Você está na página 1de 392

O BELO MONTE DE

ANTONIO
CONSELHEIRO
uma invenção “biblada”

PEDRO LIMA VASCONCELLOS


ficha catalográfica
Quem não conhece a história de Canudos
não conhece o Brasil.
(Ariano Suassuna)
Se este livro finalmente vem à tona,
isso se deve, na totalidade,
à persistência e dedicação obstinadas de TACIANA.
Desde que soubemos um da existência do outro
e pude apresentar-lhe os resultados a que havia chegado
naquela fase de meu percurso acadêmico,
sua expressão foi de decidido entusiasmo no sentido
de tornar seu conteúdo mais amplamente conhecido.
A forma atual deste trabalho, finalmente publicado,
deriva não só de ajustes, correções e ampliações
que o tempo dilatado impôs fossem feitos,
mas principalmente do diálogo franco, rigoroso e rico
que tenho podido travar com ela em horas
e mais horas de trabalho conjunto e inspirado,
no amor.
Cada uma das páginas deste livro
tem as marcas de sua determinação.
O agradecimento aqui se agiganta,
e seria insuficiente qualquer palavra,
e mesmo todas elas,
para dar conta do que de suas marcas
está aqui impresso, muitíssimo além
do que a referência a Freud e a Lacan
em momento decisivo dele possa sugerir.
Quando da defesa da tese que origina este livro,
fazia memória saudosa de meu pai MILTON.
Hoje tenho de acrescentar a de minha mãe AUTA...

Naquela oportunidade, DÉBORA e MATEUS eram pequenos,


e ouviam, sem muito entender,
seu pai falando de um tal “Canudos”.
Hoje, do enlace com TACIANA, uma dádiva preciosa:
AMANDA, em meu meio século de vida.
AMANDA, DÉBORA e MATEUS, filhos amados,
nos caminhos que vão inventando,
em reluzente juventude,
indicam que valores que fizeram Belo Monte emergir
e foram causa de sua destruição
são de permanente atualidade.
MEMÓRIAS E AGRADECIMENTOS

No início e na base deste livro está uma tese de doutorado em Ciências


Sociais (Antropologia), defendida junto ao Programa de Estudos Pós-Gradua-
dos em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a
orientação amiga da professora Dra. Josildeth Gomes Consorte, cuja presença, ao
longo do percurso, me é muito grato recordar. A banca de defesa da tese, por ela
presidida, foi composta dos professores doutores Alexandre Otten (ITESP), Enio
José da Costa Brito (PUC-SP), Luiz Roberto Benedetti (PUC-Camp) e Paulo
Augusto de Souza Nogueira (UMESP). O alto nível das suas intervenções, com
agudos questionamentos e observações, repercute, de alguma forma, na forma
que o texto ora assume, incorporadas que foram, na medida do que me foi possí-
vel, sugestões aparecidas naquela oportunidade especial.
Na finalização deste trabalho agradecia a muitas pessoas e instituições que
de tantas formas me haviam auxiliado no transcorrer dos quatro anos que viram
a sua confecção. Seja pelos diálogos travados, por materiais disponibilizados, por
oportunidades abertas para a apresentação e discussão de esboços ou partes do
que ia sendo produzido, foram muitos os apoios. Pela menção à Casa de Cultura
Euclides da Cunha, de São José do Rio Pardo, que gentilmente autorizou a utili-
zação das imagens do acervo, a ela pertencente, da coleção “Guerra de Canudos
– Flávio de Barros”, agradeço uma vez mais por todas as expressões de atenção e
interesse, decisivos para a confecção deste livro.
A defesa da tese ocorreu em 2004... De lá para cá muito foi vivido, e por
tantas razões a tese não veio à luz na forma de livro; apenas agora. É verdade que
ela suscitou desdobramentos: artigos foram escritos, desdobrando um e outro
aspectos nela trabalhados; uma dissertação na área da teologia (esta já publicada)
levou adiante a análise da missão de frei João Evangelista de Monte Marciano
ao Belo Monte de Antonio Conselheiro; uma tese de livre-docência na área da
Ciência da Religião foi feita a partir da transcrição de um manuscrito da pena
do líder do vilarejo (e está em vias de ser editada); um livro com uma apresen-
tação resumida do que aqui aparece desenvolvido também apareceu. Mas a tese
permanecia guardada. E para que finalmente pudesse ser publicada precisou ser
radicalmente revista.

E é motivo de satisfação que esse livro venha à tona justamente no ano em


que recordo os cem anos de nascimento de José Calasans, o desbravador-maior do
arraial conselheirista, personagem frequente em muitas páginas deste trabalho, o
grande responsável por proporcionar que na aproximação à temática se possa es-
capar, com menos dificuldades, às sedutoras armadilhas embutidas no tremendo
e fascinante opus magnum euclidiano.
SUMÁRIO

PRÓLOGO 17

INTRODUÇÃO 19
1. HERMENÊUTICAS EM CONFLITO 21
2. MOTIVAÇÕES 22
3. PRETENSÕES 23
4. HISTÓRIAS QUE A BÍBLIA FAZ 24
5. ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO 30
NOTAS 36

CAPÍTULO I
1. SAINDO DA “GAIOLA DE OURO” 49
Vozes dos sertões 50
Uma falsa consciência e o misticismo dos pobres 54
A anomia e o messianismo 56
2. OS IMPACTOS DE UM CADERNO 59
Um manuscrito do Peregrino 60
Mais um olhar marxista 61
Uma comparação necessária 63
Uma visita às prédicas 65
Revisitando as prédicas 67
3. OS CENTENÁRIOS 70
Avanços frente ao já dito 70
Os discursos e sua ideologia 73
Campo em chamas 75
Reverberações 78
O cristianismo beato 80
O beato endiabrado 82
O império de Belo Monte 84
O cerco discursivo sobre Antonio Conselheiro e o Belo Monte 86
4. A COMPOSIÇÃO DO OLHAR 88
Questões 89
O olhar 90
História e Antropologia 90
Apropriação/Recepção/Inscrição 96
NOTAS 99

CAPÍTULO II
1. MASSETÉ: “NÃO DEIS A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR” 120
2. REINVENTANDO O COTIDIANO: A VIDA DE BELO MONTE 126
O estabelecimento de Belo Monte e a proveniência de sua gente 127
Plantavam, colhiam, criavam 132
Edificavam 135
Rezavam 140
Vínculos 144
3. DELENDA, EM NOME DO PROGRESSO E DA RELIGIÃO 149
Mudar para conservar 150
A Igreja condena as revoltas 161
CONCLUSÃO 162
NOTAS 164

CAPÍTULO III
1. VOZES DO SERTÃO E A BÍBLIA 188
O êxodo 189
A terra prometida e o Anticristo 190
O dilúvio vindouro 198
Impressões provisórias 201
2. BELO MONTE E A BÍBLIA DO PEREGRINO 202
Rompendo a interdição: os cadernos de prédicas de Antonio Conselheiro 202
“Apontamentos” e “Tempestades” 203
A originalidade das prédicas 204
Passado e presente 206
Versículos: o amor de Deus e o peregrinar 208
As igrejas em Belo Monte 211
O Conselheiro e as tradições apocalípticas do sertão 213
3. A IGREJA, SUA BÍBLIA E BELO MONTE 216
A missão e o relatório 216
Argumentos revisados 217
Novos argumentos para um tempo novo 219
15

Maldição sobre a Jerusalém do sertão 222


Resultados 223
4. EUCLIDES, LEITOR DA BÍBLIA 225
A cidade fulminada e a legião de demônios 226
O heresiarca bronco e os novos crucificados 230
Resultados 234
CONCLUSÃO 235
NOTAS 237

CAPÍTULO IV
1. OS OLHARES, OS LUGARES 264
A terra da promissão, os agentes do Anticristo e o fim 264
O amor de Deus e sua salvação 267
Todo poder vem de Deus 272
“Um heresiarca do século II em plena idade moderna” 279
2. CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 286
O Conselheiro e sua gente 286
A Igreja e o positivista 290
Disjuntivas, a guerra 293
CONCLUSÃO 300
NOTAS 301

ALGUMAS CONCLUSÕES
1. O RELIGIOSO EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 321
2. MESSIÂNICO? MILENARISTA? 323
3. MOVIMENTOS “BIBLADOS” 327
NOTAS 331

EpÍLOGO 341

BIBLIOGRAFIA
1. Fontes 349
2. Sobre o sertão, Belo Monte e Antonio Conselheiro 352
3. Euclidiana 361
4. História e cultura do Brasil 367
5. Exegese, hermenêutica, teologia e recepção da Bíblia 372
6. Ciências Sociais e da Religião, História, Hermenêutica e outros campos 373

ANEXOS 379
17

PRÓLOGO

Foi numa discussão empolgante com colegas de várias áreas das Ciências Hu-
manas que a ideia deste trabalho surgiu. Eram os anos 1997-98. Ali, entre estupe-
fato e entusiasmado, tomava contato pela primeira vez com a saga de Henequim,
o atrevido português encantado pelo Brasil que, por sua leitura da Bíblia, localiza-
va por essas bandas o paraíso terrestre descrito no livro do Gênesis, algo que não
passaria despercebido aos inquisidores que, em meados dos anos 1740, haveriam
de lhe ordenar a execução. Até então minha investigação sobre os textos bíblicos
concentrava-se em buscar-lhes o contexto original (o Sitz im leben dos alemães),
com a convicção de que, descoberto, chegaria a apreender deles as significações
pretendidas por seus autores. E, a partir daí se desnudariam as inconveniências,
manipulações mesmo – essa era a concepção nos estudos que fazia – das leituras
correntes da Bíblia, especialmente aquelas desenvolvidas nos diversos ambientes
teológicos e eclesiásticos, numa história bimilenar.
A referida discussão foi reveladora por muitas razões. Lançou a semente da
dúvida sobre a nossa possibilidade (e a pretensão aí embutida) de captar, com pre-
cisão cirúrgica, as intencionalidades dos autores bíblicos. Mas principalmente me
obrigou a pensar que, deturpadas ou não, corretas ou não, têm sido exatamente
essas leituras feitas ao longo da história – e não só por eclesiásticos e teólogos re-
nomados – que têm garantido à Bíblia o lugar fundante que ele ocupa na cultura
ocidental. Foi porque marcado de forma indelével pelo referido texto, que lhe
chegou das mais variadas formas, que um sem-número de homens e mulheres,
em múltiplas conjunturas, empenhou vida e morte, significando as experiências
do cotidiano, em vistas a defender “a” verdade, concretizar ideais, exorcizar temo-
res, ensaiar utopias, afastar demônios. Essas inscrições do bíblico na cultura não
poderiam ficar relegadas ao rodapé das discussões exegéticas sobre o texto origi-
nal; pelo contrário, também este precisaria ser considerado à luz de um processo
de muito maior duração: se o evangelho segundo Mateus resulta do impacto que
aquele segundo Marcos produziu para além da suposta intencionalidade de seu
redator, o que pensar dos efeitos que o primeiro passou a produzir, por exemplo ao
ser incorporado ao Novo Testamento como sua porta de entrada?
Dessas questões até o desembarque no Belo Monte de Antonio Conselheiro
foi um salto gigantesco. Novos títulos a serem conhecidos, a literatura sobre o Bra-
sil e o sertão a ser (re)visitada, outros referenciais teóricos, temporalidades e espa-
cialidades até então inéditas para mim se apresentavam desafiadoras. Por que exa-
tamente o Belo Monte, que até então eu conhecia como Canudos? Aulas no ensino
fundamental, o drama do Nordeste seco alargado até as periferias miseráveis de São
Paulo, o fascínio pelas lutas populares dos tempos da Bíblia e aquelas vividas em
solo brasileiro. E Os sertões, que nunca havia lido, mas dele algo sabia, à espreita...
E ali, como em tantas outras fontes, eu haveria de descobrir que entendimentos e
significações do Belo Monte à luz de inscrições bíblicas na cultura brasileira com-
punham, já à superfície, um feixe densíssimo, um soberbo emaranhado, tecido de
consistências e contradições, de encontros e conflitos, como sói ocorrer em todas
as situações em que os humanos são desafiados a desenharem para si a existência
e suas condições. O que se demandava era a disposição para buscar as tramas do
feixe, as linhas constitutivas do emaranhado, as interações que elas perfaziam.
Ali, portanto, no Belo Monte do Conselheiro se iniciava uma nova viagem.
Uma viagem cujo destino era o mesmo da partida; o viajante é que se deslocaria
a cada passo do percurso. Dos campos encharcados de sangue de Israel trucidado
pelos romanos (incluído aí o do crucificado Jesus!) às ribanceiras sertanejas amon-
toadas de corpos degolados pelos agentes da (des)ordem e do progresso o percurso
foi grande, embora tivesse de ser ágil. A viagem no Belo Monte, por suas vielas
e casinholas, passando pela praça das igrejas ao encontro dos barrancos de cus-
cuz, das preces murmuradas, da regra proclamada pelo peregrino Antonio Vicente
Mendes Maciel, das denúncias de heresia e de subversão, bem como das fuzilarias e
canhões, essa viagem foi longa, muito longa. As páginas seguintes são testemunho
dela.
INTRODUÇÃO
20

Assim era meu mestre.


Sabia ler não apenas
no grande livro da natureza,
mas também no modo
como os monges liam
os livros da escritura,
e pensavam através deles.

(Adso, referindo-se ao mestre


William de Baskerville, em
O nome da rosa, de Umberto Eco)
INTRODUÇÃO 21

1. HERMENÊUTICAS EM CONFLITO

Corria o ano de 1897, quando a história de Antonio Vicente Mendes Maciel,


já há muito conhecido nos sertões como Antonio Conselheiro, e da vila que lide-
rava, Belo Monte, mas chamada em geral de Canudos, alarmava todo o país. Foi
num dia desses,

no embarque de alguns dos batalhões de linha, que partiam para a Bahia, que o
primeiro magistrado de uma nação cristã e civilizada, no fim do século das luzes,
proferiu este famoso discurso, que pena é não fique ad perpetuam rei memoriam, no
qual recomendava aos soldados: – “não fique pedra sobre pedra”.1

Quem disso nos informa é César Zama, autor de uma das mais importantes
denúncias da brutal violência praticada pelo exército brasileiro contra a gente serta-
neja que vivia junto ao Conseiheiro no vilarejo às margens do rio Vaza-barris. Mas
teria ele notado que Prudente de Morais, ao pedir o extermínio completo do arraial
maldito, recorreu a uma expressão que, em suas origens, remete para os anúncios
de Jesus sobre a iminente destruição de Jerusalém: “não fique pedra sobre pedra”?2
São incontáveis as referências à Bíblia judaico-cristã para a configuração dos
argumentos e dos sentidos que se pretendeu impor à trajetória de Belo Monte,
feitas por várias partes envolvidas no conflito que levou a vila à destruição. Tra-
tarei de mapear essas tantas recorrências e verificar-lhes as motivações, e com isso
evidenciar facetas importantes de uma das experiências mais dramáticas da histó-
ria brasileira. A tarefa não é pequena, pois as fontes a toda hora nos colocam em
contato com o Anticristo e com maldições proféticas; o livro do Apocalipse e suas
imagens espetaculares; a história de Moisés e dos hebreus rumo à terra prometida.
Juntem-se referências ao paraíso edênico, à árvore do bem e do mal, ao dilúvio e
22

à arca de Noé. Sem contar anúncios de juízo final e proclamações sobre o pecado
e a graça divina, e ainda tantas alusões à capital dos judeus; Euclides da Cunha
caminha nessa esteira ao batizar a vila conselheirista como a “Jerusalém de taipa”.3
E não se trata apenas de metáforas bíblicas aqui e ali encontradas, por motivo
de adornamento literário ou assemelhado. O recurso à Bíblia nessas circunstâncias
implicou profundamente: impactou na definição de territórios, na nomeação e
qualificação de lugares, na estigmatização ou engrandecimento de pessoas e insti-
tuições. A seleção de material bíblico encontrada em cadernos que levam o nome
do Conselheiro não é fortuita, e configura a visão que ele imprimia ao vilarejo que
liderava. Por meio dele que o ímpeto salomônico de construções circula em Belo
Monte e estimula a edificação de suas igrejas. Já Euclides verá nele um retrógrado,
um “falso apóstolo”, um “messias de feira”4, em sugestivo acordo com o que dele
diziam figuras destacadas do clero baiano: contestador da doutrina, transgressor
da religião e desconhecedor das autoridades eclesiásticas. Mas se perguntássemos à
gente que vivia em Belo Monte o que diria de seu líder, provavelmente escutaría-
mos alguma referência, não ao messias, mas a Moisés!
Olhares distintos se entrecruzaram e se chocaram à beira do Vaza-barris, com
um terrível saldo de mortos e feridos. Investigo, num lugar em que interesses e
cosmovisões se confrontaram tão violentamente, em que termos se deu o “conflito
de interpretações” em torno da Bíblia, capaz de evidenciar facetas importantes do
confronto entre o Conselheiro e seu povo, de um lado, e a instituição eclesiástica
com seus missionários e as forças republicanas, de outro. Mas note-se que aliados,
aqui, não têm necessariamente a mesma leitura dos eventos, nem a mesma apro-
priação de referenciais bíblicos. Tais articulações e desencontros, que mostram a
complexidade do fenômeno histórico, são o foco desse trabalho. Que condicio-
namentos possibilitaram apropriações da Bíblia às vezes complementares, outras
vezes antagônicas?

2. MOTIVAÇÕES

A Bíblia, por força de sua autoridade como livro divino, na América Latina
forjou e legitimou comportamentos, forneceu e configurou argumentos, justificou
atitudes, contraditórias em muitas oportunidades. Momentos particularmente con-
flitivos e ao mesmo tempo decisivos tiveram a Bíblia presente nos diversos lados e
interesses. A Bíblia não é apenas um livro; é um meio pelo qual muitas coisas ficam
legíveis, são criadas e recriadas. Visitar Belo Monte e projetar sobre esse momento da
história do Brasil uma luz particular tem sua razão de ser. Investigar de que maneira
INTRODUÇÃO 23

imagens e temas bíblicos foram assumidos no contexto de um movimento socior-


religioso como expressão materializada na experiência pode evidenciar facetas que
possibilitem uma compreensão mais abrangente do ocorrido em Belo Monte.
Além disso, perceber os diversos olhares que se entrecruzaram num determi-
nado fenômeno é enriquecedor, diz muito sobre ele e os sujeitos nele envolvidos.
Na cobertura da guerra contra Belo Monte feita pela imprensa da época a diversi-
dade de perspectivas foi grande, indo do galhofeiro ao ponderado, passando pelo
sensacionalista.5 Como poderíamos caracterizar as diversas hermenêuticas da Bíblia
confrontadas em Belo Monte?
Interessa-me ainda salientar a relevância do religioso na configuração de Belo
Monte, bem como na sua destruição. Se tomamos a perspectiva de Euclides da
Cunha, percebemos que a religião, particularmente em suas expressões populares,
aparece como expressão do atraso da vida sertaneja. Se esta foi uma tendência co-
mum em seu tempo, a que depois se somaram outras, que viam na religião mero
epifenômeno, cabe perceber outras dimensões, suas potencialidades conflitivas e
capacidades de indicar alternativas. Assim, quanto ao Conselheiro, cabe abordar
sua posição subjetiva “não no nível de mera racionalidade sociológica, mesmo que
seus resultados sejam apreciados e acolhidos, mas na tentativa de compreender a
identidade do beato, valorizando sua experiência religiosa que se refletiu em pre-
gação e atuação”. O percurso que proponho particulariza tal abordagem, fazendo
a pergunta pela presença da Bíblia em tal experiência; afinal, a animar o beato de
Belo Monte está “a Palavra de Deus que desemboca em promessa e legitimação de
luta por um novo céu e uma nova terra”. 6 Tal hermenêutica deverá ser confrontada
com outras que se chocaram em Belo Monte.

3. PRETENSÕES

É fundamental sublinhar o papel da Bíblia judaico-cristã como fonte de


valores, procedimentos e crítica na história destas terras após 1500, inclusive
ocupando espaços opostos no desenrolar da trama histórica e social; o caso do Belo
Monte de Antonio Conselheiro é emblemático nesse sentido.
A esse se articula outro escopo. Belo Monte por muito tempo foi classificado,
particularmente por suas vivências religiosas, a partir de conceitos pouco apropriados,
reveladoras de posturas etnocêntricas e mesmo autoritárias: fanatismo, ignorância, sub-
versão, loucura. Ao revisitar alguns dos mais importantes testemunhos a respeito, busco
evidenciar as “lógicas” de tal experiência, bem como algumas das intenções, nomeadas
como progresso, civilização e ordem, dos setores que agiram por sua eliminação.
24

Também estou convencido de que a saga de Belo Monte é capaz de fornecer


elementos para a discussão a respeito da formas da inserção do cristianismo no Brasil,
apontando para as contradições e implicações desta presença, seja em sua vertente
mais institucional e burocrática, seja ainda nas expressões populares mais autônomas,
muitas vezes articuladas a outras tradições culturais e religiosas. Com isso é possível
avançar na compreensão dos referenciais estruturantes da religiosidade popular brasi-
leira, bem como recuperar elementos primordiais da história da utopia, muitas vezes
inspirada em valores e referenciais bíblicos, e de sua repressão em nosso país.
Mas é importante também deixar claro o que não pretendo nem pressuponho.
De forma alguma a direção aqui tomada estabelece que a Bíblia seja a única matriz
de onde emergiram todas as vozes e palavras, mesmo as mais estritamente religio-
sas, surgidas da experiência vivida em Belo Monte e a seu redor. Não se toma aqui a
trajetória de Antonio Conselheiro e sua gente supondo que ela se explique exclusi-
vamente como algo que deriva da religião cristã trazida até aqui pelos portugueses,
e da Bíblia que com ela aqui aportou. É patente a existência de diversas formas de
intercâmbio cultural e religioso aqui desenvolvidas, e significativamente presentes
em Belo Monte. Deve ficar claro que minha proposta não supõe que o Brasil te-
ria experimentado uma influência dos valores e referenciais cristãos maior que a
reconhecida por aqueles que postulam poder falar de “cristianização imperfeita”7
do Ocidente. Até porque se teria de perguntar em que consistiria a “cristianização
perfeita”, caso se pudesse concebê-la...

4. HISTÓRIAS QUE A BÍBLIA FAZ

Não há como colocar em dúvida que a Bíblia tenha sido o livro que mais im-
pactou, em suas contínuas leituras e releituras, a constituição do mundo ocidental,
embora a percepção dessas marcas, talvez exatamente por sua pujança e quase oni-
presença, venha sendo no mínimo insuficiente. Se Gadamer tem razão ao incluir,
como tarefa da hermenêutica, a percepção “do rastro que uma obra deixou atrás de
si”8, quanto mais esse desafio não se colocará à Bíblia!
Mas existem trabalhos estimulantes. Christopher Hill, num estudo provoca-
dor, procura mostrar como o livro sagrado dos cristãos jogou papel decisivo “na
vida dos homens e mulheres daí Inglaterra revolucionária do século XVII”. Essa
presença é multiforme: “todas as ideias que dividiram os dois partidos na Guerra
Civil e que, depois, entre os parlamentaristas vitoriosos, separaram os conservado-
res dos, podem ser encontradas na Bíblia”. Mas não é só: é possível rastrear “seus
efeitos sobre a economia, a literatura e a vida social em geral”.9
INTRODUÇÃO 25

Se passamos para as terras colonizadas pelos europeus, encontramo-nos, por


um momento, diante dos escravos dos Estados Unidos e no surpreendente mundo
que criaram. A presença da Bíblia nesse universo é determinante, ao se constituir
como

um inexaurível manancial de bons conselhos para uma vida conveniente; não cos-
tuma ser vista como um corpo imutável de doutrina, como a viam os fundamenta-
listas brancos. Por isso as figuras bíblicas devem ser vivas, devem estar presentes e de
alguma forma constituir exemplos históricos a serem aplicados ao momento atual.10

Até aqui o terreno de tradição majoritariamente protestante, em que a pre-


sença da Bíblia é ostensiva. Ao nos deslocarmos para a América Latina, particular-
mente ao Brasil, vemos que o livro se faz menos visível. Mas, apesar de todos os
esforços por deixá-lo inacessível, seus temas e referências surtiram poderoso efeito,
por terem chegado aqui antes do livro:

Na América Latina vivemos em sociedades formalmente cristãs. Em tais sociedades


a Bíblia tem um peso social, mesmo para os ateus ou para os que não praticam os
ritos de nenhuma confissão cristã. A Bíblia é uma força social [...] nestas sociedades,
a interpretação bíblica tem consequências.11

O Brasil, junto com o conjunto dos territórios desde o século XVI passou a
fazer parte do mundo político, econômico e cultural dos europeus, foi introduzido
a um universo cheio de esperanças e convicções inspiradas na Bíblia. Colombo cria
que suas incursões para o Ocidente confirmavam dados da Escritura que, articu-
lados aos anúncios de Joaquim de Fiore e outros influxos, indicavam claramente
o fim dos tempos para meados do século XVII. Suas viagens somavam-se a em-
preendimentos como a expulsão dos judeus e mouros da Península lbérica, para
reunir povos e nações que nunca tinham ouvido falar de Deus e seu filho, para
que proclamassem a sua glória, sinal insofismável da proximidade do fim: “mile-
narismo joaquimita, filosofia hermética, messianismo judaico, profetismo, guerras
santas internas e externas para a vitória sobre o anticristo, poderio onipresente da
Inquisição, intrigas universitárias e palacianas: eis o mundo onde habita Cristóvão
Colombo”.12 A própria empreitada da conquista suscitará acalorados debates, onde
não faltarão passagens bíblicas, arroladas por quem apoiava os empreendimentos e
por quem discutia alguns de seus termos:

Se alguém ler os documentos da conquista espanhola do século XVI, ficará muito


surpreso ao notar a ênfase teológica e bíblica que predominava neles. Parece que os
26

conquistadores sentiam uma necessidade quase compulsiva de justificar seu projeto


colonizador com as Escrituras e com a fé cristã. Por outro lado, os seguidores de
Valdivieso e Las Casas apelaram à mesma Bíblia e à mesma fé cristã para denunciar
as injustiças de seus conterrâneos em seu empreendimento conquistador.13

Mas as viagens marítimas eram feitas também na expectativa de se localizar o


Paraíso terrestre descrito em Gênesis 2. Colombo julga tê-lo divisado ao encontrar
a foz do rio Orinoco, atual Venezuela: “eu afirmo que esse rio emana do Paraíso
Terrestre e de terra infinita [...] a minha convicção é bem forte de que ali, onde in-
diquei, fica o Paraíso Terrestre”.14 O jesuíta Manoel da Nóbrega, em 1549, alguns
meses depois de se instalar em São Salvador, a primeira capital das terras recém-in-
corporadas a Portugal, não se expressa diferentemente. Afinal,

para os teólogos da Idade Média não representava o Paraíso Terreal apenas um mun-
do intangível, incorpóreo [...] nem simplesmente alguma fantasia vagamente piedo-
sa, e sim uma realidade ainda presente em sítio recôndito, mas porventura acessível
[.,.] Não admira se, em contraste com o antigo cenário familiar [...] a primavera
incessante das terras recém-descobertas devesse surgir aos seus primeiros visitantes
como uma cópia do Éden. Enquanto no VeIho Mundo a natureza avaramente re-
gateava suas dádivas [...] no paraíso americano ela se entregava de imediato em sua
plenitude, sem a dura necessidade – sinal de imperfeição – de ter de apelar para o
trabalho dos homens. 15

Detalhe, esse último, que logo seria corrigido... Outros tópicos evidenciam
o contínuo processo de construção do Brasil por meio de categorias bíblicas: por
exemplo, o pecado do Cam fez longa história por aqui, e seu relato em Gênesis 9
tanto dá conta da impiedade indígena, manifesta em sua escandalosa nudez, como
“pode ser chamado o texto ‘gerador’ da ideologia escravista cristã”.16
A despeito destes dados, no entanto, é quase impossível aquilatar a presença
da Bíblia nos primeiros séculos de colonização do Brasil. Há desde a constatação de
que, no século XVII, “a Bíblia era praticamente ignorada” nas bibliotecas particula-
res até mesmo de conventos, nas quais, contudo, abundavam os devocionários, até
aquela segundo a qual, no século anterior, uma mulher em Pernambuco “solicitava
ao mestre-escola Bento Pereira ‘para lhe declarar a Bíblia de latim em linguagem’
(isto é, em português), conjugando a leitura oral e privada à tradução”.17 Sabe-se,
por exemplo, que “em muitas experiências catequéticas com as crianças indígenas
no Brasil, foram utilizadas as representações das cenas bíblicas”.18 E, de forma mais
geral, “o contato do povo com a Bíblia se fazia através de representações principal-
mente no ciclo do Natal e na Semana Santa”.19
INTRODUÇÃO 27

Mas não podem ser esquecidos os sermões, entre os quais os de Antonio Viei-
ra, certamente, se destacam, e não apenas do ponto de vista literário. Contudo, “o
comentário que o sermão bíblico faz da Bíblia segue uma argumentação alegórica,
misturada de mística, de poesia, de eruditismo verbal, de sorte que se torna de di-
fícil compreensão para o povo”.20 Tal perspectiva, que permitia adaptar as palavras
bíblicas às mais variadas circunstâncias, se somava a outra, que aparecerá inclusive
nas prédicas atribuídas a Antonio Conselheiro: a hermenêutica em que temas e
personagens da Bíblia judaica são tidos como prefigurações de realidades do Novo
Testamento.21 O processo costumeiro a que os sermões de Vieira submetiam os tex-
tos bíblicos será reencontrado em outras oportunidades, com as devidas variações:

o conceito predicável é um texto – palavra ou sentença – extraído do Velho ou do


Novo Testamento comentado pelo orador. No século XVII, era comum usar cader-
ninhos para colecionar conceitos predicáveis específicos das várias datas litúrgicas e
adaptá-los com sentido profético às circunstâncias da pregação. A adaptação, cha-
mada de concordância, consistia em demonstrar semelhanças proféticas entre o sen-
tido da vida de homens e acontecimentos da Bíblia e o sentido da vida de homens e
eventos do presente. A semelhança era interpretada como presença providencial de
Deus orientando uns e outros no passado e no presente.22

Segundo Magno Vilela,

para o desenvolvimento do tema, Vieira partia sempre da citação de passagens bí-


blicas: na grande maioria eram frases do Evangelho; de vez em quando, ele partia de
uma citação do Antigo Testamento. Todas essas frases eram invariavelmente citadas
em latim, mas Vieira as traduzia para os ouvintes durante o desenrolar do sermão.
Ele as traduzia e sobretudo as comentava. E as comentava amplamente, associan-
do-as com outras citações bíblicas e com o assunto do sermão, interpretando-as de
maneira simbólica e estabelecendo quase sempre as mais surpreendentes correspon-
dências e combinações do tema com a atualidade e com os objetivos que pretendia
alcançar.23

Esses dados permitiriam supor uma familiaridade mais ampla com as pala-
vras e temas da Bíblia, nesses tempos e espaços? Embora possamos suspeitar que
o tempo se encarregou de internalizá-los, é impossível avaliar o quanto o caso de
Pedro de Rates Henequim é representativo de uma situação mais geral. Atraído
pelas notícias de ouro e outras preciosidades no Brasil, particularmente na região
hoje chamada Minas Gerais, este português chegou ao Brasil perto de 1702. De pai
flamengo e mãe portuguesa, oscilando desde o começo entre o universo católico
28

e o protestante, conhecedor da cabala judaica, leitor incansável da Bíblia, ao aqui


contatou também as mitologias indígenas, que o fascinaram. Suas elucubrações
teológicas, em que se articulam elementos das diversas tradições e culturas que co-
nheceu, originaram curiosa e atrevida cosmovisão, conhecida de nós pelo fato de,
em 1741, ter ele sofrido um processo, por parte da Inquisição portuguesa, que ha-
veria de matá-lo três anos depois; os autos dela o retiraram das brumas da história.
Henequim era obcecado pela localização do paraíso terrestre. E pelo cruzamento
de João 18,36 e Apocalipse 21,1, passagens que lhe sugeriam um território distinto
do europeu, asiático e africano para o paraíso tão procurado, concluiu que o Éden
se localizava nas terras que a que ele havia chegado.24 Mas Henequim é mais pre-
ciso: o lugar

em que Adão foi criado, está na América debaixo da Linha Equinocial, e perpen-
dicular ao lugar em que Deus tem seu Trono no Céu; e o prova de nesta nova terra
se achar tudo o que a Escritura diz dele: porque nela se acha o fruto da Árvore da
Vida, que são as Bananas compridas, e o da Ciência, que são as Bananas curtas, e
frutas, rios, e delícias.25

Exatamente no Brasil. Localizado o Éden, cabe agora restaurá-lo. Henequim


articula sua descoberta à espera da instauração iminente do “Quinto Império”,
encontrado por ele em Daniel 2, passagem que ganhara vida e contornos especialís-
simos no século anterior, quando Portugal buscava refazer sua autonomia política.
Desde 1580 Portugal está sob domínio dos reis da Espanha, situação que perdurou
até 1640. O reerguimento da Metrópole terá apoio fundamental, não é de se es-
tranhar, das ideias bíblico-teológicas. Antonio Vieira se envolverá nessa tarefa ao
mesmo tempo política e exegética. Em várias obras expôs sua exegese de Daniel
2; 7; Zacarias 6 e outros textos: um príncipe português, anunciado anteriormente
por personagens que Vieira reconhece serem proféticos (entre os quais o sapateiro
Bandarra, do século XVI26), é ninguém menos que o soberano de então, D. João
IV, que haverá de derrotar os turcos para então conquistar a Terra Santa. Então se
instalará o Quinto Império, o reino de mil anos de Apocalipse 20, o império dos
cristãos, universal, “de sorte que não haverá Reino, coroa, nem Rei algum no mun-
do que a este supremo Império não seja sujeito”.27
Henequim era leitor de Vieira, mas se separa dele no momento de localizar
o império esperado: ele “está próximo, há de ser nos Brasis, no lugar do Paraíso
Terreal”.28 Que sentido faz a colonização que sangra a terra situada exatamente
debaixo do trono de Deus? Se os autos inquisitoriais nos dizem pouco sobre esta
rebelde temática, obscuras informações sugerem que Henequim se tenha envol-
vido em movimentações para fazer do irmão do rei D. João V, o infante D. Ma-
INTRODUÇÃO 29

nuel, o soberano da então colônia ultramarina. O que seria de imensa valia para
os portugueses estabelecidos nas Minas e vingaria alguns revezes que Henequim
sofrera em sua estada aí até pelo menos 1720, época de inúmeras manifestações
de descontentamento contra Portugal e suas medidas fiscais.29 Assim, se a impor-
tância do pensamento de Henequim vem “especialmente de sua capacidade de
reatualizar e reverter o mito do Quinto Império em favor da Colônia, rompendo
com a organização espacial e temporal subjacente ao imaginário do colonialis-
mo”30, é fundamental reconhecer a importância da hermenêutica de Daniel 2 e
outros textos bíblicos para a configuração da teia mítica que marcou Portugal e
sua relação com as colônias além-mar, e que Henequim reinterpretou criativa-
mente, sugerindo novas definições, quanto ao lugar do Brasil e em particular das
Minas Gerais que tanto o marcaram.
E o que dizer do caso, cercado de detalhes obscuros, de Nuno Marques Pe-
reira, autor de uma obra muito lida no século XVIII, o Compêndio narrativo do
peregrino da América, cujo manuseio da Bíblia é impressionante?31
Passo ao século XIX, ao encontro de Antonio Conselheiro, conhecido nos
sertões como “homem biblado”, que pelo menos desde 1874 “lia direto” a Bíblia.32
Ele teve à sua disposição uma versão feita pelo pe. Antonio Pereira de Figueiredo,
a partir do texto latino oficial da Igreja católica, definida nos anos posteriores ao
Concílio de Trento (1545-1563), mas herdeira da tradição da Vulgata de são Jerô-
nimo, editada no fim do século IV e início do seguinte. A Bíblia do pe. Figueiredo
foi a de mais largo uso entre os católicos de língua portuguesa no século XIX até
meados do século XX. Isto foi possível pois em 1757 o papa Pio IV, alterando
disposição estabelecida no contexto do Concilio de Trento, permitiu traduções
da Bíblia em língua vulgar, desde que acompanhadas de notas e explicações feitas
pelos teólogos católicos e aprovadas eclesiasticamente.33
A primeira edição brasileira da referida Bíblia apareceu em 1864 (apenas o
texto português), aprovada pelo arcebispo da Bahia, D. Manoel Joaquim da Silvei-
ra, que, em texto do ano anterior, dizia esperar que se tirassem “lições das Sagradas
Escrituras, livre dos erros e subtrações das Bíblias falsificadas e truncadas que em
tanta quantidade correm pelo país”.34 Este detalhe nos remete a outro, de grande
importância: a chegada dos primeiros grupos protestantes no Brasil do século XIX
levou a uma apropriação da tradução de Figueiredo, adaptada aos seus propósitos
missionários35, já que por aqui “não há escolas e nenhuma Bíblia à vista, exceto oca-
sionalmente, aqui e acolá, nas casas dos comerciantes europeus”.36 É nesse contexto
que encontramos o “biblado” dos sertões, emergido de uma cultura bíblica popular
bastante enraizada. O quadro se completa ao se notar que os setores que militaram
pela eliminação de Belo Monte também eram marcados pelo texto sagrado, e dele
faziam seus próprios usos.37
30

Desta forma, precisa-se de uma ciência similar à do Guilherme de Baskerville


de O nome da rosa, que sabia das leituras bíblicas dos monges, e de como as inscri-
ções daí advindas definiam as subsequentes leituras da realidade. Embora a história
da Bíblia no Brasil se diferencie em muitos detalhes daquela que Hill descobre na
Inglaterra revolucionária do século XVII, também por estas latitudes é pertinente
a pergunta por sua presença e incidência nos mais diversos âmbitos da vida e nos
distintos sujeitos. A história que ela veio fazendo nessas terras é muito anterior à
sua difusão tardia como livro, e certamente incisiva. No Belo Monte e no seu en-
torno, muitos eram os “biblados”...

5. ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO

O primeiro dos quatro capítulos deste livro parte da constatação, feita há mais
de quarenta anos, de que o chamado “movimento de Canudos” não fizera surgir
uma monografia abrangente, ao contrário do ocorrido à história do Contestado ou
ao Juazeiro do pe. Cícero. À época Os sertões, de Euclides da Cunha, era a única
obra a oferecer uma visão da complexa trajetória da vila conselheirista.38 Talvez, por
suas proporções gigantescas, inibisse qualquer revisão do tema.
Hoje o quadro está notavelmente modificado. Na verdade, os elementos que
propiciariam a mudança já estavam postos há algumas décadas, por despretensiosas
entrevistas com sobreviventes do massacre e pesquisas esparsas; elas começaram a
colocar em cheque e progressivamente fizeram ruir o edifício euclidiano, impo-
nente, aparentemente inexpugnável. E eis que, um século depois da carnificina,
descobre-se Belo Monte como tema inesgotável, e Euclides, ou ao menos Os sertões,
deixa de ter a última palavra sobre o ocorrido.
Assim, inicio com uma resenha do que José Calasans, o grande renovador
dos estudos sobre Belo Monte, considerava um desafio, que a morte o impediu de
realizar: a “história da história de Canudos”. Dois marcos determinam a escolha
dos textos e autores. Primeiramente, recuo até 1947, ao encontro das primeiras
reportagens e entrevistas com sobreviventes do arraial.39 Por outro lado, a escolha
dos textos se guia pela maior ou menor capacidade deles em evidenciar aspectos
relevantes da experiência religiosa vivida em Belo Monte, seja em seus aspectos
intrínsecos, seja em sua conexão com outros elementos que fizeram o arraial e suas
relações com o seu entorno. Mais especificamente, quero notar o destaque dado
pelos autores à presença de referenciais bíblicos interferindo nos rumos trilhados
pelo arraial e pelas forças que militaram por sua destruição. Na esteira do percurso
feito nesses quase setenta anos, e à luz de limites e desafios que nele serão identifica-
INTRODUÇÃO 31

dos, tratarei de definir um tanto mais a perspectiva e os referenciais que compõem


o olhar com que, a essa altura, me aproximo da história da vida e morte do Belo
Monte.
Passo adiante. A percepção dos contornos que as diversas “leituras” da Bíblia
assumiram em Belo Monte não seria possível sem que se retomem os principais
lances da curta vida daquele arraial. Até porque tais apropriações são históricas, e
se inserem no mais profundo das existências que se cruzaram no vilarejo, algumas
apostando que ali poderiam reescrever suas biografias, em novos e promissores
patamares, outras vendo naquele distante e até então obscuro Canudos o mal que,
debelado, permitiria ao Brasil avançar para níveis mais razoáveis de organização po-
lítica e de práticas religiosas. Mapear esse complexo quadro é tarefa para o segundo
capítulo deste trabalho. Estou convencido de que a consideração do dia-a-dia da
comunidade conselheirista permite uma compreensão matizada dos objetivos que
a animaram, inclusive para enfrentar heroicamente as sucessivas expedições mili-
tares que a dizimaram. A identidade do Belo Monte não é fruto da “deformação”
de elementos da cultura dos setores dominantes, nem mero resultado da imposição
desta, nem expressão espontânea, mas fruto de um intercâmbio conflitivo entre as
experiências vividas pelos grupos que se estabeleceram no arraial e lhe deram vida,
e aquelas de quem apostou no desaparecimento deste. Por outro lado, a atenção
a tal cotidiano evitará que se projetem sobre ele alguns estereótipos, de um olhar
sobre Belo Monte principalmente a partir da guerra que o destruiu, e que se im-
ponham, também a partir do embate e de uma tentativa de sua interpretação,
finalidades e motivações para a vida do arraial que pouco espaço ou pertinência
encontraram no seu interior.40 Não preciso insistir em que esta abordagem leva em
conta a multiplicidade de fatores envolvidos na realização do processo histórico de
que Belo Monte emerge.
Não há que se estranhar que a maioria das informações, poucas e por vezes
desencontradas, a respeito do dia-a-dia de Belo Monte, mas também sobre aquilo
que o precedeu e sobre a guerra que o dizimou, é trazida por gente que não apostou
na vida do arraial, mas em sua destruição. E que, portanto, seja preciso trabalhar
sobre essa base de dados que, justamente por estar empenhada em descaracterizar
o que lá se passava acabou por preservar traços fundamentais da trajetória da vila
conselheirista; também aqui “o fato de uma fonte não ser “objetiva” (mas nem mes-
mo um inventário é “objetivo”) não significa dizer que é inutilizável. Uma crônica
hostil pode fornecer testemunhos preciosos sobre o comportamento de uma co-
munidade camponesa em revolta”.41 É o caso, por exemplo, do imprescindível Re-
latório que leva o nome do frei capuchinho João Evangelista de Monte Marciano,
e registra a sua presença em Belo Monte, em meados do maio de 1895, quase dois
anos após o estabelecimento do arraial e um ano e meio antes da eclosão da guerra.
32

Trata-se de um documento que se ajunta a outros que, justamente por pretende-


rem combater cosmovisões e alternativas sociais e religiosas que de outra forma
nos seriam quase inacessíveis, acabaram por fazê-las escapar de um esquecimento
quase inevitável. Sob este aspecto o Relatório me parece sub-avaliado. Tendo ido
missionar Belo Monte com o intuito de dissolvê-lo e não tendo alcançado seu
intento, frei João assinou um relato do que viu nos oito dias em que lá esteve,
precioso por pelo menos duas razões. Em primeiro lugar, pelo fato de se tratar de
um documento contemporâneo aos fatos e elaborado por alguém que conheceu
pessoalmente a vila antes da guerra, embora por poucos dias. Como diz o pró-
prio frei, o Relatório é documento de missão que pôde “apreender e denunciar a
impostura e perversidade da seita fanática no próprio centro de suas operações”.42
Em segundo lugar, e talvez o mais importante para os meus propósitos, por se
tratar de depoimento de uma pessoa claramente interessada em tematizar os as-
pectos da vida em Belo Monte mais dignos de censura, acentuando aquilo que
considera questionável e digno de condenação. Na busca da diferença, evidenciar
os aspectos condenáveis quanto a rituais, concepções e práticas colhidos in loco
é o que dá ao Relatório uma relevância particular quando nos perguntamos pela
experiência da gente de Belo Monte. O que já se disse sobre as notas dos inquisi-
dores, que, “destinadas à tarefa de identificar o mais tênue germe de heresia [...]
se pautavam pela busca da diferença”43, pode ser percebido no Relatório. Embo-
ra seus propósitos sejam claramente políticos, a argumentação é construída de
forma a apresentar um panorama bastante amplo da experiência que aí se vivia,
e como esta se chocava ao mesmo tempo com as pretensões eclesiásticas e os
objetivos do Estado. Aliás, justamente a finalidade expressa do escrito o qualifica
como testemunho importante do que ocorria em Belo Monte antes da guerra e
da carnificina de 1896-1897; ele é

informativo, embora, evidentemente, parcial, apaixonado mesmo em alguns pon-


tos. Deu-nos ele, contudo, pela primeira vez, uma notícia geral da comunidade
messiânica, aspectos de sua vida cotidiana, novas de alguns cabecilhas da grei, o
péssimo estado sanitário do povoado, as atitudes agressivas de exaltados seguidores
do líder Antônio Conselheiro [...] Sendo, como realmente é, um relato oficial, o
trabalho de Frei João, pela circunstância de sua passagem, embora rápida, por Ca-
nudos, ganha proporções de documento básico.44

No terceiro capítulo passo à análise da documentação relativa ao Belo Monte


em busca das variadas formas de apropriação da Bíblia aí encontradas, e das inscri-
ções dela derivadas nos diversos sujeitos que fizeram a história da saga em questão.
Motiva-me a certeza de que se pode
INTRODUÇÃO 33

construir explicações válidas do social exatamente a partir das versões conflitantes


apresentadas por diversos agentes sociais, ou talvez, ainda mais enfaticamente, só
porque existem versões ou leituras diferentes sobre as “coisas” ou “fatos” é que se
torna possível ao historiador ter acesso às lutas e contradições inerentes a qualquer
realidade social.45

São quatro as vertentes a serem consideradas. Um primeiro sujeito é a gente


sertaneja que constituiu o séquito do Conselheiro em Belo Monte. A Bíblia lhe
será decisiva para a compreensão da vida aí levada, e na confecção de suas certezas
e esperanças. Num contexto em que há alguns séculos se assiste à “cristianização do
imaginário”46, é inevitável deparar-se com a presença de referenciais judeu-cristãos,
consignados no livro sagrado, que configuram o espaço e o tempo míticos em que
o arraial vive, organiza-se e luta. As vozes aí escutadas são múltiplas, embora nem
de longe se possa aqui identificar todas as proveniências.47 Constatar esse detalhe
é fundamental para se avaliar como inevitavelmente fragmentário o material que
analisarei, embora seja sem dúvida representativo.48
Lugar destacado merecem Antonio Conselheiro e os manuscritos a ele atri-
buídos. Este caminho, embora pouco frequentado, mostra-se mais seguro do que
reconstruir as convicções do Conselheiro apenas a partir do que disseram dele,
procedimento que, obviamente, não deve ser de todo descartado. Assim me res-
trinjo, para buscar-lhes o sentido, às prédicas atribuídas ao beato e registradas em
dois cadernos que levam o seu nome, e datados de 1895 e 1897, respectivamente.
Como terceira vertente identifico a Arquidiocese da Bahia, que se expressou
definitivamente em relação a Belo Monte por meio do já referido Relatório da mis-
são de frei João Evangelista de Monte Marciano, assim motivada:

com esse nobilíssimo propósito [chamar a gente aglomerada e destemida ao dever]


se entendeu [o governador da Bahia, Rodrigues Lima] com o prelado da arqui-
diocese [D. Jerônimo Tomé], ficando entre os dois assentada a ida do capuchinho
fr. João Evangelista de Monte Marciano, a quem foi cometida a missão de fazer
o Conselheiro tornar com sua gente para o grêmio da Igreja, e obediência às leis e
autoridades do país.49

A missão foi pensada com um caráter eminentemente político; isso explica o


tom do relatório, sua linha de argumentação e conclusões. O regime de separação
entre Igreja e Estado, estabelecido pela República, não será obstáculo para a articu-
lação nos empreendimentos; pelo contrário, será possível identificar um processo
consciente de reaproximação entre ambos. Particularmente a preocupação com
a “ordem” os tornará aliados. O próprio papa Leão XIII interviera no sentido de
34

que os bispos católicos se colocassem atitude de colaboração com o Estado. O


episódio de Belo Monte será a ocasião ideal para que a parceria se efetive, e o envio
dos missionários capuchinhos ao arraial a senha de que o acordo vige. Cabe, pois,
olhar com cuidado este documento, decisivo para viabilizar, aos olhos da opinião
pública, o aniquilamento do Belo Monte.
A finalizar este capítulo, uma análise sobre a obra maior de Euclides da Cunha:
o que significarão as referências bíblicas no interior dela, que se debatia com pro-
blemas como a identidade e o projeto nacionais? O que representam, numa análise
grandiosa do sertão e do país, as precárias considerações sobre o religioso aí en-
contradas? O risco de se estar considerando uma faceta secundária do pensamento
euclidiano pareceria inevitável, ainda mais se se atenta para a fortuna crítica de Os
sertões. Na primeira apreciação feita à obra, lia-se, um dia após o seu lançamento,
no Correio da Manhã do dia 03 de dezembro de 1902:

O livro, por tantos títulos notável, do sr. Euclides da Cunha, é ao mesmo tempo o
livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um ho-
mem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem
de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever, que
vibra e sente tanto aos aspectos da natureza como ao contato do homem e estre-
mece todo, tocado até ao fundo da alma, comovido até às lágrimas, em face da dor
humana, venha ela das condições fatais do mundo físico, as secas que assolam os
sertões do Norte brasileiro, venha da estupidez ou da maldade dos homens, como
a Campanha de Canudos.50

Não caberia, diante de uma obra que recebe uma avaliação desse teor, que se
atente para uma faceta aparentemente tão pouco relevante no conjunto. No entan-
to, a questão deve ser colocada de outra forma. A temática que tomou a atenção de
Euclides por um bom tempo, e acabou por lhe trazer fama e um nome único na
literatura brasileira, o exige.
Com efeito, os processos históricos são brutos e não se interpretam com recur-
sos e metodologias definidos totalmente a priori. Eles de alguma forma sugerem as
ferramentas com que serão melhor abordados e compreendidos. O processo que
Euclides desenvolveu pessoalmente com o Belo Monte me parece uma contínua
abertura, a mais ampla que lhe fora possível, visando captar mais adequadamente
a lógica dos eventos que via à sua frente. Uma dinâmica sem sentido e brutal, mas
carente de explicação. Os sertões, em sua versatilidade e polissemia, é fruto dessa
trajetória peculiar, que exigiu de seu autor uma metodologia que de alguma forma
incorporasse elementos teológicos na abordagem de Antonio Conselheiro e seu
arraial. Claro que tudo, em última instância, se subordina ao determinismo geo-
INTRODUÇÃO 35

gráfico, aos condicionamentos do clima, segundo os dogmas da ciência da época,


que Euclides partilhava plenamente. Mas Belo Monte portava especificidades que
demandavam instrumental que, inclusive, esclarecesse as formas da ação de tais
determinismos. O fanatismo sertanejo e a loucura carismática do Conselheiro, ex-
pressões do cristianismo em suas formas mais baixas e atrasadas, são o resultado dos
referidos condicionamentos. Daí a necessidade de alguns voos pela história cristã,
a recuperação de personagens obscuros dos seus inícios, a apropriação de temas
bíblicos. Trata-se de um aspecto que recentemente vem sendo destacado, seja por
conta da educação letrada de Euclides, seja pela absorção que “fez do ponto de vista
daqueles que se encontravam no Belo Monte para salvar suas almas, num mundo
reencantado pela fé”.51
Mas as diferenças com o restante do material a ser analisado são importantes.
O contato de Euclides com o tema Belo Monte se faz com a guerra em curso, já
em sua fase final.52 Além disso, como alguém que vem do sul, das cidades mais
importantes do país, e não conhece o sertão nordestino, se espantará com o que vai
encontrar e, depois, proporá uma reflexão fundante sobre os contrastes, em todos
os níveis, existentes no Brasil. Na verdade, Os sertões, particularmente no que toca
ao arraial conselheirista, soa mais “como o produto de um processo de construção
do ‘outro’” que como resultado de uma descoberta da gente sertaneja53, com efeitos
impactantes no olhar que o Brasil vai fazendo de si mesmo ao longo do século XX.
É inescapável, portanto, aproximar-se de Os sertões mesmo que para considerar
apenas esse seu aspecto não tão secundário.54
Tomo, portanto, os referidos textos como testemunhas, sim, mas como fru-
tos da diversificada e conflitiva “construção do imaginário discursivo” sobre Belo
Monte.55 O quarto capítulo deste livro justamente salienta as convergências e
disjunções manifestadas pelos documentos. Se no capítulo anterior o tema foram
as fontes bíblicas apropriadas pelos diversos sujeitos que fizeram a vida e a morte
de Belo Monte, a questão agora será evidenciar as “redes interpretativas” (para
usar a expressão de Ginzburg) em que essas apropriações ganharam sentido. De
alguma forma com esse capítulo se pretende chegar a um dos objetivos principais
deste trabalho: mostrar como as recepções que a Bíblia recebeu no contexto que
analisaremos são capazes de trazer à tona aspectos fundamentais dos diversos con-
flitos vividos aí, seja no campo dos eventos ou dos interesses imediatos, seja no
das cosmovisões, percepções do passado e do presente e perspectivas de futuro em
relação ao Brasil. Os projetos que fizeram a existência do arraial e dos processos
que o levaram à trágica destruição ficarão iluminados por uma ótica diferenciada.
36

NOTAS
1  César Zama. Libelo republicano acompanhado de comentários sobre a guerra
de Canudos. Diário da Bahia, Salvador, 1899 (edição fac-símile pelo Centro de
Estudos Baianos, 1989), p.31 [destaque do autor]). Prudente de Morais retomará
a expressão no fim da guerra: "Em Canudos não ficará pedra sobre pedra, para
que não mais possa reproduzir-se aquela cidadela maldita” (texto no Jornal do Co-
mércio de 08/10/97, citado por Roberto Ventura. “Euclides no vale da morte”. In:
Rinaldo de Fernandes [org.] O clarim e a oração: cem anos de Os sertões. Geração,
São Paulo, 2002, p.457). Quanto à dupla nomenclatura da vila, considere-se que
“no momento crítico em que ocorreu o episódio de Canudos, a contradição, mais
claramente, explicita-se em torno da luta pela definição da territorialidade, pois
se encontra entre os de ‘cá’, de fora, a denominação de ‘Canudos’, enquanto os
moradores do vilarejo lutaram pela imposição e preservação do nome Bello Monte
[...] Esta territorialidade foi definida não somente enquanto espaço geográfico,
mas como construção histórica” (Sérgio Guerra. Universos em confronto: Canudos
x Bello Monte. Uneb, Salvador, 2000, p.49).
2  Veja Marcos 13,2; Lucas 19,44.
3  Euclides da Cunha. Os sertões: campanha de Canudos. 4 ed., Ateliê, São
Paulo, 2009, p.327.
4  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.253.498.
5  Walnice Nogueira Galvão. No calor da hora: a guerra de Canudos nos jor-
nais. 3 ed., Ática, São Paulo, 1994.
6  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”: a mensagem religiosa de Antonio
Conselheiro. Loyola, São Paulo, 1990, p.87.
7  Expressão citada por Laura de Mello e Souza (O diabo e a terra de Santa
Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. 6 ed., Companhia das
Letras, São Paulo, 1999, p.16).
8  Hans-Georg Gadamer. Verdade e método: traços fundamentais de uma her-
menêutica filosófica. Vozes, Petrópolis, 1997, v.1, p.505. A abordagem científi-
ca da Bíblia se deu pelo recurso aos chamados “métodos histórico-críticos”, pelos
quais se procura entrar no universo histórico, social e cultural no qual os textos
foram gestados, em busca de recuperar o que terá sido o sentido original, ou ao
menos o pretendido inicialmente, do texto investigado. Empreitada complexa,
quiçá impossível de ser realizada, mas de toda forma importante para salientar
a relatividade das interpretações dogmáticas e autoritárias dadas pelos agentes
eclesiásticos, mostrando-lhes a ambiguidade e, mais ainda, a arbitrariedade com
que muitas leituras de textos bíblicos (historicamente datáveis!) eram apresenta-
das como definitivas (para uma história do método histórico-crítico, pode-se ler
INTRODUÇÃO 37

Martin Volkmann, Friedrich Erich Dobberahn e Ely Éser Barreto César. Método
histórico-crítico. CEDI, São Paulo, 1992, especialmente as p.9-75). A aplicação de
perguntas oriundas da Sociologia, Antropologia e outras ciências humanas só veio
aprofundar esse caminho, ao que parece sem volta (Gerd Theissen. Sociologia da
cristandade primitiva. Sinodal, São Leopoldo, 1987, p.9-14). Mas justamente o
fato de a exegese histórico-crítica se ter preocupado em recuperar aquele que teria
sido o sentido original de determinado texto fez saltar à vista os diversos sentidos
dados a ele no decorrer da história. Para além de descartá-los como adulterações
artificiais, a questão que se coloca é reconhecer que o texto bíblico sobreviveu e
impactou na cultura não por conta do seu presumido sentido original, mas pelas
inúmeras releituras dele feitas no decorrer dos séculos, obedecendo a interesses e
a perspectivas surgidas dos diversos contextos em que ele era lido, e dos diversos
sujeitos que o leram.
9  Christopher Hill. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 2003, p.9. Veja também, do mesmo Hill, O mundo de
ponta-cabeça: ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640 (Companhia das
Letras, São Paulo, 2001).
10  Eugene D. Genovese. A terra prometida: o mundo que os escravos cria-
ram. Paz e Terra / CNPq, Rio de Janeiro / Brasília, 1988, p.352. Os sonhos da
gente escrava por liberdade nessa vida e/ ou na outra se alimentavam das histórias
bíblicas, particularmente as relativas a Moisés e ao êxodo dos hebreus. E na associa-
ção entre Moisés e Jesus articulavam-se libertação política e salvação além-morte:
“Moisés se tornara Jesus, e Jesus se tornara Moisés; e, nessa fusão, os dois aspec-
tos da busca religiosa dos escravos, libertação coletiva enquanto povo e redenção
de seus terríveis sofrimentos pessoais, tornaram-se uma só coisa, pela mediação
do poder criativo que se manifesta com tanta beleza nos spirituals” (p.365). Em
síntese: as narrativas bíblicas nas bocas e ouvidos da gente escravizada trouxeram
fundamentalmente duas consequências. Primeiramente a criação de “uma sensibi-
lidade nacional negra”, que pode ser ilustrada, pelas palavras de um pregador negro
que “contava a história dos israelitas identificando-a à da nação negra oprimida e
fazendo dos negros o Povo Eleito, que Deus punha à prova por meio da escravidão
e da opressão” (p.380). A outra implicação deu à religião negra nos Estados Unidos
um perfil escatológico peculiar: “a religião dos escravos não era essencialmente
messiânica, no sentido político. Não surgiram nas senzalas linhagens de pretensos
libertadores que arregimentassem seguidores em grande número. [...] O libertador
do povo seria o próprio Deus, configurado em Moisés (ou Moisés-Jesus), e era
preciso atraí-Lo pela fé” (p.387-388).
11  Jorge Pixley. “O aspecto político da hermenêutica”. In: Revista de Interpre-
tação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis, 1999. n 32, p.99.
38

12  Marilena Chauí. “Profecias e tempo do fim”. In: Adauto Novaes [org.] A
descoberta do homem e do mundo. Companhia das Letras, São Paulo, 1998, p.459.
13  Juan Stam B. “Exégesis bíblica en la teología de los conquistadores”. In:
Boletín Teológico. Flórida, 1992. v.24, n.47/48, p.267.
14  Citado por Marilena Chauí. “Profecias e tempo do fim”..., p.490; veja a
apresentação de Tzvetan Todorov sobre “a crença mais surpreendente de Colombo”
(A conquista da América: a questão do outro. 2 ed., Martins Fontes, São Paulo,
1999, p.19-20).
15  Sérgio Buarque de Holanda. Visão do paraíso: os motivos edênicos no
descobrimento e colonização do Brasil. Brasiliense / Publifolha, São Paulo, 2000,
p.X-XI; para Nóbrega, veja p.290-291.
16  Ronaldo Vainfas. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no
Brasil. Nova Fronteira, Rio da Janeiro, 1997, p.32; Eduardo Hoornaert “A leitura
da Bíblia em relação à escravidão negra no Brasil-colônia (um inventário)”. ln:
Estudos Bíblicos. Petrópolis, 1983. n.17, p.20-22.
17  Luis Carlos Villalta. “O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitu-
ra”. In: Laura de Mello e Souza (org.) História da vida privada no Brasil: cotidiano
e vida privada na América portuguesa. Companhia das Letras, São Paulo, 1999,
p.361.375.
18  Valmor da Silva, Hermínio Quaresma e Rosana Pulga. “Historia de la
lectura de la Biblia en América latina”. In: La Palabra hoy. Santafé de Bogotá, 1994.
v.XIX, n.71/72, p.44.
19  João Fagundes Hauck, Hugo Fragoso, José Oscar Beozzo, Klaus van der
Grijp e Benno Brod. História da Igreja no Brasil. Segunda época, século XIX. 2 ed.,
Vozes / Paulinas, Petrópolis, 1985, v.II/2, p.106.
20  Eduardo Hoornaert, Riolando Azzi, Klaus van der Grijp e Benno Brod.
História da Igreja no Brasil. Primeira época. 3 ed., Vozes / Paulinas, 1983, v.lI/1,
p.332.
21  Trata-se da chamada “leitura tipológica”, uma prática comum de leitura
dos textos da Bíblia judaica, cujo princípio básico é o seguinte: “Na Bíblia há
acontecimentos, coisas e pessoas que prefiguram, quais alusões na penumbra, uma
realidade visível só no nível superior da Redenção. A figura alusiva é o tipo (ou pro-
tótipo), a realidade é o antítipo” (Josef Scharbert. Introdução à Sagrada Escritura.
3 ed., Vozes, Petrópolis, 1980, p.174). Cabe ainda “a distinção entre antítipo tele-
ótipo: antítipo [...] exprime uma oposição entre figura e realidade; Adão e Cristo:
Adão causou a morte, Cristo a Vida [...] Teleótipo [...] exprime o fato do Novo
Testamento como cumprimento e aperfeiçoamento da figura vétero-testamentária.
Assim, Páscoa cristã é o teleótipo Páscoa judaica, ou seja, a libertação da escravidão
do pecado e da morte é mais sublime do que a libertação da escravidão egípcia”
INTRODUÇÃO 39

(p.174-175). Alimentada da polêmica anti-judaica, que pretendia mostrar que os


escritos da primeira aliança só adquiriam seu sentido pleno quando lidos à luz do
Novo Testamento, a leitura tipológica marcou os séculos, havendo de ser colocada
em cheque apenas com o advento das críticas histórica e literária, aplicadas à Bí-
blia. Veremos que as prédicas atribuídas ao Conselheiro são pródigas em atualizar
e aplicar à vida religiosa cristã as histórias e passagens da Bíblia judaica. Nelas
encontramos as duas formas de leitura tipológica, com predomínio dos teleótipos,
já que Jesus é entendido como aquele “que disse não ter vindo destruir a Lei, mas
aperfeiçoá-la” (Antonio Vicente Mendes Maciel. “Leis do culto divino”. In: Apon-
tamentos dos preceitos da divina lei de Nosso Senhor Jesus Cristo, para a salvação dos
homens. Manuscrito, Belo Monte, 1895, p.210).
22  João Adolfo Hansen. “Padre Antônio Vieira” In: Lourenço Dantas Mota
[org.] Introdução ao Brasil: um banquete no trópico. Senac, São Paulo, 1999, p.27.
23  Magno Vilela. Uma questão de igualdade: Antônio Vieira e a escravidão
negra na Bahia do século XVII. Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1997, p.73.
24  Plínio Freire Gomes. Um herege vai ao paraíso: cosmologia de um ex-co-
lono condenado pela Inquisição (1680-1744). Companhia das Letras, São Paulo,
1997, p.110.
25  Uma das teses de Henequim, recolhida em Um herege vai ao paraíso...,
p.166; veja Sérgio Buarque de Holanda. Visão do paraíso..., p.166-172.
26  Sobre Bandarra, suas trovas e os movimentos de cunho messiânico-mile-
narista abarcados, talvez inadequadamente, sob o nome de sebastianismo (alusão ao
rei D. Sebastião, desaparecido numa batalha em 1578 e cujo retorno era aguardado
com toques messiânicos), vale a leitura de Jacqueline Hermann. No reino do desejado:
a construção do sebastianismo em Portugal. Companhia das Letras, São Paulo, 1998.
27  Antonio Vieira. Defesa perante o tribunal do Santo Ofício. Progresso, Sal-
vador, 1957, v.1, p.282; veja também seu História do futuro. 2 ed., Imprensa Na-
cional / Casa da Moeda, s/l, 1992.
28  Tese de Henequim, recolhida em Um herege vai ao paraíso..., p.156.
29  Adriana Romeiro. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milena-
rismo nas Minas Gerais. UFMG, Belo Horizonte, 2001, p.59-98.
30  Adriana Romeiro. Um visionário na corte de D. João V..., p.227.
31  A relevância e as formas da presença da Bíblia no Compêndio (obra edi-
tada em 1728 e reeditada mais quatro vezes no século XVIII; 6a edição, aqui uti-
lizada, pela Academia Brasileira, Rio de Janeiro, 1939, 2v.) são tema para outro
trabalho. Seu autor, de quem não se sabe praticamente nada, é bastante versado na
Bíblia, e na maioria das vezes faz de seus textos aplicações alegóricas. Como mais
adiante terei de tratar deste livro, conhecido e utilizado por Antonio Conselheiro,
por ora fica a constatação.
40

32  José Calasans. “Belo Monte resiste”. In: Revista da Bahia. Salvador, 1997.
n.22, p.47. Calasans atribui a expressão “biblado” a “um homem de Masseté”,
vilarejo com que logo nos encontraremos. Outro depoimento indica que o Con-
selheiro seria “inteligência superior e conhecedor da leitura da Bíblia” (citado por
Bartolomeu de Jesus Mendes. Formação cultural e oratória de Antônio Conselheiro.
BDA-Bahia, Salvador, 1997, p.35, nota 52).
33  O Concílio de Trento, realizado entre 1545 e 1563, quis ser a respos-
ta da Igreja Católica ao movimento da Reforma Protestante; nesse contexto
adotou posições rígidas quanto à doutrina, à formação dos padres e à leitura
da Bíblia pelos leigos, entre outras. A liberalização quanto a este item propor-
cionou à tradução do pe. Figueiredo, de reconhecidos méritos literários, uma
rápida difusão: o Novo Testamento foi publicado em 1778 e reeditado em
1781; o Antigo Testamento foi saindo aos poucos: em 1790 a Bíblia inteira
perfazia vinte e três volumes. A década seguinte viu sair uma nova edição do
conjunto (completado em 1805), e entre 1794 e 1819 saiu outra, agora em sete
volumes, dedicada ao futuro D. João VI. Houve ainda outras edições, sempre
baseadas na tradução de Figueiredo, mas com notas alteradas ou suprimidas,
surgidas em Lisboa, a primeira em 1852-53 (em dois volumes); a segunda em
1854 (Antigo Testamento em dois volumes) e 1857 (Novo Testamento em
um volume). As sucessivas edições foram motivadas também pelo fato de, ao
contrário da tradução, os prefácios e notas explicativas terem sofrido vários
tipos de restrição eclesiástica, e foram progressivamente alterados, suprimidos
ou substituídos. Para detalhes, J. Pereira. “Portugaises (versions) da la Bible”.
In: F. Vigouroux. Dictionaire de la Bible. Letouzey et Ané, Paris, 1922, t.5,
col.559-569; Simão Voigt. “Versões em português”. In: Josef Scharbert. Intro-
dução à Sagrada Escritura..., p.167-168. Todas essas edições são bilíngues, isto
é, trazem o texto latino oficial da Igreja católica numa coluna e a tradução por-
tuguesa ao lado. Como nos manuscritos atribuídos ao Conselheiro muitas das
passagens bíblicas aparecem em latim e em português, imagina-se que ele terá
tido acesso à edição de 1852-53 (opinião da Bartolomeu de Jesus Mendes. For-
mação cultural e oratória de Antônio Conselheiro..., p.34-35) ou à de 1854-57
(como pensa Fernando da Rocha Peres. “Fragmentária”. In: Walnice Nogueira
Galvão e Fernando da Rocha Peres (org.) Breviário de Antonio Conselheiro.
Edufba, Salvador, 2002, p.23-25).
34  A Bíblia Sagrada, traduzida em português segundo a Vulgata Latina.
Ilustrada com prefações por Antonio Pereira de Figueiredo. Garnier, Rio de Ja-
neiro, 1864, v.1, p. inicial. É desta edição que serão extraídas todas as citações
encontradas neste livro, exceto aquelas que se encontrem no interior de textos
de outros autores.
INTRODUÇÃO 41

35  Os protestantes no Brasil do século XIX muito se serviram da tradução de


Figueiredo (Paulo Augusto de Souza Nogueira. “A Bíblia dos primeiros protestan-
tes no Brasil”. In: Estudos de Religião. São Bernardo do Campo, 1998. n.14, p.104),
do que os apologistas católicos tirarão proveito. Uma edição de 1855 (apenas com
o texto em português) não traz os livros deuterocanônicos e era assim apresentada:
A Bíblia Sagrada, contendo o Velho e o Novo Testamento: traduzida em português
segundo a Vulgata por Antônio Pereira de Figueiredo. A edição é de W. Clowes e
Filhos, Stanford Street e Charing Cross, Londres. O fato de essas versões não tra-
zerem os livros que a tradição evangélica considera apócrifos, bem como as notas
explicativas, motivou o texto do arcebispo da Bahia acima citado.
36  Impressão de um missionário protestante após sua passagem pelo Rio de
Janeiro de 1819, citada em Paulo Augusto de Souza Nogueira. “A Bíblia dos pri-
meiros protestantes no Brasil”..., p.101. Na página seguinte se lê o depoimento de
um missionário metodista inglês, chegado ao Brasil em 1816: “quanto mais ouço
o papismo explicado, mais me provoca desgosto a abominação; e mais fico grato a
Deus por ter nascido num país protestante, uma terra de liberdade e de Bíblias”.
Foi decisiva, para a estratégia dos missionários protestantes, a distribuição maci-
ça de Bíblias entre o povo, em vistas a tirá-lo do que viam como obscurantismo
e ignorância. E a mudança de posicionamento por parte da hierarquia católica
visava fazer frente ao movimento protestante, que começava a fazer o livro sagra-
do presente nas residências brasileiras (João Fagundes Hauck, Hugo Fragoso, José
Oscar Beozzo, Klaus van der Grijp e Benno Brod. História da Igreja no Brasil...,
p.210-211).
37  Como situar, nesse verdadeiro conflito em torno da Bíblia, a atenção
que o Conselheiro dava a este livro? Estariam ligadas a essa questão as genéricas
invectivas contra os protestantes, encontradas nos manuscritos atribuídos a ele?
Dos quatro sujeitos cujas versões sobre Belo Monte serão analisadas neste trabalho,
apenas Antonio Conselheiro terá construído seus textos por algum recurso direto à
Bíblia. Ou, no mínimo, é apenas nos cadernos atribuídos a ele que encontraremos
transcrições de textos bíblicos, capítulos inteiros ou apenas versículos isolados, ci-
tados quase sempre de forma exata. Assim, a leitura e a produção de sentido que
inevitavelmente ocorre aí configuram “uma relação diferenciada, dependente das
variações, simultâneas ou separadas, do próprio texto, da passagem à impressão
que o dá a ler e da modalidade de sua leitura” (Roger Chartier. A história cultu-
ral: entre práticas e representações. Difel/Bertrand Brasil, Lisboa/Rio de Janeiro,
1990, p.26). Por outro lado, se não se pode dizer que o mundo de Belo Monte foi
totalmente ágrafo, há que necessariamente recorrer ao universo da oralidade, seus
percursos e “tecnologias” para que se possa dar conta de aspectos decisivos de nossa
temática, particularmente da apropriação que habitantes do arraial conselheirista
42

fizeram da Bíblia. São famosas, porque recolhidas por Euclides, as trovas em que a
gente de Belo Monte externou sua visão sobre os vários aspectos da sua vida e do
seu entorno (República, o Anticristo, o Conselheiro). Muitas delas estão dispostas
em forma (quase) alfabética, de forma que as iniciais de cada uma determinem o
seu lugar no conjunto, denominado, segundo Euclides, “ABC das incredulidade”
(Caderneta de campo. Cultrix / Instituto Nacional do Livro. São Paulo / Brasília,
1975, p.59-61). Confirma-se aqui o diagnóstico de Ong: “o alfabeto, este redutor
impiedosamente eficaz do som ao espaço, é obrigado a prestar serviço direto para
estabelecer as novas sequências definidas no espaço” (Oralidad y escritura: tecnolo-
gías de la palabra. Fondo de Cultura Económica, México, 2001, p.101).
38  Alba Zaluar Guimarães. “Os movimentos ‘messiânicos’ brasileiros: uma
leitura”. In: O que se deve ler em Ciências Sociais no Brasil. Cortez / Anpocs, São
Paulo, 1986, v.1, p.142-143 (o texto foi publicado originalmente em 1979).
39  Não abordarei aqui, portanto, os textos escritos durante a vida de Anto-
nio Conselheiro e a existência do arraial, nem aqueles escritos nos anos subsequen-
tes: romances, diários de guerra, relatos de viagem. Todos eles servirão, de alguma
forma, de fontes. E a contribuição euclidiana receberá tratamento detalhado em
momento oportuno.
40  Encontram-se as duas tendências em Os sertões. Os aspectos do cotidia-
no do arraial (que de nenhum modo Euclides deixa de considerar) são subor-
dinados à apresentação de “O homem” (a segunda parte da obra), o sertanejo e
Antônio Conselheiro, este apresentado a partir de referenciais mais que discutí-
veis. Mas o belomontense praticamente não é sujeito. Por outro lado, a pregação
que Euclides atribui ao Conselheiro tem caráter milenarista e principalmente
associada ao fim do mundo próximo, o que contribui para deslocar a atenção do
intérprete mais para o mundo do além, supostamente em vias de se realizar, do
que para a experiência que se materializava às margens do Vaza-barris. Terei de
voltar ao assunto.
41  Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes..., p.21.
42  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório apresentado, em 1895,
pelo reverendo Frei João Evangelista de Monte Marciano, ao Arcebispado da Bahia,
sobre Antonio Conselheiro e seu séquito no arraial dos Canudos. Correio da Bahia,
Salvador, 1895 (fac-símile pelo Centro de Estudos Baianos, 1987, p.7 (destaque
meu)
43  Plínio Freire Gomes. Um herege vai ao paraíso..., p.18.
44  José Calasans. “Canudos não euclidiano”. In: José Augusto Vaz Sampaio
Neto, Magaly de Barros Maia Serrão, Maria Lúcia Horta Ludolf de Mello e Vanda
Maria Bravo Ururahy. Canudos: subsídios para sua reavaliação histórica. Casa de
Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 1986, p.16-17.
INTRODUÇÃO 43

45  Sidney Chalhoub. Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos trabalhado-


res no Rio de Janeiro da Belle Époque. 2 ed., Unicamp, Campinas, 2001, p.40.
Tais versões e leituras “estabelecem uma história”, já que esta “não se define pela
cronologia, nem por seus acidentes, nem é tampouco evolução mas produção de
sentidos” (Eni Pulcinelli Orlandi. Terra à vista: discurso do confronto: velho e novo
mundo. Cortez / Unicamp, São Paulo / Campinas, 1990, p.14).
46  A expressão é de Serge Gruzinski (La colonización del imaginario: socieda-
des indígenas y occidentalización en el México español. Siglos XVI-XVIII. Fondo
de Cultura Económica, México, 2000, p.186).
47  Um único exemplo. Grupos indígenas se envolveram com Belo Monte
por motivações diversas. Os Kaimbé de Massacará inseriram seu envolvimento com
o Conselheiro no quadro de um “regime de salvação”, em que o destino da alma
jogava um papel fundamental. Já para os Kiriri de Mirandela no arraial se realizava
a vontade de Deus e o santo se fazia presente (Edwin Reesink. “Til the end of time:
the differential attraction of the ‘Regime of Salvation’ and the ‘Entheotopia’ of Canu-
dos”. In: http://www.mille.org/publications/winter2000/reesink.PDF [10/02/03]).
48  Para tanto, a documentação a ser avaliada será aquela que reflita de al-
guma forma as vozes da gente do Conselheiro. Valerão, para este objetivo, as ano-
tações de campo feitas por Euclides da Cunha no curto espaço de sua estadia no
palco da guerra, bem como depoimentos de sobreviventes colhidos anos após os
embates. Também o testemunho de gente da região tem seu valor. Particular rele-
vância merecem os registros de frei João Evangelista a respeito da semana em que
esteve no arraial, em relatório já mencionado, e algumas anotações de falas sertane-
jas, em relatos de militares.
49  Aristides Milton. “A campanha de Canudos”. In: Revista trimestral do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1902. t.63, p.2, p.19.
50  José Veríssimo. “Uma história dos sertões e da campanha de Canudos (Os
sertões, campanha de Canudos por Euclides da Cunha, Laemmert & C., editores)”.
In: José Leonardo do Nascimento e Valentim Facioli (org.) Juízos críticos: Os sertões
e os olhares de sua época. Nankim / Unesp, São Paulo, 2003, p.46.
51  Walnice Nogueira Galvão. Intervenção na mesa-redonda “Terreno de
prospecções”. In: Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo, 2002. n.13 / 14,
p.371. A força das imagens bíblicas na invenção euclidiana do sertão e da guerra
é poderosa: “o grande sintagma narrativo de Os sertões, começando pelo Gênesis
telúrico e terminando pelo Juízo Final contido no Apocalipse, simbolizado pelo
aniquilamento de Canudos pelo fogo, haure sua inspiração visionária na mimese
do paradigma bíblico” (Walnice Nogueira Galvão. “‘Os sertões’ faz 100 anos: o
alcance das ideias de Euclides da Cunha”. In: Revista Brasileira. Rio de Janeiro,
2002. n.30, p.114).
44

52  As obras de Euclides sobre Belo Monte não se reduzem a Os sertões, pu-
blicado em 1902. Os dois primeiros textos são artigos, ambos intitulados “A nossa
Vendeia”, publicados em O Estado de São Paulo a 14 de março e 17 de julho de
1897, respectivamente. Vendeia, um vilarejo francês, reagiu aos rumos da Revolu-
ção Francesa, e teve sua saga imortalizada por Victor Hugo em seu romance Qua-
tre-vingt treize. Já que Belo Monte era alardeado como um reduto monarquista,
Euclides considerou viável (antes de seguir para o palco da guerra) aproximá-lo da
vila francesa. As reportagens e telegramas que enviou ao mesmo jornal entre agosto
e outubro do mesmo ano, no período final da guerra, foram reunidos, junto aos
artigos, sob o título Diário de uma expedição ('Companhia das Letras. São Paulo,
2000). Já foi citado um caderno de anotações do período em que Euclides esteve
nos sertões (Caderneta de campo...).
53  A formulação é de Maria Cristina Pompa (“As muitas línguas da conversão:
missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial”. In: Tempo. Niterói, 2001. n.11, p.27),
que, no entanto, se refere ao contexto da colonização. Mas seus termos são precisos:
nesse processo de “invenção”, as definições dos “outros” são funcionais, “principal-
mente para a identificação da civilização ocidental, que, discorrendo sobre o ‘diverso’,
fala sobre si mesma, verificando-se”. O “outro” de Os sertões, o sertanejo, é inventado
de forma similar, algo, aliás, intuído já por Afrânio Peixoto quando, ao tomar posse
na Academia Brasileira de Letras em lugar de Euclides, comentava: Os sertões “não é
livro de história, estratégia ou geografia, é apenas o livro que conta o efeito dos sertões
sobre a alma de Euclides da Cunha” (“Euclides da Cunha: o homem e a obra”. In:
Afrânio Peixoto. Poeira da estrada. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1921, p.32).
54  Não satisfaz a posição que, talvez por tomar Euclides por um agnóstico
(quando não ateu), marcado pelas tendências científicas do seu tempo que lhe
configuraram uma perspectiva anticlerical e mesmo antirreligiosa, desconsidera,
tendo por irrelevantes, suas ideias sobre religião. Olímpio de Souza Andrade afirma
ser Euclides alguém “supersticioso e preocupado com o problema religioso, embora
se classificasse “livre pensador” (História e interpretação de Os sertões. 4 ed., Acade-
mia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 2002, p.184). Uma das reportagens de Eu-
clides mostra bem sua pessoal sensibilidade para com a religião. Ao registrar missa
de que participou, em meio a “espingardas, cinturões e cantis e um selim suspenso
no teto”, quando estava a caminho do palco da guerra (depois da missa Flávio de
Barros fez uma fotografia: veja Canudos: imagens da guerra. Museu da República /
Lacerda, Rio de Janeiro, 1997, p.96-97), Euclides visivelmente se incomoda com a
situação, em que, por se ter ajoelhado com os que se ajoelharam e levado as mãos
ao peito em sinal de reconhecimento de culpa, pareceria estar mentindo “às mi-
nhas crenças”, ele que às “opulentas catedrais da cruz” garante ter sido indiferente.
“Não: não traí a nossa fé, transigindo com a rude sinceridade do filho do sertão...”
INTRODUÇÃO 45

(Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.153; veja ainda as p.195-196).


