos depois, o episcopado
brasileiro julgasse louvável a contribuição dada visando apaziguar os rebelados do
arraial conselheirista:
Neste momento, a confiança que Euclides deposita no novo regime parece ir-
restrita. Belo Monte é fruto de “propagandistas do império” sobre a gente ignoran-
te e ingênua do sertão, facilmente suscetível ao fanatismo. Ele não tem dúvidas: “a
República sairá triunfante desta última prova”.155 Mas, ao comparar o Belo Monte
com a Vendeia, Euclides não se refere apenas à polarização império x república.
Como se sabe, a resistência da gente da Vendeia à Revolução Francesa tinha moti-
vações religiosas. O “chouan fervorosamente crente” da França se alinha ao “taba-
réu fanático” do sertão: ambos exercitam “o mesmo heroísmo mórbido difundido
numa agitação desordenada e impulsiva de hipnotizados”.156 O vago e depreciativo
fanatismo é o caminho para Euclides abordar o universo religioso dos combatentes
de Belo Monte, do qual não se afastará até Os sertões. Com isso são identificados os
verdadeiros inimigos:
Note-se, ao prosseguirmos com Euclides rumo a Belo Monte, que, à sua visão
dualista da sociedade dividida em progresso e atraso, futuro e passado, avanço e
retardamento, república e monarquia, outro binômio se junta, de novo feito de um
elemento aceitável e outro repugnante, agora no campo religioso: o que em Os ser-
tões será chamado “o belo ideal cristão”158, e o outro, desde já nomeado superstição,
fanatismo, de que o Belo Monte será apresentado como exemplo mais consistente.
Até aqui Euclides desconhece a realidade da guerra, tem com ela alguns poucos
contatos, dela ainda se avizinha, mas já sabe que deuses e demônios também estão
nela atuando, aqueles de um lado e estes, obviamente, a combatê-los. Falta apenas
certificar-se da confirmação do quadro. Tal constatação não é secundária; justifica,
autoriza e incentiva a empreitada bélica.
Ao chegar finalmente e divisar o arraial159, em meados de setembro, Euclides
não consegue conter o espanto, a começar, como de costume, com a topografia.
A seguir descreve o vilarejo, caótico mas admirável, que, apesar dos bombardeios,
permanece praticamente intacto. A reportagem é impactante, ao expressar a sur-
presa provocada pelo ainda que tardio encontro com a cidadela de que tanto já
falara e ouvira falar, capaz de provocar pânico em todo o país.
No entanto, a oportunidade não leva a revisão de posições. Pelo contrário: a
segunda metade da correspondência se encarregará de esboçar explicações, agora
228
com dados colhidos in loco, para as dificuldades encontradas pelo exército no cum-
primento de sua missão, especialmente no tocante ao combate de 18 de julho, um
dos mais sangrentos da guerra.160
Neste quadro surgem as duas referências mais expressivas de tal conjunto de
reportagens. Nelas o olhar do repórter-hermeneuta se revela poderosamente. Pri-
meiramente a mirada sobre a cidadela aparentemente vazia, intensamente bombar-
deada, unanimemente execrada, mas ainda de pé. Ruínas muitas, que não impe-
dem divisar um portentoso empreendimento. Contudo, e por conta disso, já que
se olha “para a aldeia enorme e não se lobriga um único habitante”, pensa-se em
“uma cidade bíblica fulminada pela maldição tremenda dos profetas”.161
Parece que, por um momento, Euclides perdeu de vista as inquietações que
começaram a atormentá-lo quando do seu contato com a gente sertaneja barbari-
zada. Por um momento a contemplação atenta do jornalista deixa os detalhes topo-
gráficos e viaja a Israel, ao mundo bíblico, ao encontro de profetas vaticinadores do
terror e da destruição. E ele os encontra abundantemente. Várias cidades têm seu
desaparecimento anunciado; por exemplo, a cidade de Nínive, a capital do império
assírio, que Jonas (no livro profético de mesmo nome) declara prestes a ruir, devido
às atrocidades ali planejadas. A surpresa é que a ameaça não se cumpre.
No entanto, a cidade que na Bíblia tem sua destruição muitas vezes anunciada
é Jerusalém, por conta de sua política e religião abomináveis, e é especialmente nela
que Euclides está a pensar. É ela que merece as condenações de Miquéias, Isaías ou
Jeremias.162 Séculos depois, é Jesus de Nazaré que vaticina contra ela, apontando
sua destruição, segundo o testemunho dos evangelhos, escritos no contexto da
efetiva ruína provocada pela ação das tropas romanas, no ano 70 de nossa era.
Note-se que a comparação de Belo Monte com a cidade santa dos judeus será
muito cara a Euclides; é famosa, em Os sertões, a menção à “Jerusalém de taipa”,
amaldiçoada por frei João Evangelista. Belo Monte, a Jerusalém sertaneja, tem sua
iminente destruição selada com o beneplácito divino. Inclusive para que sejam
vingados aqueles que no cumprimento do sacro dever são hostilizados, feridos e
mortos: verdadeiros mártires.163 A cidade santa é transposta para as margens do
Vaza-barris, convertida na capital do retardamento; precisa então ser destroçada
pela ação das tropas civilizadas.
Mas há outro aspecto a ser considerado. Na visão de Euclides, a ação do exér-
cito apenas realiza os vaticínios proféticos. É sugestivo ver um autor, filho do Ilu-
minismo, tão cioso de suas análises objetivas, em busca de explicações biológicas e
naturalistas para o agir humano, recorrendo a tal imaginário para descaracterizar o
inimigo incompreensível, mas certamente bárbaro, e ao mesmo tempo justificar o
que de outra forma deveria ser classificado como barbaridade. Uma dupla observa-
ção a este respeito: se de um lado o recurso a este imaginário é sinal das exigências
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 229
que o arraial maldito impõe a quem o contemple e queira interpretá-lo – e por isso
Euclides não pode deixar de perceber em Belo Monte influxos decisivos de um
cristianismo absurdo e aberrante – de outro lado a eloquência revelada nesta página
se entende também num contexto nacional em que a destruição busca todo o tipo
de legitimação, inclusive, e não por último, a religiosa.
O quadro fica ainda mais denso quando se constata que, para Euclides, ruínas
são hermeneuticamente significativas; a história é “essencialmente uma construção
de ruínas; a obra civilizatória, dado o eterno drama do choque de temporalidades
culturais, significa, também, um processo irrefreável de fabricação de desertos”.164
A legitimidade e a inevitabilidade da ação militar são mais uma vez afirmadas,
agora com o recurso ao imaginário religioso. O exército age qual agente divino
destinado a cumprir as profecias catastróficas de destruição da cidade santa.
Agora a segunda referência. Se Belo Monte é a “aldeia sinistra”, se o exército
não faz outra coisa que realizar a implacável vontade divina, o que são os rebeldes
sertanejos, habitantes do horror? Euclides não escapa à conclusão: o exército demo-
ra em alcançar a tão sonhada vitória pois seus inimigos são sobrenaturais, terrivel-
mente sobrenaturais. Eles, que parecem não vir de nenhum lugar, seriam, ao olhar
da fantasia, “uma legião invisível e intangível de demônios...”165
Na verdade, em Belo Monte os demônios estão aos montes, formam uma
“legião”. Se não a consideramos casual, esta metáfora, a da “legião de demônios”,
parece ter também sua matriz no universo bíblico. Nela, Euclides atribui aos ja-
gunços belomontenses uma característica que ao mesmo tempo nos remete para
duas esferas, ao menos. Não terá passado despercebido ao jornalista que o termo
aponta para o mundo militar, pois é daí que o termo deriva, e é neste contexto que
aparece aqui. No entanto, o que mais surpreende é o fato de seus componentes
serem demônios. E aí, mais do que uma coincidência, isto parece remeter para uma
passagem do evangelho (Marcos 5,1-20):
E ao sair Jesus da barca, veio logo a ele dos sepulcros um homem possesso do espí-
rito imundo [...] E dando um grande grito, disse: Que tens tu comigo, Jesus, Filho
de Deus altíssimo? [...] E [Jesus] perguntou-lhe: Que nome é o teu? Ao que ele
respondeu: Legião é o meu nome, porque somos muitos (Marcos 5,2.10).
Em Os sertões, que Euclides começa a escrever meses após sua volta da Bahia,
ao ser nomeado para acompanhar a reconstrução de uma ponte em São José do
Rio Pardo, interior paulista, o tom se modifica sensivelmente. As últimas repor-
tagens permitiam antever uma significativa revisão de posições. Aqueles que até
então eram tidos como demônios são vistos agora como compatriotas, embora
desencaminhados. E um poema, criado em Salvador dias depois da volta do palco
da guerra e do misterioso silenciamento, em suas reportagens, sobre os últimos
combates, dá conta do que lhe passa na cabeça: “Quem volta da região assustadora
/ De onde eu venho, revendo, inda na mente / Muitas cenas do drama comovente
/ Da Guerra despiedada e aterradora [...]”171
Mas é na escrita de seu livro maior que Euclides poderá dar vazão às contradi-
ções que vem carregando dentro de si desde quando testemunhou o cruel massacre
sem poder denunciá-lo. Quanto ao alcance desta revisão, haverá a oportunidade de
avaliá-lo. Por ora, importa notar que, para a composição do argumento euclidiano,
o recurso ao universo religioso e teológico será inevitável. Até porque Euclides não
conseguirá compreender o sentido e o alcance da experiência religiosa vivida no ar-
raial belomontense. Nesse aspecto não se afastará das críticas anteriores. Talvez seja
maior a pretensão do ataque aos rumos da República, manifestos cabalmente na
empreitada militar, que o anseio por defender a gente sertaneja.172 Assim, no livro
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 231
Justo nesse dia, pouco depois da morte do Conselheiro, quando Euclides pode
dizer que “a insurreição estava morta”185, porque o cerco do Exército ao arraial
finalmente se consumara, a descrição da tragédia assume cores densas e evoca ima-
gens dantescas, amplamente conhecidas:
A cena é sugestiva por causa de seu pano de fundo bíblico, da evocação do que ocor-
reu na hora da morte de Jesus, assim narrada pelo evangelista Lucas (23,44-45): “E
era já quase a hora sexta, e houve trevas em toda a terra até a hora nona, escurecen-
do-se o sol; e rasgou-se ao meio o véu do templo”. Na versão do evangelista Mateus
(27,50-52): “Jesus, clamando outra vez com grande voz, rendeu o espírito. E eis que
o véu do templo se rasgou em dois, de alto a baixo; e tremeu a terra, e fenderam-se
as pedras. E abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos, que dormiam, fo-
ram ressuscitados...”. O paralelismo é patente. A batalha ocorre em volta e em cima
dos templos de Canudos, dois dias após a morte do “bom Jesus”, comunicada ao
leitor duas páginas antes, de modo que se pode dizer aproximadamente que à sua
morte seguiu-se o eclipse. A vinculação cronológica entre a morte do Conselheiro e
o rasgamento do véu sobre a “Jerusalém de taipa” portanto é muito estreita; chegam
a ser quase simultâneos na mente do narrador, naquele dia da condenação à morte
de Canudos, sem que ninguém do exército, durante a batalha, soubesse ao certo da
morte do Conselheiro dois dias antes.186
Resultados
CONCLUSÃO
para o mal, tudo isso ganhou contornos emprestados aos livros sagrados cristãos.
Surpreende que até mesmo na obra euclidiana essa presença seja significativa.
Não será desnecessário resumir os aspectos mais relevantes do caminho até
aqui percorrido. As histórias centradas no êxodo dos hebreus e no seu entorno
configuraram a mais significativa maneira de a gente sertaneja dar sentido a sua
fuga das fazendas, à venda dos bens (o que tanto incomodou o barão de Jeremoabo
e seus pares) e ao deslocamento para junto do Conselheiro. E as terras à beira do
Vaza-barris converteram-se em ribanceiras de cuscuz, jorraram leite. Mas a proxi-
midade do massacre, se não eliminou de todo as esperanças pela vitória (ainda nos
últimos dias da guerra) ativou antigas e reiteradas afirmações sobre o fim iminente.
Tanto horror, obra das hostes do Anticristo, era inequívoco prenúncio. O relato
bíblico do dilúvio e as promessas proféticas alimentaram a resistência aguerrida, à
espera do julgamento final, que não tardaria. A esperança da salvação não morreu.
Para o Conselheiro as coisas trilhavam rumos significativamente distintos.
Temores apocalípticos, ativados quando dos eventos que culminaram em Mas-
seté, terão sido dissipados quando com sua gente se fixou no velho arraial de
Canudos. Novos tempos, novo nome: Belo Monte sinaliza para seus habitantes
o enorme amor de Deus e aponta para a necessidade de corresponder a tamanha
graça. O peregrino, que atualizava em suas andanças intermináveis o modo de
ser de Jesus e seus primeiros seguidores e refizera suas opções ao ir ao encontro
dos mal-aventurados, em vistas à salvação eterna, fazia do arraial, que vivia da
força de suas igrejas, o lugar em que os pobres do sertão podem alimentar tanto
o corpo quanto a alma. Rompia assim, de alguma forma, a lógica que exigia o
sacrifício daquele para que esta pudesse alcançar seu destino salvífico. E mesmo
a guerra não alterou substancialmente tal modo de pensar e conduzir seu povo;
pelo contrário, certificou-o de que não havia outro caminho senão resistir e, se
necessário fosse, “morrer no Senhor”. Nessas diversas facetas do pensamento e
ação do Conselheiro, a leitura e a transcrição de passagens bíblicas foram ilumi-
nadoras.
Não estranha que os posicionamentos oficiais da Igreja Católica na Bahia
tenham tido direção contrária. Se mesmo antes do surgimento de Belo Monte a
ação de Antonio Conselheiro já suscitava reações da sé arquiepiscopal e de boa
parte dos vigários do sertão, a reação deste aos novos impostos possibilitados pela
República e a organização do arraial só aguçaram o conflito. Aos olhos eclesiásti-
cos à desobediência ao clero se soma outra: a insubmissão às autoridades consti-
tuídas. No contexto em que a instituição eclesiástica buscava reatar os laços com
o Estado que dela se desligara, tal posicionamento em relação ao arraial insur-
recto era mais que oportuno: com estas credenciais podia pedir a eliminação da-
quele quisto, que agora ameaçava tanto a unidade eclesial como a ordem pública.
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 237
________
NOTAS
vista a mim concedida a 11/12/99), dizia não ser possível avaliar com certeza até
onde Aras falava do que conhecia e a partir de quando fantasiava em seus relatos.
5 José Aras. Sangue de irmãos..., p.149.
6 Nertan Macedo. Memorial de Vilanova. 2 ed., Renes / Instituto Nacional
do Livro, Rio de Janeiro / Brasília, 1983, p.67.
7 João Evangelista de Monte Marciano. Relatório apresentado, em 1895, pelo
reverendo frei João Evangelista de Monte Marciano, ao Arcebispado da Bahia, sobre
Antonio Conselheiro e seu séquito no arraial dos Canudos. Tipografia do Correio
da Bahia, Salvador, 1895 (edição em fac-símile pelo Centro de Estudos Baianos,
1987), p.5 (os destaques são meus).
8 Sobre a relevância do milho, as páginas de Gilberto Freyre são sig-
nificativas (Casa-grande e senzala. 13 ed., Universidade de Brasília, 1963,
p.107.156.184).
9 Euclides da Cunha. Os sertões: campanha de Canudos. 4 ed., Ateliê, São
Paulo, 2009, p.295. Também para Dantas Barreto o que tantos, além dos “assassi-
nos, os ladrões e os que não trabalhavam” encontraram em Belo Monte era a “terra
prometida” (Destruição de Canudos. Jornal do Recife, 1912, p.11; destaque do au-
tor). O nome “Canaã” é utilizado na Bíblia quase exclusivamente como designação
da terra a ser conquistada pelos israelitas.
10 Entendo que os testemunhos seguintes expressam a dinâmica que ocorre,
no mundo da oralidade, entre a expressão matriz (a “terra da promissão” com os
alimentos que lhe caracterizam a fartura: “leite e mel”) e as possibilidades de sua
recriação, seja na forma da transmissão, seja em função de novas circunstâncias e
ambientes.