Contudo mais importante é a síntese que ele vislumbra entre suas crenças e uma
liturgia que, naquele momento, não lhe permite a anterior indiferença. Ele não
apenas transige com o sertanejo; aquela missa é expressão importante daquilo que
mais adiante irá declarar com todas as letras: a parcialidade do divino, não por
quem age e fala a partir de referenciais indiscutivelmente religiosos, mas pelo em-
preendimento militar que se lhe contrapõe.
55  Eni Pulcinelli Orlandi. Terra à vista..., p.124.
I
O RELIGIOSO NO BELO MONTE:
PERCURSOS FEITOS, INSUFICIÊNCIAS
E POSSIBILIDADES
48

A história fará sua homenagem


à figura de Antonio Conselheiro.

(Gereba/Ivanildo Vilanova)
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 49

A renovação do olhar sobre Belo Monte e sua experiência religiosa, iniciado


em 1947 com modestas reportagens, desenvolveu-se fundamentalmente em três
fases: a) no período que vai até o fim dos anos 1960 tivemos o registro das falas da
gente que viveu em Belo Monte e sobreviveu à guerra, e as primeiras tentativas de
se abordar a história do arraial na perspectiva das ciências sociais de então; b) a pu-
blicação de um caderno de prédicas atribuído a Antonio Conselheiro veio confir-
mar, primeiro timidamente, depois com maior vigor, a necessidade de se submeter
à crítica a visão euclidiana sobre Belo Monte e seu líder; ao mesmo tempo, revelou
palavras fundamentais na viabilização do arraial conselheirista, porque expressão
da visão de mundo do Conselheiro e dos valores por ele apregoados; trabalhos dos
anos 1970 e 80 detiveram-se de forma importante nesse material; c) as efemérides
em torno do estabelecimento do arraial conselheirista e de sua destruição, ocorridas
nos anos 1990, e ainda o centenário da publicação de Os sertões, que trouxeram à
tona novos documentos e um renovado interesse pelo tema. A exposição que vem a
seguir se desenvolve nestes três momentos. Ao final trato de indicar como, a partir
do percurso feito, se define o caminho a ser trilhado nos capítulos seguintes.

1. SAINDO DA “GAIOLA DE OURO”

Os primeiros movimentos de renovação do olhar sobre Belo Monte, nas duas


direções acima mencionadas, começam a operar um distanciamento frente ao que
aqui denomino “paradigma euclidiano”1; vejamos.
50

Vozes dos sertões


Em 1947 o jornalista Odorico Tavares, acompanhado do fotógrafo francês
Pierre Verger, dirigiu-se ao sertão, no cinquentenário do massacre que o exército
republicano impôs ao arraial de Belo Monte. E lá, além de ter encontrado, no
lugar do destruído vilarejo, uma aldeia também chamada Canudos, descobriu so-
breviventes da tragédia, homens e mulheres, que lhe prestaram depoimentos sig-
nificativos sobre o cotidiano do antigo arraial. Emergiam da fala daquela gente
anciã registros inusitados de como se vivia ali sob a liderança do Conselheiro. Mas
também sobressaíram detalhes expressivos a respeito de como aquela gente perce-
bia sua vida em Belo Monte: memórias saudosas da lida cotidiana e das palavras
do Conselheiro se mesclam em relatos quase míticos a respeito da história naqueles
tempos privilegiados.
Precedidas de uma exposição sobre Euclides da Cunha como repórter e de
uma apresentação rápida do arraial conselheirista, e seguidas de um texto sobre
Monte Santo, as poucas páginas da sessão intitulada “Os sobreviventes” são as
mais importantes do texto de Tavares: ao ecoarem as vozes de algumas pessoas que
fizeram a história do arraial, permitiram que se revelasse um perfil, dos sertanejos
em geral, do Conselheiro em particular e da vida em Belo Monte que destoava sig-
nificativamente daquele que a síntese euclidiana impusera à consciência nacional.2
Dois aspectos da fala dos antigos belomontenses causaram, no mínimo, estra-
nheza e interesse em relação ao relato euclidiano. O primeiro diz respeito à “sauda-
de”, manifesta de diversas maneiras e sobre muitos detalhes da vida cotidiana em
Belo Monte: o trabalho diário, as palavras do Conselheiro, a edificação das igrejas.
Muitas das palavras assumem um tom idílico; por exemplo, quando Manoel Cirí-
aco relembra a produção do pão de cada dia: “Esse tempo, parece mentira...”3 Ou
quando Maria Guilhermina de Jesus ressalta que a dureza do trabalho de constru-
ção das igrejas se convertia em doçura.4
O segundo aspecto a ser destacado é o aparecimento, ainda embrionário, das
primeiras suspeitas a respeito do relato euclidiano. Uma e outra vez Tavares observa
que a fala de algum sobrevivente “desmente a versão” de Euclides.5 Ou, dizendo de
forma mais precisa: as falas dos sobreviventes permitiam descortinar um universo
que, se não estava de todo excluído do relato euclidiano, submergia debaixo das
tendências deterministas que marcam Os sertões. Agora era possível imaginar o que
teria sido a trajetória do arraial se a guerra não o tivesse dizimado.
E salta à vista que em nenhum momento se mencione uma pregação “catastro-
fista” do Conselheiro, muito menos um anúncio de iminente hecatombe, sinal do
Juízo Final. Evidentemente isso poderia ser explicado pelo fato de se estar distante
do tempo em que o Conselheiro falara, e o passar dos anos teria então filtrado o
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 51

conteúdo de suas palavras, permanecendo na memória apenas aquilo que ainda fosse
considerado válido. Mesmo que assim fosse, caberia pensar no surgimento de alguém
que, em nome do não-cumprimento do supostamente vaticinado pelo Conselheiro,
se apoiasse exatamente nisso para desautorizá-lo. O que não terá ocorrido. Além dis-
so, os relatos recolhidos a respeito da vida no arraial, de sabor inegavelmente edênico,
ao mesmo tempo em que expressam um lamento e um protesto quanto à situação do
tempo dos depoimentos, evidenciam que Belo Monte era entendido como o lugar da
fartura e da abundância, para o qual a própria natureza se mostrava dócil.
Assim, as falas registradas por Tavares contribuíram poderosamente para de-
sautorizar a versão euclidiana sobre a vida e a morte de Belo Monte como palavra
definitiva. Evidenciava-se o caráter conflitivo manifesto também nas memórias dos
sobreviventes, para quem a carnificina que arrasou o arraial não era a única pos-
sibilidade. Nunca mais haveria o consenso que a obra euclidiana havia logrado
estabelecer sobre o destino do arraial liderado por Antonio Conselheiro.
A iniciativa de Tavares fez escola. José Calasans, que com o tempo se torna-
ria a principal referência nas inúmeras abordagens revisionistas feitas nas décadas
seguintes, dirigiu-se ao sertão, no início dos anos 50, à busca de sobreviventes. Se
não chegou a registrar os depoimentos num único livro, estes são a matéria-prima
de tantos artigos, ensaios e livros produzidos ao longo dos anos, junto com outras
pesquisas destinadas a esclarecer aspectos obscuros da história de Belo Monte e
Antonio Conselheiro, afastando-se sempre mais do que ele mesmo chamava de a
“gaiola de ouro” em que Euclides aprisionara a saga conselheirista.6 Sempre preo-
cupado com os fatos, com o que efetivamente teria ocorrido, o episódico, e avesso
a teorizações, que lhe pareciam generalizantes e pouco confiáveis. Conforme suas
próprias palavras, “meu empenho foi ser o tradutor do universo sertanejo”.7
O último empreendimento no sentido de recuperar as vozes da gente que so-
breviveu ao massacre do arraial conselheirista deve-se ao jornalista Nertan Macedo,
autor de uma memorável e extensa entrevista com Honório Vilanova, irmão do mais
importante comerciante do arraial, Antonio Vilanova, em 1962, sessenta e cinco anos
após o massacre.8 Mesmo com alguns ajustes na linguagem utilizada pelo depoente,
o jornalista garante não ter alterado “a estrutura íntima de tão espontâneo memorial,
a que não falta um certo toque de ingênua humanidade”.9 Em alguns capítulos a fala
de Vilanova é contextualizada, ou então serve de pretexto para longas exposições.
O depoimento é precioso. Define inúmeros) aspectos da vida do arraial, em
tom edênico e saudoso ainda mais intenso que aquele encontrado por Tavares.
Sobre o Conselheiro, de liderança inconteste, o depoente fala de suas leituras e ati-
vidades literárias, bem como de milagres: “o Peregrino conhecia a fundo a maldade
dos homens”.10 Surgia um perfil de Antonio Maciel diferente daquele desenhado
por Euclides, aterrorizante e sombrio.
52

Ficamos sabendo muito sobre os líderes da vila, das relações entre eles. Sobre
as visitas de pe. Vicente Sabino dos Santos, vigário da paróquia a que o território
do Belo Monte pertencia em termos de jurisdição eclesiástica e amigo há certo
tempo do Conselheiro, descobre-se que ele vai frequentemente ao arraial. Con-
firma-se, de um lado, o perfil da vivência religiosa belomontense vislumbrada por
outras fontes, a saber, marcada pelos santos e devoções do catolicismo popular; por
outro lado, um dado até certo ponto surpreendente, a liberdade, e não a coação,
de participação nas rezas e ofícios, o que destoa do relato de Euclides; o próprio
Honório “só uma vez ou outra aparecia pela igreja. Não gostava muito de reza”.11
Mas o Conselheiro não deixava de exigir em outros campos, como no tocante a
“desordens, mancebias, depravações, bebedeira, pagode dentro do arraial”.12 Não
existem, também aqui, quaisquer alusões a um teor milenarista da pregação do
Conselheiro ou da religião belomontense.
Importantes também são os detalhes sobre a já mencionada missão dos capu-
chinhos, capazes de elucidar meandros delicados sobre a relação do Conselheiro
com a hierarquia eclesiástica e questões doutrinais, ao mesmo tempo em que mos-
tram como o empreendimento ocorrera com a finalidade de exacerbar a tensão,
se não conseguisse a dissolução do arraial.13 Algumas páginas nos colocam ainda
em contato com facetas da guerra, reveladoras das táticas e estratégias sertanejas,
testemunhas do horror. Quando da morte do Conselheiro, o abandono do arraial,
enquanto a grande maioria decidiu findar-se com seu pai.
De alguma forma valem para esse memorial as considerações feitas sobre as re-
portagens de Odorico Tavares, com a diferença de que o trabalho de Nertan logrou
recolher muito mais detalhes, que conferem ao todo uma sensação de conjunto sobre
o arraial e a percepção de que em Belo Monte se cruzaram olhares e perspectivas que,
ao conflitarem entre si, provocaram a guerra. O depoimento do já quase centenário
Vilanova veio confirmar que uma história de Belo Monte não poderia mais ser escrita
ou contada sem que as esperanças e desilusões dos belomontenses fossem incorpora-
das ao cenário. E ainda era tempo de fazê-lo.
Cabe destacar um outro trabalho, situado no campo dessas primeiras pesquisas
que contribuíram para impedir que a tragédia de Belo Monte continuasse a ser ape-
nas “um capítulo da biografia de Euclides”14: a obra de Abelardo Montenegro, por
bom tempo considerada a melhor biografia sobre Antonio Conselheiro, embora o
autor pareça “mais preocupado em registrar o mistério e as contraditórias opiniões
em torno da figura de Conselheiro do que em aprofundar as suas interessantes ob-
servações acerca da situação da Igreja e da conjuntura política e nacional”.15 De toda
forma, encontra-se neste trabalho uma ampla gama de informações sobre os mais
variados aspectos da problemática Antonio Conselheiro e Belo Monte, que abririam
caminho para investigações futuras. Por exemplo, lemos uma rápida caracterização
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 53

da estrutura social básica dos sertões, a fazenda, um cuidadoso levantamento da tra-


jetória do futuro líder de Belo Monte, a presença importante do padre Ibiapina como
evangelizador do sertão, influenciando o então jovem Antonio Maciel, aspectos rele-
vantes da religiosidade popular sertaneja, os conflitos iniciais do já Conselheiro com
a hierarquia católica da Bahia, detalhes importantíssimos sobre o cotidiano do arraial
rebelde e da guerra terrível. Tentando, enfim, uma interpretação do conjunto, Mon-
tenegro, após associar o Belo Monte de Antonio Conselheiro a outros movimentos
como o do Contestado e o de Juazeiro, assim se expressa, referindo-se ao açude que
haveria de encobrir a Canudos pós-guerra e as ruínas da vila destruída:

Teria o governo pensado em eliminar o messianismo sertanejo inundando a terra


santa de Canudos? O problema é mais sério. Não é só a paisagem física que deve
ser mudada, mas também a paisagem social. As massas sertanejas anseiam por uma
nova ordem social, por uma estrutura econômica compatível com suas aspirações
melhoristas. Do contrário, outros Canudos e Conselheiros poderão surgir do solo
social em erupção.16

Montenegro parece ter lido atentamente a obra de Manuel Benício, O rei dos
jagunços, publicada em 1899, mas suplantada em repercussão pelo livro de Euclides da
Cunha, para descrever com cuidado os traços da vida cotidiana no sertão, bem como
a trajetória do Conselheiro.17 Levanta questões que serão retomadas em investigações
posteriores; delas cito apenas três. Primeiramente, ao comentar a biografia do Con-
selheiro, suas desventuras familiares e amorosas, recomenda: “Não sejamos ingênuos
afirmando que a causa fundamental da guerra de Canudos foi o matrimônio infeliz do
Conselheiro”.18 Depois, encontramos em Montenegro as primeiras indicações apon-
tando numa direção que se tornará fértil nos anos seguintes: a vida curta e a morte
horrenda de Belo Monte devem ser entendidas no bojo das seculares tensões e conflitos
sociais do sertão. O “estranho socialismo cristão” vivido às margens do Vaza-barris não
era compatível com os interesses dos grandes comerciantes e proprietários da região.
E, enfim, as considerações de Montenegro sobre as questões religiosas atinentes
a Belo Monte permanecem em boa parte atuais, embora por vezes um tanto impre-
cisas. Uma afirmação como “nos sertões nordestinos, a massa camponesa esperava a
vinda do Messias”19, para caracterizar a insatisfação social traduzida em efervescência
religiosa, ajuda pouco. Mas Montenegro tem páginas preciosas sobre características da
religiosidade sertaneja, capazes de mostrar como a ação itinerante do Conselheiro, um
de seus frutos, encontrou terreno tão fértil para se enraizar e atrair tanta gente. E vale,
como conclusão, o alerta: “não convém, ainda, esquecer a atuação da Igreja Católica
que viu, na singular religião cristã praticada em Canudos, um sério perigo para a sua
evangelização nos sertões”.20
54

Uma falsa consciência e o misticismo dos


pobres

Dois artigos de Rui Facó haveriam de desempenhar papel importante na re-


tomada das elaborações a respeito de Belo Monte.21 Ele foi pioneiro na abordagem
de movimentos rurais, não-operários, por parte da esquerda brasileira, mostrando
o vínculo deles com a luta contra o latifúndio, embora para muitos de seus partici-
pantes essa meta fosse inconsciente, já que obscurecida pelo ideário religioso.22 As-
sim, sua obra acaba por se constituir numa crítica a quem olhou estes movimentos
apenas em sua perspectiva religiosa e desdenhou seu fulcro e motivação maior, de
ordem social. Caracterizados como fanáticos religiosos, estão criadas as condições
que justificariam sua eliminação: “Recusam-se os nossos historiadores a ver na ma-
ravilhosa resistência de Canudos uma expressão da rebeldia sertaneja à prepotência
dos latifundiários, reflexo de uma luta de classes em sua fase superior – a armada”.23
Para cobrir a lacuna descoberta, Facó buscou mostrar como o movimento
liderado por Antonio Conselheiro se forma às margens e na contramão da ordem
instituída pelo latifúndio. Sem deixar de superestimar alguns aspectos da confliti-
vidade, dando crédito, por exemplo, aos alarmismos criados pelos fazendeiros, para
quem os belomontenses efetivamente ocupavam terras alheias24, Facó ressaltou os
elementos que faziam do arraial conselheirista uma alternativa para miseráveis de
toda ordem. Ali se vivia “uma espécie de comunismo primitivo”, associada a orga-
nizações visando à defesa contra as agressões que fatalmente viriam.25
Certamente devem ser matizadas muitas das conclusões de Facó, particularmen-
te as que tendem a mostrar em Belo Monte uma organização cuja intencionalidade
quase única, seria congregar pobres e convertê-los em guerrilheiros para atacar e des-
truir os latifúndios da região. A caracterização da organização do arraial como “comu-
nista” de um lado não se sustenta, com as novas pesquisas e descobertas a respeito do
cotidiano do arraial; por outro não considera o efeito retórico das propagandas alar-
mistas dos coronéis da região, apavorados com o deslocamento de sua mão-de-obra
para as margens do Vaza-barris. Para ressaltar ainda mais esse ideal como o que daria
o norte ao Belo Monte, Facó se vê obrigado a apresentar João Abade, o comandante
da Guarda Católica, como alguém cuja autoridade já em 1895, na época da missão
capuchinha, teria suplantado a de Antonio Conselheiro, o que evidentemente não se
justifica.26 Por outro lado, não chega a realizar uma análise mais detalhada das con-
dições de vida e organização do arraial, ficando em considerações bastante genéricas.
Mas o problema maior da análise de Facó, para os propósitos deste trabalho, sur-
ge quando passa a considerar a religião na constituição de Belo Monte. Aí seu olhar
de marxista “ortodoxo”, incapaz de ver na religião algo além do “ópio do povo”, se
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 55

manifesta fortemente, levando-o a desqualificar a brava gente sertaneja, cuja resistên-


cia admira. A caracterização depreciativa das práticas religiosas dos sertanejos denun-
cia os proconceitos do autor: “a miséria e a fome davam [...] a Antônio Conselheiro
milhares de seguidores, aparentemente pacíficos, devotos [...], mas armando-se de
cacetes, facas, facões, espingardas, que não seriam apenas para caçar passarinhos”.27
Insinua-se aí a perspectiva da análise de Facó: o religioso oculta os verdadeiros
anseios dos conselheiristas. O aparente pacifismo envernizado com passagens bíbli-
cas incompreendidas camuflando disposições guerrilheiras e subversivas evidencia
que, “sob a capa de misticismo religioso em torno do Conselheiro” o que ocorria
efetivamente era “uma luta de classes. Inconscientemente, não importa, mas uma
luta de classes”.28 O fanatismo ao mesmo tempo veiculava as aspirações dos cam-
poneses e lhes impedia uma maior compreensão delas:

No nível cultural em que viviam, não só mergulhados no analfabetismo como igno-


rando seu próprio país [...] o “fanatismo”, o misticismo mais grosseiro era a sua ide-
ologia. Em ensinamentos bíblicos deturpados, adaptados a sua realidade [os fanáti-
cos de Juazeiro, Contestado, Caldeirão, Belo Monte] encontravam os “princípios”
que deveriam guiá-los na luta por objetivos que eles mesmos não sabiam distinguir,
e que só iriam tornar-se claros na evolução da própria luta, que os ajudava também
a evoluir intelectualmente.29

Na verdade, os problemas de Facó com a experiência religiosa em Belo Monte


são de tal magnitude que acabam por explicar sua necessidade de diminuir a auto-
ridade do líder místico do arraial:

É diante da figura de Pajeú na luta ativa que se reduz às suas verdadeiras pro-
porções aquele que fora inicialmente o chefe supremo dos insurretos – Antônio
Conselheiro. Percebe-se que ele realmente congregou os camponeses pobres, em
certo momento deu expressão ao seu descontentamento e à sua revolta. Mas,
durante a luta armada foi completamente suplantado pelos verdadeiros líderes
da sublevação de pobres do campo: aqueles homens rudes que não se conten-
tavam com promessas de salvação e felicidade do reino dos céus, e combatiam
de armas nas mãos, com o máximo de firmeza e heroicidade, contra seus piores
inimigos, os defensores dos grandes fazendeiros, os soldados do Governo e do
latifúndio.30

Ou seja, haveria em Belo Monte uma duplicidade de lideranças, o que em


nenhum lugar se confirma31, mas principalmente no meio do povo do arraial: uma
multidão iludida com as pregações do Conselheiro, centradas, segundo o autor, nas
56

delícias da outra vida, e um contingente de pessoas conscientes, sabedoras de que a


luta tinha como única finalidade a superação da ordem latifundiária. Como se vê,
Facó tem enormes dificuldades de conseguir superar uma visão estreita e dogmática
sobre a religião, mas bastante comum nos ambientes de esquerda de seu tempo.
Faltava-lhe justamente a dialética, a abertura para perceber que a realidade é mais
dinâmica e fugidia que os esquemas que a respeito dela possam se fazer. O resul-
tado é um tanto esquizofrênico: saúda-se a brava luta de gente cuja consciência é
considerada primitiva e rudimentar. Por outro lado, o autor não pode deixar de
conter seu entusiasmo pela religiosidade conselheirista, manifestado numa página
antológica, eivada de ironia, contudo capaz de mostrar que uma abertura maior às
potencialidades do religioso lhe permitiria uma compreensão muito mais articula-
da do que terá ocorrido em Belo Monte:

historiadores [...] exageram o misticismo religioso dos habitantes de Canudos e o


transformam no móvel único de sua luta. Procuram assim esconder as causas que a
geraram, os verdadeiros motivos de sua resistência maravilhosa e de suas arrancadas
heróicas: a opressão semifeudal do latifúndio, a miséria e a fome, frutos da posse
monopolista da terra por uma minoria de grandes fazendeiros [...] Estranho misti-
cismo esse, que arregimentava apenas os pobres! Estranho misticismo que transfor-
mou a própria igreja constituída pelo Conselheiro num baluarte de guerra, até o fim
da luta! Estranho misticismo que repeliu a primeira tentativa de conseguir a redução
dos insurgentes através da igreja católica, através de uma missão religiosa, dirigida
pelo capuchinho João Evangelista de Monte Marciano.32

Esse “estranho misticismo” demandava atenção e rigor para sua compreensão,


algo a que Facó, pelas limitações da pesquisa sobre Belo Monte em seu tempo, mas
principalmente por causa dos preconceitos do seu marxismo, tornado dogma, não
tinha condições de responder.

A anomia e o messianismo

Num abrangente estudo publicado em 1965, Maria Isaura Pereira de Quei-


roz reserva algumas páginas a Belo Monte, considerando-o como uma das tantas
formas originais de o campesinato brasileiro integrar o sagrado a sua existência
total e combater a anomia trazida pelos impulsos modernizantes avançando pelo
interior.33 Entre tantos méritos dessa obra clássica, destaque-se o fato de ela se ter
afastado “das idéias apriorísticas e preconceituosas [...] em que os movimentos
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 57

messiânicos eram invariavelmente apresentados como fanatismos derivados da ig-


norância de populações rústicas e do desequilíbrio psicológico de seus líderes”.34 Se
aqui acentuo particularmente os limites, não quero passar por alto essa verdadeira
reviravolta produzida pela investigação de Maria Isaura.
Quanto a Belo Monte, a descrição que a autora oferece é ampla – mas omite
detalhes que comprometem o resultado. Por exemplo, a ausência de qualquer men-
ção aos protestos contra os novos impostos municipais permitidos pela República
permite à autora passar direto da proclamação do novo regime ao estabelecimento
do Conselheiro às margens do Vaza-barris:

A proclamação da República fê-lo [o Conselheiro] endurecer nessa fase; opondo-se-


lhe abertamente, encarando-a como prenúncio do fim do mundo, “deixou a vila de
Bom Jesus, quase por ele edificada”, enveredando um dia sertão afora seguido dos
fiéis, procurando no deserto dos chapadões desolados pela seca um local propício
para instalar a Nova Jerusalém, onde os privilegiados pudessem esperar tranquilos o
anunciado Juízo Final, furtando-se ao republicano governo do Anticristo.35

Entre a proclamação da República e o estabelecimento de Belo Monte pas-


saram-se três anos e meio, de sorte que não é possível estabelecer uma ilação
direta entre ambos. Mas esta citação é reveladora de outra tendência na análise
de Maria Isaura: o descuido para com as questões de cunho sócio-econômico.
Tudo o que fez a preocupação de Facó, a saber, qualificar a ordem latifundiária
secular no sertão, criadora de deserdados e semi-escravos, aqui é quase ausente.
A unilateralidade de Mria Isaura é inversa à de Facó. Mas os fatores ligados à
propriedade e posse da terra, ou ao regime de trabalho nas fazendas, não podem
ser desconsiderados sem que a análise fique comprometida. De toda forma, Ma-
ria Isaura como que retorna a Euclides, salientando a religiosidade associada ao
juízo final iminente como motivador praticamente único do estabelecimento do
arraial conselheirista.
Um problema sério é o da utilização dos termos “messias” e “milênio”, do qual
Maria Isaura tem consciência. Numa observação importante a respeito do que
entende por eles, afirma:

o problema do Milênio é mais vasto do que o problema do messianismo. Não é


apenas por meio de um enviado divino que se pode inaugurar no mundo o paraíso
terrestre; este pode resultar da formação de seitas sem chefes, ou mesmo de práticas
mágicas adequadas. Por esta razão continuaremos a falar em movimentos messiâ-
nicos e não em movimentos milenaristas; estamos nos detendo apenas numa das
subdivisões do problema do Milênio.36
58

Como se vê, para a autora os conceitos em questão são diretamente articulados


um ao outro, sendo que a perspectiva do milênio abarca aqueles fenômenos passí-
veis de serem classificados como messiânicos. A inserção do Belo Monte na gama
(quase se poderia dizer camisa-de-força) dos movimentos messiânicos e milenaris-
tas, obra de Euclides e aqui retomada por Maria Isaura, é certamente problemática.
Embora reconheça sua importância, Maria Isaura não entra em detalhes sobre
as práticas religiosas em Belo Monte; efetivamente, falta-lhe uma exegese mais de-
talhada dessas manifestações. Mas nada haveria de especial que não ocorresse em
outros lugares do sertão. Talvez a distinguir Belo Monte de outras vilas fosse o fato
de que as crenças religiosas ali cultivadas efetivamente fundavam “um conjunto de
regras bem definidas” que acabaram “por lhe dar a configuração especial que ad-
quiriu”.37 E uma outra peculiaridade: a religião pregada por Antonio Conselheiro
definia para seu séquito uma percepção do mundo à sua volta, em particular das
forças que se opunham à existência do arraial, como se lê nessa página antológica,
efetivamente exemplar, sobre uma experiência religiosa que não precisa ser classifi-
cada de “messiânica” para ter os seguintes contornos:

A comunidade formada em torno do Conselheiro encontrava base na solidariedade


desenvolvida a partir da crença em seus poderes messiânicos. Assim vemos colorir-se
de tonalidades religiosas todos os pontos de atrito entre a sociedade mais ampla e o
grupo restrito dos adeptos: razões políticas, econômicas, rivalidade entre estrutura
eclesiástica e o prestígio do Conselheiro, tudo se justificava em nome do valor sa-
grado atribuído ao líder e ao seu verbo. Não era a República como instituição que
combatia, era a República como representante do diabo. Não eram as propriedades
dos ricos que eram depredadas, eram as propriedades dos que tinham optado pelo
Anticristo. Não era a Igreja que se hostilizava, eram os padres “heréticos e maçons”,
que interpretavam erroneamente a santa doutrina de Cristo.38

Outro problema da análise proposta por Maria Isaura refere-se à tendência


de inserir uma vasta gama de movimentos e manifestações num quadro previa-
mente definido como “messiânico”. Isso compromete a percepção dos elementos
peculiares a cada situação. No tocante a Belo Monte isso é evidente. A ênfase dada
aos aspectos encontrados, segundo a autora, também em outras latitudes, embora
não a tenha impedido de notar peculiaridades do arraial conselheirista, tornou-as
secundárias diante dos que se repetiriam aqui e ali.39 E em alguns momentos não
foi possível escapar à contradição: por exemplo, a insistência em afirmar que os
belomontenses se consideravam “eleitos” não coaduna com o reconhecimento de
que o arraial não era uma “comunidade isolada no deserto dos sertões” e “não podia
deixar de manter relações” com a sociedade em que estava inserido.40
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 59

A ênfase dada aos componentes organizadores da religião e na função desta para


o arraial tende a desconsiderar o potencial contestatório deste. Segundo Maria Isaura,
a emergência de movimentos como o de Belo Monte se justifica pela necessidade de
se recuperar valores tradicionais ameaçados por uma situação de anomia. Retomando
Nina Rodrigues e Euclides da Cunha, afirma que Belo Monte é expressão de que “todo
um estilo de vida sertanejo se vê ameaçado pela invasão de uma cultura estranha, e
reage contra ela, com o intuito de resguardar-se e defender-se”.41 Assim, o movimento
é fundamentalmente autocentrado: “fortalecia-se a vida familiar e pública, levando os
fiéis em Canudos uma existência muito mais regrada e ordeira do que quando dispersos
nas caatingas, ou reunidos em arraiais cujo policiamento era um mito”.42
Resultado é que, a despeito da invasão cultural de que seriam vítimas, os con-
selheiristas acabam quase por se tornar responsáveis por sua própria destruição.43
Desatenta às condições sociais a partir das quais Belo Monte surgiu, particularmente
o regime do latifúndio e do trabalho semi-escravo, a autora responsabiliza a agressivi-
dade da gente sertaneja, principalmente de seu líder, pelo início das hostilidades que
levariam à guerra. A arrogância e a imprudência de Antonio Conselheiro o colocaram
em rota de choque com os padres e as autoridades locais, “por razões banais”.44 Foi a
ação deliberada da gente do Conselheiro, invadindo fazendas e roubando gado, que
despertou a antipatia dos grandes proprietários e exigiu que eles se defendessem.45
Como se vê, Maria Isaura se equivoca na medida em que não considera as rea-
lidades conjunturais do sertão, o que, se de um lado não tiram o mérito da recupe-
ração da importância da religião para uma compreensão abrangente de Belo Monte,
por outro exige que ela se coloque em outros parâmetros. Por outro lado, trilhando
caminho distinto do de Facó, a autora incorre no mesmo equívoco de considerar o
empreendimento conselheirista apenas em relação a demandas extra-religiosas.
O trabalho de Maria Isaura encerra a primeira fase das investigações sobre
Belo Monte. Preocupações variadas levantaram grande volume de interrogações
sobre a vida do arraial e o sentido que ele tinha para seus habitantes, e ainda sobre
o sentido que o Conselheiro lhe imprimia. As primeiras fissuras no edifício eucli-
diano começavam a se manifestar. Todavia, era apenas o começo.

2. OS IMPACTOS DE UM CADERNO

A publicação, em 1974, de um conjunto de prédicas atribuídas ao Conselhei-


ro, provocou sensível impacto na pesquisa acadêmica sobre Belo Monte. Inclusive
porque não faltarão vozes para desqualificar o material, que contribuía significati-
vamente para aumentar a suspeita sobre os contornos do perfil do Conselheiro lido
60

em Os sertões.46 Mas o aparecimento dele evidenciou ainda mais o problema her-


menêutico: não eram neutros, nem poderiam sê-lo, os olhares que se debruçaram
sobre Belo Monte. O conflito entre as múltiplas perspectivas, antes ocorrido à beira
do Vaza-barris, se manifestava com renovado vigor. E seria necessário esperar até o
fim da década de 1980 para que emergisse um caminho interpretativo capaz de dar
conta das muitas possibilidades que o caderno de prédicas trazia para a percepção
da vida e valores do arraial do Conselheiro.

Um manuscrito do Peregrino

Foi o jurista Ataliba Nogueira o responsável pela publicação de um dos cader-


nos manuscritos que levam o nome do Conselheiro, aquele datado de 12 de janeiro
de 1897.47 Aqui interessam os estudos introdutórios e conclusivo que o editor
anexou às prédicas, que pretendem desmontar as versões euclidianas a respeito do
arraial e seu líder, partindo do pressuposto de que Os sertões mais impediu que es-
timulou a pesquisa. O primeiro ensaio48 propõe uma reconstituição da história de
Antonio Maciel, culminando com o estabelecimento do arraial e o início da guerra,
recorrendo a várias outras fontes além de Euclides, o que resulta num quadro dis-
tinto daquele lido em Os sertões: o que motivou o seguimento do Conselheiro foi
a pobreza e a injustiça reinantes no sertão; a luta desesperada em favor do arraial
configurava o “sagrado direito de legítima defesa de suas pessoas e bens”.49 Mostra
ainda como a guerra foi instrumento de consolidação política na capital do país, o
que não deixava de soar, àquela época, como novidade.
Para os objetivos deste trabalho o segundo estudo50 é mais importante, e pro-
blemático. Nele se apresenta o caderno de prédicas de Antonio Maciel ora publica-
do e se propõe uma interpretação de seu conjunto. Aqui também Ataliba entra em
polêmica com o autor de Os sertões, censurando-lhe a avaliação precipitada dos ser-
mões do Conselheiro. Euclides também é acusado de transcrever quadrinhas que
traduzem “a pena de escritores das capitais, que assim deturparam o pensamento
claro do chefe do povo, para apresentar novidade aos curiosos. A começar da refe-
rência a D. Sebastião, rei de Portugal, nome que o sertanejo jamais conheceu”.51
De toda forma, o caderno que Ataliba tem em mãos permite-lhe falar da “ge-
nuinidade da doutrina das suas [do Conselheiro] prédicas. Absolutamente ortodoxas.
São elas instrutivas e persuasivas”.52 Nada de milenarismo ou assemelhados, apenas
o convencional: ele é “escritor que transmite o seu pensamento, eleva o leitor, in-
cute-lhe sentimentos bons e sentimentos religiosos. É piedoso”.53 Com isso o autor
se encaminha, equivocadamente, para considerar Antonio Conselheiro integrado à
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 61

organização eclesiástica da Arquidiocese da Bahia, “pregador leigo como muitos ou-


tros da história da Igreja e como hoje é até recomendado pela Igreja”.54 O fato de em
termos de doutrina não se encontrar erro nas prédicas não é motivo para as autori-
dades eclesiásticas acolherem o seu autor, como mostra bem o relatório de frei João
Evangelista de Monte Marciano. Ataliba terá de atribuir à inexperiência do prelado
e ao comprometimento político da missão o desentendimento com Antonio Conse-
lheiro e o insucesso de sua empreitada, que deveria ser apenas “espiritual”.55 Minimi-
za a responsabilidade da hierarquia católica baiana pelo desenlace trágico dos acon-
tecimentos, ignora que desde 1882 o arcebispado proíbe expressamente (por meio
de um documento que oportunamente será considerado) que Antonio Conselheiro
pregue nas igrejas; desconsidera, assim, o foco de tensões que a simples presença de
um líder como o de Belo Monte suscita num contexto de reforço das competências
exclusivas do clero, como o que se vivia nos últimos anos do século XIX na Igreja
Católica no contexto brasileiro. O problema fica simplificado em demasia: “quanto
à sua integração na arquidiocese, já o velho pároco de Cumbe, a cuja circunscrição
pertencia Canudos, tinha aqui residência e vinha [a] cada quinze dias. Certamente
viria a ser criada a paróquia. O novo arcebispo, sem dúvida, faria a visita pastoral”.56
De toda forma, o fato de se reconhecer uma ortodoxia verbal nas prédicas do
Conselheiro não exime de buscar nelas elementos que de alguma forma ajudem a
compreender o conflito em que Antonio Conselheiro se viu envolvido, com a Re-
pública e os coronéis, mas também com a hierarquia católica baiana. E no tocante a
esta, as tensões não se resumem a alguns equívocos de lado a lado ou ao despreparo
de um missionário.57

Mais um olhar marxista

Em 1976 surge a primeira edição de uma das obras mais polêmicas a respeito
de Belo Monte e Antonio Conselheiro: A guerra social de Canudos, de Edmun-
do Moniz, reeditada com ampliações cerca de dez anos depois. Elogiada por uns,
que viram nela a obra madura de um autor que mostrou pela primeira vez a teia
política, na Bahia e na capital, sem a qual não se entende a guerra; execrada por
outros, que censuram nela o marxismo tacanho, as afirmações gratuitas e absurdas,
é certo que a obra se constituiu num marco, tendo aberto muitas frentes de que se
serviriam estudiosos posteriores, tendo sido elaborada a partir de uma perspectiva
muito clara: “dou apenas uma interpretação materialista aos acontecimentos deste
período histórico”. 58 Como o livro, de estilo que por vezes beira a ficção, é por
demais amplo, considero aqui apenas alguns aspectos que tocam esta pesquisa.
62

Na primeira parte do livro, intitulada “A utopia”, Moniz apresenta a trajetória


de Antonio Conselheiro, exemplo da “corajosa obstinação, [d]a sabedoria intuitiva,
[d]o espírito combativo e [d]a resistência heróica do sertanejo brasileiro”.59 Salienta
o aspecto social da ação que passou a desenvolver, quando tinha cerca de trinta
anos e carregava o peso das desavenças familiares, recebendo a influência do pe.
Ibiapina. Mas com uma diferença importante em relação ao prelado:

Antônio Maciel compreendeu que era preciso apelar para o sentimento religioso
[dos camponeses], independentemente da Igreja. Passou então a falar em nome de
Deus e de seus desígnios por conta própria, sem dar importância ao que diziam os
padres, sempre favoráveis aos ricos e poderosos.60

Verifica-se aí uma perspectiva que considera a religião como um simples veículo


para o alcance de objetivos de cunho social e político (da parte do Conselheiro ou do
clero), o que se poderá notar até o fim do livro. De toda forma, existe aí um avanço
em relação a Rui Facó, ao se olhar a religião como fator positivo e determinante para
a compreensão do fenômeno Antonio Conselheiro e Belo Monte.
Moniz dá grande importância aos conflitos que o Conselheiro viveu com a hie-
rarquia católica baiana, mas tende a reduzi-los a uma única questão: o igualitarismo
social (não o anúncio do juízo final iminente), como suposto eixo de toda a pregação
do líder sertanejo.61 Como indica o documento arquidiocesano de 1882, o problema
básico que o Conselheiro levantava era o da ruptura do monopólio dos padres quan-
to à pregação da Bíblia e da religião. Por outro lado, no afã de defender o Conselheiro
das acusações que reiteradamente lhe foram feitas, Moniz não teme quase idealizá-lo,
recorrendo, por exemplo, às prédicas datadas de 1897 para explicar fatos e posicio-
namentos de uma década antes.62 Sem contar a suposição gratuita de que, diante dos
novos impostos permitidos pela República, o Conselheiro tenha decidido estabelecer
o arraial de Belo Monte inspirado na Utopia de Morus. E a velha tecla é retomada:

[Os padres] não protestavam contra as terras tomadas, contra os salários que não
davam para matar a fome, contra os abusos das autoridades com as quais viviam
na melhor harmonia, visitando-se e banqueteando-se juntos. O mesmo não se dava
com Antônio Conselheiro que, além da prédica religiosa e da condenação das injus-
tiças sociais, organizara, na prática, uma comunidade igualitária, transferindo para
a terra o que os padres prometiam no céu.63

Fiel à sua perspectiva, Moniz procede a uma extensa análise da conjuntura


política baiana e brasileira na época, ainda hoje exemplar em suas grandes linhas.
Efetivamente, boa parte de seu livro é dedicada a isso, e a exposição dos bastidores e
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 63

dos lances da guerra é minuciosa. Mas a maior surpresa que nos aguarda na leitura
de Moniz é a atenção que o autor concede às prédicas de Antonio Conselheiro,
que acabavam de vir à luz. Poder-se-ia falar mesmo de entusiasmo diante do ma-
terial que tem em mãos. Claro, tudo no fim serve à causa da organização social e
dos conflitos inevitáveis: “na parte exegética em que fala do 6o mandamento, ele
[o Conselheiro] exalta o poder da vontade que [...] julgava imprescindível à luta
dos camponeses contra os proprietários rurais e as autoridades civis e policiais no
resguardo de seus interesses e direitos”.64
Também em relação aos trechos recolhidos da Bíblia, e que compõem a ter-
ceira parte do caderno publicado, Moniz não tem dúvidas: estão todos “imbuídos
do igualitarismo da igreja primitiva”.65 Mas feliz teria sido se houvesse notado que
uma passagem das prédicas a que atribui grande valor, pois por ela o Conselheiro
“separava os ricos dos pobres, preferindo a convivência destes últimos”, nada mais
é que transcrição de um versículo do evangelho segundo Lucas!66
Assim, apesar dos tropeços, em boa parte fruto de um olhar pré-concebido e
com insuficientes condições para aquilatar a relevância do religioso na configuração
de Belo Monte, e por outro lado resultado de uma tendência a idealizar Antonio
Conselheiro e seu movimento, o trabalho de Moniz é importante. Fica o desafio
de, entre outras coisas, verificar com a devida acuidade a incidência das prédicas na
vida do arraial, a articulação entre a experiência social do Belo Monte – em que a
questão ética, levantada pelo feixe diverso de apelos desamparados, no intrincado
jogo comunitário, foi endereçada a seu líder – e a apropriação que o Conselheiro
fez da Bíblia e da tradição religiosa que herdou, incluído aí o horizonte escatológico
que o norteava, para com sua gente ensaiar as respostas possíveis a partir de suas
íntimas referências espirituais.

Uma comparação necessária

Em 1977 surgiu importante estudo, que marcou época, por inovações meto-
dológicas e conclusões sugestivas.67 Nele Duglas Teixeira Monteiro se situa decidi-
damente numa perspectiva que combina análise social com uma profunda percep-
ção do sentido do religioso para os movimentos que se propõe a analisar: Juazeiro,
Canudos e Contestado. Isso lhe permite, desde o início, superar a dicotomia que
vimos em autores precedentes, que para acentuar um aspecto precisam desconside-
rar ou pelo menos minimizar o outro. O marco sociológico estabelecido no início
não o impede de abordar a dinâmica religiosa em sua autonomia e conexão com
outras instâncias da realidade:
64

A obtenção de respostas mais específicas a estas questões [sobre as condições que


“impulsionaram as adesões ao movimento”] depende de investigações acuradas so-
bre um contexto histórico-sociológico no qual, certamente, ao lado da religiosidade
rústica e dos encaminhamentos tomados pela política eclesiástica regional, devem
ser levadas em conta a evolução do cangaceirismo e do mandonismo local.68

Nota-se que Duglas supera um olhar que percebe a religião de modo funcio-
nalista ou como epifenômeno, e reconhece nela uma realidade relevante do ponto
de vista antropológico e político. Destaque também para perspectiva comparativa
que sustenta o estudo, que permite a Duglas encaminhar-se para ir além de sínte-
ses apressadas, que apresentam os referidos movimentos a partir de generalidades
como messianismo (Maria Isaura) ou luta pela terra (Facó e Moniz). Sua análise
possibilita evidenciar as especificidades encontradas junto ao pe. Cícero, aos mon-
ges do Contestado ou ao Conselheiro. Para o conhecimento do Belo Monte deste
último as conquistas são muitas.
Saliento inicialmente a consideração do personagem Antonio Vicente Mendes
Maciel, cuja biografia é rapidamente traçada.69 Duglas busca superar “o viés eucli-
diano” e compreendê-lo a partir das alternativas de vida indicadas pelo Riobaldo
de Grande sertão: veredas: “padre sacerdote” ou “chefe de jagunços”. O futuro líder
de Belo Monte “principiava a encontrar um caminho intermediário. Em certo sen-
tido, acabou por ser ambas as coisas a um só tempo”.70
Quanto ao perfil do arraial estabelecido em 1893, depois de comentar alguns
detalhes, como a composição social, a acolhida da missão capuchinha de 1895 e o
seu envolvimento em questões eleitorais, Duglas levanta uma questão, que haveria
de ser decisiva para a pesquisa posterior, sobre a necessidade de se perguntar sobre

a convicção mais ou menos difundida segundo a qual, desde o princípio, o povoa-


do de Belo Monte havia sido concebido por Antonio Conselheiro, e efetivamente
experimentado pelos seus seguidores, como o “peristilo do céu”; ou como a prefigu-
ração de um Reino Milenarista.71

Para dar conta do problema, o autor faz uma rápida apreciação das prédicas
do Conselheiro editadas por Ataliba Nogueira. Se um primeiro comentador delas
assinalava uma “incoerência entre esse ‘discurso’ e a ‘obra’ de Antônio Conselheiro;
entre as concepções indicadas nestes documentos e a prática social que desenvol-
veu”, para Duglas “essa incoerência não existiu. Pelo menos, é possível encontrar
uma compatibilidade acentuada entre a ortodoxia acima descrita e a vida social de
Canudos”.72 Afirmação que teria de esperar o trabalho de Alexandre Otten para se
ver detalhada. E mais: o arraial conselheirista parece que
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 65

se constituiu como um lugar privilegiado do “ínterim” a que se refere a análise dos


sermões [...] Não foi, como no caso das vilas santas do Contestado, a ante-sala de
um Reino de Deus na Terra. Mas foi, certamente, um esforço de aproximação com
relação à concepção de justiça, tal como o Conselheiro a entendia, apertada dentro
da estreiteza da condição humana.73

Radicalização escatológica, talvez nos meses terríveis da guerra, de quando o


caderno com as prédicas é datado:

Principalmente nas meditações sobre o tema marial e, em específico, sobre os so-


frimentos de Maria junto à Cruz, sente-se um clima tenso e angustiante, o que
permite conjeturar sobre uma possível aproximação inconsciente entre a Paixão
exemplar de Cristo e uma iminente paixão de Canudos. Belo Monte, nas vésperas
de sua destruição, poderia ter-se transformado então, para seu líder, e para os que a
defendiam, num lugar que, pelo caminho da miséria e sofrimento extremos, encon-
trava uma posição única dentro de uma visão escatológica.74

Nota-se a fineza da análise e da sugestão. Como se vê, trata-se de trabalho


fundamental, por sua acuidade e sensibilidade, verdadeiro desbravador de novas
possibilidades, retomadas principalmente no trabalho de Otten.

Uma visita às prédicas

Data de 1980 o primeiro esforço em submeter a uma análise sistemática as


prédicas de Antonio Conselheiro editadas por Ataliba Nogueira. Trata-se da dis-
sertação de mestrado de José Luiz Fiorin.75 Já no prefácio o autor afirma ter pre-
tendido “desenvolver um projeto de análise da trama semântica e da organização
enunciativa do discurso político, do jurídico e do religioso”.76 Trabalho pioneiro,
suas conclusões vêm sendo reiteradas por escritos recentes, apesar de terem sido
criticadas e amplamente superadas pelo trabalho de Alexandre Otten, que consi-
derarei a seguir.77 Tal avaliação não impede, antes exige uma consideração atenta
sobre seu trabalho. Destaco uma única e crucial questão.
Fiorin situa a confecção do discurso de Antonio Conselheiro no quadro da
“trama semântica e da organização enunciativa do discurso religioso católico an-
terior à realização do Concílio Vaticano II”.78 Apesar de óbvio do ponto de vista
cronológico, esse enquadramento é problemático, e de alguma forma antecipa os
resultados de sua análise. Ele conduz o investigador a trabalhar fundamentalmente
66

com o conceito de reprodução, mais do que com o de recriação, apropriação, ou


ainda de incorporação seletiva. Com efeito, nas prédicas de Antonio Conselheiro
“há mais reprodução de outros discursos do que propriamente a produção de idéias
ou expressões originais”.79 Assim, ao tratar da teologia expressa nas prédicas, Fio-
rin, que a considera nos tópicos cristologia, mariologia e eclesiologia, afirma que
se trata da “mesma que foi oficializada pelo Concílio de Trento e pelo Concílio
Vaticano I”.80 A cristologia é a-histórica, e sugere “uma atitude de passividade do
homem em relação à história”.81 Maria, a mãe de Jesus, “é o modelo do que deve
ser cada homem: um ser passivo, resignado, que busca superar o pecado através do
sofrimento”.82 Vê-se na Igreja um “‘aparelho ideológico hegemônico’ como o fora
na Idade Média, sob a autoridade do Romano Pontífice”.83
Esse tipo de conclusão se mostra extremamente apressada. Fiorin parece insis-
tir em caracterizar a teologia do Conselheiro dentro dos clichês comumente utili-
zados por setores da Igreja Católica dos últimos tempos para definir a teologia e a
prática eclesiais anteriores ao Concílio Vaticano II.84 Na verdade, ele avalia (e criti-
ca) a teologia do Conselheiro a partir do contexto eclesial e teológico pós-Vaticano
II. Só isso explica o uso anacrônico que faz de um artigo do teólogo João Batista
Libânio, sobre a cristologia no documento preparatório da conferência episcopal
latino-americana de 1979, como parâmetro para avaliar o pensamento do Conse-
lheiro!85 Cito aqui alguns momentos em que essa pressa e imprecisão se manifes-
tam mais evidentes. Um caso diz respeito aos sacramentos. Diz Fiorin:

uma religião fortemente individualizada só poderia levar a uma valorização extrema


das práticas sacramentais, não no sentido comunitário que elas podem encerrar, mas
no sentido de uma relação individual do homem com Deus [...] Um catolicismo
que valoriza muito a prática sacramental é uma religião clericalizada, pois a distri-
buição dos sacramentos é uma atribuição específica do clero.86

Se isso basta, como avaliar os conflitos que o Conselheiro travou com os padres
durante mais de duas décadas? Como compreender sua resistência às investidas dos
freis missionários que foram tentar a dissolução do arraial, em 1895, afirmando:
“Conheço os padres falsos. Os que eu quero, abraço. Aceito quem acredita no Bom
Jesus”?87 Muito difícil também entender a queixa do frei João Evangelista de Monte
Marciano, que acusa o Conselheiro de desconhecer as autoridades eclesiásticas e
não lhes dar importância.88 E é interessante notar que nas duas prédicas que tratam
de sacramentos, sobre a missa (eucaristia) e a confissão, o enfoque justamente deixa
em segundo plano a dependência da gente leiga em relação ao clero, ou o vínculo
com a instituição eclesiástica, ou ainda o lugar do padre como mediador entre o
divino e o humano; enfatiza, em lugar disso, os benefícios que destas práticas os
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 67

fiéis podem haurir! Por exemplo, sobre a confissão se diz: “Não há cousa mais útil
ao cristão nem indispensável para comungar dignamente do que descer à sua cons-
ciência e escrutar, com saudável severidade, seus tristes esconderijos”.89 Não é diferente
o que se diz em relação à missa: ela “é o tempo mais oportuno que há para a oração e para se falar com
Deus [...] é a melhor obra, de mais proveito, que podemos oferecer pelas almas do purgatório”!90
As comparações que Fiorin propõe, entre as prédicas atribuídas ao Conse-
lheiro e o então famoso Missão abreviada, vão na mesma direção: enfatizam a de-
pendência de Antonio Conselheiro frente a este livro e a reprodução de suas idéias
fundamentais.91 A insatisfação a que esta análise conduz leva a perguntar se outras
possibilidades de apropriação de discurso prévio, além da simples reprodução, não
seriam mais adequadas para a consideração das prédicas do Conselheiro. Penso no
Menocchio de Ginzburg, criador de um universo mental completamente novo a
partir da leitura de fontes tradicionais, ou na multidão inglesa do século XVIII,
que Thompson percebeu ser capaz, a partir de princípios religiosos convencionais,
de questionar a ordem de coisas que ia sendo instalada pelo triunfo da burguesia
e do capitalismo.92 Será preciso esperar pelo trabalho de Alexandre Otten para se
perceber o quanto o Conselheiro “descola” de suas fontes e constitui um discurso
alternativo93, bem como para vermos enfrentada adequadamente a questão sobre
“se o dizer e o fazer do beato são concordes”; Fiorin não trata dela.94 E só assim, evi-
tando o problema, pode não concluir como Francisco Benjamin de Souza Netto,
sobre uma dissociação entre o suposto teor conservador das prédicas e a ação reno-
vadora do beato, posição que seu próprio mestre Duglas Monteiro se encaminhava
para superar.
Desta forma, mesmo que seja preciso retornar à análise cuidadosa a que Fio-
rin submeteu as prédicas, para recuperar nela aspectos importantes, o resultado
representa um recuo frente às possibilidades abertas por Duglas. Fiorin permanece
refém de seus pressupostos, e a leitura das prédicas só confirmou aquilo do que ti-
nha certeza prévia. Metodologias alternativas, que apontariam para outras direções,
não foram consideradas, e o confronto com a história foi simplesmente rejeitado.

Revisitando as prédicas

O livro mais completo sobre Antonio Conselheiro e Belo Monte (opinião de


ninguém menos que Calasans) deveria surgir em 1990, fruto de uma tese de dou-
torado em Teologia defendida por Alexandre Otten três anos antes, e representa
um marco na pesquisa.95 Já que ele será constante interlocutor neste trabalho, aqui
serei breve, salientando apenas alguns aspectos mais gerais e relevantes.
68

Como diz num artigo em que resume os resultados de sua pesquisa, Otten

não quer preterir as análises que defendem a instância econômica como condicio-
namento determinante do movimento, mas quer tomar a espiritualidade, o estilo
religioso de Antônio Maciel, como chave de leitura dos acontecimentos que se de-
ram no sertão baiano na segunda metade do século XIX.96

O resultado desse procedimento metodológico abrangente é que nos de-


frontamos, aqui, diante da primeira, e até agora única, aproximação consistente
à religião vivida em Belo Monte. Emergida de uma longa tradição do chamado
catolicismo popular, a experiência vivida no arraial conselheirista tem compo-
nentes próprios, que em boa parte derivam daquilo que Otten chama de “con-
dicionamentos próximos”, cuja análise permite ao autor apresentar de maneira
exemplar a conjuntura em que Belo Monte surgiu: a crise socioeconômica, o de-
clínio do catolicismo sertanejo, o exemplo do padre Ibiapina, a Missão abreviada,
a apocalíptica popular e o conflito com a Igreja em reforma.97 Resultado é uma
comunidade cuja vida

organizava-se em função da religião [...] A conversão e a vida nova exprimem-se


também no apelo do beato de viver uma vida santa [...] A religião predominava
em tempos de paz [...] regulava a vida social e econômica [...] Com esse regime a
comunidade de Belo Monte se situava fora do espaço do domínio do Estado, do
coronel e da Igreja oficial.98

A responsabilidade de Antonio Conselheiro nesse processo é decisiva: “o


projeto da comunidade de Canudos se desenvolveu de maneira simples e or-
gânica da vida apostólica de Antonio Conselheiro”.99 De sorte que a análise da
forma e do conteúdo de suas prédicas seja fundamental para a compreensão da
espiritualidade que o animava, mas que, de alguma forma, também alimentava
a comunidade que se formou ao seu redor. Otten procede a uma consideração
das prédicas não muito extensa, que, mesmo deixando algumas questões não-
-resolvidas, no conjunto mostra uma direção fundamentalmente acertada: “sua
insistência em publicar e anunciar as maravilhas do amor de Deus”, o acento na
“imitação de Jesus”. O Conselheiro que surge daí é entusiasmado pelo amor de
Deus e pelas invenções deste para se fazer amar dos homens. O que importa é
salvar-se do mundo hostil, o que transforma o Conselheiro em anunciador não
do milênio, mas de um fim cuja iminência (na vida de cada qual, seja moço ou
idoso) exige a adoção de posturas éticas adequadas, algo que, aliás, será preciso
discutir mais detidamente. Mas, independentemente disso, é claro que “a vida
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 69

seja entendida [em Belo Monte] como uma peregrinação”.100 O que não impede
que preocupações de ordem social sejam particularmente significativas em suas
palavras, que são determinantes no modo de ser e viver que Belo Monte assu-
miu. Otten faz eco, portanto, à famosa expressão de Honório Vilanova, segundo
a qual a “regra do Peregrino” foi responsável pelas formas que a vida em Belo
Monte tomou.
Cabe também salientar aspectos em que Otten retoma questões polêmicas
e as encaminha para soluções originais. Por exemplo, no tocante à dependência
do Conselheiro frente ao já citado Missão abreviada, sua conclusão é oposta à de
Fiorin, apontando corretamente para o distanciamento do líder de Belo Monte
frente a perspectivas importantes do livro do padre português.101 E o autor deixa
apenas indicada uma rica possibilidade, que pretendo aprofundar: a “teologia
condescendente do Conselheiro” se afasta da visão rigorista e autoritária expressa
na Missão abreviada quando “se aproveita da própria Bíblia”.102 Assim Otten
supera de longe análises anteriores, que simplesmente vinculavam o discurso do
Conselheiro àquele oficial da Igreja Católica, fundamentado nas conclusões do
Concílio de Trento. Embora tecnicamente o Conselheiro não possa ser classifica-
do como herege, nem por isso seu discurso se identifica com as preocupações da
Igreja Católica de seu tempo. Essa observação talvez mereça algum reparo, mas
aponta para um aspecto fundamental, relativo ao lugar ocupado pelo Conselhei-
ro em sua relação com a hierarquia eclesiástica.
Quanto ao Belo Monte, Otten não tem dúvida em reconhecer nele uma
organização social “em função da religião”.103 As estruturas de comando ecoam
nomes bíblicos. Quase todo o tempo do arraial foi tomado pela construção das
duas igrejas, nas quais havia rezas (ladainhas, novenas) o dia inteiro, segundo
alguns testemunhos, oportunidade em que Antonio Conselheiro se dirigia ao
povo. As cerimônias religiosas, que incluíam o beija das imagens e receberam a
desaprovação de frei João Evangelista, expressam um clima do qual todo o arraial
se revestiu, sintetizam sua identidade.
Como já foi dito, cabe um diálogo constante com o trabalho de Otten.
Um problema a que retornarei refere-se às fontes utilizadas para se caracterizar o
universo religioso vivido em Belo Monte. Talvez seja possível identificar alguns
focos de tensão entre o Conselheiro e (ao menos parte de) seus liderados. Otten
já insinua algo nesse sentido quando considera o apocalíptico em Belo Monte
mais fruto de uma tradição popular amplamente difundida no sertão do que um
traço fundamental da pregação do Conselheiro (afinal, ele é praticamente inexis-
tente nas prédicas). De toda forma, trata-se de uma questão a ser retomada.104 E,
na linha do trabalho analítico que Otten realizou sobre as prédicas editadas por
Ataliba Nogueira, há um outro caderno para ser estudado.105
70

A obra de Otten encerra a segunda fase da investigação sobre o Belo Monte


e sua trajetória religiosa, praticamente toda ela marcada pela publicação feita por
Ataliba Nogueira. O fato, de todo lamentável, de que este trabalho tenha produ-
zido tão pouco efeito nos estudos posteriores nos remete para a próxima etapa,
em que, apesar de conquistas importantes na pesquisa sobre o Belo Monte, os
cadernos atribuídos ao Conselheiro serão praticamente deixados de lado, de forma
inexplicável.

3. OS CENTENÁRIOS

Os centenários do arraial de Belo Monte, primeiro de seu estabelecimento


(1993) e depois de sua destruição (1997), e ainda aquele da publicação de Os sertões
(2002) foram ocasião mais que propícia para um renovado interesse pela temática.
Possivelmente o fato de aquele momento ser também o do quinto centenário da
chegada dos portugueses a essas terras, com todas as reavaliações críticas da histó-
ria então produzidas, terá alimentado esforço revisionista semelhante sobre Belo
Monte. Se efetivamente não se avançou muito em relação à temática religiosa, com
certeza o conhecimento de novos detalhes sobre a história do arraial, por meio de
documentos até então de difícil acesso106, vem contribuir para se abordar aquela
com renovada acuidade.

Avanços frente ao já dito

Não se entende bem por que o sociólogo cearense João Arruda deu à sua obra,
surgida em 1993, o título de Canudos: messianismo e conflito social. Maurício
Vinhas de Queiroz já escrevera Messianismo e conflito social sobre o movimento do
Contestado, certamente para dar um viés de cunho marxista a um tema que Maria
Isaura Pereira de Queiroz acabara de abordar na perspectiva do messianismo. De
toda forma, este termo parece indicar a filiação a uma tradição de estudos que
assim qualifica movimentos surgidos em contextos sociais em que “o sagrado e o
profano se intercruzam”, propiciando o ambiente

para saídas sociais com aparências religiosas. Quando os conflitos sócio-políticos


aumentam e as contradições entre os diferentes segmentos sociais passam de latentes
a manifestos, as classes subalternas tendem a elaborar seus projetos sócio-políticos
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 71

a partir de sua mitologia. É através dessa reelaboração hierográfica, após a decodi-


ficação de sua mitologia, que o mito da igualdade celeste é transportado para a rea-
lidade terrena. É o momento da elaboração da utopia, onde a crença celeste numa
sociedade paradisíaca, sociedade ideal onde predomina a igualdade, fraternidade e
solidariedade começa a tomar corpo e a se transformar num projeto de sociedade
terrena.107

De um lado é inevitável a sensação do dejà vu: a religião aparece como capa


das aspirações sociais de um grupo incapaz de se manifestar por outras lingua-
gens. Arruda retoma, embora de forma mais propositiva, os postulados, de corte
marxista, expressos por um Rui Facó. Por outro lado, se o termo “messianismo” é
utilizado “para designar qualquer crença religiosa na vinda de um redentor, do qual
se espera o fim da ordem existente, caracterizada pelo mal e pela injustiça, e a ins-
talação de uma nova era de paz, justiça e felicidade”108, não se percebe muito bem
como Belo Monte e Antonio Conselheiro caberiam aí. Quem ocuparia no vilarejo
conselheirista o papel de “redentor”? Se Antonio Conselheiro, teríamos o problema
de qualificar a evidente vinculação entre o movimento por ele liderado e o cristia-
nismo. Não seria mais proveitoso verificar como a gente conselheirista considerava
e qualificava seu líder? Se Jesus, o problema duplica: como classificar a liderança
de Antonio Conselheiro e em que termos definir a forma da vinda deste redentor
(milenarismo? vinda próxima?). Não estamos longe dos problemas identificados na
obra de Maria Isaura e que será preciso retornar.
Passando agora à análise específica sobre a trajetória de Antonio Conselhei-
ro e seu Belo Monte, que constitui a segunda parte de seu trabalho (a primeira
consiste na caracterização dos movimentos messiânicos e a terceira numa resenha
de três modelos interpretativos aplicados a Belo Monte), Arruda apresenta quatro
hipóteses, que pretende fundamentar: a) “a comunidade de Canudos foi inspirada
nos modelos de comunidades cristãs primitivas”; b) “o sebastianismo não serviu de
referencial para Antonio Conselheiro”; c) “como produto da luta de classes, Canu-
dos foi a resposta alternativa ao sistema sócio-político vigente”; d) “a eliminação da
comunidade de Canudos foi imperativa, porquanto sua organização sócio-política
representava uma ameaça ao sistema opressivo que a gerou”.109 Não tenho espaço,
aqui, para a consideração dos argumentos expostos a propósito de todas elas; sa-
liento então apenas um aspecto de sua análise, que indica, apesar de um quadro
referencial questionável, como há nesta obra evidentes conquistas, ao lado algumas
questões ainda a serem melhor equacionadas.
A vinculação de Belo Monte a modelos inspirados nas comunidades cristãs
primitivas é uma excelente sugestão (muito melhor que a proposta de Moniz, com
Morus e sua Utopia!), mas carece de análise mais apurada. Não aparece, na longa
72

apresentação biográfica do Conselheiro ou na exposição sobre a vila conselheirista,


de que maneira se poderia falar de um modelo herdado do cristianismo primitivo.
Ou que o Conselheiro tinha “sempre como exemplo a prática apostolar dos cristãos
primitivos”.110 Nem se evidencia que a fundação de Belo Monte tenha se dado a
partir desses modelos neotestamentários. A propósito, por exemplo, da citação que
o Conselheiro faz de um versículo dos evangelhos, a saber, “Mais fácil é passar um
camelo pelo fundo de uma agulha, do que entrar um rico no reino dos céus”, a
conclusão de Arruda é característica: “É possível que Antônio Conselheiro tenha
levado esses ensinamentos até as últimas consequências”.111 Enfim, não se pode
escapar da sensação de uma intuição sugestiva, mas estabelecida por meio de afir-
mações gratuitas:

Com a decisão tomada [de abandonar a vida itinerante e se fixar em Belo Monte]
[...] Antônio Conselheiro mais uma vez faz uso de sua memória religiosa. Sendo
um profundo conhecedor da história do cristianismo, principalmente em sua fase
inaugural, ele não teve muita dificuldade em rememorar uma das formas clássicas
que tinham marcado profundamente o estilo de vida dos primeiros cristãos. É no
Novo Testamento, principalmente nos Evangelhos e nos Atos dos Apóstolos, e em
um grande número de livros apócrifos que descreviam os primeiros anos do cris-
tianismo, onde se relata a vida das comunidades primitivas, nas formas prediletas
que aqueles cristãos encontravam para vivenciar os ensinamentos evangélicos, que
Antônio Conselheiro encontra inspiração para a criação de sua nova forma de apos-
tolado.112

As prédicas, que Arruda cita, mas não submete a uma análise mais detida,
não permitem afirmar que o Conselheiro tivesse realizado todo esse trabalho de
recuperação das formas de vida do cristianismo primitivo. Tem-se a sensação de
que Arruda generaliza, a partir de indícios muito frágeis e de uma abordagem
muito precária das fontes, para chegar ao que realmente lhe importa: “o modelo de
organização social das comunidades cristãs” se constituía “na contraproposta dos
oprimidos social e politicamente às formas de organização social opressora”.113 O
vínculo com o cristianismo primitivo (ele seguramente existe) terá de ser entendido
por outros caminhos.
Basta por ora. Também essa obra, como a de Moniz, traduz uma simpatia pelo
componente religioso de Belo Monte, elogiável para uma obra surgida da tradição
marxista brasileira. Contudo, paradoxalmente, vemos um descuido na análise dos
pormenores, pois, afinal de contas, o religioso é tido por secundário, veiculador de
expectativas e anseios apenas sociais. Nisso reside, a meu ver, ao mesmo tempo a
positividade e a limitação da obra de Arruda.
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 73

Os discursos e sua ideologia


Em 1995 foi publicada a tese de doutorado de José Augusto Cabral Bar-
retto Bastos, que retoma e desenvolve pesquisa anterior.114 Como aquela é tam-
bém mais alentada, fixo-me nela para as considerações seguintes.
Bastos se propõe a analisar a convergência de cinco expressões discursivas
na condenação de Belo Monte enquanto projeto. Tomando conceitos empres-
tados de Gramsci, considera inicialmente o discurso dos grandes intelectuais,
aqui representados por Nina Rodrigues e Euclides da Cunha, sintonizados
com as tendências mais na vanguarda das ciências e cuja interpretação dos
fatos incidiu poderosamente na consciência nacional posterior. Ao seu lado,
caudatários de “um núcleo ideológico comum”, vinculados a valores e concei-
tos supostamente eternos, aparecem os intelectuais tradicionais, entre os quais
Bastos descobre o discurso religioso (nas palavras do arcebispo baiano a respei-
to da República, no Relatório de frei João Evangelista e nas próprias prédicas
de Antonio Conselheiro), o discurso dos militares (representado pela obra de
Emídio Dantas Barreto), e o discurso da oligarquia rural (por meio do barão
de Jeremoabo).
A importância deste abrangente trabalho é manifesta; examino aqui ape-
nas o que diz respeito à compreensão que Euclides manifesta frente à religião
sertaneja. Algumas palavras também sobre o que o autor chama “o discurso
religioso”.
Ao abordar Os sertões, Bastos pretende mostrar como seu autor (assim
como Nina Rodrigues) permanecia refém de uma razão mítica, fundada na
“afirmação da desigualdade ontológica dos homens”115 e no estabelecimento
de dicotomias incontornáveis, como normalidade/loucura, civilização/barbárie
e outras. Esse modo de compreender a realidade, que deixaria muito pouco
espaço para a vingança a que Euclides se propôs, se manifesta, por exemplo, na
avaliação que faz da religião sertaneja:

ao invés de proceder à crítica analítica das condições sociais de produção do fe-


nômeno religioso, [Euclides] estabelece uma dicotomia religião européia/religião
mestiça, assestando seu arsenal teórico contra a última, inquinada como supersti-
ção e fetiche, produto de permanências atávicas de raças decaídas no concerto do
processo evolutivo: o africano e o indígena [... Assim, Euclides] não consignava a
evidência de que, conquanto impregnado dos paradigmas cristãos da Salvação e da
Redenção, o que lhe retirava o estatuto de regressivo, o messianismo conselheirista
rompia, por outro lado, com um passado de resignação e fatalismo que o discurso
da religião oficial prescrevia.116
74

A avaliação que Euclides faz da religião sertaneja se situa, portanto, no interior


de seu olhar evolucionista sobre a trajetória de Belo Monte. Bastos analisa várias
passagens em que isso se manifesta, retomando tantos autores que evidenciaram
como o componente racial-determinista e evolucionista é peça-chave na compre-
ensão da obra euclidiana. Fica faltando a consideração sobre outro vetor funda-
mental na construção euclidiana: a inserção da religião conselheirista no rol das
heresias cristãs, a partir do que seria seu horizonte fundamental: o milenarismo.
Com isso se evidenciaria que o quadro analítico euclidiano é ainda mais complexo:
a religião sertaneja, além de manter intactas aberrações animistas dos elementos
negro e indígena de sua população, manifesta também um retrocesso “a um traço
superior do judaísmo”, a um “catolicismo mal compreendido”.117 Bastos talvez não
tenha se dado conta da força ideológica deste componente da descrição euclidiana
(o milenarismo), até porque parece estar convencido dele.118
Com isso passo ao “discurso religioso” analisado por Bastos.119 Ciente dos
equívocos de Nina e Euclides, ele mostra as equivalências entre o discurso de An-
tonio Conselheiro, particularmente sua oposição à República, e o pronunciamen-
to do arcebispo da Bahia D. Luis Antonio dos Santos dias antes da proclamação
do novo regime, em que expressava cabalmente as históricas negativas da Igreja
Católica a ele. Por mais que a comparação seja instrutiva, ela não deixa de eviden-
ciar um paradoxo: de que maneira, a partir unicamente da convergência com a
argumentação episcopal, entender os conflitos do Conselheiro com a instituição
eclesiástica e, por outro lado, o papel decisivo desta no suporte à empreitada de
destruição de Belo Monte? Se “a radicalidade de Antonio Conselheiro no campo
religioso assinala, ao mesmo tempo uma ruptura e uma continuidade, uma oposi-
ção acidental aos quadros burocráticos da Igreja que, no fundo, postula e se inspira
numa concordância essencial”120, estaríamos diante de um caso (e não será o único
na história) em que o acidental é que efetivamente importa, como que diluindo o
eventual acordo sobre o supostamente essencial. Bastos não o nota, e muito menos
identifica as divergências, que ao final são hermeneuticamente decisivas inclusi-
ve para a compreensão da guerra; permanece na mesma esteira que curiosamente
aproximam Ataliba e Fiorin, por exemplo...
De toda forma, restrita aos marcos em que se circunscreveu, a análise de Bas-
tos se mostra problemática: atenta ao discurso, não consegue se dar conta da mo-
bilidade de suas funções históricas e, no fim das contas, suprema ironia, converte
o discurso de Antonio Conselheiro em mais uma das artilharias componentes da
“guerra simbólica contra Canudos”. O mais intrigante é compreender como um
discurso afiliado à matriz católica de seu tempo consegue se articular de forma ori-
ginal e com isso alimentar a alternativa que Belo Monte representou. A não ser, e
parece que Bastos pensa assim, recuando até certo ponto em sua crítica a Euclides,
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 75

que o projeto conselheirista estivesse, dada a sua raiz religiosa, desde o início fada-
do ao fracasso. Vê-se que o problema não é muito diferente daquele encontrado
em autores já analisados: uma certa concepção, de corte iluminista, sobre a religião,
que pela consideração das generalidades do discurso e das funções institucionais
desta não dá conta das possibilidades até surpreendentes que podem surgir de seu
interior.121

Campo em chamas

Em 1995 foi publicado por Marco Antonio Villa um trabalho ambicioso, com
a pretensão de se estabelecer como marco na pesquisa sobre Belo Monte. Mas já
é preciso começar dando um desconto: o título Canudos: o povo da terra122, não
corresponde ao conteúdo. É pouco o espaço que a obra reserva ao povo que, com o
Conselheiro, fez a vida do Belo Monte: a conjuntura política da época e a história
da guerra ocupam mais da metade do volume, três dos cinco capítulos em que a
obra se divide.
Villa já fizera uma apresentação parcial dos dados de seu trabalho em texto de
menores pretensões123, no qual garantia não visar a “uma análise original sobre a
comunidade de Belo Monte, mas [...] apenas reconstruir historicamente os aconte-
cimentos”.124 Essa pretensão à objetividade total parece ignorar mais de um século
de discussões teórico-metodológicas em historiografia, e marca também sua obra
seguinte, deixando no ar algumas indagações básicas, inclusive porque no período
que vai da aparição do primeiro à escrita do segundo livro o autor mudou de idéia
em pontos importantes, como o tamanho do arraial conselheirista, a influência do
padre Ibiapina sobre o Conselheiro, as implicações do conflito de Masseté sobre o
estabelecimento de Belo Monte. De toda forma, interessa aqui no momento seu
trabalho de maior fôlego, nas contribuições que tenha trazido para a compreensão
da religião em Belo Monte. Também nela se encontrará esse conjunto de afirma-
ções categóricas, em nome da objetividade, ao lado de outras que reconhecem a
necessidade do debate.125 Por esse caminho destaco três aspectos, que reaparecerão
em discussões posteriores.
Ao propor um vínculo entre o beatismo sertanejo e a tradição bíblica, Villa
sugere que nesta se busque o movimento profético, pois neles temos “uma dura
crítica à trivialidade dos rituais e sacramentos, ao automatismo das cerimônias
e à predominância do aparato decorativo no culto”.126 Nessa milenar corrente se
encontram, como elos intermediários, os profetas e mártires do cristianismo pri-
mitivo, a tradição milenarista e o monaquismo do fim da Antiguidade, as heresias
76

medievais.127 Evidentemente faltam outros elos, em particular os mais próximos


ao sertão. Na caracterização do catolicismo brasileiro a insistência maior recai na
polarização entre as suas formas oficial e popular, se considerar as expressões de
negociação e interação que obviamente existiram.
Isto conduz a outra questão, mais importante. Villa tem razão ao afirmar que,
na maior parte dos casos, as pesquisas a respeito de Belo Monte apenas tangenciam
as questões relativas à vivência religiosa no arraial. Ao contrário disso, afirma con-
siderar o arraial conselheirista “uma comunidade religiosa que se sustenta, cresce,
atrai novos moradores, mantém contatos intermitentes com as vilas e arraiais da
região, estabelece relações econômicas permanentes, servindo a religião como elo
aglutinador para a comunidade”.128 Esperar-se-ia então uma argumentação ressal-
tando as formas que a religião assumiu em Belo Monte, a ponto de ser responsável
pela sua coesão, mas ela não aparece. A abordagem de Villa decepciona, pois, ape-
sar de afirmações categóricas em contrário, as considerações sobre a religião não
permeiam a elaboração do autor. É estranho que, mesmo destacando a importância
dos princípios religiosos do Conselheiro, decisivos para a configuração do arraial,
as prédicas dele não sejam comentadas uma única vez. Incompreensível também a
ausência de diálogo com a obra de Alexandre Otten. Afirmações como a seguinte:
“O arraial [conselheirista] permitiu integrar as necessidades econômico-sociais às
religiosas, concretizando plenamente o que, para o sertanejo, nunca deveria estar
dissociado: a religião e a vida”129, sugerem, mas deixam tantas perguntas sem res-
postas: de que necessidades religiosas se está falando? Em que consiste a religião
sertaneja? Quais os princípios da cosmovisão sertaneja que impediriam o hiato
entre fé e vida? Estabelecer apenas a polarização com o catolicismo apegado às pres-
crições romanas e liderado pela hierarquia eclesiástica é insuficiente, sob pena de
não se compreenderem aspectos fundamentais da trajetória de Belo Monte, como
a missão dos freis capuchinhos, aceita apesar de todos os percalços, a presença no
arraial, de tempos em tempos, do pe. Sabino, e o fato de Antonio Conselheiro não
haver arrogado para si funções especificamente sacerdotais.
Por outro lado, uma afirmação com a qual se poderia concordar, como “a
liderança e os princípios religiosos do Conselheiro impediram a consolidação de
uma camada dominante que pudesse se apropriar do excedente econômico e esta-
belecer laços de dependência política”, se tomada isoladamente levanta problemas
inevitáveis: que princípios são esses? A religião deve ser considerada apenas em ra-
zão de sua funcionalidade social? Villa tende a responder pela negativa ao afirmar,
por exemplo, que, “para o sertanejo, a religião não é apenas um instrumento de
transformação social, mas a fonte inspiradora de um mundo novo”.130 Mas não se
sabe efetivamente de que ele está falando, e o conjunto do livro tende a negar essa
convicção do autor.
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 77

A situação não se modifica quando lemos que “a força dos valores societários, a
solidez da ligação entre o destino individual e coletivo”131 são fatores que precisam
indispensavelmente ser considerados para se explicar a tenaz resistência da gente
belomontense até o fim. Donde vêm tais valores? Quais são eles? Pelo menos o dis-
curso religioso não é visto na perspectiva de uma “falsa consciência”, mas daquela
possível e pertinente ao sertanejo.
Enfim, é simplista considerar que catolicismo oficial e religiosidade sertaneja
perfaçam “dois mundos diferentes” entre os quais não há contato; as reflexões de
Ginzburg sobre a circularidade cultural, por exemplo, evidenciam que a questão é
bem mais complexa.132
Ligada à questão precedente, surge outra. Villa repele veementemente “qual-
quer explicação do arraial como uma comunidade messiânica, sebastianista, mile-
narista...”133 Ele sabe que está entrando em terreno delicado, pois desde Euclides as
interpretações sobre o arraial conselheirista compreendem a religião ali praticada
e as esperanças então vividas a partir de uma ou algumas dessas perspectivas. Mas
considera o sebastianismo em Belo Monte uma suposição euclidiana, construída
a partir do fato de vários movimentos de contestação da época, de tendência mo-
narquista ou não, serem caracterizados desta forma.134 Sobre expectativas de cunho
milenarista é categórico: “Não houve em Belo Monte a espera coletiva do milênio,
a crença de uma idade futura em que todos os males seriam corrigidos, as injusti-
ças, reparadas e abolidas as doenças e a morte”. Logo a afirmação é matizada:

Isto não exclui a possibilidade de alguns moradores do arraial terem manifestado


esta crença que fazia parte do universo religioso sertanejo há vários séculos, mas é
improvável, dado [sic] os relatos da época e dos sobreviventes muitos anos depois
da destruição de Belo Monte, que os conselheiristas, principalmente aqueles que
exerciam funções de mando, partilhassem dessa visão de mundo.135

Mais uma vez se pode concordar, em linhas gerais, com as conclusões de Villa.
Mas não é possível tomá-las de forma totalizante; elas não dão conta de toda a pro-
blemática. Nem cabe esposar sua metodologia de análise; para ficar apenas na ques-
tão das fontes: o que fazer com as quadras populares que Euclides recolheu quando
esteve em Belo Monte, várias delas com menções a D. Sebastião? Como avaliar a
famosa “Profecia”, da qual Euclides transcreveu parte em Os sertões e que anunciava
algum tipo de fim para a virada do século? É verdade que o simples anúncio de um
fim iminente não caracteriza necessariamente uma expectativa de cunho milena-
rista, mas desconsiderar a fonte não resolve o problema. Será necessário reconhecer
que o universo religioso da gente de Belo Monte é mais complexo do que se pensa
à primeira vista, e D. Sebastião e anúncios de fim próximo o povoam, mesmo
78

ocupando lugar secundário. O próprio Villa parece reconhecer tal complexidade


ao afirmar, em relação a outra “profecia” anunciadora de fim iminente, que “textos
como este faziam parte do imaginário religioso sertanejo”.136 Até prova em contrá-
rio, não será diferente com Belo Monte. O desafio que se coloca, então, é muito
mais exigente: identificar onde residem os elementos específicos que estabelece-
riam a diferença, entendida em termos também religiosos, entre Belo Monte e o
sertão mais amplo. Nesse caso um olhar cuidadoso sobre os testemunhos sertanejos
que sobreviveram (inclusive o material recolhido por Euclides) e sobre as prédicas
do Conselheiro é indispensável. Algo a que Villa não se dedicou.
Como afirmava antes, trata-se de um trabalho ambicioso, que cumpre muito
menos do que anuncia e promete, mas com o qual é preciso dialogar. Apesar de
não descer aos detalhes, e não procederem a uma análise das formas da religião em
Belo Monte, a abordagem de Villa, mesmo ficando apenas no terreno do estabe-
lecimento de relações com o universo extra-religioso, é pertinente e estimula a um
trabalho que ele não acabou por não realizar. Rejeitando categoricamente trabalhar
com o que chama de explicações religiosas finalistas para o arraial, o autor não
verá na religião belomontense uma excrescência, nem uma simples derivação do
catolicismo anterior, mas algo original, peculiar. Inovador em alguns pontos (em
muito menos do quanto pretenderia), o trabalho do autor se mostra enfraquecido
pelo pouco cuidado e pela forma vaga com que afirmações importantes são feitas,
tirando de cena detalhes e aspectos fundamentais da problemática.

Reverberações

Outra obra, também saída em 1995, mereceu a seguinte avaliação: “é redigido


com muito cuidado, bem construído, e oferece uma excelente apresentação de toda
a história de Canudos, talvez a mais completa até hoje elaborada”. 137 Seu autor
pretende alcançar um duplo objetivo: “penetrar no mundo do Conselheiro num
raio dimensional mais amplo – nos níveis local, regional e nacional – e entender o
movimento e a mundivisão do Conselheiro em seus próprios termos”, contando
com “uma base de recursos mais ampla do que a dos trabalhos anteriores”, ouvin-
do todos os lados envolvidos.138 Tarefa hercúlea, cuja execução deixo para outros
avaliarem; inúmeros elementos apontam para o insucesso, mostrando que o autor,
a despeito do maior volume de informações, acabou por reproduzir as teses básicas
de Nina Rodrigues e Euclides da Cunha sobre Antonio Conselheiro e o Belo Mon-
te.139 Aqui me fixo, mais uma vez, na abordagem proposta pelo autor a respeito do
componente religioso presente no universo em questão.
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 79

Também na análise da religiosidade vivida em Belo Monte Levine retoma as


conclusões de Euclides (e de Maria Isaura): trata-se de uma comunidade milena-
rista. Não estranha, portanto, que o livro termine da forma como começou: com
uma consideração sobre a temática do milenarismo. A insistência nesse paradigma
faz Levine relativizar os fatores conjunturais que determinaram o estabelecimento à
beira do Vaza-barris: os protestos contra os novos impostos municipais e o embate
em Masseté, que o autor não desconhece, são secundários:

A entrada invasora da modernidade no sertão havia desencadeado uma ruptura nos


velhos e lentos padrões que regulamentavam a forma de relacionamento dos habi-
tantes tanto com a terra como com as hierarquias de poder que controlavam suas
vidas. Em 1893, as lendas a respeito das promessas do Conselheiro quanto a uma
nova Jerusalém, uma comunidade protegida e sagrada na qual os fiéis pudessem
esperar pelo Juízo Final, eram conhecidas em todo o sertão. Enquanto caminhava
para o Norte [...] os crentes iam se juntando a ele. Segundo as informações que nos
chegaram, eles não perguntavam para onde estavam indo.140

Na verdade, a abordagem de Levine sobre os aspectos religiosos envolvidos na


questão Belo Monte é bastante superficial, e reproduz velhos clichês. Menciona a
Missão abreviada como fonte para as prédicas do Conselheiro, mas não estabelece
a qualidade desta intextualidade. Ao contrário disso, recebem tratamento especial
as profecias e vaticínios que Euclides diz ter encontrado em Belo Monte e atribui
ao Conselheiro. É daí que ele recolhe o componente milenarista que afirma carac-
terizar a visão do Conselheiro. Nenhuma consideração mais detida das prédicas,
mesmo tendo à mão o trabalho de Otten. Na verdade, tudo está no terreno do
fantástico que beira o ridículo: “O Conselheiro e outros líderes do sertão alcan-
çaram, por meio da combinação de ‘fórmulas mágicas, casualidades e logicidades
puramente escolásticas’ uma simbiose eficaz entre a danação bíblica e os elementos
da hierarquia divina”.141 E suposições: “Antônio Conselheiro não aceitava a idéia
de que fosse o Salvador e no entanto, inconscientemente, pode ter se identificado
com Jesus Cristo”.142 Somem-se as diversas alusões ao estado psíquico do líder do
Belo Monte, um “fanático alheio à realidade”143, o epíteto de “padre impostor” que
nem seus adversários contemporâneos lhe deram e é tudo que temos a respeito no
capítulo sobre a “visão do Conselheiro”. O olhar sobre a religiosidade conselhei-
rista tampouco é animador, já que os sertanejos, garante ele, “eram supersticiosos,
acreditando piamente na eficácia das maldições [...] trouxeram para o seu catolicis-
mo popular em forma bruta, talvez inconscientemente, tantas adaptações externas,
“mal-entendidos” e sincretismos quanto seus congêneres afro-brasileiros da costa”.
Pareceria a algum desavisado estar ouvindo Euclides e suas verberações contra a
80

“religião mestiça”. Tampouco a relação do Conselheiro com seu séquito suscita


boas esperanças: seus sermões tinham a finalidade de “mistificar seus ouvintes e
consolidar sua autoridade”.144
Não é preciso avançar. O olhar simpático à saga conselheirista, manifesto em
tantas páginas, não resiste muito: para Levine, Belo Monte foi um equívoco. Como
se vê, nenhuma originalidade. O que surpreende é que tantas abordagens mais
recentes e uma enorme bibliografia não lhe tenham possibilitado ir adiante do que
já fora dito quase um século antes dele.145

O cristianismo beato

Uma obra significativa surgida quando do centenário da destruição de Belo


Monte destina-se a tratar especificamente da religião vivida em Belo Monte e as
dimensões religiosas do conflito que envolveu o arraial.146 Para tanto o historia-
dor Eduardo Hoornaert a organiza em três partes; depois disso oferece-nos “mini-
-ensaios em torno da memória de Canudos”, com discussões temáticas. Estamos,
portanto, diante de um conjunto composto de elementos de valor desigual, mas
importantes.
Na primeira parte Hoornaert recupera traços do cotidiano religioso e social
de Belo Monte. Para isso faz uso bastante criativo de O rei dos jagunços, de Manoel
Benício. Daí emerge o retrato de uma comunidade fortemente marcada pelo reli-
gioso: a construção das igrejas, os terços e ofícios, um novo ritmo de trabalho e a
ajuda aos pobres. Esses dados levantam a pergunta pela lógica religiosa que guia o
Conselheiro e apontam para o tema da segunda parte, intitulada “a construção do
espaço sagrado”. Nela se salienta o contraste e a convivência entre as formas rigo-
rosas de vida propostas pelo Conselheiro (que as vivia, segundo os depoimentos)
e pelos missionários, e o ambiente festivo, quase carnavalesco em que se inseriam
os habitantes do arraial. Opera-se o “intercâmbio entre a ludicidade ancestral dos
companheiros e a sisudez cristã do Beato”.147 Isso permite a Hoornaert introduzir
o que será seu principal enfoque nesse trabalho: o conceito de “negociação”. Por
meio dele questiona as visões a respeito da religiosidade vivida em Belo Monte,
herdeiras de Euclides, que a tomam como marcadamente penitencial e severa, o
que parece acertado. Mas ele serve também para mostrar aspectos da difícil relação
entre o Conselheiro e “os administradores oficiais do sagrado”, ou seja, o clero
católico que vive a chamada romanização da Igreja Católica no Brasil. Afora peque-
nos cochilos148, o quadro desenhado é bastante ilustrativo: as novas devoções que
exigem a presença do sacerdote são um campo de potencial conflito, que explica
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 81

inclusive movimentações da mais alta hierarquia baiana, nos anos 1880-90, des-
tinadas a atingir o Conselheiro. Também com os padres do sertão as relações são
complexas, indo desde conflitos no tocante à autoridade clerical até disputas para
levar o vilarejo conselheirista para esta ou aquela paróquia, dado o dízimo rentável
que proporciona. Resultado desse processo de negociação que o Conselheiro viveu
intensamente é o estabelecimento de “um novo parentesco” em Belo Monte: pelo
batismo “os habitantes de Canudos com o tempo vão se inter-relacionando numa
complexa rede de compadrio que ao mesmo tempo cimenta a união e diferencia a
comunidade em relação ao mundo de fora”.149 No final o autor se pergunta se em
Belo Monte teríamos tido “uma seita, ou uma forma nova de igreja, ou então outra
forma de as pessoas se reunirem como cristãos”.150 Este será o tema também do
mini-ensaio que fecha a obra, e deixo então para tratá-lo mais abaixo.
A terceira parte comenta os aspectos que foram progressivamente conferindo
a Belo Monte o estigma de perigo e ameaça, e precipitaram a guerra: a missão ca-
puchinha de 1895, a mão-de-obra que os latifundiários perderam para o arraial, a
reação aos novos impostos autorizados pela República.
Os mini-ensaios que perfazem quase metade da obra são altamente sugestivos.
A abordagem da obra-prima euclidiana pelo viés da teoria sacrificial de Girard é
estimulante. A avaliação da obra do mestre Calasans, generosa. A consideração so-
bre termos como “fanatismo”, “messianismo” e “milenarismo” abre possibilidades
a serem exploradas. Em “Antonio Conselheiro escritor”, Hoornaert não só apresenta
aspectos relevantes das prédicas editadas por Ataliba Nogueira (no que parece retomar Otten), como
um Deus bondoso e um Jesus comprometido com a história dos pobres, mas tam-
bém reflete sobre o sentido que elas poderiam ter naquele contexto cultural e reli-
gioso. Além disso, repele com vigor a indicação de que o milenarismo seria a tônica
da pregação do Conselheiro.
Mas o mini-ensaio mais importante, porque polêmico e original, é sem dúvida
o último, intitulado “o cristianismo beato”.151 Nele Hoornaert se pergunta sobre a
melhor terminologia para caracterizar o cristianismo vivido em Belo Monte, mas
principalmente sobre “o tipo de institucionalidade religiosa” ali vivida.152 Reconhe-
ce que a questão foi tratada por Duglas, Otten e Villa. Simpatiza com os postulados
deste último, e considera que o primeiro não fez senão abrir caminho. Em relação
ao trabalho de Otten manifesta mais reservas, pois estaria marcado por um eclesio-
centrismo inconsciente, manifesto, entre outras coisas, na insistência do autor em
que o conflito do Conselheiro se deu com “a Igreja em reforma” e não “com a Igreja
‘tout court’”.153 É estranho que o autor adote essa posição se em outro momento,
fazendo eco a Ataliba Nogueira, afirmara que, não fora a guerra, certamente teria
acontecido a visita pastoral do arcebispo a Belo Monte.154 Ademais, vimos acima o
próprio Hoornaert salientando o processo de reformas pelo qual a Igreja Católica
82

no Brasil estava passando como algo alimentador do conflito em que Belo Monte
se viu envolvido. De toda forma, Hoornaert reconhece que a temática é complexa.
E propõe a tipologia tripartite de Ernst Troeltsch, pela qual se deve acrescentar
ao conhecido binômio igreja-seita o elemento “mística”: Belo Monte se explicaria
como um intercâmbio entre estas três vertentes, em que a última daria o tom:

vemos [em Canudos] o eclesial aflorar na ânsia de se construir uma “grande igreja”
em Canudos [...] O sectário está presente em algumas afirmações a respeito de
milagres, proibições, etc. Mas sem dúvida a mística é o fulcro, exprime a vivência
da grande maioria. E pensamos que o próprio Conselheiro viveu Canudos como
experiência mística.155

Em Belo Monte estaríamos, portanto, diante de um “cristianismo devocio-


nal”, um “cristianismo beato”.156 O referencial é sugestivo, e com ele podem ser
revistas algumas páginas do próprio Hoornaert.

O beato endiabrado

Insere-se num gênero literário inédito até aqui a interessante e importante


obra, ao que parece pouco divulgada, que passo a comentar. Trata-se de uma
cuidadosa biografia do líder de Belo Monte, que pretende realizar “uma análise
acerca de aspectos de sua obra e de sua vida, mal-explicados, que merecem um
olhar mais cuidadoso”.157 Ele nota bem a ausência desse tipo de trabalho, ainda
mais importante quando se reconhece que Os sertões e seu autor “não primam
pela precisão no estudo do beato, nem lhe dão a devida importância no conjunto
do drama que foi a campanha de Canudos”.158 Para tanto, Dobroruka procu-
ra, acertadamente, focar a pessoa e a trajetória do Conselheiro no quadro do
que chama “catolicismo rústico” e não tanto a partir da guerra no final da qual
veio a morrer: “sua [do Conselheiro] importância enquanto indivíduo fala por si
mesma, seu papel no drama de Canudos sendo suficientemente eloquente para
justificar um esboço biográfico”.159
Vários aspectos merecem destaque nesse sugestivo trabalho; mais uma vez,
saliento apenas alguns. Quanto ao conteúdo das pregações oral e escrita do Con-
selheiro, abordá-lo-ei mais à frente. Já o capítulo “Quem segue os conselhos?”
apresenta um panorama bastante complexo do vilarejo conselheirista, desauto-
rizando interpretações difundidas e apressadas. Distingue a estrutura econômica
belomontense daquela das vilas do Contestado, dado fundamental para a carac-
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 83

terização do perfil da vila: “diferentemente de sociedades organizadas de fato


em torno da expectativa escatológica [...], a sociedade canudense organizou-se
e manteve até o fim um ritmo de vida ‘normal”.160 Encontramos talvez a úni-
ca apresentação cuidadosa do quadro amplamente complexo, de elementos de
várias proveniências, da religiosidade praticada no arraial que, se não chegava a
destoar do que se encontrava comumente no sertão, não deixa de surpreender
quem costuma pensar a vila conselheirista a partir da ortodoxia estrita que se
costuma atribuir a seu líder.
Deve-se destacar também a excelente análise que o autor faz a respeito das
razões e formas da oposição conselheirista à República. De maneira criativa ele
escapa da falsa questão, posta já na época dos acontecimentos: se a hostilidade do
Conselheiro ao novo regime era de cunho religioso/teológico ou político. A aná-
lise proposta é brilhante, ao discutir a República real, não a dos princípios. Isso se
manifesta, por exemplo, no cuidado com que Dobroruka procura caracterizar as
eleições ocorridas à época e o reforço que o novo regime trouxe às oligarquias locais
e regionais.161 À luz deste cenário se compreendem em ótica renovada as famosas
invectivas sobre a “lei do cão”, que em trovas recolhidas por Euclides faz jogo de
palavras com “eleição”.162 A oposição conselheirista é ao mesmo tempo teológica
(pela instituição do casamento civil, por exemplo) e política (por conta dos novos
impostos).
A última questão a ser tratada é também a mais delicada. Dobroruka ensaia
uma convergência entre o conteúdo das prédicas do Conselheiro editadas por Ata-
liba Nogueira e o que outras fontes, particularmente Euclides e José Aras, recolhem
expressões populares e sermões supostamente pronunciados pelo Conselheiro.163
A particular diferença reside no fato de que neste último material se percebe um
tom profético e apocalíptico não encontrado nas prédicas. Dobroruka procura su-
perar estas “discrepâncias entre discurso oral e escrito na obra do Conselheiro”164
considerando que a clivagem entre expectativas escatológicas concretas e coletivas
e outras mais individualizadas é apenas aparente; na verdade ambas caberiam no
horizonte do Conselheiro:

salvação do homem e do mundo são, na ótica conselheirista, aspectos do mesmo


discurso: se as Prédicas silenciam sobre o eschaton cósmico e espetacular, não deve-
mos por isso concluir que o Conselheiro não acreditava nele, ou que tinha medo de
divulgá-lo. Parece mais lógico supor que, na sua pregação, cada um dos discursos
tinha sua hora e seu lugar específicos.165

A proposta é sugestiva, mas cabem algumas ponderações. Em primeiro lugar,


a atribuição de profecias de cunho apocalíptico ao Conselheiro é obra de Euclides,
84

como se pode concluir de um olhar rápido à Caderneta de campo, que as apresenta,


inclusive a famosa “Profecia”, em forma anônima. Outros materiais aí recolhidos
são claramente expressões da cultura sertaneja manifestada em Belo Monte, e não
de autoria do Conselheiro, o que sugere que devamos avaliar as ressonâncias apo-
calípticas no Belo Monte como algo menos fruto da pregação conselheirista que de
um universo religioso mais amplo.166 Quanto aos depoimentos de José Aras, eles
recolhem manifestações que na sua maioria precedem o estabelecimento de Belo
Monte, enquanto os cadernos com as prédicas datam de 1895 e 1897. Não se po-
deria supor que a configuração do arraial teria alterado radicalmente a perspectiva
do seu líder? E o que dizer da negativa contundente de expectativas de corte apoca-
líptico feita, diante de Euclides e outros inquisidores, pelo jaguncinho Agostinho,
já perto do fim da guerra?167
Assim, a solução proposta não parece a mais adequada. É preciso contex-
tualizar, o mais adequadamente possível, as diversas manifestações conhecidas,
em termos de tempo e circunstâncias, e mesmo no empenho de identificar sua
proveniência, algo a que Euclides não se aplicou e que levou os analistas poste-
riores, de forma simplista, a adotarem uma postura e a negarem a outra, como se
fosse possível descartar as fontes. Nesse aspecto a proposta de Dobroruka, se não
satisfaz, merece ser considerada pelo reconhecimento que faz da complexidade
do problema.

O império de Belo Monte

Foi esse o título que Walnice Nogueira Galvão deu a sua monografia sobre
a trajetória do arraial conselheirista.168 Esta conhecida estudiosa da obra eucli-
diana, que vem há certo tempo se dedicando ao tema Belo Monte, homenageia a
Maria Isaura Pereira de Queiroz, que assim nomeara a sua abordagem sobre Belo
Monte em seu clássico, a partir de Euclides da Cunha169 e Macedo Soares.170 O
que não retira a impropriedade do título, fruto menos do que Belo Monte efe-
tivamente terá sido e mais dos alardes alarmistas vindos de todas as partes que a
própria Walnice mostrou em escritos anteriores.171
De toda forma, ao lado de algumas informações interessantes e até suges-
tivas, não se pode dizer que a obra que ora passamos a comentar traga alguma
novidade maior. No tocante ao ponto que nos interessa, a religião em Belo Mon-
te e ao seu redor, as considerações são esparsas e rápidas, e marcadas por alguns
equívocos. Em primeiro lugar, a autora reconhece a centralidade dela na vila
conselheirista: nela
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 85

predominava a religião, embora fosse, como de hábito no sertão e mesmo em geral


no interior do país, uma religião festiva [...] havia dois ofícios diários, à madrugada
e à noitinha ou de tarde, e periodicamente os conselhos com data marcada, para os
quais acorria gente até de longe, ansiosa por ouvir a palavra do Peregrino. Canudos
assim tornou-se um centro de romaria, atraindo crentes que ali chegavam para pedir
audiência e fazer doações.172

Parece muito pouco se levamos em conta outros testemunhos, que falam de


orações ocorrendo o dia inteiro em Belo Monte. E não se entende muito por que
a autora tem de fazer concessão para reconhecer o caráter festivo da religião aí
vivida.173
Mais adiante uma outra menção, pouco simpática. Ao se referir ao fato de que
Belo Monte, ao contrário do que quiseram alguns autores, mormente marxistas,
não era uma comunidade igualitária, reconhece que “alguns traços de igualdade
havia, e certamente dados pela religião comum – que costuma apagar apenas ide-
almente as barreiras de classe ao criar uma organização social sui generis que pre-
ga a fraternidade”.174 Assim sendo, a religião não impacta nas relações sociais no
interior da comunidade nem contribui na definição de elementos da estrutura e
organização mais ampla. Contudo logo a seguir Walnice afirma a inexistência de
propriedade privada em Belo Monte.175 Se fosse o caso de concordar com ela nesse
pormenor, a pergunta teria de ser feita: donde teria provindo essa característica
toda particular, capaz de estabelecer formas mais igualitárias de convivência? E o
que dizer do sistema de distribuição de víveres e bens aos necessitados, a partir de
um caixa comum coordenado pelo Conselheiro? Por outro lado a autora não deixa
de reconhecer a importância do compadrio vivido em Belo Monte, que subtraiu
tanta gente à estrutura de poder vigente, também ela reforçada por uma espécie de
compadrio, o interclasses.176
Walnice conhece a obra de Villa, mas não cita a de Otten.177 Talvez isso
tenha contribuído para lhe dificultar a percepção do potencial de originalida-
de e autonomia da experiência religiosa (que ela nunca nega) vivida em Belo
Monte. A rigor são poucas as páginas que Walnice consagra ao arraial, e isso
certamente tem consequências na consideração sobre a importância da religião
no seu cotidiano. No contexto da guerra, salienta a relevância da pregação do
Conselheiro sobre a salvação de quem apostasse em Belo Monte. Esse elemento
é fundamental: dificilmente a aguerrida resistência se explicaria sem ele.178 Por-
tanto, apesar de reconhecer a relevância da religião para a compreensão de Belo
Monte, sua abordagem é rápida, passando por cima de pormenores importantes,
e por vezes imprecisa. É o caso, por exemplo, da discussão sobre o milenarismo
aí suposto: “tomado no sentido estrito de um surto provocado pela iminência do
86

fim do século ou do milênio, [o milenarismo] encontra-se ausente de Canudos


[...] Mas os folhetos proféticos e os versos populares mostram essa tendência”.179
A confusão que Walnice faz de milenarismo com expectativas em fim de século
ou milênio, que terá havido também na obra euclidiana, impede que se tenham
uma percepção mais clara do que seriam, no pensar da autora, as concepções
escatológicas do arraial.
Enfim, trata-se de um texto que soa apressado, e acrescenta pouco aos ca-
minhos já abertos. A simpatia pela gente conselheirista não se traduziu numa
abordagem cuidadosa de seu universo simbólico e religioso, e das possibilidades
daí advindas. Não se pode esconder a frustração no fim da leitura. A passagem
dos estudos sobre Euclides àqueles sobre Belo Monte não é assim tão simples.

O cerco discursivo sobre Antonio Conse-


lheiro e o Belo Monte
Após as efemérides centenárias relativas ao surgimento e destruição do
Belo Monte e ainda à publicação de Os sertões, foram poucos os trabalhos de
maior relevo sobre o assunto. Dentre eles um, no entanto, não pode deixar de
ser considerado: a tese de doutorado de Dawid Danilo Bartelt, publicada em
português em 2009, aborda o arraial de Antonio Conselheiro (o mais das vezes
nomeado como “Canudos”) numa perspectiva muito específica: como “aconte-
cimento discursivo”.180 Esta importante obra situa-se na continuidade de outros
trabalhos do autor, que competentemente vem tratando de avaliar os discursos
sobre esse momento da história brasileira, identificando os campos semânticos
fundamentais nos quais ele foi inserido e pelos quais foi interpretado. Mostra,
por exemplo, como foi fácil à quase totalidade dos sujeitos discursivos inserir o
Belo Monte na teia do fanatismo, da superstição e da desordem na medida em
que ampliaram para o arraial o que já vinham afirmando do Conselheiro já fa-
zia vinte anos: um herege, eventualmente assassino, seguramente marcado por
alguma grave patologia. Pergunta-se, com muita acuidade, sobre como os dis-
cursos a respeito do tema contribuíram para a configuração do entendimento
que a nação Brasil, recém-ingressada na era republicana, ia tecendo a respeito
de si mesma. Sua pesquisa é exaustiva, identificando e analisando discursos de
políticos, militares, religiosos, jornalistas, sem esquecer, é claro, o de Euclides.
Muitas das contribuições advindas desta obra serão aqui aproveitadas, mesmo
que a aproximação à dimensão propriamente religiosa do evento seja rápida,
mas não isenta de imprecisões e equívocos, que cabe aqui salientar.
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 87

Na primeira das três partes que compõem a obra, Bartelt propõe uma
“história social do movimento de Canudos”, dividida em dois momentos prin-
cipais: a trajetória do Conselheiro, entendida como tragédia, e o povoado do
Belo Monte. Quanto a este último, centra-se nas questões de ordem política
e socioeconômica, mas um tópico é reservado à prática da religião no arraial.
Concentro-me nele, embora a temática reapareça, obviamente, em tantas ou-
tras páginas do livro.
Bartelt reconhece que “a prática religiosa estruturava a vida cotidiana” do Belo
Monte, embora atingisse seus habitantes de forma diferenciada.181 Só isso deman-
daria ao autor um cuidado maior na apresentação do assunto. A precisão dos ter-
mos é fundamental, e não se entende que, ao mesmo tempo em que afirma que o
Conselheiro “respeitava a igreja oficial e suas leis”, não havendo nunca ministrado
sacramentos, “cuja realização era reservada a um padre ordenado”, logo a seguir
Bartelt garanta que, “de vez em quando Maciel celebrava a missa para seus fiéis”!182
Reconhece o qualificado manuseio da Bíblia e do Missão abreviada pela Conse-
lheiro, livros subjacentes aos dois manuscritos que levam o nome do Conselheiro,
material que infelizmente não é explorado (exceto por uma rápida abordagem do
sermão sobre a República, presente no caderno editado por Ataliba Nogueira);
pelo contrário, o conteúdo que nele aparece tende a ser minimizado pelo autor
na configuração do pensamento do Conselheiro. Com efeito, Bartelt dá alguma
atenção ao que denomina “teologia de Maciel”, avaliando de forma bastante rastei-
ra as posições de Otten e Hoornaert a esse respeito183, e tendendo a concordar, ao
final, com a avaliação de Fiorin, segundo a qual o Conselheiro “não deu indícios de
querer enfrentar as relações eclesiásticas, políticas ou sociais de poder”.184 E prefere
confiar em testemunhos externos e fragmentários para afirmar o caráter messiânico
da figura do líder do Belo Monte e, por consequência, do perfil do arraial. Também
aqui a falta de precisão terminológica se mostra patente, bem como o descaso para
com as fontes autógrafas do Conselheiro
Portanto, não estranha encontrar, na última das três conclusões a que ele che-
ga nesse tópico, a afirmação de que a novidade social representada pelo Belo Monte
terá ocorrido à revelia do Conselheiro, e foi experimentada de forma privilegiada
principalmente por aqueles que, no arraial, “se libertaram da dimensão apocalípti-
ca e transcendental [que supostamente caracterizava, de maneira exclusiva, a pre-
gação do Conselheiro], voltando-se para a vida terrena. Nesse caso a teologia de
Maciel não ajudava muito, pelo contrário”.185 Uma ponderação completamente
infundada e gratuita, não fora o entendimento insuficiente e equivocado da “teolo-
gia de Maciel”, que conduz àquela “esquizofrenia” que Fiorin só pode evitar recusando-se
a confrontar os textos do Conselheiro com os inventos sociais por este liderado. Bartelt precisa supor
uma rebeldia subversiva da gente sertaneja em relação a seu líder, sem nenhum
88

fundamento para tal, para garantir, mais uma vez de forma gratuita, que no Belo
Monte se experimentou “uma práxis frequentemente contrária aos princípios da
teologia defendida por Maciel”...186 Estaria Bartelt reproduzindo a descabida suges-
tão, já encontrada em Facó, de uma dupla liderança no arraial?
Não é preciso avançar mais, por ora: a religião, particularmente aquela encar-
nada no Conselheiro e por ele estimulada, é um acidente que, embora importante
na configuração do arraial (como dito ao início do tópico), conta pouco para a
análise proposta por Bartelt. Não se entende muito aonde o autor quer chegar. Mas
se percebe claramente seu descaso para com o tema, que não mereceu a atenção
acurada que outras dimensões do problema “Belo Monte” dele receberam. Afortu-
nadamente há numerosas outras páginas do livro muito mais felizes, com as quais
é possível e necessário estabelecer diálogo: aquelas relativas à “heretização” do Con-
selheiro pelos padres da arquidiocese baiana e ao Relatório de frei João Evangelista
estão entre elas.187 Na verdade, ao interessar-se mais pela produção discursiva sobre
o Belo Monte que efetivamente terá impactado na opinião pública mais ampla,
e assim na configuração dos entendimentos que o Brasil republicano ia tecendo
a respeito de seu passado e presente, Bartelt passa de forma muito rasante sobre
os sentidos que a gente que fez o Belo Monte imprimia a seu empreendimento.
Reproduz, sem o pretender, o descuido para com as expressões da cultura popu-
lar sertaneja e, em particular, o preconceito eclesiástico e euclidiano a respeito do
Conselheiro, cujos termos tão bem identifica e denuncia.
Ao final se sente, na consideração dos mais relevantes trabalhos da terceira
fase dos estudos sobre Belo Monte, que com Bartelt se encerra, uma certa descon-
tinuidade em relação à fase anterior, em especial no tocante à temática religiosa. Os
promissores caminhos abertos por Ataliba, Duglas e Otten foram trilhados apenas
parcialmente. É hora de recuperá-los.

4. A COMPOSIÇÃO DO OLHAR

Não há mais por que se queixar: os estudos sobre Belo Monte e Antonio Con-
selheiro se multiplicaram nos últimos anos, motivados principalmente pelo cente-
nário do estabelecimento e da destruição do arraial. E, às vezes intencionalmente,
outras vezes não, a temática religiosa não poderia deixar de ser considerada, com
resultados os mais variados, e até contraditórios. Identifico, a título de conclusão
dessa etapa, algumas questões que decorrem das leituras feitas e necessitam ser
retomadas, ampliadas e aprofundadas. E aponto também com quais referências
proponho o encaminhamento desta tarefa.
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 89

Questões
Começo pela tradicional configuração de Belo Monte como um arraial messi-
ânico e/ou milenarista. Tese euclidiana, reiterada por Maria Isaura, ela reaparece em
algumas abordagens mais recentes, como a de Levine, embora tenha sido fortemente
bombardeada por Villa. É necessário maior precisão em relação a conceitos aproxi-
mados, mas não idênticos, como expectativas adventistas imediatas e esperanças mi-
lenaristas. Nesse sentido, cabe retornar às perspectivas abertas por Monteiro, Otten
e Dobroruka. E buscar entender como Euclides chegou a tal perfil de Belo Monte.
Também é preciso maior clareza quanto à terminologia destinada a qualificar
a vivência religiosa em Belo Monte. Certamente já se avançou muito, e dificil-
mente encontraríamos hoje alguém falando, como Rui Facó, de gente que vivia
“repetindo trechos deturpados da Bíblia”.188 Mas ainda há o que fazer. Se Dobro-
ruka, em sua análise cuidadosa, empresta de Maria Isaura o conceito “catolicismo
rústico”, Villa o combate, tendo-o por inadequado. Alexandre Otten fala de “ca-
tolicismo popular”; Hoornaert propõe “cristianismo beato”. E como se incluiriam
aí as evidentes manifestações que, a rigor, não costumamos imaginar no seio do
catolicismo, mas se devem a proveniências distintas?
É ainda importante prestar atenção às relações entre o Conselheiro e sua gente.
Não convém simplesmente identificar a cosmovisão do líder com a de seu séquito,
nem estabelecer uma polarização entre ambas. Antonio Maciel de alguma forma
transita entre o universo cultural sertanejo e o de outros setores sociais, particular-
mente o eclesiástico; as prédicas a ele atribuídas o indicam. O próprio título de Con-
selheiro, anexado com o tempo ao seu nome, aponta na mesma direção. Otten parece
sugerir uma complementaridade entre ambas as visões, enquanto outros nem se dão
ao trabalho de diferenciá-las. Há ainda quem considere o ethos experimentado em
Belo Monte uma decorrência direta dos princípios religiosos proclamados pelo Con-
selheiro. Existe aí um campo fértil para ulteriores aprofundamentos.
Este livro se debruça sobre estes dois mundos, o do Conselheiro e o de sua
gente, não de todo identificados, a partir da perspectiva da apropriação da Bíblia
que neles se deu. Mas, reconhecendo que a problemática é mais complexa, aborda,
na mesma perspectiva, os olhares eclesiástico e dos envolvidos diretamente na guer-
ra que destruiu o arraial, representados pela figura do jornalista e militar Euclides
da Cunha. Imagino que de alguma forma nossa abordagem seja iluminadora (de
algumas) das tensões e encontros que fizeram a vida e a morte de Belo Monte.
Perceber-se-á como nos encontramos diante de universos culturais e simbólicos
diferenciados, mas surpreendentemente relacionados, que de alguma forma expli-
cam como a emergência de Belo Monte se tornou possível, mas também como sua
eliminação foi tida como uma urgência.
90

O olhar
Este livro situa-se no campo de intersecção entre várias áreas do saber, mor-
mente a História e a Antropologia. Alguns temas específicos também oferecem su-
gestões promissoras. Identifico algumas referências que orientam meu olhar sobre
a saga de Belo Monte.

História e Antropologia

Foram principalmente a História e a Sociologia que se debruçaram sobre a tra-


jetória de Antonio Conselheiro e a existência e destruição de Belo Monte. O apelo
de Euclides por um “antropologista” que constatasse o “fenômeno de incompati-
bilidade com as exigências superiores da civilização”189 (ou apontasse em direções
alternativas) encontrou reduzido eco entre os profissionais da área.
Mas a temática é privilegiada para uma investigação historiográfica com
sensibilidade antropológica, ou uma “antropologia histórica”. Belo Monte não
pode ser convenientemente compreendido se inserido apenas no campo da
história política brasileira, ou mesmo no quadro das tensões sócio-econômicas
do sertão nordestino no fim no século XIX, embora tanto aquela quanto estas
sejam fundamentais para a compreensão do fenômeno. Exige mergulhar no
universo simbólico e cultural dos grupos humanos envolvidos naquelas cir-
cunstâncias conflitivas, perceber qual significação atribuíram aos eventos de
que eram sujeitos, e inscrever “o implícito, o não-dito, o simbólico, no pensa-
mento e na estrutura social do Brasil dos séculos passados”.190
O cruzamento História - Antropologia “geralmente ocorre quando am-
bas convergem para objetos vagamente classificados como cultura popular”, e
quando se reconhece que “a visão dos fatos entre os cidadãos comuns [é] tão
importante quanto os próprios fatos em si”.191 Para essa concepção muito con-
tribuiu a chamada Escola dos Annales, em suas várias etapas, cuja reconhecida
renovação de métodos e perspectivas para a historiografia se deve em grande
parte ao diálogo com a antropologia. Reagindo ao predomínio de uma his-
tória política e factual bastante marcada pelo Positivismo, e advogando uma
historiografia que considerasse o conjunto dos saberes e fazeres humanos, o
movimento liderado por Lucien Febvre e Marc Bloch acentuou a interdiscipli-
naridade, com a Sociologia, a Economia, a Geografia e outras áreas do saber. O
encontro com a Antropologia, já constatado em Bloch192, se afirmou definiti-
vamente com o estabelecimento daquilo que veio a ser chamado de “longa du-
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 91

ração” em História.193 Assim, firmou-se a preocupação com o que inicialmente


se denominou “mentalidades”, termo vago e ambíguo, que de alguma forma se
refere a temas do cotidiano e às representações, ou seja, “às atitudes mentais”
(expressão de Georges Duby) ou estruturas de crenças e comportamentos que
se modificam lentamente.194 O que, efetivamente, veio desembocar no que se
costuma chamar, desde os anos 1980, “história cultural”. A despeito de suas
variações, ela se ocupa das expressões culturais dos grupos anônimos (e não
só com aquelas das elites): festas, crenças, religiosidades, fazeres, e procura
recuperar o papel das classes e dos conflitos sociais; ocupa-se dos “aspectos
simbólicos e culturais da sociedade”.195 Considera as “representações” (outro
termo ambíguo, por vezes substituído por “imaginário[s]”) fundamentais para
a compreensão do universo em que se inserem, já que

as percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem es-
tratégias e práticas [... Estão] sempre colocadas num campo de concorrências e
de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação.
As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para
compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua
concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio.196

Se se passa ao campo da Antropologia e dos antropólogos para vermos como


daí se considera a fronteira (e a transposição dela) com a História, é com os traba-
lhos de Clifford Geertz que é preciso começar.197 Dentre suas contribuições nesse
sentido, destaca-se o artigo “Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da
cultura”, que abre o já clássico A interpretação das culturas e sintetiza as possibilida-
des e as polêmicas suscitadas pela abordagem geertziana da cultura. Se para Weber
“o homem é um animal suspenso por teias de significados que ele mesmo teceu”,
Geertz propõe identificar a cultura com essas teias. As diversas culturas constituem
universos coesos e auto-explicativos, e os símbolos aí existentes só fazem sentido
para quem os criou e vive enredado neles.
Daí que a análise da cultura não seja uma “ciência experimental em busca de
leis, mas [...] uma ciência interpretativa, à procura do significado”198, e os processos
culturais devam “ser lidos, traduzidos e interpretados”.199 Eis a tarefa da “descrição
densa”: examinar os conteúdos simbólicos de determinada ação ou comportamen-
to, em vistas a seu significado; “as ações das pessoas são levadas em consideração e
processadas através do filtro da interpretação. Ações são artefatos, sinais cujo pro-
pósito é transmitir significados”.200 Assim é possível registrar eventos doutra forma
imperceptíveis, que podem ser compreendidos se inseridos no contexto, ou seja,
no fluxo do discurso social.
92

Mais recentemente a teoria cultural de Geertz e sua proposta de “descrição den-


sa” vêm sendo abordadas com maior reserva. Denuncia-se a falta de rigor metodo-
lógico do autor, bem como o idealismo latente no desenvolvimento de seu caminho
teórico.201 Com efeito, parece razoável contestar a tendência de reduzir tudo a sig-
nificações; há por debaixo delas outros movimentos, que cabe identificar e analisar.
Se “os historiadores culturais foram encorajados pelo exemplo de Geertz a se afasta-
rem das abordagens sociais e econômicas202, se se verifica que “onde as feministas e
os marxistas encontram opressão, os simbolistas [referindo-se a Geertz] encontram
significado”203, há que recuar diante das pretensões de absolutizar a antropologia in-
terpretativa como a única forma de compreensão da cultura e das culturas. Os ca-
minhos percorridos por Geertz precisam ser trilhados junto a outros, que venham
efetivamente a complexificar o entendimento dos processos submetidos à análise. É
preciso fazer a pergunta pelos sujeitos que definem os sentidos e significados, já que
estes não surgem de geração espontânea. Em outras palavras, é necessário definir
os sinais e símbolos e avaliá-los “com referência à multiplicidade de representações
sociais que eles produzem”. A antropologia interpretativa de Geertz corre o risco de
“perder a visão da natureza socialmente diferenciada dos significados simbólicos e
consequentemente de sua qualidade e parte ambígua”; na verdade, a diferenciação so-
cial é “essencial para se ter uma interpretação tão formal quanto possível das ações, do
comportamento, das estruturas, dos papéis e dos relacionamentos sociais”.204 Com
essas importantes ressalvas, e articulada a outras vertentes teóricas, a tarefa da “descri-
ção densa” permanece. No âmbito de nossa temática, o desafio de se perguntar pelos
conflitivos significados impressos a Belo Monte é praticamente inesgotável.
De Marshall Sahlins recolho que ele desconsidera de todo a distinção, que al-
guns querem enraizar em Lévi-Strauss, entre sociedades “quentes”, continuamente
dinâmicas, objetos da História, e sociedades “frias”, repetitivas, cíclicas, tematizadas
pela Antropologia: “as diferentes ordens culturais têm seus modelos próprios de ação,
consciência e determinação histórica – suas próprias práticas históricas”.205 E assim
ele se encaminha para suprir com sobras a lacuna que detectávamos na antropologia
interpretativa de Geertz. A maneira dialética com que ele articula eventos e mitos é
um dos aspectos promissores de sua proposta: “o grande desafio a uma antropologia
histórica [...] não consiste meramente em saber como os eventos são ordenados pela
cultura, mas a forma como, neste processo, a cultura é reordenada”.206 Tal dialética
desemboca em outra, capaz de explicar a mudança social, relativa a estrutura e acon-
tecimento, estrutura e história.
Essas contribuições trazidas por diferentes tendências da Historiografia e da An-
tropologia confluem, e são enriquecidas no trabalho teórico que costuma ser chama-
do “história vista de baixo”, de matriz predominantemente inglesa e marxista. Por
esta expressão se entende a pesquisa que considera a cultura das “pessoas comuns”,
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 93

não o sujeito histórico, ou o grupo de sujeitos históricos que porta uma formação
ou consciência política, ou ainda aqueles que, com base numa certa prática social
do discurso, desenvolvem uma configuração organizada e polarizada [...] As pessoas
comuns são [...] aquelas que se inserem num dado modo de vida – do qual emana
uma certa experiência – que, por sua vez, faz emergir uma cultura que lhe é, via de
regra, correspondente.207

Estudar as experiências históricas de homens e mulheres tantas vezes anôni-


mos, cuja existência é quase sempre ignorada e que, quando surgem nos relatos
históricos convencionais, fazem papel de figurante, tem dois méritos principais:
auxilia poderosamente no “estabelecimento da identidade das classes inferiores”
e contribui para “criticar, redefinir e consolidar a corrente principal da história”.
Assim, “aqueles que escrevem a história vista de baixo não apenas proporcionaram
um campo de trabalho [...] A história vista de baixo mantém sua aura subversi-
va”.208
Neste percurso, recorrer à Antropologia se torna inevitável. Thompson afirma
que, embora nos primeiros tempos temesse o caráter generalizante de que às vezes
ela se revestia, ancorando-se pouco na realidade histórica específica, ao se voltar
para a sociedade inglesa no contexto anterior à eclosão da Revolução Industrial teve
de adotar outra postura, já que se defrontou com

uma sociedade governada [...] pelo costume. Havia práticas agrárias costumeiras,
formas costumeiras de iniciação às artes de oficio (aprendizagem), expectativas cos-
tumeiras quanto a certos papéis (domésticos ou sociais), modos de trabalho costu-
meiros e expectativas consuetudinárias, bem como “desejos” ou “necessidades”.209

Avaliar esse universo pouco notado, e aparentemente desprovido de maior


importância para a historiografia exige novos instrumentos:

O estímulo antropológico se traduz primordialmente não na construção do mode-


lo, mas na identificação de novos problemas, na visualização de velhos problemas
em novas formas, na ênfase em normas (ou sistemas de valores) e em rituais, aten-
tando para as expressivas funções das formas de amotinação e agitação, assim como
para as expressões simbólicas de autoridade, controle e hegemonia.210

Ao explicitar desta forma sua visão, Thompson sabe estar afastando-se do


marxismo vulgar, mecanicista, que apresenta a superestrutura como mero reflexo
ou correlato da base econômica; ele descarta, “resolutamente, tanto as categorias
de explicação positivistas ou utilitaristas quanto sua infiltração na tradição econo-
94

micista do marxismo”.211 O que não significa renunciar a postulados fundamentais.


Pois o recurso à Antropologia não deve perder de vista a transformação histórica.
Pelo contrário, “a metodologia da antropologia simbólica deve ser reformulada
para levar em conta a transformação histórica, a particularidade contextual e o
cuidado empírico”.212 O receio inicial em relação à Antropologia se converte em ta-
refa. O quadro cultural variado que ela evidencia é poderoso instrumento a ilustrar,
e ao mesmo tempo complexificar, a realidade da luta de classes.213
Tomo um exemplo de análise, em que Thompson evidencia a importância
da Antropologia para que a “gente comum” possa ser vista “não ocasional e espas-
modicamente na cena histórica”. 214 Para ele a ação popular na Inglaterra do século
XVIII, manifesta nos diversos “motins da fome”, mais que fruto de uma reação
repentina ou irracional, era resposta a um estado de coisas que violava

um consenso popular a respeito do que eram práticas legítimas e ilegítimas na ati-


vidade do mercado, dos moleiros, dos que faziam o pão, etc. Isso, por sua vez,
tinha como fundamento uma visão consistente tradicional das normas e obrigações
sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos na comunidade, as quais,
consideradas em conjunto, podemos dizer que constituem a economia moral dos
pobres.215

O “olhar antropológico” se manifesta na sensibilidade para perceber o “outro”,


as classes populares moralmente conscientes e rebeladas, no dar-lhes a voz, na per-
cepção da lógica de sua visão das coisas e ação.216 E na descoberta de imperativos
ético-religiosos para que os pobres

tenham à sua disposição cereais a preços convenientes e caridosos. E para a pro-


moção desse objetivo, que os mais ricos sejam sinceramente movidos pela caridade
cristã a colocar os seus grãos à venda para os mais pobres pelos preços comuns do
mercado: um ato de caridade, que sem dúvida será recompensado por Deus Todo-
-Poderoso.217

Não estranhará, portanto, encontrar a igreja como local de reunião das mulheres
para fixar o preço dos cereais.218 Ou então, nas portas das igrejas, folhetos convocan-
do os pobres à rebelião.219 Vieram à tona convicções arraigadas e valores tradicionais,
segundo os quais “não parecia ‘natural’ que um homem lucrasse com as necessidades
dos outros, e quando se admitia que, em tempos de escassez, os preços dos ‘artigos de
primeira necessidade’ deviam continuar no seu nível habitual”.220 Havia, portanto,
a sensação de um consenso comunitário a ser defendido, nas diversas manifestações
públicas das multidões, contra as agressões do mercado livre.221
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 95

Vejo expresso, portanto, na atenção aos preceitos, convicções, valores e cos-


tumes dos grupos populares, o reconhecimento da relevância do diálogo entre a
História e a Antropologia. Sem desconhecer dificuldades tanto teóricas como prá-
ticas, parece certo que a Antropologia fornece à História métodos e resultados, e
capacita para a percepção qualificada do micro, do detalhe, capaz de redesenhar a
compreensão do todo. E, com isso, para a possibilidade de captar a especificidade
do que se está analisando e suas articulações com outras instâncias da vida social.
Por esse caminho os grupos populares podem sair do ostracismo histórico e ter voz,
não repentina ou absurda, mas expressão de um modo de ver em confronto com
outros, mais visíveis e conhecidos. Muitos dos caminhos abertos por essa vertente
investigativa (de inúmeras tendências) serão de enorme utilidade em nossa aproxi-
mação a Belo Monte, entre outras coisas porque nos depararemos com manifesta-
ções similares àquelas analisadas por Thompson.
Vejamos agora como tais vertentes teóricas confluem na pesquisa histórica so-
bre as crenças e religiões. Em texto publicado em meados dos anos 1970, dizia-se
que a “história religiosa situa-se hoje na confluência de três movimentos: a história
literária das doutrinas, a sociologia religiosa e a história econômica e social de corte
marxista”.222 Mas justamente a partir dessa época começaram a surgir novidades.
Com efeito, um dos campos privilegiados pela Historiografia mais recente, particu-
larmente por aquelas tendências mais abertas ao diálogo com a Antropologia, foi o
das religiões. Não tanto as instituições, suas estruturas internas ou doutrinas oficiais,
mas principalmente as crenças e práticas dos mais variados grupos, particularmente
aqueles em geral classificados como populares. E nesse campo avulta a figura de
Carlo Ginzburg, e suas várias propostas inovadoras, seja na forma de pensar a relação
cultura erudita – cultura popular, seja na capacidade de reconstruir cosmovisões reli-
giosas populares.223 Entre os inúmeros avanços teóricos e metodológicos trazidos para
a pesquisa historiográfica, saliento apenas aqueles voltados para a recuperação do que
ele mesmo chamou de “crenças populares substancialmente autônomas”.224 O uso de
autos inquisitoriais permitiu-lhe mergulhar em universo doutra forma desconhecido:
Domenico Scandella, vulgo Menocchio, e os benandanti testemunham cosmovisões
e práticas irredutíveis “a esquemas conhecidos”, apontando “para um estrato ainda
não examinado de crenças populares, de obscuras mitologias camponesas”.225 Por ou-
tro lado, esta imersão ao encontro de múltiplas trocas culturais permite avaliar com
maior densidade as possíveis relações entre religião e poder, entre práticas religiosas
e utopias sociais. A perspectiva micro-histórica leva a atentar aos filtros sociais pelos
quais são reescritas, em circunstâncias específicas, as tradições religiosas e permite
perceber a originalidade com que a experiência religiosa é vivida naquele contexto
particular.226 Não é preciso dizer o quanto essa forma de ver as coisas é relevante para
uma aproximação à experiência histórica e religiosa de Belo Monte.
96

Portanto, esse cruzamento entre História e Antropologia para um olhar acu-


rado e diferenciado sobre Belo Monte pretende que não apenas os processos que
fizeram a vida e a morte do vilarejo sejam melhor compreendidos, mas que se dê
conta de como os agentes envolvidos neste processo conflitivo o vivenciaram e
lhe deram sentido. Este tipo de investigação avança sobre campo minado, já que
se trata de recuperar o “direito à história” a gente sobre quem o comandante da
expedição militar que dizimou Belo Monte pode dizer: “É duro de crer que em
espíritos embotados, sem a mais insignificante parcela de cultura, penetre com
tanta veemência e enraizamento, o amor a uma ideia, a uma doutrina, um lábio
que sopre, um braço que dirija, uma cabeça que pense”.227

Apropriação/Recepção/Inscrição

Outro campo de pesquisas, muito variadas, que de alguma forma contribui


para este trabalho de conceber como a Bíblia fez história no Belo Monte e ao seu
redor, gira em torno dos conceitos de apropriação e recepção. A já referida história
cultural concede à categoria “apropriação” um lugar central, situando “uma histó-
ria social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais
(que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as
produzem”. Cabe atentar “às condições e aos processos que, muito concretamente,
determinam as operações de construção de sentido (na relação de leitura, mas em
muitas outras também)”.228
O conceito de apropriação se aproxima bastante de outro, mais utilizado no
campo da hermenêutica e dos estudos literários, o de recepção. Tanto num caso
como noutro, trata-se dos variados efeitos que determinada produção cultural é
capaz de suscitar nos sujeitos e grupos sociais. Este processo não é mecânico, mas
interage com diversos condicionantes. As inscrições simbólicas

são recebidas por indivíduos que estão situados em contextos sócio-históricos espe-
cíficos, e as características sociais destes contextos moldam as maneiras pelas quais
as formas simbólicas são por eles recebidas, entendidas e valorizadas. O processo
de recepção não é um processo passivo de assimilação; ao contrário, é um processo
criativo de interpretação e avaliação no qual o significado das formas simbólicas é
ativamente constituído e reconstituído. Os indivíduos não absorvem passivamente
formas simbólicas mas, ativa e criativamente, dão-lhes um sentido e, por isso, produ-
zem um significado no próprio processo de recepção [...] As maneiras pelas quais
as formas simbólicas são entendidas e pelas quais são avaliadas e valorizadas podem
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 97

diferir de um indivíduo para outro, dependendo das posições que eles ocupam
em instituições ou campos socialmente estruturados [...] Ao receber e interpretar
formas simbólicas, os indivíduos estão envolvidos em um processo contínuo de
constituição e reconstituição do significado [...].229

Essas considerações valem para as formas simbólicas em geral, que se inscre-


vem na cultura em combinatórias diversas, na medida em que condicionadas por
tantos fatores, como o tempo, o espaço, os sujeitos envolvidos, em seus distintos
lugares sociais, no processo comunicativo que supõe apreensões e ressignificações
(sem contar a radical singularidade de cada sujeito envolvido no processo). Isso
posto, vejamos a sugestão de Certeau a respeito da leitura, fazendo os devidos
alargamentos:

se portanto “o livro é um efeito (uma construção) do leitor”, deve-se considerar a


operação deste último como uma espécie de lectio, produção própria do “leitor”.
Este não toma nem o lugar do autor nem um lugar de autor. Inventa nos textos
outra coisa que não aquilo que era a intenção deles. Destaca-os de sua origem [...]
Combina os seus fragmentos e cria algo não-sabido no espaço organizado por sua
capacidade de permitir uma pluralidade indefinida de significações [...] Longe de
serem escritores, fundadores de um lugar próprio, herdeiros dos servos de antiga-
mente mas agora trabalhando no solo da linguagem, cavadores de poços e constru-
tores de casas, os leitores são viajantes; circulam nas terras alheias, nômades caçando
por conta própria através dos campos que não escreveram.230

De outro lado, este processo experimentado pelo leitor não é aleatório:

Esta lógica da apropriação é frequentemente partilhada por um grupo social, que


pode, portanto, ser descrito como uma “comunidade interpretativa”, ou, às vezes,
como uma “comunidade textual” na qual um livro é usado como um guia para os
pensamentos e ações do grupo. Essas noções de comunidade podem ser enganado-
ras, mas é igualmente difícil trabalhar sem elas.231

Mas até aqui se insistiu em uma faceta da questão: o efeito que a leitura pro-
duz no leitor, na relação que estabelece com o que é lido. Há que se considerar
também o passo que daí decorre: como, a partir do que foi lido e assumido, o leitor
(singular e/ou comunitário) impregna de significados as experiências que vive, e
ao fazê-los, reinventa-as, redireciona-as: “pense-se na frequência com que a leitura
alterou o curso da história – a leitura de Paulo por Lutero, a leitura de Hegel por
Marx, a leitura de Marx por Mao”.232 Mas não basta a constatação: é preciso dar o
98

passo seguinte, fazendo as perguntas pelas impressões paulinas de Lutero na histó-


ria; as marcas hegelianas nos movimentos inspirados em Marx; a respeito de que
forma, com o alemão, Mao leu a China e a refundou...
Assim se constituem, a partir dos percursos investigativos já feitos, com as con-
quistas e lacunas identificadas, e com as referências que procurei aqui estabelecer, al-
gumas questões que as páginas seguintes tratam de enfrentar. A diversificada recepção
de um determinado texto – em suas expressões distintas, para além da letra impressa,
em circunstâncias diversas ou por distintos leitores: como a Bíblia, em seu conjun-
to ou em partes, lida diretamente ou chegada aos sujeitos por um sem-número de
filtros, incidiu na história do Belo Monte? Num movimento inverso, emerge a per-
gunta sobre as múltiplas leituras disponíveis a uma determinada personagem ou em
algum contexto específico.233 Ambas as variantes se encontram no contexto de Belo
Monte, desdobrando questões como as seguintes: que impactos a leitura e recepção/
apropriação da Bíblia terá causado na história empolgante e terrível do arraial conse-
lheirista? O que dizer das leituras de Antonio Conselheiro? De que forma elas com-
põem sua liderança sobre o Belo Monte e imprimem sua marca nele? São questões
que valem para os outros sujeitos envolvidos com o arraial, feitos os devidos ajustes.
A empreitada é exigente, e a assumo tomando como “inscrição” o modo como
para cada sujeito de um conjunto se estabelece a sobredeterminação de sentidos na
ordem simbólica, determinante da singularidade que o constitui, sem que se possa,
obviamente tratar das particularidades que cada um desses sujeitos comporta. Reco-
nheço no Belo Monte a existência de uma inscrição fundante, a da Bíblia, por meio
de inúmeros filtros e mediações, capaz de aglutinar sujeitos em torno de significa-
ções ordenadas e passiveis de serem partilhadas. Estes traços primordiais constituem
protótipos de representações que se ampliam produzindo recomposições de sentidos
pela via de dispositivos de identificações, os quais se prestam sequencialmente a no-
vos arranjos, montando redes de significações que agregam, integram, rompem e
apartam, fomentando a combinatória, e também o choque, resultante de versões e/
ou perversões das concepções do mundo, na cultura. Por isso o horizonte da em-
preitada se amplia, alcançando também os setores que determinaram, em nome da
mesma Bíblia, ou pelo recurso a ela, a inviabilidade do Belo Monte.
Subjacente a essa perspectiva está o entendimento de que a interpretação da
cena existencial na qual os sujeitos estão metidos é sempre referida a um Outro que
não é um outro qualquer – diria Lacan – mas aquele que tem o poder de indicar
o mundo, em seu limite e em sua expansão possível. O simbólico no humano tece
a representação possível para o impossível de definir na existência humana. Sua
consistência é enodada por uma formulação estrutural, textual, composta de en-
grenagens certamente determinadas por sua fundação, estabelecendo assim que os
vértices de sua extensão sejam atados por referências articuladas capazes de orientar
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 99

saídas, sempre precárias e provisórias para o mal-estar na civilização apontado por


Freud. O que não se erige sem tumultos, muitas vezes tremendos, de que Belo
Monte é, a um só tempo, entusiasmante e trágica expressão.
O exame desse fenômeno histórico-social revela essas operações e demonstra
a impossibilidade de uma interpretação irredutível dos inúmeros feixes de signifi-
cações em jogo, assim como a potência de suas consequências; a despeito disso, a
tarefa se impõe. E, tomando em conta que “os documentos raramente mostram
os leitores em atividade, modelando o sentido a partir dos textos, e os próprios
documentos são textos, o que requer interpretação”234, e conferindo à “leitura” o
maior alcance semântico possível, as páginas seguintes tomam os sujeitos da saga
belomontense nas suas ações e circunstâncias imprimindo marcas e inventando
sentidos ao que experimentaram a partir de repertórios bíblicos a eles apresentados
e neles inscritos.

__________

NOTAS

1  Situo como “paradigma euclidiano”, o perfil que o escritor fluminense de-


senhou do arraial conselheirista, marcado pela loucura carismática do Conselheiro
e pelo milenarismo. Quanto a este último, é tomado, já por Euclides, de forma
confusa, ora se referindo à proximidade do fim dos tempos, ora dizendo das espe-
ranças pelo que haveria de vir depois. Oportunamente esta questão será tratada.
Por ora, ressalte-se que os autores que falarão de milenarismo em Belo Monte via
de regra carecem do rigor necessário quanto ao manuseio deste conceito.
2  Sirvo-me da versão publicada independente do livro Bahia: imagens da ter-
ra e do povo (1951), intitulada: Canudos: cinquenta anos depois (1947) (Conselho
Estadual de Cultura/Academia de Letras da Bahia/Fundação Cultural do Estado,
Salvador, 1993). O capítulo “Os sobreviventes” ocupa as p.39-53. Sérgio Guerra
salienta que algumas das falas aparecem adaptadas pelo jornalista a uma linguagem
e sintaxe pouco condizentes com o estilo sertanejo (Universos em confronto: Canu-
dos x Bello Monte. Uneb, Salvador, 1993, p.61).
3  Odorico Tavares. Canudos: cinquenta anos depois (1947)..., p.48.
4  Odorico Tavares. Canudos: cinquenta anos depois (1947)..., p.50.
5  Odorico Tavares. Canudos: cinquenta anos depois (1947)..., p.48.
100

6  A primeira obra de Calasans sobre Belo Monte, intitulada O ciclo folclórico


do Bom Jesus Conselheiro. Contribuição ao estudo da campanha de Canudos (Tipo-
grafia Beneditina, Salvador, 1950; edição facsimilar pela Edufba, Salvador, 2002),
ainda não incorpora os dados das entrevistas feitas pelo autor com sobreviventes
do arraial conselheirista. Mas sua produção é extensíssima, chegando pelo menos
até 1997, como se pode ver na bibliografia deste trabalho. Assim, se o situo nesta
primeira fase da pesquisa pós-euclidiana sobre Belo Monte, faço-o principalmente
para destacar o pioneirismo de sua obra.
7  Título de uma entrevista com o mestre Calasans, organizada por José Car-
los Sebe Bom Meihy, e publicada em Luso-Brazilian Review. Wisconsin, Madison,
1993. v.30, n.2, p.23-33.
8  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova. 2 ed., Renes/Instituto Nacional do
Livro, Rio de Janeiro/Brasília, 1983 (primeira edição em 1964).
9  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.10.
10  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.123.
11  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.68. Segundo Euclides, a ca-
deia existente em Belo Monte abrigava “os que haviam perpetrado o crime abomi-
nável de faltar às rezas”, “presos pelos que haviam cometido a leve falta de alguns
homicídios” (Os sertões: campanha de Canudos. 4 ed., Ateliê, São Paulo, 2009,
p.302).
12  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.31. Essas são palavras de Ner-
tan, que resume o que diz ter ouvido de Honório.
13  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.127-129.
14  José Calasans, in: Marco Antonio Villa (org.) Calasans, um depoimento
para a história. Uneb, Salvador, 1998, p.55.
15  Alba Zaluar Guimarães. “Os movimentos ‘messiânicos’ brasileiros: uma
leitura”. In: O que se deve ler em Ciências Sociais no Brasil. Cortez/Anpocs, São Pau-
lo, 1986, n.1, p.143. O estudo de Montenegro, publicado originalmente em 1954,
tornou-se depois, com algumas modificações, parte de uma obra maior, intitulada
Fanáticos e cangaceiros (Henriqueta Galeno, Fortaleza, 1973, p.107-179). É desta
edição que me sirvo.
16  Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros..., p.175.
17  Manoel Benício foi um jornalista que acompanhou parte das atividades
da expedição militar que haveria de derrotar Belo Monte. Expulso do palco da
guerra por conta de suas reportagens críticas à ação do Exército, escreveu O rei dos
jagunços, que só haveria de ser reeditado em 1997.
18  Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros..., p.175. Temos aí uma
crítica a Euclides, sobre um tema que volta e meia retorna nos estudos sobre a
itinerância do beato e o estabelecimento de Belo Monte.
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 101

19  Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros..., p.123.