11 Manuel Pedro das Dores Bombinho. Canudos, história em versos. Hedra/
Imprensa Oficial do Estado/Edufscar, São Paulo, 2002, p.32.
12 Memórias de grupos indígenas recolhidas em Maria Lucia Felicio Mas-
carenhas. Rio de sangue e ribanceira de corpos. Bacharelado em Antropologia. Ufba,
Salvador, 1995, p.28, 50 e 57, respectivamente.
13 Nelson de Araújo. Pequenos mundos. Um panorama da cultura popular
na Bahia. UFBA / Fundação Casa de Jorge Amado, Salvador, 1988. t.2, p.46.
Mas há outras memórias. Em Riachão do Dantas, interior do Sergipe, o Conse-
lheiro, entre 1872 e 1874, teria conseguido “atrair alguns adeptos para a sua cau-
sa. Instalado com seus acompanhantes na casa do Coronel Patrício, não hesitava
em convidar os moradores a seguir para uma cidade independente. Um local,
segundo Sr. Daniel Fabrício, ‘de terra fértil e abundante, onde existia um rio de
leite’” (Itamar Freitas de Oliveira. “No rastro de Conselheiro”. In: http://www.
infonet.com.br/canudos/roteiro.htm [09/03/03]). Esse interessante testemunho
sugere algumas observações. Inicialmente, parece um anacronismo pensar que,
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 239
da gente do arraial e de seu líder; os militares parecem ter tido particular interesse
naquelas histórias que considerariam meras lendas e fantasias de ignorantes (como
se pode ler no interrogatório a que foi submetido o “jaguncinho” Agostinho, a que
esteve presente Euclides da Cunha; veja seu Diário de uma expedição. Companhia
das Letras, São Paulo, 2000, p.105-111).
40 Bahia de todos os fatos. Cenas da vida republicana 1889-1991. Assembléia
Legislativa do Estado da Bahia, Salvador, 1996, p.36. Eis um dos poucos testemu-
nhos em que é explícito que se trata da fala de uma mulher.
41 Após o Concílio de Trento “a Igreja católica insistiu [...] muito mais no
juízo particular que no Juízo Final” (Jean Delumeau. História do medo no Ociden-
te..., p.238).
42 Citado por Robert Levine. O sertão prometido: o massacre de Canudos.
Edusp, São Paulo, 1995, p.246.
43 Citado em Walnice Nogueira Galvão. No calor da hora: a guerra de Canudos
nos jornais. 3 ed., Ática, São Paulo, 1994, p.478-479. Mantive a ortografia, diferente
daquela que Euclides recolhe em sua Caderneta de campo (p.72-73). Aí o missivista
tem o nome Esequiel Profeta de Almeida. Também Dantas Barreto (Destruição de
Canudos..., p.23-25) transcreve a carta, que soaria aos militares como confirmação
do monarquismo do arraial e expressão de alguma conspiração contra a República.
44 Robert Levine. O sertão prometido..., p.286.
45 O descarte que Villa propõe ao documento, por não ser da pena do Con-
selheiro (Canudos: o povo da terra. Ática, São Paulo, 1995, p.231) é incompreensí-
vel. Esta constatação não exime da tarefa de analisar o documento! Mais sensata é
a óbvia avaliação de Calasans: “Se você visse as profecias entendia que elas existiam,
mas que não eram do Conselheiro” (Marco Antonio Villa [org.] Calasans, um de-
poimento para a história. Uneb, Salvador, 1998, p.69-70; destaque meu).
46 Euclides da Cunha. Caderneta de campo..., p.74-75. Para um rápido co-
mentário do teor da profecia, veja Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.294.
47 Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.294-295, nota 394 (para ele
caberia adequadamente a data de 24/01/1897.
48 Trata-se de um recurso literário típico de textos de cunho apocalíptico. Na
análise de textos bíblicos ele é denominado “vaticinia ex eventu” (vaticínios após o
evento) relatados a partir de um suposto autor antigo (veja Norman K. Gottwald.
Introdução sócio-literária à Bíblia hebraica. Paulinas, São Paulo, 1988, p.540).
49 Luitgarde O. Cavalcanti Barros. “Crença e parentesco na guerra de Ca-
nudos”. In: E. Diatahy B. de Menezes e João Arruda (org.) Canudos: as falas e os
olhares. UFC, Fortaleza, 1995, p.80.81.
50 Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares. A guerra de Canudos. 3 ed.,
Philobiblion / Instituto Nacional do Livro, p.181.
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 243
como no da antiga Lei, uma hierarquia Sagrada, composta do Papa, dos Bispos,
Sacerdotes, Diáconos” (“Leis do culto divino”. In: Apontamentos dos preceitos da
divina lei..., p.210).
70 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Derradeira admoestação de Moisés,
sua morte”. In: Apontamentos dos preceitos da divina lei..., p.211-212.
71 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Os juízes”. In: Apontamentos dos pre-
ceitos da divina lei..., p.216.
72 A transcrição dos versículos (às vezes em latim e português, ou apenas numa
das duas línguas) não parece obedecer a uma sequência temática, o que se nota pela
ordem em que eles aparecem, ou pela distribuição dos parágrafos no interior do con-
junto. Julgo que isso se deve principalmente a uma visão integrada construída pelo
Conselheiro, em que os diversos assuntos se articulam. Apenas para efeito de clareza na
exposição é que separo os diversos temas que, a meu ver, orientam a seleção dos versí-
culos encontrados nessa parte do manuscrito.
73 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.236.239.
74 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.236.242.
75 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.238-239. A passagem citada é Romanos 5,20.
76 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.247. O manuscrito não indica a citação, que é Mateus 16,28.
77 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.239. Não se faz alusão explícita a qualquer passagem bíblica.
78 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.245.
79 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.243.
80 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.237-238.
81 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.236-237.
82 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.239. A citação apresentada é Mateus 22,37, que corresponde
ao versículo latino transcrito, relativo ao amor a Deus. Mas a tradução que vem
a seguir se prolonga até o v.39, incluindo a prescrição do amor ao próximo, e a
semelhança desta com a anterior.
83 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.244-245.
248
84 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos precei-
tos da divina lei..., p.244. Itamar Freitas de Oliveira afirma ter ouvido de Daniel
Fabrício, morador de Riachão do Dantas (Sergipe), que na passagem por essa
cidade, entre 1872 e 1874, o Conselheiro teria “aconselhado”, recorrendo “à
parábola ‘da passagem do camelo pelo fundo da agulha’”, um certo José de tal
(segundo outra fonte, Joaquim da Macota) a deixar seus bens e seguir rumo à
“terra prometida” (“No rastro de Conselheiro”. In: http://www.infonet.com.br/
canudos/roteiro.htm [09/03/03]). Ainda segundo Fabrício, este fazendeiro foi
um “rico que imitou Mateus”. Com certeza uma alusão ao apóstolo Mateus, que,
segundo o evangelho que leva seu nome (9,9-13), era um publicano, cobrador
de impostos, e largou seu ofício para seguir Jesus. Note-se que a passagem do
camelo é uma das favoritas do pe. Ibiapina (veja Luitgarde Oliveira Cavalcanti
Barros. A terra da mãe de Deus..., p.102).
85 O texto bíblico reza: “Quando deres algum jantar, ou alguma ceia, não
chames nem teus amigos nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos,
que forem ricos: para que não aconteça que também eles te convidem à sua vez
e te paguem com isso; mas, quando deres algum banquete, convida os pobres, os
aleijados, os coxos e os cegos: e serás bem-aventurado, porque esses não têm com
que te retribuir: mas ser-te-á isso retribuído na ressurreição dos justos” (Antonio
Vicente Mendes Maciel. “Sobre a parábola do semeador”. In: Tempestades que se le-
vantam no coração de Maria..., p.558-559. Editado em: Ataliba Nogueira. António
Conselheiro e Canudos..., p.185).
86 Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.228.
87 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.245.
88 João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.7. Alexandre Otten,
contudo, sugere outro sentido para a presença deste versículo, agora na seção “Tex-
tos extraídos da Sagrada Escritura” do manuscrito de 1897: referir-se-ia aos inimi-
gos da religião, aos incrédulos, cuja obra terá duração passageira. Isso justificaria a
presença do mesmo versículo no sermão sobre a República (“Só Deus é grande”...,
p.245-246).
89 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos extraídos da Sagrada Escritura”.
In: Tempestades que se levantam no coração de Maria..., p.427-485. Editado em:
Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.157-167. Alexandre Otten
apresenta um rápido comentário a respeito (“Só Deus é grande”..., p.219-222).
90 Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.221.222.
91 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos extraídos da Sagrada Escritura”.
In: Tempestades que se levantam no coração de Maria..., p.452. Editado em: Ataliba
Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.161.
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 249
priamente religiosa, estranha ver como se possa afirmar que “a questão que levou o
Frei João Evangelista de Monte Marciano a Canudos foi a não aceitação ao regime
republicano e não qualquer problema ligado especificamente à esfera religiosa” (Jac-
queline Hermann. Histórias de Canudos: o embate cultural entre o litoral e o sertão
do século XIX. Dissertação de Mestrado, UFF, Niterói, 1990, p.161; destaque
meu).
127 João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.4.
128 Euclides da Cunha. Os sertões..., p.324.
129 Hugo Fragoso, “O apaziguamento do povo rebelado mediante as mis-
sões populares, nordeste do II império”. In: Severino Vicente da Silva (org.) A
Igreja e o controle social nos sertões nordestinos. Paulinas, São Paulo, 1988, p.10-53.
130 João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.6.
131 João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.4. A Pastoral coletiva
do episcopado brasileiro, publicada em 1890, afirma que “a Igreja é indiferente a
todas as formas de governo. Ela pensa que todas podem fazer a felicidade geral dos
povos, contanto que estes e os que os governam não desprezam a Religião” (veja
texto em: Anna Maria Moog Rodrigues (org.) A Igreja na República. Universidade
de Brasília, 1981, p.54). Isto é o dito. Quanto à prática, veja Oscar de Figueiredo
Lustosa. A igreja católica no Brasil república. Paulinas, São Paulo, 1991, p.21-30.
O autor cita como exemplar, na nota 20 da p.25, o caso do arcebispo do Rio de
Janeiro, que exigia o direito de, como cidadão, permanecer monarquista.
132 João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.7.8.
133 Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros..., p.138.
134 João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.6.
135 João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.8.
136 João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.7.
137 Hugo Fragoso. “O apaziguamento do povo rebelado...”, p.29-52.
138 Bartelt tem páginas interessantes sobre o processo de configuração do
Conselheiro como herege, por parte das autoridades eclesiásticas (Sertão, república
e nação. Edusp, São Paulo, 2009, p.99-102).
139 Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros..., p.138.
140 Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.98.
141 Euclides da Cunha. Os sertões..., p.324.
142 Lizir Arcanjo Alves. Humor e sátira na guerra de Canudos. Secretaria de
Cultura e Turismo do Estado da Bahia / Empresa Gráfica da Bahia, Salvador, 1997,
p.28.
143 Edmundo Moniz. Canudos: a guerra social..., p.55.
144 Já se falou do mapa da vila feito por frei João para apoio às ações mili-
tares.
254
lheirista, que lhe justificara a comparação com a vila francesa, nem por isso a alusão
a esta será abandonada, e isso por conta da semelhança que o escritor encontra no
terreno das convicções religiosas, raiz do monarquismo atrasado lá e cá: “Canudos
era a nossa Vendeia. O chouan e as charnecas, emparelham-se bem com o jagunço
e as caatingas. O mesmo misticismo, gênese da mesma aspiração política...” (Os
sertões...., p.365).
157 Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.91 (grifo do autor). Por
outro lado, o líder de Belo Monte, “espécie bizarra de grande homem pelo avesso,
tem o grande valor de sintetizar admiravelmente todos os elementos negativos,
todos os agentes de redução de nosso povo” (p.89). As linhas seguintes mostrarão
Euclides tratando de “demitizar” a interpretação teológica que o Conselheiro faria
de si mesmo. E mesmo quando algumas dúvidas já se tiverem instalado no interior
das certezas do escritor, sua percepção do Conselheiro não se modificará: trata-se
de um “evangelizador fatal e sinistro que os arrastou [os sertanejos] a uma desgraça
incalculável” (p.187).
158 Euclides da Cunha. Os sertões..., p.302.
159 Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.174-182.
160 A derrota nesse combate exigiu do general Artur Oscar, praticamente
confessando seu malogro nesta circunstância, pedir um reforço de cinco mil solda-
dos, o que repercutiu muito mal nos ambientes do Rio e São Paulo. Uma descri-
ção deste combate pode ser lida em Edmundo Moniz. Canudos: a guerra social...,
p.191-200. Como se vê, a chegada de Euclides a Belo Monte possibilita-lhe, mais
uma vez, buscar satisfazer a opinião pública, incomodada com a inexplicável de-
mora na eliminação do “incompreensível e bárbaro inimigo” (Euclides da Cunha.
Diário de uma expedição..., p.199).
161 Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.178.
162 Jerusalém também era apresentada, em textos proféticos, na perspectiva
da restauração do povo; mas não é nesta perspectiva que a cidade santa ganha es-
paço nas páginas das reportagens de Euclides, muito pelo contrário. A que importa
é outra, aquela dos terríveis vaticínios proféticos, expressões dos desígnios divinos,
como o seguinte, da profecia de Miquéias: “Ouvi isto, príncipes da casa de Jacó,
e juízes da casa de Israel [...] por vossa causa será lavrada Sião como um campo, e
Jerusalém será reduzida a um montão de pedras, e o monte do templo a umas altas
reboleiras de bosques” (3,9.12).
163 Para a qualificação dos soldados como mártires veja Euclides da Cunha.
Diário de uma expedição..., p.69.
164 Francisco Foot Hardman. “Brutalidade antiga: sobre história e ruína em
Euclides”. In: Estudos Avançados. São Paulo, 1996. n.26, p.294.
165 Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.178.
256
166 Essa é uma percepção que apenas recentemente a pesquisa exegética bus-
cou desenvolver (Ched Myers. O evangelho de são Marcos. Paulus, São Paulo, 1992,
p.237-241; John D. Crossan. O Jesus histórico. A vida de um camponês judeu do
Mediterrâneo. 2 ed., Imago, Rio de Janeiro, 1994, p.350-355).
167 Aliás, esta não é a primeira vez que Euclides aproxima os sertanejos dos
demônios: na reportagem de 20 de agosto, ainda na capital da Bahia, menciona
a “perversidade satânica” dos jagunços (Diário de uma expedição..., p.115). No
entanto, aqui é o substantivo que caracteriza os sertanejos rebeldes. Não mereceu
imagem semelhante o exército em qualquer das descrições de ataques por este
realizados. Por outro lado, cabe fazer aqui referência à “Legio Fulminata de João
Abade”, que encontraremos em Os sertões (p.403). A expressão latina, que Eucli-
des deve provavelmente a Ernst Renan (autor com quem logo nos depararemos),
refere-se a um fator providencial, tido por obra do sobrenatural (ao contrário do
que propõem Célia Mariana F. F. da Silva e Manoel Roberto F. da Silva, em en-
saio sobre a questão: “Esclarecendo o texto: ‘A Legio Fulminata de João Abade’”.
In: Gazeta do Rio Pardo [Suplemento Euclidiano]. São José do Rio Pardo, agosto
de 1987).
168 Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.140. Já no começo
das reportagens aparecia, quase perdido em meio a tantos elogios ao exército, a
necessidade do “mestre-escola” para civilizar os sertanejos (p.92). Mas no fim da
estadia em Belo Monte, parece que Euclides se mostra mais sensível ao drama do
outro, praticamente eliminado. E praticamente pede licença aos leitores da capital
paulista para expressar sua admiração pela bravura dos que anteriormente caracte-
rizara como portadores de uma “perversidade satânica”. Parece até antecipar aquela
decepção com o massacre que vê e com as atitudes do exército republicano que se
manifestará mais tarde em Os sertões, embora sem dúvida de que é a República que
deve triunfar, e de que não há espaço para o que Belo Monte representa: “Sejamos
justos – há alguma coisa de grande e solene nesta coragem estoica e incoercível, no
heroísmo soberano e forte dos nossos rudes patrícios transviados e cada vez mais
acredito que a mais bela vitória, a conquista real consistirá no incorporá-los, ama-
nhã, em breve, definitivamente, à nossa existência política” (p.208).