20  Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros..., p.175.
21  Os artigos tiveram o mesmo título, “A guerra camponesa de Canudos
(1896-1897)”. In: Revista Brasiliense. São Paulo, 1958. n.20, p.128-151 e n.21,
p.162-183. Reelaborados, passaram a fazer parte do livro Cangaceiros e fanáticos,
publicado em 1963 (6 ed., Civilização Brasileira/UFC, Rio de Janeiro, 1980, p.71-
118). A esta edição me refiro neste trabalho. Destaque-se o empenho do autor, mi-
litante do Partido Comunista Brasileiro, em estabelecer uma análise comparativa
entre vários movimentos camponeses no início da República, entre os quais o de
Belo Monte se situa.
22  Eram “milhares de párias do campo armados em defesa da própria sobre-
vivência, em luta, ainda que espontânea, não consciente, contra a monstruosa e
secular opressão latifundiária e semifeudal” (Cangaceiros e fanáticos..., p.77).
23  Rui Facó. Cangaceiros e fanáticos..., p.69. Parece difícil que Euclides não
esteja entre os criticados aí.
24  Algo que o próprio Euclides veiculara; ver Rui Facó. Cangaceiros e faná-
ticos..., p.89-90.
25  Rui Facó. Cangaceiros e fanáticos..., p.93.
26  Como foi bem notado por João Arruda (Canudos: messianismo e conflito
social. UFC/Secult, Fortaleza, 1993, p.145).
27  Rui Facó. Cangaceiros e fanáticos..., p.88.
28  Rui Facó. Cangaceiros e fanáticos..., p.115-116.
29  Rui Facó. Cangaceiros e fanáticos..., p.50.
30  Rui Facó. Cangaceiros e fanáticos..., p.99.
31  Há indícios de que apenas no final da guerra, quando já se encaminhava
a destruição do arraial, João Abade teria persistido no propósito bélico, aí contra a
vontade do Conselheiro.
32  Rui Facó. Cangaceiros e fanáticos..., p.116.
33  Maria Isaura Pereira de Queiroz. O messianismo no Brasil e no mundo. 3
ed., Alfa-Ômega, São Paulo, 2003, p.225-241.
34  Lísias Nogueira Negrão. “Apresentação”. In: Josildeth Gomes Consorte
e Lísias Nogueira Negrão. O messianismo no Brasil contemporâneo. FFLCH-USP/
CER, São Paulo, 1984, p.10. Maria Cristina Pompa indica as seguintes “aquisi-
ções” trazidas pelo trabalho de Maria Isaura: “a superação de interpretações aprio-
rísticas (jornalísticas, literárias, psicopatológicas) tendentes a classificar os movi-
mentos religiosos rústicos no quadro de uma patologia social desviante; a utilização
de seguros parâmetros sociológicos reconduzindo o fenômeno à lógica social em
que ele recupera seu caráter de ‘normalidade’’ ou, até, de ‘necessidade’; a intuição
da profunda ligação entre movimentos e catolicismo ‘rustico’; a elaboração, fi-
102

nalmente, de critérios adequados para a construção de uma teoria sociológica do


messianismo. A articulação e a plasticidade das categorias interpretativas utilizadas
pela autora e sua ampliação de perspectivas superam também as teses reducionistas
de autores brasileiros que, na linha de Hobsbawm, encaram os movimentos como
reação ao choque entre classes sociais e os definem, portanto, como formas ‘arcai-
cas’ ou ‘pré-políticas’ de revolução social” (“A construção do fim do mundo: para
uma releitura dos movimentos sócio-religiosos do Brasil ‘rústico’”. In: Revista de
Antropologia. São Paulo, 1998. v.41, n.1, p.181-182).
35  Maria Isaura Pereira de Queiroz. O messianismo no Brasil e no mundo...,
p.226 (a citação feita no interior do texto é de Nina Rodrigues). Mais adiante ela
diz: “é em Canudos, no Império de Belo Monte, que o Paraíso Terrestre se colocava
ao alcance dos fiéis” (p.227).
36  Maria Isaura Pereira de Queiroz. O messianismo no Brasil e no mundo...,
p.31, nota 23.
37  Maria Isaura Pereira de Queiroz. O messianismo no Brasil e no mundo...,
p.236.
38  Maria Isaura Pereira de Queiroz. O messianismo no Brasil e no mundo...,
p.240. Já se tratou da suposta depredação de propriedades, algo que parece não
haver ocorrido no cenário da trajetória de Belo Monte. Por outro lado, não se pode
deixar de notar que a autora superdimensiona tais inovações religiosas, ao dar cré-
dito a fontes secundárias que afirmam que os sertanejos criam em sua ressurreição
imediata após a morte; daí a coragem com que enfrentaram as sucessivas expedi-
ções militares enviadas contra o arraial. (p.240, citando Aristides Milton).
39  Maria Isaura tende a reduzir os diversos movimentos analisados aos ele-
mentos que supostamente teriam em comum (Alba Zaluar Guimarães. “Os movi-
mentos ‘messiânicos’ brasileiros: uma leitura”..., p.143-145).
40  Maria Isaura Pereira de Queiroz. O messianismo no Brasil e no mundo...,
p.237. Por outro lado, Maria Isaura não escapa de um dualismo comum: o de
considerar que nos movimentos tomados por “messiânicos” estariam “ou bandidos
sanguinários e desordeiros ou trabalhadores pacíficos e organizados; ou hereges
fanáticos e ignorantes ou fiéis tradicionais e ortodoxos; ou camponeses revolu-
cionários ou sertanejos conservadores” (Alba Zaluar Guimarães. “Os movimentos
‘messiânicos’ brasileiros: uma leitura”..., p.141).
41  Maria Isaura Pereira de Queiroz. O messianismo no Brasil e no mundo...,
p.343.
42  Maria Isaura Pereira de Queiroz. O messianismo no Brasil e no mundo...,
p.235.
43  Como bem mostrou João Arruda (Canudos: messianismo e conflito so-
cial, p.134-137).
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 103

44  Maria Isaura Pereira de Queiroz. O messianismo no Brasil e no mundo...,


p.226. Maira Isaura ecoa Euclides, para quem os incidentes que precipitaram o
estabelecimento de Belo Monte foram “fato de pouca monta” (Os sertões..., p.285).
45  Maria Isaura Pereira de Queiroz. O messianismo no Brasil e no mundo...,
p.237. A autora terá esquecido que a guerra começou porque madeira comprada e
paga de antemão pelo Conselheiro deliberadamente não foi entregue?
46  Discute-se se Euclides tomou contato com algum caderno do Conselhei-
ro antes de escrever Os sertões. É verdade que o referido manuscrito traz a anotação
de que terá passado pelas mãos dele. Mas isso terá ocorrido alguns meses antes de
sua morte, seis anos após o surgimento do “livro vingador”. Ao editá-lo, Ataliba
Nogueira opinou que Euclides “não conheceu nenhum manuscrito de António
Conselheiro e muito menos a obra que passamos a analisar” (António Conselheiro e
Canudos: revisão histórica. 3 ed., Atlas, São Paulo, 1997, p.40; veja Roberto Ven-
tura. “Canudos como cidade iletrada: Euclides da Cunha na urbs monstruosa”. In:
Benjamin Abdala Jr. e Isabel Alexandre [org.]. Canudos: palavra de Deus, sonho da
terra. Senac/Boitempo, São Paulo, 1997, p.96). No entanto, as afirmações que a
esse respeito faz em Os sertões serviram para lançar sobre as prédicas do líder religio-
so toda sorte de preconceito e depreciação. Com efeito, o épico euclidiano garante
que no final da guerra foram encontrados “pobres papéis, em que a ortografia
bárbara corria parelhas com os mais ingênuos absurdos e a escrita irregular e feia
parecia fotografar o pensamento torturado [...] Valiam tudo porque nada valiam.
Registravam as prédicas de Antônio Conselheiro; e, lendo-as, põe-se de manifesto
quanto eram elas afinal inócuas, refletindo o turvamento intelectual de um infeliz.
Porque o que nelas vibra em todas as linhas, é a mesma religiosidade difusa e incon-
gruente...” (Os sertões..., p.318). Outra passagem também menciona as prédicas,
agora em sua proclamação oral: “era assombroso, afirmam testemunhas existentes.
Uma retórica [...] desconexa, abstrusa, agravada, às vezes, pela ousadia extrema das
citações latinas; transcorrendo em frases sacudidas; misto inextricável e confuso de
conselhos dogmáticos, preceitos vulgares da moral cristã e de profecias esdrúxulas
[...] Nestas prédicas, em que fazia vitoriosa concorrência aos capuchinhos vagabun-
dos das missões, estadeava o sistema religioso incongruente e vago” (p.274).
47  Excertos desse material já haviam sido publicados em 1953, pela revista
O Cruzeiro, e consta que Honório Vilanova, afilhado do Conselheiro, “guardava
ciosamente no fundo de um baú” um exemplar dela (Nertan Macedo. Memorial
de Vilanova..., p.59). Mas essa publicação nenhuma repercussão teve nos estudos
sobre Belo Monte e o Conselheiro.
48  Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.17-34.
49  Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.34.
50  Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.35-55.
104

51  Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.40. Ataliba a essa


altura não conhecia a Caderneta de campo de Euclides (publicada apenas em 1975)
onde tais quadras se multiplicam e D. Sebastião aparece muitas vezes.
52  Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.42.
53  Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.42.
54  Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.23.
55  Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.28-29. A propósito,
Ataliba afirma que frei João Evangelista só tinha três anos de Brasil quando foi envia-
do a Belo Monte e, portanto, não estava suficientemente preparado para a delicadeza
da missão a ele confiada. Na verdade o frei já estava no Brasil há vinte e três anos,
e já realizara várias missões no sertão, como se pode depreender da leitura de suas
anotações, até hoje conservadas nos arquivos do Convento da Piedade, em Salvador.
56  Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.55. Poder-se-ia per-
guntar, nessa esteira, como seria o virtual encontro entre o Conselheiro e o arce-
bispo...
57  Como, aliás, é inadequada a afirmação de Ataliba de que a doutrina do
direito divino dos reis é “condenada pela Igreja”. De que adianta afirmar a conde-
nação de tal doutrina se a ela tantas vezes se recorreu, da parte dos reis mas tam-
bém do poder eclesiástico? E não só o Conselheiro é partidário dela; a seu modo a
argumentação de frei João Evangelista a recupera, como ainda se poderá ver. Para
completar o quadro, registre-se um último estudo de Ataliba, apresentado depois
das prédicas, que versa sobre “a economia na vida dos canudenses” (António Conse-
lheiro e Canudos..., p.201-216), com dados interessantes para se reconstruir a vida
e o trabalho cotidiano no arraial. O autor aproveita a oportunidade para, mais uma
vez, desautorizar a versão euclidiana, seja no tocante à vida do Conselheiro, seja em
relação a aspectos da vila por ele liderada.
58  Sirvo-me desta segunda edição, intitulada Canudos: a guerra social (Elo,
Rio de Janeiro, 1987). A citação é da p.12.
59  Edmundo Moniz. Canudos: a guerra social..., p.15.
60  Edmundo Moniz. Canudos: a guerra social..., p.26.
61  Vejam-se, por exemplo, as p.32-33.
62  Edmundo Moniz. Canudos: a guerra social..., p.36-37.
63  Edmundo Moniz. Canudos: a guerra social..., p.49. Certamente se deve
discutir essa afirmação quanto a Ibiapina. Por outro lado, a sugestão quase risível
de ter sido a leitura da Utopia a inspiração para o Belo Monte (p.41) deriva do
fato de seu autor, Thomas Morus, ser citado em uma passagem do caderno de
prédicas editado por Ataliba Nogueira, não como autor do livro, que o Con-
selheiro certamente não conhecia, mas como mártir, condenado à morte por
Henrique VIII.
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 105

64  Edmundo Moniz. Canudos: a guerra social..., p.273.


65  Edmundo Moniz. Canudos: a guerra social..., p.274.
66  Edmundo Moniz. Canudos: a guerra social..., p.278. O Conselheiro
transcreve aí a passagem de Lucas 14,12-14.
67  Duglas Teixeira Monteiro. “Um confronto entre Juazeiro, Canudos e
Contestado”. In: Boris Fausto (org.) O Brasil republicano: sociedade e instituições
(1889-1930). 4 ed., Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1990, p.39-92.
68  Duglas Teixeira Monteiro. “Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contesta-
do”..., p.71.
69  Duglas Teixeira Monteiro. “Um confronto entre Juazeiro, Canudos e
Contestado”..., p.58-60.
70  Duglas Teixeira Monteiro. “Um confronto entre Juazeiro, Canudos e
Contestado”..., p.59.
71  Duglas Teixeira Monteiro. “Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contesta-
do”..., p.64.
72  Duglas Teixeira Monteiro. “Um confronto entre Juazeiro, Canudos e
Contestado”..., p.68. Duglas refere-se a Francisco Benjamim de Souza Netto, autor
de uma resenha ao livro publicado por Ataliba Nogueira, “a coerência entre o seu
[do Conselheiro] ‘discurso’ e a sua ‘obra’ aparece-nos como uma questão insuscep-
tível de ser resolvida na base de estereótipos pré-fabricados. É toda a história como
devir da consciência do nordestino, das formas religiosas desta consciência, que
emerge como problema irresolvido” (In: Simpósio. São Paulo, 1975. n.13, p.37).
73  Duglas Teixeira Monteiro. “Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contesta-
do”..., p.69.
74  Duglas Teixeira Monteiro. “Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contesta-
do”..., p.70.
75  José Luiz Fiorin. A ilusão da liberdade discursiva: uma análise das prédicas
de Antônio Conselheiro. A pesquisa se desenvolveu na área de Linguística, sob
orientação de Duglas Teixeira Monteiro, e foi apresentada à Faculdade de Filoso-
fia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Fiorin resumiu seu
trabalho num artigo intitulado “O discurso de Antônio Conselheiro” (In: Religião
e Sociedade. Rio de Janeiro, 1980. n.5, p.95-129).
76  José Luiz Fiorin. A ilusão da liberdade discursiva..., p.1.
77  É o caso do recente O império de Belo Monte: vida e morte de Canudos (Per-
seu Abramo, São Paulo, 2001), de Walnice Nogueira Galvão, onde as conclusões de
Fiorin a respeito das prédicas são praticamente reproduzidas, e também na apresenta-
ção, da mesma autora, às prédicas de outro caderno atribuído a Antonio Conselhei-
ro, editado de forma apenas fragmentária (“Piedade e paixão: os sermões de Antonio
Conselheiro”. In: Breviário de Antonio Conselheiro. Edufba, Salvador, 2002, p.11-20).
106

78  José Luiz Fiorin. A ilusão da liberdade discursiva..., p.5.


79  José Luiz Fiorin. A ilusão da liberdade discursiva..., p.8.
80  José Luiz Fiorin. “O discurso de Antônio Conselheiro”..., p.109. O Concílio
de Trento ocorreu entre 1545 e 1563, em reação aos movimentos da Reforma Protes-
tante. Já o Concílio Vaticano I, realizado entre 1869 e 1870, propôs-se como reação da
instituição eclesiástica aos movimentos liberalizantes da Europa do século XIX.
81  José Luiz Fiorin. “O discurso de Antônio Conselheiro”..., p.103.
82  José Luiz Fiorin. “O discurso de Antônio Conselheiro”..., p.105.
83  José Luiz Fiorin. “O discurso de Antônio Conselheiro”..., p.109.
84  Diferentemente dos concílios anteriores, aquele conhecido como Vaticano
II, realizado entre 1962 e 1965, pretendeu colocar a Igreja Católica em diálogo com
o mundo moderno e sensibilizando-a para os seus problemas e suas conquistas.
85  José Luiz Fiorin. “O discurso de Antônio Conselheiro”..., p.101-102.
86  José Luiz Fiorin. “O discurso de Antônio Conselheiro”..., p.103-104.
87  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.129.
88  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório apresentado pelo Revd. Frei
João Evangelista de Monte Marciano ao Arcebispado da Bahia sobre Antonio Con-
selheiro e seu séquito no arraial dos Canudos. Correio de Notícias, Salvador, 1895
(edição fac-símile pelo Centro de Estudos Baianos, Salvador, 1987), p.5.
89  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Sobre a confissão”. In: Tempestades
que se levantam no coração de Maria por ocasião do mistério da Encarnação. Cader-
no manuscrito, Belo Monte, 1897, p.517. Editado em Ataliba Nogueira. António
Conselheiro e Canudos..., p.176.
90  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Sobre a missa”. In: Tempestades...,
p.510.511. Editado em Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.175.
91  José Luiz Fiorin. A ilusão da liberdade discursiva..., p.101-118: “O sentido do
discurso conselheirista é o discurso católico do século XIX, de que ele é um dos por-
ta-vozes no sertão baiano” (p.118). O livro do padre Manoel José Gonçalves Couto,
Missão abreviada para despertar os descuidados, converter os pecadores e sustentar o fruto das
missões (9 ed., Sebastião José Pereira, Porto, 1873), teve larga penetração também nos
sertões nordestinos, na segunda metade do século XIX e inicio do XX, e servia de base
para pregações, de padres e leigos. O livro, conhecido pelo seu caráter rigorista, era re-
comendado “para os párocos, para os capelães, para qualquer sacerdote que deseja salvar
almas e finalmente para qualquer pessoa que faz oração em público” (folha de rosto).
92  Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um molei-
ro perseguido pela Inquisição. Companhia das Letras, São Paulo, 1987; Edward P.
Thompson. “A economia moral da multidão inglesa no século XVIII”. In: Costumes em
comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Companhia das Letras, São Paulo,
1998, p.150-202.
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 107

93  Veja sua crítica a Fiorin em “Só Deus é grande”..., p.360-361.


94  José Luiz Fiorin. A ilusão da liberdade discursiva..., p.10.
95  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”: a mensagem religiosa de Antonio
Conselheiro. Loyola, Sao Paulo, 1990. Calasans emitiu o parecer sobre o livro de
Otten na conversa que travamos a 11/12/99.
96  Alexandre Otten. “A influência do ideário religioso na construção da
comunidade de Belo Monte”. In: Luso-Brazilian Review. Wisconsin, Madison,
1993. v.30, n.2, p.71-72.
97  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.247-328. Talvez não seja
exagero afirmar que Otten recupera um olhar abrangente sobre Belo Monte
que não se via desde o trabalho já comentado de Abelardo Montenegro. Quan-
to ao que ele entende por apocalíptica (aliás, o sentido prioritário que se deve
dar ao termo também neste trabalho), deve-se pensar fundamentalmente na
“escatologia apocalíptica”, ou seja, aquela percepção segundo a qual “a nova
ordem ou realidade [a ser instaurada em breve] não é uma reabilitação da or-
dem presente [...] mas o seu fim e destruição”. Mas encontraremos o termo
designando determinado universo simbólico, de alguma forma cristalizado em
torno da perspectiva escatológico-apocalíptica, capaz de oferecer a dado grupo
elementos para a codificação de sua identidade e para a interpretação da reali-
dade circundante (Martinus de Boer. “A influência da apocalíptica judaica
sobre as origens cristãs: gênero, cosmovisão e movimento social”. In: Estu-
dos de religião. São Bernardo do Campo, 2001. n.19, p.11-24; a citação é
da p.13).
98  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.345.347.
99  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.345. Otten faz eco a Josilde-
th Gomes Consorte (“A mentalidade messiânica”. In: Ciências da Religião. São
Paulo, 1983. v.1, n.1, p.47).
100  As citações deste parágrafo são tiradas de Alexandre Otten. “Só Deus
é grande”..., p.247.
101  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.273-287.
102  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.284.
103  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.345.
104  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.287-299.
105  Procurei fazê-lo em outro trabalho, Abrindo as portas do céu: apon-
tamentos para a salvação, segundo Antonio Vicente Mendes Maciel (Livre-
docência em Ciências da Religião, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, 2009); nele avanço para além do que aqui será abordado a respeito desse
manuscrito de 1895. Este trabalho está em vias de ser publicado, e inclui a
transcrição das prédicas do referido caderno.
108

106  Para citar alguns exemplos, o período dos centenários viu surgirem as re-
edições dos trabalhos de Manoel Benício, Alvim Martins Horcades e Constantino
Nery (para os dados completos, ver bibliografia no item “Fontes”).
107  João Arruda. Canudos: messianismo e conflito social..., p.15.
108  João Arruda. Canudos: messianismo e conflito social..., p.16-17.
109  João Arruda. Canudos: messianismo e conflito social..., p.10.
110  João Arruda. Canudos: messianismo e conflito social..., p.81.
111  João Arruda. Canudos: messianismo e conflito social..., p.91.
112  João Arruda. Canudos: messianismo e conflito social..., p.82. Arruda não
cita que textos apócrifos seriam esses.
113  João Arruda. Canudos: messianismo e conflito social..., p.82.
114  José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro inimigo:
a guerra simbólica contra Canudos. Edufba, Salvador, 1995; A ideologia dos discur-
sos sobre Canudos. Dissertação de Mestrado, UFBA, Salvador, 1979.
115  José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro inimi-
go..., p.187.
116  José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro inimi-
go..., p.187.
117  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.278.-279.
118  José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro inimi-
go..., p.119.
119  José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro inimi-
go..., p.107-146.
120  José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro inimi-
go..., p.123.
121  José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro inimi-
go..., p.118-119: “É precisamente essa determinação insensata de reeditar uma an-
terioridade consumada [da Igreja Católica] que configura a grandeza e o malogro
da empresa profética de Antônio Conselheiro” (p.119).
122  Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra. Ática, São Paulo, 1995.
123  Marco Antonio Villa. Canudos: o campo em chamas. Brasiliense, São
Paulo, 1992.
124  Marco Antonio Villa. Canudos: o campo em chamas..., p.9.Na obra
seguinte o autor não diz diferente: “procurei retratá-los [os acontecimentos relati-
vos ao arraial conselheirista] como eles eram e não como eu gostaria que fossem”
(p.10).
125  Ivânia Campigotto Aquino mostrou vários exemplos em que as opções
subjetivas de Villa se fazem presentes na redação de seu trabalho (Literatura e his-
tória em diálogo: um olhar sobre Canudos. UPF, Passo Fundo, 2000, p.71-88).
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 109

Para uma crítica importante a aspectos gerais da obra de Villa pode-se ler Edwin
Reesink. “Curiosidades em torno de Canudos”. In: http://www.portfolium.com.
br/resenha-edwin.htm (10/03/03).
126  Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.43.
127  Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.39-43.
128  Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.11. Um pouco antes
constatava: “Há uma certa insistência deliberada em retirar o componente religioso
[das análises sobre Belo Monte], como se a presença da religião colocasse o movi-
mento em um patamar inferior frente a movimentos laicos” (p.9).
129  Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.83.
130  Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.81 e 39, respecti-
vamente.
131  Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.203.
132  Penso aqui no já citado O queijo e os vermes (p.24-26).
133  Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.12.
134  Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.231-234.
135  Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.239. Em relação ao
messianismo, Villa afirma que Antonio Conselheiro não estimulou nenhum reco-
nhecimento de sua pessoa nesse sentido e que no vilarejo não se viveu nenhuma
desse teor (p.240-241).
136  Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.236.
137  Robert Levine. O sertão prometido: o massacre de Canudos. Edusp, São
Paulo, 1995. A avaliação é de Eduardo Hoornaert. (Os anjos de Canudos: uma re-
visão histórica. Vozes, Petrópolis, 1997, p.103).
138  Robert Levine. O sertão prometido…, p.30.33.
139  Nesse sentido, deve ser lida uma vigorosa crítica à obra de Levine, por
Mario Maestri (“Elogio à dominação: R. M. Levine e a república sertaneja de Belo
Monte”. In: http://www.portfolium.com.br/resenha-maestri.htm [09/03/03]).
140  Robert Levine. O sertão prometido…, p.179. A última frase é simples-
mente ridícula...
141  Robert Levine. O sertão prometido…, p.288 (a citação é de Gurevitch).
142  Robert Levine. O sertão prometido…, p.308.
143  Robert Levine. O sertão prometido…, p.301. Logo no início do livro
se diz que as milhares de pessoas que seguiam o Conselheiro eram atraídas por
sua “loucura carismática” (p.22). No fim do livro a sentença definitiva: nos
seus últimos anos, portanto em Belo Monte, a “psicose” do Conselheiro se
encontrava “bem mais séria” (p.339).
144  Robert Levine. O sertão prometido…, p.304, 288 e 193, respectiva-
mente.
110

145  Deixo de lado algumas afirmações simplesmente equivocadas e gratui-


tas, feitas sem qualquer justificativa ou fonte, como a seguinte: “O fato de as de-
votas moradoras de Canudos aceitarem um status inferior e ainda assim permane-
cerem fiéis até o fim revela bem a natureza intransigente da religiosidade sertaneja,
que as julgava pecadoras pelo simples fato de terem nascido mulheres” (O sertão
prometido..., p.230).
146  Eduardo Hoornaert. Os anjos de Canudos...
147  Eduardo Hoornaert. Os anjos de Canudos..., p.32.
148  O cântico “Queremos Deus” ilustra as “novas e combativas devoções”
advindas com o processo de romanização, que “contrastam com a doçura das antigas
cantorias lusitanas, nas quais tanto o Conselheiro como o povo do sertão se sentem
mais à vontade” (Os anjos de Canudos..., p.42), ou era um dos “primores do cancio-
neiro de Canudos”, pouco recomendável segundo as autoridades eclesiásticas (p.43)?
149  Eduardo Hoornaert. Os anjos de Canudos..., p.48. O conceito “nego-
ciação” tem sido promissor na análise de situações conflitivas, para dar conta das
diversas dimensões, focos e grupos envolvidos (João José Reis e Eduardo Silva.
Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. Companhia das Letras,
São Paulo, 1999).
150  Eduardo Hoornaert. Os anjos de Canudos..., p.51.
151  Eduardo Hoornaert. Os anjos de Canudos..., p.121-133.
152  Eduardo Hoornaert. Os anjos de Canudos..., p.122.
153  Eduardo Hoornaert. Os anjos de Canudos..., p.124.
154  Eduardo Hoornaert. Os anjos de Canudos..., p.72-73.
155  Eduardo Hoornaert. Os anjos de Canudos..., p.131.
156  Eduardo Hoornaert. Os anjos de Canudos..., p.51.121.
157  Vicente Dobroruka. Antônio Conselheiro: o beato endiabrado de Canu-
dos. Diadorim, Rio de Janeiro, 1997, p.12.
158  Vicente Dobroruka. Antônio Conselheiro..., p.11.
159  Vicente Dobroruka. Antônio Conselheiro..., p.12. O autor se insere cons-
cientemente na perspectiva da micro-história tal qual sugerida por Carlo Ginzburg
no seu já citado O queijo e os vermes, adotando como referencial teórico principal a
“descrição densa” de Clifford Geertz.
160  Vicente Dobroruka. Antônio Conselheiro..., p.136.
161  Vicente Dobroruka. Antônio Conselheiro..., p.151-161.
162  Euclides da Cunha. Caderneta de campo. Cultrix, São Paulo, 1975, p.58.
163  Vicente Dobroruka. Antônio Conselheiro..., p.71-98. José Aras, grande
conhecedor das tradições e memórias populares sobre o Belo Monte, foi filho de
gente que teve contato com o Conselheiro.
164  Vicente Dobroruka. Antônio Conselheiro..., p.90.
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 111

165  Vicente Dobroruka. Antônio Conselheiro..., p.94.


166  Obviamente não suponho que o Conselheiro não seja fruto do sertão,
mas entre o universo conceitual e teológico dele e o de seus seguidores há distinções
que não podem ser minimizadas.
167  Euclides da Cunha. Diário de uma expedição. Companhia das Letras,
São Paulo, 2000, p.111.
168  Walnice Nogueira Galvão. O império de Belo Monte: vida e morte de Ca-
nudos...
169  Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.118. Euclides teria
recolhido a expressão de um artigo publicado em jornal da região em 1894.
170  Henrique Duque-Estrada Macedo Soares. A guerra de Canudos. 3 ed., Phi-
lobiblion/INL, Rio de Janeiro/Brasília, 1985, p.44 (a expressão é do próprio autor).
171  Principalmente em seu No calor da hora: a guerra de Canudos nos jor-
nais (3 ed., Ática, São Paulo, 1994). A própria Maria Isaura reconhecia que os da-
dos recolhidos eram frágeis, “tudo muito insuficiente para se poder levantar sequer
a hipótese de que o Conselheiro tivesse realmente criado ‘instituições imperiais’”
(O messianismo no Brasil e no mundo..., p.235, n.64).
172  Walnice Nogueira Galvão. O império de Belo Monte..., p.44-45.
173  Hoornaert já o sinalizara a partir das indicações de Manoel Benício (Os
anjos de Canudos..., p.32-38).
174  Walnice Nogueira Galvão. O império de Belo Monte..., p.47.
175  Walnice Nogueira Galvão. O império de Belo Monte..., p.47.
176  Walnice Nogueira Galvão. O império de Belo Monte..., p.31.
177  E parece mesmo não saber da existência deste trabalho, já que recorre
apenas a Fiorin na consideração das prédicas editadas por Ataliba Nogueira.
178  Walnice Nogueira Galvão. O império de Belo Monte..., p.46.
179  Walnice Nogueira Galvão. O império de Belo Monte..., p.108.
180  Dawid Danilo Bartelt. Sertão, república e nação. Edusp, São Paulo, 2009.
181  Dawid Danilo Bartelt. Sertão, república e nação..., p.80.
182  Dawid Danilo Bartelt. Sertão, república e nação..., p.81.
183  Segundo ele, Otten e Hoornaert ainda pensam que o Conselheiro apre-
sentava “a seus ouvintes um Deus bondoso e remissório” (Dawid Danilo Bartelt.
Sertão, república e nação..., p.84).
184  Dawid Danilo Bartelt. Sertão, república e nação..., p.83.
185  Dawid Danilo Bartelt. Sertão, república e nação..., p.85.
186  Dawid Danilo Bartelt. Sertão, república e nação..., p.85 (destaque do
autor).
187  Dawid Danilo Bartelt. Sertão, república e nação..., p.99-116-121.
188  Rui Facó. Cangaceiros e fanáticos..., p.88.
112

189  Euclides se refere ainda à “constituição mórbida” de Antonio Conselhei-


ro (Os sertões..., p.254).
190  Manuela Carneiro da Cunha. Antropologia do Brasil: mito, história, et-
nicidade. 2 ed., Brasiliense, São Paulo, 1987, p.8.
191  Robert Darnton. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução.
Companhia das Letras, São Paulo, 1995, p.193.192.
192  Marc Bloch. Os reis taumaturgos. Companhia das Letras, São Paulo,
1998 (original de 1924).
193  Conceito central na historiografia francesa desde Fernand Braudel, por
ele se compreende que “a história caminha mais ou menos depressa, porém as for-
ças profundas da história só atuam e se deixam apreender no tempo longo [...] A
história do curto prazo é incapaz de apreender e explicar as permanências e as mu-
danças [...] Portanto, é preciso estudar o que muda lentamente e o que se chama,
desde alguns decênios, de estruturas” (Jacques Le Goff. “A História nova”. In: Jac-
ques Le Goff [org.] A História nova. Martins Fontes, São Paulo, 1990, p.45). Num
artigo publicado em 1958, Braudel insistia em que “o tempo avança com diferentes
velocidades”: o tempo curto dos acontecimentos, o tempo médio das conjunturas
econômicas, sociais e políticas, e a longa duração, o tempo das estruturas, da rela-
ção do homem com a natureza; veja Ronaldo Vainfas. Os protagonistas anônimos da
história: micro-história. Campus, Rio de Janeiro, 2002, p.19-20.
194  Para Darnton, o estudo da mentalité “é uma espécie de história inte-
lectual de não-intelectuais, uma tentativa de reconstruir a cosmologia do homem
comum ou, em termos mais modestos, de entender as atitudes, os pressupostos
e as ideologias implícitas de grupos sociais específicos” (O beijo de Lamourette...,
p.231). Sobre o conceito controvertido de “mentalidades”, pode-se ler: Jacques Le
Goff. “As mentalidades: uma história ambígua”. In: Jacques Le Goff e Pierre Nora
(org.) História: novos objetos. 4 ed., Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1995, p.68-
83; Michel Vovelle. Ideologias e mentalidades. 2 ed., Brasiliense, São Paulo, 1991,
p.9-25.
195  José Carlos Reis. Escola dos Annales; a inovação em História. Paz e Terra,
São Paulo, 2000, p.113.
196  Roger Chartier. A história cultural: entre práticas e representações. Difel/
Bertrand Brasil, Lisboa/Rio de Janeiro, 1990, p.17.
197  Os intercâmbios práticos com historiadores mostram que Geertz efeti-
vamente abriu caminhos para a referida interação; no seu mais famoso livro, Ro-
bert Darnton reconhece a profunda influência recebida de Geertz, particularmente
em função dos seminários sobre História e Antropologia que juntos ministraram
na Universidade de Princeton (O grande massacre de gatos e outros episódios da his-
tória cultural francesa. 2 ed., Graal, Rio de Janeiro, 1988, p.XI).
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 113

198  Clifford Geertz. A interpretação das culturas. LTC, Rio de Janeiro, 1989,
p.15 (foi preciso alterar a pontuação adotada pela tradução, para que o texto se
fizesse legível).
199  Adam Kuper. Cultura: a visão dos antropólogos..., p.132.
200  Adam Kuper. Cultura: a visão dos antropólogos..., p.140. Num artigo
intitulado “A religião como sistema cultural”, Geertz afirma que cultura “denota
um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbo-
los, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio
das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento
e suas atividades em relação à vida” (A interpretação das culturas..., p.103). São
esses significados que devem ser descritos e decifrados.
201  Aletta Biersack. “Saber local, história local: Geertz e além”. In: Lynn
Hunt (org.) A nova história cultural. 2 ed., Martins Fontes, São Paulo, 2001,
p.105-113.
202  Adam Kuper. Cultura: a visão dos antropólogos..., p.157.
203  Roger M. Keesing, citado por Aletta Biersack (“Saber local, história lo-
cal...”, p.110).
204  Giovanni Levi. “A micro-história”. In: Peter Burke (org.) A escrita da
História: novas perspectivas. 2 ed., Unesp, São Paulo, 1992, p.149.152.
205  Marshall Sahlins. Ilhas de história. Zahar, Rio de Janeiro, 1999, p.63. Em
Sahlins a articulação História – Antropologia aparece de imediato: “o que os antropólo-
gos chamam de ‘estrutura’ – as relações simbólicas de ordem cultural – é um objeto his-
tórico” (Ilhas de história., p.7-8). E o caminho já está aberto: “Os antropólogos elevam-se
da estrutura abstrata para a explicação do evento concreto. Historiadores desvalorizam o
evento único em favor das recorrentes estruturas subjacentes. E também paradoxalmente,
os antropólogos têm sido tão diacrônicos em pontos de vista quanto os historiadores têm
sido sincrônicos [...] O problema agora pertinente é o de explodir o conceito de história
pela experiência antropológica da cultura” (Ilhas de história..., p.93).
206  Marshall Sahlins, citado por Adam Kuper. Cultura: a visão dos antropó-
logos..., p.229.
207  Luiz Geraldo Santos da Silva. “Canoeiros do Recife: história, cultura e
imaginário”. In: Jurandir Malerba (org.) A velha História: teoria, método e histo-
riografia. Papirus, Campinas, 1996, p.94.
208  Jim Sharpe. “A História vista de baixo”. In: Peter Burke (org.) A escrita
da História..., p.61-62. Veja coletânea de artigos no volume organizado por Fre-
derick Kranz, A outra história: ideologia e protesto popular nos séculos XVII a
XIX (Zahar, Rio de Janeiro, 1990). Nota-se claramente o influxo do marxismo,
presente não só em Thompson, mas em Eric J. Hobsbawm e Keith Thomas, outros
cultores da “história vista de baixo”.
114

209  Edward P. Thompson. “Folclore, antropologia e história social”. In: As


peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Unicamp, Campinas, 2001, p.230 (o
artigo é de 1977).
210  Edward P. Thompson. “Folclore, antropologia e história social”..., p.229.
A Antropologia levanta ao historiador problemas de outra maneira despercebidos:
“Ao considerarmos o costume, somos levados a problemas impossíveis de ser apre-
ciados dentro da disciplina da história econômica” (p.230). Ou então faz ver velhas
questões com outra perspectiva. De qualquer forma, é o olhar antropológico que
se mostra específico: seu empenho em perceber “o outro” permitirá ao historiador
perceber outras lógicas, outras visões de mundo interagindo e conflitando com as
convencionais ou pretensamente consensuais, e manifestando-se significativamen-
te em hábitos, éticas, religiões e manifestações públicas: “descobri que não posso
lidar com as congruências e com as contradições do processo histórico mais pro-
fundo sem observar os problemas levantados pelos antropólogos” (p.263).
211  Edward P. Thompson. “Folclore, antropologia e história social”..., p.229.
212  Suzanne Dezan. “Massas, comunidade e ritual na obra de E. P. Thomp-
son e Natalie Davis”. In: Lynn Hunt (org.) A nova história cultural..., p.72.
213  “O campo teórico da cultura popular em Thompson valoriza, portanto, a re-
sistência social e a luta de classes em conexão com as tradições, os ritos e o cotidiano das
classes populares num contexto histórico de transformação. Vem daí o apreço do autor
pela antropologia, capaz da ancorar interpretações verticalizadas de ritos e comporta-
mentos comunitários, bem como por microtemas, a exemplo da festa, do charivari e
outros que permitam iluminar a defesa das tradições e a insurgência social, processos
simultâneos de construção de uma identidade popular no campo cultural” (Ronaldo
Vainfas. “História das mentalidades e história cultural”. In: Ciro Flamarion Cardoso
e Ronaldo Vainfas [org.] Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. 4ed.,
Campus, Rio de Janeiro, 1997, p.157). Charivari era uma espécie de caçoada pública,
comum na Europa de 1500 a 1800, feita de baladas ofensivas ao som de batidas de
panelas e caçarolas, que podia ser dirigida a uma moça casada com velho, ou casada no-
vamente, ou que se casara fora da aldeia, ou ainda a maridos traídos ou que apanhavam
das mulheres, e ainda a figuras impopulares como pregadores ou senhores rurais. Estes
charivaris ocorriam quase sempre no carnaval.
214  Edward P. Thompson. “A economia moral da multidão inglesa no sécu-
lo XVIII”. O artigo apareceu primeiramente em 1971, na revista Past and Present, e
consta da coletânea Costumes em comum (Companhia das Letras, São Paulo, 1998,
p.150-202), de que me sirvo aqui; nele se encontra ainda um ensaio complementar:
“Economia moral revisitada” (p.203-266). A citação é da p.150.
215  Edward. P. Thompson. “A economia moral da multidão inglesa no século
XVIII”..., p.152. Os motins contra aumentos de preço ou fraude nas medidas apenas
O RELIGIOSO NO BELO MONTE 115

tornam mais visível uma “economia moral” que percorre todo o século XVIII inglês e
perturba continuamente o governo e o pensamento econômico de um Adam Smith,
que procura por todos os meios eliminar da economia “imperativos morais” tidos por
“importunos” (p.161). Eles reivindicam uma consciência popular insatisfeita, e negam
o pretenso consenso que haveria de levar à Revolução Industrial e ao capitalismo liberal.
216  As inquietações de Thompson giram em torno da “formação cultural das
atitudes e da consciência da classe trabalhadora” (Suzanne Dezan. “Massas, comunida-
de e ritual na obra de E. P. Thompson”..., p.66).
217  Book of orders de 1630, citado em “A economia moral da multidão inglesa
no século XVIII”..., p.198-199.
218  Edward P. Thompson. “A economia moral da multidão inglesa no século
XVIII”..., p.184.
219  Edward P. Thompson. “A economia moral da multidão inglesa no século
XVIII”..., p.178. Mas seria preciso cobrar a Thompson uma explicitação maior da ma-
triz religiosa dessa “economia moral”.
220  Edward P. Thompson. “A economia moral da multidão inglesa no século
XVIII”..., p.198.
221  Edward P. Thompson. “A economia moral da multidão inglesa no século
XVIII”..., p.152.
222  Dominique Julia. “Religião: história religiosa”. In: Jacques Le Goff e Pierre
Nora (org.) História: novas abordagens. 3 ed., Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1988.
p.110-112 (original de 1974).
223  Em Ginzburg confluem as várias tendências interpretativas comenta-
das acima, desde as preocupações historiográficas advindas dos Annales até aque-
las trazidas pela Antropologia Cultural, passando pelas questões suscitadas pela
“História vista de baixo” de Thompson, sem contar uma particular influência do
marxismo de Gramsci. Para se avaliar a importância do trabalho do historiador
italiano leia-se, de Jacqueline Hermann, “História das religiões e religiosidades”.
In: Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas (org.) Domínios da História...
p.343-345.
224  Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes..., p.25.
225  Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes..., p.25. Este livro trata exatamente
de Menocchio; já os benandarti, grupo da mesma época, praticante de cultos de
fertilidade de matriz não cristã, são estudados por Ginzburg em Os andarilhos do
bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII (2 ed., Companhia das
Letras, São Paulo, 2001).
226  Costumam ainda ser destacadas a explicitação do “paradigma indiciá-
rio”, baseado na observação dos detalhes, na consideração do que aparentemente
tem pouca ou nula importância (“Sinais: raízes de um paradigma indiciário". In:
116

Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Companhia das Letras, São Paulo,
1999, p.143-179), e uma sugestiva apresentação, inspirada em Bakhtin, do con-
ceito de “cultura popular”, a partir do que chamou de “circularidade cultural”,
ou seja, “a influência recíproca entre a cultura das classes subalternas e a cultura
dominante” (O queijo e os vermes..., p.24).
227  Artur Oscar Ribeiro Guimarães. Relatório apresentado ao Presidente da Re-
pública dos Estados Unidos do Brasil, citado por José Augusto Cabral Barretto Bastos.
Incompreensível e bárbaro inimigo: a guerra simbólica contra Canudos. Edufba, Sal-
vador, 1995, p.148.
228  Roger Chartier. A história cultural: entre práticas e representações. Difel/
Bertrand Brasil, Lisboa/Rio de Janeiro, 1990, p.26-27.
229  John B. Thompson. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na
era dos meios de comunicação de massa. 6 ed., Vozes, Petrópolis, 2002, p.201-202
(destaque do autor).
230  Michel de Certeau. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. 6 ed., Vo-
zes, Petrópolis, 2001, p.264-265.269-270 (citando Michel Charles). Peter Burke
afirma: “o que é recebido é sempre diferente do que foi originalmente transmiti-
do, porque os receptores, de maneira consciente ou inconsciente, interpretam e
adaptam as ideias, costumes, imagens e tudo o que lhes é oferecido” (Variedades de
história cultural. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000, p.248.249).
231  Peter Burke. As fortunas d’O cortesão: a recepção europeia a O cortesão
de Castiglione. Unesp, São Paulo, 1997, p.14.
232  Robert Darnton. O beijo de Lamourette..., p.172.
233  As duas variantes podem ser ilustradas, respectivamente, pelos trabalhos
de Burke e Ginzburg. Analisando as diversas leituras que O cortesão (publicado em
1528) recebeu, Burke constata: “Durante a própria Renascença, esse livro foi lido por
razões muito diferentes. Ele foi tratado como guia de conduta na época, não para os
valores de uma época passada [...] Os inocentes criticaram-no por ser cínico demais,
e os cínicos, por ser inocente demais. Ele tem sido visto como idealista e pragmático,
sério e frívolo” (As fortunas d’O cortesão..., p.7). O que se poderá dizer das leituras da
Bíblia e seus enunciados, em palavras, imagens, temas? Por outro lado, o Menocchio
estudado por Ginzburg teve acesso a uma literatura muito variada, que ia da Bíblia a
crônicas de viajantes, que ele absorvia agressivamente (o termo é de Darnton), esbo-
çando a partir daí uma cosmovisão radicalmente distinta daquela cristã hegemônica.
Por isso Ginzburg procura “a chave de sua leitura, a rede que Menocchio de maneira
inconsciente interpunha entre ele e a página impressa – um filtro que fazia enfatizar
certas passagens enquanto ocultava outras” (O queijo e os vermes..., p.89).
234  Robert Darnton. O beijo de Lamourette..., p.148-149.
II
O ARRAIAL REBELDE E OS
BENEFÍCIOS DO BOM JESUS:
UM PANORAMA DO BELO MONTE DE
ANTONIO CONSELHEIRO E SUA GENTE
118

Alguns dos maiores levantes populares foram


surtos religiosos, revoltas de devotos.

(Carlos Rodrigues Brandão)


O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 119

Revisitemos o processo de nascimento e destruição do Belo Monte de An-


tonio Conselheiro, tomando em conta os múltiplos fatores que o constituíram.
Apresento esta verdadeira e intrincada “encruzilhada” em três cenas, salientando
os aspectos que reputo mais relevantes, nos âmbitos tanto religioso como cultural,
econômico e político, que fazem a complexidade dos processos em questão. A
primeira delas remete a alguns dos antecedentes imediatos do estabelecimento de
Belo Monte. Protestos populares anti-fisco e a repressão policial contra a gente do
Conselheiro; eis uma combinatória explosiva, permeada de intervenções, interesses
e posicionamentos, decisivos para a constituição do arraial e para o clima que o
cercará até sua destruição. Tais eventos explicitam uma causalidade fundamental
para a compreensão de Belo Monte, que surgirá logo depois: a negação da Repú-
blica, representada pelos impostos que introduziu, e da nova ordem por ela trazida.
As manifestações evidenciam uma consciência e uma cultura política e econômica
capazes de inventar uma organização coletiva o máximo possível livre das interfe-
rências do poder político e religioso estabelecido.
A segunda cena nos levará a Belo Monte, a “grande aldeia do rio sagrado”1, em
busca das características principais deste empreendimento popular. A composição
do contingente populacional, as formas de organização nos diversos âmbitos e as
interferências externas são elementos fundamentais a serem considerados para que
se alcance clareza quanto a um aspecto decisivo: o sentido do arraial e os objetivos
da gente que o constituiu, sob a liderança de Antonio Conselheiro. Nessa direção
se dispõe o esforço, somado aos de tantos pesquisadores, de mirar o cotidiano de
Belo Monte para além dos estereótipos de matriz fundamentalmente euclidiana.
A terceira cena nos colocará em meio aos combates, ao heroísmo, às truculên-
cias, às “gravatas-vermelhas” e ao massacre: trata-se do período de quase um ano de
120

guerra, que terminou com o aniquilamento total da vila conselheirista. Destacarei


particularmente os aspectos da conjuntura que levaram à guerra, capazes de evi-
denciar o quanto Belo Monte e seu trágico destino são reveladores de características
estruturais da sociedade brasileira.

1. MASSETÉ: “NÃO DEIS A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR”

Foi em 1893, menos de quatro anos após a proclamação da República e cinco


depois da abolição oficial da escravatura. Ano do violento despejo do cortiço Ca-
beça de Porco, no contexto de uma urbanização pretensamente modernizadora do
Rio de Janeiro.2 Foi também ano de rebeliões, a Federalista no sul e a da Armada,
na capital federal. No entanto parte da atenção nacional se voltou para o interior
da Bahia: em fins de maio a vida andarilha de Antonio Vicente Mendes Maciel,
já há muito conhecido nos sertões como Antonio Conselheiro, e de um grupo de
dezenas de seguidores sofreria uma inflexão radical. A senha foi um incidente em
que eles se viram envolvidos, numa localidade de nome Masseté, município de
Tucano, com tropas da polícia baiana comandadas pelo tenente Virgílio Pereira de
Almeida, enviadas à região para reprimir o que lhes diziam ser um bando de desor-
deiros, perigosos à segurança pública. Gente que no mês anterior tinha apoiado e
inclusive se havia envolvido em manifestações, algumas entre tantas que sacudiam
a Bahia naqueles tempos, de repúdio aos impostos que os municípios começavam a
estabelecer sobre seus habitantes: eles “rasgaram as tabelas do Estado e queimaram
tudo o que havia relativo aos impostos”.3 A participação de Antonio Conselheiro e
sua gente marcará definitivamente a visão que deles farão as elites locais, já que ele
incitava os sertanejos a não “pagar impostos municipais, estaduais e gerais; acon-
selhou a resistência a essa população [...] provocando grandes conflitos”.4 Numa
dessas manifestações, na vila de Soure,

uma horda de mais de 500 homens, carregados com armas de fogo, cacetes e chuços,
fora os índios de Mirandela, com arcos e flechas, percorreu as ruas com ameaças,
insultos e impropérios, protestando que se de novo fossem colocadas as tabuletas
seriam outra vez despedaçadas, e que ninguém, absolutamente ninguém, pagaria
um real de imposto porque não reconheciam e nem obedeciam as leis da república.5

A derrota das tropas oficiais, enviadas para reprimir as manifestações e restabelecer a


ordem, foi completa: “O comandante correu em fuga batida pelos matos e, espavorido e
esbaforido, chegou à vila de Tucano sem boné, sem espada e com a farda em tiras”.6 Uma
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 121

segunda tropa, enviada logo depois, voltou à capital quando já estava no meio do cami-
nho, por razões que o próprio barão de Jeremoabo dizia desconhecer, mas lamentava.7
Belo Monte, arraial edificado a partir destes movimentos anti-fisco, será o
baluarte da rebeldia que se espalha: “não pago, por que não vai cobrar em Canu-
dos?”8 Com efeito, os incidentes que provocaram Masseté viraram exemplo mau,
contagioso: “Na povoação do Uauá em princípio de maio levantou-se um grupo
contra o agente Joaquim José Rodrigues concitando o povo para não pagar direitos,
e este vendo-se sem força pediu exoneração ficando por algumas feiras acéfala a
arrecadação”.9
Euclides minimizou a importância destes eventos em torno de Masseté, o
que acabou levando boa parte da historiografia posterior a fazer o mesmo. Avalia-
ções depreciativas, qualificando pejorativamente os manifestantes como fanáticos
(o termo preferido, de uso generalizado nos mais diversos documentos), jagunços,
criminosos, canibais e assemelhados foram a tendência dominante, desde muito
cedo, e enquanto durou o arraial conselheirista. Mas urge uma atenção maior.
Masseté apresenta aspectos significativos, e é preciso perceber a lógica destes epi-
sódios que culminaram com o confronto armado e com o imediato aparecimento
de Belo Monte.
Na verdade, a centralidade desses acontecimentos pode ser considerada em
três dimensões. Primeiramente eles permitem vislumbrar o quadro de dificuldades
em que vivia a população sertaneja que mais tarde engrossará a população da vila
conselheirista. A economia sertaneja dos séculos XVIII e XIX assentava-se num
tripé básico: a pecuária (oriunda dos caminhos abertos pela “civilização do couro”,
de que falava Capistrano de Abreu), a cultura do algodão, e, nos espaços que ainda
restavam, a economia de subsistência, que florescia na contramão da prosperidade
econômica advinda de exportações. Assim, o sertão viu, desde o tempo da Colônia,
pecuária e agricultura ocupando a terra em grande escala em fazendas por todo
lado.10 Deste quadro maior dependia a subsistência da população, residente e tra-
balhadora nelas como agregado, meeiro; de qualquer forma sujeita ao fazendeiro,
disputando a pouca água com rebanhos e plantações cujos frutos se destinavam
ao mercado externo. Também porque este modelo exportador estava decadente,
a economia de subsistência apresentava certo dinamismo na segunda metade do
século XIX. Os novos impostos incidirão justamente aí.
Além disso, tais eventos mostram a importância do que já foi chamado “cam-
po da tradição”: um conjunto de valores e práticas populares confrontado com
mudanças, sociais e políticas, consideradas prejudiciais. Aí temos a raiz básica dos
protestos contra os impostos e, em última análise, do estabelecimento de Belo
Monte. Segundo o barão de Jeremoabo, os protestos populares são dirigidos a todos
os impostos. Mas ele é contraditado por um morador de Queimadas, que escreve
122

ao Jornal de Notícias garantindo que o Conselheiro “não aconselha o povo que dei-
xe de pagar impostos, como informaram à ilustrada redação do Diário; aconselhou,
sim, num dos lugares por onde passou, que não pagassem os impostos municipais
por serem excessivamente vexativos, o que é coisa muito diversa”.11
É praticamente certo que o Conselheiro, ainda em vida andarilha, não foi o
mentor dos referidos protestos, mas se envolveu neles quando já estavam em curso.
A documentação disponível a respeito destes conflitos não permite conclusão mais
taxativa, mas a busca, e posterior consecução, do apoio e participação de Antonio
Conselheiro e seu séquito nas manifestações reforça a sensação de estarmos diante
de “multidões sendo inspiradas por tradições políticas e morais que legitimam e até
prescrevem sua violência”.12 Os pronunciamentos do beato a respeito dos inciden-
tes que estão ocorrendo dão consistência de palavra e de sentido aos protestos da-
quela gente anônima: isso pode verificar-se no episódio seguinte, que, aliás, enfeixa
vários aspectos acima comentados:

À feira em questão [na vila de Chorroxó] chegara uma pobre curuca [Benta], a ven-
der uma esteira que deitara no chão. O arrematante do imposto exigia cem réis pela
porção de terreno que a esteira e a pobre velha ocupavam. Esta, que apreciava o va-
lor da esteira em oitenta réis, reclamou, queixou-se em voz alta ao povo, chorando,
lastimando-se [...] Conselheiro, na prédica que fez nesta noite, referiu-se ao caso da
velhota alegando: “eis aí o que é a República, o cativeiro, trabalhar somente para o
governo. É a escravidão anunciada pelos mapas que começa. Não viram a tia Benta,
é religiosa e branca, portanto a escravidão não respeita ninguém?!”13

A participação do Conselheiro será solicitada por conta de sua liderança assen-


tada em anos de andanças pelo sertão. Saliente-se, por ora, que tal envolvimento
evidencia uma clara tonalidade religiosa nas justificativas e fundamentos dos pro-
testos. O beato empresta-lhes sua indubitável autoridade.
Desta forma, são os impostos novos, recém-criados pela autonomia concedida
pela República aos municípios, que trazem à tona direitos e costumes consolida-
dos. A ação da gente manifestante é portadora de uma lógica que as expressões do
barão não permitem perceber. E não se diferenciam de tantas outras tax rebellions,
motivadas por alterações nas formas de cobrança de impostos: há um passado que
por estas revoltas se busca recuperar e preservar, diante de uma novidade que soa
prejudicial. E tais movimentos se ancoram em tradições políticas, morais e reli-
giosas: conhece-se o testemunho de alguém que, embora não tendo participado
das manifestações, reconhece sua legitimidade e apela ao padre português Manuel
Bernardes (séculos XVII-XVIII), para o qual “o levar tributos injustos [...] é chupar
o sangue do povo como Saturno se sustentava com o dos seus filhos”.14
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 123

Cabe, portanto, falar aqui numa “economia moral da multidão”, para usar os
termos de Thompson: os homens e mulheres participantes das manifestações con-
tra os recém-criados tributos nas vilas sertanejas “estavam imbuídos de que estavam
defendendo direitos ou costumes tradicionais; e de que, em geral, tinham o apoio
do consenso mais amplo da comunidade”. E tais manifestações se desenvolveram
“dentro de um consenso popular a respeito do que eram práticas legítimas e ilegíti-
mas” no tocante à arrecadação dos tributos.15 Assim, a distinção entre os impostos
tradicionais e os recém-estabelecidos é fundamental para se perceber o espírito das
manifestações e evitar expressões generalizantes, que só contribuíram para a desca-
racterização de seus sujeitos e objetivos.
Além disso, os novos impostos incidem no espaço talvez único de organização,
socialização e alguma autonomia de que dispunha aquela gente sem-terra (junto
com alguns poucos pequenos proprietários): a feira. Isso é particularmente grave,
pois, principalmente no sertão, esse espaço era fundamental na configuração da
sociabilidade popular: além das trocas, vendas e compras, a feira é o lugar da co-
municação, da confecção de acordos, e mesmo de lazer, podendo ainda propiciar a
oportunidade de audiências com autoridades.
Por último, mas não menos importante, tais eventos evidenciam que o protes-
to contra a nova ordem político-econômica que está sendo implantada sem romper
com os velhos esquemas, baseados no latifúndio e no poder dos coronéis, e one-
rando ainda mais a já precária vida dos sertanejos, se articula indispensavelmen-
te àquelas motivações de ordem especificamente teológica ou religiosa (separação
igreja-estado, instituição do casamento civil e de eleições), normalmente salienta-
das para explicar a oposição do Conselheiro e sua gente à República.
Desta forma, os protestos e as quebras de editais de impostos parecem tradu-
zir conscientemente a defesa de valores, interesses e formas próprias da vivência
cotidiana no contexto daquele cenário coronelista. E se em tantos momentos se-
melhantes a violência não é “casual e sem limites, mas dirigida a alvos definidos
e escolhida dentro de um repertório de punições e formas de destruição tradicio-
nais”16, aqui não será diferente: os documentos veiculadores da extorsão, as tabule-
tas e editais com as taxas, são destruídos no próprio lugar em que o poder estatal se
manifestava, as câmaras municipais.
Assim, quando Machado de Assis, com sua habitual perspicácia e ironia, der o
tom da percepção que o incidente de Masseté, provocou na capital, estará acertan-
do em cheio, ao destacar um componente básico da mentalidade que viabilizava
tais manifestações: “Um fanático anda aconselhando aos contribuintes que não
paguem impostos. Já destroçou cinquenta policiais, matando alguns; marcharam
contra ele forças de linha. Não deis a César o que é de César, tal é a máxima desse
chefe de seita”.17
124

Vislumbra-se então um atentado contra os interesses do Estado; afinal de con-


tas, “desta data em diante só paga imposto quem quer”.18 Mas ele se articula com
a afirmação do pecado contra os preceitos da santa religião, induzido por alguém
que se atreve a desafiar o preceito bíblico sempre relembrado para definir com-
petências distintas de política e religião, particularmente a estabilidade do poder
estabelecido, e aqui recuperado às avessas. Uma “economia religiosa”, ou, dir-se-
-ia, “herética”. Pode-se imaginar a repercussão dos acontecimentos da longínqua
Bahia, na medida em que são lidos por este viés, na Capital e no seio da instituição
eclesiástica.
A articulação entre religião e protesto sertanejo é ainda expressa pelo deputado
Antônio Bahia, ao se referir ao Conselheiro e ao embate de Masseté: “O homem
que construía cemitérios passou a levantar trincheiras; já não chama simplesmente
o povo para a oração, faz expedições grandes; não se limita a rezar benditos, orga-
niza batalhões, que têm fardamento e armamento”.19
Tal articulação entre cemitérios e trincheiras, rezas e expedições, benditos e
batalhões, religião popular e protesto terá sua expressão plástica mais espetacular
no desenho euclidiano do combate de Uauá, em que se defrontariam os policiais
da primeira expedição e os combatentes conselheiristas, definitivamente fanáticos,
mais de três anos depois dos eventos que ora comento:

Na madrugada [...] desenhou-se no extremo da várzea o agrupamento dos jagun-


ços...

Um coro longínquo esbatia-se na mudez da terra ainda adormida, reboando longa-


mente nos ermos desolados. A multidão guerreira avançava [...], derivando à toada
vagarosa dos kyries [...] Parecia uma procissão de penitência dessas a que a muito se
afeiçoaram os matutos crendeiros para abrandarem os céus quando os estios longos
geram os flagícios das secas.

Mas não tinham, ao primeiro lance de vistas, aparências guerreiras. Guiavam-


nos símbolos de paz: a bandeira do Divino e, ladeando-a, nos braços fortes de um
crente possante, grande cruz de madeira, alta como um cruzeiro. Os combatentes
armados de velhas espingardas, de chuços de vaqueiros, de foices e varapaus, per-
diam-se no grosso dos fiéis que alteavam, inermes, vultos e imagens dos santos
prediletos, e palmas ressequidas retiradas dos altares. Alguns, como nas romarias
piedosas, tinham à cabeça as pedras dos caminhos, e desfiavam rosários de coco.
Equiparavam aos flagelos naturais, que ali descem periódicos, a vinda dos soldados.
Seguiam para a batalha rezando, cantando – como se procurassem decisiva prova
às suas almas religiosas.20
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 125

Os eventos de que estou tratando revelam ainda a proximidade estreita, quan-


do não a simples identificação, entre os interesses dos grupos economicamente
hegemônicos e as ações do poder estabelecido. Como já se notou, o barão de Je-
remoabo não esconde ser ele o responsável pelo envio da expedição que acabou
por malograr em Masseté, nem de ter duplicado esforços para o envio, “ao encalço
do fanático” e sua gente, de um segundo contingente policial, que acabou regres-
sando sem os atacar. Mas se tal recuo representa a não-satisfação dos interesses do
barão, em cujas terras e região de influência estavam se dando tais movimentações,
nem por isso ele deixa de obedecer à lógica fundamental do poder aí instalado:
são disputas no interior das elites políticas baianas, com cisões importantes nos
partidos políticos do estado, visando enfraquecer o barão e sua corrente política,
que explicam a expedição frustrada. São fricções entre alas que explicam o vaivém
das decisões policiais e militares em relação a Antonio Conselheiro e sua gente, e
depois em relação a Belo Monte.
Ainda no âmbito das elites, os eventos que culminaram com o embate de
Masseté lograram deixar impressões de temor, como se percebe nas cartas dirigidas
ao barão de Jeremoabo: ainda na guerra se via em Masseté o começo da desordem
dos fanáticos:

Deve se recordar quando lhe escrevi no tempo do governo do Sr. Rodrigues Lima,
de eterna memória, sobre a questão de Masseté, onde dizia ou que o governo não
abafava logo esta revolta no começo, depois se enraizaria, outras iriam sucedendo-
lhe, depois o governo encontraria sérias dificuldades para debelá-las...21

Outro fator se revelará decisivo para o desenrolar dos acontecimentos: o cho-


que de Masseté precipita, definitivamente, a ruptura das altas esferas da hierarquia
eclesiástica com o Conselheiro. É sabido que os problemas deste com a instituição
católica vêm de bom tempo, desde quando começou sua vida de pregador ambu-
lante, em meados da década de 70, e que chegaram a um marco com a proibição,
determinada no já mencionado documento arquiepiscopal de 1882, de que se lhe
cedesse o púlpito, o que naquele momento foi levado a sério apenas por uma parte
do clero. A proclamação da República com suas consequências para a igreja, con-
tudo, fez com que se estabelecesse alguma aproximação entre os padres e o Conse-
lheiro, na medida em que o anti-republicanismo deste convinha àqueles, que então
passaram a fazer “propaganda clerical pela boca do inculto senhor das trevas”.22 O
incidente de Masseté, contudo, mudou o posicionamento dos padres que até então
insuflavam o Conselheiro em suas invectivas contra a República: “a intervenção
da polícia para garantir as reformas republicanas esfriou o clero, que abandonou o
Conselheiro à sorte”.23
126

Esta ruptura definitiva (não de todos os padres) terá papel decisivo na consti-
tuição de Belo Monte, que, entre outros aspectos, ensaiará uma forma peculiar de
autonomia em suas expressões religiosas e de relação com a instituição eclesiástica.
Ela consolidará a liderança do Conselheiro frente a seu séquito. Ao mesmo tempo,
este movimento do clero sertanejo, afastando-se do Conselheiro, se articula com
outro, em curso nas mais altas esferas da igreja baiana (e brasileira, estimulada
pelo próprio papa Leão XIII24) de reaproximação com a República, em busca de
recuperar a situação privilegiada que usufruiu até a queda do Império. O resultado
mais evidente deste movimento, em nosso âmbito, será a missão dos frades capu-
chinhos, enviada a Belo Monte em 1895, a pedido do governo baiano, visando
dispersar a população estabelecida no arraial. Assunto para mais adiante.25
Assim, as manifestações em repúdio aos novos impostos municipais, de que
participaram o Conselheiro e seus seguidores em várias vilas do sertão baiano, e que
desembocaram no incidente de Masseté, não podem ser minimizadas, por colocarem
em cena fatores fundamentais da vida baiana (e brasileira), decisivos para a compre-
ensão da trajetória ousada, acidentada e terrível de Belo Monte. A precariedade da
vida da gente sertaneja encontrou espaço de protesto e rebeldia nas manifestações,
que ganharam peso e rumos particulares pela presença legitimadora do Conselheiro
com suas palavras e de sua gente. As oligarquias políticas da Bahia se viram atingidas;
seus titubeios no agir não negaram, em nenhum momento, a certeza da necessidade
de debelar aqueles focos de rebeldia e, mais tarde, de destruir Belo Monte. Também
os movimentos da instituição eclesiástica, em seus vários graus de comando, indicam
as posturas que serão tomadas em relação ao Conselheiro e ao arraial que estabelece-
rá. Afinal, como dirá mais tarde frei João Evangelista, “a igreja condena as revoltas”.26

2. REINVENTANDO O COTIDIANO: A VIDA DE


BELO MONTE
É chegado o momento de se perguntar pelas articulações de uma cotidia-
nidade particular, a do Belo Monte, a vila que Antonio Conselheiro e sua gente
ergueram a partir da decisão de se estabelecerem num lugar fixo, após o incidente
de Masseté. Os dados, embora poucos e às vezes desencontrados, são suficientes
para traçar um quadro geral a respeito do cotidiano do arraial. Começo por uma
apresentação do estabelecimento do arraial e da proveniência das pessoas que a ele
se dirigiram. A seguir procuro identificar a realidade sócio-cultural complexa que
ali se estabeleceu, considerando as atividades que mais terão marcado o cotidiano
do arraial, recorrendo aos testemunhos da época. Faço-o motivado pelas palavras
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 127

de César Zama, deputado baiano que em 1899 escreveu, em protesto contra o


massacre: “nada de extraordinário se passava com Antonio Conselheiro e aqueles
que o acompanhavam. Ninguém ignora que gênero de vida levavam os canuden-
ses: plantavam, colhiam, criavam, edificavam e rezavam”.27
Mas é imprescindível uma abordagem sobre o papel do Conselheiro no arraial,
bem como sobre os vínculos que se estabeleceram entre os habitantes do arraial e
entre estes e seu líder. Reservo algumas páginas para essa questão, motivado por
Machado de Assis, que em 31/01/1897 se perguntava, no calor dos preparativos
para a expedição Moreira César: “Que vinculo é esse, repito, que prende tão forte-
mente os fanáticos ao Conselheiro?”28

O estabelecimento de Belo Monte e a pro-


veniência de sua gente
Masseté significou uma inflexão na vida do Conselheiro e de seu séquito. A vitó-
ria no embate não os iludiu: era necessário aguardar nova reação. Não é mais possível
sustentar a forma itinerante de vida do grupo, sob pena de se verem comprometidas
suas mínimas condições de segurança. O estabelecimento mais ao norte, em territó-
rio da comarca de Monte Santo, no longínquo Canudos, logo rebatizado como Belo
Monte, e a organização da vida aí surgem como imperativo para a sobrevivência do
grupo conselheirista que, ainda mais agora, será alvo das forças repressoras, por ter se
inserido em ponto particularmente delicado e decisivo na renovada consolidação da
velha ordem social e política nos sertões, bem como a possibilidade de novas formas
de atuação do líder.
Segundo o barão de Jeremoabo, o Conselheiro “subia para o sertão, à escolha do
lugar de difícil acesso, onde assentasse seu quartel general”.29 Estaria também aten-
dendo ao convite de duas famílias residentes em Canudos, os Macambira e os Mota,
para reconstruir a igreja de Santo Antônio ali existente.30Tal deslocamento rumo ao
norte teria tomado ares bíblicos, e mesmo apocalípticos, que a seu tempo será preciso
considerar. Por outro lado, a vitória no embate com as forças policiais terá sido mo-
tivadora. O percurso, de cerca de seiscentas pessoas, dois terços delas mulheres, até
a região finalmente escolhida, à margem esquerda do rio Vaza-barris, teria findado
em meados de junho (no dia 13, dedicado a santo Antonio, garante a tradição oral).
Este percurso logo será seguido, em menos de um mês, por mais de duas mil pessoas,
segundo notícia de um jornal da época.31
Se talvez não se possa afirmar que o estabelecimento do novo arraial na velha
Canudos tenha sido definido apenas por fatores estratégicos, também não parece
128

viável negar ao Conselheiro preocupações deste tipo. Ele próprio, dois anos mais
tarde, diante de frei João Evangelista, que lhe censura os homens armados que
encontrou no caminho, expressará as apreensões que o episódio de Masseté lhe
suscitou, decisivas para seus passos futuros e modificadoras de seu cotidiano, bem
como preocupações quanto a sua proteção:

É para minha defesa que tenho comigo estes homens armados, porque v. revma. há de
saber que a polícia atacou-me e quis matar-me no lugar chamado Maceté (sic), onde
houve mortes de um e de outro lado. No tempo da monarquia deixei-me prender,
porque reconhecia o governo; hoje não, porque não reconheço a República.32

Recentes pesquisas arqueológicas, somadas à análise das fotos de Flávio de


Barros, revelaram “uma cidade preparada para o combate, mesmo em condições de
penúria”, cuja capacidade de defesa,
expressa também nas inúmeras tocas e linhas de trincheiras implantadas nas
meias encostas e topos de colinas, ia expondo velozmente uma concepção geo-es-
tratégica refinada, capaz de sustentar ativos e eficientes sistemas de comunicação
que mantinham o “quartel general” permanentemente informado em relação aos
avanços das tropas legalistas.33
Claro que isto se refere a um ambiente posterior, o da guerra. Mas o incidente
de Masseté deixou muito claro a Antonio Conselheiro o risco e a necessidade de
proteção. A formação da Guarda Católica e da Companhia do Bom Jesus ou Doze
Apóstolos parece ter sido pensada para garantir a segurança do arraial e do Con-
selheiro. Assim, não terá sido de todo fortuito o estabelecimento naquelas terras:

Do conflito em si [o surgimento do arraial e a guerra posterior], como fenômeno


histórico e sociológico, cabe afirmar que dificilmente teria ocorrido fora do terreno
onde ocorreu. É ele um dos pontos de convergência do Nordeste brasileiro, entre
outros que assinalam a diversidade cultural da grande região. O que hoje consti-
tui as microregiões baianas de Corredeiras do São Francisco, Sertão de Canudos,
parte do Agreste de Alagoinhas e do Litoral Norte, funde-se, num quadro rico de
nuanças, com as terras vizinhas de Pernambuco, Alagoas e Sergipe, fusão facilitada
pelas vias de acesso, a que a adustez das caatingas, preponderantes na área, não cria
obstáculos. Tais vias ficaram por muito tempo ignoradas do homem do litoral. Mas
os sertanejos sempre as conheceram e por elas marcharam para Canudos.34

E, mais ainda, eram terras sagradas aquelas, pertencentes, “numa área de uma
légua em quadra, [...] à capela de Santo Antônio desde tempos remotos”.35 O lugar
onde Belo Monte surgiu era, mesmo, único. O velho arraial de Canudos, à beira
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 129

do rio Vaza-barris, teria, antes da chegada de Antônio Conselheiro com sua gente,
cerca de 250 habitantes. Havia ali “a igreja velha e duas casas de negócio”.36 Mas
começa a ampliar-se, ao mesmo tempo que muda de nome37, tornando-se lugar ao
mesmo tempo de refúgio, de construção de alternativas e de vivência da fé junto ao
“pai Conselheiro”. E, efetivamente, o arraial receberá nos meses seguintes alguns
milhares de pessoas, das mais variadas proveniências. E terá alcançado desenvolvi-
mento surpreendente. As evidentes reservas das autoridades locais não terão impe-
dido – muito pelo contrário – o deslocamento das famílias. E um certo vácuo na
ação direta da polícia/política baiana também concorreu nesse sentido.
É hora então de fazer a pergunta pela proveniência dos diversos contingentes que
seguiram o Conselheiro em sua vida andarilha, participaram com ele das rebeliões
contra os impostos, do enfrentamento em Masseté, e, finalmente, se estabeleceram
em Belo Monte no curto espaço (pouco mais de quatro anos) de sua atribulada
existência. Algo a esse respeito já foi falado, mas há mais a ser comentado, pois o
vilarejo conselheirista foi verdadeira criação histórica e cultural, não redutível aos
esquemas das imposições do coronelismo vigente ou do catolicismo dominante. Para
lá acorreram “o pardo, a tapuia domesticada, o preto, o curiboca, o mulato, o cabra e
o branco, toda a descendência resultante da miscigenação nordestina”.38 Basicamente
são famílias, mas na maioria mulheres oriundas das inúmeras fazendas espalhadas
pelo sertão, desejosas de livrar-se de sua situação presente, encontrar-se com o Con-
selheiro e partilhar com ele o cotidiano. Gente de praticamente todas as vilas em
redor. No começo de 1894, em uma única semana saíram de Tucano rumo ao Belo
Monte “umas 16 a 20 famílias, é um horror!”39 Outro testemunho dá conta de que “o
Antônio Conselheiro continua a ser o motivo da saída de muita gente daqui, e outros
pontos, que ameaça ficarão despovoados. O êxodo agora de nossa gente é grande e o
Governador não pode agora tomar providências, que são urgentes”.40
Os testemunhos são unânimes em destacar tanto a quantidade de pessoas que
buscaram Belo Monte quanto o impacto provocado por tais deslocamentos. No
fim de 1894 “continua em grosso o êxodo para Canudos”41, mas o movimento ti-
nha mais tempo: “o povo em massa abandonava as suas casas e afazeres para acom-
panhá-lo [a Antonio Conselheiro] [...] A população vivia como que em delírio ou
êxtase”. O resultado não podia ser outro:

Alguns lugares desta comarca e de outras circunvizinhas e até do Estado de Sergipe,


ficaram desabitadas, tal o aluvião de famílias que subiam para Canudos [...] Cau-
sava dó verem-se expostos à venda, nas feiras, extraordinária quantidade de gado
cavalar, vacum, caprino e etc., além de outros objetos, por preço de nonada, como
terrenos, casas etc. O anelo extremo era vender, apurar algum dinheiro e ir repartir
com o Santo Conselheiro.42
130

Foi o sertão da Bahia principalmente, mas também o de Sergipe e do Ceará,


que forneceu a grande parte do contingente cada vez maior que seguiu o Conse-
lheiro, desde o período de sua vida errante até, especialmente, quando se instalou
às margens do Vaza-barris.43 Desfazer-se dos bens e ir ao encontro do Conselhei-
ro: Belo Monte assusta tanto por seu crescimento vertiginoso como pelo abalo
que provoca na ordem convencional das coisas, no funcionamento das fazendas,
no dia-a-dia das vilas, no poderio das elites locais. E com o início da guerra a
população ainda aumentaria mais: “Depois do combate do Uauá [novembro
de 1896] o homem tem recebido reforço grande de toda a parte”; “a emigração
para Canudos aumentou desmedidamente”.44 Em fevereiro de 1897, quando a
expedição de Febrônio de Brito já tinha regressado e para o sertão se dirigiam
as centenas de soldados comandadas por Moreira César, um amigo do barão
de Jeremoabo constata, surpreso: “Estive com dois indivíduos que fugiram dos
Canudos aterrados e garantiram-me que morreram mil e muitos companheiros!
Não obstante ainda sobe gente!”45 A expectativa de Moreira César, manifestada
em vários momentos, de que os jagunços de Belo Monte se dispersariam à sua
chegada, mostra bem o seu desconhecimento quanto ao inimigo.46 A imprová-
vel perspectiva de um sucesso contra o coronel “corta-cabeças” e seus soldados
fazia prever o deslocamento ainda maior de gente para o arraial sagrado: “É de
supor que até o dia 1o de março tudo esteja concluído, com a vitória da força
pública, não é para duvidar-se; mas se o contrário se der, desta cidade e muitos
outros pontos circunvizinhos imigrará muita gente”47, o que efetivamente ocor-
reu. Principalmente depois da expedição Moreira César,

de Pernambuco, Piauí, Ceará, Alagoas, Sergipe, Minas Gerais e São Paulo, não fal-
taram romeiros à Jerusalém do Vaza-barris. Canudos transbordava de gente que ia
compartilhar a sorte dos seus irmãos já glorificados na luta; povoavam-se os montes
e os vales; edificava-se por toda a parte no grande perímetro da cidadela; o que se
queria era um cantinho, um abrigo, nessa terra desejada.48

E em pleno desenrolar da quarta expedição, quando já surgiam os primeiros


sinais de que finalmente Belo Monte seria derrotado, um jornalista constata que
o terror criado pelas tropas por onde passavam levou mais gente a “engrossar
o número dos fanáticos”.49 Efetivamente Belo Monte era algo a ser defendido,
até o extremo da perda da vida. Isso porque, segundo um militar participante
da última expedição, “na aldeia do crime, onde uma grande população levava a
sua existência num misticismo primitivo, quase feliz na sua imensa desdita” terá
havido “liberdade [...] sem outra dependência que não fosse a do pater familias
de Canudos”.50
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 131

Chamo a atenção a dois grupos, senão por sua importância numérica, difícil
de estabelecer, pela relevância simbólica e política que carregam: os “negros treze
de maio” e os indígenas. Quanto aos primeiros, ausentes por completo do olhar de
Euclides, cabe notar que na região por onde o Conselheiro passou anos peregrinan-
do existiram vários quilombos. E testemunhos ressaltam a presença do contingente
negro no séquito do Conselheiro:

Ignorante e enraizado nos velhos hábitos da administração de então, desconfiado


como são todos os sertanejos [...] a única reforma que encontrou sua [do Conselhei-
ro] aquiescência, mais tarde, em 1888, foi a da abolição dos escravos. Talvez porque
grande porção de quilombos e mocambeiros acaudalassem a sua errante cruzada.51

A gente escrava já era atenta ouvinte das prédicas do Conselheiro desde quan-
do iniciou sua vida errante, quase vinte anos antes do estabelecimento de Belo
Monte.52 E no arraial essa marca se manteve: “Os vultos que estão desenvolvendo
a revolta [refere-se ao conflito com as tropas de Moreira César], é o mesmo conse-
lheiro com seus sequazes dentre estes soldados desertores de diversos Estados e o
povo do 13 de maio, que é a maior parte”.53 Em resumo,

os negros do Belo Monte eram, segundo depoimentos da época, ex-escravos, egres-


sos das senzalas, inadaptados ao novo regime de vida que, estabelecendo a alforria
do homem, não criara condições para a “alforria da terra”, que tantos esperavam.
Negros apelidados “treze de maio”, jogados para um canto, desvalorizados perante
certos grupos.54

Belo Monte soa, portanto, como um experimento da liberdade tão sonhada, a


ser defendida por gente como Pajeú. Quanto aos grupos indígenas, cabe considerar
particularmente dois, os Kiriri de Mirandela e os Kaimbé de Massacará. Memórias
orais garantem a participação deles em toda a trajetória de Belo Monte desde os
protestos que culminaram no choque de Masseté (caso dos Kiriri, como vimos
o barão de Jeremoabo mencionar), envolvendo-se principalmente nas atividades
destinadas a conseguir madeira para a construção da igreja nova e também na
guerra.55 Documentos da época confirmam essa presença significativa, muitas ve-
zes ignorada, e reforçam a percepção do problema fundiário como um dos aspectos
fundamentais para a compreensão do surgimento de Belo Monte e do afluxo de
tanta gente em sua direção.56 Para a relevância desta presença indígena, indique-se
por ora que Manoel Quadrado, o famoso curandeiro do arraial, “segundo vários
depoimentos de não índios é pajé dos índios Tuxá de Rodelas”.57 Outro grupo
indígena, portanto. Outros pajés, agora dos Kiriri, morreram no arraial conselhei-
132

rista.58 O reconhecimento da presença do componente indígena, bem como do


negro, coloca um desafio fundamental para a compreensão da percepção de mun-
do que orientava os habitantes de Belo Monte, na medida em que complexifica o
quadro marcadamente católico com que o arraial costuma ser apresentado. Voltarei
a essa questão mais à frente.59
Assim estamos perante setores subalternos: ex-escravos, grupos indígenas
ameaçados em suas terras, sub-empregados das fazendas da região, alguns poucos
pequenos proprietários, gente que perambulava daqui para ali em busca de traba-
lho e sobrevivência; é com gente assim que Antonio Conselheiro travou contato
em seus quase vinte anos de andanças pelo sertão; é ela que vai engrossar o seu
séquito e, após os protestos antifisco e o episódio decisivo de Masseté, fixar-se
com ele no arraial de Belo Monte. Tal movimentação terá profundo impacto
nas relações sociais da região e deixará as elites locais em estado de alerta. Se é
verdade que conflitos no interior destas postergarão medidas mais drásticas e
violentas, não é menos importante que a capacidade de organização manifestada
pelos conselheiristas fará de seu arraial uma real alternativa, assumida por um
número cada vez maior de pessoas com o passar do tempo, onde se pode refazer
a vida.60 E preparar a salvação.
Desta maneira, o caráter classista do conflito que se deu em torno e por causa
de Belo Monte expressa, se não a totalidade das perspectivas que o arraial conse-
lheirista abriu, aquela que se podia destacar principalmente na consideração da
dimensão regional do embate, em que os interesses atingidos são principalmente
os dos fazendeiros e coronéis da região O embate com a instituição eclesiástica, em
torno do monopólio do sagrado, não será menos relevante.

Plantavam, colhiam, criavam

Em geral, foi pequena a preocupação em recuperar as formas do dia-a-dia


da vila conselheirista, talvez pelo fato de que a obra maior de Euclides passa a
impressão de que ali nada se fazia senão construir casebres de taipa e igrejas, rezar
e guerrear, resultado do fanatismo provocado pelo Conselheiro. Não lhe parece
necessário senão mencionar, ligeiramente, o procedimento da entrega dos bens ao
Conselheiro e a vida miserável que daí decorreria. Afinal de contas, que relevância
teriam os esforços de uma comunidade que vivia “sob a preocupação doentia da
outra vida”?61 No entanto, um olhar cuidadoso nos revelará outra coisa, com dados
importantes a respeito atividade imprescindível à vida do arraial: o trabalho.62
Livres de impostos e fazendeiros, as terras à esquerda do rio Vaza-barris fervi-
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 133

lham de plantações. As terras mais arenosas não deixam de ser cultivadas, princi-
palmente pelos homens, geralmente “metidos nas suas calças de algodão listrado,
camisas brancas da mesma fazenda e calçando alparcas de couro cru”.63 Aqui e ali
plantação de pomares e criação de rebanhos de cabras e bodes. O testemunho a
seguir é insuspeito, oriundo de alguém que a toda hora qualifica os conselheiristas
como criminosos e vagabundos:

nos tempos ditosos dessa vida sem normas seguiam para diferentes pontos distantes,
onde o solo era suscetível de cultura; faziam as suas derrubadas na mataria virgem,
de quem quer que fosse, pelas encostas das serras ou pelas margens dos rios; dei-
tavam-lhes fogo para reduzirem a cinza as madeiras desgalhadas; cercavam o sítio
queimado, depois, e regressavam a Canudos satisfeitos do seu trabalho. Na estação
das chuvas voltavam às roças, dessa forma preparadas; faziam as suas plantações de
mandioca, milho, feijão, abóboras e com as recoltas sucessivas que transportavam
em cargueiros, abasteciam a terra santa de recursos alimentícios para um ano intei-
ro.64

Quanto aos bodes e cabras, sua criação desempenhou papel decisivo na eco-
nomia de Belo Monte. Foi a base da Canudos anterior ao Conselheiro e, com
a gente dele, gerou divisas significativas, inclusive da exportação para fora do
país: “O maior comércio era o de couros, especialmente de bode e carneiro, que
abundam como peste pelas caatingas [...] Estava feito o sal [...] para suprir os
inúmeros curtumes que ladeavam a beira do Vaza-barris”.65
Na proporção de duas para cada homem, chegando na guerra a três, as mu-
lheres, “trajadas pobremente”, algumas exibindo “toilettes relativamente apresen-
táveis”, fazem a farinha, ou o sal. Moças, que às vezes “não tinham mais do que a
saia de chita ordinária, ou de algodão branco, comum, sobre a camisa aliás frou-
xa, descuidosa, que expunha a olhares de vadios os seios e braços completamente
nus”, tecem redes. Professoras ensinavam a meninos e meninas conjuntamente66
e tiveram uma rua nomeada com a atividade delas. Euclides disso sabia, de cem
alunos e da escola, embora em Os sertões tenha omitido essa informação decisi-
va.67 Das rezadeiras se falará à frente.
Jovens à caça. Ferreiros nas bigornas fabricam foices, facas e machados. A
feira na praça das igrejas. O mutirão permite que todos enfrentem a escassez
constante. E princípios religiosos reforçam a tendência distributivista da organi-
zação ensaiada.
E a arqueologia tem sugerido que Belo Monte tenha sido o pivô de um
complexo sistema no qual formas alternativas de trabalho se desenvolveram e a
sobrevivência cotidiana foi construída:
134

[...] cartas e mapas [faziam] ressurgir uma Canudos cada vez mais dilatada [...] co-
meçávamos a articular as partes de um imenso sistema que via seus limites confun-
direm-se aos próprios limites da bacia hidrográfica do Vaza-Barris. Para entender
Canudos, teríamos de colher informações na Várzea da Ema, para saber se de fato
era de lá que vinham os suprimentos proteicos, para além da Serra Vermelha, na
região da Toca de Pedra. [...] E a pólvora era fabricada em Canudos? Trazida do São
Francisco? Ou garantida dessas duas formas?68

Desta forma, se é verdade que a fronteira da penúria não chegou a ser trans-
posta, nem por isso Belo Monte deixou de representar, para a população que a
ela se dirigiu e que com ela manteve expressivo contato, novas possibilidades de
vida, manifestadas, entre outras coisas, no significativo comércio estabelecido com
diversas aldeias da região, atraindo pessoas com algumas posses a mais, como An-
tônio Vilanova; com sua gente, ele exerceu forte liderança no terreno comercial, a
ponto de seus vales serem amplamente aceitos na região como substitutos do di-
nheiro.69 Euclides, a contragosto, reconheceu: “O certo é que [Antonio Conselhei-
ro] abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas e produtos do trabalho
comum”.70 Honório Vilanova não teve dificuldade em identificar no Belo Monte
“um pedaço de chão bem-aventurado. Não precisava nem mesmo de chuva. Tinha
de tudo. Até rapadura do Cariri [...] Não havia precisão de roubar em Canudos,
porque tudo existia em abundância, gado e roçado, provisões não faltavam”.71
Assim, trabalho coletivo e a apropriação também coletiva de parte de seus
produtos fundam uma outra lógica econômica, reforçada pelo caixa comum des-
tinado a atender as necessidades do arraial, especialmente de quem portasse mais
necessidades e fosse incapaz de supri-las. Feito de parte do excedente da produção
e dos salários de quem eventualmente trabalhasse nas redondezas, nutria-se tam-
bém dos recursos que os novos habitantes do arraial traziam, bem como de doa-
ções que peregrinos deixavam e de esmolas conseguidas nas redondezas. A prática,
tornada preceito, rezava: “Quem tiver bens, disponha deles e entregue o produto
da venda ao bom Conselheiro, não reservando para si mais que um vintém em
cada cem mil réis”.72 Já vimos o barão de Jeremoabo mencionando a “aluvião de
famílias”, desejosas de tudo “vender, apurar algum dinheiro e ir repartir com o
Santo Conselheiro”, indício claro, para ele, de comunismo.73 O resultado é mar-
cante: “[O Peregrino] não dormia com um tostão de um dia para o outro. Se rece-
bia esmolas, logo as passava a quem se achasse junto dele. Ou mandava comprar
panos para vestir os necessitados”.74
O que para Euclides soava aberração, para o barão denunciava comunismo,
para a gente belomontense instituía a solidariedade como valor econômico, viabi-
lizador da existência em outros moldes:
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 135

Cada pessoa tinha o direito de conservar sua criação e roçado. No ato da chegada,
cada um entregava metade do que possuía. Os desvalidos eram alimentados. Os
demais viviam do seu trabalho [...] Canudos ia, assim, vivendo sob a vigilância de
Conselheiro. Havia gado para o açougue. Os paióis continham provisões. As roças
estavam plantadas. Enquanto isso, a influência de Conselheiro se estendia pelos
sertões, aumentando, por isso, o temor dos fazendeiros e das autoridades.75

E há quem nesta prática reconheça inspiração bíblica, a radical partilha dos


bens que, segundo o texto de Atos dos Apóstolos 2,42-47 e 4,32-37, teria dado a
tônica dominante da vida da primeira comunidade cristã. De qualquer forma, não
se pode deixar de perceber o estabelecimento de uma “economia religiosa”, clara-
mente diferenciada aos olhares de quem para Belo Monte se dirigiu, bem como
de quem trabalhou por sua destruição. Se não se terá buscado um “igualitarismo
radical”, como se vê pela qualidade diversa das residências, pela existência de um
bairro habitado pelos “mais ricos do lugar”, a liderança militar76, e pelas atividades
de um Antônio Vilanova, o principal comerciante do arraial, ou de um Joaquim
Macambira, que mexia com couro de bode, ou ainda pela apropriação privada de
parcela da produção familiar, nem por isso é possível negar que a organização social
e econômica ensaiada no arraial, inspirada profundamente em valores mutualistas
de cunho religioso, se mostrou diferenciada para tantos quantos a ele se dirigiram,
inclusive doentes, que, em grande número, “chegavam também a Belo Monte em
demanda de cura a suas enfermidades”.77 Afinal de contas, a grande maioria das
pessoas que viram Belo Monte como uma realidade promissora era feita por “de-
serdados dos favores da civilização”.78 Sinal e fruto desta “economia religiosa” são
as outras atividades a que, freneticamente, os belomontenses se dedicavam, e que
cabe considerar agora.

Edificavam

Belo Monte se tornava visível pelo afluxo cada vez maior de pessoas que a
ela se dirigiam, esvaziando as fazendas da redondeza, como já vimos o barão de
Jeremoabo lamentar. E seu porte ia tornando-se sempre mais perceptível por conta
da frenética atividade de construção de casas para receber os novos habitantes. O
engenheiro-escritor Euclides não esconde ao mesmo tempo seu incômodo e admi-
ração em relação a este empreendimento, por conta de sua quantidade e grandio-
sidade, e principalmente por sua aparente desordem, que tanta serventia haveria
de ter na guerra.
136

Tenha ou não o conjunto finalidade estratégica, o que importa aqui é salientar


que as centenas de casas construídas eram bastante rudimentares (salvo algumas
poucas exceções, chamadas “casas de telha”, perto da praça das igrejas), tendo de
dois a três cômodos em média, o que permitiria o erguimento de até doze por dia.79
As casinhas eram

construídas muito toscamente, sendo as paredes feitas com paus grossos amarrados
sob varinhas e cobertos de barro branco. Os tetos de algumas eram feitos de folhas
de icó e palha cobertas de barro com pedrinhas roliças. Tinham apenas uma sala,
um quarto e um compartimentozinho que servia de cozinha e sala de jantar ao
mesmo tempo.80

Mas elas não se distinguem das casas de que a maioria dos sertanejos dispunha nos
lugares de onde vinham. E se dão conta de uma “pobreza repugnante”, não o fazem
simplesmente no tocante ao arraial, mas também ao universo em que a gente sertaneja
vivia mergulhada, bem como do contingente que ia para lá instalar-se, mesmo que
precariamente, com a mesma precariedade de seus lugares de proveniência. Mas com
esperanças renovadas e possibilidades outras. E isso Euclides não podia compreender, já
que para ele tal rusticidade e modéstia expressavam, “mais que a miséria do homem, a
decrepitude da raça”. Como seu símbolo mais eloquente, o oratório:

neste, copiando a mesma feição achamboada do conjunto, santos mal acabados,


imagens de linhas duras, objetivavam a religião mestiça em traços incisivos de ma-
nipansos: Santos Antônios proteiformes e africanizados, de aspecto bronco, de feti-
ches; Marias Santíssimas, feias como megeras...81

Mas a construção de casas define ruas e vielas, e aí a avaliação euclidiana assu-


me tons ainda mais severos. Se os casebres aparecem mal dispostos, “em completa
desordem relativamente a alinhamento, tendo apenas algumas ruazinhas que indi-
cavam ter havido esmero na edificação”82, o conjunto perfaz a “urbs monstruosa, de
barro”, que “definia bem a civitas sinistra do erro” e “parecia estereografar a feição
moral da sociedade ali acoutada. Era a objetivação daquela insânia imensa”.83
Mas o próprio Euclides tinha tido outras impressões. Quase no fim da guerra,
quando então divisou o arraial, o repórter não pode conter o espanto ao se deparar
com o “acervo incoerente de casas [...] compactas e unidas no centro de cada um
dos bairros distintos”. A disposição delas revela uma organização incompreensível:
“as duas únicas praças que existem excetuada a das igrejas são o avesso das que
conhecemos: – dão para elas os fundos de todas as casas; são um quintal em co-
mum”.84 E a caminhada pelo “arraial maldito” o deixou ainda mais surpreso:
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 137

Às vezes cinco ou seis casas alinham-se como numa tentativa de arruamento, mas
logo adiante em ângulo reto com a direção daquelas, alinham-se outras, formando
martelo e dando ao conjunto uma feição indefinível, constituindo um largo
imperceptível e imperfeito para o qual dão simultaneamente os quintais, a frente
das casas que se enredam desordenadamente. As mais das vezes, porém, nem isso se
dá: as casas acumulam-se em absoluta desordem, completamente isoladas, algumas
entre quatro vielas estreitas, unidas outras, com as testadas voltadas para todos os
pontos, cumeeiras orientadas em todos os sentidos, num baralhamento indescrití-
vel, como se tudo aquilo fosse construído rapidamente, vertiginosamente, febril-
mente – numa noite – por uma multidão de loucos!85

A loucura aparece apenas no final do fragmento; no seu interior predomina o


espanto frente a uma lógica que o escritor não conseguia desvendar. Daí várias per-
guntas poderiam ser levantadas: seria este “quintal comum” o lugar dos “apêndices
para criação de porcos e galinhas”, notados por outra testemunha?86 Como enten-
der que a Lélis Piedade, organizador do Comitê Patriótico da Bahia, destinado a
cuidar dos feridos da guerra, Belo Monte tenha parecido “uma verdadeira cidade,
em que [o Conselheiro?] presidiu relativo bom gosto no estabelecimento”?87 A
conclusão seguinte é cortante: “se de algum modo, talvez fosse possível, no caso,
associar a morfologia urbana à ordem moral estabelecida, explicações menos pro-
fundas – quem sabe – seriam mais verdadeiras”.88
De toda forma, a percepção da “incoerência” e a denúncia insistente da desor-
dem vêm de pessoas que estão, no seu mundo de origem, assistindo a um movi-
mento de frenéticas reformas urbanistas: em São Paulo e Rio de Janeiro o que mais
se vê são alargamento de ruas, rasgo de avenidas, despejo de populações pobres. E,
justamente por isso, denunciam arcaísmo numa ocupação do espaço em que o pú-
blico aparece como referência organizadora. Mas o aleatório do mutirão para cons-
trução de casas e a peculiar e espontânea disposição destas parecem reforçar ainda
mais os vínculos entre os moradores do arraial. A peculiaridade deste se mostraria
também aí, nesta recriação do ambiente. É como se o compadrio generalizado na
vila (do qual ainda terei de tratar) tivesse tecido seus laços por entre as casinholas
avizinhadas. A inventividade da gente conselheirista definiu criativamente os inter-
câmbios entre espaço privado e público. E o coletivo terá sobressaído, possibilitan-
do a vida do arraial, e solidarizando todos os seus habitantes até a resistência final e
a morte. Manifestação dos “inúmeros artifícios dos ‘obscuros heróis’ do efêmero”89,
a ponto de fazer parecer que tal disposição anárquica das casas foi planejada para
dificultar nela o movimento de gente suspeita, como exércitos: “construções ligei-
ras, distantes do núcleo compacto da casaria, pareciam obedecer ao traçado de um
plano de defesa”.90
138

E a pergunta fica, mais para surpreender que para imaginar resposta: como
terão os belomontenses viabilizado cuidados ao mesmo tempo com a guerra e com
a construção de casas, já que depois do início dos combates a população do arraial
cresceu bastante?
Mas em meio a tão frenéticas e cotidianas atividades de construção, outras
edificações se faziam tão necessárias e decisivas, como que a dar sentido ao rápido
crescimento do arraial: as igrejas, que deveriam dar a Belo Monte a expressão mais
clara de sua identidade. E Antonio Conselheiro, que em 1876 (nos dias de sua
prisão na Bahia e julgamento no Ceará) declarara que “minha ocupação é apanhar
pedras pelas estradas para edificar igrejas”91, com a sua experiência de mais de vinte
construções feitas ou restauradas (entre igrejas, capelas e cemitérios)92, se dedicou
intensamente à construção delas, tendo sido conservados vários testemunhos dan-
do conta de sua presença na coordenação das obras e na mobilização para conse-
guir recursos para elas.93 E se novas indicações quanto à datação da igreja de santo
Antônio, propondo 1896 e não 1893 como ano do seu término e inauguração,
têm razão94, pode-se dizer que Belo Monte viveu, em grande parte, em função da
edificação das “duas altivas igrejas sinistramente célebres”95, sendo que a última, a
do bom Jesus, não chegou a ser terminada, destruída que foi em meio ao bombar-
deio da quarta expedição enviada contra o arraial. Aliás, foi um incidente relativo
a madeiras compradas, e não entregues aos conselheiristas, o pretexto para o envio
da primeira expedição policial contra o vilarejo.
A construção das igrejas envolveu grande parte da gente belomontense, e ca-
lou fundo entre os inimigos e algozes do arraial:

Quando o Conselheiro empreendeu os trabalhos da igreja nova grande parte dos


homens, deixando a outros a tarefa da lavoura, seguiam em bandos numerosos para
as matas distantes à procura de madeiros colossais, que conduziam aos ombros, para
o vigamento do templo em construção [...] Por outro lado, as mulheres, as crianças
e os velhos, que não podiam abordar outros serviços, entoando estrofes de um sen-
timentalismo desolador, mal pronunciadas e mal compreendidas, carregavam pedra
para o famoso edifício católico...96

É de se notar o lugar que têm os relatos sobre a construção das igrejas nas
memórias dos grupos indígenas envolvidos com Belo Monte97, bem como naque-
las de sobreviventes ao massacre: “Trabalhei carregando pedras para a igreja nova,
trazendo cal da Vargem, a nove quilômetros daqui. Quando a carga era muito
pesada, bastava ele [o Conselheiro] tocar, para o pessoal achar que ficava leve”.98
A leveza do trabalho duro se insere num contexto muito mais amplo, e da maior
relevância para a gente conselheirista: a abertura para o alto e a comunicação com
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 139

o outro mundo, que organizam seu mundo e seu cotidiano. E, mesmo que não
tenha sido percebido “como um centro do mundo, fulcro de um espaço sagrado”99,
Belo Monte não deixou de realizar sua “construção ritual do espaço”100: os templos
o evidenciam, com o afluxo de peregrinos, as doações, as festas. Algo que Euclides
não teria podido apreender senão pela ótica do fanatismo e da irracionalidade, e
por isso lhe soou apenas desordem.
Assim, mais que a óbvia ressonância do referencial eclesiástico e sua lógica,
deve-se notar no santuário o lugar da congregação. Mais que o espaço do sacerdote
que ministra os sacramentos, é o ambiente das imagens colocadas em comum e em
que acontecem as liturgias, devoções e cantorias. Na prédica sobre a construção do
templo por Salomão, o Conselheiro retoma a oração lida em 1 Reis 8, destacando
que o santuário foi erguido “para que ouvísseis as orações do vosso povo. Ouvi,
pois, Senhor, a todos os que neste lugar orarem e sede-lhes propício”.101 Na inau-
guração da igreja de santo Antonio, a ênfase recai de novo na coletividade que erige
um santuário para se reunir:

foi o Bom Jesus (nutro a mais íntima satisfação de declarar-vos) que tocou e moveu
os corações dos fiéis para me prestarem as suas esmolas e os seus braços a fim de
levar a efeito a obra de seu servo. [...] eles devem ficar plenamente satisfeitos por
terem concorrido para a construção da Igreja do servo do Senhor, [...] testemunho
que demonstra o zelo religioso que tanto os caracteriza.102

Há que se notar também a importância da igreja, como organizadora do tem-


po e das atividades, inclusive durante a guerra. No contexto da carnificina perpe-
trada pelos soldados da quarta expedição e da valente resistência dos sertanejos, o
sino “nunca deixou de dar as ave-marias, como para chamar os fanáticos à medi-
tação e à prece, cujo exercício lhes fortalecia a alma e inflamava-lhes o sentimento
da religião”103; ao tocar, cessam os tiros (e isso para sorte dos militares, conforme
reconhecido por eles mesmos em suas narrativas). Mas o sineiro haverá de morrer
enquanto estiver a tocá-lo, despedaçado junto com os pedaços da torre da igreja
velha, finalmente abatida. E o tempo não será mais o mesmo:

Ao escurecer, o sineiro ia infalivelmente cumprir o seu encargo [...] num estoicismo


sublime desafiava todo o exército, indiferente à fuzilaria e ao canhoneio [...] Mas
numa tarde sucumbiu aquele herói. À hora competente, surgiu ele na torre, empu-
nhando a corda do sino. Aquela, já combalida e quase oscilante por um bombardeio
de duas horas, ainda prometia alguns momentos de equilíbrio [...] Soou a quinta
badalada e, ao vibrar a última, dois disparos fizeram-se a um tempo e duas granadas
juntas chocaram-se contra o pedaço incólume da torre, que ruiu com grande estron-
140

do, descendo a cúpula bruscamente com o sino, esmagando, pulverizando Timóteo


[...] como era natural, nunca mais, soldados e jagunços ouviram as ave-marias em
saudação ao Belo Monte.104

Destruir as igrejas é elemento fundamental na guerra, não apenas porque es-


tivessem elas transformadas em trincheiras e abrigo dos guerreiros belomontenses,
mas porque expressavam, altaneiras, a legitimidade do empreendimento conselhei-
rista. Arriá-las ao chão baixaria junto os ânimos dos belomontenses, a essa altura
já bastante fragilizados na sua capacidade de resistência. Mas também infundiria
ânimo aos atacantes, que de alguma forma se viam desautorizados por aquelas
portentosas e aterrorizantes construções:

[A 6 de setembro] o gigantesco monólito [a torre esquerda da igreja nova] inclinou-


se lentamente e ruiu com espantoso fragor para a frente e, caindo no solo, estron-
dou formidavelmente, escurecendo os ares espessa camada de poeira. Por alguns
segundos desapareceu o templo, para depois ressurgir mutilado, em forma estranha,
tendo perdido seu poder e sua invulnerabilidade [...] descargas sobre descargas de
fuzilaria enviaram milhares de projéteis aos jagunços atônitos e espavoridos, pertur-
bados com aqueles fatos, para eles estranhos [...] Só à noite cessou a grande anima-
ção, que parecia ter infiltrado novo vigor nas fileiras legais.105

Assim, entende-se a irresistível atração que os templos sertanejos, especial-


mente o novo, um “baluarte formidável”106, exerceram sobre as tropas militares.
Destruí-lo era questão de honra. Daí as notícias dando conta das efusivas come-
morações quando “caíram afinal as duas grandes torres da igreja nova de Canu-
dos, pontos que dominavam todo o nosso acampamento”.107 A igreja não apenas
era do inimigo; era, ela mesma, inimiga. E no combate praticamente terminal de
01/10/1897 “um cadete [...] cravara nas junturas das paredes estaladas da igreja a
bandeira nacional”108, naquele lugar onde, até pouco tempo, despontavam, “alta-
neiras e ameaçadoras”109, as duas igrejas com suas “torres insolentes”.110 Era o fim.

Rezavam

A edificação das igrejas em Belo Monte e o esforço dedicado em fazê-las elevar-


se só ressaltam as múltiplas formas da devoção da gente conselheirista, que no arraial
sagrado terão lugar central. Os edifícios concentram boa parte das expressões rituais
do arraial, algo que deve ser entendido em diferentes perspectivas. Ao mesmo tempo
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 141

que congregam a gente da vila para eventos e momentos densos de graça, justamente
por isso contribuem para reforçar a coesão da comunidade. Muito da identidade do
arraial conselheirista se define a partir daí. A convergência de grupos indígenas, de
gente oriunda do trabalho escravo e outros setores terá produzido uma cosmovisão
irredutível aos cânones estritamente católicos do seu tempo, o que certamente torna
o quadro mais complexo e excitante. As rezas belomontenses estão articuladas pro-
fundamente com a autonomia que desenvolviam em outros âmbitos do seu cotidia-
no. Soam tão perigosas quanto o traço “comunista” que vimos o barão de Jeremoabo
denunciar. Expressam uma incômoda liberdade perante a instituição eclesiástica. De
alguma forma as rezas do povo junto com o Conselheiro e as palavras deste cheias
de espírito religioso dão a consistência maior ao arraial.111 Ao Relatório de frei João
Evangelista de Monte Marciano tais detalhes não passaram despercebidos.
No entanto, neste, como em tantos outros aspectos, Belo Monte não está sozi-
nho. As imagens que trazem os santos mais para perto das pessoas estão presentes em
todos os cantos das comunidades sertanejas, em todos os lugares em que se expressa
o catolicismo popular brasileiro, fruto inclusive de diversos intercâmbios que este
constrói com tradições de outras origens.
Mas temos também o dado da veneração da coletividade reunida às imagens
trazidas para o santuário, lugar onde o Conselheiro habitava, enquanto as igrejas não
ficavam prontas. Esta passagem do plano privado para o público, das imagens do ora-
tório doméstico para os espaços de veneração coletiva é que talvez tenha chamado a
atenção de frei João. Ele destacará particularmente o beija das imagens, que o deixou
horrorizado:

As cerimônias do culto a que [Antonio Conselheiro] preside, e que se repetem mais


amiúde entre os seus, são mescladas de sinais de superstição e idolatria, como é, por
exemplo, o chamado Beija das imagens, a que procedem com profundas prostrações
e culto igual a todas, sem distinção entre as do Divino Crucificado, e da Santíssima
Virgem e quaisquer outras.112

Surpreende que o frei, com mais de vinte anos de Brasil, não se tivesse ainda acos-
tumado com uma realidade cuja história é longa, em que a proximidade dos santos se
contrapõe e substitui o Deus patriarcal e implacável.113 Belo Monte materializa este veio
secular e tão característico, “que permite tratar os santos com uma intimidade quase
desrespeitosa”, materializando o “horror às distâncias que parece constituir [...] o traço
mais específico do espírito brasileiro”.114 E se Gilberto Freyre tem razão em apontar a
impossibilidade do entendimento do catolicismo “luso-brasileiro sem essa intimidade
entre o devoto e o santo”115, onde identificar a efetiva razão do horror manifestado pelo
missionário? Em outras vilas por ele catequizadas terá expressado similar espanto?
142

De toda forma, diante das imagens, cantorias e ladainhas, terços e devoções


marcam o cotidiano da gente belomontense, estabelecem o diálogo da terra com
o céu e fortalecem o arraial na coesão tão necessária. E de tais rezas participavam
principalmente as mulheres. Os homens “não eram tanto de frequentar os ofícios.
As mulheres, sim, iam quase todas ao santuário ou à latada, onde rezavam e ouviam
pregação”.116 O quadro é amplo:

As beatas rezavam o dia inteiro. Estavam sempre ajoelhadas no oratório, des-


fiando os rosários, cantando as ladainhas. Até mesmo de madrugada. De ma-
nhã era o ofício. As novenas de Santo Antônio. Cantavam-se os benditos [...]
À boca da noite começava o terço na latada. Diante das muitas imagens de
santos trazidas pelo povo: Nossa Senhora, Santo Antônio, São Pedro, São
João, os Apóstolos. Rezava-se pela madrugada adentro o ofício de Nossa Se-
nhora da Conceição.117

Honório confirma, com seu elenco de santos, a afirmação do frei, que reclama
da indistinção, por parte dos belomontenses, entre Jesus e os santos, para evidente
vantagem destes. Mas a questão é mais ampla que as expressões populares de matriz
católica acima apresentadas. Afinal de contas, na expressão enviesada de Euclides,
a religião sertaneja é “uma mestiçagem de crenças. Ali estão, francos, o antropismo
do selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio aspecto emocional
da raça superior”.118 Em Belo Monte não terá sido diferente. A autonomia frente
à instituição católica, de que se falou, ao mesmo tempo se mostra e se explica pela
existência de elementos religiosos de outras proveniências, que se intercambiam
com aquele de origem branca e portuguesa, formando um conjunto peculiar. A
religião do arraial conselheirista é fruto de um intercâmbio cujos caminhos foram
decisivamente marcados pelas vicissitudes da colonização. Para retomar o caso das
imagens, a proeminência delas no catolicismo se deve, entre outras razões, ao con-
tato dos primeiros missionários com as tribos autóctones a serem catequizadas; a
intimidade com os santos tem a ver com ancestrais procedimentos delas em relação
à divindade. Ao final, onde está o propriamente branco e o propriamente indígena
desta expressão secular?
No entanto, parece adequado salientar alguns aspectos da vivência religiosa
em Belo Monte que complexificam o desenho que sobre esta se costuma fazer e
mostram uma convivência expressiva entre dados de diversas proveniências cultu-
rais. As memórias indígenas sobre a vila conselheirista mencionam traços explícitos
de uma religiosidade fruto de uma circulação criativa de elementos do cristianismo
e expressões autóctones. Por exemplo, segundo depoimentos de descendentes dos
índios Kiriri, eles
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 143

sabiam rezar, acompanhavam “Ave-Maria” [...] Cantavam muitos Benditos, da Igre-


ja mesmo. Os índios tinham as rezas deles, “imitando o Santo Ofício, mas é de
índio: Bendito de Paca, / Louvado o tatu, / Amém Teiú, / Para sempre Cutia, / para
sempre Caititu, / Amém”.119

Intercâmbio curioso, quase um chiste. Mas outra memória de tradições in-


dígenas seja, talvez, ainda mais relevante: segundo uma velha cabocla, havia entre
os Kariri de Mirandela, a festa do cururu, em agosto, mês da quebra do milho.
Dirigida pelos “entendidos”, participavam dela

homens e mulheres que dançavam em roda e cantavam acompanhados de taqua-


ri [...] Em lugar separado ficavam a jurema (bebida feita de jurema, o fumo e a
genebra (a cachaça). Os “entendidos” a certa altura da dança iam tomar jurema
para melhor se comunicarem com os mortos [...] A festa acabou com Canudos. Lá
morreram os últimos pajés, dois dos quais bastante famosos na época [...] Depois
de Canudos não puderam mais fazer a festa porque ninguém sabia como se haver e
nem conhecia o segredo do preparo da jurema.120

Haveria a festa da jurema em Belo Monte? De toda forma, o que esses e tantos
outros dados exigem é que, na avaliação da religiosidade belomontense, e do sertão
em geral, o tema do intercâmbio religioso, comumente denominado sincretismo,
seja considerado com acuidade. Com efeito, estas confluências que resultam na
“religião mestiça” a que Euclides se refere, viabilizam um Pai Cabungá, que fazia
mandingas e enfeitiçava bebidas121, e a ação do curandeiro Manoel Quadrado, di-
vulgador das proezas do anterior, misturador de “meizinhas e rezas”122, conhecedor
não só de mandingas contra cobra, mas dos atributos de inúmeras ervas e outros
recursos utilizados em benzeduras.123
Não tenho condições aqui de detalhar mais essas e contribuições similares,
seja porque faltam informações, seja porque me distanciaria em demasia do alvo
aqui perseguido. Mas é importante ressaltar que, ao detalhar a presença e o sentido
das imagens, referenciais e temas bíblicos em Belo Monte e ao seu redor, tomo em
conta este universo de intercâmbios e influências mútuas e, dentro dele, a apro-
priação e reinterpretação que os bens simbólicos oriundos do texto sagrado católico
sofreram. A importância dessa questão se verifica também na medida em que boa
parte dos entraves que Belo Monte suscitou tem a ver com a relação conflitiva que
estabeleceu com a instituição religiosa católica e os bens que ela oferece a seus fiéis,
junto com a dependência que esta pretende impor. Tomada na sua relação com o
todo do arraial, a experiência religiosa ensaiada evidencia, no geral, uma comuni-
dade em busca da salvação no além a partir de vivências renovadas aqui. Em relação
144

com o contexto exterior, aponta para o problema da autonomia ao mesmo tempo


religiosa, política e social que a “Jerusalém de taipa” ensaia, pela trajetória que tri-
lha instigada por seu líder.
Um último detalhe: as orações conselheiristas estabelecem o calendário e o
cronograma da guerra. Marcam os tempos e as ações. Depois da reza das seis da
tarde os jagunços não guerreiam; em pleno combate contra os soldados do coronel
Moreira César,

o sineiro da igreja velha interrompeu o alarma.

Vinha caindo a noite. Dentro da claridade morta do crepúsculo soou, harmoniosa-


mente, a primeira nota da Ave-Maria...

Descobrindo-se, atirando aos pés os chapéus de couro ou os gorros de azulão, e


murmurando a prece habitual, os jagunços dispararam a última descarga...124

E, pouco depois, diante do moribundo coronel, “um rumor indefinível avassalara


a mudez ambiente e subia pelas encostas. Não era, porém, um surdo tropear de assalto.
Era pior. O inimigo, embaixo, no arraial invisível – rezava”.125 O mesmo se notará no
contexto dos combates com as tropas comandadas por Artur Oscar: na hora da Ave-
-Maria, fim da tarde, o toque do sino, e “o silêncio descia amortecedoramente sobre
os dois campos. Os soldados escutavam, então, misteriosa e vaga, coada pelas paredes
espessas do templo meio em ruínas, a cadência melancólica das rezas”.126
Desta forma, a organização do arraial, toda ela permeada do religioso, das
rezas e das promessas, aterrorizou os inimigos que chegavam. E, com toda a certe-
za, animou até o fim trágico, configurando uma resistência sob todos os aspectos
admirável.

Vínculos

A articulação dos elementos que consideramos (junto a outros, certamen-


te) terá possibilitado forjar uma unidade entre os membros do arraial bastante
consistente, capaz de suscitar admiração inclusive no distante Machado de Assis,
a ponto de o termos visto perguntar pelos vínculos que tão fortemente uniam
a gente sertaneja a seu Conselheiro. A essa pergunta adiciono outra, quanto aos
vínculos entre os fanáticos. As rezas em comum, com o contato e a proteção
dos santos, as curas realizadas por Manoel Quadrado, os ritos de pajés anôni-
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 145

mos, as visitas periódicas do padre com seus sacramentos, dignos de devoção, e


principalmente a palavra autorizada e esperançosa do venerável Peregrino terão
sido elementos poderosos na articulação da comunidade religiosa. O trabalho
em mutirão, o “caixa-comum” e a partilha dos bens entre os habitantes não terão
tido outro efeito.
Mas destaco um poderoso fator de coesão, que frei João Evangelista não
terá notado: o compadrio. Os laços por ele estabelecidos foram decisivos para a
viabilização do Belo Monte. Os batismos feitos pelo pe. Sabino e pelos missio-
nários fizeram surgir em grande número as figuras do compadre, do padrinho e
do afilhado dentro do arraial. Se no contexto sertanejo e rural estas figuras são
extensivamente encontradas, marcando principalmente relações de subordina-
ção127, no caso de Belo Monte é Antonio Conselheiro que vê reforçada sua lide-
rança no arraial, ao aparecer como padrinho de dezenas de crianças, assumindo
o lugar que em geral costumava ser ocupado pelo coronel ou pelo fazendeiro; a
madrinha, o mais das vezes, é Nossa Senhora.128 Com isso os habitantes do Belo
Monte tecem uma intrincada rede, que os solidariza entre si ao mesmo tempo
que os distancia de outra, em cujo topo costumavam figurar algum potentado
regional. Foi provavelmente essa instituição, a do compadrio, que terá feito com
que, depois do combate de Uauá, muita gente tenha se dirigido para Belo Mon-
te, vinda de várias aldeias vizinhas, para lutar com o Conselheiro. Afinal, sabe-se
que este já apadrinhava pessoas desde 1875, logo depois de ter iniciado sua vida
peregrina.129
A experiência vivida em Belo Monte terá ainda possibilitado ensaiar a supe-
ração do que já se chamou, em relação a outro cenário, marcado pela violência
de várias formas e presente em todos os ambientes,

inscrita nas relações de poder. Ela é parte integrante do sistema abrangente de do-
minação do “coronelismo”. O coronelismo vivia tanto da ausência institucional do
Estado como da sua conivência. Foi a disputa pela posse da terra e pelo poder que
deu, na maioria das vezes, origem a conflitos violentos [...] historicamente, a violên-
cia em nome do Estado contra a sua população foi fundadora do Sertão e formou a
sua tradição mais antiga.130

Belo Monte surgiu, em meio a tantos elementos desagregadores da cultura do


sertão, como um empreendimento em que predominaram os fatores de agregação,
que reforçam a consciência, nos indivíduos e famílias, de pertença ao grupo maior.
A consciência de pertença ao vilarejo, construída sobre dados objetivos da vida
nele, em última instância explicará o grau de resistência que a quase totalidade dos
belomontenses manifestou até o final da guerra, até o extermínio completo.
146

E mesmo o episódio relativo a Antônio da Mota, comerciante da vila de Ca-


nudos antes de o Conselheiro ali se instalar e compadre deste, talvez seja a exceção
que confirma a regra. Após o combate com a primeira expedição enviada para
combater Belo Monte, em novembro de 1896, o comerciante e seus filhos varões
adultos foram mortos por ordem (ou com a conivência) de Antonio Conselheiro.
Trata-se de um momento obscuro, visto não se saber esse desfecho teria resultado
da concorrência com o outro comerciante do arraial, Antônio Vilanova, ou pela
circulação de boatos de que o referido comerciante teria passado informações às
tropas que vinham combater o arraial, ou de ambos os fatores.131 Seja como for,
essa expressão inusitada de violência no interior do arraial terá surpreendido e de-
sapontado, a ponto de alguns de seus habitantes se haverem afastado daí.132 Mas é
justamente tal a decepção que permite afirmar que os laços de agregação e de per-
tença mútua terão sido predominantes em Belo Monte, sem que com isso se esteja
querendo afirmar que o arraial foi uma ilha, em que os traços da vida no sertão,
mesmo a violência, não marcaram presença. A austeridade e os princípios morais
ensinados por Antonio Conselheiro, fazendo frente à desagregação e ao “código
do sertão”133, possibilitarão esta experiência, imprimindo ao arraial um sentido
peculiar, capaz de atrair multidões, orientando-o na perspectiva da salvação sempre
ansiada.
No Conselheiro, certamente, reside a especificidade mais profunda encontra-
da em Belo Monte. Disso dão testemunho todos os documentos, desde aqueles
que caricaturizam a figura do Peregrino de forma depreciativa, como Os sertões,
passando por afirmações que não conseguem esconder a admiração, até os depoi-
mentos da gente que com ele viveu e tratou de viabilizar Belo Monte, sem contar
as manifestações militares e eclesiásticas.
Não entro aqui a detalhar os traços do indivíduo Antonio Vicente Mendes
Maciel que tanto marcaram a gente belomontense, nem a recuperar as particulari-
dades de sua trajetória andarilha pelos sertões nos quase vinte anos que precederam
o seu estabelecimento às margens do Vaza-barris, como pregador, rezador, edifica-
dor e reformador de igrejas e cemitérios. De qualquer forma, o perfil do Antonio
Conselheiro que lidera o empreendimento Belo Monte, “figura ao mesmo tempo
estranha e absolutamente central”, é fruto de tal percurso.134 Considero apenas um
depoimento relativo a 1882:

achava-se na povoação [Monte Santo] um célebre Conselheiro, sujeito baixo, mo-


reno acaboclado, de barbas e cabelos pretos e crescidos, vestido de camisolão azul,
morando sozinho em uma desmobiliada casa, onde se apinhavam as beatas e afluíam
os presentes, com os quais se alimentava. Este sujeito é mais um fanático ignorante
do que um anacoreta, e a sua ocupação consiste em pregar uma incompleta moral,
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 147

ensinar rezas, fazer prédicas banais, rezar terços e ladainhas com o povo; servindo-se
para isso das igrejas, onde, diante do viajante civilizado, se dá a um irrisório espe-
táculo, especialmente quando recita um latinório que nem os ouvintes entendem.
O povo costuma afluir em massa aos atos religiosos do Conselheiro, a cujo aceno
cegamente obedece, e resistirá, ainda mesmo a qualquer ordem legal, por cuja razão
os vigários o deixam impunemente passar por santo, tanto mais quando ele nada
ganha, e, ao contrário, promove extraordinariamente os batizados, casamentos, de-
sobrigas, festas, novenas, e tudo mais em que consistem os vastos rendimentos da
igreja. Nessa ocasião havia o Conselheiro concluído a edificação de uma elegante
igreja no Mucambo, e estava construindo uma excelente igreja no Cumbe, onde a
par do movimento do povo, mantinha ele admirável paz.135

O Conselheiro não é padre, não pode ser tomado como usurpador do minis-
tério clerical, muito menos seu representante. Também não foi o simples fato de os
sacerdotes rarearem no sertão de seu tempo que lhe permitiu consolidar a lideran-
ça. O beatismo, de que o Conselheiro é dos mais expressivos representantes, deita
raízes profundas em aspectos da tradição judaico-cristã, de distanciamento frente a
padrões estabelecidos, com forte acento na dimensão ética-comportamental e mís-
tica. É tecida, portanto, uma expressão religiosa em que a autonomia frente a ins-
tituições, inclusive a eclesiástica, é marca significativa. Essa descontinuidade (que
não significa necessariamente ruptura) é elemento fundamental para se entender a
trajetória do Conselheiro e do arraial por ele liderado.
Destaco as formas da liderança que, como beato e conselheiro, este homem
“forte, perseverante, calmo, dominado por uma esperança no triunfo, só compará-
vel à fagueira sedução do seu ideal”, constituiu no arraial.136 O fato de não ser or-
denado exige que o reconhecimento da sua autoridade seja interpretado de forma
alternativa a simplesmente situá-lo no campo da mediação, tida como indispensá-
vel, que os padres afirmam exercer entre os fiéis e o sagrado. Este é o ponto central,
notado claramente por frei João: a liderança do Conselheiro, se não substitui a
dos padres, assenta-se em outras bases, que têm a ver com sua forma de vida (“um
porte grave e ar penitente que não pouco teria contribuído para enganar e atrair
o povo simples e ignorante dos nossos sertões”, bem como “uma certa reputação
de austeridade de costumes”137), com uma autoridade alcançada no cotidiano da
experiência. A acusação de que o líder consente em que seus liderados “lhe prestem
homenagem que importam um culto”, com “vivas” dirigidos a ele e às pessoas da
Trindade, mostra certamente o respeito que lhe dão, embora aos olhos vigilantes e
pouco simpáticos do frei capuchinho tenham soado como “idolatria”.138
A liderança do Conselheiro é de outra ordem, o que a torna ao mesmo tempo
mais vulnerável, pois não garantida de antemão pela força da instituição, e profun-
148

da, tecida pelos dados e possibilidades do cotidiano e alimentada das esperanças e


de sua gente. Junto ao estilo de vida, marcado pela gravidade e penitência, e à já
mencionada autoridade, capaz de não só atrair um séquito significativo como de
receber a confiança que lhe permitiu articular um sistema de administração e dis-
tribuição coletiva de bens, há que se destacar pelo menos mais dois elementos. O
primeiro é que o Conselheiro comparecia às orações do povo, que prolongavam as
que fazia em particular, e de que todos tinham conhecimento. A liderança não lhe
tirava o caráter de participante da comunidade em busca de salvação. O segundo é
o mais visível, e terá alavancado poderosamente sua autoridade, já bem antes dos
tempos do Belo Monte. Mais do que a indumentária, que o fazia parecer um capu-
chinho, era a força de sua palavra, algo reconhecido até pelos inimigos do arraial.139
Os testemunhos são inúmeros, e justificam o apelido com que era conhecido e
reverenciado.140 Segundo frei João, Antônio Maciel “costuma reunir em certos dias
o seu povo, para dar-lhe conselhos, que se ressentem sempre do seu fanatismo em
assunto de religião e da sua formal oposição ao atual regime político”.141
Deixando para mais adiante a consideração sobre o conteúdo das palavras do
Conselheiro, destaco, por ora, a repercussão delas como fator de coesão da comu-
nidade. O venerável ancião, “inculto”, mas de “penetração aguda”142, materializava
sua autoridade nas palavras que organizavam a vida, davam-lhe sentido e permitiam
olhar o futuro. Francisca Guilhermina, cinquenta anos após o massacre, se lembra de
ver o Conselheiro “falando manso, de tarde, para o povo e só dava conselhos bons”.143
Segundo Maria Guilhermina de Jesus, “havia muita fé no Conselheiro e os ensina-
mentos dele era uma felicidade ouvir, pois só pregava para o bem”.144 E nas missas
rezadas a cada quinze dias pelo pe. Sabino os sermões são do Conselheiro.145 Por
outro lado, o Conselheiro reconhece que usou palavras agressivas só contra a “maldita
república” e os vícios desagregadores da comunidade.146 Afinal, são palavras “para a
salvação dos homens”, como se lê na abertura do caderno de 1895.
Portanto, daquilo que se pode recolher do que foram a presença, ação e palavras
do Conselheiro, conclui-se que contribuíram decisivamente para o estabelecimento
de uma vila em que a convivência e a apropriação dos bens tivessem uma perspectiva
mais comunitária e assim a salvação no além se preparasse, o que atraiu milhares
de miseráveis e despossuídos, gestando uma alternativa viável enquanto a repressão
militar, a mando das oligarquias regionais e posteriormente nacionais, não se mani-
festou. Aliás, com a demora da guerra, “o vulto de Antonio Conselheiro ia assumindo
proporções cada vez mais fantásticas”.147 Justamente o papel de conselheiro permite a
ele, tido como de vida ilibada, dedicada à oração e à penitência, catalisar em torno de
si gente de tantas proveniências e viabilizar uma alternativa histórica destacada, sob
todos os pontos de vista. Na sua trajetória se expressam, de maneira ao mesmo tempo
sintética e densa, os anseios e expectativas da forte gente sertaneja.
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 149

Concluo esta parte do percurso, que considero fundamental. Cabe afirmar


que, embora seja importante “ler Canudos como parte da realidade social e política
no Brasil, e não como uma oposição a ela”, em que “as lutas entre grupos familiares,
a privatização do público, a formação de um oligopólio de violência, a exclusão so-
cial foram práticas” presentes, e assim evitar “maniqueísmos sociais e históricos”148,
bem como idealismos, é crucial não subestimar as diferenças que o arraial conse-
lheirista estabeleceu, entre dialética e circularidade, com a realidade ao redor, em
seus variados aspectos, sob pena de não se entender primeiramente a atração que ele
exerceu sobre a gente sertaneja, e depois a guerra e o massacre, pedidos, apoiados
e comemorados por praticamente toda a elite, primeiro a baiana e depois a nacio-
nal. Se é verdade que a consideração do “ideário religioso” como “a força motriz e
modeladora” do Belo Monte149 não o transforma num oásis absoluto, desarticulado
das circunstâncias que o fizeram surgir, sem as quais nem é inteligível, também é
importante salientar os caminhos originais que ele trilhou, o que inevitavelmente
faz perguntar por suas possibilidades não realizadas150, truncadas que foram pela
repressão brutal, que não ocorreu sem motivos, ou por pretextos meramente cir-
cunstanciais. A ela passo agora, ao encontro também da heroica resistência.

3. DELENDA, EM NOME DO PROGRESSO E DA RE-


LIGIÃO
Carlo Ginzburg, no seu já clássico O queijo e os vermes, avaliou a possibilidade
de tomar “um indivíduo medíocre [...] como se fosse um microcosmo de um de-
terminado período histórico”.151 Num outro patamar, e retomando a imagem da
“encruzilhada” empregada no início do capítulo, quero aqui considerar os eventos
relativos a Belo Monte, e em particular os trágicos movimentos que o levaram à
destruição como sinais eloquentes de uma época, e principalmente, do modelo
político que a República à sua maneira reiterou no país. Por isso, não pretendo aqui
refazer uma vez mais os passos e detalhes da guerra que, a cabo de quase um ano (de
novembro de 1896 a outubro de 1897), deu fim a Belo Monte e a quase toda sua
gente; exposições neste sentido são facilmente encontradas.152 Procurarei aqui, pela
consideração de alguns lances do embate, realçar a significação de Belo Monte para
a conjuntura da época e em que sentido a experiência conselheirista é reveladora
dos dilemas e contradições da sociedade brasileira de então, que, na passagem de
um regime político a outro, via as estruturas sociais e políticas fundamentais sendo
preservadas e reproduzidas em outros moldes. Pois progressivamente Belo Monte
e a articulação maior que se foi estabelecendo ao seu redor estimularam reações
150

das elites que comandavam a região (incomodadas por razões de ordem variada),
aguçando conflitos internos a elas na disputa pelo poder estadual, ao ponto de
interferirem decisivamente nos rumos que a jovem República estava tomando. E
dou especial destaque à participação da Igreja Católica, particularmente de sua hie-
rarquia na Bahia, no seio do processo que haveria de levar Belo Monte à completa
destruição; ela teve, aí, envolvimento semelhante ao assumido em outras oportu-
nidades. E caberá, na medida das informações disponíveis, avaliar o que significou
a guerra para a gente belmontense, e perguntar pelas razões da incrível resistência
que ofereceu, “rezando e caindo na bala”153, até a destruição completa.

Mudar para conservar

As campanhas contra Belo Monte, em que não poucos contingentes militares


de todo o país se envolveram, se explicam bem se as enquadramos dentro de todo
o esforço que o poder republicano teve de fazer para legitimar-se. A definição de
inimigos a serem combatidos e a eliminação de virtuais focos de contestação ao
regime definiram boa parte dos empenhos dos governos republicanos que atuaram
na primeira década do novo regime. Além disso, este buscava nesse tempo definir
sua forma, em torno do que vários grupos conflitavam. Neste jogo de forças o mas-
sacre, nas condições em que ocorreu, foi decisivo: o arraial “desapareceu em nome
da ordem, da civilização e da moralidade do Brasil”.154
O arraial conselheirista não se tornou assunto nacional apenas com a designação de
Moreira César para comandar a terceira expedição militar, embora com ela e principal-
mente depois de seu fracasso todo o país pareça ter entrado em polvorosa, a se julgar pelos
testemunhos jornalísticos e pelas intensas movimentações políticas, na capital, em São
Paulo e um pouco por toda parte. O acontecimento de Masseté já provocara reações no
sul, como a observação de Machado de Assis já mencionada comprova. Mas sem dúvida
num primeiro momento Belo Monte foi percebido muito mais como ameaça e risco para
a ordem social e política baiana, e em particular para os fazendeiros e lideranças políticas
da região. Foi neste âmbito mais restrito que se desenvolveram os primeiros lances visando
a destruição do arraial. Como vimos, ele indicou a viabilidade de alternativas sociais e reli-
giosas em que a dependência frente às estruturas de poder secularmente estabelecidas não
era inevitável; o que, certamente, se espalhou pelos sertões, por exemplo, na criação de um
cenário amplo de reações aos novos impostos republicanos. O relatório do intendente de
Monte Santo, já mencionado, é testemunho eloquente de que as manifestações de 1893,
que desembocaram em Masseté, estavam fazendo história, estimulando outros arraiais e
vilas a rebeliões anti-fisco. O rompimento da quase totalidade dos padres com o Conse-
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 151

lheiro também não logrou enfraquecer a liderança deste; pelo contrário, terá confirmado
a autonomia de sua pregação e legitimado a sua ação diante da gente sertaneja.
Ligado a estes detalhes, e de alguma forma decorrente deles, surge o dado já mencio-
nado da vinculação a Antonio Conselheiro, que não se resume aos milhares de habitantes
do arraial, mas estava espalhado pelo sertão. Este é um aspecto fundamental para se ava-
liar a importância – e o perigo – que Belo Monte representava: muita gente, de diversos
pontos do sertão, vinha solicitar que a expedição mandada contra Antonio Conselheiro
e seu séquito, e que finalmente os combateu em Masseté, desistisse de seu intento, “a fim
de evitar-se imerecida perseguição a um homem puramente pacífico e a uma gente que
mal algum produzia a quem quer que fosse”.155 Mais: além dos pedidos, “os habitantes da
região tinham instalado emboscadas ao longo do caminho a ser percorrido pelas tropas,
com o objetivo de retardar o seu avanço”.156 Também a missão de frei João Evangelista
encontrara conselheiristas, no que interpretou como “uma guarda avançada do Antonio
Conselheiro”, quando ainda se encontrava a três léguas do Cumbe!157
Tal teia terá sido fundamental no fortalecimento da resistência às expedições
oficiais, como se vê pelas afirmações aterrorizadas, do comissário de polícia de
Pombal, após o combate de Uauá:

parece que se decorrerem mais alguns dias, sem que se trave novo combate entre as
forças legais e os sequazes de Antonio Conselheiro, a população deste município e
a dos limítrofes ficarão reduzidas a menos da metade, tendo em vista os numerosos
grupos que têm saído em direção a Canudos, no propósito de reforçar os fanáticos
de Antonio Conselheiro. Todos os dias chegam notícias verdadeiras, trazidas por
pessoas que moram à margem das estradas que conduzem a Canudos, da passagem
de grandes grupos de homens armados, que se dirigem para ali, no empenho por
eles confessado de se baterem e morrerem por seu Bom Jesus, pois tal é o modo por
que eles tratam esse homem pernicioso [...] Infelizmente, não são somente municí-
pios desta zona que têm contribuído com reforços numerosos para continuação da
luta entre Antonio Conselheiro e o Governo, pois é público e notório nesta vila, por
notícias vindas de diversos pontos do rio S. Francisco, que de numerosas localidades
daquele sertão têm descido para Canudos grandes contingentes de homens armados
e de munições bélicas.158

Esta rede tinha perfil inusitado, ao incorporar algumas poucas pessoas que exer-
ciam função de liderança no sertão. Por exemplo, o chefe de polícia de Itiubá, em plena
guerra, é acusado de proteger conselheiristas.159 Enfim, a força dela dificilmente pode
ser minimizada. Febrônio de Brito reconheceu-a como uma das causas do fracasso
da expedição por ele comandada: para destruir o arraial maldito, dizia, é necessário
“desconfiar de tudo e de todos”, pois “quem lá [em Belo Monte] não tem filho, tem
152

genro, tem irmão e as exceções são raras”.160 E aos soldados da quarta expedição chegar
perto da “cidadela do crime” trazia a sensação de se estar cercado pelo sertão, vigiado
por todos os lados: “Estávamos nas imediações dessa população dominadora de vastas
regiões, dilatadas pelo seu poder expansivo para os quatro pontos cardeais do sertão”.161
Até aqui uma fonte dos reclamos quanto ao arraial maldito. Mas a queixa
mais imediata dos fazendeiros e líderes políticos nos primeiros tempos do estabe-
lecimento de Belo Monte foi sobre a perda da mão-de-obra barata e abundante
de que dispunham; grande parte dela estava largando tudo e se dirigindo para
junto do Conselheiro. Parecia-lhes o segundo grande golpe, depois da abolição da
escravatura: “Com a abolição do elemento servil ainda mais se fizeram sentir os
efeitos da propaganda [conselheirista] pela falta de braços livres para o trabalho”.162
E ocorreu que se engrossaram as fileiras do pseudo-enviado divino. As cartas en-
viadas ao barão evidenciam essa percepção generalizada entre os fazendeiros: “por
causa do flagelo do Conselheiro não há trabalhadores”.163 O apelo representado por
Belo Monte se revelou tão incisivo que “nem os proprietários, nem os fazendeiros,
podem contar com os moradores e vaqueiros”.164 Desta forma é que “foi escasse-
ando o trabalho agrícola e é atualmente com suma dificuldade que uma ou outra
propriedade funciona, embora sem a precisa regularidade”.165
Por outro lado, para os fazendeiros a abolição da escravatura oficializou o ócio,
e Belo Monte é o seu lugar privilegiado. Aliás, desde que o Conselheiro começou
sua vida peregrina não aconteceram senão “a desorganização do trabalho e os efei-
tos da ociosidade”. O fato de mencionar os trabalhos de construção de capelas e
cemitérios mostra que ao barão e a seus amigos importa apenas o “labor costumei-
ro”166, pensado obviamente a partir da relação patrão-empregado. A identificação
da gente sertaneja como ociosa faz parte da estratégia de sua estigmatização.167
Até aqui o não-funcionamento das propriedades e a ociosidade suposta. Mas o
problema não se reduzia a isso, segundo os apavorados fazendeiros. O deslocamento
para Belo Monte não foi inocente ou despretensioso; de alguma forma se voltaria
contra eles, na forma de ameaça à existência das propriedades, como diz um dos ami-
gos do barão: “compreendo que, quando a miséria, que já começa a manifestar-se em
Canudos, tomar proporções maiores, os roubos e assassinatos serão a consequência
do pouco caso com que se olha para os primeiros atos daqueles monomaníacos”.168 O
receio da invasão das propriedades alimentou a imaginação. E virou boato:

o Conselheiro conserva-se no seu sólio [depois da expedição Febrônio] dando suas


ordens e baixou uma ordem do dia dizendo a seus adeptos que logo que acabasse
esta luta iam arrasar tudo [...] e fazendo brinde das seguintes propriedades [segue-
se a lista de algumas, pertencentes a amigos do barão] o seu Engenho Camuciatá,
depois de assassinar-lhe, a José Vilanova – e outras mais propriedades a outros.169
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 153

E no início da guerra o medo só fez aumentar. Telegrama publicado em um jornal


da capital do país, no início de 1897, informava que “o Barão de Jeremoabo segue ama-
nhã para Itapicuru, a fim de buscar a família e os objetos de valor intrínseco e estimativo
que possui, visto recear que suas fazendas sejam atacadas pela gente do Conselheiro”.170
E os jornais davam crédito a informações desse teor, garantindo que as pro-
priedades já estavam sendo ocupadas:

o testa-de-ferro asceta [o Conselheiro] tem em torno de si criminosos de todos os


Estados e malfeitores de toda ordem, e com eles arrebata fazendas, estabelecimen-
tos rurais, grandes propriedades, abrigando nelas a sua gente depois de trucidar os
donos e suas famílias.171

Outra passagem mostra o barão aguardando a “devastação de minha proprie-


dade e a partilha das mesmas aos subchefes da seita, cuja doutrina é o comunis-
mo”.172 Com razões apenas supostas, o certo é que esse quadro se difundiu am-
plamente, não sendo de se estranhar que tantos fazendeiros da região, na guerra,
viessem a se tornar os maiores apoiadores dos ataques policiais e militares, ofere-
cendo suas fazendas para abrigo e suporte às tropas. Não é necessário estender-se
mais: a grande propriedade constituiu-se em fator decisivo na mobilização contra
o Belo Monte, a despeito de todos os custos implicados nos combates e na logística
por eles exigidos.173
Outro aspecto da escalada crescente do medo junto aos fazendeiros do sertão
é o fato de o arraial conselheirista contar com um expressivo contingente negro
entre sua população, o que só agrava o quadro de vagabundagem e ociosidade antes
pintado, com repercussão inevitável em outros pontos do país. Afinal de contas, o
debate, então em curso, sobre as “classes perigosas” tinha como alvo preferencial
a gente negra, que fornecia a elas “membros potencialmente permanentes”.174 No
tocante a Belo Monte, não faltam afirmações desse teor, em que a denúncia da
criminalidade generalizada leva a outras conclusões: “Temos muito breve de ver
este sertão confiscado por ele e seu povo; pois está com 16 mil pessoas; povo este
miserável tudo que foi escravo, tudo que é criminoso de todas as Províncias: não
tendo uma só criatura que esta seja humana”.175
O fenômeno não é isolado: no Brasil da República recém-proclamada é enor-
me o pânico frente aos contingentes saídos da escravidão, que precisavam ser con-
vertidos em trabalhadores. A guerra contra Belo Monte se enraíza também nesse
anseio das elites latifundiárias do sertão. O arraial inscreve a região na onda de
medo quanto ao que pudessem fazer as populações negras, agora ex-escravas.
A presença significativa da gente negra em Belo Monte reforça a tendência de
desclassificar seus habitantes. Os amigos do barão os apresentam como “monoma-
154

níacos”, “sicários”, “endiabrados fanáticos” assassinos, responsáveis por todo tipo


de crime, guiados pelo “Conselheiro Antônio da malvadeza”, o “monstro horroro-
so do Brasil”. A guerra não atenua o quadro; pelo contrário, os “maltrapilhos e qua-
se inermes fanáticos”, “pobre gente vítima da ignorância e superstição”, praticantes
de “atos de requintada selvageria”, são mesmo “pobres-diabos”.176
Como se vê, não é necessário esperar Nina Rodrigues e mesmo Euclides da
Cunha para se perceber o curso de uma “retórica da intransigência” relativa a Belo
Monte, que alimentará tendências do momento em ver na ação das multidões
motivações irracionais e incontroláveis, portanto perigosas.177 Se desde a aparição
do “anacoreta sombrio” em 1874 no interior do Sergipe começou um processo de
“cerco discursivo” à sua figura, os eventos que levaram a Masseté e ao estabeleci-
mento de Belo Monte reforçaram a necessidade de radicalizar a retórica, até chegar
ao “jagunço”, devidamente ressignificado.178 Com efeito, agora mais do que nunca,
não há dúvidas a respeito dos riscos que corriam os fazendeiros, sempre segundo
sua própria avaliação. Articulados em uma seita, confiantes cegos em seu líder,
crentes na salvação impossível, os belomontenses revelam-se ainda mais temerários.
Se assim é, Belo Monte deveria ter sido liquidado há mais tempo: “É possível
que desta vez [as tropas oficiais] liquidem a questão, embora com grandes sacrifícios e
dispêndios, quando de há muito já poderiam tê-lo feito sem maiores dificuldades”.179
Mas é preciso considerar que Belo Monte contribuiu também para aguçar
os conflitos no interior da elite baiana e, a seguir, da República. Se as cisões no
interior da política baiana, com momentos inclusive de dualidade de poder (no
Executivo e no Legislativo), explicam, por um lado, a ausência de uma repressão
imediata à gente conselheirista após Masseté, esclarecem também as articulações
que deflagrariam a guerra, três anos e meio depois. Por certo tempo o crescimento
de Belo Monte teria servido às facções vianista e gonçalvista que, com interesses
antagônicos, buscavam o controle dos sertões violentos e sua própria afirmação.180
Os vianistas julgavam, ao menos até o fracasso de Moreira César, que o Conse-
lheiro e seus seguidores poderiam servir a seus interesses políticos num reduto
controlado por seus rivais. Já estes poderiam recorrer ao governo central, por conta
da desordem estabelecida em seu território de controle, denunciando a falta de
ação das forças estaduais, e com isso recuperar o poder perdido. As disputas entre
os dois grupos eram intensas, e contribuíram para estabelecer o quadro de violên-
cia pela qual mais tarde a gente de Belo Monte será responsabilizada. As eleições
de 1894, para deputado e senador, acirraram os ânimos dos grupos envolvidos:
muitos municípios do sertão tornam-se palco de violências e disputas. E as deci-
sões e medidas tomadas em relação ao Belo Monte, obedeciam tão de perto, nos
ritmos e nas formas, aos interesses imediatos dos grupos em conflito que já houve
quem pretendesse, não sem exagero, que se tais disputas não estivessem em curso
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 155

o arraial do Conselheiro poderia ter sido poupado do massacre. A ausência de re-


pressão durante o governo Rodrigues Lima era entendida pelos adeptos do barão
de Jeremoabo como instrumento para a desestabilização: “Quem for fazendeiro
nas proximidades de Belo Monte (assim se chamam hoje os Canudos) há de pagar
o descuido e a negligência dos que nos governam”.181
A própria eclosão da guerra terá sido uma das medidas governamentais des-
tinadas a atingir o grupo gonçalvista. A transferência para Juazeiro do juiz Arlindo
de Leoni, com quem Antonio Conselheiro se confrontara nas manifestações que
precederam Masseté, teria tido como escopo alarmar a gente do Belo Monte e
dos arredores, tumultuando com isso as eleições que deveriam ocorrer em fins de
novembro de 1896; ao menos assim pensava um deputado oposicionista.182 E é
sabido que o conflito armado começou exatamente pelo alarme dado pelo juiz,
informando que o Conselheiro viria a Juazeiro retirar, à força, madeiras que com-
prara para a construção da igreja do bom Jesus, que não lhe haviam sido entregues
(a pedido do próprio juiz?), embora efetuado o pagamento. O titubeio inicial do
governador, que enfim enviou a tropa policial sob o comando do tenente Pires
Ferreira (em novembro de 1896), sugere que o movimento conselheirista ainda era
tido como problema menor. Ou poderia ser visto, e houve quem assim percebesse,
como uma atitude destinada a provocar o barão de Jeremoabo e sua corrente po-
lítica. A fuga da tropa só fez crescer o prestígio do Conselheiro e sua gente e, por
outro lado, alarmar os fazendeiros e aguçar a crítica dos opositores ao governador
baiano, logo acusado de conivente e simpatizante:

Ou fosse por motivos políticos ou para convulsionar a todo o quinto distrito, o


certo é que sua excelência [Luís Viana] [...] expediu para Joazeiro uma força de 100
praças de linha para dispersar e debelar o Conselheiro e seu povo [...] Pasmei, quan-
do, pelos jornais, tive essa desagradabilíssima notícia, e reconheci desde logo que
não eram sinceras as intenções do governador. Debelar com 100 praças um exército
de combatentes fanatizados, 50 vezes superior, é uma inépcia que não se pode atri-
buir ao Sr. Dr. Luis Viana e, portanto, outro foi o fim que levou-o a proceder tão
desastrosamente [...] Infelizmente assim foi, e sua excelência é o único responsável
pelo desastre de Uauá.183

A segunda expedição demorou quase dois meses (novembro de 1896 a janeiro de


1897) para se aproximar de Belo Monte e em poucos dias teve sua retirada decidida
pelo comandante, o major gonçalvista Febrônio de Brito, evidenciando a luta nos bas-
tidores do poder, agora com a intromissão do exército, além de mostrar a relutância do
governo estadual em agir mais agressivamente, esperançoso dos serviços que o conse-
lheirismo lhe poderia prestar na região controlada por seus inimigos políticos.184
156

Mas a situação causada pelo malogro da nova empreitada acabou por transferir
a responsabilidade pela eliminação de Belo Monte para o governo federal. O próprio
Febrônio o pediu, por considerar o governo estadual “impotente no caso”, preocu-
pado em fazer “política desgraçada”.185 À oposição a proposta não podia ser melhor,
já que “o doutor Luís Viana [...] ou auxilia indiretamente a gente do Conselheiro ou
não lhe opõe resistência séria”.186 Os acontecimentos ecoam em todo o país:

a opinião pública se levantou como um só homem para exigir que se continuasse


a luta, até que esta produzisse um resultado satisfatório e digno para a legalidade.
Do norte ao sul do país correu – desde logo – um frêmito de profunda indigna-
ção. Canudos começou a ser apontado como o valhacouto de rebeldes, cujo timbre
consistia em ludibriar a república, formando um Governo à parte, e pretendendo
uma independência que, por ser absurda, os colocava mais ainda fora da lei [...] O
princípio da autoridade estava comprometido, senão seriamente abalado, com a
permanência da cidadela de Canudos.187

O pedido do governador baiano para que o poder federal assumisse o coman-


do das operações contra Belo Monte permitiu, então, a união das facções, ao me-
nos para eliminar o cancro conselheirista188, o que serviria de exemplo para as várias
manifestações populares de protesto que infestavam a Bahia da época. E com tal
transferência de atribuições entram em jogo novos personagens políticos, lidando
com interesses mais largos, que mexiam com a própria constituição da República.
O fato de estar na presidência um baiano, Vitorino Pereira, que substituía o ado-
entado Prudente de Morais, permitiu que Belo Monte fosse inserida na teia de arti-
culações e conflitos de que o empenho do vice em derrubar o titular era apenas um
sinal. De fato, vivem-se na época acalorados debates entre correntes republicanas
antagônicas, sem contar a presença de grupos monárquicos atuantes, com os quais
Antonio Conselheiro e sua gente foram logo identificados. O monarquismo do lí-
der de Belo Monte serviu de pólvora para aguçar combates e enfrentamentos entre
os republicanos ligados a Prudente, basicamente as elites cafeeiras de São Paulo, e
os setores ditos jacobinos, vinculados aos militares, particularmente à memória de
Floriano Peixoto, ardorosos defensores da repressão aos grupos monarquistas que
estivessem (ou não) atuando com propósitos restauradores:

O Poder executivo da república [...] entendeu que a honra da pátria e o futuro das ins-
tituições corriam o risco de ser sacrificados nessa emergência que [...] poderia ser fatal.
Era provável, senão certo, que os adversários da situação política dominante viessem a
lucrar com qualquer desastre, que algum dia sofressem as tropas legais; pois assim eles
cobrariam forças e estímulos, em proveito de seus interesses, e aspirações insensatas.189
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 157

Nesse contexto Belo Monte é apresentado pelos grupos jacobinos como parte
estratégica dos projetos restauradores monarquistas, inclusive com financiamento
externo. A indicação do coronel Moreira César para comandar a terceira expedição
(algo que causou temores até nas próprias elites baianas190), e a posterior nomeação
do general Artur Oscar como chefe da campanha seguinte, para dar conta da “santa
causa”191, são significativas: ambos eram ligados aos setores jacobinos da Repúbli-
ca.192 A inesperada derrota de Moreira César, no início de março de 1897, que to-
dos aguardavam submetesse “ao domínio da lei o formidável núcleo de rebeldes ao
mando de um vesânico”193, só fez agravar as tensões entre jacobinos e monarquis-
tas, elevando o tom das matérias jornalísticas de lado a lado. E, em relação a Belo
Monte, o sentimento de que deveria a todo custo ser destruído só ficou reforçado:
em nome da civilização e do progresso o inimigo terá contornos fabricados e seu
monarquismo será o grande pretexto para a guerra:

O movimento insurreicional do sertão da Bahia é monarquista. Não é preciso in-


dagar se sempre o foi, porque, se não o era, nós republicanos, nós mesmos, que o
tomamos como inimigo, lhe demos este caráter. Para monarquistas e republicanos
o movimento dos fanáticos de Antônio Conselheiro é hoje restaurador – para eles,
para se aproveitarem da agitação que domina o interior do Estado da Bahia; para
nós, para a repressão, que temos de fazer dessa agitação. Fosse ou não monarquista
em seu nascedouro, o certo é que hoje o é, e que, como tal tem que ser tomado e,
como tal, tem que ser combatido.194

Neste contexto, a imprensa teve duplo papel no sentido de converter Belo


Monte, ou melhor, a necessidade imperiosa de sua destruição, numa unanimidade
nacional, principalmente após o malogro da expedição comandada por Moreira
César: apresentar o arraial como foco de uma conspiração monarquista interna-
cional e demonizar sua gente, principalmente seu líder. Apenas alguns poucos pe-
riódicos, monarquistas, não assumiram esse caminho, e se viram atacados depois
da derrota de Moreira César, tendo sido assassinado um de seus jornalistas. E não
se trata de um assunto de importância secundária; pelo contrário, é tema de edi-
toriais, crônicas, reportagens, sátiras e matérias humorísticas. Este quase consenso
entre os veículos da imprensa teve papel fundamental no sentido de inviabilizar a
alternativa e impedir o dissenso, apresentando a destruição do arraial como única
possibilidade. A única exceção a este discurso-padrão foi Manuel Benício, que co-
bria a guerra para o Jornal do Comércio de Niterói e não poupou críticas à condução
da ação militar; acusado de ser “autor ou testa-de-ferro da campanha de difama-
ção contra o general [Artur Oscar]”195, foi expulso do teatro de operações, sendo
substituído por um colega mais afinado com o comando das ações. Já Euclides da
158

Cunha, tendo viajado para a Bahia em agosto de 1897 como correspondente de O


Estado de São Paulo, recusa-se a admitir, em suas reportagens, o caráter não-monar-
quista do arraial conselheirista, de que fora informado.196 Além disso, silencia sobre
as atrocidades praticadas pelo exército, tratando de buscar todas as explicações pos-
síveis para a demora deste em conseguir seu intento.
E quando o caráter monarquista-restaurador de Belo Monte começar a virar névoa
aos olhos da opinião pública, percebido como fruto da propaganda exaltada dos grupos
jacobinos interessados em desestabilizar o governo e eliminar os grupos monarquistas
com os quais conflitavam, já será tarde: o monstro construído já estava sendo com-
batido e resistia ferozmente a duas colunas (uma vinda de Aracaju e outra que fez o
caminho pelo interior da Bahia, através de Monte Santo), envergonhando o Exército
e líderes até então consagrados, e exigindo reforço militar ainda maior, como é o caso
do contingente de soldados enviado à região nos últimos meses do combate, tendo à
frente o próprio ministro da guerra, numa movimentação que já foi chamada, provo-
cativamente, de “quinta expedição”.197 Não cabia senão a destruição total, transformar
o arraial em “vastíssimo cemitério com milhares de cadáveres sepultados, outros apenas
mal cobertos de terra e o pior de tudo, outros milhares completamente insepultos”.198
O presidente, de novo Prudente de Morais, exigira: “não fique pedra sobre pedra”.199
Os requintes de crueldade adquiriram sua tonalidade mais sádica; repetia-se

uma cena vulgar. Os soldados impunham invariavelmente à vítima um viva à Re-


pública, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel.
Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e,
francamente exposta a garganta, degolavam-na. Não raro a sofreguidão do assassino
repulsava esses preparativos lúgubres. O processo era, então, mais expedito: vara-
vam-na, prestes, a facão.200

Os militares queriam, também, destruir dos conselheiristas também as últimas


esperanças: a degola era o único suplício temido por eles, pois o Conselheiro prome-
tera a vida eterna apenas “aos que morressem por armas de fogo”.201
No entanto, em meio às efusivas comemorações promovidas quando definitiva
destruição do arraial e da morte de Antonio Conselheiro202, nota-se também a deca-
dência dos grupos jacobinos, primeiramente fomentada pela desmoralização a que o
Exército nacional se viu envolvido por conta de uma campanha tão demorada e con-
duzida de maneira reconhecidamente inábil e cruel (algo que nem as fotos de Flávio
de Barros, “assépticas” e cuidadosamente preparadas, lograram ocultar)203, e acelerada
por sua desesperada tentativa de assassinar Prudente, numa cerimônia em homena-
gem aos soldados regressados da Bahia. Não deixa de ser irônico: se o malogro da
expedição Moreira César, em março de 1897, determinará a repressão e consequente
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 159

enfraquecimento dos grupos monarquistas, vistos como aliados de Antonio Conse-


lheiro e sua gente, a vitória de Artur Oscar, impacientemente esperada, tantas vezes
postergada e finalmente alcançada no início de outubro do mesmo ano com requin-
tes de brutalidade que não foi possível esconder, sinalizará a decadência dos grupos
situados do outro lado do espectro político e que mais pressionaram pela repressão
sem tréguas a Belo Monte: os jacobinos. Desta forma, nada mais se opunha à afirma-
ção do poder nas mãos da burguesia cafeeira paulista e o posterior estabelecimento,
por Campos Sales, liderança do setor “mais acentuadamente conservador na opinião
republicana do país”204, conselheiro de Prudente nos últimos tempos da guerra:

o desfecho da batalha [pelo poder] será ajudado [...] pelo desprestígio do Exército.
Canudos lançará, sob o fogo do entusiasmo jacobino de suas primeiras promo-
ções, a desconfiança na sua eficiência, debandado e sangrado por um punhado de
sertanejos broncos [...] Um sagaz e contundente ensaísta veria bem a extensão do
desastre, que se projeta além da mente inculta de Antônio Conselheiro: “[...] ope-
rou-se a grande transformação política do Brasil, a maior revolução operada entre
nós – a passagem do poder das mãos da Federação, das mãos do Brasil, para as mãos
dos Estados. Não teria sido tão rápida a passagem se não tivesse havido a Guerra de
Canudos [...]. No desprestígio que daquela guerra resultou para o Exército, o poder
havia de ficar nas mãos de quem tivesse mais força: São Paulo”.205

Portanto, para a acomodação dos grupos e interesses envolvidos na implantação


e consolidação do poder republicano, a trajetória do longínquo Belo Monte e as for-
mas de sua brutal repressão representaram um marco fundamental, seja para sinalizar
as formas como as manifestações populares haveriam de ser tratadas, seja por acabar
alijando da disputa, ou ao menos colocando em lugar secundário, setores significativos
das elites. O caminho estava aberto para a oligarquia cafeeira paulista imprimir à Repú-
blica a forma que se lhe mostrasse mais conveniente. A sensação das elites baianas era
compartilhada pelas instâncias de poder nacional: “felizmente de Canudos só existe um
montão de cinzas”.206 E, vinte anos depois, “quase não se ouve falar desse acontecimen-
to calamitoso”.207 Silêncio que demoraria ainda mais.
Desta forma, se houve, no início da década, bem como em toda a luta pelo fim
da monarquia, alguma esperança de que a república trouxesse renovação política, es-
paços maiores de participação, a essa altura a decepção era geral; “nada se mudaria; o
regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele”.208 Deste
caráter conservador e elitista da República aqui implantada os eventos relativos ao Belo
Monte foram reveladores. Ressalte-se ainda que a República ia conseguindo afirmar-se
por ser tida como portadora do progresso, do avanço e da modernização, da civilização
enfim. Mas dificilmente estes valores eram apresentados no intuito de modificar as
160

formas elitistas e autoritárias de mando. As reformas urbanísticas e sanitárias no Rio de


Janeiro do início do século passado, por exemplo, denunciam que a modernização foi
feita às custas de setores numerosos da população. Para estes o progresso viria, se viesse,
depois: agora se trata de impor a ordem, a qualquer custo. A repressão a Belo Monte
acentuou esta característica. Afinal de contas, ele encarnava valores que não primavam
exatamente pela consonância com a racionalidade republicana; encarnava o Brasil a
ser extirpado da consciência geral. A modernidade republicana, que não incorporava
as ideias de participação, igualdade e democracia e, por outro lado, fundava na ciência
mais recente seu racismo, não tinha lugar para manifestações assim tão atrasadas, que
incluíam uma ética da fraternidade, o comunitarismo, a religião tradicional autônoma.
Tamanho arcaísmo não poderia resistir ao encontro com a civilização.
Por outro lado, para a gente sertaneja, a chegada das tropas militares era o terror;
no contexto dos preparativos do ataque da expedição Artur Oscar, “as populações fo-
gem também dos elementos oficiais que não primam pela ordem e nem pela discipli-
na”.209 Para os belomontenses em particular, a guerra final destruía não apenas o arraial,
por uma violência incompreensível, mas as possibilidades da vida tão sonhada, pois o
que se estava a defender era “o seu direito de vida e propriedade contra um governo
audaz, prepotente e sem a menor noção de seus deveres”210; daí os protestos, aqui e ali:

Por que não se retiram como fizeram os outros? [...] Os senhores se apoderaram das
nossas casas, dos nossos potes, das nossas roupas, de tudo quanto tínhamos e, agora,
andamos ao sol e ao sereno, sem termos em que carregar uma gota d’água, nem o
que vestir e nem o que comer. Por que se não retiram daqui e não nos entregam as
nossas casas onde tínhamos fartura de farinha, feijão e milho? [...] Estávamos [...]
sossegados e vocês vieram nos matar.211

Além disso, ficam pelo menos relativizados aqueles argumentos que justificaram a
necessidade da guerra pela suposta violência praticada pelos habitantes de Belo Monte:

A gente do Conselheiro demonstrou que não tinha plano algum de campanha,


nem outra coisa pretendia que não fosse a permanência tranquila no seu célebre
reduto, cuja posse absoluta disputava [...] nem nesse período agudo da luta, nem
noutro qualquer, os fanáticos de Antonio Conselheiro tomaram jamais a ofensiva,
limitando sua ação à defesa do que eles consideravam seu direito e sua liberdade.212

O massacre de Belo Monte contribuiria para que se manifestasse mais rapidamen-


te o caráter elitista e autoritário da República, incapaz de lidar com o dissenso e a alter-
nativa. Não foram muitos os que o perceberam; Euclides da Cunha estará entre eles,
não enquanto repórter de guerra, mas depois, como engenheiro-escritor de Os sertões.
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 161

A Igreja condena as revoltas


Na consideração da guerra contra Belo Monte deve-se considerar a participa-
ção da Igreja católica, cuja hierarquia (em sua quase totalidade) via no arraial con-
selheirista uma grave ameaça a seus interesses. Adiante esse problema será tratado
de forma mais detida, todavia cabe salientar aqui alguns lances desta participação.
Como se viu, o afastamento definitivo da quase totalidade da hierarquia ca-
tólica baiana em relação ao Conselheiro se deu após as manifestações que desem-
bocaram em Masseté. A simpatia de muitos padres pelo anti-republicanismo do
Conselheiro não resistia à confrontação aberta ao poder estabelecido. Nem seriam
lembrados os serviços que ele, com sua gente, prestara durante anos no sertão,
construindo e restaurando igrejas e cemitérios. Seriam recuperadas, pelo contrário,
as tensões motivadas pela teimosia do Conselheiro em propalar seus conselhos,
contra a vontade dos padres e do próprio arcebispo. Belo Monte nascia com o
estigma da dissidência.
A missão de frei João, a cujo Relatório várias vezes se aludiu, terá reafirmado
estas primeiras impressões e viabilizado o primeiro rompimento efetivo que se dá
em movimentos de teor semelhante ao de Belo Monte. Ocorrida num momento em
que os incômodos provocados pela existência do arraial já tinham subido de tom,
a missão foi o sinal de que a percepção eclesiástica do que ocorria em Belo Monte
ficou mais evidente; ao mesmo tempo materializava o esforço de reaproximação
com o poder do Estado e expressava a taxativa palavra sobre uma experiência
religiosa desenvolvida à margem do seu controle: o arraial tem de ser dissolvido.
A contemporaneidade com o fenômeno de Juazeiro reforçava as preocupações da
instituição eclesiástica com manifestações semelhantes de autonomia e contestação
religiosa, ainda mais quando liderada por um leigo, que poderia inclusive estar
contando com apoio logístico e espiritual do já famoso padre cearense.
Do envolvimento direto de setores eclesiásticos na guerra pouco se sabe; em
boa parte ele foi prévio ao empreendimento destruidor, tornando-o viável e legiti-
mando-o. Mas alguns fragmentos são eloquentes. Há a informação de que um frei,
Luiz Piazza, “esteve ontem no Palácio do Governo, a convite do sr. Vice-Presidente
da República, a quem informou que há anos frei João Evangelista, residente no Es-
tado da Bahia, estivera em Canudos, onde levantou uma carta topográfica”.213 Até
nas negociações visando a transferência das responsabilidades pela guerra contra
Belo Monte para o governo federal (ou seja, entre a segunda e a terceira expedições)
houve o envolvimento do referido frei. E ninguém menos que o Secretário de Es-
tado do Vaticano, o cardeal Mariano Rampolla, interfere com uma carta, de março
de 1897 (após o malogro da expedição Moreira César), no sentido de colocar a
instituição eclesiástica na linha de frente dos esforços para debelar o Belo Monte:
162

Chegaram recentemente à Santa Sé notícias muito tristes sobre a duração e a ex-


tensão de um movimento antirreligioso, que alguns bandos de fanáticos rebeldes
promoveram e defenderam no Estado da Bahia. Eles se dedicam à mais ampla vio-
lência e ofenderam a Igreja católica em seus bens, nas pessoas, em sua doutrina, até
o ponto de proclamar um novo Messias.