169 Também na reportagem de 1o de setembro (Diário de uma expedição...,
p.140) os sertanejos rebeldes são chamados “rudes patrícios”.
170 Nicolau Sevcenko. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cul-
tural na Primeira República. 4 ed., Brasiliense, São Paulo, 1999, p.145.
171 Esta é a primeira estrofe do soneto “Página vazia”, datado de 14/10/1897
(Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo, 2002. n.13/14, p.160-161).
172 “Não tive o intuito de defender os sertanejos porque este livro não é um
livro de defesa; é, infelizmente, de ataque” (Euclides da Cunha. Os sertões..., p.784).
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 257
173 Alfredo Bosi. Literatura e resistência. Companhia das Letras, São Paulo,
2002, p.213. Para a contextualização dessa “esquizofrenia” da obra de Euclides,
pode-se ler Valentim A. Facioli. Euclides da Cunha: a gênese da forma. Tese de
doutoramento, São Paulo, 1990, p.97-114.
174 Euclides da Cunha. Os sertões..., p.252.
175 Euclides da Cunha. Os sertões..., p.275.
176 Euclides da Cunha. Os sertões..., p.274.
177 Quanto ao milenarismo (ou quiliasmo), é conveniente precisar o sen-
tido do termo. Ele vem de uma passagem do livro do Apocalipse (20,1-6), e diz
respeito à “crença num reino terrestre vindouro de Cristo e de seus eleitos – reino
este que deve durar mil anos, entendidos seja literalmente, seja simbolicamente”;
trata-se de uma “espera de um reino deste mundo, reino que seria uma espécie de
paraíso terrestre reencontrado” (Jean Delumeau. Mil anos de felicidade: uma histó-
ria do paraíso. Companhia das Letras, São Paulo, 1997, p.17-18; veja Pedro Lima
Vasconcellos. “A vitória da vida: milênio e reinado em Apocalipse 20,1-10”. In: Re-
vista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis, 1999. n.34, p.79-92).
Esperança essa alimentada por “movimentos sociais que procuram uma mudança
radical e maciça de acordo com um plano divino predeterminado. Seus membros
rejeitam, em geral, a ordem social vigente e dela se afastam” (Robert Levine. O
sertão prometido..., p.29), pois “agora mesmo o mundo estava se aproximando, por
meio de incessantes conflitos, de um estado sem nenhum conflito. Chegaria um
momento em que, em uma prodigiosa batalha final, o deus supremo e seus aliados
derrotariam as forças do caos e seus aliados humanos, aniquilando-os de uma vez
por todas. A partir de então, a ordem divinamente estabelecida estaria presente
de maneira absoluta; as necessidades e as misérias físicas seriam desconhecidas... a
ordem do mundo jamais voltaria a ser perturbada ou ameaçada” (Norman Cohn.
Caos, cosmo e o mundo que virá: a origem das crenças no Apocalipse. Companhia
das Letras, São Paulo, 1996, p.296). A ação divina transformará o cosmos e o
recriará de forma a se superarem os dramas presentes. O tempo novo integra um
plano divino previamente estabelecido e de cuja revelação e conhecimento vivem
os milenaristas, pois representará a salvação deles e a destruição dos pecadores, os
responsáveis pelo atual estado de coisas (Vittorio Lanternari. “Milênio”. In: Enci-
clopédia Einaudi. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994, s/l, v.30 (Religião
– Rito), p. 303-324).
178 A redação das profecias se distingue radicalmente da escrita das prédicas,
normalmente escritas com correção. Basta ver os textos analisados nas duas primei-
ras partes deste capítulo para verificá-lo. Quanto ao teor dos textos sertanejos, pelo
que busquei mostrar a perspectiva milenarista passa longe. Mas ainda voltarei ao
assunto.
258
e os olhares de sua época. Nankim / Unesp, São Paulo, 2003, p.87-101). O próprio
Araripe manifesta seu desacordo: este “imputou talvez maior importância do que
devia a esse despeitado da vida [Antonio Conselheiro]” (“Os sertões [Campanha de
Canudos por Euclides da Cunha]”. In: José Leonardo do Nascimento e Valentim
Facioli [org.] Juízos críticos..., p.65).
190 “Ao cobrir a guerra de Canudos, Euclides silenciou sobre o horror da
guerra. Deixou-se cegar pela máquina de propaganda da imprensa e do governo”
(Roberto Ventura. “Euclides da Cunha e a república”. In: Estudos avançados. São
Paulo, 1996. n.26, p.285).
191 Adilson Odair Citelli. “No mundo dos homens, na ordem de Deus”. In:
Benjamin Abdala Jr. e Isabel Alexandre (org.). Canudos: palavra de Deus, sonho da
terra..., p.73. A proposta que aí se faz, de comparação com o perfil do Conselheiro de-
senhado por Afonso Arinos em Os jagunços (como se sabe, um romance sobre a saga de
Antonio Conselheiro e seu Belo Monte, publicado em 1898), é ilustrativa para nossos
propósitos de destacar o caráter de construção da figura delineada por Euclides; pois
“estamos diante de duas imagens da personagem histórica sendo retrabalhadas segundo
visões de mundo que não se escondem por trás do ‘discurso da neutralidade’” (p.76).
192 Regina Zilberman. “Euclides e os outros”. In: Rinaldo de Fernandes
(org.) O clarim e a oração. Geração, São Paulo, 2002, p.410. Anteriormente Zilber-
man afirmara que Euclides “acaba por introjetar um modo [...] mágico de interpre-
tar os acontecimentos, modo esse que irrompe em meio ao discurso cientificista e
acadêmico que escolhe para descrever o processo ocorrido em Canudos” (p.408).
No tocante aos vínculos com a filosofia de August Comte, “desconhecida, mas
indubitável, foi a influência” desta “na formação de Euclides da Cunha” (Ivan Lins.
História do positivismo no Brasil. 2 ed., Companhia Editora Nacional, São Paulo,
1967, p.503). Mas parece que a influência do evolucionismo spenceriano na es-
crita de Os sertões, é maior (Clóvis Moura. Introdução ao pensamento de Euclides da
Cunha. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1964, p.28-33; Miguel Reale. Face
oculta de Euclides da Cunha. Topbooks, Rio de Janeiro, 1993, p.46-47). Por outro
lado, não é só na percepção fatalista e teleológica da história que religião e positivis-
mo se encontrarão nos primeiros anos da República (veja Roberto Romano. Brasil:
Igreja contra Estado. Kairós, São Paulo, 1979, p.118-139).
193 Walnice Nogueira Galvão. Gatos de outro saco..., p.95.
194 Euclides da Cunha. Os sertões..., p.320.
195 Euclides da Cunha. Os sertões..., p.499. Euclides aliava à “crença de que
tudo é previsível e controlável pela ciência” um “humanitarismo tendente à salvação
das camadas inferiores da sociedade pela educação positiva” (Milton Vargas. “Eucli-
des da Cunha e a poesia”, citado por Ivan Lins. História do positivismo no Brasil...,
p.510).
IV
ENCONTROS E DESENCONTROS,
CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS
262
(Antonio Conselheiro)
Terra da promissão e arraial maldito, local para busca da salvação e seita polí-
tico-religiosa; com um líder ao mesmo tempo evangelizador sinistro e portador de
lenitivos, inimigo da autoridade sacerdotal e simples peregrino. O capítulo anterior
mostrou como as palavras que interpretaram Belo Monte e Antonio Conselheiro
foram divergentes, antagônicas mesmo, embora tantas vezes alimentadas da mesma
Bíblia judaico-cristã. O momento agora é de evidenciar contrastes e proximidades,
trazendo à tona outros aspectos da história da vida e morte do vilarejo conselhei-
rista. Eles revelarão com maior clareza de que maneira os registros recuperados e
comentados no capítulo anterior configuraram os diversos posicionamentos que se
chocaram à beira do Vaza-barris e culminaram num dos eventos mais marcantes da
violenta história de nosso país. Se até aqui enfatizei a inscrição variada e conflitiva
dos textos bíblicos pelos diversos sujeitos envolvidos na história de Belo Monte,
cabe agora salientar o que Carlo Ginzburg chamou de “redes interpretativas”, ou
seja, aquele conjunto de referências sócio-culturais interpostas entre os textos e seus
receptores, que inclusive determinou as formas com que eles foram apropriados.
Com isso será possível perceber as continuidades e descontinuidades entre
o projeto do Conselheiro e o de sua gente; relações semelhantes serão notadas
entre o projeto da Igreja Católica na Bahia (e no Brasil) e aquele da República
modernizante, representado (apesar de tantas ressalvas e críticas) por Euclides da
Cunha. Finalmente, concentrarei minha atenção numa página do manuscrito de
1895, aquele inédito; ela é reveladora, e de alguma maneira síntese do caminho
percorrido neste livro.
264
1. OS OLHARES, OS LUGARES
Assim, cabe nesse momento perguntar pelos universos de referências que per-
mitiram as diversificadas apropriações da Bíblia constatadas no capítulo anterior.
Para tanto, passarei por cada um dos quatro sujeitos que já mereceram nossa aten-
ção, agora em busca das estruturas de pensamento e de visão subjacentes a seus
olhares sobre Belo Monte e o Conselheiro.
O vaqueiro, acuado pela miséria, diante de uma terra ressequida pelo sol, de ossadas
de animais e de cadáveres que a morte semeou, de plantas que se transformaram em
coroas de espinhos ou em cravos, lanhando-o nos pés e nas mãos, renovando-lhe na
carne o suplício da cruz, sonha com uma terra abundantemente cortada de regatos,
adornada de eterna vegetação, ofertando doces frutos. Retoma por sua conta, e
mistura-os, o mito da “Terra sem Males” do antepassado índio e a história do povo
de Israel saindo do Egito em busca da “Terra da Promissão”, que é o mito do ante-
passado português. Daí toda uma série de movimentos místicos e fanáticos, que são
apenas o reflexo desta angústia diante da fome [...] movimentos que manifestam,
em sua continuidade, a degradação dos elementos indígenas, preponderantes nas
formas mais antigas como a pajelança, e sua substituição cada vez mais patente pelas
formas cristãs e ocidentais.1
rio de leite, e são de cuscuz de milho os barrancos”, ouvida por frei João Evangelista para
caracterizar o Belo Monte e a atração que exerceu sobre tanta gente.
A sugestão de Bastide, que ele não levou às últimas consequências, se associa
de forma fascinante às observações de Hilário Franco Júnior sobre a presença e
permanência, no sertão nordestino, do mito medieval da Cocanha.3 Como se sabe,
este era o nome de uma “terra imaginária, maravilhosa, uma inversão da realidade
vivida, um sonho que projeta no futuro”.4 Trata-se de um mito elaborado por
escrito pela primeira vez na França do século XIII e foi várias vezes reelaborado,
chegando até o sertão nordestino brasileiro, onde se encontrou uma manifestação
sua em pleno século XX. Embora o estudioso tenha feito apenas uma alusão à vila
do Conselheiro, afirmando que a sua saga e a presença do referido mito no sertão
se devem ao mesmo “contexto sociopsicológico”5, parece possível dizer mais. A
proximidade entre a versão nordestina da Cocanha e a experiência de Belo Monte
por seus habitantes se justifica pelo fato de tanto uma como outra recriarem a terra
prometida bíblica, a que Moisés conduziu o povo hebreu em êxodo do Egito. Com
efeito, não é com outros termos que a mítica terra de são Saruê é descrita:
A presença dos mitos bíblicos não é notada por Hilário Franco, que assim deixa
de considerar o intercâmbio de que ambas as tradições se terão enriquecido.7 A leitura
do cordel permite perceber até o lugar especial ocupado pelo milho, capaz, por meio do
cuscuz feito dele, de forrar os barrancos de Belo Monte, como já se viu; na mítica terra
de São Saruê, “milho, espiga é pamonha / e o pendão é pipoca”.8 Da mesma forma, o
leite, que no mito bíblico manava, junto com o mel, da terra prometida, converte-se
em rio, tanto no sertão de Belo Monte como no imaginado pelo cordelista:
atoleiros de coalhada
açudes de vinho quinado
montes de carne guisada.9
Outra aproximação sugestiva entre o que se propalava a respeito de Belo Monte
e as histórias de Cocanha diz respeito ao fato de que tanto num lugar como noutro
“não era preciso trabalhar”.10 Com efeito, em reelaborações do mito de Cocanha e
em testemunhos aproximados se falava de uma vida “sem se cansar”.11 E na Santi-
dade conhecida de Nóbrega o profeta indígena, tido por feiticeiro, exortava os seus
“que não curem de trabalhar, nem vão à roça, que o mantimento por si crescerá, e
que nunca lhes faltará o que comer... as enxadas irão a cavar”.12 E se Le Goff tem
razão ao propor que a “exaltação do far niente” encontrada nas histórias medievais da
Cocanha expressa a negação dos rumos “capitalistas” que as coisas estão tomando13,
poderíamos entender o far niente sertanejo como protesto contra a ordem fundiária e
semi-escrava secularmente implantada, e que a República veio agravar?
Poder-se-ia avançar muito nestas sendas, mas bastam essas sugestões, inclusive
para que se perceba como estamos longe daquele “cristianismo de penitência e de
apocalipse” que Bastide, fiando-se em Euclides, atribui ao Belo Monte como ca-
racterística principal.14 O que não significa que a vertente apocalíptica não se faça
presente, como se pode verificar. Mas ela predomina no contexto da guerra, e nem
de longe esgota o significado que Belo Monte tinha para seus habitantes. No caso
do Conselheiro, verificamos que essa perspectiva marcou sua percepção das coisas
principalmente quando dos eventos e conflitos em torno do embate de Masseté,
mas não se fez presente nos textos lidos nos manuscritos redigidos já em Belo Mon-
te, em 1895 e 1897, este último elaborado já em contexto de guerra.
Efetivamente a religiosidade sertaneja é permeada do apocalíptico, algo que já
vem de séculos e configura aquilo que foi chamado apropriadamente de “cultura
do fim do mundo”.15 Ela instaura
É curioso notar de que forma ele, ao transitar por esses dois universos distintos, dis-
tingue-se de ambos; mas se apropria dos saberes e fazeres eclesiásticos e os recria nas
condições, nas conjunturas e na interação vividas com a gente que faz o seu séquito.
Por outro lado, em relação ao forte teor apocalíptico que desde Euclides da
Cunha vem sendo insistentemente atribuído à proclamação do Conselheiro em
Belo Monte, é preciso dizer deve-se dizer que essa ênfase é exagerada, e revela
um descuido na leitura dos materiais encontrados nos cadernos de 1895 e 1897,
quando não sua total ignorância. É bem verdade que diversos testemunhos, parti-
cularmente os de José Aras, dão conta de proclamações retumbantes, sobre fim de
mundo, batalhas escatológicas, etc. Mas eles todos são anteriores a Belo Monte; a
atribuição ao Conselheiro da “Profecia” sobre o fim dos tempos na virada do século
é mais um dos equívocos da obra euclidiana.
A observação dos manuscritos traz à tona um procedimento hermenêutico con-
vencional no tocante aos textos bíblicos: a já mencionada leitura tipológica. Não há
maiores novidades se se considera a tradição da pregação católica até então. Antonio
Conselheiro se mostra conhecedor dos elementos básicos do catecismo católico, bem
como do suporte bíblico que estes recebiam. Não deve surpreender que ele incentive
reconhecer a grande obra realizada por Jesus e perpetuada pela Igreja Católica, na fi-
gura de seus representantes hierárquicos e dos sacramentos que disponibilizam, bem
como das atribuições do clero em relação a eles; o que chama a atenção é verificar
como uma reflexão construída com os procedimentos hermenêuticos convencionais,
cujos resultados não destoam substantivamente dos dogmas e concepções católicas
de então não lhe venha a impedir o confronto com as autoridades eclesiásticas, quan-
do necessário. Pelo contrário: é em nome da Igreja e da fidelidade à doutrina que ele
se levantará contra “os padres falsos” e contra o que consideraria apropriação indevida
de funções: a monopolização da palavra por parte do clero.