E já que “nenhum remédio eficaz” tem sido aplicado por parte daqueles que,
pela “reconhecida autoridade de seu ofício”, devem “defender a verdade e o decoro
da Religião”, importa “tratar particularmente com o Sr. Arcebispo da Bahia para
convencê-lo a despender seu esforço e toda a possível influência no sentido de faci-
litar a pacificação dos ânimos”.214
Feito o devido desconto ao eufemismo, não é preciso pensar que foi apenas
por conta de tão autorizado apelo que ajudas materiais, como o acolhimento das
tropas militares pelas cidades onde passavam, tenham ocorrido em muitas situa-
ções pelo engajamento dos respectivos vigários, como se lê no relatório da coluna
Savaget.215 E, finalmente, a assistência espiritual oferecida aos militares da quarta
expedição216 e as cerimônias promovidas quando da derrocada final da vila conse-
lheirista são manifestações políticas e simbólicas que não deixam dúvidas sobre a
conjugação de interesses materializada na ação contra Antonio Conselheiro e seu
séquito. Nem o ofício fúnebre realizado em Salvador pelas vítimas da guerra de
ambos os lados ocultaria a colaboração que entre Estado republicano e Igreja se
estabelecia, e que o desenrolar da guerra se encarregava de estreitar.217

CONCLUSÃO

Belo Monte, no seu empreendimento e em sua destruição, se mostra como um


fenômeno totalizante, e em boa parte sintetiza a contraditória realidade brasileira.
Verdadeira encruzilhada, para o arraial convergem muitas linhas, e dele se abrem sen-
das importantes para a definição dos contornos políticos, econômicos e religiosos em
nossa terra. Muito da história brasileira fica melhor, e mais dramaticamente, compre-
endido, como, aliás, ocorre quando se faz história para além das instituições estabele-
cidas e das elites. E, especificamente, muito dos contornos da República brasileira fica
evidenciado: ela, “longe de configurar uma ruptura de amplo espectro, trouxe à baila
dissidências de toda ordem, revelando a permanência de práticas arcaicas numa so-
ciedade que se queria moderna”.218 Fazendo meu um belo texto sobre o cotidiano de
trabalhadores do Rio de Janeiro na passagem do século XX219, e reescrevendo-o, diria
que o Belo Monte é uma verdadeira encruzilhada de muitas lutas; das lutas de classes
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 163

na sociedade, que se revelam na tentativa sistemática da imprensa e dos textos em


geral em estigmatizar os padrões comportamentais dos populares (estes “fanáticos”!);
nas estratégias de controle social realizadas por meio de missionários, e também na
reação dos belomontenses a eles, fazendo-os retirar-se; das lutas ou contradições no
interior do próprio arraial conselheirista; dos encontros e desencontros de tradições
culturais e religiosas, em que se manifestam alguns dos traços mais representativos de
Belo Monte e dos mais conflitantes; das tensões no interior das elites latifundiárias
do sertão, apavoradas pela perda da mão-de-obra que se dirigiu ao arraial sagrado; do
esforço espantoso e admirável, enfim, por defender aquela cidade que, com seu líder,
concretizava possibilidades de vida melhor aqui e as sinalizava para o além.
Belo Monte, assim, é expressão destacada das alternativas que os setores popu-
lares vêm tentando viabilizar, à margem do Estado, à sua revelia e, por vezes, contra
ele. A autonomia na relação com o sagrado funda a autonomia na articulação política
do arraial. Oração e trabalho, partilhas das imagens e dos bens, produção coletiva de
bens comunitários, laços de compadrio; tudo isso fez a resistência contra as tropas
da maldita República, ao mesmo tempo em que buscava preservar a experiência da
comunidade, vista como defesa da fé e da Igreja, da Igreja que eram eles:

sem assumir funções de padre, mas tomando a condição de conselheiro [...] An-
tônio Vicente Mendes Maciel buscou conduzir-se como uma autoridade religiosa
exemplar, isto é, hipertrofiando certos traços de um modelo ideal de sacerdote. Na
realização deste modelo, as atribuições de diretor espiritual e as condições de bea-
to e de místico dificilmente poderiam ter-se mantido dentro dos limites traçados
pelas estruturas religiosas e políticas dominantes. Isto, principalmente na medida
em que a ascendência adquirida sobre numeroso grupo de sertanejos significou o
aparecimento de uma alternativa para as formas costumeiras de subordinação e um
eventual desafio à autoridade de sacerdotes e de “coronéis”.220

Para manter esta alternativa, o empenho até a morte, capaz de paralisar os sol-
dados de Moreira César: “não havia reagir contra adversários por tal forma transfi-
gurados pela fé religiosa”.221
164

NOTAS
1  Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos. Jornal do Recife, 1912, p.11.
2  Sidney Chalhoub. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial.
Companhia das Letras, São Paulo, 1999, p.15-59. Ao menos parte dos moradores
do cortiço se teria estabelecido num morro que, quatro anos mais tarde, receberia
os soldados vindos da última campanha contra Belo Monte, e que passou a ser
chamado de Morro da Favela, nome de uma colina donde se avistava o arraial con-
selheirista e onde se assentaram os acampamentos militares para os ataques finais.
3  José Aras. Sangue de irmãos. Museu do Bendegó, Salvador, 1953, p.24.
4  Conforme o deputado Artur Rios, aliado do governador baiano Rodrigues
Lima (citado por Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra. Ática, São Paulo,
1995, p.54).
5  Cícero Dantas Martins (barão de Jeremoabo). Carta publicada no Jornal de
Notícias, de Salvador, edição de 4 e 5 de março de 1897, datada de 24 do mês ante-
rior, quando a expedição comandada por Moreira César se acercava de Belo Monte.
Sirvo-me aqui da transcrição feita por João Arruda. Canudos: messianismo e conflito
social. UFC / Secult, 1993, p.173-183 (a citação é da p.176). Segundo seu trineto,
o barão possuía 59 fazendas na Bahia, em municípios destacados na história do es-
tabelecimento e destruição de Belo Monte, como Itapicuru, Soure, Bom Conselho,
Cumbe, Tucano e outros; possuía ainda outras duas em Sergipe (Álvaro Dantas de
Carvalho Jr. “A posição do barão de Jeremoabo”. In: Consuelo Novais Sampaio (org.)
Canudos: cartas para o barão. Edusp, São Paulo, 1999, p.18). Ele incentivou a em-
preitada de Masseté e todas as ações que levariam Belo Monte à destruição.
6  Cícero Dantas Martins. Carta ao Jornal de Notícias, em 4 e 5/3/1897. In:
João Arruda. Canudos..., p.176.
7  Cícero Dantas Martins. Carta ao Jornal de Notícias, em 4 e 5/3/1897. In:
João Arruda. Canudos..., p.176-177. José Aras fala de um acordo, não citado por
outros autores, entre o Conselheiro e o líder da expedição policial, que a teria feito
recuar (Sangue de irmãos..., p.27). Algo improvável, já que as tropas iniciaram o
recuo ainda longe do palco dos acontecimentos.
8  Dizeres de sertanejos, segundo o relatório do intendente de Monte Santo,
João Cordeiro de Andrade. In: Marco Antonio Villa. Canudos..., p.70.
9  Relatório do intendente de Monte Santo. In: Marco Antonio Villa. Ca-
nudos..., p.69. Aí se lê que também em Cumbe, vila que, como Uauá, teria papel
importante na guerra, a situação não foi muito diferente: aí “levou muitos meses
sem cobrar-se [os impostos] desde fins de maio, quando por ali passou Antônio
Conselheiro, até outubro e depois foi um serviço feito com desânimo sem garantia
e o povo fugia constantemente ao pagamento de direitos”.
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 165

10  Mencionem-se nesse contexto Garcia d’Ávila e seus descendentes da Casa


da Torre que, desde a segunda metade do século XVI, avançaram sertão adentro e
estabeleceram domínio militar, político e econômico em território que ia da Bahia
(Salvador) ao Piauí, até meados do século XIX (cf. Luiz Alberto Moniz Bandeira.
O feudo. A Casa da Torre de Garcia d’Ávila: da conquista dos sertões à indepen-
dência do Brasil. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000, sobre a região que
aqui interessa, p.200-202). Os currais da região em que surgirá Canudos, e depois
Belo Monte, são mencionados em 1711 no famoso Cultura e opulência no Brasil,
de André João Antonil, de que Capistrano de Abreu transcreveu alguns parágrafos
(Capítulos de história colonial, 1500-1800. 7 ed., Itatiaia / Publifolha, Belo Hori-
zonte / São Paulo, 2000, p.156-157).
11  Carta publicada na edição do dia 10/6/1893 do referido jornal, de Salva-
dor. Citada por Dawid Danilo Bartelt. “Cerco discursivo de Canudos (Interdiscur-
sos sobre Antonio Conselheiro e os conselheiristas antes da Guerra)”. In: Cadernos
do CEAS. Salvador, 1997. s/n, p.41). E, para compreender a participação do Con-
selheiro nestas manifestações populares de protesto, ainda se poderia recorrer a We-
ber, para quem, “nas épocas pré-racionalistas, a tradição e o carisma dividem entre
si a quase totalidade de orientação das ações” (Economia e sociedade. Fundamentos
da sociologia compreensiva. 4 ed., UnB, Brasília, 1998, v.1, p.161).
12  Natalie Zemon Davis. “Ritos de violência”. In: Culturas do povo. Paz e
Terra, Rio de Janeiro, 1990, p.130-131.
13  Manoel Benício. O rei dos jagunços. Crônica histórica e de costumes ser-
tanejos sobre os acontecimentos de Canudos. 2 ed., Fundação Getúlio Vargas, Rio
de Janeiro, 1997, p.86-87.
14  Carta do Jornal de Notícias, Salvador, 10/6/1893. Citada por Alexandre Ot-
ten. “Só Deus é grande”. A mensagem religiosa de Antônio Conselheiro. Loyola, São
Paulo, 1990, p.164. Haveria ainda que se pensar na possibilidade de que a “tradição”
alimentadora destes protestos tenha bebido também das manifestações conhecidas
com o nome de Quebra-quilos, ocorridas no final de 1874 e no início do ano se-
guinte em algumas províncias do Nordeste e com as quais Antonio Conselheiro teria
travado contato. Essa possibilidade é levantada por Armando Souto Maior (Quebra-
quilos: lutas sociais no outono do Império. Companhia Editora Nacional, São Paulo,
1978, p.203-205). Veja Vicente Dobroruka. Antônio Conselheiro..., p.165-166.
15  Edward P. Thompson. “A economia moral da multidão”. In: Costumes em
comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Companhia das Letras, São
Paulo, 1998, p.152.
16  Natalie Zemon Davis. “Ritos de violência”. In: Culturas do povo..., p.131.
Violência física teremos só no embate em Masseté, a partir da repressão ordenada
às tropas policiais contra os conselheiristas.
166

17  Machado de Assis. A Semana. W. M. Jackson, Rio de Janeiro / São Paulo


/ Porto Alegre, 1946, v.3, p.312; coluna de 4/6/1893). O escritor, não é difícil no-
tar, joga com o dito bíblico de Marcos 12,17. Curioso é notar que Jesus também é
acusado, em Lucas 23,5, de pretender “não dar a César o que é de César”...
18  Expressão é do barão de Jeremoabo, na carta já citada (in: João Arruda.
Canudos..., p.176).
19  Citado por Consuelo Novais Sampaio. “Repensando Canudos: o jogo das
oligarquias”. In: Luso-Brazilian Review. Madison, 1993. v.30, n.2, p.108.
20  Euclides da Cunha. Os sertões: campanha de Canudos. 4 ed., Ateliê, São
Paulo, 2009, p.348. O combate se deu a 21/11/1896.
21  Carta de João Cordeiro de Andrade, intendente de Monte Santo entre 1892
e 1894, ao barão de Jeremoabo, em 2/1/97. In: Consuelo Novais Sampaio (org.)
Canudos..., p.131. Veja ainda a carta de Antero de Cirqueira Galo, em 23/1/97, na
p.137 do mesmo livro.
22  Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.84.
23  Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.85.
24  Veja carta do papa aos bispos brasileiros, Litteras a vobis, de 1894 (Docu-
mentos de Leão XIII. Paulus, São Paulo, 2005, p.573-578).
25  Um último elemento complexifica o quadro aqui desenhado. A rebelião
contra os impostos em Soure tinha entre seus líderes José Honorato de Souza Neto,
adversário do intendente Francisco Dantas, partidário político do barão de Jere-
moabo. O fato de que Honorato, preso por sua participação nos protestos, tenha
sido logo libertado e seu processo anulado, mostra como os eventos que levaram
a Masseté, ao mesmo tempo que precipitaram o estabelecimento de Belo Monte,
contribuíram para aguçar as contradições entre as várias facções da elite baiana.
26  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório apresentado, em 1895, pelo
reverendo Frei João Evangelista de Monte Marciano, ao Arcebispado da Bahia, sobre
Antonio Conselheiro e seu séqüito no arraial dos Canudos. Tipografia do Correio
da Bahia, Salvador, 1895 (edição em fac-símile pelo Centro de Estudos Baianos,
1987), p.4.
27  César Zama. Libelo republicano acompanhado de comentários sobre a guerra
de Canudos. Diário da Bahia, Salvador, 1899 (edição fac-símile pelo Centro de
Estudos Baianos, 1989), p.23-24.
28  Machado de Assis. A Semana..., p.416.
29  Carta enviada ao Jornal de Notícias, de 4 e 5 de março de 1897. Citado
por João Arruda. Canudos..., p.176.
30  Segundo José Aras, foi em 1885 que o Conselheiro, ao passar pela pri-
meira vez pelo arraial de Canudos, prometeu retornar para construir uma igreja
dedicada ao santo do seu nome (Sangue de irmãos..., p.22).
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 167

31  Salomão de Souza Dantas, citado por José Calasans. “Canudos – origem e
desenvolvimento de um arraial messiânico”. In: Cartografia de Canudos. Secretaria
de Cultura e Turismo do Estado da Bahia / Conselho Estadual de Cultura / Em-
presa Gráfica da Bahia, Salvador, 1997, p.54.
32  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.4.
33  Paulo Eduardo Zanettini. “Por uma arqueologia de Canudos e dos brasi-
leiros iletrados”. In: O olho da história. Salvador, 1996. v.2, n.3, p.102. O fotógrafo
Flávio de Barros acompanhou o último contingente militar que se dirigiu para Belo
Monte, chegando dez dias antes de os combates cessarem por completo. Seu registro
é cuidadoso, buscando mostrar a harmonia das tropas e sua eficiência, de um lado,
e, de outro, mas raramente, os conselheiristas, sempre como derrotados. Assim não
aparecem detalhes como a precariedade dos hospitais e dos atendimentos, ou a dego-
la sistemática de conselheiristas. Assim, com a pretensão de representarem fielmente
a realidade, fazem-se simulacros dela, peças de exaltação do Exército (Cícero Antônio
F. de Almeida. “Que nos ficará depois da vitória da lei?” In: Canudos: imagens da
guerra. Museu da República / Lacerda, Rio de Janeiro, 1997, p.11-27).
34  Nélson de Araújo. Pequenos mundos. Um panorama da cultura popular da
Bahia. Edufba / Casa de Jorge Amado, Salvador, 1988, v.2, p.42.
35  Testemunho de Manoel Ciriaco (José Calasans. “Canudos – origem e de-
senvolvimento de um arraial messiânico”. In: Cartografia de Canudos..., p.58; veja
ainda, de Calasans, “Solidariedade sim, igualdade não: aspectos controvertidos do
episódio de Canudos”. In: Didier Bloch [org.] Canudos: cem anos de produção.
Fonte Viva, Paulo Afonso, 1997, p.41; em outro lugar Calasans fala de “apropria-
ção da área disponível no capelato de Santo Antônio” (“‘Meu empenho foi ser o
tradutor do universo sertanejo’ (Entrevista com José Calazans)” In: Luso-Brazilian
Review. Wisconsin, Madison, 1993. v.30, n.2, p.27).
36  Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.89. Sobre o arraial pré-conselhei-
rista, José Calasans, “Canudos – origem e desenvolvimento de um arraial messiâ-
nico” (In: Cartografia de Canudos...., p.49-60).
37  Ainda segundo Aras, em sua estada anterior em Canudos o Conselheiro
teria chamado o vilarejo de Belos Montes (Sangue de irmãos..., p.22).
38  Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros. Henriqueta Galeno, For-
taleza, 1973, p.130.
39  Carta de Marcelino Pereira de Almeida (intendente de Tucano) ao ba-
rão de Jeremoabo, de 12/1/1894. In: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos...,
p.90.
40  Carta de Aristides da Costa Borges ao barão de Jeremoabo, de 9/2/1894.
In: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.94. O missivista escreve em sua
fazenda.
168

41  Carta de Reginaldo Alves de Melo ao barão de Jeremoabo, de 6/12/1894.


In: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.99.
42  Carta ao Jornal de Notícias, em 4 e 5/3/1897. In: João Arruda. Canu-
dos...,p.174.180.177.
43  José Calasans. “O séquito de Antônio Conselheiro”. In: Cartografia de
Canudos..., p.43-46; Yara Dulce Bandeira de Ataíde. “As origens do povo do Bom
Jesus Conselheiro”. In: Revista USP. São Paulo, 1993/1994. n.20, p.88-99.
44  As citações são, respectivamente, de carta de Cícero Dantas Martins, o
barão de Jeremoabo, a seu filho João da Costa Pinto Dantas, em 9/1/1897. In:
Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.135; e Aristides Milton. “A cam-
panha de Canudos”..., p.42. Há indicações de que os índios de Massacará se en-
volveram ainda mais com Belo Monte justamente após o embate de Uauá (Edwin
Reesink. “Til the end of time: the differential attraction of the ‘Regime of Salva-
tion’ and the ‘Entheotopia’ of Canudos”. In: http://www.mille.org/publications/
winter2000/reesink.PDF [10/2/03]).
45  Carta de João Dantas Coelho, em 18/2/1897, ao barão de Jeremoabo. In:
Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.144.
46  É famosa a expressão do coronel em telegrama enviado ao ministro da guerra:
“Só temo que o fanático Antonio Conselheiro não nos espere”. Noutro diz: “só receio
fuga dos fanáticos” (In: Aristides Milton. “A campanha de Canudos”..., p.68 e 69).
47  Carta de João Correia Benevides, em 21/2/1897, ao barão de Jeremoabo.
In: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.149.
48  Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos..., p.33-34.
49  Correspondência de 8/9/1897 ao Jornal do Comércio. In: Walnice No-
gueira Galvão. No calor da hora: a guerra de Canudos nos jornais. 3 ed., Ática, São
Paulo, 1994, p.328.
50  Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos..., p.112.72.
51  Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.51. Recordem-se o episódio, já
mencionado, em que o Conselheiro se serve da referência à escravidão para protes-
tar contra os novos impostos, que considerava extorsivos, e seu discurso contra a
República, que oportunamente analisaremos.
52  Notícia publicada quase no final da guerra dá conta de que, ainda nos
tempos da escravidão, Antonio Conselheiro chegava a reunir “mais de duas mil
pessoas, todas escravas” para ouvir sua pregação (citado por José Calasans. “Antô-
nio Conselheiro e a escravidão”. In: Cartografia de Canudos..., p.82-83).
53  Carta de Antero de Cirqueira Galo ao barão de Jeremoabo, em 19/3/1897.
In: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.160. Ele completa: “advirto
mais, que gente de cor branca poucos lá tem, quanto mais homens que ocupam
certa projeção”.
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 169

54  José Calasans. “O séquito de Antônio Conselheiro”. In: Cartografia de


Canudos..., p.46. A relevância do contingente negro pode ser medida, entre outras
coisas, pela existência, em Belo Monte, de uma rua denominada “dos negros” e do
registro de batismo de muitos “pardos” (p.47). A importância destes dados não fica
diminuída se se considera que, em 1872 os escravos correspondiam a apenas 15%
da população baiana, e esse percentual tendia a diminuir ano após ano.
55  Maria Lucia Felicio Mascarenhas. Rio de sangue e ribanceira de corpos.
Monografia de bacharelado em antropologia, Universidade Federal da Bahia, Sal-
vador, 1995.
56  Para a situação dos Kaimbé de Massacará esta questão é evidente, visto
que há, na época, conflitos intensos com o coronel da região (Edwin Reesink. “A
tomada do coração da aldeia: a participação dos índios de Massacará na guerra
de Canudos”. In: Cadernos do Ceas. Salvador, 1997. s/n, p.73-95, especialmente
p.76-78).
57  Maria Lucia Felicio Mascarenhas. Rio de sangue..., p.44, nota 20. Sobre
as competências do curandeiro Quadrado, José Aras. Sangue de irmãos..., p.51-52.
Sobre os Tuxá no Belo Monte, Orlando Sampaio-Silva. Tuxá: índios do Nordeste.
Annablume, São Paulo, 1997, p.149. João Justiniano da Fonseca diz: “Ao tomar
o rumo dos sertões de Chorrochó e Canudos, o Conselheiro esvaziou a aldeia [de
Rodelas]. Os índios eram seus adeptos e muitos o seguiram. Uns retornaram, ou-
tros foram sepultados no Alto do Bom Jesus” (Rodelas: curraleiros, índios e missio-
nários. Edição do autor, Salvador, 1996, p.161). E em 1897, como consequência
da participação dos Tuxá na guerra, a aldeia foi extinta legalmente, não voltando a
essa categoria senão em 1942 (p.270).
58  Maria de Lourdes Bandeira. Os Kariri de Mirandela: um grupo indígena
integrado. Ufba, Salvador, 1972, p.83.
59  Na expedição Febrônio de Brito contra Belo Monte notou-se a presença
de cerca de quatrocentos guerreiros indígenas, com seus arcos e flechas, entre os
conselheiristas (Edwin Reesink. “A tomada do coração...”, p.75). Também os ín-
dios tinham sua rua, de nome um tanto pejorativo, mas bastante comum, de “dos
caboclos” (José Calasans. “O séquito de Antônio Conselheiro”. In: Cartografia de
Canudos..., p.47).
60  Vale a síntese de Monica Duarte Dantas: “Canudos [era] uma excelente
escolha. Para os que procuravam fugir aos mandos e desmandos dos fazendeiros,
ao controle territorial e à pressão por mão-de-obra, a comunidade do conselheiro
era, talvez, a única opção possível: ex-escravos podiam das áreas em que moravam
seus antigos senhores, agregados e posseiros conseguiam um pequeno trato de terra
para plantar a mandioca e o feijão necessários à subsistência cotidiana (sem pressão
para que se submetessem às vontades do proprietário); índios, que sofriam, desde
170

o século XVIII, com a ocupação de suas aldeias, partilhavam com os outros mo-
radores as mesmas expectativas e oportunidades; e mesmo os pequenos sitiantes
e criadores, que possuíam terras suficientes para a manutenção da família, viam,
na mudança para o arraial, a oportunidade de não perder seus parcos ganhos em
virtude de novas leis ou imposições” (Fronteiras movediças: a comarca de Itapicuru e
a formação do arraial de Canudos. Hucitec/Fapesp, São Paulo, 2007, p.437-438).
61  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.299.
62  Baseio-me principalmente em Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.92-93.
63  Estas e as demais citações sobre o vestuário da gente belomontense foram
tiradas de Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos..., p.11-17.
64  Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos..., p.14 (destaque do au-
tor).
65  Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.89.93.
66  Para detalhes, Vicente Dobroruka. Antonio Conselheiro..., p.141-142.
67  Euclides da Cunha. Caderneta de campo (Cultrix / Instituto Nacional do
Livro, São Paulo / Brasília, 1975, p.23). Mas nas reportagens enviadas ao jornal
que o contratou ele dizia que a maior vitória sobre os rudes belomontenses estaria
no envio do mestre-escola assim que a guerra terminasse (Diário de uma expedi-
ção..., p.92)...
68  Paulo Eduardo Zanettini. “Por uma arqueologia de Canudos e dos brasi-
leiros iletrados”..., p.102.
69  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova. 2 ed., Renes / Instituto Nacional
do Livro, Rio de Janeiro / Brasília, 1983; José Calasans. Quase biografias de jagun-
ços: o séquito de Antônio Conselheiro. Centro de Estudos Baianos da Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 1986, p.58-59. Na economia de Belo Monte não era
permitido o uso do dinheiro republicano.
70  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.305.
71  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.39.70. A memória da abun-
dância vivida em Belo Monte permanece viva no imaginário sertanejo.
72  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.5.
73  Cícero Dantas Martins. Carta ao Jornal de Notícias, em 4 e 5/3/1897. In:
João Arruda. Canudos..., p.177.
74  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.40.
75  Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros..., p.131-132.134. Se há
divergências quanto ao percentual a ser entregue ao Conselheiro, dúvida não há
quanto à realização de tais doações.
76  Alvim Martins Horcades. Descrição de uma viagem a Canudos. Litho-
Typografia Tourinho, Bahia, 1899 (edição fac-símile pela Empresa Gráfica da
Bahia / Edufba, Salvador, 1996), p.183.
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 171

77  Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.96. Um tema que mereceria
maior desenvolvimento é justamente o de como Belo Monte atraiu tantas pessoas
por conta de sua aura de lugar da saúde e da cura dos males, obra de Antonio Con-
selheiro e do curandeiro Manoel Quadrado. Infelizmente não tenho como tratar
dele aqui.
78  Eufemismo de Dantas Barreto (Destruição de Canudos..., p.8).
79  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.291. Também sobre o número de casas
há intensa controvérsia; o próprio Euclides contribui para isso ao falar inicialmente
de “mais de duas mil casas” (Caderneta de campo..., p.54) e depois de cinco mil e
duzentas, de acordo com a contagem do Exército (Os sertões..., p.779).
80  Alvim Martins Horcades. Descrição de uma viagem a Canudos..., p.178-
179. Segundo Dantas Barreto, os belomontenses “habitavam pequenas casas de
taipa, cobertas de ramas de coirana, sob uma camada espessa de barro amassado,
normalmente com três peças de pequenas dimensões, em que nada mais se en-
contrava além de uma rede de fibras de carauá, na sala, e um girau de varas presas
entre si por meio de cipós resistentes ou embiras de barriguda, no quarto exíguo de
dormir” (Destruição de Canudos..., p.12).
81  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.292.293.
82  Alvim Martins Horcades. Descrição de uma viagem a Canudos..., p.178.
83  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.291. É interessante notar que a forma
de as casas se disporem no arraial permitia a Euclides arriscar uma hermenêutica,
que revelasse traços mais profundos da vida belomontense. Aliás, em todas as
descrições elencadas o que predomina é a constatação do absurdo, do desordena-
do, o que faz suspeitar que estejamos diante de um processo narrativo em que a
descrição das cenas obedece a um plano previamente definido. A insistência da
descrição no irracional e no desordenado quer, efetivamente, levar à conclusão
da inviabilidade do arraial. De forma que o problema não são tanto as casas e sua
disposição, mas o fato de perfazerem aquela “cidade selvagem” (p.296).
84  Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.176.
85  Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.201.
86  Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos..., p.139.
87  Carta ao Jornal de Notícias, de Salvador. In: Walnice Nogueira Galvão. No
calor da hora..., p.392.
88  Duglas Teixeira Monteiro. “Um confronto entre Juazeiro, Canudos e
Contestado”. In: Boris Fausto (org.) História geral da civilização brasileira. 4 ed.,
Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1990. t.3, v.2, p.61.
89  A expressão é de Michel de Certeau e Luce Giard (in: Michel de Certeau,
Luce Giard e Pierre Mayol. A invenção do cotidiano. 3 ed., Vozes, Petrópolis, 2000,
v.2, p.342).
172

90  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.296.


91  Waldemar Valente. Misticismo e região. Aspectos do sebastianismo nordes-
tino. Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais / MEC, Recife, 1963, p.93;
veja também Aristides Milton. “A campanha de Canudos”..., p.15.
92  Confira-se o levantamento feito por José Calasans (“Antônio Conselhei-
ro, construtor de igrejas e cemitérios”. In: Cartografia de Canudos..., p.61-72). Ho-
nório Vilanova garante ter ouvido o Conselheiro dizer que fizera a promessa de
construir vinte e cinco delas, todas fora do Ceará (Nertan Macedo. Memorial de
Vilanova..., p.37).
93  Sabe-se de uma visita sua, junto com muitos belomontenses, a Bom Con-
selho (uma das vilas em que ocorreram os protestos antitributos que precipitaram
Masseté), para arrecadar dinheiro e material para a construção, em dezembro de
1895.
94  José Carlos da Costa Pinheiro. “Ano de 1896: término das obras da capela
de santo Antônio de Bello Monte?” In: Revista Canudos. Salvador, 2000. v.4, n.1/2,
p.65-74.
95  Expressão de Emídio Dantas Barreto (Destruição de Canudos..., p.137).
96  Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos..., p.17.19.
97  Maria Lucia Felicio Mascarenhas. Rio de sangue..., p.28.49.
98  Maria Guilhermina de Jesus a Odorico Tavares (In: Canudos: cinquenta
anos depois..., p.50).
99  Duglas Teixeira Monteiro. “Um confronto entre Juazeiro, Canudos e
Contestado”..., p.69.
100  A expressão é de Mircea Eliade (O sagrado e o profano: a essência das
religiões. Martins Fontes, São Paulo, 1996, p.45).
101  “Construção e edificação do templo de Salomão”. In: Antonio Vicente
Mendes Maciel. Tempestades que se levantam no coração de Maria por ocasião do
mistério da Encarnação. Caderno manuscrito, Belo Monte, 1897, p.535. Editado
em Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos: revisão histórica. 3 ed., Atlas,
São Paulo, p.180.
102  “Sobre o recebimento da chave da Igreja de Santo Antônio, Padroeiro do
Belo Monte”. In: Antonio Vicente Mendes Maciel. Tempestades..., p.539-540. Edi-
tado em Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.181. A dedicação
em construir os templos em Belo Monte mostra como a gente do Conselheiro, ou
ao menos ele, se entendia depositária de valores católicos a serem preservados que,
segundo eles a própria instituição não mais defendia (Duglas Teixeira Monteiro.
“Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado”..., p.88).
103  Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos..., p.241.
104  Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares. A guerra de Canudos. 3 ed,
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 173

Philobiblion / Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro / Brasília, 1985, p.164.


Também Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.204-205.
105  Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares. A guerra de Canudos...,
p.168-169.
106  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.461.
107  Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.173.
108  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.764; Henrique Duque-Estrada de
Macedo Soares. A guerra de Canudos..., p.227.
109  Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares. A guerra de Canudos...,
p.90.
110  Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos..., p.241.
111  Alexandre Otten. “A influência do ideário religioso na construção da
comunidade de Belo Monte”..., p.71-95.
112  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.5 (destaque do au-
tor).
113  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.95-109.
114  Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. 26 ed., Companhia das
Letras, São Paulo, 1999, p.149.
115  Gilberto Freire. Casa-grande e senzala. 13 ed., Universidade de Brasília,
1963, p.277-278.
116  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.39; João Evangelista de
Monte Marciano. Relatório..., p.5. Com isso se contradiz a afirmação de Euclides,
para quem a cadeia do arraial recolhia preferencialmente “os que haviam perpetra-
do o crime abominável de faltar às rezas” (Os sertões..., p.302).
117  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.68.
118  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.239.
119  Maria Lucia Felicio Mascarenhas. Rio de sangue..., p.33 (as expressões
entre aspas parecem ser transcrição de depoimentos colhidos pela autora).
120  Maria de Lourdes Bandeira (Os Kariri de Mirandela..., p.82-83); veja
Vicente Dobroruka. Antônio Conselheiro..., p.145-146. E seria coincidência que
a festa da jurema fosse celebrada em 15 de agosto, dia de N. Sra. da Glória no
calendário católico?
121  Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.145.
122  José Calasans. Quase biografias de jagunços..., p.78.
123  Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.138; José Aras. Sangue de ir-
mãos..., p.51-52.
124  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.477.
125  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.484. Segundo notícia recebida por
Marcelino Pereira de Almeida e comunicada ao barão de Jeremoabo em carta de
174

24/3/1897, dias após o combate dez praças da expedição Moreira César e feitos
prisioneiros teriam fugido “quando [os belomontenses] rezavam o terço” (veja
Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.164).
126  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.593. E no final da guerra, quando a
perspectiva da derrota fatal se avizinhava, “não mais se ouviam as ladainhas me-
lancólicas no intervalo das fuzilarias” (Os sertões..., p.678). Enquanto aconteceram,
apavoraram os soldados: “o som monótono dos sinos das igrejas e dos cânticos dos
fanáticos, a agonia dos moribundos, e os gemidos dos feridos, ainda mais agrava-
ram o ânimo dos retirantes, já exaustos de cansaço, de fome e de sede” (Nota de
jornal sobre a retirada de soldados da expedição Moreira César, in: Aristides Mil-
ton. “A campanha de Canudos”..., p.75).
127  Duglas Teixeira Monteiro fala do “compadrio interclasses” e da ruptura
que a gente rebelde do Contestado realizou no tocante a esta questão, ao mesmo
tempo frente à estrutura sócio-política circundante e à instituição eclesiástica; veja
Os errantes do novo século. Um estudo sobre o surto milenarista do Contestado.
Duas Cidades, São Paulo, 1974, p.57-80.
128  Antônio Conselheiro já há muito tempo nos sertões vinha sendo toma-
do por padrinho, e a madrinha era sempre Nossa Senhora (José Calasans. “Apare-
cimento e prisão de um messias”. In: Cartografia de Canudos..., p.36).
129  Marco Antonio Villa (org.) Calasans, um depoimento para a história.
Uneb, Salvador, 1998, p.27-28. O levantamento feito Consuelo Pondé de Sena
mostra que, só na Vila de Itapicuru, o Conselheiro aparece como padrinho, ou
testemunha, em noventa e dois batizados, entre 1880 e 1892, e em quase metade
a madrinha é Nossa Senhora (Introdução ao estudo de uma comunidade do agreste
baiano: Itapicuru, 1830/1892. Fundação Cultural do Estado da Bahia, Salvador,
1979, p.157).
130  Dawid Danilo Bartelt. “Os custos da modernização: dissociação, ho-
mogeneização e resistência no sertão do Nordeste brasileiro”. In: Revista Canudos.
Salvador, 1999. v.3, n.1, p.89.
131  Esta última razão, que José Calasans considera improvável (Quase bio-
grafias de jagunços..., p.56-57), é apresentada por uma sobrevivente, Francisca Gui-
lhermina, a Odorico Tavares como o motivo da eliminação do comerciante e seus
filhos homens (Canudos: cinquenta anos depois..., p.41-42). Também é aduzida
por Manoel Benício (O rei dos jagunços..., p.94-95). Veja documento da época
citado por Rogério Souza Silva (Antônio Conselheiro. A fronteira entre a civilização
e a barbárie. Annablume, São Paulo, 2001, p.89-90).
132  Teria sido esse o caso do controvertido Jesuíno Correia Lima que, afas-
tando-se do arraial, haveria de se tornar o guia das expedições que foram comba-
ter Belo Monte (Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros. “Um fuzil da Guerra de
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 175

Canudos: memória da violência na paz do Conselheiro”. In: Ilana Blaj e John M.


Monteiro. História e utopias. Associação Nacional de História, São Paulo, 1996,
p.378-389)? Para outras versões sobre o afastamento de Jesuíno do arraial, José
Calasans. Quase biografias de jagunços..., p.85-87.
133  A expressão é de Maria Sylvia de Carvalho Franco (Homens livres na
ordem escravocrata. 4 ed., Editora da Unesp, São Paulo, 1997, p.21-63), que, no
entanto, analisa a região do Vale do Paraíba do Sul nos tempos da colônia e do
império.
134  Eduardo Hoornaert . Os anjos de Canudos..., p.48. Veja as sugestivas
observações das páginas seguintes.
135  Durval Vieira de Aguiar. Descrições práticas da província da Bahia. 2 ed.,
Cátedra / MEC, Rio de Janeiro / Brasília, 1979, p.83.
136  Aristides Milton. “A campanha de Canudos”..., p.123.
137  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.4.5.
138  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.5: “[os homens] pare-
cem idolatrá-lo [ao Conselheiro] e cada vez que ele transpõe o limiar da casa em que
mora é logo recebido com ruidosas aclamações e vivas à Santíssima Trindade, ao Bom
Jesus e a Antonio Conselheiro”.
139  “Era preciso ser um homem fora do comum para se impor à multidão
por meio da palavra e do gesto, como Antonio Conselheiro o fazia” (Aristides
Milton. “A campanha de Canudos”..., p.7). O uso público da palavra foi o foco
principal dos conflitos entre o Conselheiro e a hierarquia da igreja baiana já há
mais de dez anos: recorde-se, a propósito, a proibição da arquidiocese baiana, desde
1882, de que o Conselheiro dirigisse a palavra em pregação aos fiéis nos púlpitos
das igrejas.
140  Sobre o lastro que este título “conselheiro” carrega, inclusive apontando
para o xamanismo, cabe ler Eduardo Hoornaert (“Sacerdotes e conselheiros: uma
reflexão a partir de alguns textos dos primórdios da história do Brasil”. In: Estudos
Bíblicos. Petrópolis, 1993. n.37, p.67-74); veja ainda, de Clarice Novaes da Mota.
“Sob as ordens da Jurema: o xamã Kariri-Xocó” (In: E. Jean Matteson Langdon
(org.). Xamanismo no Brasil: novas perspectivas. UFSC, Florianópolis, 1996, p.267-
295).
141  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.5. O frei, contudo,
não sabia dizer se o Conselheiro, nos dias da missão, deixava de falar a sua gente
por deferência ao missionário ou pelo caráter supostamente “secreto” de suas ins-
truções.
142  Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos..., p.10.
143  Odorico Tavares. Canudos: cinquenta anos depois..., p.40.
144  Odorico Tavares. Canudos: cinquenta anos depois..., p.50. A palavra do
176

Conselheiro é poderosa, mesmo quando não emitida; é capaz de motivar o ques-


tionamento daquela do missionário, descompassada em relação ao que sua gente
vive; a polêmica em torno do que o frei entende por jejum (“é comer a fartar”, se-
gundo o sertanejo) é mais que significativa (João Evangelista de Monte Marciano.
Relatório..., p.6).
145  Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.109. Um detalhe
curioso a ser destacado é que o vigário da paróquia vizinha, de Pombal, chegou a
cogitar a divisão da freguesia do Cumbe para que Belo Monte fizesse parte do ter-
ritório sob sua jurisdição (Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros..., p.132).
146  “Conquanto em algumas ocasiões proferisse palavras excessivamente
rígidas, combatendo a maldita república, repreendendo os vícios e movendo o co-
ração ao santo temor de Deus, todavia não concebam que eu nutrisse o mínimo
desejo de macular a vossa reputação” (“Despedida”. In: Antonio Vicente Mendes
Maciel. Tempestades..., p.625-626. Editado por Ataliba Nogueira. António Conse-
lheiro e Canudos..., p.197).
147  Aristides Milton. “A campanha de Canudos”..., p.114.
148  Rogério Souza Silva. Antônio Conselheiro..., p.77.
149  Alexandre Otten. “A influência do ideário religioso na construção da
comunidade de Belo Monte”..., p.72.
150  “A nossa imagem da História resta incompleta quando não é posta no
quadro das possibilidades não realizadas” (Alexander Demandt, citado por Klaus
Wengst. Pax romana: pretensão e realidade. Paulinas, São Paulo, 1991, p.19).
151  Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes: : o cotidiano e as idéias de um mo-
leiro perseguido pela inquisição. 10 ed., Companhia das Letras, São Paulo, 1998,
p.27.
152  Destaque para a monografia de Edmundo Moniz (Canudos..., p.103-
268), em seu empenho de narrar a guerra sob o prisma da capacidade sertaneja
de resistência às forças republicanas, e pioneiro na percepção dos vínculos entre os
movimentos que levaram Belo Monte à destruição e os interesses da elite política
baiana e nacional. Importante, sob todos os aspectos, é a leitura de Euclides (a
parte “A luta”, de Os sertões..., p.329-780).
153  Dizeres de índio Kiriri cujos antepassados viveram em Belo Monte e
participaram da guerra (recolhido por Maria Lucia Felicio Mascarenhas. Rio de
sangue..., p.33).
154  Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos..., p.291. O autor se
refere ao dia 9 de outubro de 1897.
155  Relatório do comandante da expedição Virgílio Pereira de Almeida,
citado em Consuelo Novais Sampaio. “Repensando Canudos: o jogo das oligar-
quias”..., p.108.
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 177

156  Consuelo Novais Sampaio. “Repensando Canudos: o jogo das oligar-


quias”..., p.108.
157  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.3.
158  Carta de Alcides do Amaral Borges ao chefe de polícia da Bahia, em
22/12/1896. In: Aristides Milton. “A campanha de Canudos”..., p.43.
159  Conforme documento citado por Rogério Souza Silva. Antônio Con-
selheiro..., p.63. Além do padre Sabino, já mencionado, outro padre, Martinho
Cordizo Martinez, é acusado a certa altura de colaborar com os conselheiristas,
fornecendo-lhes pólvora (Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.96.98). As con-
fissões do negro badulaque envolvem muitos “homens bons da governança” com o
arraial conselheirista (José Calasans. Quase biografias de jagunços..., p.82-84; em sua
obra Rogério Souza Silva apresenta um documento inédito a respeito [p.89-90]).
160  Conforme declaração a vários jornais (veja Manoel Benício. O rei dos
jagunços..., p.108-111; citações da p.111).
161  Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos..., p.112-113. E o ba-
rão de Jeremoabo avalia que o malogro de Uauá foi intencionado pelo próprio
governador, a fim de fortalecer o conselheirismo: “A primeira expedição de cem
praças não foi com o intuito de vencer ou subjugar os fanáticos e fazê-los reentrar
na órbita da lei [...] como corre de boca em boca, foi somente dispersá-los para
que, depois em bandos, arrasassem e destruíssem minhas propriedades e fazen-
das” (Carta ao Jornal de Notícias, em 4 e 5/3/1897. In: João Arruda. Canudos...,
p.182).
162  Carta do barão de Jeremoabo, ao Jornal de Notícias, em 4 e 5/3/1897. In:
João Arruda. Canudos..., p.174.
163  Carta de Marcelino Pereira de Miranda ao barão de Jeremoabo, de
30/1/1895. In: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.103.
164  Carta ao Jornal de Notícias, em 4 e 5/3/1897. In: João Arruda.
Canudos..., p.180.
165  Carta ao Jornal de Notícias, em 4 e 5/3/1897. In: João Arruda.
Canudos..., p.175. Não foi só no sertão que as propriedades teriam ficado
vazias; os deputados da capital, depois do 13 de maio de 1888, não cessam
de dramatizar a situação, falando “da solidão e do deserto a que ficaram
reduzidas as fazendas de Vassouras [interior do Rio de Janeiro], onde as ‘pa-
cíficas e laboriosas populações locais’ – isto é, os proprietários e suas famílias
– eram agora obrigados a trabalhar dia e noite para ‘salvarem alguns caroços
de feijão’ que garantissem sua alimentação” (Sidney Chalhoub. Trabalho, lar
e botequim..., p.67).
166  Carta ao Jornal de Notícias, em 4 e 5/3/1897. In: João Arruda. Canu-
dos..., p.174.
178

167  O já citado relatório do intendente de Monte Santo pede a “repressão


enérgica da vagabundagem” existente em Belo Monte (Marco Antonio Villa. Ca-
nudos..., p.85, nota 17).
168  Carta de Aristides da Costa Borges ao barão de Jeremoabo, de 9/2/1894.
In: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.94. João Cordeiro de Andrade,
em carta de 13/1/1895, assim se expressa: “A concorrência do povo para os Ca-
nudos é constante; penosíssimo será o desenlace dessa questão. Prepara-se ali um
grande exército de reserva, e quando chegar o desespero pela fome ficarão estas
paragens aniquiladas” (p.102).
169  Carta de Antero de Cirqueira Galo ao barão de Jeremoabo, de 23/1/1897.
In: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.136-137.
170  Citado por Rui Facó. Cangaceiros e fanáticos..., p.89.
171  Citado por Rui Facó. Cangaceiros e fanáticos..., p.89. O barão e seus
amigos expressam este temor a todo momento: “Houve tempo para multiplica-
rem-se assombrosamente os adeptos e sequazes de A. Conselheiro, e converterem o
lugarejo – Canudos – em reduto inexpugnável de desertores, ladrões e assassinos...
a esperança de terem parte nos bens alheios, levava-os à prática de atos de perver-
sidade contra quantos não fossem filiados à seita do fanatismo e do comunismo”
(Carta ao Jornal de Notícias, transcrita em João Arruda. Canudos..., p.178).
172  Carta ao Jornal de Notícias, transcrita em João Arruda. Canudos..., p.181.
Gente que se correspondia com o barão tinha certeza de que o Conselheiro e sua
gente já haviam destruído casas, currais e cercados (Carta de João Cordeiro de An-
drade ao barão de Jeremoabo em 2/1/1897. In: Consuelo Novais Sampaio (org.)
Canudos..., p.131). Essas afirmações, para as quais não se apresentam dados con-
cretos, se somam aos temores, segundo os quais os conselheiristas, quando enfim
derrotados e dispersos, “na nossa fazenda não deixarão pedra sobre pedra” (Carta
de Paulo Fontes ao barão de Jeremoabo em 12/12/1896. In: Consuelo Novais
Sampaio (org.) Canudos..., p.127). Euclides não tem dúvidas: “Em dilatado raio
em torno de Canudos talavam-se fazendas, saqueavam-se lugarejos, conquistavam-
se cidades” (Os sertões..., p.303).
173  O que dizer do fato de que um dos mais exaltados acusadores da ação
predatória da gente do Conselheiro no tocante a fazendas e propriedades tenha
tido boa parte de seus rebanhos em fazendas próximas a Belo Monte dizimada, não
pelos conselheiristas, mas pelos militares da quarta expedição (veja carta de Paulo
Fontes ao barão de Jeremoabo, de 13/2/1899, in: Consuelo Novais Sampaio [org.]
Canudos..., p.231-234)?
174  Sidney Chalhoub. Cidade febril..., p.25. Para que as propriedades não
corressem risco propuseram-se medidas enérgicas de repressão à ociosidade que
seria a marca atual da gente ex-escrava.
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 179

175  Carta de José Américo Camelo de Souza Velho ao barão de Jeremoabo,


em 28/2/1894. In: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.97.
176  Expressões encontradas em cartas endereçadas ao barão de Jeremoabo.
Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.94.95.193.97.221.138.123.180.12
7, respectivamente.
177  Expressão de Albert O. Hirschman (Retóricas de la intransigencia. Fondo
de Cultura Económica, México, 1991), que se refere às teses de Gustave Le Bon,
que, no final do século XIX, sintetizou compreensões correntes sobre a irracionali-
dade, a violência e a intolerância das multidões, que agiriam de forma apenas com-
pulsiva, particularmente em revoltas ou rebeliões. Euclides não o cita, mas se refere
a Scipio Sighele (Os sertões..., p.420), em quem “o que diz Le Bon já estava, embora
de maneira muito menos elaborada” (Luiz Costa Lima. Terra ignota: a construção
de Os sertões. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1997, p.71). Se Natalie Davis
pode notar a linguagem intransigente para se referir a manifestantes populares da
França do século XVI (“escória do populacho”, “uma besta de muitas cabeças”;
veja Culturas do povo..., p.130), as teorias de psicologia social de fins do século XIX
darão um arcabouço “científico” ao medo das elites em relação às multidões.
178  Dawid Danilo Bartelt. “Cerco discursivo de Canudos...”, p.37-46.
179  Carta de Paulo Fontes ao barão de Jeremoabo, em 12/12/1896. In: Con-
suelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.127. O missivista se refere à expedição
Febrônio, que está para se dirigir aos sertões.
180  Os grupos vianista e gonçalvista vinculam-se, respectivamente, a Luís Viana
(que governou a Bahia a partir de 1896) e a José Gonçalves da Silva, (governador de
novembro de 1890 ao mesmo mês do ano seguinte), de quem o barão de Jeremoabo se
considerava sucessor político. Inclusive “a queima dos decretos de impostos [em 1893]
pareceu tratar-se de uma tática geral empregada pelos partidários da [então] minoria
Vianista” (Ralph della Cava. “Messianismo brasileiro e instituições nacionais”. In: Re-
vista de Ciências Sociais. Fortaleza, 1975. v.6, n.1 e 2, p.128 (grifo do autor).
181  Carta de Aristides da Costa Borges ao barão de Jeremoabo, em 9/2/1894.
In: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.94.
182  Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.54. A opinião citada é do
deputado oposicionista Leovigildo Filgueiras.
183  Cícero Dantas Martins. Carta ao Jornal de Notícias, transcrita em João
Arruda. Canudos..., p.179.
184  Aristides Milton. “A campanha de Canudos”..., p.44-49.
185  Declaração transcrita em Manoel Benício. O rei dos jagunços...,
p.108.111.
186  Afirmação de Artur Rios, deputado federal baiano e presidente da Câ-
mara Federal. Citado por Marco Antonio Villa. Canudos..., p.155.
180

187  Aristides Milton. “A campanha de Canudos”...., p.61-62.


188  A “união” não impediu, contudo, que Aristides da Costa Borges assim se
expressasse em carta ao barão de Jeremoabo, de 12/4/1897: “Tenho acompanhado
com o máximo interesse tudo quanto se há escrito sobre os Canudos e minha con-
vicção é que o governador [Viana] tudo baralha para ter um elemento ali de pronti-
dão para atirar sobre nós, que vivemos ameaçados a cada momento” (in: Consuelo
Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.171). A carta do barão de Jeremoabo dirigida
a um jornal de Salvador, já referida tantas vezes, foi escrita para reagir a insinuações
vianistas de que seria colaborador de Antonio Conselheiro.
189  Aristides Milton. “A campanha de Canudos”..., p.63-64.
190  Veja as cartas de Francisco Pires, de 10/2/1897, e Ubaldo Soares da Sil-
va, cinco dias depois, ao barão de Jeremoabo, que fazem memória dos atos de Mo-
reira César, “sanguinário por índole”, no Rio de Janeiro e em Santa Catarina (in:
Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.138.142). Por outro lado, também
o governador discordou da nomeação de Moreira César como chefe da expedição,
vendo nela uma ameaça ao seu poder.
191  A expressão é de Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares (A guerra
de Canudos..., p.94).
192  E houve quem visse, ainda nos últimos dias, na demora de atacar decisi-
vamente o arraial, a disposição do general Artur Oscar em usar politicamente a re-
sistência do arraial conselheirista: “Canudos tornou-se um mito politicamente en-
grossado e explorado. O general em chefe faz política Jacobina... Vê monarquistas
e restauradores nos bandos de Antônio Conselheiro, mas não ataca o antro inimi-
go... o pobre soldado brasileiro vai diariamente caindo, vitimado pela bala certeira
do jagunço, pela fome e pela miséria, enquanto o chefe faz politicagem!” (Carta
de Francisco Pires de Carvalho Aragão ao barão de Jeremoabo, em 22/9/1897. In:
Consuelo Novais Sampaio [org.] Canudos..., p.217-218).
193  Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares. A guerra de Canudos...,
p.30.
194  Coluna “Pela República” de O Estado de São Paulo, em março de 1897,
citada por Maria de Lourdes Mônaco Janotti. Os subversivos da República..., p.144-
145. Nesse contexto Euclides da Cunha publica, em 14 de março, seu primeiro
artigo de nome “A nossa Vendéia”, vinculando o Belo Monte de Antonio Conse-
lheiro a um movimento monarquista de resistência à Revolução Francesa. E nesse
mesmo dia um grupo de jornalistas baianos prepara um manifesto “Pelo nome da
Bahia”, endereçado à imprensa do Rio, reagindo contra a acusação de que o estado
era monarquista e apoiava Antonio Conselheiro e sua gente (Lizir Arcanjo Alves.
“Pelo nome da Bahia”. In: Revista da Bahia. Salvador, 1997. n.22, p.22-26). Por
outro lado, insistiu-se ainda mais no monarquismo do Conselheiro, que boatos
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 181

apresentaram como financiado pelo conde d’Eu, e também no do governador Luis


Viana, o que radicalizou ainda mais as tensões entre os grupos políticos baianos.
195  Carta de Bernardo Jambeiro ao barão de Jeremoabo, em 28/8/1897. In:
Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.213.
196  As reportagens de Euclides da Cunha, que cobrem o período que vai de
agosto ao início de outubro, não mencionam o telegrama enviado ao jornal em 21
de agosto, que garantia não existirem “intuitos monárquicos” em Belo Monte (veja
Diário de uma expedição..., p.240-241).
197  Edmundo Moniz. Canudos..., p.217-231.
198  Favila Nunes, citado por César Zama. Libelo republicano..., p.39.
199  Citado por César Zama. Libelo republicano..., p.31.
200  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.726; Alvim Martins Horcades de-
nuncia: “Em Canudos foram degolados quase todos os prisioneiros” (Descrição de
uma viagem a Canudos..., p.103). Referindo-se à gente belomontense que, sob a
liderança de Antônio Beatinho, se entregou às tropas federais, já no fim da guer-
ra, com garantias de ser poupada (veja foto de Flávio de Barros, intitulada “400
jagunços prisioneiros” in: Cícero Antônio F. de Almeida. Canudos: imagens da
guerra..., p.72-73), César Zama confirma: “Beatinho e todos os infelizes, que o
acompanharam, sem exceção de um só, foram friamente degolados” (Libelo repu-
blicano..., p.38).
201  Segundo César Zama (Libelo republicano..., p.26). Veja ainda o caso
narrado por Lélis Piedade, de um prisioneiro que, ao ser interrogado sobre que
tipo de morte desejaria e responder “De tiro”, teve, como resposta: “Pois há de ser
a facão” (Correspondência de 14/09/1897. In: Walnice Nogueira Galvão. No calor
da hora..., p.378).
202  Para as comemorações na capital da Bahia podem-se ver alguns testemu-
nhos literários em Lizir Arcanjo Alves. “Pelo nome da Bahia”..., p.28-31.
203  Mesmo que, na época da guerra e ainda depois, a morte fosse apresentada
como obra exclusiva dos “jagunços”. Por exemplo, após o combate de 27/6/1897, uma
carta ao barão de Jeremoabo assim se expressa: “a mortandade de oficiais já sobe a gran-
de número... o número de fanáticos mortos tem sido zero em relação àqueles... além de
quase todos oficiais da artilharia que foram mortos” (Carta de Manuel F. Meneses, de
7/7/1897, in: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.186). Jagunço não morre;
só mata! A mesma sensação se tem na leitura da narrativa de Dantas Barreto, militar
participante da 4a expedição. Quando jagunço morre, é por sua própria culpa e impe-
rícia: comentando a morte das pessoas que à noite buscavam descer ao Vaza-barris para
se abastecer de água e lá eram mortos pelas tropas oficiais, o militar diz: “De manhã...
se encontrava uma esteira de cadáveres, quase todos de extrema magreza, em que se
tinham bem frisantes os estragos causados pela miséria e pelo esgotamento de todas as
182

forças, neste viver insensato a que se condenaram os fanáticos” (Destruição de Canudos...,


p.256; destaque meu). E, mais à frente: “os jagunços, por mais de uma vez, foram
resolutamente buscar a morte junto às nossas trincheiras” (p.277). Não faltarão abor-
dagens “apologéticas” a respeito das expedições, principalmente por parte de membros
do Exército, que destacaram a ferocidade dos jagunços e a humanidade e cautela dos
militares. No entanto, nas palavras dos estudantes de direito da Bahia, em manifesto
publicado um mês depois do término dos combates, o que os soldados comandados
por Artur Oscar fizeram foi um “cruel massacre que, como toda a população desta ca-
pital já sabe, foi exercido sobre prisioneiros indefesos e manietados em Canudos, e até
em Queimadas” (In: Aristides Milton. “A campanha de Canudos”..., p.142).
204  Opinião de um jornal da época, citada por Consuelo Novais Sampaio
(“Repensando Canudos: o jogo das oligarquias”..., p.110).
205  Raymundo Faoro. Os donos do poder: formação do patronato político bra-
sileiro. 10 ed., Globo / Publifolha, São Paulo, 2000, v.2, p.175-176 (a citação é de
Gilberto Amado). Por outro lado, há comentários que apontam para o quanto a guerra
contra Belo Monte permitiu ao Exército brasileiro perceber-se efetivamente nacional.
206  Carta de Manuel F. Meneses ao barão de Jeremoabo, em 9/11/1897. In:
Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.224.
207  Pedro Sinzig. Reminiscências de um frade. 2 ed., Vozes, Petrópolis, 1925,
p.142.
208  Machado de Assis. Esaú e Jacó. In: Obra completa. Nova Aguilar, Rio
de Janeiro, 1997, v.1, p.1031. O próprio Euclides da Cunha, antes tão entusiasta,
agora reconhecia, numa frase que não chegou a ser incluída na versão definitiva de
Os sertões: “A República poderia ser a regeneração. Não o foi... a velha sociedade
não teve energia para transformar a revolta feliz numa revolução fecunda. E nós
precisávamos de uma revolução” (Leopoldo M. Bernucci. A imitação dos sentidos.
Edusp, São Paulo, 1995, p.128).
209  Carta de Aristides da Costa Borges ao barão de Jeremoabo, em 5/6/1897.
In: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.171.
210  César Zama. Libelo republicano..., p.29.
211  Falas da gente aprisionada, já no final dos combates (In: Emídio Dantas
Barreto. Destruição de Canudos..., p.252.258). Henrique Duque-Estrada de Mace-
do Soares, para quem os “fanáticos” de Belo Monte tinham “perdido a noção de
tudo o que não se relacionasse com o energúmeno e suas crendices, julgando-se
felizes naquela miséria”, registra: os sertanejos “lançavam-nos em rosto o nosso
inqualificável procedimento, vindos de tão longe, devastar seu Belo Monte, roubar
suas panelas, seus potes; comer suas cabras e estragar as plantações, e – sacrilégio! –
danificar as igrejas, de onde o Bom Jesus tantas felicidades prometia-lhes, inclusive
a ida ao Céu” (A guerra de Canudos..., p.98.180-181)!
O ARRAIAL REBELDE E OS BENEFÍCIOS DO BOM JESUS 183

212  Aristides Milton. “A campanha de Canudos”..., p.92.94. O “período


agudo da luta” é o do combate contra a expedição Moreira César.
213  Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros..., p.138. Montenegro
menciona “jornal de 1897” para fundar a informação.
214  A carta é dirigida a Mons. Giambattista Guidi, representante dos in-
teresses da Santa Sé no Brasil, e é datada de 13/03/1897, e pode ser lida em sua
inteireza em Edgar da Silva Gomes. “O catolicismo nas tramas do poder: a esta-
dualização diocesana na Primeira República (1889-1930”. Tese de doutorado em
História. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012, p.319-320. Des-
conte-se o eufemismo da expressão “pacificação dos ânimos”...
215  Não tive acesso a este documento. Sirvo-me das transcrições e observa-
ções de Enoque de Oliveira em Conselheiro do sertão (líder camponês) entre prédicas
e conselhos (s/e, Salvador, 1997, p.17-19).
216  Destaque-se a missa celebrada em Cansanção em 05/09, da qual parti-
cipou, entre outros, o ministro da Guerra, sobre a qual Euclides da Cunha teceu
algumas significativas considerações (Diário de uma expedição..., p.153).
217  Antes ocorrera missa campal com a presença dos comandantes da expe-
dição militar, do governador Luis Viana e outras autoridades, “em ação de graças
pela terminação das lutas de Canudos” (Diário da Bahia, edição de 26/10, refe-
rindo-se à missa celebrada dois dias antes. O ofício se deu no dia 28/10, e dele faz
menção o mesmo jornal, na edição do dia seguinte).
218  Ana Luiza Martins. “Cidadão da ordem: imagens e mensagens nas revis-
tas da Primeira República”. In: Ismênia de Lima Martins, Rodrigo Patto Sá Motta
e Zilka Gricoli Iokoi (org.) História e cidadania. Humanitas, São Paulo, 1998, v.2,
p.302.
219  Sidney Chalhoub. Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos trabalhado-
res no Rio de Janeiro da Belle Époque. 2 ed., Unicamp, Campinas, 2001, p.41-42.
220  Duglas Teixeira Monteiro. “Um confronto entre Juazeiro, Canudos e
Contestado”..., p.69 (destaque do autor).
221  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.484.
III
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO
MONTE E AO SEU REDOR
186

Seu Vigário, inteligência de matuto é que nem


gaveta de sapateiro, tem tudo mal arrumado,
fora de regra; se a gente mete a mão
para organizar as coisas, mela-se de gosma,
suja-se de tinta, ou estrepa o dedo no prego.

(Sertanejo em depoimento ao pe. Heitor de Araújo)

Antonio Conselheiro era um desequilibrado,


um fanático, dizem; mas não servia aos partidos:
nós o temos na conta de um crente, cujo espírito
vivia em um sonho perene entre os labores da terra
e as esperanças do céu: trabalhava, orava e predicava.

(César Zama)
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 187

Aproximo-me agora dos códigos da linguagem expressos nas palavras, faladas


e escritas, proclamadas e discutidas, sobre Belo Monte; não apenas aquelas de sua
gente, mas também as de quem travou contato com o arraial e lhe pediu a destrui-
ção ou não o julgou viável. O desafio que aqui se coloca é o de depreender como a
realidade do arraial conselheirista e de seu líder “é construída, pensada, dada a ler”.
Cabe, nesse contexto, atentar para as

classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social


como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real. Variáveis con-
soante as classes sociais ou os meios intelectuais, são produzidas pelas disposições
estáveis e partilhadas, próprias do grupo. São estes esquemas intelectuais incorpo-
rados que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro
tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado. As representações do mundo social
assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na
razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para
cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de
quem os utiliza.1

Como já foi dito, considerarei aqui quatro vertentes; vale sumariá-las. No


segmento da gente que fez Belo Monte, os dispersos e fragmentários testemunhos
de mulheres e homens são decisivos para a análise, visto expressarem o que para eles
terá significado o arraial. Fazendo a hermenêutica da vida, deixaram em suas tro-
vas, ditos e entrevistas percepções muito próprias do conflito, em que referências
contínuas ao mundo bíblico configuram religiosidades e visões de mundo, anseios
e frustrações.
188

Lugar especial ocupam também as prédicas atribuídas a Antonio Conse-


lheiro. Situado na fronteira entre o universo erudito e o popular, verdadeiro
“mediador cultural”2, suas palavras à gente de Belo Monte tocaram fundo. Elas
ecoavam, em seu tecido de ideias, juízos e recomendações, o que ele concebia
sobre a vida, sobre a morte, sobre o humano, sobre o divino, sobre a existência.
Quais seriam e de onde viriam os princípios éticos e morais que o habitavam e
o sustentavam, com os quais ele percorria as adversidades de sua tão excepcional
trajetória, que resultaria numa teia fabulosa de inscrições na história, imortali-
zando seu nome? O que dizia ele de sua obra? Já que nos dois cadernos que levam
seu nome a Bíblia ocupa lugar destacado, minha tarefa se torna especialmente
desafiadora.
A seguir abordo os posicionamentos da Igreja Católica, por meio da Ar-
quidiocese da Bahia, sobre Belo Monte, convencido de que ela jogou papel im-
portante, decisivo até, no processo que levaria à guerra e à destruição do vilare-
jo conselheirista, e a que me referi no fim do capítulo anterior. Concentro-me
na análise do tantas vezes citado relatório assinado por frei João Evangelista de
Monte Marciano.
E não poderia faltar Euclides da Cunha, não só na obra que imortalizou a
saga de Antonio Conselheiro e sua gente, mas também nos artigos e reportagens
produzidos “no calor da hora”, que evidenciam uma percepção clara da invia-
bilidade de Belo Monte. Com isso o “conflito de interpretações” sobre o arraial
conselheirista ficará manifesto, já que as fontes, imagens e referências bíblicas en-
contradas nas diversas expressões a respeito de Belo Monte não apenas contribuí-
ram significativamente na configuração dos respectivos olhares e entendimentos,
mas os estruturaram.

1. VOZES DO SERTÃO E A BÍBLIA

São conhecidos os testemunhos euclidianos a respeito da gente moradora em


Belo Monte, mas eles se encontram no interior de um quadro fortemente estere-
otipado. No entanto, cabe enfrentar empreitada; afinal de contas, como pensar o
arraial conselheirista sem atentar ao que sua gente teria a dizer?
Assim sendo, seleciono um primeiro conjunto de dizeres que vincula a saga
de Belo Monte com a história bíblica da libertação do povo hebreu do Egito e
posterior conquista da terra prometida. Nele encontramos mais elementos para a
compreensão do que ocorria com os belomontenses, suas convicções e esperanças,
do que recorrendo a eventuais manifestações extremas ou excepcionais; articulam-
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 189

se diretamente às motivações que levaram tanta gente ao arraial e ao tempo de vida


nele antes da guerra. A abundância das menções, quase sempre em registros de
falas, em várias situações, dá conta da relevância da temática. Considero-as em dois
momentos: o deslocamento para Belo Monte e a vida aí. Com a chegada da guerra
não apenas o ambiente mudará, mas também o universo de símbolos e referências,
aqueles que conformam os medos e as esperanças. O que também merecerá aten-
ção.3

O êxodo

Certamente o percurso que a gente do Conselheiro fez com ele após o com-
bate de Masseté, em fins de maio, passando pelo Cumbe e chegando a Canudos
em meados de junho de 1893 para ali se fixar, foi decisivo. Para o Conselheiro, o
fim de sua vida itinerante; para a gente que o seguia, a aposta em dias promisso-
res, sem que com isso afastasse os receios de represálias.
Os poucos testemunhos disponíveis indicam que a Bíblia se fez presente
de forma significativa já neste momento. Se para o líder os ares seriam apoca-
lípticos, com prenúncios de batalhas iminentes e juízos categóricos (como será
visto), para seu povo o tempo era de reminiscências. A marcha rumo às margens
do Vaza-barris “lembrava [a seus participantes] o povo de Israel acompanhando
Moisés na fuga para o Egito, ansiosos de atravessarem o mar Vermelho para se
livrarem do Faraó”.4
Sobre essa afirmação preciosa, apenas rápidas observações. Primeiramente,
em relação ao possível equívoco, relativo à fuga de Moisés para o Egito passando
pelo mar Vermelho. Como se sabe, o que se narra no livro bíblico do Êxodo foi
uma fuga do Egito, em que o povo de Israel teria atravessado o mar sob o coman-
do de Moisés. No entanto se pode pensar que, mais do que de um engano, esta-
ríamos diante de um resultado original dos caminhos da memória e da oralidade,
fundindo o êxodo de Moisés, do Egito, com o de Jesus, ainda criança, este para o
Egito, fugindo do rei Herodes (Mateus 2,13-23). Difícil dizer algo seguro sobre
a possível bricolage entre as duas conhecidas narrativas bíblicas. Como difícil é,
pela leitura de Aras, inferir que a reminiscência do êxodo bíblico em tal situação
tenha sido da gente conselheirista ou da retórica do escritor. Contudo, se não foi
nessa oportunidade, a memória da saga do povo hebreu liderado por Moisés não
demoraria a incidir significativamente nas falas do povo estabelecido em Belo
Monte. Note-se ainda que a figura de Antonio Conselheiro é ainda suposta; logo
a veremos manifesta.
190

A terra prometida e o Anticristo


Nos dizeres conselheiristas que sobreviveram às inúmeras destruições trazidas
pela guerra, as referências oriundas da história do êxodo e da conquista da terra
prometida pelos hebreus se evidenciam ainda mais. Fragmentos que o comprovam
se recolhem aqui e ali, de fontes razoavelmente variadas, indicando que, na herme-
nêutica da vida levada no arraial, elas tiveram repercussão especial.
O primeiro testemunho recolhido é de José Aras, e nos propõe uma interes-
sante inscrição do mito bíblico na geografia em torno de Belo Monte:

Eu, naquela época [alguns anos após o massacre final] já conhecia alguma coisa do
Antigo Testamento pelo que ouvia, e lembrava as comparações dos fanáticos: “o
Conselheiro era Moiséis (sic), o Vazabarrís (sic) seria o Nilo ou o mar Vermelho e o
píncaro do Cocorobó era o monte Sinai”.5

Aqui, mais uma vez, pouco importa a exatidão dos dados, ou que o Vaza-bar-
ris oscile em sua associação entre dois marcos das terras bíblicas. Aliás, a liberdade
nas associações é que nos remete para a densidade de seus significados. O Conse-
lheiro, mais que a Jesus, é referido a Moisés, o grande líder da libertação do povo
de Israel frente ao poderio do faraó egípcio. Por tal associação se percebe muito
sobre a compreensão que tinha a gente sertaneja do Belo Monte a respeito do seu
líder, junto a outras identificações, como por exemplo a de bom Jesus. E ainda: o
Conselheiro, por suas prédicas e conselhos, é associado ao Moisés comunicador das
leis de Deus ao povo.
Já a associação do sertanejo Vaza-barris com o Nilo egípcio deve se basear no
caráter indispensável das águas para a vida. Se o Egito era “uma dádiva do Nilo”, na
feliz expressão de Heródoto, Belo Monte não dependia diferentemente de seu rio.
Se, doutra forma, a associação do Vaza-barris for feita com o mar Vermelho, o sen-
tido é distinto, mas não menos relevante: a travessia deste, narrada com contornos
épicos em Êxodo 14, foi a passagem de Israel para a liberdade. Mais uma vez temos
aí uma expressiva possibilidade de compreensão sobre como o povo sertanejo expe-
rimentava a vida em Belo Monte: a liberdade frente aos faraós atuais.
E há ainda a identificação do píncaro do Cocorobó com o monte Sinai, lugar
onde, segundo a narrativa bíblica, Moisés recebeu de Deus as tábuas que conti-
nham, entre outras coisas, o Decálogo. Sabemos da importância deste para An-
tonio Maciel: os dois manuscritos que dele se conservaram apresentam um longo
comentário a cada um dos mandamentos. E para o povo sertanejo o Sinai-Coco-
robó apontará para a nova organização, querida e revelada por Deus, levada a cabo
em Belo Monte. Se para os hebreus libertos a promessa e a conquista da terra estão
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 191

estreitamente ligadas à observância dos mandamentos, o povo conselheirista recria


um universo em que a vida em Belo Monte se vê possibilitada pela observância do
que o sobrevivente Honório Vilanova chamava “a regra ensinada pelo Peregrino”.6
O Conselheiro visto como Moisés tem feições específicas, não percebidas nos perfis
desenhados por Euclides e outros.
É difícil minimizar o potencial representado por estas apropriações e
associações. O recurso às imagens e figuras bíblicas não se faz apenas por ilustração.
Mas ele acontece para que se comuniquem sentidos e posicionamentos, que
será necessário explicitar. Por ora, passo a outros testemunhos, que alargarão o
horizonte. Deixando José Aras, encontram-se outros registros que reiterarão a
percepção belomontense da atualidade da terra prometida. Recorro mais uma vez
a frei João Evangelista e ao Relatório que leva seu nome. Com a pretensão de desca-
racterizar a vivência religiosa que encontrou em Belo Monte, ironicamente acabou
preservando aquele traço que mais terá justificado a razão de viver e morrer no e
pelo arraial:

Os aliciadores da seita se ocupam em persuadir o povo de que todo aquele que


quiser se salvar precisa vir para os Canudos, porque nos outros lugares tudo está
contaminado e perdido pela República; ali, porém, nem é preciso trabalhar; é a terra
da promissão, onde corre um rio de leite, e são de cuscuz de milho os barrancos.7

É patente o parentesco com passagens bíblicas. Por exemplo, o livro do Êxodo


assim se expressa ao apresenta a fala de Deus a Moisés, instando-o a liderar o
processo de libertação do povo eleito do poder do faraó egípcio: “Eu vi a aflição
do meu povo no Egito [...] e sabendo qual é a sua dor, desci para o livrar das mãos
dos Egípcios, e para o fazer passar desta terra para outra terra boa e espaçosa, para
uma terra onde correm arroios de leite e de mel...” (Êxodo 3,7-8, destaque meu) Em
várias outras passagens da Bíblia se encontra tal expressão para designar a terra
reconhecida por Israel como herança divina. Mas esta que cito é particularmente
significativa pelo fato de aparecer num contexto de anúncio de que a escravidão e
a opressão estão para cessar, e o que se vislumbra é uma vida nova, em liberdade e
fartura. Fica ressaltado, assim, o caráter utópico desta “terra da promissão”.
É evidente como a expressão bíblica serve de matriz para aquela citada no Rela-
tório. Particularmente “terra da promissão” para caracterizar Belo Monte não deixa
margem a dúvidas. Que corra ali um “rio de leite” é algo sobremaneira expressivo:
ao mesmo tempo em que remete, obviamente, para o Vaza-Barris em cujas margens
Belo Monte foi construída, faz inevitavelmente pensar na imagem bíblica. E o fato
de se falar dos barrancos feitos de “cuscuz de milho” indica uma clara recriação da
imagem bíblica, a partir das novas circunstâncias em que ela é recuperada.8
192

Mas seria possível levantar uma objeção. Sabedores da tendência depreciativa do


relatório de frei João Evangelista em relação a tudo que ocorria em Belo Monte, seria
tentador pensar que a menção ao imaginário da terra prometida tivesse sido criada pelo
missionário. Ou seria uma forma de censurar os belomontenses por sua apropriação in-
devida de referenciais assim tão veneráveis e assim destacar seu fanatismo, de um lado, e
arrogância, de outro. É verdade que Euclides da Cunha fiou-se nesta descrição, tendo-a
transcrito em Os sertões. Esse terá sido o mote que lhe possibilitou caracterizar o arraial
conselheirista como “a terra da promissão – Canaã sagrada”.9 Não o terá afirmado sem
uma pitada de ironia, obviamente, mas ao mesmo tempo, no âmbito da polifonia de
sua obra, deu voz às “esperanças singulares” que alimentavam os habitantes do arraial
conselheirista. No entanto, isso garante pouco. Haveria outros testemunhos?
Para darmos conta dessa questão, é necessário considerar que, se para os he-
breus os componentes da “terra da promissão” eram o leite e o mel, em Belo Monte
os elementos poderão variar. Evidentemente com eles se está querendo falar da far-
tura e fertilidade que se viveriam no arraial conselheirista. Imagens da culinária in-
dígena reescrevem o mito bíblico da abundância e da bênção. São principalmente
variações do “leite e mel” que se apresentarão nos testemunhos que virão a seguir.10
O primeiro deles é encontrado no poema recém-editado (mas escrito em
1898), de um participante da quarta expedição contra Belo Monte:

Uns diziam: ele? [o Conselheiro] é um santo


Em Canudos se come maná
De leite tem um rio e de mel
Amigos vamos todos para lá!11

Outra vez o testemunho é de um inimigo, que lutou pela destruição de Belo


Monte. Mas se trata de registros de alguém que à época vivia em Simão Dias, Sergipe,
e terá escutado o que se dizia pelas redondezas a esse respeito; sua pena registraria as
vozes daqui e dali. Note-se aí o maná, referido como alimento da gente conselhei-
rista, que alude à saga dos hebreus, sustentados milagrosamente no caminho pelo
deserto rumo à terra prometida (Êxodo 16). Também o mel remete ao relato bíblico.
Não menos importantes são as memórias de grupos indígenas da região. A
fragmentação da memória não impede de perceber elementos fundamentais para
nossa questão. Segundo os descendentes dos Kiriri que viveram em Belo Monte:

Antônio Conselheiro falou de sua “missão” que seria para o bem de todos e chamou
os índios [...] Correu a notícia, “nóis vamo, nóis vamo” lá tinha um rio de leite os
morros, os barrancos e as ribanceiras eram de cuscuz para encher a barriga. Na terra
do rio de leite e ribanceira de cuscuz começaram a construção da igreja.
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 193

Os Kaimbé não diziam diferente:

Muitas pessoas, “uma imensidade” de gente, ia para Canudos. Corre a notícia


do rio de leite e uma serra de cuscuz. As pedras viravam pão e a água do rio
leite. Comida não faltava, levavam os sacos de farinha feita nas próprias roças
e tocavam para Canudos com carga na cabeça, tropa de burro ou jegue. Iam
comer lá.

Novas variações; inclusive a tragédia da guerra é expressa por uma recriação do


mote: “No fim o ‘rio era sangue do povo e a serra de cuscuz era o pessoal arrumado
enrriba uns dos outros, foi isso que aconteceu’”.12
Outro registro fala de “José Nicósio e Ana Josefa, pai e filha, seguidores de
Antônio Conselheiro, procedentes de Itabaiana, em Sergipe, que passaram a viver
no Acaru [povoado do município de Monte Santo], assim que se delineou a sorte
de Canudos”. José Sabino da Costa, “73 anos em 1987”, conhecedor de sobrevi-
ventes de Belo Monte, dizia que, para José e Ana, “Canudos era um rio de leite e
uma parede de cuscuz”.13
Fiquemos com uma última variação, na poesia de José Aras. Muito tempo de-
pois da guerra, assim sintetiza ele as histórias que ouviu e o que se falava do arraial
sagrado:

Espalharam mil boatos


por todo aquele sertão
em Belos Montes já estava
o Rei D. Sebastião
dos montes corria azeite
a água do rio era leite
as pedras convertiam-se em pão.14

Pode-se ainda dizer que a fartura e a fertilidade da terra experimentadas em


Belo Monte, expressas com imagens que, de uma forma ou de outra, remetem
ao mito da terra prometida dos hebreus, ecoam também temas bíblicos, como o
do paraíso, como se pode notar na descrição saudosista de Manoel Ciriaco feita a
Odorico Tavares em 1947:

No tempo do Conselheiro, não gosto nem de falar para não passar por mentiroso,
havia de tudo, por estes arredores. Dava de tudo e até cana de açúcar de se descascar
com a unha, nascia bonitona por este lado. Legumes em abundância e chuvas à
vontade. Esse tempo, parece mentira...15
194

Para o sertanejo que recorda um passado quase inimaginável, dada a situação


presente, no tempo do Conselheiro a natureza estava conciliada com os homens,
numa espécie de atualização do mito edênico em que a vida em santidade se traduz
por uma correspondente benevolência por parte da natureza.16 Não deixa de ser
surpreendente esse modo de conceber a vida e o trabalho, num contexto que se
costuma pensar dominado por visões penitenciais e doloristas.
Até aqui a terra prometida com seus detalhes. Mas há o reverso. Aspecto da
maior importância que surge desta caracterização de Belo Monte é a radical oposi-
ção que se estabelece com seu entorno. Recordemos como frei João explicitamente
apresenta o quadro: o que se anunciava é que “todo aquele que quiser se salvar
precisa vir para os Canudos, porque nos outros lugares tudo está contaminado e per-
dido pela República”.17 Este foi um marco na compreensão de Belo Monte por seus
habitantes: o novo regime, além de toda a avaliação negativa que vinha recebendo
nas pregações do clero, chegou ao sertão na forma de novos impostos e reforço do
mandonismo local. No universo religioso popular, ela não poderia significar outra
coisa que desgraça, obra demoníaca.18
Essa constatação de uma radical perversão do mundo à volta de Belo Monte
a gente sertaneja recolhe e articula a partir do que já foi chamado “apocalíptica
popular”.19 Constata-se uma crescente dissociação entre a lei dos homens e a
divina. A polarização adquire maior gravidade nas trovas recolhidas por Euclides
da Cunha em sua Caderneta de campo. Especialmente os chamados ABCs contri-
buem para explicitar as razões pelas quais se atribui à República a responsabili-
dade pelo atual estado caótico das coisas. O conflito se dá entre a “Lei de Deus”
e a “Lei do Cão”:

I garantidos pela lei


esses malvados já istão
uns tem a lei de Deus
Outros a lei do Cão.20

As eleições são motivo de particular avaliação. Se há, certamente, um juízo


sobre a prática tomada em si mesma, não se podem desconsiderar as condições
peculiares em que elas se davam, com toda sorte de abusos e corrupções, como já
foi mencionado; a polarização a seguir faz todo o sentido:

Muito disgraçados eles


de fazerem alei-ção
abatendo a lei de Deus
suspendendo a lei do Cão.
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 195

A já mencionada figura de D. Sebastião aparece nesse cenário conflitivo, aguar-


dado, num primeiro exemplo, para julgar e condenar quem estiver fora do grupo fiel:

Visita vem fazer


Rei D. Sebastião
Coitadinho d’aquele pobre
que estiver nalei de Cão.

Particularmente o rei, agora já manifestado, se insere na polêmica instalada


com a implantação do casamento civil, outra obra do regime recém-implantado:

Sebastião já chegou
comta muito rijimento
acabando com o civil
e fazendo os casamento.
Tanta gente que siassigna
nesta lei da falcidade
Xamemos por Jesus
que tenha de nós piedade.21

A própria guerra é compreendida como o ataque do mundo do mal, do qual


só Jesus pode livrar, como se expressa o ABC das incredulidade:

Grandeza só tem Jesuis


qui nos livra de toudo mal
assim como nos livramos
deste castigo mortal
daquelle inpio suberbo
qui vinha nos acabá.22

A figura do Anticristo configurará os receios e esperanças da gente conse-


lheirista, bem como sua compreensão do momento que lhe cabia viver. Ela tem
lugar de destaque no universo da “apocalíptica popular”.23 As menções a ela, que
povoava o imaginário cristão há séculos, e no sertão tem significativa relevância24,
em Belo Monte não se fazem em função de uma contrapartida divina (ou de algum
representante seu) que estaria por acontecer. Pois, se o reconhecimento da sua ação
costumava se dar em associação ao milênio por vir ou ao juízo final tido como pró-
ximo, no âmbito da vila conselheirista parece ter surgido, ao menos num primeiro
momento, entre o presente percebido e o futuro ao qual lhe corresponderia alguma
196

forma de cisão ou distanciamento. Assim, aquela figura sobrenatural e terrível era


percebida não tanto em conexão a um futuro espetacular, em que seria eliminada,
mas como atualmente presente, determinando as ações ao redor, desmantelando
princípios e certezas.25 Em trovas e ABCs, boa parte recolhida por Euclides, se
manifestam os medos que o momento impõe e as expectativas a serem alimentadas:

Nassio o Antecristo
p.a o mundo governar
ahi estar o concelheiro
p.a dele nos livrar.

A trova supõe um aparecimento recente do Anticristo. E se na história há uma


oscilação em considerar personagens humanos como instrumentos da ação do An-
ticristo ou sua manifestação direta, a trova seguinte a confirmará em Belo Monte:
Liodoro como quis
este povo cativar
p.a tomar conta do mundo
p.a ele governar.26

Seja o Anticristo ou seu representante, o objetivo das trovas parece ser o


de convencer a respeito da sua ação. No contexto em que Belo Monte se insere
constata-se que o Anticristo já veio, do que decorre o conflito entre duas ordens,
duas leis. O que se vive no Brasil de então é a derrocada da lei de Deus e o triun-
fo dos desígnios do Maligno. Proclamada a República, o embate por enquanto
tem a vitória do Cão e seus agentes, que implantaram as eleições e o casamento
civil, e tiraram do catolicismo seu lugar de religião oficial.27 Está-se, portanto,
em guerra, antes de 1896 e para além dos eventos que culminaram no embate de
Masseté, em 1893.
Há outro aspecto a ser destacado. Em todos os registros elencados a menção à
terra da promissão com seu rio de leite e barrancos de cuscuz surge quando se fala das
motivações que levaram tanta gente para o arraial conselheirista. Nesse sentido, o teste-
munho de frei João é explícito, ao falar dos “aliciadores da seita” como responsáveis por
proclamar a característica peculiar de Belo Monte e com isso atrair mais gente para o
arraial. Ou seja, a imagem de Belo Monte como terra da promissão se insere dentro do
amplo e insistente proselitismo desenvolvido pelo sertão afora, reforçado com o início
da guerra, responsável pelo já mencionado esvaziamento de tantos arraiais e vilarejos da
região, nas palavras alarmistas do barão de Jeremoabo e dos personagens que com ele
trocaram correspondência.28 Como já se viu, “espalharam mil boatos / por todo aquele
sertão” a respeito desta terra abençoada e de seus predicados. Nos depoimentos Kaimbé
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 197

se diz: “Corre a notícia do rio de leite...”29. Um depoente diz que sua mãe, jovem na
época, “queria ir, espiar a beleza que tava em Canudos [...] Ela achava que aquilo era bo-
nito que dizia que ali era um rio de leite e uma ribanceira de cuscuz”.30 Entre os Kiriri as
notícias não tinham outro teor: a apresentação do arraial conselheirista como reedição
da terra prometida bíblica teve importância fundamental neste processo que levou ao
abandono das fazendas, das vilas e do trabalho semi-escravo e ao aumento significativo
da população da aldeia sagrada, que veio com seus poucos bens e os partilhou, apostan-
do nas palavras do bom Conselheiro.
Pode-se associar à apresentação de Belo Monte como terra prometida o que se
dizia de Antonio Conselheiro nessas convocações para que mais gente se dirigisse
para lá.31 Esse aspecto terá, obviamente, tido sua importância, como se vê pela
seguinte quadra:

Quem quiser remédio santo


Lenitivo para tudo
Procure o Conselheiro
Que está lá nos Canudos.32

Belo Monte é um lugar privilegiado porque nele está o santo que tem remédio
para tudo. Antonio Conselheiro entra na cadeia extensa, no interior do catolicismo
popular, dos milagreiros, cuja vida, exemplar em termos de generosidade para com
o próximo, levou-os a serem tomados por santos.33 Destaca-se no Conselheiro a
capacidade, referida em mais de uma fonte, de alimentar toda a gente reunida em
Belo Monte: vimos Bombinho articulando a fartura do arraial à santidade de seu
líder; já dos Kaimbé há o seguinte depoimento: “A comida era por conta do Con-
selheiro, o povo era assombrado – esse homem é Deus, fazer um trabalho desse, dá
comida a tanta gente!”34
A partir dessas considerações é possível reconhecer uma particular densidade
nos testemunhos que vinculam Belo Monte com a cidade bíblica de Jerusalém.
Para além da “Jerusalém de taipa” de Euclides35, encontramos indicações, ainda
que poucas, de que, para sua gente, Belo Monte tinha contornos significativos da
cidade sagrada dos judeus. Temos a seguir palavras de um militar, sargento partici-
pante das expedições Moreira César e Artur Oscar:

[Os habitantes do arraial] atribuíam também ao Conselheiro o poder de, através


de suas orações, conseguir para todos a imortalidade. Assim sendo, Canudos seria
a nova Jerusalém, do Apocalipse, já se vê. Tudo isso me foi narrado por um velho
tio que, viajando pelo sertão de Pernambuco, teve a oportunidade de estar com o
Conselheiro e assistiu a várias práticas.36
198

A má vontade do depoente não é o problema principal deste testemunho: a iden-


tificação de Belo Monte com Jerusalém é do militar ou da gente do arraial? Difícil
decidir.37 De toda forma, estas palavras são significativas pois, na pior das hipóteses,
revelam que o contato com a gente sertaneja sugeriu ao sargento a imagem da Jerusa-
lém do Apocalipse.38 No entanto, para os belomontenses ela já se fazia presente, não
estava ainda por vir, como se lê no último livro bíblico. E, ainda crendo na fidelidade
do testemunho militar, a promessa da imortalidade se ajusta bem aos testemunhos an-
teriormente arrolados, que davam conta dos poderes miraculosos do Conselheiro39, e
mesmo à salvação eterna com que o Conselheiro efetivamente se preocupava.

O dilúvio vindouro

Uma carta publicada pelo Diário da Bahia, de uma mulher cuja assinatura
o jornal omitiu, é significativa ao reproduzir a reviravolta no estado de espírito e
nas expectativas da gente que vivia no Belo Monte, com o advento dos combates
que, ao cabo de quase um ano, aniquilariam completamente o arraial. Ela é datada
de alguns dias após o combate de Uauá, onde a primeira expedição enviada pelo
governo baiano foi rechaçada pelos guerreiros de Belo Monte:

Belo Monte, 5 de dezembro de 1896


Louvado seja Nosso Senhor Cristo –
Meu filho – é chegada a ocasião da salvação de nossas almas; portanto, v. venha já
e já, que o tempo está por findar-se. Se votou com os republicanos traga seu título
para o pai Conselheiro rasgar e queimar. Espero v. já como sem falta.
De tua mãe, ...40

Continua o proselitismo, agora por carta. Mas o tom é de urgência: a indica-


ção é a de que o tempo findou, a hora da salvação chega célere, a demora não é pos-
sível. A ruptura entre a gente eleita e as forças do Anticristo entra numa nova fase,
a do conflito declarado; daí que também a confirmação de que houve efetivamente
a escolha do caminho da salvação deve ser selada por um gesto radical, insofismá-
vel: a queima do título de eleitor. Um detalhe fundamental explicita de que tipo
de expectativa escatológica a gente do Belo Monte se alimenta: a salvação da alma.
Inscreve-se na sequência da tradição católica tridentina, certamente enfatizada em
tantas missões, que acentua o caráter decisivo do julgamento particular41, por vezes
articulado com a perspectiva do fim próximo do mundo.
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 199

Outra carta, alguns dias após, faz análise semelhante e se funda em espera
similar:

O nosso Conselheiro disse que aqueles que não vierem para cá se perderão, pois
agora chegou a hora do Salvador. O sertão não irá proteger ninguém, assim, você
deve vir agora [...] ninguém sabe o que pode acontecer. Depois você não pode mais
entrar. Fique sabendo que a destruição dos republicanos já começou e que por cinco
léguas não há uma só casa que o Conselheiro tenha mandado derrubar que ainda
esteja em pé. Não se arrisque sem necessidade, como você já fez antes. Eu já lhe
escrevi antes, e não foi só uma ou duas vezes.42

A mesma urgência e a certeza da destruição dos inimigos de Belo Monte, cer-


tamente animada pela vitória no combate de Uauá, quando as tropas policiais do
Estado tiveram de recuar. Percebe-se claramente uma radicalização nas expressões,
que traduzem um olhar mais agudo sobre a gravidade do conflito em que o cosmo
está envolvido, e que tem o arraial no seu fulcro.
Nesse contexto cabe considerar uma outra carta, da qual temos pelo menos
três versões. Sirvo-me aqui da transcrição enviada ao jornal O País, do Rio de Ja-
neiro, e publicada em 21 de setembro de 1897, perto do fim da guerra. Mas a carta
é de cinco meses antes; o missivista, Ezequiel Pereira de Almeida, dirige-se a seu
compadre quando do malogro da expedição Moreira César:

No dia 3 de março proximo passado do corrente anno [dia em que as tropas de


Moreira César recuam, diante de Belo Monte], com fé em Deus, creio; que o findou
as perseguições que no Bello Monte por tres veses muito forte porem tudo venceu
o Senhor Bom Jesus ficando touda munição dos nossos contrarios protesto; e por
isso me fazer crer que meu Conselheiro ainda recebe os convertidos pois Deus é
servido que haja demora da monarchiaesperandoaconverção do povo e tejam sertos
que a Republica se acaba breve, a prova está dada pelo Bom Jesus [...] fiquem sertos
que vai tudo separado quem fôr republicano mudice para os Estados unidos, pois
Deus quer os conselheiristas, os monarquistas também querem quem não quiser ser
deportado mais tarde chegue a Barchinha de Noél pois é o bello monte não outro.43

A carta é da maior importância, ao expressar a crença de um conselheirista


num momento em que se percebiam as ações hostis do Anticristo e se comemo-
ravam as vitórias sobre seus representantes; desta perspectiva vê-se o presente e
vislumbra-se o futuro. A expectativa é a de que no Brasil o regime republicano está
com os dias contados. O triunfo sobre as tropas de Moreira César soou como sinal
de que não está longe o dia em que a monarquia será restabelecida no país. Temos
200

na carta o mesmo convite que lemos nas anteriores: ainda há tempo de se alistar
nas fileiras do Conselheiro.
Mas para caracterizar o lugar privilegiado de Belo Monte no âmbito das trans-
formações cósmicas que estão para ocorrer, Ezequiel recorre à conhecida imagem
bíblica da arca de Noé: o arraial conselheirista configura-se como a nova “barchinha
de Noél” e assim ocupa lugar privilegiado no contexto das mudanças radicais que
se avizinham. Urge, portanto, decidir. A apocalíptica belomontense é um misto de
temores e esperanças. E é mais para o fim do regime republicano que para alguma
catástrofe cósmica que a carta aponta. A derrota de Moreira César e suas tropas era
uma senha indiscutível de que Deus havia decidido agir em favor de seus fiéis.
Neste contexto terá surgido a famosa “Profecia”, que Euclides recolheu em sua
Caderneta de campo. Mas o que lhe deu maior relevância foi a transcrição de um
fragmento seu em Os sertões. A ambiguidade – que parece intencional – do texto
euclidiano levou a que tal profecia resumisse, para tantos, o conteúdo da pregação
de Antonio Conselheiro e a razão de existir de Belo Monte.44 A Caderneta de campo,
porém, evidencia que se trata de um texto anônimo (portanto, não oriundo da pena
do Conselheiro), que se apresenta como uma reescrita de uma profecia de Jeremias.45
Nele temos a apresentação de fatos ocorridos desde 1822 até o fim de tudo, previsto
para 1901. O fragmento seguinte mostra a época que mais recebe a atenção do autor:

[...] Em 1889 será despedido o Imperador da Corte pelos homens desgraçados do


Brasil. Em 1891 guerra; Nação contra Nação. Em 1892 grande multidão de peca-
dores, uns convertidos e outros emendados que não se conhecerá nem rico nem
pobre. Em 1893, prata, ouro, cobre não haverá, correrá uns bilhetes vermelho feitos
por mão dos homens, arrebentando da Tesouraria. Em 1894 há de vir rebanhos mil
correndo do centro da Praia para o certão então o certão virará praia e a praia virará
certão. Em 1895 os homens dos seus barcões abrirão as portas e assentar-se-ão em
cima de seus barcões e não há de vender cinco réis de fazenda. Em 1896 há de haver
guerra Nação com a mesma Nação, o sangue há de correr na terra. Em 1897 haverá
muito pasto e pouco rasto e um só pastor e um só rebanho. Em 1898 haverá m[ui-
tos] chapéus e poucas cabeças. Em 1899 converter-se as águas em sangue o planeta
há de aparecer no nascente com o raio do Sol q o ramo se confrontará com a terra e
a terra em algum lugar se confrontará com o Céu, ajuntará-se astronámos da terra se
ajuntará com os mares; planetas do Céu há de brigarem com os astronámos da terra.
Há de chover uma grande chuva de estrelas; cairá muitos meteoros na terra que daí
será o fim do mundo. Em 1901 se apagarão as luses. Deus disse no Evangelho – eu
tenho um rebanho que amo fora deste aprisco e é preciso que se reúnam, porq. há
um só Pastor em um só rebanho. Diz o Profeta Jeremias para 1901 existe um só
pastor geral e um só rebanho. Fim
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 201

Neste Arraial de Belo Monte aos 24 de Janeiro de 1890.46

Já se propôs ter havido um erro na datação, já que em 1890 Belo Monte não existia.47
Imagino aqui outra possibilidade: o texto, embora deva ter surgido antes do aparecimento da
quarta expedição, se localiza intencionalmente no quase mítico 1890, anterior ao estabeleci-
mento do Belo Monte. O autor se situa, ficcionalmente, logo após a proclamação da Repú-
blica, e “anuncia” eventos já ocorridos quando da escrita e outros a serem aguardados, para
os quais se deve estar preparado.48 Destaque-se que o fim é previsto para 1901, momento
em que se confirmará a existência de “um só rebanho e um só pastor” (expressão que o texto
atribui ao profeta Jeremias, mas cuja referência bíblica mais imediata é João 10,16). De toda
forma, tal rebanho, ao enfrentar a guerra (iniciada em 1896) e a carestia (1897), aguarda o
fim, num cenário de mortes (1898) e cataclismos cósmicos (1899), descritos com imagens
que evocam cenários apocalípticos. Se algum elemento pode ser de difícil identificação, a
expectativa de fundo é clara: “Até o dia do Juízo”, eis o que diziam algumas pessoas nos dias
finais do cerco e do massacre.49
Como se vê, o enfrentamento da guerra se terá alimentado das esperanças apocalípticas
centradas no fim do mundo próximo. Elas explicam a resistência hercúlea aos hereges repu-
blicanos, a deserção quase nula; deram sentido ao último esforço por manter de pé a cidade
sagrada. O que o Anticristo não permitiu, embora não tivesse conseguido seduzir os fiéis do
Conselheiro. Um outro mundo os aguardava, garantiam-no as certezas oriundas do universo
bíblico-católico do sertão, secularmente construído e vivenciado.
Mas por outro lado, numa variação extrema (e última), há testemunhos, de setembro
de 1897, em que habitantes do arraial já cercado, praticamente em ruínas, diziam aos invaso-
res, numa fidelidade espantosa: “Não temos fome e no dia em que o Conselheiro quiser, con-
verterá em fubá as barrancas do rio e as águas em leite. Vão embora, enquanto é cedo [...]”50

Impressões provisórias

Surpreende que “eventos bíblicos, como os relatados no Êxodo, venham a ter efei-
to tão poderoso sobre os camponeses instalados” à beira do Vaza-barris.51 Por outro
lado, também chama a atenção o fato de esse aspecto ter passado quase despercebido,
obscurecido que foi pela construção euclidiana da religiosidade conselheirista. De toda
forma, Belo Monte soa plenamente compreensível, aos olhos de sua gente, a partir das
tradições religiosas que já há séculos configuravam o sertão. Pausa frente à interminável
história de sofrimentos e dores, o arraial adquiriu contornos especiais. E é importante
considerá-los, para além dos dramáticos lances da guerra. Esta, para seus habitantes,
não era inevitável, como seria, por exemplo, para Euclides.
202

Frei João Evangelista afirma que “os aliciadores da seita” levavam as pessoas a se
dirigirem a Belo Monte apelando ao desejo de salvação. Este é um ponto fundamental.
Seria o arraial o lugar da salvação? Ou mediação para ela? Como se articulam salvação e
história? É interessante notar que, em todos os testemunhos arrolados e em outros, não
haja, antes da guerra, menção à iminência do fim deste mundo, embora o Anticristo
esteja em ação, por força de seus agentes. Nesse contexto, por conta da presença e ação
do Conselheiro, Belo Monte torna possível a salvação, justamente o que a Igreja dos
padres, corruptos e mancomunados com a maldita República, tornou-se incapaz de
proporcionar. Eis o sentido da afirmação que espantou frei João Evangelista e selou o
fracasso de sua missão: “a gente foi se reunindo [...] gritando que não precisavam de
padres para se salvar, porque tinham o seu Conselheiro”.52 Por meio deste se abre a
possibilidade de uma salvação aqui (a terra da promissão) e no além (o céu).53 Em Belo
Monte “a reapropriação profética de Deus resultou num otimismo histórico”.54 Ao me-
nos até a eclosão da guerra, que alterou dramaticamente os sentimentos e percepções. O
rio de leite converteu-se em sangue corrente. Mas, até o fim, a história estava nas mãos
de Deus: ele não haveria de abandonar seus fiéis. Mesmo com a morte se avizinhando.

2. BELO MONTE E A BÍBLIA DO PEREGRINO

Quero agora investigar como a Bíblia contribuiu para forjar a trajetória de An-
tonio Conselheiro, particularmente em relação a seu Belo Monte. Terá sua leitura da
Bíblia contribuído para definir suas posturas de ordem teológica e política? De que
maneira? O caminho passa necessariamente pela análise das prédicas contidas nos dois
cadernos atribuídos a ele. Como esse percurso é objeto de controvérsias, são necessárias
algumas justificativas complementares àquelas já apresentadas no início deste livro.

Rompendo a interdição: os cadernos de


prédicas de Antonio Conselheiro
Vimos que foram poucos os estudos quanto ao Belo Monte e ao Conselheiro
que se dedicaram com mais cuidado às prédicas atribuídas ao pregador sertanejo,
mesmo aquelas editadas por Ataliba Nogueira. E menor atenção recebeu o outro
manuscrito, ainda inédito, de mais difícil acesso. Certamente concorreu para tal a
pouca importância dada à religião na abordagem dos fenômenos sociais, tida como
expressão de uma consciência atrasada, ou apenas reflexo (ou encobrimento) de
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 203

realidades e conflitos situados na base sócio-econômica da sociedade, como já pude


salientar no primeiro capítulo deste trabalho.
Mas haveria outras razões: o momento político, de repressão a movimentos
populares e organizações de resistência ao regime militar, era particularmente desa-
nimador e pouco fértil para uma investigação, com perspectivas inovadoras, que re-
visse o que já estava praticamente selado sobre o movimento nos sertões da Bahia,
e por isso mesmo indiscutível. E uma última, talvez mais decisiva, a que já aludi:
as prédicas desmentem o retrato mais famoso dele, pintado com tintas fortes por
Euclides da Cunha, apresentando-o como desequilibrado e ignorante!55
Apesar de a avaliação euclidiana ter feito história, parece mais sensato o per-
curso alternativo, que reconhece a paternidade do Conselheiro dos volumes encon-
trados: a grande maioria dos estudiosos a reconhece, mesmo aqueles que não dão a
eles a devida importância ou desdenham de seu potencial para um entendimento
adequado do Conselheiro e de seu ideário para o Belo Monte. Os dois cadernos
são o principal instrumento no esforço de conhecer a presença da Bíblia na prega-
ção do Conselheiro. Se os textos têm originalidade, a análise deverá mostrá-lo. De
toda forma, são expressões fundantes do Belo Monte, capazes de dar sentido à sua
trajetória peculiar.
Passo à apresentação de cada um dos cadernos. Depois procedo à análise de
seus aspectos mais sugestivos. Só então abordarei algumas tradições que se atri-
buem ao Conselheiro mas se encontram fora desses manuscritos.

“Apontamentos” e “Tempestades”

Depois de uma transcrição interrompida do Novo Testamento56, tema a que de-


verei voltar, o caderno de 1895 tem uma folha de rosto com o título “Apontamentos
dos Preceitos da Divina lei de Nosso Senhor Jesus Cristo, para a salvação dos ho-
mens”57; em forma resumida ele abre a p.3, que inicia um comentário aos dez man-
damentos (até a p.121). A seguir lemos uma série de prédicas sobre assuntos diversos,
como a cruz, a paixão de Jesus, a missa, a paciência nos trabalhos e outros (da p.122 à
p.164). A partir daí uma série de reflexões sobre temas e passagens bíblicas: a criação
do ser humano, o profeta Jonas, a paciência de Jó, o dilúvio (entre as p.165 e 234).
Tem-se então uma seção chamada “Textos”, composta quase na totalidade por frases
e citações bíblicas, quase sempre com o texto latino e subsequente tradução para o
português (p.235-247). Nas p.248-251 a última prédica, intitulada “Sobre pecados
dos homens”. Um índice (às p.252-253), onde os títulos das diversas reflexões nem
sempre aparecem da forma que nas páginas correspondentes, fecha o caderno.
204

O título do segundo manuscrito de 1897, “Tempestades que se levantam no


coração de Maria por ocasião do mistério da anunciação” relaciona-se diretamente
à primeira parte do manuscrito, que desenvolve reflexões sobre vinte e nove do-
res de Maria (até a p.223).58 A segunda parte (entre as p.224 e 426) apresenta o
comentário ao Decálogo já encontrado no manuscrito anterior. “Textos extraídos
da Sagrada Escritura” é o título da terceira parte do caderno (p.427-485), e seu
conteúdo é basicamente feito de frases bíblicas, quase sempre citadas no latim e no
português, a que se somam algumas citações de teólogos cristãos. Na verdade, essa
seção inclui todo o conteúdo da correspondente “Textos” do manuscrito anterior e
a amplia extensamente, com mais citações da Bíblia e de teólogos, além de comen-
tários. A quarta parte, “Prédicas de circunstância e discursos” (p.486-628) também
recolhe pregações já registradas nos cadernos de 1895 (como as relativas à missa, à
confissão), mas traz também outras, da maior importância: uma quando do recebi-
mento das chaves da igreja do padroeiro de Belo Monte, o famoso discurso contra
a república, e uma tocante despedida.
A leitura dos dois cadernos que sobreviveram à guerra dá-nos a conhecer al-
guém com destacado manuseio da Bíblia. Não só ela é citada abundantemente,
mas ambos os cadernos têm seções reservadas quase que exclusivamente a trans-
crever versículos bíblicos, e nas demais seções ela também se faz presente. Mas não
só. A Bíblia ocupa nos cadernos de prédicas de Antonio Conselheiro a função de
referencial. Além de um destaque à figura de Paulo e aos evangelhos, no manus-
crito inédito são várias as histórias bíblicas narradas pelo Conselheiro, e no meio
delas um alongamento sugestivo sobre os episódios do êxodo e dos inícios do povo
de Israel. E a Bíblia não aparece apenas para confirmar teses ou afirmações ante-
riormente elaboradas, como costumava (e costuma) acontecer no ambiente cató-
lico. Os temas do Conselheiro, salvo algumas exceções, são diretamente bíblicos.
Na análise que se segue dou atenção particular às seções “Textos” do manuscrito
de 1895 e “Textos extraídos da Sagrada Escritura” daquele de 1897, bem como a
algumas prédicas esparsas.

A originalidade das prédicas

Vimos no primeiro capítulo que as poucas abordagens que se fizeram das pré-
dicas de Antonio Conselheiro, aquelas contidas no caderno publicado por Ataliba
Nogueira, desmentem o juízo de Euclides da Cunha a respeito da sua (falta de)
qualidade literária e conceitual. No entanto é preciso lê-las em articulação com o
conjunto da obra histórica do Conselheiro, e ao mesmo tempo estabelecer os nexos
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 205

e rupturas com as ênfases básicas da teologia católica convencional; a mensagem


religiosa das meditações e a missão que o Conselheiro assume em relação ao Belo
Monte interagem adequadamente com seu contexto, a um só tempo religioso e
político. O acento no religioso se justifica: “o popular e com ele o religioso [apare-
ce] como antropologicamente significativo e politicamente fundamental”59, se se
considera que “a religiosidade popular é um protesto contra uma realidade estranha
(cultural, econômica, política) que é imposta de cima para baixo [...] O arcaico se
transfigura em utópico, a aparente presença do passado se transforma em anúncio
do futuro, a memória torna-se profecia”.60
Cabe agora considerar a atribuição ao Conselheiro das prédicas encontradas
nos dois cadernos manuscritos. À luz do que se sabe sobre as práticas dos missio-
nários e pregadores, leigos e clérigos, é conveniente adotar uma postura cautelosa
a este respeito, não para negar a importância dos cadernos ou subestimá-los, mas
para dar-lhes a devida valoração. Afinal de contas, sabe-se que os missionários que
vinham para o sertão, na sua maioria estrangeiros,

decoravam ipsis verbis esses sermões vertidos do italiano e revistos por algum mestre
do vernáculo em que eram iniciados. Guardam vestígios da língua original, trazem
pequenos erros nas citações latinas, refletem terminologia relativamente erudita
quando se tem em conta a grande maioria de seus ouvintes.61

A prática das transcrições e, quando necessário, traduções, era comum. O teor


das prédicas contidas nos cadernos subscritos por Antonio Conselheiro, seu forma-
to e estilo, bem como alguns de seus conteúdos, levam à inevitável pergunta sobre
quanto do que consta nos cadernos pode ser atribuído originalmente, e o que terá
sido assumido, em transcrições que fez ou mandou fazer, bem como reelaborações
de material anteriormente conhecido, especialmente por meio de leituras.
A questão é, efetivamente, de solução difícil. Há que se proceder por par-
tes, identificando aquelas páginas em que mais provavelmente estamos diante de
textos da pena original do Conselheiro. No caderno já editado, o sermão sobre a
República não pode ter tido um surgimento muito anterior ao que é sugerido pela
sua datação do manuscrito, e, a se julgar pela posição do Conselheiro a respeito
do regime político recém-implantado no Brasil, bem como sobre a abolição, de
que se fala aí, nada parece impedir o reconhecimento de sua autoria pelo líder de
Belo Monte. Ao mesmo tempo, ele parece estabelecer conexão com o manuscrito
de 1895, como se poderá ver mais adiante. A prédica “Sobre o recebimento da
chave da Igreja de Santo Antonio, Padroeiro de Belo Monte”, não há por que não
ser atribuída ao líder do Belo Monte, se a oportunidade de seu pronunciamento
aparece claramente: o dia da inauguração da primeira das duas igrejas que Antonio
206

Conselheiro fez construir no arraial. E a “Despedida” merece uma avaliação seme-


lhante, entre outras coisas porque apresenta o Conselheiro falando de si mesmo
com o termo que, de acordo com o testemunho de gente que o conheceu e com ele
conviveu, mais lhe agradava e com o qual se identificava: peregrino.62
Mas o mais importante é considerar a produção autoral do Conselheiro no
manuseio das fontes literárias com as quais teve contato e lhe serviram de inspira-
ção. Não é viável reduzi-las a uma ou algumas de suas fontes. É justamente neste
processo de reelaboração de materiais mais antigos que o discurso recebe, tendo em
vista novas circunstâncias, e não apenas em aspectos secundários, formas novas e
conteúdos diferenciados. E para a percepção destes não se pode fixar a atenção nas
semelhanças entre os discursos, mas principalmente salientar as diferenças e con-
trastes. Cabe principalmente perceber a forma da utilização da fonte ou fontes, e
não simplesmente reduzir a elas a obra surgida de sua utilização. Neste sentido, soa
significativa a observação de Abelardo Montenegro, quando aponta para o desen-
volvimento de uma reflexão própria do Conselheiro: ele “mantinha um secretário
– Leão da Silva – a quem ditava seu pensamento sobre religião”.63
Estas observações, se tornam a avaliação crítica dos cadernos muito mais com-
plexa, nem por isso inviabilizam tomar seus conteúdos como expressão eloquente
da visão do Conselheiro sobre o arraial que liderava, e de suas concepções teoló-
gicas e políticas; muito pelo contrário. A repetição de prédicas dum caderno em
outro reforça a sensação de que todas elas, mesmo tendo suas fontes, foram pelo
Conselheiro efetivamente “subscritas” (expressão com que ele expressa sua relação
com um dos cadernos e seu conteúdo), assumidas conscientemente. Assim, tomo
os cadernos como testemunho da mais alta importância, insubstituível, capaz de
indicar de maneira expressiva o que o líder do arraial do Belo Monte pensava de
seu empreendimento e como o interpretava, bíblica, política e teologicamente.64

Passado e presente

Em relação às prédicas contidas no manuscrito de 1895, considero inicialmente


dez prédicas que formam um conjunto.65 A primeira delas refere-se ao chamado de
Deus a Moisés para livrar o povo hebreu do jugo do faraó do Egito (Êxodo 3). Na
prédica seguinte são relatadas as pragas lançadas sobre o mesmo Egito (Êxodo 7-10).
A terceira registra a última praga, a morte dos primogênitos egípcios, ocorrida en-
quanto os israelitas celebravam a festa do cordeiro pascal e estavam para alcançar a
liberdade esperada (Êxodo 11-12). A quarta prédica deste conjunto descreve a traves-
sia do mar Vermelho feita pelo povo hebreu em fuga do Egito (Êxodo 14). A seguir se
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 207

fala dos alimentos que, segundo os relatos bíblicos, sustentaram o povo no percurso
pelo deserto (Êxodo 16-18). Logo depois lemos uma prédica sobre os mandamentos
entregues por Deus a Moisés no monte Sinai, e o sacrifício oferecido como sinal da
aliança aí constituída (Êxodo 19-24). A próxima prédica versa sobre o episódio do
bezerro de ouro (Êxodo 32), em que se destaca a violência de Moisés matando os infi-
éis e o perdão conseguido de Deus. Após ela são descritas as inúmeras regras relativas
ao culto (Êxodo 25-40). A penúltima prédica deste conjunto trata dos derradeiros
momentos de Moisés, com a admoestação aí dada e sua morte (Deuteronômio 34).
E a final trata dos juízes, os “libertadores que Deus lhe [ao povo de Israel] mandou
durante esse tempo” após o ingresso na terra prometida.66
Como se vê, trata-se de um enredo completo, estruturado a partir da história
da liderança de Moisés, que expõe o momento fundante da trajetória do povo de
Israel. Mas não é só. Em praticamente todas as prédicas é clara a perspectiva her-
menêutica com que as histórias bíblicas são recuperadas: trata-se da já mencionada
“leitura tipológica”, em que um elemento anterior, normalmente tirado das Escri-
turas judaicas, serve de modelo para realidades posteriores, particularmente aquelas
encontradas no Novo Testamento.67 Tomo alguns exemplos. O final da terceira
prédica, sobre a celebração da Páscoa, traz o seguinte comentário:

O Cordeiro Pascoal é figura do Cordeiro de Deus, que por nós se imolou. Fomos
marcados com o seu Sangue, e assim preservados da morte eterna. No Santíssimo
Sacramento do Altar Ele nos dá em alimento sua Carne e seu Sangue, debaixo das
espécies de pão ázimo. O livramento dos Israelitas do cativeiro do Faraó por Moisés
representa, ao vivo, o livramento de toda a humanidade da escravidão do demônio
por Jesus Cristo.68

A conclusão da quarta prédica vê na travessia do mar Vermelho pelos hebreus li-


derados por Moisés uma prévia da realidade e das possibilidades abertas no presente:

A coluna de nuvens e de fogo [que, segundo o Êxodo, acompanhou o povo na saída


do Egito] representa Jesus Cristo. Quem caminha aluminado por esta luz, atravessa
com passos seguros os perigos do Mundo em que outros se perdem. A passagem do
mar Vermelho, necessária aos Israelitas para chegarem à terra prometida, simboliza
o Sacramento do Batismo, pelas águas do qual chegamos ao céu.69

Na penúltima prédica o próprio Moisés, nas suas palavras derradeiras, anuncia


a vinda de um profeta “semelhante a mim”, que não é outro senão “Nosso Senhor
Jesus Cristo”.70 E na última os juízes de que se fala são “uma figura dos doze Após-
tolos, que venceram o paganismo pela virtude de Cristo, seu chefe invisível”.71
208

Versículos: o amor de Deus e o peregrinar


Mas acontece também que os registros apontem para outras possibilidades
interpretativas. É o caso da seção “Textos”, composta basicamente de passagens
extraídas da Escritura. Elas, a despeito da aparência de uma coletânea não muito
orgânica, enfatizam pontos e acentuam perspectivas importantes para o entendi-
mento do conjunto da obra (não só) escrita do Conselheiro. A transcrição delas e
os rápidos comentários que por vezes se lhes seguem (junto a uma ou outra citação
de um santo) parecem indicar algumas preocupações.72 Primeiramente predomina
o empenho em mostrar o amor de Deus, de Jesus, pela humanidade. Assim, logo
após a primeira citação, Lucas 1,28 (o v.35 também é transcrito, mas não citado)
que apresenta o anjo anunciando a Maria que ela será mãe do filho de Deus, o co-
mentarista acrescenta: “Grande desejo que Jesus teve de sofrer e morrer por nosso
amor”. E recorre ao teólogo João Crisóstomo para confirmar a dádiva grandiosa
que o Pai oferece à humanidade: “Não é um servo, não é um anjo, é o próprio Filho
que ele nos deu”.73
Sobre a afirmação de Jesus, de que tinha vindo trazer fogo à terra (Lucas
12,49), o comentário é o seguinte: “Que tinha vindo à terra para trazer às almas o
fogo do Divino amor, e que não tinha outro desejo senão de ver esta Santa chama
acender em todos os corações dos homens”. Mais adiante o convite é inspirado por
Isaías 12 (v.4), numa recriação que ressalta a amorosidade divina: “Ide publicar por
toda parte as invenções do amor de Deus para se fazer amar dos homens”.74 A visão
otimista se reforça com a aparição de um versículo, que se repetirá outras vezes: “O
Apóstolo diz aos Romanos: Não foi tão grande o pecado como o benefício, onde o
pecado abundou, superabundou a graça”.75
O amor de Deus será adequadamente correspondido pela observância dos
mandamentos; é o que lembra a última citação do conjunto, João 14,21: “Aquele,
que tem os meus Mandamentos, e que os guarda, esse é o que me ama. E aquele
que me ama, será amado de meu Pai, e eu o amarei também, e me manifestarei a
ele”. Essa passagem é entendida em perspectiva escatológica, como se vê na pas-
sagem evangélica que a segue como se fosse seu comentário: “Porque o Filho do
Homem há de vir na glória de seu Pai com os seus anjos e então dará a cada um a
paga segundo as suas obras”.76 Nesse contexto cabem as únicas referências “ame-
açadoras” de todo o conjunto: “Vos chamei, mas não me ouvistes, eu também
em vossa morte rir-me-ei de vós”.77 E João 3,36: “O que crê no Filho tem a vida
eterna, e o que, porém, não crê no Filho não verá vida, mas permanece sobre ele
a ira de Deus”.78 Também aqui se situa a promessa de Mateus 10,32 (33) de que
o Filho confessará (ou não) diante do Pai aquele que o confessar (ou não) diante
dos homens.79
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 209

Aspecto destacado nessa proclamação do amor de Deus pela humanidade é a


descrição dos sofrimentos de Jesus. Registram-se passagens evangélicas a respeito,
bem como outras de profetas e de salmos que a tradição cristã associou a esse mo-
mento único. Sem maiores comentários, pois os textos falam por si. Esta morte
é entendida segundo João 15,13, citado em latim e numa tradução livre: “E que
maior sinal de amor, diz o mesmo Salvador, pode dar um amigo ao seu amigo, que
sacrificar a sua vida por ele?”80 Decorrência desse processo vivido pelo Filho de
Deus é o que aguarda quem lhe quiser ser fiel: tomar a cruz, pois ele sofreu para
que sigamos seus passos (o texto articula Mateus 16,24 “Se alguém quer vir após de
mim, negue-se a si mesmo, tome a sua Cruz e siga-me”, e 1 Pedro 2,21: “Jesus Cris-
to sofreu por nós deixando-nos o seu exemplo para que sigais os seus vestígios”).81
Delineia-se, assim, o perfil do itinerário cristão: obediência aos mandamentos e
aceitação do sofrimento como imitação de Jesus.
Mas esse desenho vertical tem sua contrapartida. As passagens bíblicas re-
lativas ao amor de Deus e de seu Filho pela humanidade e sua retribuição se
articulam àquelas que tematizam o amor que os fiéis deverão ter uns para com
os outros. Esta é outra tônica da seleção de versículos bíblicos nessa parte do
manuscrito. Por isso cabe aí a referência ao duplo mandamento, a Deus e ao
próximo.82 Particular interesse, dadas as circunstâncias em que se terá dado a
elaboração do manuscrito, manifesta a transcrição de Mateus 5,44: “Mas eu vos
digo: Amai a vossos inimigos, fazei bem a quem vos tem ódio e orai pelos que
vos perseguem e caluniam”.83
Duas outras citações parecem isoladas no conjunto, mas terão sua razão de
aí se fazerem presentes. A primeira delas, vinda logo após um dos versículos refe-
rentes ao juízo final, é Mateus 19,24, que terá determinado, há tempo, as relações
do Conselheiro com pessoas possuidoras de bens: “Mais fácil é passar um camelo
pelo fundo de uma agulha, do que entrar um rico no Reino dos Céus”.84 A recor-
rência deste versículo e de outras referências certamente indica que abordagens
apressadas não são capazes de dar conta da complexidade do pensamento social do
Conselheiro. No caderno de 1897, no interior de uma meditação sobre a parábola
do semeador, encontramos a passagem evangélica (sem a citação correspondente:
Lucas 14,12-14) que propõe convidar os pobres a um jantar ou ceia, em lugar dos
amigos, irmãos ou vizinhos ricos; ação assim surpreendente é apresentada em vista
da salvação: quem o fizer terá sua retribuição “na ressurreição dos justos”.85 Certa-
mente essa passagem é modelar para o comportamento do Conselheiro em relação
a seu séquito, especialmente à gente despossuída que foi viver em Belo Monte: ele
“acolhe em sua companhia sobretudo os mais miseráveis, que, segundo o Evange-
lho, não têm como retribuir: Canudos torna-se refúgio dos pobres, aleijados, coxos
e cegos”.86
210

A segunda citação que parece dissociada dos temas preferenciais desta coletâ-
nea é Lucas 19,42: “Ah! Se ao menos neste dia que agora te foi dado, conhecesse
(sic) ainda tu o que te pode trazer a paz; mas por ora tudo isto está encoberto aos
teus olhos”.87 Assim isolado, não pareceria ter maior importância, nem se poderia
sugerir a que estaria referido. Mas se se considera que este versículo reproduz um
lamento de Jesus sobre a Jerusalém incrédula, que terá inspirado frei João Evange-
lista ao ser obrigado a deixar Belo Monte, após sua missão fracassada ao arraial, a
presença dele nesse conjunto começa a fazer sentido.88 De toda forma, será necessá-
rio aguardar a análise do relatório do missionário capuchinho para que seja possível
dar conta do universo conflitivo em que esse versículo bíblico é recolhido e se possa
fazer a pergunta pelo seu sentido.
Percebe-se então, no todo, que as citações bíblicas recolhidas configuram um
quadro coerente que contextualiza a pregação do Conselheiro. O amor de Deus
pela humanidade solicita dela retribuição em dupla direção: amor a Deus e ao
próximo. Esse marco fundamental determina as inserções na realidade presente (o
olhar sobre a sociedade), as motivações do agir e as expectativas do porvir escato-
lógico. Em suas grandes linhas esse perfil pode ser notado também na coletânea de
versículos bíblicos do manuscrito de 1897, que passo a comentar.89
Com efeito, a nova seleção representa uma ampliação da anterior, principal-
mente numa segunda parte, que “não é mais citação de textos bíblicos, mas ostenta
um caráter discursivo apologético”, onde “é sensível a atmosfera de confronto”.90
No entanto a primeira, centrada fundamentalmente na transcrição dos versículos
bíblicos, também se constitui de forma mais ampliada. Todas as citações encontra-
das em “Textos” se fazem presentes na nova coletânea, que, por sua vez, traz novas
passagens. Estas, se não chegam a mudar o quadro acima percebido, reforçam al-
guns aspectos que vale considerar.
Em “Textos” (1895) encontram-se três citações dos evangelhos aproximadas, por
razões que logo comentarei: Mateus 10,32.33; 6,33; 5,44. Em duas delas supõe-se al-
gum tipo de conflito: a necessidade de confessar o Filho do Homem em situações arris-
cadas, e a de amar os inimigos. Na nova coletânea, contudo, inscrevem-se mais três pas-
sagens, que aguçam essa perspectiva. Trata-se de Lucas 10,7; Mateus 6,21; Lucas 6,22.
Mateus 6,21 soa bastante apropriado aos esforços do Conselheiro de mostrar a seus
seguidores as verdadeiras e promissoras opções.91 Já Lucas 6,22 poderia soar como um
conforto à gente conselheirista, mas terá também relevância autobiográfica: estimula o
Conselheiro, consciente de ser perseguido por sua fidelidade a Jesus, a resistir.92
Por outro lado, o aforismo recolhido de Lucas 10,7: “O trabalhador é digno do
seu jornal”93, pode ter dupla repercussão. Primeiramente indicaria um aspecto do olhar
do Conselheiro, sua discordância frente às formas aviltantes de exploração do trabalho
sofridas por grande parte da gente que agora constituía seu séquito, e a nova organiza-
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 211

ção das atividades e tarefas em Belo Monte. Mas podemos articular esse versículo, e o
conjunto de Lucas 10, à trajetória missionária do Peregrino. Com efeito, o trabalhador
a que o texto diretamente alude é aquele que sai anunciando o Evangelho. Se damos
crédito a Euclides, o que o Conselheiro recupera é uma recomendação de Jesus em
Lucas 10, ao ver negada pelo padre de uma vila a licença para pregar na igreja local: “O
peregrino, então, encarou-o fito por algum tempo, e sem dizer palavra tirou de sob a
túnica um lenço. Sacudiu o pó das alpercatas. E partiu. Era o clássico protesto inofen-
sivo e tranquilo dos apóstolos”.94
A presença, nas duas coletâneas que estamos considerando, destes versículos evan-
gélicos que tematizam a missão ambulante, a precariedade de seu exercício, as possíveis
rejeições e perseguições, não terá sido casual. Todos eles provêm, segundo as pesquisas
exegéticas mais recentes, de um evangelho, hoje perdido, que terá servido de base para
a escrita dos evangelhos segundo Mateus e Lucas, chamado, na falta de outro nome,
“Q” (do alemão “quelle”, que significa “fonte”).95 A redação deste hipotético evangelho
poderia ser originária dos chamados “carismáticos itinerantes”, grupos de pessoas que
tinham como programa de ação o texto de Lucas 10,2-12: renúncia à família, à proprie-
dade, à moradia e à riqueza.96 Os textos de Q fundam uma longa tradição, que passa
pelo ascetismo siríaco, por Francisco de Assis e os “espirituais”, e chega ao beatismo am-
bulante do sertão nordestino.97 A recepção deles pelo Conselheiro diz muito a respeito
do que ele pensava sobre si mesmo: a fixação no Belo Monte não lhe tirou a percepção
de que, de toda forma, estava a caminho, era peregrino, imitava o caminhar de Jesus e
seguia seus indicativos nesse sentido.

As igrejas em Belo Monte

O manuscrito de 1895 contém uma prédica, reproduzida também no de


1897, que trata da construção do templo de Jerusalém por ordem de Salomão. Pa-
rece que sua finalidade é estimular a gente conselheirista a se dedicar aos trabalhos
de construção das igrejas em Belo Monte e, talvez, censurar quem não visse razão
no esforço despendido para dar conta dessas obras.98
Mas o manuscrito de 1897 recolhe, logo a seguir, uma prédica específica,
proclamada quando da inauguração da igreja de santo Antonio, possivelmente em
1896.99 Ambas as prédicas ocupam lugar todo particular no sermonário do Con-
selheiro, quando se recorda que boa parte de sua vida como peregrino se deu na
construção e restauração de edifícios religiosos. Aqui nos atemos aos seus dizeres na
medida em que revelam faceta importante da percepção de Belo Monte por parte
de seu líder.
212

Como em prédicas anteriores, a hermenêutica é tipológica: “O Templo de


Salomão é, como o antigo Tabernáculo, uma figura das nossas igrejas”.100 E mais:
muito antes do tempo de Jesus,

Deus deu a Moisés outros preceitos para o povo com relação ao culto divino; e tudo
quanto o Senhor lhe ordenou, Moisés executou ponto por ponto. Construiu Moisés
uma imagem sagrada que é a figura da nossa Igreja. A igreja católica, porém, é obra
de Aquele que diz não ter vindo destruir a lei, mas aperfeiçoá-la.101

Mas cabe destacar outros pontos. A primeira prédica destaca aquele aspecto
para o qual o edifício religioso deveria atrair: a oração. Cita-se, do texto bíblico de
1 Reis 8-9, particularmente o momento da prece de Salomão e a resposta divina:
“Ouvi a tua oração, santifiquei esta casa e meus olhos e meu coração aqui estarão
sempre atentos para todos os que me invocarem”.102 Já a obra concluída é sinal
das maravilhas que Deus faz para louvor de seu filho, cujo nome é sobre todos os
nomes (numa menção a Filipenses 2,9-10). E o tom apologético na prédica sobre o
templo de Salomão se acentua naquela da inauguração. O recebimento das chaves
da igreja é a oportunidade para se fazer um apelo à fidelidade, em que se censura
quem não vê ser

de grande utilidade e agradável aos divinos olhos do nosso Bom Deus a construção
dos templos. À vista destas verdades quem deixará de concorrer para a construção
dos templos? Quem ainda se nutrirá da tibieza e indiferentismo para fim tão útil e
importante, que se bem considerasse a criatura os merecimentos que em vida mes-
mo alcança de Deus, certamente não deixaria de concorrer com suas esmolas e com
os seus braços para construção de tão belas obras.103

O exemplo bíblico a ser evitado é dos “pertinazes judeus”, que “corresponderam


com monstruosa ingratidão aos benefícios do Bom Jesus, e ainda hoje permanecem na
mesma maldade, a ponto de só acreditarem na lei de Moisés”. Não se entende muito a
pertinência desta polêmica antijudaica no sertão, a não ser que ela seja atribuída à longa
tradição desenvolvida no interior da igreja católica e a que o Conselheiro teve acesso.
De toda forma, o judeu aparece nas prédicas como protótipo do infiel, que no tem-
po do Conselheiro tem outros nomes: maçons, protestantes e republicanos, que “não
ligam a menor importância pela sua salvação”. A prédica transcreve (sem identificar a
citação, de João 5,42-47) uma das mais agressivas palavras de Jesus em polêmica com os
judeus, e a transforma em base do ataque aos infiéis atuais, que desviam os ignorantes,
arrastando-os para o inferno, e ainda perseguem a religião do Bom Jesus. O Conselhei-
ro recorre à conhecida afirmação segundo a qual a igreja é o único caminho que leva à
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 213

salvação; contudo atribui ao próprio Jesus essa exclusividade, recorrendo a João 10,9:
“Eu sou a porta e se alguém por mim entrar será salvo”. A Igreja católica deriva de seu
fundador a verdade de que é portadora, e o edifício construído é o espaço adequado
para reunir a “congregação dos fiéis que, por dever inalienável, devem curvar-se reve-
rentemente diante de Deus, rendendo-lhe as devidas orações, invocando seu nome com
amorosa confiança, tendo por certo que Deus lhe seja propício”.104
Esse é apenas um exemplo do que podemos considerar a compreensão conse-
lheirista sobre a igreja católica. Outras páginas o reforçam.105 Mas cabe assinalar que
tais afirmações são feitas por alguém cuja autoridade não tem qualquer legitimidade
institucional e, pelo contrário, é fortemente combatida. De toda forma, o Conselhei-
ro orienta para sua obra os termos com que a igreja católica fundava sua legitimidade.
Eles fundamentam a peculiar existência de Belo Monte, amaldiçoado pelo frade, mas
visitado frequentemente pelo vigário: um lugar onde se busca intensamente a salva-
ção, que se alcança de Jesus, como os patriarcas e profetas anunciaram.106

O Conselheiro e as tradições apocalípti-


cas do sertão
Até aqui as considerações sobre os procedimentos de hermenêutica bíblica
que conformaram os conteúdos presentes nos dois cadernos, de 1895 e 1897, a
que muito poderia ser acrescentado. Mas a tarefa não estaria completa se não abor-
dasse, mesmo que rapidamente, outros testemunhos sobre as palavras do Conse-
lheiro. Não me refiro ao material recolhido por Euclides da Cunha e (em parte)
transcrito em Os sertões; já vimos que essas memórias são muito mais devidas à
gente conselheirista que a seu líder. Mas há outros testemunhos que manifestam
continuidades, mas também descontinuidades, com o conteúdo registrado nos
manuscritos.107
Os sermões recolhidos por José Aras e atribuídos por ele ao Conselheiro prece-
dem, praticamente todos, a fixação definitiva em Belo Monte, em junho de 1893.
Inclusive o percurso trilhado após o embate de Masseté, teria sido dominado por
esperanças e temores apocalípticos. Aguardando o revide que certamente virá, ao
passar pelo Cumbe, rumo ao longínquo norte, tendo exigido o púlpito ao velho
padre Sabino, o Conselheiro assim se teria pronunciado:

Meus irmãos, o anti-Cristo é chegado. Está aqui nesse livro [a Missão abreviada].
O ataque de Maceté (sic) constituiu uma prova para nós. O meu povo é valente. O
satanás trouxe a república, porém em nosso socorro vem o Infante rei D. Sebastião.
214

Virá depois o Bom Jesus separar o joio do trigo, as cabras das ovelhas. E ai daquele
que não se arrepender antes, porque tarde não adiantará. Jejuai que estamos nos fins
dos tempos. Belos Montes será o campo de Jesus, a face de Jeová. Os republicanos
não devem ser poupados pois são todos do anti-Cristo. De hoje em diante será
“dente por dente e olho por olho”.108

É indubitável o tom apocalíptico revelado nessas palavras, que mencionam


a ação de Satanás e do anticristo, o anúncio do fim dos tempos, a colheita como
imagem bíblica do juízo final: Belo Monte será o palco da batalha final. Duas
parábolas feitas alegorias já nos evangelhos para ilustrarem a seleção que ocorrerá
no último julgamento (veja Mateus 13,24-30.36-43; 25,31-46) são citadas: o Bom
Jesus separará o joio do trigo, as cabras das ovelhas.109 Como compreender que o
Conselheiro assim pensasse sobre o que estaria para acontecer, alguns dias antes de
se estabelecer às margens do Vaza-barris, e que idéias desse teor estejam completa-
mente ausentes dos cadernos manuscritos que comentamos? E mais: não apenas os
cadernos não contêm expressões que apontem para uma escatologia de cunho apo-
calíptico, mas parecem contradizê-la, apontando para uma concepção tradicional,
de matriz tridentina, ao menos nos termos.
A meu ver, a questão deve ser equacionada no bojo da trajetória histórica de
Maciel. Sua vida de peregrino, as agressões sofridas da parte das autoridades, civis
e eclesiásticas, a implantação da República e ultimamente o ataque em Masseté
terão propiciado os elementos que permitiram que esse percurso fosse entendido
em chave apocalíptica: as ações e investidas dos inimigos do bom Jesus só pode-
riam ser compreendidas se inseridas num cenário que prenuncia o fim dos tem-
pos, a vitória de Jesus e a derrocada de seus adversários. Isso fica claro nos dizeres
que Aras atribui ao Conselheiro: Masseté não é tanto um combate como uma
prova. Nesse sentido, a instalação em Belo Monte poderia ter sido entendida pelo
Conselheiro (e não tanto por seu séquito, segundo o próprio Aras) como parte
decisiva dos preparativos para o combate final.
Mas o panorama aparente e provisoriamente mudou, e a permanência de
Belo Monte se prolongou, exigindo do Conselheiro novas perspectivas interpre-
tativas: o que significava a vida naqueles recantos? E trajetória do arraial? O pa-
radigma apocalíptico não dava conta das novas circunstâncias, da nova realidade
em que a preparação para a salvação eterna era viável e acompanhada de uma
convivência em que os ideais evangélicos de solidariedade entre a gente pobre
e miserável do sertão de alguma forma se efetivavam. A continuidade entre o
momento anterior e o atual se dá, contudo, na consideração do Conselheiro a
respeito dos opositores, seus e da obra que está liderando. Em outras palavras, o
referencial apocalíptico terá permitido ao Conselheiro investir contra a Repúbli-
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 215

ca e seus promotores com palavras agressivas, como haverá de reconhecer mais


tarde em texto que ainda terei de comentar, que expressam o combate em que se
vê envolvido.
E este novo paradigma terá marcado a trajetória do Conselheiro até seus
últimos dias. O depoimento do sertanejo Agostinho, que tanto impressionou
Euclides, se insere bem nesse quadro. Aprisionado e interrogado em meados
de agosto de 1897, quando a guerra começava a se encaminhar para o fim, o
“jagunço adolescente”, para espanto dos presentes, assegurou que o Conselheiro
garantia aos combatentes mortos em combate “salvar a alma”.110 A guerra não
terá suscitado ao Conselheiro, ao contrário do que ocorreria a parte importante
de seu séquito, esperanças ou temores quanto a um eventual fim do mundo. Ele
mantém, no que terá sido seu último escrito, a perspectiva da salvação, a razão
de ser da existência do arraial:

Sim, o desejo que tenho da vossa salvação (que fala mais alto quanto eu pudesse
aqui deduzir) me forçou a proceder daquela maneira [...] aceitai a minha despedida,
que bem demonstra as gratas recordações que levo de vós, que jamais se apagarão
da lembrança deste peregrino, que aspira ansiosamente a vossa salvação e o bem da
Igreja.111

Por esta salvação o Conselheiro apostou no Belo Monte até a morte, e pela
sua defesa prometeu a salvação a quem morresse em luta. Nesse sentido, é sinto-
mático que um único versículo extraído do livro do Apocalipse apareça no ma-
nuscrito de 1897 (e não no de 1895, o que deixa as coisas ainda mais sugestivas):
“Bem-aventurados são os que morrem no Senhor” (Ap 14,13).112 Ele aparece
após aqueles que falam da hostilidade e da perseguição a quem se mantém fiel à
religião. É tentador pensar que o Conselheiro tenha conscientemente recolhido
uma passagem situada logo após a apresentação que o Apocalipse faz da ação da
Besta-fera e das pessoas marcadas pelo Cordeiro, entre as quais devem ser bus-
cadas aquelas que “morrem no Senhor”. Tanto num caso como noutro temos a
mesma retórica da fidelidade, da recusa da ordem estabelecida. Assim, mais que
alimentar expectativas de fim dos tempos (e muito menos de milênio), a passa-
gem do Apocalipse evidencia o perfil dramático do futuro que o Conselheiro
divisa para si e os seus. Sustenta o Belo Monte no momento em que ele está
prestes a ruir. Fundamenta biblicamente a morte em vias de ocorrer (e que já está
acontecendo, pois estamos em cenário de guerra). Fortalece a luta, pois garante a
salvação: reitera a presença do Senhor dentro do arraial. Sua eventual proclama-
ção não terá tido pouca importância na aguerrida resistência, inexplicável para
Euclides e tantos outros.
216

3. A IGREJA, SUA BÍBLIA E BELO MONTE


Até agora considerei os sujeitos que fizeram Belo Monte existir; cabe então
passar àquelas forças que se empenharam decisivamente por sua destruição. Entre
elas cabe lugar particular à igreja católica, por meio da ação da arquidiocese da
cidade da Bahia. Certamente é impossível falar da igreja em conjunto, mesmo
dos membros de sua hierarquia na capital e espalhados pelo interior do Estado. As
posições variaram imensamente entre os padres, por exemplo, a ponto de se poder
falar de adeptos, entre o clero, do movimento liderado pelo Conselheiro. Mesmo
após o episódio de Masseté houve padres simpáticos à causa do Conselheiro, como
já foi indicado.113
Mas importam aqui as posições oficiais, que tiveram papel decisivo na destrui-
ção de Belo Monte. Daí me concentrar na análise de um documento específico, o
tantas vezes citado Relatório atribuído ao frei João Evangelista de Monte Marciano.
Como esse documento, um dos mais importantes de que dispomos a respeito do
arraial conselheirista antes da guerra114, se refere à missão que o frei capuchinho
aí pregou, recupero rapidamente as circunstâncias que levaram à realização desse
empreendimento. A seguir passo ao esforço de apreender como a Bíblia se insere no
projeto de, primeiramente, dissolver o arraial e, na impossibilidade disto, pedir-lhe
a destruição. Se até agora recorri a este documento como uma das mais impor-
tantes testemunhas da vida no arraial de Antonio Conselheiro, agora o considero
como texto e discurso, tratando de evidenciar sua articulação interna e intencio-
nalidade.115

A missão e o relatório

Apenas para recordar as circunstâncias da redação do Relatório, deixemos o


próprio frei João apresentar a sua missão de número148:

missão especial no povoado dos Canudos, capela filial da freguesia do Cumbe, pre-
gada juntamente ao Frei Caetano de S. Leo, principiou no dia 13 de maio [segue-se
um trecho riscado] e por justos motivos suspendi a dita missão no dia 21 do mesmo
mês, como declarei em meu relatório publicado na folha, Correio de Notícias de 27
de junho de 1895 e pois reproduzido em todas as folhas do Brasil, desmascarando
completamente o célebre fanático Antonio Conselheiro que tanto mal tem feito à
Religião e ao Estado, leiam o dito relatório: assim mesmo fizeram-se 55 casamentos,
Batizados 102, confissões 400, e dispersou-se [sic] muitos conselheiristas”.116
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 217

Como já assinalei, a missão foi realizada a partir de um acerto entre o arcebis-


po baiano e o governador do Estado. O relatório foi publicado cerca de um mês
após o seu término, provavelmente com a colaboração decisiva do Mons. Basílio
Pereira no tocante à redação.117 O que torna ainda mais necessária a questão que
aqui importa, já que os elementos básicos da construção do relatório, no intuito
de atingir os fins a que se propunha, terão sido cuidadosamente pensados. Com
efeito, a argumentação é construída de forma a apresentar um panorama bastante
amplo da vivência, em geral e no especificamente religioso, que se dava em Belo
Monte, e como esta se chocava ao mesmo tempo com as pretensões eclesiásticas
e os objetivos do Estado. Embora expresse percepções de quem viu e ouviu, o
documento é “inexato quanto ao espírito de que era animado. Nota-se o influxo
determinante da mentalidade criada pela opinião pública, mormente na Bahia”.118
E não é difícil suspeitar, das entrelinhas do documento, que aquilo que cha-
maríamos o fracasso da missão não aparece no Relatório como um infortúnio
inesperado.119 Um incidente é feito pretexto para o encerramento das atividades
do missionário, que se vê tendo cumprido o dever e assim se exprime: “A minha
missão terminara: a seita havia levado o maior golpe que eu podia descarregar-lhe,
e conservar-me por mais tempo no meio daquela gente ou sair-lhes ainda ao en-
contro seria rematada imprudência sem a mínima utilidade”.120 A tarefa tinha sido
realizada a contento. E Antonio Conselheiro tinha, então, razão, ao se pronunciar
sobre a missão interrompida: “Tudo isso é para poder haver a guerra”!121
A publicação do relatório foi financiada pelo governo baiano: só para a cú-
ria arquidiocesana serão enviados mil e duzentos exemplares.122 Outras centenas
foram encontradas na área de influência do grande latifundiário da região, o já
citado o barão de Jeremoabo, inclusive no escritório de uma de suas fazendas, em
Itapicuru.123 Vejamos as linhas principais de sua argumentação; depois será preciso
pensar nas repercussões dele.

Argumentos revisados

Deve-se notar que o frei espera – ou parece pretender – alcançar com sua
palavra o acordo do Conselheiro. A argumentação começa recorrendo à pertença
histórica do beato de Belo Monte: “Senhor, repliquei eu, se é católico...”124 Pode-se
dizer, no intuito de resumir, que a argumentação expressa no Relatório se desenvol-
ve em duas vertentes. A primeira não é nova, o Conselheiro já tinha sido atingido
anteriormente por ela: diz respeito ao lugar de leigo por este ocupado e sua con-
sequente falta de autoridade para liderar uma comunidade religiosa à margem e à
218

revelia do clero. A segunda diz respeito à desobediência do Conselheiro ao novo


regime político estabelecido no país. Em ambos os casos será a apropriação de tex-
tos do Novo Testamento, principalmente as cartas do apóstolo Paulo, que fundará,
explicitamente ou não, os argumentos. Consideremos cada uma das vertentes.
Quanto à primeira linha de raciocínio, as palavras são claras quanto a Antonio
Conselheiro:

inculcando zelo religioso, disciplina e ortodoxia católica, [ele] não tem nada disso;
pois contesta o ensino, transgride as leis e desconhece as autoridades eclesiásticas,
sempre que de algum modo lhe contrariam as ideias, ou os caprichos; e arrastando
por esse caminho os seus infelizes sequazes, consente ainda que eles lhe prestem ho-
menagem que importam um culto, e propalem em seu nome doutrinas subversivas
da ordem, da moral e da fé.

E, mais adiante:

Quanto a deveres e práticas religiosas, Antonio Conselheiro não se arroga nenhuma


função sacerdotal, mas também não dá jamais o exemplo de aproximar-se dos
sacramentos, fazendo crer com isto que não carece deles, nem do ministério dos
padres; e as cerimônias do culto a que preside, e que se repetem mais amiúde entre
os seus, são mescladas de sinais de superstição e idolatria, como é, por exemplo, o
chamado Beija das imagens [...] a gente foi se reunindo [...] e com uma algazarra
infernal, dirigiram-se para a capela, erguendo vivas ao Bom Jesus, ao Divino Espí-
rito Santo e a Antonio Conselheiro, e de lá vieram a nossa casa [...] gritando que não
precisavam de padres para se salvar, porque tinham o seu Conselheiro.125

O problema é claro, e se desdobra em dois: a insubmissão do Conselheiro e de


sua gente às autoridades eclesiásticas, e a autonomia requerida por ele para suas ati-
vidades religiosas, tidas como idolátricas. À denúncia de que Antonio Conselheiro
desconhece o ministério dos padres não cabe a atenuante de que ele não usurpa
funções estritamente sacerdotais: como poderia prescindir desse ministério único
na economia da salvação? E como os belomontenses poderiam dispensar os padres
e substituí-los pelo seu Conselheiro?
Outro aspecto do texto reforça o que estou acentuando. O missionário não
vê os sacramentos católicos naquilo que podem significar para seus receptores,
mas como bens acessíveis apenas pela ação dos sacerdotes, materializações do seu
poder sagrado. A sua abordagem se situa na perspectiva da instituição eclesiástica
e da submissão que esta requer de seus fiéis, pela via dos laços de dependência em
relação ao clero. Conselheiro e seu grupo carecem dos meios indispensáveis para a
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 219

salvação, e se os têm à disposição, não os avaliam adequadamente, substituem-nos,


ou ao menos os preterem, em favor das irreverências e intimidades com os santos.
O beija das imagens ao mesmo tempo rompe e desafia o monopólio do sagrado
pelos padres. É pelo descarte dos sacramentos e pela autonomia que respiravam os
beijas das imagens que o frade capuchinho os desdenha e desqualifica os devotos:
os termos “superstição” e “idolatria” são suficientes para estigmatizar esta proximi-
dade com o sagrado que podia alcançar o terreno da lascívia.126
No entanto, se o missionário capuchinho se fixasse nessa argumentação, que
de alguma forma reapresenta postulados de pronunciamentos eclesiásticos anterio-
res, não teria dado conta da tarefa a ele confiada. A nova situação, em que oficial-
mente Igreja e Estado se veem separados, exige outro campo de argumentação. É
o que se verá a seguir.

Novos argumentos para um tempo novo

A questão a ser tratada a seguir é, de longe, a mais importante nos propósitos


visados na redação do Relatório, embora talvez não fosse a preocupação maior do
próprio missionário. Ela é colocada já no início da conversa com o Conselheiro,
e é principalmente sobre ela que o redator se detém nas considerações finais do
documento.
Este é o ponto com o qual frei João diz ter começado seu debate com Antonio
Maciel:

Senhor, repliquei eu, se é católico, deve considerar que a igreja condena as revoltas,
e, aceitando todas as formas de governo, ensina que os poderes constituídos regem
os povos, em nome de Deus [...] Somente vós não vos quereis sujeitar [ao governo
atual]? É mau pensar esse, é uma doutrina errada a vossa.127

Reconheça-se em Euclides da Cunha a observação certeira, dando conta das


origens bíblicas do que frei João afirmava ser o ensinamento da Igreja católica: o
missionário estaria “parafraseando a Prima Petri”. Logo adiante o escritor reconhe-
ce os vestígios de outra passagem do Novo Testamento: “Era quase, sem variantes, a
frase de S. Paulo, em pleno reinado de Nero...”128 Os textos a que Euclides faz men-
ção, indubitavelmente, são Romanos 13,1ss e 1 Pedro 2,13ss. Vejamos o primeiro:

Todo o homem esteja sujeito às potestades superiores; porque não há potestade que
não venha de Deus; e as que há, essas foram por Deus ordenadas. Aquele pois que
220

resiste à potestade resiste à ordenação de Deus; e os que lhe resistem, a si mesmos


trazem a condenação; porque os príncipes não são para temer quando se faz o que é
bom, mas quando se faz o que é mau. Queres tu pois não temer a potestade? Obra
bem, e terás louvor dela mesma; porque o príncipe é ministro de Deus para bem
teu. Mas se obrares mal, teme; porque não é debalde que ele traz a espada; por-
quanto ele é ministro de Deus, vingador em ira contra aquele que obra mal. É logo
necessário que lhe estejais sujeitos, não somente pelo temor do castigo, mas também
por obrigação de consciência. Porque por esta causa pagais também tributos; pois
são ministros de Deus, servindo-o nisto mesmo. Pagai pois a todos o que lhes é
devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem temor, temor; a
quem honra, honra (Romanos 13,1-7).

O texto parece não dar margem a dúvidas; vejamos agora o texto que leva o
nome do líder dos doze apóstolos:

Submetei-vos pois a toda humana criatura, por amor de Deus, quer seja ao rei,
como a soberano, quer aos governadores, como enviados por ele para tomar vin-
gança dos malfeitores e para louvor dos bons; porque assim é a vontade de Deus,
que, obrando bem, façais emudecer a ignorância dos homens imprudentes; como
livres, e não tendo a liberdade como véu para encobrir a malicia, mas como servos
de Deus. Honrai a todos, amai a irmandade, temei a Deus, respeitai ao rei (1 Pedro
2,13-17).

O teor geral de ambos os textos parece constituir-se a partir de um eixo básico:


a submissão incondicional aos poderes estabelecidos. Ao menos assim eles foram
lidos por séculos, fornecendo um extenso lastro histórico para as afirmações de frei
João. Por ora, mencione-se apenas que as relações entre a instituição eclesiástica
e os poderes políticos, entendidas a partir desses textos e de sua história no tem-
po, explica a postura generalizada de colaboração dos agentes hierárquicos com o
poder monárquico, português e depois brasileiro, de que o recurso às missões reli-
giosas com o intuito de apaziguar situações de revolta ou protesto popular é bom
exemplo.129 Não era novidade, portanto, que uma missão religiosa pretendesse
alcançar objetivos previamente definidos pelas autoridades políticas, o que frei João
faz questão de deixar claro: “a igreja católica não é nem será nunca solidária com
instrumentos de paixões e interesses particulares ou com perturbadores da ordem
pública”.130
Mas é necessário notar que o Relatório não apenas retoma uma tradição e a
aplica aleatoriamente. Pelo contrário, quando afirma que todo poder constituído
vem de Deus, pretendendo com isso expressar o pensamento doutrinal da igreja
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 221

católica, sua postura é explicitamente oportunista, não adotada em outras situações.


Pois agora o poder em questão era o da República! E o frei mente quando diz
que “nós mesmos, a principiar dos bispos até o último católico, reconhecemos o
governo atual”!131 Essa ousada construção argumentativa é a razão maior de ser do
Relatório, e foi o que o tornou peça-chave nas articulações que haveriam de condu-
zir à eclosão da guerra. Se isso ainda é possível, outras passagens deixam mais claros
esses propósitos:

A seita político-religiosa, estabelecida e entrincheirada nos Canudos, não é só um


foco de superstição e fanatismo e um pequeno cisma na igreja baiana; é, principal-
mente, um núcleo, na aparência desprezível, mas um tanto perigoso e funesto de
ousada resistência e hostilidade ao governo constituído no país. Encarados o arrojo
das pretensões e a soberania dos fatos, pode-se dizer que é aquilo um estado no Es-
tado: ali não são aceitas as leis, não são reconhecidas as autoridades, não é admitido
à circulação o próprio dinheiro da República.

Note-se que a insistência é mais no “núcleo de resistência” que no “foco de


superstição” e no “cisma”. O perito em assuntos religiosos não deixa, em nenhum
momento, de mostrar que está em jogo não apenas a religião, mas o bem-estar do
país: “aquela situação deplorável de fanatismo e anarquia deve cessar para honra
do povo brasileiro para o qual é triste e humilhante que, ainda na mais inculta da
nesga pátria, o sentimento religioso desça a tais aberrações e o partidarismo político
desvaire em tão estulta e baixa reação.132
Mas se pode muito bem imaginar que, debaixo de tamanha preocupação com
a ordem pública, fale o experimentado missionário, atento às coisas da religião e da
igreja que representa. Quando o Relatório se tornou público, assim se expressou o
deputado Érico Coelho: “se os nobres deputados lerem esse relatório do frade fica-
rão pasmos das expressões amorosas que ele prodigaliza à República, armando ao
efeito; pois, a pretexto de defender a ordem pública e as instituições republicanas,
a intenção do clero foi mover a guerra religiosa [...]”.133 O deputado vê finalidades
religiosas no tom marcadamente político do Relatório. Mas para consegui-las é
necessário carregar na linguagem, e assim mover os brios dos governantes. Então
importará menos a seita que o estado, mais o núcleo revoltoso que o cisma eclesiás-
tico, tendo em vista os interesses do alvo que efetivamente o documento pretende
sensibilizar.
O “lamento” sobre Belo Monte, sentenciando seu destino, similar ao da Jerusa-
lém bíblica, deixará claro que as palavras do deputado foram certeiras. O “fracasso”
da missão mostrará a fraqueza do poder religioso para domar os inflexíveis conselhei-
ristas, mas apresentará ao Estado uma cidadela subversiva que precisa ser debelada.
222

Maldição sobre a Jerusalém do sertão


O gesto que frei João diz ter praticado ao ouvir da gente conselheirista que não
carecia de padres para se salvar é um coerente epílogo à missão e a seus efetivos pro-
pósitos. O prelado se entende como o próprio apóstolo enviado, ovelha em meio a
lobos (Lucas 10,3), e agressivamente rejeitado. As palavras da gente do arraial soam
afronta, e merecem reação à altura, manifestada à primeira oportunidade:

Mostrei que tinha sido aquilo um desacato sacrílego à religião e ao sagrado caráter
sacerdotal, e que, portanto, punha termos à santa missão, e, como outrora os após-
tolos às portas das cidades que os repeliam, eu sacudia ali mesmo o pó das sandálias,
e retirava-me, anunciando-lhes que se a tempo não abrissem os olhos à luz da ver-
dade, sentiriam um dia o peso esmagador da Justiça Divina, à qual não escapam os
que insultam os enviados do Senhor e desprezam os meios de salvação.134

Poder-se-ia pensar se a força a que frei João faz referência se abateria sobre a
gente belomontense no contexto do juízo divino a que cada um é submetido após
a morte, nos dizeres da catequese católica convencional. Mas outras indicações
apontam para uma ação divina mais imediata: a repressão, pedida com o eufemis-
mo “providência”135, é vingança à rejeição de que os enviados de Deus são vítimas.
Que não há mais o que fazer fica evidente pela repetição do gesto sugerido por
Jesus aos discípulos, quando não forem aceitos num determinado lugar: “saindo
pelas praças, dizei: vede que até o pó que se nos pegou da vossa cidade sacudimos
contra vós” (Lucas 10,10-11). Frei João recorre à mesma passagem que vimos o
Conselheiro atualizar, quando proibido pelo padre de uma vila de dirigir a palavra
ao povo. Lá o protesto foi inofensivo, reconhece Euclides; aqui deu a senha para a
guerra.
Mas não é só. A saída abrupta da vila permitiu selar a ruptura definitiva:

Galgando a estrada, ao olhar pela última vez o povoado, condoído da sua triste
situação, como o Divino Mestre diante de Jerusalém, eu senti um aperto n’alma e
pareceu-me poder também dizer-lhe:

Desconheceste os emissários da verdade e da paz, repeliste a visita da salvação:


mas aí vêm tempos em que forças irresistíveis te sitiarão, braço poderoso te derru-
bará, e arrasando as tuas trincheiras, desarmando os teus esbirros, dissolverá a seita
impostora que reduziu a seu jugo, odioso e aviltante.136
Mais uma vez o arraial do Conselheiro é associado com a cidade santa da
Bíblia. Mas não aquela do Apocalipse, atualizada, muito menos a que viu gente
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 223

trabalhando freneticamente para edificar o templo do Senhor. A cidade sagrada é


invocada naquilo que tem de pior, a incapacidade de acolher os enviados de Deus;
por isso merece do filho de Deus palavras as mais desabonadoras:

Ah! se ao menos neste dia, que agora te foi dado, conhecesses ainda tu o que te
pode trazer a paz! Mas por ora tudo isto está encoberto aos teus olhos. Porque virá
um tempo funesto para ti, no qual os teus inimigos te cercarão de trincheiras, e te
sitiarão, e te porão em aperto de todas as partes, e te derribarão por terra a ti e a teus
filhos que estavam dentro de ti, e não deixarão em ti pedra sobre pedra; porquanto
não conheceste o tempo da tua visitação (Lucas 19,42-44).

As missões encomendadas pelo governo, no tempo do império e agora, ti-


nham como finalidade a realização da paz137, a que ambos os textos aludem. No
entanto neles a destruição que sobrevirá é resultado da cegueira daqueles que
não acolheram os anunciadores dela. A guerra, mais uma vez, se inscreve num
processo histórico transcendental, e a responsabilidade dela é dos que serão suas
vítimas. Nos dizeres de texto já citado, ou a conversão (bem entendida!), ou as
armas.