Maior cuidado exige o esforço de estabelecer em bases mais consistentes as
relações entre os conteúdos dos cadernos de 1895 e 1897 e os livros aos quais teve
acesso e dos quais fez importante uso. Sabe-se, inicialmente, que a Missão abrevia-
da, de larguíssima difusão no Nordeste da segunda metade do século XIX, era, nas
palavras de Honório Vilanova, “o livro do Peregrino”,
onde muito se fala da morte, do inferno, do céu, do juízo final, dos açoites e espi-
nhos e da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Os frades pregadores daquele tempo
conduziam sempre este livro, que de tão cru, nas palavras, fechava sem piedade as
portas do céu. Também o Peregrino amava esse livro e varava o dia e a noite lendo
ou copiando as Meditações e os Exemplos dos Santos. Quando a mão do Peregrino
estava cansada, escrevia por ele Leão de Natuba, que tinha boa caligrafia e era muito
devoto.21
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 269
Encontram-se [sic] nos manuscritos uma série de testemunhos da [...] cristologia sa-
crificial seguida pelo imperativo dolorista da reparação dos pecados correlacionada à
imagem de um Deus irado e temível, que obviamente provém da Missão abreviada.
Mas pode-se observar a tentativa de equilibrar essa corrente teológica sacrificial com
270
Essa postura “integrativa” terá feito toda a diferença; doutra forma o próprio
Belo Monte não se viabilizaria a partir do pensamento (tornado ação) de Antonio
Maciel. Ela não passou despercebida aos contemporâneos; a envenenada afirmação
de um dos amigos do barão de Jeremoabo deixa claro que o beato rompe a dico-
tomia, tão convencional e tão conveniente, entre esperanças escatológicas e com-
promisso histórico; com efeito, Aristides Borges lamenta que o Conselheiro “possa
ter esquecido as coisas do Céu para só cuida® no que é exclusivamente terreno”.28
Ponderações de teor semelhante podem ser feitas no tocante ao uso do (à sua
época) famoso Compêndio narrativo do peregrino da América. A obra de Nuno Mar-
ques Pereira (1652?-1733?) foi um notável sucesso editorial durante o século XVIII
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 271
(cinco edições em cerca de quarenta anos), mas depois deixou de ser publicada, até
meados do século passado.29 No entanto este “curioso exemplo de prosa narrativa
barroca” acabou por deixar “mais marcas do que se pensava e menos do que se espe-
rava, e o que se constata é que assim como apareceu, desapareceu da superfície. [...]
Ficaram traços e a sua presença como um subtexto de cultura, motivando citações
no universo das culturas populares e tradicionais”.30
Tanto Nuno Marques, nos primórdios do século XVIII, como o Conselheiro
em fins do seguinte, preocupam-se com a pureza da fé católica, com a adesão de-
cidida a ela, e com a ação do demônio que impõe obstáculos a que tais propósitos
sejam alcançados. Ambos escrevem na perspectiva da salvação, ambos se se veem
peregrinos nesta terra já que, segundo Pereira, “a verdadeira pátria é o céu”31; teria
o Conselheiro algo a objetar quanto a isto?
Também aqui é importante não tirar conclusões apressadas. Nuno Marques
identifica uma das principais ameaças à religião católica no Brasil, e à salvação
eterna das almas, a proliferação de cultos de matriz africana: feitiçarias, calundus e
outras superstições pululam por todos os cantos; a fidelidade à verdadeira doutrina
é pensada contra este pano-de-fundo. Nesse contexto impressiona a naturalidade
com que o autor trata das relações entre senhores e escravos; aliás, o instituto da
escravidão só se justifica à luz de uma finalidade de outra ordem: tirar a gente afri-
cana da idolatria em que se encontrava e apontar-lhe o caminho da salvação.
Em vão se procurariam dizeres e acentos deste teor nos manuscritos que levam
o nome do Conselheiro, e não apenas porque no tempo deste não mais existisse a
escravidão formal; nada do horror às manifestações religiosas de origem africana,
mescladas ou não com rituais católicos e/ou de matriz indígena, que certamente
se davam no Belo Monte, se encontra nestes escritos. Também não se encontra
neles a verdadeira obsessão manifestada por Nuno Marques no tocante aos pecados
relativos ao sexto mandamento. O Conselheiro não precisa, como necessitou seu
antecessor, pedir licença aos moralistas – e principalmente à Bíblia! – para “tocar
neste primeiro Mandamento [sobre o amor a Deus] o que pertence ao sexto [sobre
a fornicação]”. Isto pela “razão de se encerrarem neste todos os dez”.32 E não por-
que ele, o líder do Belo Monte, não tivesse consciência da gravidade das questões
abrangidas neste fatídico preceito...
Ao final, a surpresa maior é encontrar uma dependência bastante grande do
texto do peregrino do século XVIII na configuração de conteúdos importantes dos
manuscritos do não menos peregrino de século e meio depois. São páginas e mais
páginas em que os paralelos se manifestam, talvez numa proporção maior do que se
encontraria na relação destes com a Missão abreviada. No entanto, a dependência é
em relação à letra, não ao espírito que anima o escritor do século XVIII. Valha um
único exemplo: a instituição do matrimônio aparece, no escrito de Nuno Marques,
272
Rvmo. Sr. - Chegando ao nosso conhecimento que, pelas freguesias do centro des-
te arcebispado, anda um indivíduo denominado Antônio Conselheiro, pregando ao
povo que se reúne para ouvi-lo doutrinas supersticiosas e uma moral excessivamente
rígida com que está perturbando as consciências e enfraquecendo, não pouco, a
autoridade dos párocos destes lugares, ordenamos a V. Revma. que não consinta em
sua freguesia semelhante abuso, fazendo saber aos paroquianos que lhes proibimos,
absolutamente, de se reunirem para ouvir tal pregação, visto como, competindo na
igreja católica, somente aos ministros da religião, a missão santa de doutrinar os
povos, um secular, quem quer que ele seja, ainda quando muito instruído e virtu-
oso, não tem autoridade para exercê-la. Entretanto sirva isto para excitar cada vez
mais o zelo de V. Revma no exercício do ministério da pregação, a fim de que os
seus paroquianos, suficientemente instruídos, não se deixem levar por todo o vento
de doutrina. Outrossim, se apesar das advertências de V. Revma., continuar o indi-
víduo em questão a praticar os mesmos abusos, haja V. Revma. de imediatamente
comunicar-nos a fim de nos entendermos com o Exmo. Sr. Dr. chefe de polícia, no
sentido de tomar-se contra o mesmo as providências que se julgarem necessárias.
Deus Guarde a V. Revma. - Revd. Sr. Vigário da Purificação dos Campos. Luiz,
Arcebispo da Bahia.36
Quanto ao campo [...] reinava [até pelo menos 1850] um cristianismo devocional
orientado por beatos e beatas que em grande parte dispensava a presença do sacer-
dote [...] A nova clericalização criou, por conseguinte, um campo de conflitos, seja
entre clero e confrarias, seja com os beatos e o assim chamado “fanatismo religioso”
[...] O caso trágico na guerra contra Canudos (1896-1897) exemplifica a incompa-
tibilidade entre a hierarquia e o mundo dos beatos.42
O apego aos santos tinha consequência óbvia aos olhos atentos do capuchinho
e à sua férrea lógica: as imagens deles adquiriam mais importância que os sacra-
mentos, ministrados exclusivamente pelos padres.
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 275
de Portugal é de Deus, e feito por Deus, e por isso mais propriamente seu”.54 No fim
do século XIX, essa teoria se materializava na prática eclesiástica de oferecer ao Estado
o recurso das missões como forma de restabelecer a ordem pública em circunstâncias
particularmente delicadas. No Nordeste do século XIX por várias vezes,
E, algumas vezes, o que foi muito importante, [os missionários alcançaram] a paci-
ficação dos ânimos em momentos de exaltação política, evitando lutas fratricidas,
como a [missão] que ocorreu em 1895, quando Frei João Evangelista de Monte
Marciano e Frei Caetano pregaram Santa Missão em Canudos pela conversão do
Bando de Antonio Conselheiro, a fim de evitar a violência das armas.56
Mas nas polêmicas que envolviam a imposição no país de um novo regime polí-
tico, o republicano, a teoria do direito divino dos reis suscitou acalorados debates. A
oposição eclesiástica alimentou-se dessa tese, como se pode ver nas entrelinhas da carta
pastoral do arcebispo da Bahia, D. Luís Antonio dos Santos, publicada dois meses an-
tes da proclamação da república.57 Sua postura nem de longe se assemelha àquela que
alguns anos depois será expressa no Relatório. Mesmo sem mencioná-la, não é difícil
notar que, para o arcebispo soteropolitano, a República que se avizinhava era o indi-
cativo mais claro da conspiração secular e universal em curso contra a Igreja Católica:
Eis, caros irmãos e filhos em Jesus Cristo, uma pálida descrição do que vai pelo ve-
lho mundo, especialmente pela cidade de Roma. Eis em que estado acha-se esta luta
titânica pelas seitas maçônicas e pelo radicalismo movida contra a Igreja de Jesus e
a pessoa de Seu Vigário.
sivas do livro vingador64, procedimento esse não isento de implicações. Vimos tam-
bém Walnice Nogueira Galvão afirmar que, por conta da temática, um movimento
fundado no religioso, a própria estrutura do livro se apresenta como uma recriação
do drama bíblico.65 Destaco, no entanto, uma terceira motivação, a que mais clara-
mente configura a avaliação euclidiana do Belo Monte: tido como uma identidade
absolutamente outra, seu desaparecimento era inevitável. Essa convicção, aliada à
denúncia que o autor pretende com seu livro, conflui na caracterização de Antonio
Conselheiro como profeta milenarista e na sua demonização. Assim, mais do que
um livro contraditório, foi possível a Os sertões soar
É esse percurso tortuoso que permite (ou melhor, exige) a Euclides associar
o Conselheiro a figuras praticamente desconhecidas do cristianismo do século II,
mormente Montano da Frígia. E aqui um autor será decisivo para nosso escritor:
Ernst Renan (1823-1892), historiador francês.67
Com efeito, quando finalmente Euclides passa a apresentar Antonio Maciel,
na parte IV de “O homem”, logo somos remetidos “aos primeiros dias da Igreja,
quando o gnosticismo universal se erigia como transição obrigatória entre o paga-
nismo e o cristianismo”. Esse deslocamento até um momento longínquo da histó-
ria se justifica: “um antropologista encontrá-lo-ia [o Conselheiro] normal, marcan-
do logicamente certo nível da mentalidade humana, recuando no tempo, fixando
uma fase remota da evolução”.68 É pela perspectiva evolucionista, que, aliás, marca
todo o livro, que tal recuo se dá.
Mas não é só. Euclides cita, um a um, movimentos surgidos no seio do cris-
tianismo do século II.69 A presença de tal lista seria despropositada não fosse a
síntese final, que dissipa qualquer dúvida: “relendo as páginas memoráveis em que
Renan faz ressurgir, pelo galvanismo do seu belo estilo, os adoidados chefes de seita
dos primeiros séculos, nota-se [em Antonio Conselheiro] a revivescência integral
de suas aberrações extintas”.70 O atavismo do beato de Belo Monte fica evidente
quando se consideram a ação e os ensinamentos desses desconhecidos mas alouca-
dos líderes cristãos.
Contudo o montanismo, o primeiro grupo citado por Euclides, não é apenas
um exemplo a mais de insânia. O autor descobre nele características específicas
que tornam a aproximação com o movimento liderado pelo Conselheiro mais que
justificável: necessária mesmo. Para Renan, o montanismo, termo derivado do
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 281
cada vez era menor o contraste entre a Igreja e o mundo. Era inevitável que os ri-
goristas julgassem que se estava caindo no atoleiro da mais perigosa mundanidade
e que surgisse um grupo de pietistas para combater o tédio geral, continuar os dons
sobrenaturais da Igreja apostólica, e preparar a humanidade, por um redobramento
de austeridades, para as provações dos últimos dias.
Esse seria o lugar que ocuparia, quando em Roma eram os tempos do impera-
dor Marco Aurélio (161-180), o montanismo:
A forma específica a essas novidades foi dada por um tal Montano, da vila
de Ardabav, na Mísia, nos confins da Frígia (região interiorana do que hoje é a
Turquia): “sem dúvida a imitação dos profetas judeus e dos que a lei nova havia
produzido, no começo da idade apostólica, foi o elemento principal deste renas-
cimento do profetismo”, à margem das decisões episcopais: “era um profetismo
totalmente popular que surgia sem a permissão do clero, e queria governar a Igreja
fora da hierarquia”.73 Desenvolvido também por Priscila e Maximila, o movimento
teve grande repercussão, conquistando para suas fileiras o célebre apologista Ter-
tuliano. O rigorismo exigido de seus membros, a ânsia em recuperar o ardor dos
inícios cristãos e a exortação insistente ao martírio fizeram dele uma proclamação
de enorme apelo no fim do século II e início do III.
Euclides não tem dúvidas quanto a identificar no Conselheiro um novo Mon-
tano. O líder de Belo Monte “é um dissidente do molde exato de Themison. In-
surge-se contra a Igreja romana, e vibra-lhe objurgatórias, estadeando o mesmo
argumento que aquele: ela perdeu a sua glória e obedece a Satanás”. Com efeito,
de acordo com Renan, este personagem obscuro, mas um dos líderes da seita frí-
gia, “declarava que a Igreja católica tinha perdido toda a sua glória e obedecia
282
Ademais esse voltar-se à idade de ouro dos apóstolos e sibilistas, revivendo vetustas
ilusões, não é uma novidade. É o permanente refluxo do cristianismo para seu berço
judaico. Montano reproduz-se em toda a história, mais ou menos alterado conso-
ante o caráter dos povos, mas delatando, na mesma rebeldia contra a hierarquia
eclesiástica, na mesma exploração do sobrenatural, e no mesmo ansiar pelos céus,
a feição primitivamente sonhadora da velha religião, antes que a deformassem os
sofistas canonizados dos concílios.
Mas esses pontos de contato são acessórios, na análise euclidiana. Mais impor-
tantes e decisivas são as concepções de fundo. O beato dos sertões refaz o caminho
do frígio: “a exemplo de seus comparsas do passado, Antônio Conselheiro era um
pietista ansiando pelo Reino de Deus, prometido, delongado sempre e ao cabo de
todo esquecido pela Igreja ortodoxa do século II”.78 Aqui o ponto central, como o
autor pudera expor um pouco antes:
líder de uma “igreja” à margem da instituição religiosa oficial situada nos parâme-
tros positivistas de civilização, o Conselheiro é visto como “desnorteado apóstolo”
em “missão pervertedora” que “reunia no misticismo doentio todos os erros e su-
perstições que formam o coeficiente de redução de nossa nacionalidade”.88
Euclides, se “salvar a alma” era tudo a que o cristão mediano, minimamente co-
nhecedor do catecismo, aspirava? O espanto parece vir justamente da concordân-
cia, nos termos, entre as promessas do herege e o que era ensinado conforme o
catecismo tridentino, certamente conhecido de Euclides! Pois para o inquisidor,
que a essa altura sintetizava o sentimento da nação e perguntava o que na verdade
julgava já saber, importava marcar a diferença, arrancar a aberração, comprovar
o absurdo. Não podia contar com uma concordância em assunto sobre o qual
julgava ter certeza e justificava todos os adjetivos com que os sertanejos eram
classificados: aquilo em que acreditavam. O fato de esta parte do interrogatório e
as surpresas por ele provocadas não terem sido inseridas em Os sertões, certamente
porque não se coadunavam com o modelo de Belo Monte que o autor insiste
em alimentar, esclarece, por outro lado, porque foi necessário recorrer a Renan
e ao montanismo: para configurar um modelo completamente distinto, em que
a diferença fica definitivamente marcada, o atavismo salientado, a aberração es-
tabelecida.93 Também nesse aspecto é verdade que Euclides, na confecção de Os
sertões, “tem necessidade de interpretar o movimento de Canudos como movi-
mento milenarista”94, já que não é mais possível continuar delineando-o a partir
da Vendeia de Victor Hugo. Se não monarquista, milenarista: sempre o “outro”.
Assim, não é apenas “ao transformismo sociológico” que “a ideia de conspiração
monárquica vai cedendo o passo”95, também à depreciação religiosa radicalizada.
Ou, dizendo melhor: o transformismo sociológico sugerido inclui de forma im-
portante uma avaliação depreciada da religião do outro. Por outro lado, saliente-
se que, se nos termos a escatologia do Conselheiro não diferia substancialmente
daquela estabelecida em Trento96, em termos práticos a distância era radical, na
medida em que o Conselheiro rompia o monopólio dos padres na administração
destas realidades últimas e do acesso a elas.
Como não podia deixar de ser, Euclides é impregnado por seu meio. Ele, que
notava determinismos implacáveis da natureza sobre a cultura, não terá percebido
suficientemente as interferências desta e da dinâmica social sobre suas opções e
definições. No caso das reportagens, certamente lhe estranharia ser visto como
adepto de uma teologia sobre o Brasil que já beirava quatrocentos anos, com deu-
ses e demônios ocupando lugares muito definidos. Ao expressar, o mais das vezes
em categorias provenientes do mundo das ciências de seu tempo, a distinção das
funções e ocupações, a percepção do rumo inexorável da história, a concepção
paternalista quanto a quem deverá construir o futuro da nação, traduz uma visão
teológica de fundo, cuja matriz é a interpretação a respeito do Brasil que se vinha
fazendo desde os tempos coloniais e se refazia agora perante “um levante cujo ful-
cro agregador é a religião, coisa que, francamente, para ele [Euclides] cheirava à
pior das superstições”.97
286
2. CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS
Até aqui procurei expor os diversificados panos de fundo e filtros a partir dos
quais os vários sujeitos que fizeram a vida e a morte de Belo Monte se apropriaram
da Bíblia. O momento agora é o de avaliar de que forma essas inscrições confluíram
e se chocaram. Especificamente, quero compreender como as versões da gente do
Belo Monte e do Conselheiro, embora não idênticas, articularam-se no erguimen-
to do arraial. O mesmo se diga em relação à convergência entre o posicionamento
eclesiástico e aquele dos setores republicanos, de alguma forma representados por
Euclides da Cunha. Mas também nos interessa salientar as disjuntivas hermenêuti-
cas, que explicam, e muito, a guerra brutal.
cas que teria pronunciado quando das manifestações populares anti-impostos que
desembocaram no conflito de Masseté. Por outro lado, dando crédito quase irres-
trito a Euclides, Martins atribui centralidade a um aspecto da cosmovisão sertaneja
que, se existiu em Belo Monte, terá ocupado papel central apenas no contexto da
guerra, o elemento apocalíptico.101
Mas no fundamental o autor acerta: nota bem a importância de se caracterizar
a diferença entre o entendimento do Conselheiro e o da gente sertaneja a respeito
de sua experiência histórica. Como se viu, as apropriações da Bíblia encontradas
nos cadernos atribuídos ao Conselheiro e nas tradições da gente que com ele viveu
em Belo Monte adotam registros particularmente distintos, e permitem evidenciar
uma significativa diversidade de perspectivas a animar líder e liderados em Belo
Monte.102 O que, obviamente, coloca a questão da continuidade. De que forma
elas se articularam na viabilização do arraial? Consideremos dois pontos.
O fulcro da articulação entre as visões do Conselheiro e da gente que o seguia
se encontra primeiramente na ocupação com a vida presente, entendida não como
negação ou, para usar uma expressão consagrada, como um “vale de lágrimas”,
mas como espaço privilegiado de vida que prepara aquela que vem após a morte.
Podemos identificar o vértice entre essas percepções considerando as formas de
que se revestiram as apropriações da narrativa bíblica do êxodo-conquista da terra
prometida, bem como suas implicações. Como vimos, o Belo Monte materializava
para seus habitantes a terra da promissão; a roupagem é explicitamente política e
utópica. Já a apropriação que o Conselheiro faz do relato bíblico soa bem menos
“espetacular”103, com densidade peculiar: a narrativa que vai desde o chamamento
de Moisés até a posse da terra prometida e a liderança dos juízes aparece funda-
mentalmente como prefiguração das inúmeras realidades teologais e eclesiais que
todos são convidados a compreender e assimilar, e tem seu eixo na proclamação
do Decálogo, no bojo da aliança estabelecida no Sinai. E o resultado prático desta
confluência pode ser aquilatado nas palavras de Honório Vilanova, talvez as mais
célebres de seu depoimento a Nertan Macedo:
Recordações, moço? Grande era o Canudos do meu tempo. Quem tinha roça trata-
va de roça, na beira do rio. Quem tinha gado tratava do gado. Quem tinha mulher
e filhos tratava da mulher e dos filhos. Quem gostava de reza ia rezar. De tudo se
tratava porque a nenhum pertencia e era de todos, pequenos e grandes, na regra
ensinada pelo Peregrino.104
Mas se Antônio Conselheiro não admitia a violência, aceitava a franqueza dos que
cediam diante da tentação ou da impulsividade do próprio temperamento. Ao ter
conhecimento de que uma jovem ainda solteira se entregara sem relutância, apenas
disse: “Seguiu o destino de todas; passou por baixo da árvore do bem e do mal”. Es-
tas palavras [...] eram a réplica aos moralistas mais exigentes, que pediam a punição
da pecadora [...] Antônio Conselheiro conhecia a falsidade dos preconceitos, bem
como o valor da compreensão e da tolerância.107
O tom algo idealizado destas afirmações não impede que se tire a conclusão,
inevitável, sobre a vida no arraial:
Nesse ponto reside um aspecto central, mas pouco notado, para a compre-
ensão do sentido da pregação do Conselheiro e para se acompanhar melhor as
motivações que levaram tanta gente a deixar tudo o que tinha para viver naquele
lugar abençoado. Não é, portanto, sem razão que Belo Monte pode ser considerado
por seus habitantes a “barquinha de Noel”, imagem da Igreja, lugar de proteção,
caminho para a salvação.109
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 289
seus anos iniciais ela não percebeu motivos para aplaudi-lo: “caso tivesse sido tenta-
da qualquer revolução do tipo pretendido [pela corrente jacobina], o povo que em
Paris saiu para tomar a Bastilha e guilhotinar reis não teria aparecido. As simpatias
das classes perigosas do Rio de Janeiro estavam mais voltadas à Monarquia”.114 Na
verdade, “os missionários da modernização identificavam na população brasileira o
grande obstáculo ao progresso”.115
Voltando ao Belo Monte, já salientei as razões principais que motivaram a sua
oposição ao novo regime: elas são ao mesmo tempo religiosas e político-econômi-
cas. Mas, efetivamente, a caracterização da República adquiriu contornos funda-
mentalmente teológicos:
valeria a pena saber até onde palavras como Império, Imperador, Rei não se pren-
dem a um universo semântico carregado da tradição inspirada em mitos, lendas,
parábolas e legendas redencionistas. Afinal, a História Sagrada registra a presença
de um Deus que é Rei [...] No reino messiânico haverá fartura e justiça. Ou seja, é
possível admitir que no combate ao ‘governo herege’ a escolha retórica difundida
pela tradição religiosa tenha ganhado o poder de nomear formas de organização que
estavam em distonia com o novo Estado brasileiro.116
Assim, mais que militante, a não ser em nível local, pela recusa aos impostos e aos
padres mancomunados com o novo regime, Belo Monte materializou uma oposição à
República que tinha na tradição religiosa seu fundamento básico e nos acontecimentos
presentes sua razão de ser. E para essa posição convergiam tanto Antonio Conselheiro
como sua gente. A partir dessa negação Belo Monte constituía sua identidade.
Dessa maneira, para o erguimento e viabilização do arraial conselheirista con-
correram uma visão que enfatizava a vida neste mundo, e não a fuga dele, como o
espaço e o meio de vivência da religião, experimentada no compromisso coletivo,
e outra que via no novo regime implantado no país uma ameaça à satisfação das
necessidades básicas da vida e à própria salvação escatológica.
A Igreja e o positivista
sivelmente soariam estranhas aos próprios envolvidos, o que não impede de fazer a
pergunta por elas, que definiram, em última instância, os destinos do arraial conse-
lheirista. O sinal desta convergência poderia ser a visualização de Belo Monte como
Jerusalém, não aquela do céu ou a anunciada no Apocalipse, mas aquelas das mal-
dições, seja a de Jesus, segundo frei João, ou a dos profetas de Israel, segundo Eucli-
des.117 Ou então a indisfarçável percepção do outro em termos que lembram o olhar
dos primeiros colonizadores europeus; o que abaixo se diz dos navegantes dos séculos
XV-XVI vale, com as devidas ressalvas, para os modernos “desbravadores” do sertão:
A atitude de Colombo para com os índios decorre da concepção que tem deles.
Podemos distinguir, nesta última, duas componentes, que continuarão presentes até
o século seguinte e, praticamente, até nossos dias, em todo o colonizador diante do
colonizado [...] Ou ele pensa que os índios [...] são seres completamente humanos
com os mesmos direitos que ele, e aí considera-os não somente iguais, mas idên-
ticos e este comportamento desemboca no assimilacionismo, na projeção de seus
próprios valores sobre os outros ou então parte da diferença, que é imediatamente
traduzida em termos de superioridade e inferioridade (no caso, obviamente, são os
índios os inferiores): recusa a existência de uma substância humana realmente ou-
tra, que possa não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo.118
Disjuntivas, a guerra
Para a guerra que efetivamente começou em fins de 1896 foi necessário não
só munição, organização militar, acordos dessa ou daquela natureza; foi neces-
sário também estigmatizar Belo Monte e o Conselheiro; aliás, essa última tarefa
precedeu a guerra e sobreviveu a ela, como mostram a obra maior de Euclides e
tantos pronunciamentos que se repetiram durante o século XX, reproduzindo-o ou
reforçando ainda mais os preconceitos já tão enraizados. Por exemplo, a afirmação
294
Não lhe [a Euclides da Cunha] importa muito o porque será Canudos, aos olhos
dos jagunços “a terra da promissão, onde corre um rio de leite e são cuscuz de milho
suas barrancas”. Puro engano de broncos, o rio é positivamente de água, um ele-
mento químico bem conhecido por suas propriedades, e não haverá sentido algum
perscrutar a sua essência.127
Mas os termos do relatório que leva o nome de frei João também são funcio-
nais: preparam a guerra. Efetivamente o “cerco discursivo” (para usar a feliz expres-
são de Bartelt) a que foi submetido o Belo Monte precedeu o surgimento do arraial
e não terminou com seu trágico desaparecimento.128 Particularmente foi necessário
estigmatizar Belo Monte em relação ao delicado processo de reformas vivido pela
Igreja católica no Brasil, costumeiramente chamado de romanização. João Evan-
gelista deixa, em seu relatório, indicações muito claras nesse sentido, ao avaliar
a maneira de Antonio Conselheiro e sua gente conceberem a função dos padres
no contexto que viviam. A avaliação desqualificadora que o frei capuchinho fazia
das expressões rituais da gente belomontense, particularmente do culto às imagens
dos santos, soa coerente com o que expressara alguns parágrafos antes: “[Antonio
Conselheiro] desconhece as autoridades eclesiásticas, sempre que de algum modo
lhe contrariam as ideias, ou os caprichos”.129 Assim, a destruição, antes de ser aquela
provocada pelas armas e pelo fogo, foi a do mundo religioso, primeiramente no
sertão em geral, depois em Belo Monte:
No entanto,
de repente, [o povo] se viu separado dos seus santos, impedido de cumprir suas típi-
cas promessas. E o clero passou a reprovar suas atitudes e costumes religiosos. Não
é, pois, de estranhar que alguns desses grupos marginalizados vissem no sacerdote
um inimigo de sua religião e de sua fé.131
Temos nessa passagem a formulação do que foi o pensamento católico por tantos
séculos, a que o Conselheiro se mostra fiel, como o fora a Igreja nos tempos anterio-
res à proclamação da República e mesmo depois desta. O Conselheiro nada inventa,
mas demarca seu modo de ver, perfeitamente católico, distinguindo-o daquele expresso
por frei João Evangelista em maio de 1895. A seu modo, Antonio Maciel insere um
elemento relativizador à afirmação categórica do missionário: “os poderes constituídos
regem os povos, em nome de Deus”. Ao inserir o adjetivo “legítimo” após “todo po-
298
der”, o Conselheiro “desmonta” o tom indiscutível dos dizeres de frei João, e recoloca o
problema num nível mais delicado: o da legitimidade. Na verdade o tema já aparecera
antes, numa invectiva direta ao presidente da República: ele, “movido pela incredulida-
de que tem atraído sobre ele toda sorte de ilusões, entende que pode governar o Brasil
como se fora um monarca legitimamente constituído por Deus”.139
Além disso deixa no ar a mais que instigante suspeita de que a República só
foi proclamada por vingança ao fato de a princesa Isabel ter abolido a escravidão. A
passagem seguinte parece ser um desafio aos padres republicanos, àqueles que são
mestres no falar, mas confessam seus verdadeiros objetivos ao fazerem a oportunista
aliança com o novo regime; a Igreja está em perigo:
O Conselheiro convoca sua gente para o combate, não apenas contra os sol-
dados das expedições sucessivas, mas contra o demônio e seus agentes, que querem
destruir a Igreja. O exemplo mais evidente de que há uma conspiração contra a
Igreja católica no Brasil é a implantação do casamento civil; com efeito, é a esse
tema que a prédica dedica particular atenção:
é puramente da competência da santa Igreja, que só seus ministros têm poder para
celebrá-lo; não pode, portanto, o poder temporal de forma alguma intervir neste
casamento, cujo matrimônio na lei da graça Nosso Senhor Jesus Cristo o elevou à
dignidade de sacramento, figurando nele a sua união com a santa Igreja, como diz
São Paulo. Assim, pois, é prudente e justo que os pais de família não obedeçam à
lei do casamento civil, evitando a gravíssima ofensa em matéria religiosa que toca
diretamente a consciência e a alma.141
O casamento civil soa como ingerência inaceitável do poder secular sobre re-
alidades de ordem espiritual, ocasionando “o pecado do escândalo”, contra o qual
Deus não fará uso de sua misericórdia.142 O Conselheiro está de todo convencido
de que o regime que assim age não perdurará:
A república há de cair por terra para confusão daquele que concebeu tão horrorosa
ideia. Convençam-se, republicanos, de que não hão de triunfar porque a sua causa
é filha da incredulidade, que a cada momento, a cada passo está sujeita a sofrer o
castigo de tão horroroso procedimento.143
E, como se soubesse que frei João tinha lançado sobre seu Belo Monte maldi-
ção inspirada nas palavras desoladas de Jesus sobre Jerusalém, Antonio Maciel cita
essas mesmas palavras do Evangelho: “Ah! Se ao menos neste dia que agora te foi
dado conhecesses o que te pode trazer a paz, mas por ora tudo isto está encoberto
a teus olhos”. Note-se, contudo, que o tom é outro: se no caso do missionário tra-
tava-se de um lance praticado por quem, ao voltar dali, envidaria todos os esforços
para que o arraial desaparecesse, no caso do Conselheiro o que ocorreu a Jerusalém
é uma prova do que ocorre aos inimigos de Deus e da religião.144
Assim, Antonio Conselheiro se apresenta como o último defensor dos valores
e convicções que a hierarquia católica buscou incutir em seus fiéis durante tanto
tempo, e que em poucos anos descartou, em nome de uma composição sempre
mais estreita com o novo regime. Embora esse elemento não explique, sozinho, o
surgimento do arraial e mesmo a guerra, ele é indispensável para a compreensão
dos dramáticos conflitos que o originaram e o levaram à brutal eliminação. Esse
embate particular, contra o novo regime e contra os padres que se aliaram ao de-
mônio, é um fulcro decisivo em torno do qual se definiram os contornos da guerra,
simbólica e armada. Também o é aquela interrupção forçada na cópia da Bíblia.
Tal embate tem como objetivo insistente “a vossa [dos belomontenses] salvação e
o bem da Igreja”.145 Salvação que deriva necessariamente da vida bem vivida; bem
que deriva da fidelidade da Igreja a sua doutrina, e não de adesões oportunistas. Por
esses ideais Belo Monte surgiu, e foi dizimado.
300
CONCLUSÃO
Assistiu-se em Belo Monte e ao seu redor um verdadeiro “conflito de inter-
pretações”, derivado e alimentado intensamente de referências bíblicas, estabele-
cidas proeminentemente como alteridade no endereçamento das questões huma-
nas, justamente por permitir tantas possibilidades de significações a partir de cada
partícula de seu texto. Transmitida como código majestoso de compilações das
estruturas éticas e morais, ensaiadas e articuladas à saciedade no curso de um seg-
mento expressivo da saga humana, a Bíblia, tal como assistimos na tragédia serta-
neja, crava, inscreve, suscita múltiplos sentidos, constitui verdadeiro caleidoscópio
de interpretações, faustamente diversificadas. No sertão do Conselheiro serviu de
léxico, sintaxe, gramática e prosódia para as expressões genuínas do desamparo e
esperanças de brasileiros no seco e implacável interior nordestino; já no sertão da
igreja, defensora contumaz de seu status quo e dos privilégios que secularmente veio
acumulando, reinventou a subserviência ao poder constituído e reiterou o reivindi-
cado monopólio da salvação; finalmente, no sertão das capitais do Brasil recém-in-
gressado na república em busca de novas afirmações quanto a sua identidade, onde
reverbera o tosco positivismo, sustentou, através da pena de Euclides, a eliminação
do outro em nome de ideais supostamente civilizatórios, de um “cristianismo bem-
compreendido” e da superação do atraso.
Ou seja, encontramos situação a um só tempo distinta e semelhante à ve-
rificada na Inglaterra do século XVII estudada por Hill, em que a Bíblia se fez
referência, não apenas na forma de livro impresso, para a configuração e crítica
de sentidos, ações e instituições. Cosmovisões diferenciadas convergiram e con-
flitaram às margens do Vaza-barris, perfazendo um dos mais sangrentos lances da
história brasileira. O sonho por reeditar a terra da promissão não era incompatível
com o anseio pela salvação escatológica; aliás, este último se desenhou com con-
tornos diferenciados ao se articular com o primeiro. Mas ambos se chocaram com
posições peremptórias, intolerantes frente à diversidade; e não sobreviveram à pro-
clamação categórica e oportunista da sacralidade do poder (qualquer poder) e da
inferioridade de quem pensa e age a partir de outros referenciais e parâmetros. De
modo que a Bíblia, por meio de inscrições tão surpreendentemente distintas, tanto
fundamentou e deu vigor ao surgimento do arraial conselheirista como viabilizou
sua destruição.
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 301
NOTAS
1 Roger Bastide. Brasil, terra de contrastes. Difusão Europeia do Livro, São
Paulo, 1959, p.87-88.
2 Veja as p.92-94 de Brasil, terra de contrastes. Saliente-se que Bastide acerta
mais no que sugere do que no detalhe, já que não parece conveniente generalizar a
“Terra sem males” dos índios Apapocúva-Guarani para grupos de outras regiões. Há
todo um conjunto de controvérsias sobre esta questão que não é possível aqui reto-
mar (leia-se, a propósito, Ronaldo Vainfas. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia
no Brasil colonial. Companhia das Letras, São Paulo, 1995, p.41-46; Maria Cristina
Pompa. Religião como tradução: Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial. Tese de doutora-
do, Campinas, 1995, p.93-131). De toda forma, a sugestão de Bastide permanece,
ao evidenciar o intercâmbio entre tradições bíblicas e autóctones.
3 Hilário Franco Júnior. Cocanha: a história de um país imaginário. Compa-
nhia das Letras, São Paulo, 1998.
4 Hilário Franco Júnior. “Apresentação”. In: Hilário Franco Júnior (org.)
Cocanha: as várias faces de um país imaginário. Ateliê, São Paulo, 1998, p.10.
5 Hilário Franco Júnior. Cocanha: a história de um país..., p.295, n.145. A
diferença entre um e outro, segundo Hilário Franco, estaria em que na história
de Cocanha se expressa um desejo, enquanto no Belo Monte se materializa um
projeto.
6 Manoel Camilo dos Santos. “Viagem a São Saruê”. In: Hilário Franco
Júnior (org.) Cocanha: as várias faces..., p.175-176. Este cordel surgiu em 1947.
7 Hilário Franco aventa as seguintes etapas do caminho que conduziu a his-
tória de Cocanha desde a Europa medieval até o sertão do século XX: as condições
sócio-culturais do Nordeste, a influência holandesa, as tradições indígenas e o subs-
trato medieval francês (Cocanha: a história de um país..., p.220-226). Evidente-
mente ficou minimizada a presença das tradições bíblicas, que inclusive na Idade
Média fundaram o “ideal anticristão” da Cocanha (Jacques Le Goff. “Prefácio” a
Cocanha: a história de um país..., p.7-13).
8 Manoel Camilo dos Santos. “Viagem a São Saruê”. In: Hilário Franco
Júnior (org.) Cocanha: as várias faces..., p.172. O já citado Pedro de Rates Hene-
quim, português chegado às Minas Gerais no início do século XVIII e autor de
uma curiosa e atrevida cosmologia, tinha certeza de que o vinho com que no livro
bíblico do Cântico dos Cânticos se celebra o prazer de dois amantes na verdade é
uma “bebida, que há no Brasil, que se faz de milho pisado” (Plínio Freire Gomes.
Um herege vai ao paraíso: cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição
[1680-1744]. Companhia das Letras, São Paulo, 1997, p.166; veja comentário à
tese de Henequim, que está se referindo ao cauim, às p.118-119).
302
9 Manoel Camilo dos Santos. “Viagem a São Saruê”. In: Hilário Franco Jú-
nior (org.) Cocanha: as várias faces..., p.170. São vários os textos sobre a Cocanha
que falam do “rio de leite”: na versão italiana ele “nasce de uma grota / e corre pelo
meio do país” (citado por Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes. O cotidiano e as
ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Companhia das Letras, São Pau-
lo, 1998, p.165). Veja outras citações em Hilário Franco Júnior (org.) Cocanha: as
várias faces..., p.43.80.91.101.120.
10 João Evangelista de Monte Marciano. Relatório apresentado, em 1895, pelo
reverendo Frei João Evangelista de Monte Marciano, ao Arcebispado da Bahia, sobre
Antonio Conselheiro e seu séquito no arraial dos Canudos. Tipografia do Correio
da Bahia, Salvador, 1895 (edição em fac-símile pelo Centro de Estudos Baianos,
1987), p.5.
11 Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes..., p.157.
12 Veja texto de Nóbrega em Ronaldo Vainfas. A heresia dos índios..., p.52.
13 Jacques Le Goff. “Prefácio” a Cocanha: a história de um país imaginário...,
p.10.
14 Roger Bastide. Brasil, terra de contrastes..., p.92.
15 Maria Cristina Pompa. Memórias do fim do mundo: para uma leitura do
movimento sócio-religioso de Pau de Colher. Dissertação de Mestrado, Unicamp,
Campinas, 1995, p.164. A exposição de Alexandre Otten a esse respeito é abran-
gente (“Só Deus é grande”: a mensagem religiosa de Antonio Conselheiro. Loyola,
São Paulo, 1990, p.287-299). Apenas não estou convencidos de que essa apocalíp-
tica, particularmente no tocante ao tema do fim, seja tão central no pensamento
e visão de mundo do Conselheiro (enquanto líder de Belo Monte) como pensa
Otten. Quanto ao termo, recorde-se o exposto na nota 98 do capítulo I.
16 Maria Cristina Pompa. Memórias do fim do mundo..., p.159. Vale para
o Belo Monte e para o sertão em geral essa e outras afirmações que Pompa faz a
respeito do já citado movimento de Pau de Colher.
17 É conhecida a profecia atribuída a frei Vital da Penha, que viveu no fim
do século XVIII (texto em Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra. Ática,
São Paulo, 1995, p.236). Também nas memórias populares do pe. Cícero, que,
aliás, citava constantemente frei Vital, o tema do fim próximo do mundo era re-
corrente (Maria da Conceição Lopes Campina. Voz do padre Cícero [organização
Eduardo Hoornaert]. Paulinas, São Paulo, 1985, p.23-24.35-36.124-126.154-
155.159.179, etc.). Estranhamente, contudo, em outro momento Hoornaert tenta
desvincular pe. Cícero deste universo apocalíptico (Os anjos de Canudos..., p.119-
120). O então famoso Missão abreviada, livro de que terei de tratar ao retomar as
prédicas de Antonio Conselheiro, numa de suas instruções diz: “são chegados os
últimos tempos do mundo, ninguém o pode contestar” (Manoel José Gonçalves
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 303
[aos cristãos] que devem ser submissos aos magistrados e às autoridades, que devem
ser obedientes e estar sempre prontos para qualquer trabalho honesto” (Tito 3,1).
Outro, dos mais importantes, é Marcos 12,17, sempre traduzido por “Dai a César
o que é de César e a Deus o que é de Deus” e compreendido, em especial a partir
da Idade Média, como justificadora da existência harmônica dos poderes políti-
co e sagrado (Rubén Dri. A utopia de Jesus. Ícone, São Paulo, 1986, p.139-140).
Também os textos da Bíblia judaica idealizadores do rei Davi tiveram significativa
importância na constituição dessa teologia política cujas linhas principais estou
apresentando.
49 Marc Reydellet. “La Bible miroir des princês du IVe au VIIe siècle”.
In: Jacques Fontaine et Charles Pietri (org.). Le monde latin antique et la Bible.
Beauchesne, Paris, 1985, p.434.
50 Agostinho poderá solicitar: “o poder de dar o império e o reino não o atri-
buamos senão ao verdadeiro Deus, que dá a felicidade no reino dos céus somente aos
piedosos, e o reino terrestre a piedosos e ímpios, como lhe apraz a Ele, a quem nada
apraz injustamente” (A cidade de Deus. 4 ed., Vozes, Petrópolis, 1999, p.222 [Livro
V, capítulo XXI]). Veja Marc Reydellet. “La Bible miroir des princês du IVe au VIIe
siècle”..., p.440-445. E Pierre Riché nota que as duas citações que estou comentando
estão entre as mais utilizadas na afirmação do poder carolíngio (“La Bible et la vie
politique dans le haut Moyen Age”. In: Pierre Riché et Guy Lobrichon (org.) Le moy-
en age et la Bible. Beauchesne, Paris, 1984, p.400). Neste contexto se pode entender,
por exemplo, que o monarca cristão, porque ungido do Senhor, seja considerado
capaz de atividades taumatúrgicas e seu poder seja encarado como sobrenatural, isso
na Idade Média e mesmo em pleno absolutismo francês do século XVIII (Marc Blo-
ch. Os reis taumaturgos. O caráter sobrenatural do poder régio – França e Inglaterra.
Companhia das Letras, São Paulo, 1998). Com efeito, as disputas do século XIV e
o advento da Reforma Protestante não fizeram alterar o teor básico da doutrina do
direito divino dos reis; ao contrário, reforçaram-no, no que o texto de Romanos 13
jogou papel importante.
51 Klaus Wengst. Pax romana: pretensão e realidade. Paulinas, São Paulo,
1991, p.116. O autor acrescenta: “Paulo [...] não quer dar algo como uma teoria
do Estado, mas exorta aqueles a quem dirige a carta a se submeterem às diversas
autoridades [...] ele exorta-os, portanto, a se comportarem com lealdade” (p.117).
52 Ernst Käsemann. “Puntos fundamentales para la interpretación de Rm
13”. In: Ensayos exegéticos. Sígueme, Salamanca, 1978, p. 33. E mesmo o surgimen-
to da exegese crítica não arrefeceu a força da leitura tradicional inspirada em Rm
13: “No que tange às relações com o estado vale igualmente que o cristão deve sub-
meter-se a ele como algo dado dentro da ordenação do mundo, já que é instituição
de Deus [...] O ódio que vai crescendo contra Roma no Apocalipse não se baseia
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 307
num rechaço por princípio da ordenação do estado, mas surge da irritação produ-
zida pela pretensão do culto a César, o que, naturalmente, vai além dos limites da
obediência cristã. Não devemos, pois, considerar a postura do Apocalipse como
contradição ao reconhecimento geral da ordenação estatal” (Rudolf Bultmann. Te-
ología del Nuevo Testamento. Sígueme, Salamanca, 1981, p.659-660).
53 Marilena Chauí. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. Perseu
Abramo, São Paulo, 2000, p.79-87.
54 Citado em Laura de Mello e Souza e Maria Fernanda Baptista Bicalho.
1680-1720: o império deste mundo. Companhia das Letras, São Paulo, 2000, p.7.
55 Hugo Fragoso. “O apaziguamento do povo rebelado mediante as missões
populares, Nordeste do II império”. In: Severino Vicente da Silva (org.) A Igreja e o
controle social nos sertões nordestinos. Paulinas, São Paulo, 1988, p.29.
56 p.3 (grifo nosso).
57 A carta é de 08/09/1889, e reage ao projeto de lei enviado pela princesa
Isabel ao Senado, instituindo no país a liberdade de culto. Essa medida, garante o
arcebispo, é sinal da queda do império e do triunfo dos inimigos da Igreja.
58 O argumento da carta é cuidadosamente estudado por José Augusto Ca-
bral Barretto Bastos (Incompreensível e bárbaro inimigo..., p.107-116), donde foi
tirada a presente citação (p.108).
59 Até aqui a citação do salmo 2,1-2, assim traduzido por Figueiredo: “Por
que razão se embraveceram as nações, e os povos meditaram coisas vãs? Os reis
da terra se sublevaram, e os príncipes se coligaram contra o Senhor e contra o seu
Cristo”.
60 Citado em José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro
inimigo..., p.111-112.
61 Veja texto em Anna Maria Moog Rodrigues (org.) A Igreja na República.
Universidade de Brasília, 1981, p.24. Por isso, deve ser matizada a afirmação de
Sérgio Buarque de Holanda, para quem a Pastoral coletiva “surge quase como um
aplauso franco ao regime republicano” (Raízes do Brasil. 26 ed., Companhia das
Letras, 1999, p.118).
62 Oscar de Figueiredo Lustosa. A igreja católica no Brasil república. Paulinas,
São Paulo, 1991, p.25.
63 Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros. Henriqueta Galeno, For-
taleza, 1973, p.138.
64 Vale relembrar o artigo do crítico literário alemão, “A guerra como painel
e espetáculo. A história encenada em Os sertões”. In: História, ciências, saúde. Rio
de Janeiro, 1998. v.5, p. 13-37.
65 “Para amarrar a matéria [constitutiva do livro, Euclides] tomou ainda
emprestada dos canudenses [...] a visão escatológica. E mostra como, através da
308
arrepiadora” (Os sertões..., p.274); elas são gratuitas, senão no fato de que formam
parte do quadro cujas características básicas procuro aqui expor.
89 “Quem não vê o enorme perigo de uma crença como essa?”, eis a per-
gunta que Renan se fazia para expor e justificar a reação da hierarquia eclesiástica
ao montanismo que se espalhava ameaçadoramente por toda parte (Ernst Renan.
Marc-Aurèle…, p.212-213). Euclides a todo momento, ao apresentar Antonio
Conselheiro e sua suposta pregação, se pergunta pelo perigo, mas também pela
insânia das concepções que faziam a vida e as ilusões da gente de Belo Monte.
Para ambos a solução para tais fanatismos era um só: “Se Marco Aurélio... tivesse
empregado a escola primária e um ensino de Estado racionalista, ele teria pre-
venido mais eficazmente a sedução do mundo pelo sobrenatural cristão” (Ernst
Renan. Marc-Aurèle…, p.345-346). O comentário é inevitável: “é impossível não
pensar aqui no mestre-escola reivindicado para os sertões nordestinos” (Célia
Mariana F. F. da Silva e Manoel Roberto F. da Silva. “Alexandre de Abonótico”.
In: Gazeta do Rio Pardo (Suplemento Euclidiano). São José do Rio Pardo, agosto
de 1986). A educação serve para eliminar os atavismos, para estabelecer a unifor-
midade cultural, e em particular para que se abandonem as crendices religiosas e
fantasmagóricas. Mas por que razões Euclides não transcreve em Os sertões o re-
gistro, recolhido em sua Caderneta de campo (p.23), que dava conta da existência
de escolas em Belo Monte?
90 O processo de demolição do outro que identificamos nas reportagens
euclidianas não é muito distinto daquele que Laura de Mello e Souza descobre
nos tempos coloniais: 1) a outra humanidade, 2) a animalização e 3) a demo-
nização (O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no
Brasil colonial. 6 ed., Companhia das Letras, São Paulo, 1999, p.56ss). Vale
ainda lembrar que já faz séculos que o demônio está no sertão. Afinal, já nos
garantia frei Vicente do Salvador em 1627, o diabo, não tendo mais lugar na
Europa medieval cristianizada, se instalou por aqui, fazendo com que o nome
dessas terras não fosse aquele que mencionava o símbolo da salvação e sim
um mais conveniente com sua nova morada. E tendo os portugueses roubado
a ele, pela evangelização, as terras do litoral, contentando-se “de as andar ar-
ranhando ao longo do mar como caranguejos” (Vicente do Salvador. História
do Brasil [1500-1627]. 7 ed., Itatiaia, Belo Horizonte, 1982, p.59), coube-lhe
preferencialmente o interior. Coube a Euclides precisar exatamente onde ele se
encontrava.
91 Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.57. Assinale-se, por outro lado,
e apenas a título de observação, que já Gilberto Freyre censurava em Euclides a
“importância exagerada ao problema étnico, parecendo não ter atinado com a ex-
tensão e a profundidade da influência da chamada ‘economia agrário-feudal’ sobre
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 311
mento do arraial até o momento em que sua destruição se avizinhava. Para o líder,
os eventos que culminaram no embate de Masseté teriam soado como anúncios
apocalípticos do fim próximo; Belo Monte seria o Harmagedon sertanejo. Já para
a gente que o acompanhava a vitória no conflito armado terá sido entendida priori-
tariamente como senha para um novo êxodo, pelo qual a libertação dos faraós atu-
ais se apresentava viável. E, coerente com essa percepção, temos a permanência do
paradigma da Terra Prometida durante os anos de vida do arraial, e mesmo quando
este já parecia fadado à destruição: os prognósticos de um fim próximo, agora nas
palavras da gente sertaneja, não ofuscaram a esperança de que naquele lugar a terra
pudesse voltar a se mostrar abençoada. Por outro lado, cabe ressaltar como, estra-
nhamente, a guerra não terá ressuscitado no Conselheiro os temores apocalípticos
que se haviam apossado dele quando dos eventos em torno de Masseté. Justamente
o período do qual temos testemunhos sertanejos dando conta de expectativas sobre
a proximidade do fim dos tempos e do juízo. Mas estas se articulam bem com o que
terá sido a tônica da pregação escatológica do Conselheiro durante toda a trajetória
de Belo Monte: a certeza da salvação das almas.
102 A identificação prática entre um posicionamento e outro é, em grande par-
te, responsabilidade de Euclides. Embora algumas das expressões conselheiristas sejam
citadas em Os sertões (e, efetivamente, devamos a ele boa parte do que se conservou das
vozes da gente belomontense), Euclides efetivamente as subordinou à perspectiva que
considerou fundamental e mesmo inventou, o milenarismo do Conselheiro.
103 Vicente Dobroruka fala de uma “teologia sisuda” do Conselheiro, em
cujo interior “há pouco espaço para o maravilhoso” (Antônio Conselheiro: o beato
endiabrado de Canudos. Diadorim, Rio de Janeiro, 1997, p.185).
104 Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.67 (o destaque é meu).
105 Nas cartas enviadas ao barão de Jeremoabo essa percepção se repete (ver
Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.97.111.114; a citação é da p.131).
106 Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.68.
107 Eduardo Moniz. Canudos: a guerra social. 2 ed., Elo, Rio de Janeiro,
1987, p.50. Euclides situa a palavra do Conselheiro em outra perspectiva: “Ao
saber de caso escandaloso em que a lubricidade de um devasso maculara incauta
donzela teve, certa vez, uma frase ferozmente cínica, que os sertanejos repetiam
depois sem lhe aquilatarem a torpeza: ‘Seguiu o destino de todas: passou por de-
baixo da árvore do bem e do mal’. Não é para estranhar que se esboçasse logo,
em Canudos, a promiscuidade de um hetairismo infrene” (Os sertões..., p.238).
O que torna suspeita a leitura de Euclides é que Manuel Ciríaco, em entrevista a
Odorico Tavares, “desmente a versão de que o Conselheiro contemporizava com os
atentados à moral das moças” (Canudos: cinquenta anos depois (1947). Fundação
Cultural do Estado, Salvador, 1993, p.48).
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 313
(Euclides da Cunha)
(César Zama)
(Honório Vilanova)
ALGUMAS CONCLUSÕES 319
a repressão ao arraial liderado por Antonio Conselheiro, mais que puramente fí-
sica, foi uma luta de significados e representações, foi a explicitação clara de dois
320
Como vimos, não foram apenas dois campos opostos que ali se chocaram: a
cosmovisão do Conselheiro e a dos sertanejos seus seguidores não se identifica-
vam de todo (e as discrepâncias estão longe de serem irrelevantes), assim como
eram variadas as visões dos setores que se articularam visando a destruição do
arraial. Mas, por outro lado, o principal esforço nesse trabalho se vê confirma-
do pelas afirmações de Jacqueline Hermann, na medida em que ela destaca o
choque de cosmovisões, de valores e de práticas do qual o choque de interesses
sociais, políticos e econômicos foi inseparável, para fazer a guerra. Nem de longe
tive a pretensão de desviar a atenção destes últimos componentes; mas, ao me
haver dedicado a salientar as apropriações, conscientes ou não, feitas da Bíblia
no bojo da história da vida e morte de Belo Monte, quis apreendê-los sob uma
perspectiva que mostrasse os diversos sujeitos envolvidos a partir de seus respec-
tivos universos de referências, convicções e interesses, convencido daquilo que
diz Roger Chartier:
O fato de para o livro que edita sua tese Pompa ter reescrito essa passagem,
evitando afirmar o nexo necessário entre os movimentos sócio-religiosos do século
XIX e a “cultura do fim do mundo” talvez indique uma preocupação em matizar a
afirmação anterior.8 De toda forma, fica evidente que o trabalho visando compre-
ender o universo religioso popular, particularmente em situações similares ao Belo
Monte, em que certamente não faltam a festa e a alegria, é uma tarefa desafiadora,
dado o caráter complexo e multifacetado daquele, resultado de tantos influxos,
alguns dos quais desconhecidos a nós.
Por outro lado, cabe pensar na permanência subjacente do religioso, muitas vezes
de maneira inconsciente, no seio de manifestações culturais ou de pensamento que não
se apresentem explicitamente com esse teor. Espero ter mostrado a carga fortemente
religiosa, e até teológica, das formulações euclidianas lidas nos artigos e reportagens de
1897 e em Os sertões. Claro que a temática do arraial conselheirista acabara por exigir
do escritor esse viés; mas é possível suspeitar que ele seja mais um dos escritores da lite-
ratura brasileira cuja obra poderia ser frutuosamente abordada desde o ponto de vista
da religião e da teologia, com resultados promissores, quiçá surpreendentes.
E ainda valeria salientar a importância de se considerarem as inúmeras variá-
veis no campo religioso, mas também as possíveis imbricações no seu interior, para
que se possa aquilatar o teor do conflito que opôs o Conselheiro e sua gente à mais
alta hierarquia da arquidiocese da Bahia. Polarizações como “catolicismo oficial”
x “catolicismo popular”, embora indicativas, não são suficientes, como também
não o são aquelas tendências a reduzir o discurso e a proposta do Conselheiro ao
simples âmbito do universo católico, como se nesse campo o conflito ou não tivesse
existido ou fosse irrelevante. Nesse sentido, não é inútil relembrar as possibilidades
abertas pelas investigações de Carlo Ginzburg, a partir do conceito de “circulari-
dade cultural”, bem como de todos os trabalhos que vêm mostrando o que já se
chamou de “surpreendente convergência de horizontes simbólicos”9, fruto de tan-
tas e variadas formas de interação sócio-cultural entre grupos humanos distintos.
ALGUMAS CONCLUSÕES 323
2. MESSIÂNICO? MILENARISTA?
Essa atenção ao religioso como elemento constitutivo do Belo Monte exige
enfrentar o delicado problema da classificação convencional de movimento messi-
ânico e/ou milenarista, que tem o escopo de justamente destacar a relevância desse
tipo de ideário na constituição de movimentos sociais e de protesto político. As
linhas que se seguem não se pretendem definitivas; apenas levantam algumas inda-
gações quanto à definição do Belo Monte como um movimento messiânico e/ou
milenarista, ao mesmo tempo em que sintetizam argumentos e críticas arrolados ao
longo do trabalho. Assim, temos de retornar à obra seminal de Maria Isaura Pereira
de Queiroz e, mais uma vez, a Euclides da Cunha.
Afirme-se, primeiramente, uma certa imprecisão nos termos, apesar de ressalvas
de Maria Isaura a respeito: numa das notas da introdução de seu clássico, ela alerta
para uma tendência, que ela atribui a estudiosos franceses e ingleses, a tomar os ter-
mos “messianismo” e “milenarismo” como sinônimos, “preferindo hoje o segundo
termo ao primeiro”.10 Embora a autora censure esse procedimento, sua opção termi-
nológica acaba por não ajudar muito, ao vincular necessariamente ambos; no final
os termos acabam por se tornarem intercambiáveis. É interessante notar como na
análise do movimento do Contestado os termos variam: para Maria Isaura, Maurício
Vinhas de Queiroz e Laís Mourão trata-se de “messianismo”; já para Duglas Teixeira
Monteiro e Ivone Gallo estamos diante de uma manifestação milenarista.11
Minha suspeita é de que os termos, particularmente “messianismo”, efetiva-
mente sejam tomados de maneira genérica, sem se atentar suficientemente para a
especificidade que cada um deles sugere. Comecemos com “milenarismo”, o termo
que, desde Euclides, passou a qualificar a religiosidade e as esperanças conselhei-
ristas. Não preciso aqui repetir as observações feitas ao longo deste trabalho: a
“busca de uma salvação total, iminente, derradeira, terrena e coletiva”12 não define
adequadamente as esperanças e empenhos escatológicos da gente do Conselheiro,
muito menos dele. Belo Monte não era, para seus habitantes, uma comunidade de
pessoas ansiando pela vinda do milênio, de uma nova era. O anúncio do “reino dos
mil anos e suas delícias” só passou a configurar a pregação do Conselheiro após a
morte dele, quando lhe foram atribuídas, características do líder cristão do século
II, Montano. Obra de Euclides, equívoco monumental, que perdura mesmo em
obras recentes a respeito de Belo Monte.13 O rótulo “milenarista” desfigura a reli-
giosidade conselheirista, desvirtua a compreensão dos motivos que levaram tanta
gente ao arraial; afinal de contas, abandonar seus lugares de origem em direção a
outro, onde se pudesse “aguardar o advento iminente do milênio”14, é bastante
diferente de um deslocamento motivado por razões de ordem sócio-econômica,
aliadas ao desencantamento com a instituição administradora do sagrado.15
324
são, com efeito, parte constitutiva das mais variadas civilizações religiosas algumas
figuras míticas que atuam na época mítica das origens como criadores ou como
heróis civilizadores. Em certos casos, prediz-se que hão de voltar e trazer ao mundo
riqueza, bem-estar e a cessação de todos os males. São mitos messiânicos e figuras
messiânicas pertencentes às mais arcaicas tradições. A sua presença não incide de
modo relevante nos comportamentos coletivos enquanto não surge, em relação a
eventos históricos que envolvem a comunidade como tal, um movimento messiâ-
nico.17
Deixando de lado uma possível petitio principii nessa definição mais elástica18,
perguntemo-nos pela aplicabilidade dessas conceituações ao que sabemos de An-
tonio Conselheiro e Belo Monte: quem seria o “Redentor que porá fim à ordem
atual de coisas”? O próprio Conselheiro? Mas que “nova ordem feita de justiça e de
felicidade” seria essa, que não é mencionada em qualquer dos pronunciamentos de
Antonio Maciel? Se passamos ao conceito menos “bibliocêntrico” de Lanternari,
que figura da mitologia sertaneja o Conselheiro estaria encarnando? Ao bom Jesus?
A Moisés? Essas identificações (reais, diga-se de passagem), devem ser entendidas à
luz de profecias que anunciariam o retorno dessas figuras ancestrais? Ou seria mais
adequado entendê-las como explicitações da compreensão das atribuições de que o
Conselheiro é investido como líder de Belo Monte?
Ou será que, mais uma vez, a fortuna messiânica do arraial conselheirista deve
seus créditos a Euclides da Cunha, devido ao fato de o escritor entender, na esteira
do suposto milenarismo belomontense, a centralidade da figura de D. Sebastião,
que segundo as pregações atribuídas, em Os sertões, ao Conselheiro, estaria para
voltar?19 Quem seria o messias, então: o Conselheiro ou D. Sebastião? Como se vê,
o emaranhado é mais que suficiente para nos deixar a suspeita de que, talvez, quali-
ficar o Belo Monte como movimento messiânico mais atrapalhe que ajude.20 Alba
Zaluar Guimarães tem razão ao alertar para os riscos de se trabalhar com movimen-
tos como o de Belo Monte a partir de categorias assim tão abstratas e genéricas:
ALGUMAS CONCLUSÕES 325
Definições desse tipo usualmente encobrem uma problemática que conduz ao pri-
vilegiamento da “forma” do movimento, ou seja, do seu caráter messiânico conce-
bido nos termos da tradição judaico-cristã, tendendo-se a buscar apoio em teorias
gerais que expliquem o seu surgimento nas mais variadas sociedades e nos mais
variados momentos de sua história. O risco que se corre é de passar de um fenôme-
no definido abstratamente a uma teoria tão geral que muitas vezes as determinações
do movimento concreto escapolem à tentativa de entendê-los. Focaliza-se a atenção
nas semelhanças entre os vários movimentos e não nas suas diferenças, nas suas
particularidades. As semelhanças consideradas dizem respeito exclusivamente aos
movimentos previamente incluídos nessa classe geral. Perde-se, portanto, a opor-
tunidade de encontrar os mecanismos comuns a todos os movimentos que partem
de uma recusa da ordem social vigente e se propõem a mudá-la, sejam movimentos
religiosos ou políticos, já que nestes também não faltam líderes carismáticos, con-
cepções maniqueístas e até mesmo crenças escatológicas. Por outro lado, as diferen-
ças na organização, no projeto e na trajetória dos vários movimentos religiosos não
sendo examinadas, mantêm-se obscurecidas as conexões entre elas e a composição
social dos vínculos que os originaram, bem como seus diferentes vínculos com os
aparelhos institucionais presentes.21
Por outro lado, a utilização do conceito parece derivar de uma pequena dis-
posição em adentrar às distintas cosmovisões dos grupos sob análise. No entanto,
se é necessário sempre mais dar a palavra aos membros do grupo em questão, urge
avançar na identificação das especificidades da trajetória do arraial conselheirista,
para além de considerações vagas. Um caminho que Duglas abriu no artigo seminal
sobre Juazeiro, Contestado e o Belo Monte, na medida em que se perguntou pelas
especificidades de cada um desses movimentos brasileiros no início da República.23
Para resumir: a dificuldade em qualificar o Belo Monte como um movimento
milenarista advém, entre outras razões, do fato de nada se encontrar, nem na pre-
gação do Conselheiro, nem nas manifestações sertanejas, a respeito da expectativa
pela era dos “mil anos de felicidade”, a não ser nas afirmações artificiais e equivo-
cadas de Euclides. Em grande parte o seu equívoco radica na sua fixação na esca-
tologia atávica que atribuiu ao Conselheiro, e na insensibilidade, daí decorrente,
326
3. MOVIMENTOS “BIBLADOS”
Foi também a Bíblia, segundo jornais da época, que motivou a que os inte-
grantes do movimento permanecessem reunidos e em oração mesmo depois do
confronto com a polícia.39 As memórias sobre José Senhorinho, líder da irmandade
de Pau de Colher, dão conta de que ele “sabia ler e gostava de ler a Bíblia”, além do
tão citado Missão abreviada.40 Outro líder do movimento, José Camilo, é apresen-
tado em jornal, anos após o massacre, como “lido em coisas da Bíblia”.41 Embora
quase analfabeto, uma vez preso, recitou versículos inteiros, “profundo conhecedor
da Bíblia” que era.42 Mesmo cinquenta anos após os eventos, ao dar depoimentos
sobre sua história, “a mensagem bíblica era tão forte que se havia tornado a prin-
cipal referência explicativa da sua vida e do mundo”.43 Sirva de exemplo sua espe-
tacular “declamação” de Mateus 5,1-16, notável pela capacidade de memorização
das bem-aventuranças e do que vem a seguir, e principalmente pela maneira como,
ao recriar o texto, deu-lhe feições particulares, inclusive ajustando-o ao cenário
sertanejo. Seguem-se alguns fragmentos:
ele [Jesus] vinha na frente e o pessoalzão atrás dele e quando ele vinha na estrada
tinha um monte... um montesinho de pedra... ele subiu pra riba do monte, história
da Bíblia, e sentou, o pessoal foi se chegando... estrada do interior apenada... era
muita gente... quando chegou o derradeiro, ele se levantou... abriu os braços... e
virou pro pessoal e começou... dizendo assim: [seguem-se sete bem-aventuranças,
faltando aquela relativa aos famintos e sedentos de justiça; a seguir continua] bem
aventurado são o voz outro quando sofre perseguição servil [...] assim também fo-
ram perseguidos os profetas antes de vós, os profetas são o sal da terra [...]44
Destaque-se, por fim, o lugar que ocupam, nas memórias de José Camilo, as
histórias sobre Moisés; aliás, se todas as lideranças da comunidade foram rebatiza-
das com nome de santos, coube ao depoente justo o do líder hebreu.48 Este surge
principalmente como o comunicador dos dez mandamentos da lei de Deus; a no-
meação de Camilo como “segundo Moisés”, além de consolidar sua autoridade,
constituiu-o mediador entre o texto sagrado (que “foi iscrivido por mão de homem
mais a palavra é de Deus”49) e os ouvintes, e o encarregou de zelar pelas normas de
conduta da comunidade, fundadas nos preceitos bíblicos.50 Como se vê, por essas
observações incompletas, Pau de Colher não é exceção:
as estórias [ali ouvidas] revelam uma presença da Bíblia entre os romeiros que apon-
ta para uma cultura bíblico-católica, onde pode-se [sic] ver realizada, embora em per-
manente tensão, a síntese entre o texto bíblico e a teia de sentidos que os romeiros
vão tecendo para sustentá-los na difícil arte de viver.
________
NOTAS
1 Rubem Alves. O suspiro dos oprimidos. 3 ed., Paulinas, São Paulo, 1992,
p.121-122.
2 Josildeth Gomes Consorte. “Movimentos messiânicos no Nordeste”. In: A Igreja
Católica diante do pluralismo religioso (II). Paulinas, São Paulo, 1993, p.60. A expressão
“antagonismos em equilíbrio” aparece em lugares estratégicos da obra de Gilberto Freyre,
particularmente em Casa-grande e senzala, e aponta para um certo acordo e consenso que,
apesar de todas as tensões e violências, se teria estabelecido entre os diversos grupos sociais
na história brasileira, particularmente entre senhores e escravos. Para uma discussão deta-
lhada do conceito, Ricardo Benzaquen de Araújo. Guerra e paz. Casa-grande e senzala e a
obra de Gilberto Freyre nos anos 30. 34, São Paulo, 1994, p.43-73.
3 Jacqueline Hermann. Histórias de Canudos: o embate cultural entre o litoral
e o sertão do século XIX. Dissertação de mestrado, UFF, Niterói, 1990, p.222-223.
4 Roger Chartier. A história cultural: entre práticas e representações. Difel /
Bertrand Brasil, Lisboa / Rio de Janeiro, 1990, p.17.
332
20 Para nos darmos conta do terreno pantanoso em que estamos metidos,
recorde-se que José Calasans, num de seus primeiros trabalhos sobre o Belo Mon-
te, fala do “despertar do messianismo conselheirista” somente a partir da morte de
Antonio Maciel, que teria sido entendida por seus seguidores, segundo Euclides,
como prenúncio de um retorno próximo (O ciclo do bom Jesus conselheiro: con-
tribuição ao estudo da campanha de Canudos. Edição fac-similada pela Edufba,
Salvador, 2002, p.94). Embora seja afirmado por alguns documentos que muitos
belomontenses esperavam a ressurreição do Conselheiro, é difícil explicar toda a
trajetória do Belo Monte a partir dessa crença, por mais importante que em algum
momento ela possa ter sido.
21 Alba Zaluar Guimarães. “Os movimentos ‘messiânicos’ brasileiros: uma
leitura”. In: O que se deve ler em Ciências Sociais no Brasil. Cortez / Anpocs, São
Paulo, 1986, n.1, p.144-145. Maria Cristina Pompa sintetiza dessa forma o pensa-
mento de Zaluar sobre a categoria “messianismo”: “a leitura determinada por cate-
gorias construídas aprioristicamente acaba tornando a interpretação redutiva e não
permite a compreensão global do fenômeno” (“A construção do fim do mundo.
Para uma releitura dos movimentos sócio-religiosos do Brasil ‘rústico’”. In: Revista
de Antropologia. São Paulo, 1998. v.41, n.1, p.191).
22 Alba Zaluar Guimarães. “Os movimentos ‘messiânicos’ brasileiros: uma
leitura”..., p.146. Sinto-me confirmado diante das ponderações de Adriana Ro-
meiro sobre um fenômeno muito menos abrangente, o “sebastianismo” expressas
numa terminologia ainda ambígua ao se referirem a milenarismo e messianismo:
“O conceito de sebastianismo usado para englobar todas estas manifestações de
caráter messiânico, desde as trovas do Bandarra até as formulações da cultura po-
pular, passando pelas concepções do padre Antonio Vieira, não resiste a uma aná-
lise mais atenta. Afinal, estão em jogo elementos tão dispares que a tentativa de
abarcá-los sob um conceito demasiadamente rígido nada acrescenta ao seu estudo,
antes produz uma concepção generalizante e atemporal. Se é necessário buscar
definições mais amplas e elásticas – como a de milenarismo messiânico –, uma
tal empresa somente terá sentido dentro de uma análise bastante particularizada,
submetendo-as ao refinamento de uma abordagem que privilegie as especificidades
de cada fenômeno” (Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas
Minas Gerais. Editora da UFMG, Belo Horizonte, 2001, p.70). O que, de alguma
forma inviabiliza continuar falando de “messianismo”.
23 Lísias Nogueira Negrão notou muito bem esse aspecto do pensamento
de Duglas, distinguindo-o do de Maria Isaura: enquanto para esta “predominam
os conceitos – o conceito de ‘movimento’ seguido do qualificativo ‘messiânico’,
ou ainda o termo genérico ‘messianismo’, que os engloba”, nos textos de Duglas
“aparecem predominantemente referências a casos concretos”. Maria Isaura
ALGUMAS CONCLUSÕES 335
da Terra sem Males e o Paraíso cristão, sugerida pelas fontes a respeito de Jagua-
ripe, Vainfas, embora reconheça que seria prudente desconfiar de tais analogias,
afirma que não fazê-las “seria desconhecer a complexidade do processo acultu-
rador que se operava no Brasil quinhentista, especialmente no domínio da cate-
quese, espaço onde diariamente se tecia menos a difusão da fé católica que um
amálgama cultural diferenciado” (p.109). É no interior desse “amálgama cultural
diferenciado” que a Bíblia vai fazendo interferindo diretamente na confecção da
história brasileira desde o século XVI.
31 Ivone Cecília D’Ávila Gallo. Contestado: o sonho do milênio igualitário.
Unicamp, Campinas, 1999, p.173.
32 Ivone Cecília D’Ávila Gallo. Contestado..., p.175.71 (grifo nosso).
33 Ivone Cecília D’Ávila Gallo. Contestado..., p.46.50.
34 Ivone Cecília D’Ávila Gallo. Contestado..., p.53.54. Veja também a p.147,
onde a autora fala da configuração arquitetônica do reduto que a gente do Contes-
tado chamava de nova Jerusalém.
35 Ivone Gallo não entra em maiores detalhes sobre como os textos bíblicos
se teriam tornado acessíveis à gente do Contestado; afirma apenas que “a formação
religiosa, naquela região, realizou-se, sobretudo, pela pregação de leigos [...] Isso
facilitou a utilização dos textos sagrados como apoio na interpretação dos aconte-
cimentos do cotidiano” (Contestado..., p.174).
36 Ao que parece, ao menos parte dos participantes do movimento participa-
ra da organização conhecida como “Caldeirão”, liderada pelo beato José Lourenço,
e reprimida violentamente em 1936. Sediados agora no município de Casa Nova,
no lugarejo Pau de Colher (que não mais existe; situava-se à margem esquerda do
rio São Francisco, próximo a Juazeiro e à fronteira com o Piauí), formaram uma
comunidade de cerca de mil pessoas, das quais algumas centenas foram massacra-
das em janeiro de 1938 por tropas policiais. Ressalte-se que a imprensa da época
e os “coronéis” da região insistiram na caracterização de Pau de Colher como uma
“segunda Canudos”. Para os detalhes, Maria Cristina Pompa. Memórias do fim do
mundo: para uma leitura do movimento sócio-religioso de Pau de Colher. Disser-
tação de Mestrado, Unicamp, Campinas, 1995; Gilmário Moreira Brito. Pau de
Colher na letra e na voz. Educ, São Paulo, 1999.
37 Coluna do jornal Estado da Bahia / Diários Associados, citada por Gilmá-
rio Moreira Brito. Pau de Colher..., p.82.83.
38 Gilmário Moreira Brito. Pau de Colher..., p.108.
39 Gilmário Moreira Brito. Pau de Colher..., p.123.
40 Maria Cristina Pompa. Memórias do fim do mundo..., p.105.
41 Jornal Estado da Bahia / Diários Associados, citado por Gilmário Moreira
Brito. Pau de Colher..., p.130.
338
42 Jornal Estado da Bahia / Diários Associados, citado por Gilmário Mo-
reira Brito. Pau de Colher..., p.132s: “sabe-se que José Camilo teve acesso ao
conhecimento bíblico por meio de ‘leituras’, feitas aos domingos, compartilha-
das com outros participantes de Pau de Colher. Senhorinho [...] fazia reuniões
em sua casa e de outros interessados [...] Esse processo é revelador de uma das
formas como os textos sagrados, juntamente com valores, normas e uma moral
religiosa constituída no imbricamento de princípios bíblicos com experiências
locais foram sendo transmitidos de grupo em grupo, de geração em geração”
(p.134-135).
43 Gilmário Moreira Brito. Pau de Colher..., p.172.
44 Fala de José Camilo transcrita em Gilmário Moreira Brito. Pau de Co-
lher..., p.174.175.
45 Gilmário Moreira Brito. Pau de Colher..., p.183-185.
46 Fala de José Camilo transcrita em Gilmário Moreira Brito. Pau de
Colher..., p.186. Veja também dizeres de Camilo à p.187: ali fica claro que
para ele “parabolo” tem a ver com enunciados incompreensíveis na superfície.
A Bíblia aparece contraposta à já citada Missão abreviada; esta tem dizeres de
compreensão imediata: ela “é assim pam, pam, e vão dizendo e mostrando o
resultado”. Por outro lado, há as próprias “parabolo” de Camilo, por exemplo,
sobre a criação e o fim do mundo, alimentadas da sempre criativa apropriação
da Bíblia, particularmente dos livros do Gênesis, Êxodo, Daniel e Apocalipse
(p.195.199).
47 Gilmário Moreira Brito. Pau de Colher..., p.185-186.
48 Maria Cristina Pompa. Memórias do fim do mundo..., p. 116-117; Gilmá-
rio Moreira Brito. Pau de Colher..., p.202-203.
49 Gilmário Moreira Brito. Pau de Colher..., p.208.
50 Fica evidente que estes e outros textos bíblicos que surgem da fala de
José Camilo, apreendidos e memorizados ao longo de sua longa existência, “não
foram justapostos cumulativamente, como elementos exteriores às suas experi-
ências e lembranças, mas criativamente integrados às suas vivências, construindo
/ reconstruindo seus modos de ser, de ver, de viver e recordar [...] José Camilo
leu / escutou textos sagrados à luz de suas tradições e práticas culturais, formu-
lando falas e projetando imagens entremeadas na cultura letrada e na oral [...] os
textos bíblicos deram a forma, evocaram e permitiram apreender, nas memórias
de José Camilo, substratos de uma cultura popular religiosa lenta e contradito-
riamente maturada no sertão nordestino, em melo a contínuas e violentas repres-
sões, distorções e desqualificações” (Gilmário Moreira Brito. Pau de Colher...,
p.178.185.196).
51 Gilmário Moreira Brito. Pau de Colher..., p.212.
ALGUMAS CONCLUSÕES 339
52 Carlos Alberto Steil. O sertão das romarias: um estudo antropológico so-
bre o santuário de Bom Jesus da Lapa – Bahia. Vozes, Petrópolis, 1996, p.151. Steil
deve o conceito de cultura bíblico-popular a Otávio Velho (Besta-fera: recriação do
mundo: ensaios críticos de antropologia. Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1995.
p.13-43).
53 Christopher Hill. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. Civiliza-
ção Brasileira, 2003, p.52.
54 Note-se o depoimento de Roldão Mangueira, um dos líderes do mo-
vimento dos Borboletas Azuis, estudado por Josildeth Gomes Consorte e Lísias
Nogueira Negrão: “A Bíblia é verdadeira, agora, muitas criaturas fizeram, como
muitos escritores que escrevem livros e outras coisas mais, eles geralmente, eles
acrescenta muita coisa pelo meio, interesse comercial [...] A própria Bíblia diz que
eles [Adão e Eva] foram os primeiros do mundo e num outro texto, na frente,
outro capítulo, eles dizem que o filho de Adão, quando ele matou um ao outro,
ele saiu [...] encontrou uma cidade [...] e casou-se. Agora, com quem, se eles eram
os primeiros? É por isso que nós num adotamo a Bíblia” (O messianismo no Brasil
contemporâneo. FFLCH / USP – CER, São Paulo, 1984, p.368-369). Apesar disso,
são os autores que mostram, as falas dos membros do grupo ecoam a todo momen-
to referências bíblicas, por meio de paráfrases.
55 Christopher Hill. A Bíblia inglesa…, p.24.
EpÍLOGO
EPÍLOGO 343
O autor que chega ao final dessa viagem a Belo Monte certamente não é o
mesmo que aprontou as malas. Trafegou no decorrer de mais de uma década no
infinito vértice dos sertões da Ciência da Religião, da História, da Antropologia
e mais recentemente da Psicanálise. No trajeto, como o leitor deve ter observado,
foram muitos os exercícios de identificações, de inscrições, de rupturas, de lutos e
de renovadas perspectivas e expectativas para a construção de saberes diante do tão
imperativo Real, impossível de se inscrever. A labuta de caminhar num segmento
de tempo tão dilatado articulando questões tão complexas e arredias a conclusões
estáveis exigiu idas e vindas na feitura de um tecido textual que foi cosendo seus
pontos de estofo tendo muitas vezes de rasgar o já costurado para refazer o entre-
laçado em mais justas medidas. Foram constantes revisões. Portanto, essas últimas
linhas impõem no acabamento final uma operação curiosa. O encontro com um
achado estrutural em todo o processo: o interminável dos enigmas, a potência per-
turbadora para mais uma invenção, mais um modo de abordar o problema, mais
um desdobramento da questão, mais uma resposta pertinente, que tantas vezes
deixa o que está posto para trás, e ao mesmo tempo provisória. Mas se é preciso
terminar, é possível entrever novas significações, sempre uma a mais. Contudo,
concluir é uma operação retroativa e devo evocar algo de fundamental no ponto de
partida, ali onde as malas se aprontaram: o desejo particular e obstinado de fazer
justiça ao nome daquela figura sem a qual Belo Monte não teria existido. Antonio
Conselheiro, personagem da história do Brasil real segundo a proclamação de Aria-
no Suassuna; encarnação da celebridade segundo Machado de Assis; Moisés do ser-
tão segundo a voz da gente sertaneja é decididamente outro daquele da grande obra
euclidiana, o tal “anacoreta sombrio” ou “gnóstico bronco”. Toda a história do Belo
Monte revisitada revela de maneira claríssima que existiu na segunda metade do
344
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ANEXOS 389
Sepultamento de um capitão
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IMPRESSA PELA EDUFAL EM NOVEMBRO DE 2105