Resultados

Pode-se ver, portanto, um claro processo na avaliação que as autoridades ecle-


siásticas baianas fizeram do Conselheiro. De herege nos primeiros tempos, por não
reconhecer adequadamente a autoridade dos padres, o Conselheiro, sem deixar de
ser o que era antes, se converte num perigoso subversivo, desobediente ao preceito
bíblico da submissão aos poderes constituídos. No contexto do Império, sendo
o catolicismo religião oficial, a caracterização de alguém como herege implicaria
sanções advindas do poder civil, o que chegou a ocorrer em algum momento da
vida de Antonio Maciel.138 Mudado o regime, era necessário à sé episcopal baiana
mostrar ao Estado que, além de herege, perturbador da ordem religiosa, o Conse-
lheiro era um perigoso ameaçador da ordem social e política.
Na denúncia eclesiástica, o incidente de Masseté fora apenas uma pequena
mostra do furor do Conselheiro contra a república nascente: “A Igreja sentia ne-
cessidade de eliminar o quisto de Canudos. Separada do Estado só encontrava
um meio de agir: propalar o caráter político do movimento que se processava em
Canudos”.139 Após a missão de frei João Evangelista e o Relatório, o perfil do Con-
selheiro será desenhado com cores reforçadas: ele
224

já não é mais um monomaníaco religioso, um espírito desequilibrado em consequ-


ência das causas hereditárias ou momentâneas, é um Cartouche feroz, ou quando
menos um assalariado da monarquia, chefiando milhares de bandidos e assassinos
que vêm devastando do interior para a costa.140

Euclides, ao fechar a segunda parte de Os sertões com o relato da missão e das


“nulíssimas considerações políticas” feitas por frei João, “insciente da significação
real da desordem sertaneja”, dá conta da relevância daqueles eventos de meados
de maio de 1895.141 E o relatório, escrito não com o empenho “de descobrir a
verdade, mas sim de confirmar as versões que corriam”142, externa à perfeição
os propósitos da missão de maio de 1895: “era necessário que o governo agisse
rapidamente, tomando as medidas necessárias para acabar com aquela horda de
malfeitores que tratava as autoridades com maior arrogância e punha em perigo
a paz dos sertões [...] O relatório de Frei João Evangelista é eminentemente po-
lítico”.143
Assim, a retomada dos argumentos tradicionais, aliada ao recurso a Roma-
nos 13, devidamente interpretado como passagem a exigir a submissão incondi-
cional ao poder estabelecido, cumprirá o fim de ser a última palavra da mais alta
hierarquia eclesiástica baiana em relação ao movimento liderado pelo Conselhei-
ro. Ela não apenas não “lava as mãos”, para utilizar outra metáfora bíblica, como
interferirá insistentemente para que a guerra seja feita e o arraial disperso.144 Se
ainda em 1896 era possível reclamar que o Relatório não tinha surtido efeito
junto ao governo baiano145, não demoraria muito a fazê-lo. E a Bíblia serviu para
justificar essa postura, interesseira e oportunista, já percebida em seu tempo:

[A partir de Masseté] o campeão religioso e libertador do povo, que a República


tentava escravizar de novo, viu-se outra vez cercado unicamente de seus adeptos.
Os párocos foram acusados, todavia, de terem estimulado Maciel para pregar
contra a República [...] O modo de esquecer esta cumplicidade era voltar ao novo
sistema: “Acusar Maciel como subversivo contra a religião, a ordem pública e o
novo regime”.146

Encontrar exatamente estes temas dois anos depois, no contexto do arraial de


Belo Monte, no âmbito de uma missão, não é mera coincidência. E que as palavras
do frei são, efetivamente, a última palavra da igreja baiana a respeito de Belo Monte
e Antonio Conselheiro, confirma-se pelo que disse o semanário arquidiocesano,
em nota relativa à publicação do Relatório:

É de esperar que o Governo do Estado dê algumas providências para fazer desapa-


INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 225

recer de este Estado a suprema vergonha de estar um fanático levantando barreiras


à ação da lei e se constituindo em potência independente de toda hierarquia social
[...] Enfim, a autoridade eclesiástica já cumpriu o seu dever, procurando remediar o
mal no que dependia de si. Resta agora que o Governo civil cumpra o seu, fazendo
desaparecer, pelos meios que lhe faculta a lei, este opróbrio social, verdadeira man-
cha negra no sol de nossa civilização.147

O próprio frei, reagindo ao monarquista católico Carlos de Laet, que lhe cen-
sura os termos do Relatório e o fato de se ter transformado em “um propagandista
político” da República, antecipa o que a guerra produzirá: “Nem há de causar
surpresa a nova de um fim desastroso” de Belo Monte.148
E nem mesmo o massacre efetivado impediu que, anos depois, o episcopado
brasileiro julgasse louvável a contribuição dada visando apaziguar os rebelados do
arraial conselheirista:

Quando Antônio Conselheiro, à frente de mais de mil companheiros, entre os


quais alguns criminosos, conseguiu manter em Canudos deplorável situação de
fanatismo e revolta contra o regime republicano, dois religiosos [...] foram, por
ordem do Arcebispado da Bahia, àquele infeliz povoado, onde as leis não eram
aceitas nem as autoridades reconhecidas, e nem admitido o dinheiro republica-
no, para, pela pregação evangélica, chamarem aos deveres de católicos e cidadãos
aqueles perigosos díscolos que, ofendendo a religião, perturbavam a ordem pú-
blica.149

O final da segunda parte de Os sertões é cortante: “Mas [o frei] amaldiçoou...”150

4. EUCLIDES, LEITOR DA BÍBLIA

Para nos darmos conta de como matrizes bíblicas interferiram no processo


euclidiano de interpretação de Belo Monte e seu líder, não cabe dirigir-se direta-
mente à obra-prima de Euclides da Cunha. Uma abordagem diacrônica se impõe,
pois Os sertões não é o seu único escrito a respeito do assunto; antes, é o último. E
uma comparação rápida entre os textos de 1897 (artigos e reportagens) e páginas
capitais do livro publicado em 1902 mostra oscilações em pontos essenciais, mais
quanto a Belo Monte e a sua gente do que quanto ao Conselheiro. Assim, nossa
apresentação se dará em torno desses dois momentos: os textos surgidos “no calor
da hora”, com a guerra em curso, e a escrita de Os sertões.
226

A cidade fulminada e a legião de demô-


nios

Um aspecto que marca a aproximação de Euclides à temática de Belo Monte e


suas manifestações a respeito é o veículo jornalístico. Com efeito, é para o jornal O
Estado de São Paulo que ele vem escrevendo com alguma regularidade já há quase
dez anos. No contexto da guerra contra Belo Monte publicará dois artigos sobre o
assunto e como correspondente do jornal seguirá rumo ao sertão baiano, enviando
de lá suas impressões. Este aspecto não é secundário, já que, como visto, a imprensa
escrita exerceu papel fundamental no estabelecimento da necessidade imperiosa de
que Belo Monte desaparecesse. Euclides não fugirá à regra.
Neste contexto, é óbvio que não cabe qualquer palavra sobre atrocidades,
matanças, crueldades perpetradas pelos militares. Os textos de Euclides cabem
adequadamente no modelo geral das reportagens: atenção aos feitos elogiosos do
exército, nenhuma palavra sobre suas barbaridades, como a degola sistemática de
belomontenses nos últimos dias da guerra, justamente quando o escritor Euclides
finalmente ali chegou.151 Principalmente nas primeiras páginas o objetivo parece
ser o de defender o exército e louvar sua bravura e denodo: daí que fale dos milagres
do exército nacional, movido pela fé republicana.152 Mas cá e lá algumas dúvidas,
se não o farão abdicar das convicções fundamentais, sobre a República e sobre o ar-
raial a ser destruído, irão modificando, mesmo que de forma titubeante, seu ponto
de vista face a alguns aspectos da realidade dramática à sua volta. Nesta trajetória
particular alguns problemas me interessam de perto.
Quando Euclides ruma para a Bahia, para cobrir os dias finais da guerra
contra o Belo Monte, trazia na bagagem os artigos já citados, ambos com o
título “A nossa Vendeia”. Neles de alguma forma sintetizava um sentimento
generalizado sobre o que ocorria nos sertões da Bahia. O primeiro deles, saído
a 14 de março de 1897, dias após o assombroso fracasso da expedição Moreira
César, se detém principalmente numa apresentação topográfica do sertão seco
e hostil. Este explica a “inconstância e toda a rudeza”153 da gente que ali vive,
sensível ao fanatismo religioso do tipo manifesto na Vendeia. O segundo, sur-
gido a 17 de julho, no contexto de uma crescente insatisfação da opinião pú-
blica por conta da vitória que tardava, tenta explicar as dificuldades do heroico
exército brasileiro, mais uma vez recorrendo à geografia. Mas adiciona um
dado: a dificultar as ações está a bravura do jagunço, “tradução justalinear quase
do iluminado da Idade Média. O mesmo desprendimento pela vida e a mesma
indiferença pela morte dão-lhe o mesmo heroísmo mórbido e inconsciente de
hipnotizado e impulsivo”.154
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 227

Neste momento, a confiança que Euclides deposita no novo regime parece ir-
restrita. Belo Monte é fruto de “propagandistas do império” sobre a gente ignoran-
te e ingênua do sertão, facilmente suscetível ao fanatismo. Ele não tem dúvidas: “a
República sairá triunfante desta última prova”.155 Mas, ao comparar o Belo Monte
com a Vendeia, Euclides não se refere apenas à polarização império x república.
Como se sabe, a resistência da gente da Vendeia à Revolução Francesa tinha moti-
vações religiosas. O “chouan fervorosamente crente” da França se alinha ao “taba-
réu fanático” do sertão: ambos exercitam “o mesmo heroísmo mórbido difundido
numa agitação desordenada e impulsiva de hipnotizados”.156 O vago e depreciativo
fanatismo é o caminho para Euclides abordar o universo religioso dos combatentes
de Belo Monte, do qual não se afastará até Os sertões. Com isso são identificados os
verdadeiros inimigos:

o que se está destruindo neste momento não é o arraial sinistro de Canudos: – é


nossa apatia enervante, a nossa indiferença mórbida pelo futuro, a nossa religiosida-
de indefinível difundida em superstições estranhas, a nossa compreensão estreita da
pátria, mal esboçada na inconsistência de uma população espalhada em país vasto
e mal conhecido; são os restos de uma sociedade velha de retardatários tendo como
capital a cidade de taipa dos jagunços...157

Note-se, ao prosseguirmos com Euclides rumo a Belo Monte, que, à sua visão
dualista da sociedade dividida em progresso e atraso, futuro e passado, avanço e
retardamento, república e monarquia, outro binômio se junta, de novo feito de um
elemento aceitável e outro repugnante, agora no campo religioso: o que em Os ser-
tões será chamado “o belo ideal cristão”158, e o outro, desde já nomeado superstição,
fanatismo, de que o Belo Monte será apresentado como exemplo mais consistente.
Até aqui Euclides desconhece a realidade da guerra, tem com ela alguns poucos
contatos, dela ainda se avizinha, mas já sabe que deuses e demônios também estão
nela atuando, aqueles de um lado e estes, obviamente, a combatê-los. Falta apenas
certificar-se da confirmação do quadro. Tal constatação não é secundária; justifica,
autoriza e incentiva a empreitada bélica.
Ao chegar finalmente e divisar o arraial159, em meados de setembro, Euclides
não consegue conter o espanto, a começar, como de costume, com a topografia.
A seguir descreve o vilarejo, caótico mas admirável, que, apesar dos bombardeios,
permanece praticamente intacto. A reportagem é impactante, ao expressar a sur-
presa provocada pelo ainda que tardio encontro com a cidadela de que tanto já
falara e ouvira falar, capaz de provocar pânico em todo o país.
No entanto, a oportunidade não leva a revisão de posições. Pelo contrário: a
segunda metade da correspondência se encarregará de esboçar explicações, agora
228

com dados colhidos in loco, para as dificuldades encontradas pelo exército no cum-
primento de sua missão, especialmente no tocante ao combate de 18 de julho, um
dos mais sangrentos da guerra.160
Neste quadro surgem as duas referências mais expressivas de tal conjunto de
reportagens. Nelas o olhar do repórter-hermeneuta se revela poderosamente. Pri-
meiramente a mirada sobre a cidadela aparentemente vazia, intensamente bombar-
deada, unanimemente execrada, mas ainda de pé. Ruínas muitas, que não impe-
dem divisar um portentoso empreendimento. Contudo, e por conta disso, já que
se olha “para a aldeia enorme e não se lobriga um único habitante”, pensa-se em
“uma cidade bíblica fulminada pela maldição tremenda dos profetas”.161
Parece que, por um momento, Euclides perdeu de vista as inquietações que
começaram a atormentá-lo quando do seu contato com a gente sertaneja barbari-
zada. Por um momento a contemplação atenta do jornalista deixa os detalhes topo-
gráficos e viaja a Israel, ao mundo bíblico, ao encontro de profetas vaticinadores do
terror e da destruição. E ele os encontra abundantemente. Várias cidades têm seu
desaparecimento anunciado; por exemplo, a cidade de Nínive, a capital do império
assírio, que Jonas (no livro profético de mesmo nome) declara prestes a ruir, devido
às atrocidades ali planejadas. A surpresa é que a ameaça não se cumpre.
No entanto, a cidade que na Bíblia tem sua destruição muitas vezes anunciada
é Jerusalém, por conta de sua política e religião abomináveis, e é especialmente nela
que Euclides está a pensar. É ela que merece as condenações de Miquéias, Isaías ou
Jeremias.162 Séculos depois, é Jesus de Nazaré que vaticina contra ela, apontando
sua destruição, segundo o testemunho dos evangelhos, escritos no contexto da
efetiva ruína provocada pela ação das tropas romanas, no ano 70 de nossa era.
Note-se que a comparação de Belo Monte com a cidade santa dos judeus será
muito cara a Euclides; é famosa, em Os sertões, a menção à “Jerusalém de taipa”,
amaldiçoada por frei João Evangelista. Belo Monte, a Jerusalém sertaneja, tem sua
iminente destruição selada com o beneplácito divino. Inclusive para que sejam
vingados aqueles que no cumprimento do sacro dever são hostilizados, feridos e
mortos: verdadeiros mártires.163 A cidade santa é transposta para as margens do
Vaza-barris, convertida na capital do retardamento; precisa então ser destroçada
pela ação das tropas civilizadas.
Mas há outro aspecto a ser considerado. Na visão de Euclides, a ação do exér-
cito apenas realiza os vaticínios proféticos. É sugestivo ver um autor, filho do Ilu-
minismo, tão cioso de suas análises objetivas, em busca de explicações biológicas e
naturalistas para o agir humano, recorrendo a tal imaginário para descaracterizar o
inimigo incompreensível, mas certamente bárbaro, e ao mesmo tempo justificar o
que de outra forma deveria ser classificado como barbaridade. Uma dupla observa-
ção a este respeito: se de um lado o recurso a este imaginário é sinal das exigências
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 229

que o arraial maldito impõe a quem o contemple e queira interpretá-lo – e por isso
Euclides não pode deixar de perceber em Belo Monte influxos decisivos de um
cristianismo absurdo e aberrante – de outro lado a eloquência revelada nesta página
se entende também num contexto nacional em que a destruição busca todo o tipo
de legitimação, inclusive, e não por último, a religiosa.
O quadro fica ainda mais denso quando se constata que, para Euclides, ruínas
são hermeneuticamente significativas; a história é “essencialmente uma construção
de ruínas; a obra civilizatória, dado o eterno drama do choque de temporalidades
culturais, significa, também, um processo irrefreável de fabricação de desertos”.164
A legitimidade e a inevitabilidade da ação militar são mais uma vez afirmadas,
agora com o recurso ao imaginário religioso. O exército age qual agente divino
destinado a cumprir as profecias catastróficas de destruição da cidade santa.
Agora a segunda referência. Se Belo Monte é a “aldeia sinistra”, se o exército
não faz outra coisa que realizar a implacável vontade divina, o que são os rebeldes
sertanejos, habitantes do horror? Euclides não escapa à conclusão: o exército demo-
ra em alcançar a tão sonhada vitória pois seus inimigos são sobrenaturais, terrivel-
mente sobrenaturais. Eles, que parecem não vir de nenhum lugar, seriam, ao olhar
da fantasia, “uma legião invisível e intangível de demônios...”165
Na verdade, em Belo Monte os demônios estão aos montes, formam uma
“legião”. Se não a consideramos casual, esta metáfora, a da “legião de demônios”,
parece ter também sua matriz no universo bíblico. Nela, Euclides atribui aos ja-
gunços belomontenses uma característica que ao mesmo tempo nos remete para
duas esferas, ao menos. Não terá passado despercebido ao jornalista que o termo
aponta para o mundo militar, pois é daí que o termo deriva, e é neste contexto que
aparece aqui. No entanto, o que mais surpreende é o fato de seus componentes
serem demônios. E aí, mais do que uma coincidência, isto parece remeter para uma
passagem do evangelho (Marcos 5,1-20):

E ao sair Jesus da barca, veio logo a ele dos sepulcros um homem possesso do espí-
rito imundo [...] E dando um grande grito, disse: Que tens tu comigo, Jesus, Filho
de Deus altíssimo? [...] E [Jesus] perguntou-lhe: Que nome é o teu? Ao que ele
respondeu: Legião é o meu nome, porque somos muitos (Marcos 5,2.10).

É notável que Euclides tenha percebido o alcance político-militar desta


passagem bíblica: o demônio-legião é imagem da ocupação e violência romanas
sobre Israel.166 Mas cabe notar a direção impressa à metáfora; aqui não é demonía-
co quem vem de fora, mas quem reage ao invasor. Legiões não são as tropas repu-
blicanas, mas os rudes sertanejos. A violência é provocada pelos jagunços; isso fica
patente no fato de Euclides se referir à “legião de demônios” quando fala do uso
230

de armas que estes fazem.167 O desconhecimento da topografia e das estratégias do


inimigo, que o tornam operante e resistente, converte-o em um coletivo diabólico.
Não se pode, portanto, ignorar o caráter altamente estigmatizador da expressão
utilizada: a desumanização do outro chega aqui a um ponto alto.
É difícil imaginar como isso coaduna com o que Euclides escrevera ainda
antes de chegar ao terreno do combate: “penso que a nossa vitória, amanhã, não
deve ter exclusivamente um caráter destruidor. Depois da nossa vitória, inevitável
e próxima, resta-nos o dever de incorporar à civilização estes rudes patrícios que –
digamos com segurança – constituem o cerne de nossa nacionalidade”.168
Os inimigos não aparecem aí como jagunços, mas como patrícios, embora
rudes; não mais demônios, embora transviados, indiscutivelmente pelo Conselhei-
ro.169 Assim, se para Euclides os sertanejos “constituem o cerne de nossa naciona-
lidade”, só o são “descontadas as superstições”.170 No fim das contas essas últimas,
alimentadas pelo Conselheiro, deram a justificativa última para a ação bárbaro-ci-
vilizatória, se é possível falar assim.

O heresiarca bronco e os novos crucificados

Em Os sertões, que Euclides começa a escrever meses após sua volta da Bahia,
ao ser nomeado para acompanhar a reconstrução de uma ponte em São José do
Rio Pardo, interior paulista, o tom se modifica sensivelmente. As últimas repor-
tagens permitiam antever uma significativa revisão de posições. Aqueles que até
então eram tidos como demônios são vistos agora como compatriotas, embora
desencaminhados. E um poema, criado em Salvador dias depois da volta do palco
da guerra e do misterioso silenciamento, em suas reportagens, sobre os últimos
combates, dá conta do que lhe passa na cabeça: “Quem volta da região assustadora
/ De onde eu venho, revendo, inda na mente / Muitas cenas do drama comovente
/ Da Guerra despiedada e aterradora [...]”171
Mas é na escrita de seu livro maior que Euclides poderá dar vazão às contradi-
ções que vem carregando dentro de si desde quando testemunhou o cruel massacre
sem poder denunciá-lo. Quanto ao alcance desta revisão, haverá a oportunidade de
avaliá-lo. Por ora, importa notar que, para a composição do argumento euclidiano,
o recurso ao universo religioso e teológico será inevitável. Até porque Euclides não
conseguirá compreender o sentido e o alcance da experiência religiosa vivida no ar-
raial belomontense. Nesse aspecto não se afastará das críticas anteriores. Talvez seja
maior a pretensão do ataque aos rumos da República, manifestos cabalmente na
empreitada militar, que o anseio por defender a gente sertaneja.172 Assim, no livro
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 231

convivem, em permanente tensão, um “saber, considerado natural e científico, e


um julgar, de natureza ética mais ampla”: o primeiro “quer explicar a luta contra
Canudos”; o segundo “a denuncia”.173
Nessa intricada posição, que contornos adquirirá a construção euclidiana? Sa-
lientarei os aspectos que tocam mais de perto as preocupações deste trabalho: o
perfil de Antonio Conselheiro que surge de Os sertões, e a interpretação de lances
da guerra e de seu sentido.
A avaliação que Euclides faz do Conselheiro apenas se agrava: “todas as
crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, todas as ten-
dências impulsivas das raças inferiores, livremente exercitadas na indisciplina
da vida sertaneja, se condensavam no seu misticismo feroz e extravagante”.174
Nele se conjugam o atraso racial e os absurdos religiosos sincréticos, e por con-
sequência a inviabilidade do que Belo Monte representa. Daí se encontrarem,
a todo momento, alusões, entre ironia e crítica, ao “falso apóstolo” e a suas
profecias. Ele não tem dúvidas: nas prédicas do “retrógrado do sertão”, com seu
“sistema religioso incongruente e vago”, ressurgem, de forma cabal, as “aber-
rações”, supostamente extintas, dos “adoidados chefes de seita dos primeiros
séculos”.175
A menção aos hereges dos inícios do cristianismo não é meramente ilustrativa,
mas se articula ao fato de o Conselheiro ser tomado por “um bufão arrebatado
numa visão do Apocalipse”.176 A menção a este livro bíblico o remete a um mundo
particular, decisivo na interpretação euclidiana a seu respeito: o da profecia mile-
narista.177 É bem verdade que o perfil de Antonio Maciel que daí emerge não en-
contra qualquer apoio na documentação, mesmo aquela recolhida por Euclides em
sua Caderneta de campo, muito menos nos registros de outros jornalistas, militares
e religiosos que conheceram o arraial e deixaram escritas suas impressões. É impor-
tante notá-lo, e tirar as consequências dessa sua “invenção”, até porque fez história.
Ela se constrói a partir daquelas profecias que já foram comentadas, que Euclides
equivocadamente atribuiu ao Conselheiro, além de tê-las entendido em termos mi-
lenaristas.178 Vista dessa forma, a vila conselheirista não seria outra coisa que uma
comunidade de pessoas ansiando pela vinda do milênio, de uma nova era, como
tantas outras “pré-Jerusaléns, salas de espera espirituais onde se aguardava a entra-
da triunfal ‘na mais fértil das terras’, no reino miraculoso cheio de bênçãos para o
corpo e para a alma”.179 O que ali se vivia apenas prefigurava o que estava para se
dar, do qual apenas os eleitos, os habitantes do arraial, seriam os beneficiados. Daí
a separação do mundo, a recusa em observar as leis estabelecidas, a revolta contra
a ordem política estabelecida. É exatamente isso que Euclides vê em Belo Monte.
Os habitantes de Belo Monte “nada queriam desta vida”, vivendo que estavam
“sob a preocupação doentia da outra vida”180, embalados no delírio religioso que a
232

todo momento seu líder alimentava em inflamadas pregações e com o testemunho


de sua vida penitente. O diagnóstico é taxativo: o Conselheiro é um herege. Essa
classificação terá seu anverso na terceira parte da obra, quando o escritor olhará a
gente conselheirista (não o Conselheiro) com olhares outros.
Com efeito, por estranho que possa parecer afirmá-lo depois de tudo o que foi
exposto, Os sertões deve ser visto como um agressivo manifesto contra a crueldade
perpetrada à gente de Antonio Conselheiro pelo Exército brasileiro. A campanha
militar fora um equívoco. Era necessário denunciá-lo. E então nos depararemos, ao
lado de afirmações quanto à inviabilidade de tudo o que Belo Monte representava,
com manifestações evidentes da solidariedade do escritor com as pobres vítimas da
República, embora nem um pouco com o projeto que as animava. Assim, se por
um lado o imaginário bíblico do sertanejo aparece quase sempre de forma pejo-
rativa (basta ver as menções a Canaã, a terra prometida, e à “Jerusalém de taipa”),
por outro análises acuradas da obra euclidiana mostram que o influxo sutil de
outras referências da mesma Bíblia contribui para dar maior força à denúncia do
massacre e da crueldade, que fica mais impressionante quando articulada a outras
situações, conhecidas dos leitores, sobre as quais há consenso geral. Consideremos
duas situações.
Em primeiro lugar, num momento perdido entre os avanços da quarta expedi-
ção, uma página remete para o Oriente Médio, a “uma paisagem bíblica”.181 Uma
“tapera babilônica” na qual se enfurnavam quem sabe vinte mil pessoas em cinco
ou seis mil casebres, com seu entorno evocava a longínqua e desconhecida Idumeia
(também chamada Edom). Região ao sul de Judá, habitada por descendentes de
Esaú, irmão gêmeo de Jacó, o ancestral de Israel. Ambos os povos desenvolveram
uma trajetória acidentada, de conflitos e traições mútuas. Daí que a Bíblia lhe reserve
palavras desabonadoras e anúncios de destruição, o que permitiu a Euclides falar dela
como “esterilizada para todo o sempre pelo malsinar fatídico dos profetas”.182
Mas se o registro fosse apenas esse, não faria sentido aludir à desconhecida
Idumeia. Na verdade, este aspecto não é o único, e nisso se mostra a perspectiva
nova que Euclides adiciona à que anteriormente cultivava. Os idumeus não são
apenas os inimigos de Israel. São, antes de tudo, seus irmãos. Daí que noutra pas-
sagem, quando Israel necessitava passar pelo território edomita para chegar a sua
terra prometida, diante da recusa Moisés tenha optado por contorná-lo a fazer
guerra ao povo do mesmo sangue (Números 20,14-21). A conclusão é inevitável:
“Ao evocar a terra da Idumeia, Euclides invoca, também, nas entrelinhas, a tarefa
mosaica que, afinal, é a dele [...] como verdadeiro porta-voz da civilização diante
da barbárie”.183 E que o Exército deixara de realizar.
Uma outra imagem, ainda mais poderosa, do fim da guerra, o arraial pratica-
mente destruído. Incêndios aqui e ali, de uma fumaça interminável, que
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 233

progrediam constrangidos, ao arrepio do sopro do nordeste, esgarçando-lhes a fu-


marada amarelenta, ou girando-a em rebojos largos em que fulguravam e se diluíam
listrões fugazes de labaredas. [...]

Nesses intervalos desaparecia o arraial. Desaparecia inteiramente a casaria. Dian-


te dos espectadores estendia-se, lisa e pardacenta, a imprimadura, sem relevos, do
fumo. Recortava-a, rubro e sem brilhos, – uma chapada circular em brasa – um Sol
bruxuleante, de eclipse. Rompia-a, porém, de súbito, uma lufada rija. Pelo rasgão
enorme, de alto a baixo aberto, divisava-se uma nesga do arraial – bandos estonte-
ados de mulheres e crianças correndo para o sul, em tumulto, indistintos entre as
folhagens secas das latadas.184

Justo nesse dia, pouco depois da morte do Conselheiro, quando Euclides pode
dizer que “a insurreição estava morta”185, porque o cerco do Exército ao arraial
finalmente se consumara, a descrição da tragédia assume cores densas e evoca ima-
gens dantescas, amplamente conhecidas:

A cena é sugestiva por causa de seu pano de fundo bíblico, da evocação do que ocor-
reu na hora da morte de Jesus, assim narrada pelo evangelista Lucas (23,44-45): “E
era já quase a hora sexta, e houve trevas em toda a terra até a hora nona, escurecen-
do-se o sol; e rasgou-se ao meio o véu do templo”. Na versão do evangelista Mateus
(27,50-52): “Jesus, clamando outra vez com grande voz, rendeu o espírito. E eis que
o véu do templo se rasgou em dois, de alto a baixo; e tremeu a terra, e fenderam-se
as pedras. E abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos, que dormiam, fo-
ram ressuscitados...”. O paralelismo é patente. A batalha ocorre em volta e em cima
dos templos de Canudos, dois dias após a morte do “bom Jesus”, comunicada ao
leitor duas páginas antes, de modo que se pode dizer aproximadamente que à sua
morte seguiu-se o eclipse. A vinculação cronológica entre a morte do Conselheiro e
o rasgamento do véu sobre a “Jerusalém de taipa” portanto é muito estreita; chegam
a ser quase simultâneos na mente do narrador, naquele dia da condenação à morte
de Canudos, sem que ninguém do exército, durante a batalha, soubesse ao certo da
morte do Conselheiro dois dias antes.186

O recurso a essas imagens e “cenas antiquíssimas do imaginário ocidental” não


se deve apenas ao “efeito estético e retórico”, mesmo que para “impressionar, entriste-
cer, indignar”187, pretendido pelo livro. Na verdade, tanto a menção à Idumeia como
o apelo ao relato da morte de Jesus são sintomáticos: neles se vislumbra o posicio-
namento de Euclides e sua opção ao pretender escrever um “livro vingador”. Não é
pouco associar o desaparecimento do Conselheiro e desespero final da gente sertaneja
234

à paixão de Jesus. E justamente o recurso aos fenômenos cataclísmicos radicaliza a


dimensão de tragédia, tanto nos relatos ancestrais como no que neles se inspira.188
Assim, a vinculação do destino trágico dos sertanejos ao do Jesus crucificado não
deve ser avaliada apenas em seu efeito literário. Ela mostra que seu autor fez um
longo caminho, que o levou do quase escárnio inicial a uma explícita “simpatia pelos
nossos extraordinários patrícios sertanejos”, capaz de causar estranheza em alguns de
seus primeiros leitores mais cuidadosos.189 E se antes o Exército aparecia como agente
dos desígnios divinos, o que dizer dele agora, algoz dos novos crucificados?
Da mesma maneira é eloquente a evocação de uma passagem bíblica que mostra
como, apesar de evidentes conflitos, dois povos irmãos não os resolvem pela guerra.
Ou melhor, um deles, divinamente conduzido, não violenta o supostamente inferior e
refratário. Euclides esperaria da República uma ação “civilizatória” como a realizada por
Moisés. Sua decepção se expressa também ao perceber que, pelo contrário, o resultado
da presença dela no sertão foi desastroso, convertendo-o num imenso Gólgota.

Resultados

O episódio Belo Monte não foi, no momento do seu acontecimento, oportu-


nidade para Euclides desenvolver sua crítica à República, um tema predileto seu.190
Por um momento ela deixou de ser feita. Agora cabia combater sem tréguas os
inimigos do novo regime, os demônios do sertão, com a certeza de que ele haveria
de sair “triunfante desta última prova”. Era necessário contrapor às superstições
dos rudes sertanejos aquelas das elites do litoral. Afinal de contas, como ele não se
cansou de repetir, “a República”, como os deuses, “é imortal”. Em função desse ob-
jetivo a Bíblia cumprirá, na pena do escritor, papel importante: o arraial é maldito.
Mas essa configuração, inclusive dos deuses e demônios, se alterará em Os
sertões, e com ela o recurso aos textos sagrados. O que parece ser a espinha dorsal de
um livro tão complexo é que os sertanejos que fizeram Belo Monte acabam por ser
ardorosamente defendidos, seu martírio corajosamente denunciado, ao preço da
estigmatização do Conselheiro, “um santo farsesco, animador de ópera bufa, misto
de retroação étnica, atraso cultural e desvio psicológico. Uma ridícula personagem
desautorizada pelos códigos da razão e do avanço científico”.191 O desfecho, apesar
de lamentável, e digno de crítica pela forma como se deu, era inevitável.
Tais observações sugerem uma estranha continuidade, e suscitam a pergunta
sobre se efetivamente Euclides “supera a visão sacralizada da história”, na medida
em que ele não deixa de apostar
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 235

na irreversibilidade do progresso e na lei da necessidade, importada do Positivismo,


conceitos que guardam resíduos messiânicos. Sua interpretação, contudo, reveste-se
ainda de ingredientes mágicos e pré-científicos, emanados da ideologia que então
acompanhava a narração dos acontecimentos em Canudos.192

A “sacralidade” em versão secularizada: essa concepção ao mesmo tempo te(le)


ológica e “científica” da história presta um serviço inestimável à descaracterização
do outro. O que faz concluir que a reviravolta operada em Os sertões não conseguiu
ser radical; “Canudos e os canudenses não entregaram a chave de sua decifração aos
métodos utilizados pelo escritor”.193 Os determinismos certificados pelas ciências
eram unânimes: era impossível a Belo Monte vingar.
O que não significa que o procedimento bélico tenha sido o mais adequado
para dissuadi-lo: “Requeriam [aqueles pobres rebelados] outra reação. Obrigavam-
nos a outra luta. Entretanto enviamos-lhes o legislador Comblain; e esse argumento
único, incisivo, supremo e moralizador – a bala”.194 Exatamente nesse ponto se
localiza a perspectiva do autor quando se põe a escrever Os sertões. Se Belo Monte
era inviável, não eram as armas o melhor instrumento para demonstrá-lo. Assim, a
configuração do Conselheiro e de sua gente, elaborada com não pouca contribui-
ção do universo bíblico, deixa patente o alcance da crítica euclidiana:

Decididamente era indispensável que a campanha de Canudos tivesse um objetivo


superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um povoado dos ser-
tões. Havia um inimigo mais sério a combater, em guerra mais demorada e digna.
Toda aquela campanha seria um crime inútil e bárbaro, se não se aproveitassem os
caminhos, abertos à artilharia, para uma propaganda tenaz, contínua e persistente,
visando trazer para o nosso tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes
compatriotas retardatários.195

O fato de os caminhos abertos não terem sido de novo trilhados confirma a


decepção de Euclides. Em Os sertões os agentes divinos se furtaram à tarefa: torna-
ram-se demônios.

CONCLUSÃO

A Bíblia jogou papel significativo na configuração dos processos interpretati-


vos que agentes diretamente envolvidos fizeram sobre Belo Monte. Sua razão de
ser, bem como a necessidade de sua eliminação, a figura de seu líder, para o bem e
236

para o mal, tudo isso ganhou contornos emprestados aos livros sagrados cristãos.
Surpreende que até mesmo na obra euclidiana essa presença seja significativa.
Não será desnecessário resumir os aspectos mais relevantes do caminho até
aqui percorrido. As histórias centradas no êxodo dos hebreus e no seu entorno
configuraram a mais significativa maneira de a gente sertaneja dar sentido a sua
fuga das fazendas, à venda dos bens (o que tanto incomodou o barão de Jeremoabo
e seus pares) e ao deslocamento para junto do Conselheiro. E as terras à beira do
Vaza-barris converteram-se em ribanceiras de cuscuz, jorraram leite. Mas a proxi-
midade do massacre, se não eliminou de todo as esperanças pela vitória (ainda nos
últimos dias da guerra) ativou antigas e reiteradas afirmações sobre o fim iminente.
Tanto horror, obra das hostes do Anticristo, era inequívoco prenúncio. O relato
bíblico do dilúvio e as promessas proféticas alimentaram a resistência aguerrida, à
espera do julgamento final, que não tardaria. A esperança da salvação não morreu.
Para o Conselheiro as coisas trilhavam rumos significativamente distintos.
Temores apocalípticos, ativados quando dos eventos que culminaram em Mas-
seté, terão sido dissipados quando com sua gente se fixou no velho arraial de
Canudos. Novos tempos, novo nome: Belo Monte sinaliza para seus habitantes
o enorme amor de Deus e aponta para a necessidade de corresponder a tamanha
graça. O peregrino, que atualizava em suas andanças intermináveis o modo de
ser de Jesus e seus primeiros seguidores e refizera suas opções ao ir ao encontro
dos mal-aventurados, em vistas à salvação eterna, fazia do arraial, que vivia da
força de suas igrejas, o lugar em que os pobres do sertão podem alimentar tanto
o corpo quanto a alma. Rompia assim, de alguma forma, a lógica que exigia o
sacrifício daquele para que esta pudesse alcançar seu destino salvífico. E mesmo
a guerra não alterou substancialmente tal modo de pensar e conduzir seu povo;
pelo contrário, certificou-o de que não havia outro caminho senão resistir e, se
necessário fosse, “morrer no Senhor”. Nessas diversas facetas do pensamento e
ação do Conselheiro, a leitura e a transcrição de passagens bíblicas foram ilumi-
nadoras.
Não estranha que os posicionamentos oficiais da Igreja Católica na Bahia
tenham tido direção contrária. Se mesmo antes do surgimento de Belo Monte a
ação de Antonio Conselheiro já suscitava reações da sé arquiepiscopal e de boa
parte dos vigários do sertão, a reação deste aos novos impostos possibilitados pela
República e a organização do arraial só aguçaram o conflito. Aos olhos eclesiásti-
cos à desobediência ao clero se soma outra: a insubmissão às autoridades consti-
tuídas. No contexto em que a instituição eclesiástica buscava reatar os laços com
o Estado que dela se desligara, tal posicionamento em relação ao arraial insur-
recto era mais que oportuno: com estas credenciais podia pedir a eliminação da-
quele quisto, que agora ameaçava tanto a unidade eclesial como a ordem pública.
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 237

E chegamos a Euclides da Cunha, cujo posicionamento tem dois momentos


claramente distintos. Inicialmente, na tarefa de contribuir na fabricação de um ini-
migo por meio do qual pudessem ser exorcizados aqueles da República, o agnóstico
escritor não receou buscar nos livros sagrados a base da certeza de que o arraial con-
selheirista achava-se de antemão fadado à destruição: garantiam-no as profecias,
infalíveis, como também o certificavam da desumanidade dos jagunços, teimosos
em defender aquela obra demoníaca. O momento seguinte, o da redação de Os ser-
tões, mostra-o oscilante, entre a denúncia eloquente do massacre e a convicção da
inviabilidade do arraial. Para fundamentar essa delicada posição vamos encontrá-lo
recolhendo das Escrituras elementos para estigmatizar o Conselheiro e mostrar
seus seguidores como vítimas inúteis de uma República que traiu seus ideais.
Resta ver como essas visões diferenciadas se completam, ou se chocam, para
além da superfície.

________

NOTAS

1  Roger Chartier. A história cultural: entre práticas e representações. Difel /


Bertrand Brasil, Lisboa / Rio de Janeiro, 1990, p.17.
2  A expressão é discutida por Michel Vovelle: “Situado entre o universo dos
dominantes e o dos dominados, ele [o mediador cultural] adquire uma posição de
excepcional e privilegiada: ambígua também, na medida que pode ser visto tanto
no papel de cão de guarda das ideologias dominantes, como porta-voz das revoltas
populares. Em outro plano, ele pode ser o reflexo passivo de áreas de influência que
convergem para sua pessoa, apto todavia a assumir, dependendo das circunstâncias,
o status de um ‘logoteta’, como diz Barthes [...], criando um idioma para si mesmo,
expressão de uma visão de mundo bem particular” (Ideologias e mentalidades. 2 ed,
Brasiliense, São Paulo, 1991, p.207-224; a citação é da p.214).
3  E aqui reconhecemos a limitação das fontes em nos mostrar como as con-
siderações sobre a gente sertaneja incidem com mais ou menos intensidade ao todo
da população que fez Belo Monte.
4  José Aras. Sangue de irmãos. Museu do Bendegó, Salvador, 1953, p.26.
Como já se disse, Aras era filho de gente que conheceu o Conselheiro e que sobre-
viveu à destruição de Belo Monte. Contudo, o professor José Calasans (em entre-
238

vista a mim concedida a 11/12/99), dizia não ser possível avaliar com certeza até
onde Aras falava do que conhecia e a partir de quando fantasiava em seus relatos.
5  José Aras. Sangue de irmãos..., p.149.
6  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova. 2 ed., Renes / Instituto Nacional
do Livro, Rio de Janeiro / Brasília, 1983, p.67.
7  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório apresentado, em 1895, pelo
reverendo frei João Evangelista de Monte Marciano, ao Arcebispado da Bahia, sobre
Antonio Conselheiro e seu séquito no arraial dos Canudos. Tipografia do Correio
da Bahia, Salvador, 1895 (edição em fac-símile pelo Centro de Estudos Baianos,
1987), p.5 (os destaques são meus).
8  Sobre a relevância do milho, as páginas de Gilberto Freyre são sig-
nificativas (Casa-grande e senzala. 13 ed., Universidade de Brasília, 1963,
p.107.156.184).
9  Euclides da Cunha. Os sertões: campanha de Canudos. 4 ed., Ateliê, São
Paulo, 2009, p.295. Também para Dantas Barreto o que tantos, além dos “assassi-
nos, os ladrões e os que não trabalhavam” encontraram em Belo Monte era a “terra
prometida” (Destruição de Canudos. Jornal do Recife, 1912, p.11; destaque do au-
tor). O nome “Canaã” é utilizado na Bíblia quase exclusivamente como designação
da terra a ser conquistada pelos israelitas.
10  Entendo que os testemunhos seguintes expressam a dinâmica que ocorre,
no mundo da oralidade, entre a expressão matriz (a “terra da promissão” com os
alimentos que lhe caracterizam a fartura: “leite e mel”) e as possibilidades de sua
recriação, seja na forma da transmissão, seja em função de novas circunstâncias e
ambientes.
11  Manuel Pedro das Dores Bombinho. Canudos, história em versos. Hedra/
Imprensa Oficial do Estado/Edufscar, São Paulo, 2002, p.32.
12  Memórias de grupos indígenas recolhidas em Maria Lucia Felicio Mas-
carenhas. Rio de sangue e ribanceira de corpos. Bacharelado em Antropologia. Ufba,
Salvador, 1995, p.28, 50 e 57, respectivamente.
13  Nelson de Araújo. Pequenos mundos. Um panorama da cultura popular
na Bahia. UFBA / Fundação Casa de Jorge Amado, Salvador, 1988. t.2, p.46.
Mas há outras memórias. Em Riachão do Dantas, interior do Sergipe, o Conse-
lheiro, entre 1872 e 1874, teria conseguido “atrair alguns adeptos para a sua cau-
sa. Instalado com seus acompanhantes na casa do Coronel Patrício, não hesitava
em convidar os moradores a seguir para uma cidade independente. Um local,
segundo Sr. Daniel Fabrício, ‘de terra fértil e abundante, onde existia um rio de
leite’” (Itamar Freitas de Oliveira. “No rastro de Conselheiro”. In: http://www.
infonet.com.br/canudos/roteiro.htm [09/03/03]). Esse interessante testemunho
sugere algumas observações. Inicialmente, parece um anacronismo pensar que,
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 239

já na primeira metade dos anos 1870, Antonio Conselheiro pretendesse fixar-se


numa “cidade independente”, algo que só realizaria vinte anos depois, mais como
fruto das circunstâncias do que como ideal há tempo almejado. Mas se pode
pensar que a fala de Daniel Fabrício seja fruto de um longo e tortuoso trajeto
das memórias e tradições orais. Assim, o posterior (a fixação na cidade) condi-
cionaria as recuperações e as formas do anterior (a estada do Conselheiro em
Sergipe). Mas destaque-se a expressão popular, que recria o mito bíblico da terra
prometida, sobrevivendo à guerra e configurando, quem sabe o proselitismo do
Conselheiro, certamente os dizeres de Fabrício!
14  José Aras. Meu folclore: história da guerra de Canudos. In: José Calasans.
Canudos na literatura de cordel. Ática, São Paulo, 1994, p.75. Para Aras, os boatos
davam conta de que D. Sebastião já se fazia presente no arraial. E Euclides men-
ciona trovas encontradas entre os escombros dele que o citam. O parágrafo que
o mais alentado estudo sobre o sebastianismo reserva à gente de Belo Monte não
elucida a questão, ao falar de “possíveis elementos sebásticos” da “saga conselhei-
rista” (Jacqueline Hermann. No reino do desejado: a construção do sebastianismo
em Portugal – séculos XVI e XVII. Companhia das Letras, São Paulo, 1998,
p.309). O que parece é que a figura do rei português desaparecido, conhecida
da gente de Belo Monte, tinha um perfil multifacetado, oscilando entre alguém
que eventualmente está por vir e uma personagem já presente, como se poderá
ver em outras alusões a ele. Mas daí a caracterizar Belo Monte como sebastianista
vai um bom caminho.
15  Odorico Tavares. Canudos: cinquenta anos depois (1947). Fundação
Cultural do Estado, Salvador, 1993, p.48. Vale aqui a avaliação de Raymond
Williams a respeito de relatos similares: “a retrospecção aqui é uma aspiração”
(O campo e a cidade na história e na literatura. Companhia das Letras, São Pau-
lo, 1989, p.65). E podem-se notar semelhanças entre a descrição recolhida por
Tavares sobre Belo Monte e aquela relativa à Terra de São Saruê, no cordel a que
já me referi. Além disso, nas descrições de Menocchio a respeito do paraíso, fi-
camos sabendo que este “é um lugar delicado, onde se encontram todas as frutas
de todas as estações, rios sempre cheios de leite...” (Carlo Ginzburg. O queijo e os
vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. 10 ed.,
Companhia das Letras, São Paulo, 1998, p.156; o destaque é meu).
16  Vicente Dobroruka. Antônio Conselheiro: o beato endiabrado de Canu-
dos. Diadorim, Rio de Janeiro, 1997, p.186.
17  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.5 (o destaque é meu).
18  Eduardo Hoornaert. Os anjos de Canudos..., p.67-68.
19  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”: a mensagem religiosa de Antonio
Conselheiro. Loyola, São Paulo, 1990, p.287-299.
240

20  Euclides da Cunha. Caderneta de campo. Cultrix / Instituto Nacional do


Livro. São Paulo, 1975, p.58. Como se sabe, “no seio do povo brasileiro diz-se
[Cão] sempre como sinônimo demoníaco” (Luis da Câmara Cascudo. Dicionário
do folclore brasileiro. 10 ed., Ediouro, Rio de Janeiro, s/d, p.238).
21  Euclides da Cunha. Caderneta de campo..., p.58.59.
22  Euclides da Cunha. Caderneta de campo..., p.60. A referência é a Moreira
César e sua fracassada expedição.
23  Curiosamente as origens bíblicas do Anticristo não estão no livro neotes-
tamentário do Apocalipse, mas nas duas primeiras cartas de João. No entanto, ao
ingressar no imaginário coletivo ocidental ela se foi associando a figuras do últi-
mo livro do Novo Testamento, como bem como ao “ímpio” da segunda carta aos
tessalonicenses (Jean Delumeau. História do medo no Ocidente: 1300-1800 – uma
cidade sitiada. Companhia das Letras, São Paulo, 1996, p.215).
24  Os cangaceiros “são religiosos, acreditando tanto nos mistérios da Igreja
como na vinda do anticristo a esse mundo” (Manoel Benício. O rei dos jagunços.
Crônica histórica e de costumes sertanejos sobre os acontecimentos de Canudos. 2
ed., Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1997, p.6).
25  Aliás, nas duas cartas de João a figura do Anticristo aparece para quali-
ficar adversários no interior da comunidade a que os escritos se dirigem. Não é
o caráter vindouro deste personagem que sobressai, a não ser quando associado
às figuras citadas na segunda carta aos tessalonicenses e principalmente no Apo-
calipse de João. Então, ao mesmo tempo em que se notava a ação do Anticristo
em algumas pessoas, ela podia ser vista como sinal da proximidade do milênio
ou do juízo final.
26  Euclides da Cunha. Caderneta de campo..., p.58. Liodoro é, obviamen-
te, Deodoro da Fonseca, responsável pela proclamação da República.
27  É claro que nessas identificações do Anticristo há o influxo importante das
pregações do clero católico. Mas a apropriação destas referências se faz de maneira
autônoma, e suscita inscrições criativas.
28  José Calasans. Cartografia de Canudos. Secretaria da Cultura e Turismo do
Estado da Bahia / Egba, Salvador, 1997, p.52-53. Obviamente há que se descontar
o tom exagerado das palavras que se encontram nas cartas editadas por Consuelo
Novais Sampaio, o que não impede de reconhecer que a tarefa de angariar novos
adeptos para Belo Monte terá sido de particular importância. Por outro lado, o
proselitismo de que falo não anula o que foi dito, no capítulo anterior, sobre a ação
de gente não residente em Belo Monte mas comprometida com o arraial. A solida-
riedade com o vilarejo sagrado garantia o desgarramento dos laços do Maligno e a
possibilidade da salvação.
29  Maria Lucia Felicio Mascarenhas. Rio de sangue..., p.50.
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 241

30  Edwin Reesink. “A tomada do coração da aldeia: a participação dos


índios de Massacará na guerra de Canudos”. In: Cadernos do CEAS. Salvador,
1997. s/n, p.86.
31  Já em 1874 a poesia popular se referia a Antonio Maciel, que logo seria
chamado o Conselheiro, da seguinte forma: “Do céu veio uma luz / Que Jesus
Cristo mandou / Santo Antônio Aparecido / Dos castigos nos livrou” (Sílvio Ro-
mero. Estudos sobre a poesia popular no Brasil. 2 ed., Vozes, Petrópolis, 1977, p.41).
Outra estrofe acentua ainda mais o lugar privilegiado do Conselheiro, mediador
entre Jesus e o povo: “O sol já se levanta / cheio de seu resplendô / Antônio subs-
titui Jesus / que do castigo nos livrou” (recolhido por José Calasans em “A guerra
de Canudos na poesia popular”. In: Benjamin Abdala Jr. e Isabel Alexandre (org.).
Canudos: palavra de Deus, sonho da terra. Senac / Boitempo, São Paulo, 1997,
p.150).
32  In: José Calasans. O ciclo folclórico do Bom Jesus Conselheiro. Con-
tribuição ao estudo da campanha de Canudos. Tipografia Beneditina, Bahia,
1950 (edição fac-símile pela Edufba, Salvador, 2002), p.32. Manoel Benício
garante: “Por onde atravessavam os seus [do Conselheiro] sequazes levavam a
apoteose de sua fama e prodígio, aconselhando aos enfermos que buscassem
lenitivo aos seus males no arraial santo e exortando aos amigos e parentes para
emigrarem para Canudos” (O rei dos jagunços..., p.96).
33  Alba Zaluar nota que a categoria utilizada para designar gente como o Con-
selheiro é a de “santo”, não messias ou assemelhado (Os homens de Deus: um estudo
dos santos e das festas no catolicismo popular. Zahar, Rio de Janeiro, 1983, p.104).
34  Maria Lucia Felicio Mascarenhas. Rio de sangue..., p.50.
35  Dantas Barreto fala da “Jerusalém do Vaza-Barris” (Destruição de Canu-
dos..., p.33).
36  Marcos Evangelista C. Villela Jr. Canudos: memórias de um combatente.
2 ed., Eduerj, Rio de Janeiro, 1997, p.107-108.
37  Além disso, supõe que depois do estabelecimento do Belo Monte o Con-
selheiro tenha feito algum deslocamento até Pernambuco, algo de que não se tem
qualquer notícia.
38  O texto expressa corretamente que a referência da Nova Jerusalém é o
livro do Apocalipse. Se bem que suas raízes estejam no livro do profeta Isaías, onde
se fala da reconstrução da Jerusalém destruída pelos babilônios (Isaías 65,18-19), e
naquele do profeta Ezequiel também se fale da reconstrução de uma nova Jerusa-
lém, é no Apocalipse que as gerações cristãs tomarão contato com a expectativa de
uma Jerusalém vinda do céu (Apocalipse 21,9-27).
39  Por outro lado, sabe-se que a propaganda dos poderes e dos supostos
milagres do Conselheiro servia de poderosa munição para denunciar o fanatismo
242

da gente do arraial e de seu líder; os militares parecem ter tido particular interesse
naquelas histórias que considerariam meras lendas e fantasias de ignorantes (como
se pode ler no interrogatório a que foi submetido o “jaguncinho” Agostinho, a que
esteve presente Euclides da Cunha; veja seu Diário de uma expedição. Companhia
das Letras, São Paulo, 2000, p.105-111).
40  Bahia de todos os fatos. Cenas da vida republicana 1889-1991. Assembléia
Legislativa do Estado da Bahia, Salvador, 1996, p.36. Eis um dos poucos testemu-
nhos em que é explícito que se trata da fala de uma mulher.
41  Após o Concílio de Trento “a Igreja católica insistiu [...] muito mais no
juízo particular que no Juízo Final” (Jean Delumeau. História do medo no Ociden-
te..., p.238).
42  Citado por Robert Levine. O sertão prometido: o massacre de Canudos.
Edusp, São Paulo, 1995, p.246.
43  Citado em Walnice Nogueira Galvão. No calor da hora: a guerra de Canudos
nos jornais. 3 ed., Ática, São Paulo, 1994, p.478-479. Mantive a ortografia, diferente
daquela que Euclides recolhe em sua Caderneta de campo (p.72-73). Aí o missivista
tem o nome Esequiel Profeta de Almeida. Também Dantas Barreto (Destruição de
Canudos..., p.23-25) transcreve a carta, que soaria aos militares como confirmação
do monarquismo do arraial e expressão de alguma conspiração contra a República.
44  Robert Levine. O sertão prometido..., p.286.
45  O descarte que Villa propõe ao documento, por não ser da pena do Con-
selheiro (Canudos: o povo da terra. Ática, São Paulo, 1995, p.231) é incompreensí-
vel. Esta constatação não exime da tarefa de analisar o documento! Mais sensata é
a óbvia avaliação de Calasans: “Se você visse as profecias entendia que elas existiam,
mas que não eram do Conselheiro” (Marco Antonio Villa [org.] Calasans, um de-
poimento para a história. Uneb, Salvador, 1998, p.69-70; destaque meu).
46  Euclides da Cunha. Caderneta de campo..., p.74-75. Para um rápido co-
mentário do teor da profecia, veja Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.294.
47  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.294-295, nota 394 (para ele
caberia adequadamente a data de 24/01/1897.
48  Trata-se de um recurso literário típico de textos de cunho apocalíptico. Na
análise de textos bíblicos ele é denominado “vaticinia ex eventu” (vaticínios após o
evento) relatados a partir de um suposto autor antigo (veja Norman K. Gottwald.
Introdução sócio-literária à Bíblia hebraica. Paulinas, São Paulo, 1988, p.540).
49  Luitgarde O. Cavalcanti Barros. “Crença e parentesco na guerra de Ca-
nudos”. In: E. Diatahy B. de Menezes e João Arruda (org.) Canudos: as falas e os
olhares. UFC, Fortaleza, 1995, p.80.81.
50  Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares. A guerra de Canudos. 3 ed.,
Philobiblion / Instituto Nacional do Livro, p.181.
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 243

51  Otávio Velho. Besta-fera: recriação do mundo: ensaios críticos de antropo-


logia. Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1995, p.33 (o autor se refere aí a campo-
neses da Amazônia e do Maranhão).
52  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.6.
53  A distância em relação às esperanças milenaristas, sobre as quais ainda te-
rei de tratar, é marcante. Depoimentos de descendentes dos Kaimbé de Massacará
indicam que quem desta tribo apostou em Belo Monte compreendia o movimento
do Conselheiro “antes de tudo como um movimento de salvação, e o estabelecimen-
to dele num lugar é a territorialização deste movimento num espaço-tempo onde
reina o modo correto de viver para se alcançar a salvação; isso implica um regime
de salvação” (Edwin Reesink. “Til the End of Time: The Differential Attraction of
‘Regime of Salvation’ and the ‘Entheotopia’ of Canudos”. In: http://www.mille.
org/publications/winter2000/reesink.PDF [10/02/03]). Isso pode ser confirmado,
continua Reesink, pelo registro de frei João Evangelista, segundo o qual a morte
é entendida em Belo Monte pela afirmação seguinte: “É o Bom Jesus que os [os
mortos] manda para o céu” (Relatório..., p.6).
54  Alexandre Otten. “A influência do ideário religioso na construção da comu-
nidade de Belo Monte”. In: Luso-Brazilian Review. Wisconsin, 1993. v.30, n.2, p.93.
55  Parece haver bastante resistência a se olhar o Conselheiro pelos seus pró-
prios depoimentos. Mesmo após a publicação de um dos manuscritos foi possível
a alguém afirmar: “a população insurreta do arraial não produziu uma escrita, um
único documento no qual se articulasse um discurso capaz de transmitir, exemplar-
mente, a própria experiência trágica [...] Faltava não apenas a escrita enquanto gra-
fia, mas um discurso no qual a experiência vivida, factível, se condensasse em uma
interpretação da própria história, indicando novos caminhos para a ação” (Ana
Maria Roland. Fronteiras da palavra, fronteiras da história. Unb, Brasília, 1997,
p.173-174; destaques da autora). Na verdade, nem Euclides chegou a tanto...
56  Deve-se aqui destacar o inusitado desta prática, do valor que lhe era con-
ferido pelo Conselheiro num ambiente em que o texto sagrado era pouco utilizado
e de muito difícil acesso. A cópia deve ter sido motivada pelo fato de Antônio
Conselheiro não possuir uma Bíblia, mas tomá-la emprestado de padres ou outras
pessoas que eventualmente a possuíssem.
57  Trata-se de um caderno de anotações, de 19 x 13 cm, que por muito
tempo esteve em mãos de José Calasans e ora se encontra nos arquivos do Núcleo
Sertão do Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia, que em
2002 preparou um Cd-rom disponibilizando o seu conteúdo. No verso da capa do
caderno encontram-se informações interessantes. Numa letra ínfima se consegue,
a custo, ler: “Antônio Conselheiro infame bandido”. Logo abaixo dados sobre sua
descoberta: “Oferecido pela brigada do 25º batalhão de infantaria Eugênio Caroli-
244

no de Sayão Carvalho, achado em Canudos no lugar chamado Santuário, ao Jornal


de Notícias”. Este achado com certeza se deu depois da destruição completa do ar-
raial, da mesma forma que o caderno de 1897. Ele se apresenta em duas partes ab-
solutamente distintas, com paginação independente. A primeira, de 554 páginas,
contém a transcrição dos quatro evangelhos, do livro de nome Atos dos Apóstolos
e parte da carta de Paulo aos romanos, todos textos do Novo Testamento, segundo
a versão do padre Antônio Pereira de Figueiredo. Não há qualquer introdução
ou apresentação dos livros, nem folha de rosto a abrir esta parte que corresponde
a quase dois terços do volume. Muito menos explicação para que a transcrição
do Novo Testamento não tenha sido continuada. A impressão é de uma dupla
ruptura, pois também a carta aos romanos ficou truncada, faltando suas páginas
finais. Estranhamente, também não há para esta parte do caderno qualquer índice,
sugerindo que a interrupção não fosse inicialmente pretendida. Diferente é o que
ocorrerá com a seguinte. De 253 páginas, ela tem uma folha de rosto, com o título
acima mencionado e, a seguir: “Pelo Peregrino / Antônio Vicente Mendes Maciel. /
No povoado do / Belo Monte, Província da / Bahia em 24 de maio de / 1895”. Tal
caderno é uma testemunha preciosa da visão do Conselheiro, já em Belo Monte,
sem sofrer ainda os horrores da guerra, mas já antevendo, pelas pressões que já se
faziam notar, um futuro sombrio. Pois “em maio de 1895, estiveram missionando
em Canudos Frei João Evangelista e seus dois companheiros [...] Os sacerdotes,
malogrados nos seus intentos religiosos, saíram do povoado a 21 de maio. Três dias
após, Antônio Vicente Mendes Maciel datava seus Preceitos. Simples coincidência?
Haveria outra intenção?” Já se verá que a questão é mais intrigante. No entanto,
talvez por ser de difícil acesso, este manuscrito é pouco considerado inclusive por
estudiosos que dão valor aos textos surgidos do próprio Conselheiro. Certamente
há o preconceito de não se reconhecer importância historiográfica a uma produção
de cunho religioso. Pois “o manuscrito de 95 é simplesmente um registro de con-
ceitos religiosos, enquanto a obra de 97, que em parte é cópia da anterior, consigna
ideias políticas e sociais” (José Calasans. “Canudos não euclidiano”. In: José Augus-
to Vaz Sampaio Neto; Magaly de Barros Maia Serrão; Maria Lúcia Horta Ludolf
de Mello e Vanda Maria Bravo Ururahy. Canudos: subsídios para sua reavaliação
histórica. Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 1986, p.18). Remeto à
minha tese de livre-docência, em que se encontra a transcrição destes Apontamen-
tos..., bem como uma aproximação ao conjunto de meditações enfeixadas sob este
título (Abrindo as portas do céu: apontamentos para a salvação, segundo Antonio
Vicente Mendes Maciel [Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009]).
58  A data do caderno de 1897 (12/01) mostra que também ele respira ares
tumultuados; eram os dias da aproximação das tropas comandadas pelo major Fe-
brônio de Brito, na chamada “segunda expedição” contra o Belo Monte. Segundo
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 245

inscrição encontrada antes da folha de rosto, no dia 05 de outubro de 1897, data


do término da guerra, “dando busca no lugar denominado Santuário, em que mo-
rou o célebre Antônio Conselheiro, foi este livro encontrado em uma velha caixa
de madeira [...] Submetido ao testemunho de muitos conselheiristas, este livro foi
reconhecido ser o mesmo que, em vida, acompanhava nos últimos dias a Antônio
Maciel – o Conselheiro” (Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos: revi-
são histórica. 3 ed., Atlas, São Paulo, 1997, p.35). Encontrado por João de Souza
Pondé, estudante de Medicina que serviu na campanha, foi passado para Afrânio
Peixoto, que o ofereceu “ao já consagrado autor d’Os sertões poucos meses antes da
morte de Euclides. Estava este às voltas com a nomeação para o Ginásio Pedro II
e, certamente, remoendo o seu caso familiar. É provável que nem tenha lido sequer
a primeira página do manuscrito, que apareceu num ‘sebo’, muitos anos depois,
sendo adquirido pelo poeta Aristeu Seixas” (p.35-36). De 598 páginas (as páginas
são numeradas até 628, mas há uma inexplicável passagem da p.569 para a p.600,
sem qualquer problema de continuidade em termos de conteúdo; terá havido con-
fusão de 569 com 599?), apresenta-se da seguinte forma, na p.1: Tempestades que
se levantam no Coração de Maria por ocasião do Mistério da Anunciação. / A
presente obra mandou subscrever / O Peregrino / Antonio Vicente Mendes Maciel
/ No Povoado do / Belo Monte, Província da / Bahia em 12 de Janeiro de / 1897.
59  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.77.
60  Rubem Alves. "A volta do sagrado". In: O suspiro dos oprimidos. 3 ed.,
Paulinas, 1992, p.139.
61  Depoimento de frade capuchinho sobre as missões pregadas por seus an-
tecessores, registrado por Cândido da Costa e Silva. “Uma leitura missionária da
seca nordestina”. In: Severino Vicente da Silva (org.) A Igreja e o controle social nos
sertões nordestinos. Paulinas, São Paulo, 1988, p.54.
62  As três prédicas se encontram em Antonio Vicente Mendes Maciel. Tem-
pestades que se levantam no coração de Maria por ocasião do mistério da encarnação.
Manuscrito, Belo Monte, 1897, p.537-628; editado em: Ataliba Nogueira. An-
tónio Conselheiro e Canudos..., p.185-197. Elas têm um elemento comum, nota
Fiorin: o uso frequente da primeira pessoa do singular (A ilusão da liberdade discur-
siva: uma análise das prédicas de Antônio Conselheiro. Dissertação de Mestrado
em Lingüística, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo, 1978, p.214). Quanto ao termo “peregrino”, consta das folhas de rosto dos
dois manuscritos.
63  Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros..., p.133 (o destaque é
meu). Será preciso retornar a esse problema no capítulo seguinte.
64  Vejo esta posição corroborada pelo procedimento de Eduardo Hoornaert
que, ao mesmo tempo em que reconhece o caráter compósito dos cadernos, consi-
246

dera-os fundamentais, seja para superar os estereótipos tradicionais do Conselheiro


como pregador apocalíptico ou milenarista, seja para descobrir o diferencial que
tornou possível a experiência religiosa e social de Belo Monte (Os anjos de Canu-
dos..., p.113-120).
65  Antonio Vicente Mendes Maciel. Apontamentos da divina lei de Nosso
Senhor Jesus Cristo para a salvação dos homens. Manuscrito, Belo Monte, 1895,
p.185-216.
66  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Os juízes”. In: Apontamentos dos pre-
ceitos da divina lei..., p.214-215. Poderíamos nos perguntar se a prédica que vem
imediatamente depois, intitulada “Construção e edificação do templo de Salomão”
(p.217-220) faria parte deste conjunto. Não é de todo impossível, mas, visto que
ela também aparece no caderno manuscrito de 1897, e aí desacompanhada, prefe-
rimos abordá-la separadamente.
67  Recorde-se o que na introdução deste livro foi dito a respeito desse pro-
cedimento interpretativo.
68  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Morte dos primogênitos, Cordeiro
Pascoal, saída do Egito”. In: Apontamentos dos preceitos da divina lei..., p.191-192.
69  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Passagem do mar Vermelho”. In:
Apontamentos dos preceitos da divina lei..., p.194-195. Da mesma forma na quin-
ta prédica, “o Maná é clara figura do Augustíssimo Sacramento da Eucaristia no
qual nos é dado Jesus Cristo oculto nas espécies de pão”. A água que jorrou do
rochedo do Horeb, quando Moisés nele bateu com sua vara, “representa as graças
que nos sacramentos recebemos pelo ministério dos Sacerdotes Católicos” (“Co-
dornizes, maná, e a água no deserto”. In: Apontamentos dos preceitos da divina lei...,
p.197.198). Na sexta prédica se lê que a aliança selada no Sinai prefigura outra:
“Como estabelecida a antiga Aliança sobre o Monte Sinai, assim foi a nova sobre
o Calvário... Uma outra aliança foi confirmada com sangue. No Sinai com o san-
gue de animais, no Gólgota com o sangue da verdadeira vítima, o Cordeiro sem
mácula, Nosso Senhor Jesus Cristo” (“Os dez mandamentos, aliança de Deus com
Israel”. In: Apontamentos dos preceitos da divina lei..., p.201-202). Não é diferente
na prédica sobre as leis e edifícios para o culto: o tabernáculo que Moisés deve
levantar “representa nossas Igrejas Católicas. O Santo dos Santos [lugar central do
santuário] corresponde ao nosso Altar, onde se imola o sacrifício da nova aliança”.
Quanto aos sacrifícios, cruentos e incruentos, os primeiros “figuravam o sacrifício
de Jesus Cristo na cruz”, estes “designavam o Santo Sacrifício da Missa” (“Leis do
culto divino”. In: Apontamentos dos preceitos da divina lei..., p.207.208). Também
as festas aí estabelecidas prefiguravam as cristãs: a Páscoa e o Pentecostes; quanto à
festa dos Tabernáculos, apontava para a festa do Santíssimo Sacramento. E ainda
os ministros do culto de ontem e hoje estão associados: “Há no Sacerdócio cristão,
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 247

como no da antiga Lei, uma hierarquia Sagrada, composta do Papa, dos Bispos,
Sacerdotes, Diáconos” (“Leis do culto divino”. In: Apontamentos dos preceitos da
divina lei..., p.210).
70  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Derradeira admoestação de Moisés,
sua morte”. In: Apontamentos dos preceitos da divina lei..., p.211-212.
71  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Os juízes”. In: Apontamentos dos pre-
ceitos da divina lei..., p.216.
72  A transcrição dos versículos (às vezes em latim e português, ou apenas numa
das duas línguas) não parece obedecer a uma sequência temática, o que se nota pela
ordem em que eles aparecem, ou pela distribuição dos parágrafos no interior do con-
junto. Julgo que isso se deve principalmente a uma visão integrada construída pelo
Conselheiro, em que os diversos assuntos se articulam. Apenas para efeito de clareza na
exposição é que separo os diversos temas que, a meu ver, orientam a seleção dos versí-
culos encontrados nessa parte do manuscrito.
73  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.236.239.
74  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.236.242.
75  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.238-239. A passagem citada é Romanos 5,20.
76  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.247. O manuscrito não indica a citação, que é Mateus 16,28.
77  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.239. Não se faz alusão explícita a qualquer passagem bíblica.
78  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.245.
79  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.243.
80  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.237-238.
81  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.236-237.
82  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.239. A citação apresentada é Mateus 22,37, que corresponde
ao versículo latino transcrito, relativo ao amor a Deus. Mas a tradução que vem
a seguir se prolonga até o v.39, incluindo a prescrição do amor ao próximo, e a
semelhança desta com a anterior.
83  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.244-245.
248

84  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos precei-
tos da divina lei..., p.244. Itamar Freitas de Oliveira afirma ter ouvido de Daniel
Fabrício, morador de Riachão do Dantas (Sergipe), que na passagem por essa
cidade, entre 1872 e 1874, o Conselheiro teria “aconselhado”, recorrendo “à
parábola ‘da passagem do camelo pelo fundo da agulha’”, um certo José de tal
(segundo outra fonte, Joaquim da Macota) a deixar seus bens e seguir rumo à
“terra prometida” (“No rastro de Conselheiro”. In: http://www.infonet.com.br/
canudos/roteiro.htm [09/03/03]). Ainda segundo Fabrício, este fazendeiro foi
um “rico que imitou Mateus”. Com certeza uma alusão ao apóstolo Mateus, que,
segundo o evangelho que leva seu nome (9,9-13), era um publicano, cobrador
de impostos, e largou seu ofício para seguir Jesus. Note-se que a passagem do
camelo é uma das favoritas do pe. Ibiapina (veja Luitgarde Oliveira Cavalcanti
Barros. A terra da mãe de Deus..., p.102).
85  O texto bíblico reza: “Quando deres algum jantar, ou alguma ceia, não
chames nem teus amigos nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos,
que forem ricos: para que não aconteça que também eles te convidem à sua vez
e te paguem com isso; mas, quando deres algum banquete, convida os pobres, os
aleijados, os coxos e os cegos: e serás bem-aventurado, porque esses não têm com
que te retribuir: mas ser-te-á isso retribuído na ressurreição dos justos” (Antonio
Vicente Mendes Maciel. “Sobre a parábola do semeador”. In: Tempestades que se le-
vantam no coração de Maria..., p.558-559. Editado em: Ataliba Nogueira. António
Conselheiro e Canudos..., p.185).
86  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.228.
87  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Apontamentos dos preceitos
da divina lei..., p.245.
88  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.7. Alexandre Otten,
contudo, sugere outro sentido para a presença deste versículo, agora na seção “Tex-
tos extraídos da Sagrada Escritura” do manuscrito de 1897: referir-se-ia aos inimi-
gos da religião, aos incrédulos, cuja obra terá duração passageira. Isso justificaria a
presença do mesmo versículo no sermão sobre a República (“Só Deus é grande”...,
p.245-246).
89  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos extraídos da Sagrada Escritura”.
In: Tempestades que se levantam no coração de Maria..., p.427-485. Editado em:
Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.157-167. Alexandre Otten
apresenta um rápido comentário a respeito (“Só Deus é grande”..., p.219-222).
90  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.221.222.
91  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos extraídos da Sagrada Escritura”.
In: Tempestades que se levantam no coração de Maria..., p.452. Editado em: Ataliba
Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.161.
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 249

92  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos extraídos da Sagrada Escritura”.


In: Tempestades que se levantam no coração de Maria..., p.457. Editado em: Ataliba
Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.162.
93  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos extraídos da Sagrada Escritura”.
In: Tempestades que se levantam no coração de Maria..., p.450. Editado em: Ataliba
Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.161.
94  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.284. “Sacudir o pó das sandálias” é
recomendação registrada em Lucas 10,11.
95  A possível existência deste documento é decorrente da hipótese, larga-
mente aceita, chamada “teoria das duas fontes”. Segundo ela o evangelho segundo
Marcos e “Q” serviram de base para a elaboração dos evangelhos segundo Mateus
e Lucas. Para maiores detalhes, Helmut Köster. Introducción al Nuevo Testamento.
Sígueme, Salamanca, 1988, p.546-548; Philipp Vielhauer. Historia de la literatura
cristiana primitiva. Sígueme, Salamanca, 1991, p.289-300. Sobre Q uma boa sín-
tese se encontra em Leif E. Vaage. “O cristianismo galileu e o evangelho radical de
Q”. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis, 1995. n.22,
p.84-108.
96  Gerd Theissen. “Radicalismo itinerante. Aspectos de sociologia da litera-
tura na transmissão de palavras de Jesus no cristianismo primitivo”. In: Sociologia
da cristandade primitiva. Sinodal, São Leopoldo, 1987, p.36-55. Sobre os caris-
máticos itinerantes, do mesmo autor, Sociologia do movimento de Jesus (Sinodal /
Vozes, São Leopoldo, 1989, p.16-22).
97  Eduardo Hoornaert. “Questões metodológicas sobre a igreja do Caldeirão
(heurística e hermenêutica)”. In: Anais do 1o Simpósio Internacional sobre o padre
Cícero..., p.93-95.103-107.
98  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Construção e edificação do templo de
Salomão”. In: Apontamentos da divina lei..., p.217-220; também in: Tempestades
que se levantam no coração de Maria..., p.531-536. Editado em: Ataliba Nogueira.
António Conselheiro e Canudos..., p.180-181 (citarei a partir dessa última versão).
Veja comentário de Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.226.
99  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Sobre o recebimento da chave da
Igreja de Santo Antonio, Padroeiro de Belo Monte”. In: Tempestades que se levan-
tam no coração de Maria..., p.537-553. Editado em: Ataliba Nogueira. António
Conselheiro e Canudos..., p.181-184. Quanto à inauguração da igreja, já tratei
de ela provavelmente ter ocorrido em 1896, e não em 1893, como se costuma
afirmar.
100  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Construção e edificação do templo
de Salomão”. In: Tempestades que se levantam no coração de Maria..., p.536. Editado
em: Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.181.
250

101  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Sobre o recebimento da chave da


Igreja de Santo Antonio, Padroeiro de Belo Monte”. In: Tempestades que se levan-
tam no coração de Maria..., p.541-542. Editado em: Ataliba Nogueira. António
Conselheiro e Canudos..., p.182.
102  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Construção e edificação do templo
de Salomão”. In: Tempestades que se levantam no coração de Maria..., p.536. Editado
em: Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.180-181. É interessante
notar como o texto da prédica vai além do que está no texto bíblico; neste Deus
diz a Salomão apenas o seguinte: “Ouvi a oração que me dirigiste. Consagrei esta
casa que construíste, nela colocando meu Nome para sempre; meus olhos e meu
coração aí estarão para sempre” (1 Rs 9,2-3). E continua tratando agora do próprio
Salomão. O texto da prédica mostra Deus acessível às orações do povo que se fize-
rem no lugar sagrado.
103  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Sobre o recebimento da chave da
Igreja de Santo Antonio, Padroeiro de Belo Monte”. In: Tempestades que se levan-
tam no coração de Maria..., p.551-552. Editado em: Ataliba Nogueira. António
Conselheiro e Canudos..., p.183-184. E se a inauguração da igreja de santo Antonio
se deu em 1896, ocorria quando as obras da nova igreja, que a guerra não permiti-
ria concluir, no minimo estavam por começar. O término de uma construção deve
motivar ainda mais a dedicação para levantar a outra.
104  As citações deste paragrafo são extraídas de Antonio Vicente Mendes Ma-
ciel. “Sobre o recebimento da chave da Igreja de Santo Antonio, Padroeiro de Belo
Monte”. In: Tempestades que se levantam no coração de Maria..., p.542.545.548.551.
Editado em: Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.182 e 183.
105  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.240-242.
106  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos extraídos da Sagrada Escritu-
ra”. In: Tempestades que se levantam no coração de Maria..., p.469-475. Editado em:
Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.164-165.
107  Trata-se, em particular, de memórias recolhidas por José Aras em
seu já citado Sangue de irmãos. A importância delas foi salientada por Vicente
Dobroruka (Antônio Conselheiro: o beato endiabrado de Canudos. Diadorim,
Rio de Janeiro, 1997, p.71-99), embora por um caminho diferente do que aqui
adoto.
108  José Aras. Sangue de irmãos..., p.25. Tomo esse “sermão” por exemplo,
já que os outros recolhidos por Aras são de teor semelhante. Já falei das suspeitas
que os testemunhos do escritor levantam. De toda forma, a hipótese é de que os
“sermões” que Aras recolhe possam conter pelo menos um núcleo que poderia ser
atribuído ao Conselheiro. Não se tomem os textos como transcrições exatas; são
evidentes os incisos do próprio Aras.
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 251

109  Não se entende muito a razão de D. Sebastião constar nesse cenário:


estaríamos diante de mais um dos ajustes redacionais de Aras? Outro indicativo
de uma elaboração por parte de Aras poderia ser o nome Jeová dado a Deus: em
nenhum outro lugar temos menção a este nome.
110  Euclides da Cunha. Diário de uma expedição. Companhia das Letras,
São Paulo, 2000, p.111.
111  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Despedida”. In: Tempestades que se le-
vantam no coração de Maria..., p.626-628. Editado em: Ataliba Nogueira. António
Conselheiro e Canudos..., p.197.
112  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos extraídos da Sagrada Escri-
tura”. In: Tempestades que se levantam no coração de Maria..., p.460. Editado em:
Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.162.
113  O artigo de Ismar de Oliveira Araújo Filho (“A adesão do clero ao movimento
conselheirista”. In: Revista Faeeba. Salvador, 1995. Número especial, p.83-90) trata ape-
nas do período anterior ao estabelecimento de Belo Monte. Vimos que, após a proclama-
ção da República, muitos padres incentivaram o Conselheiro a radicalizar sua oposição ao
novo regime, mas depois do episódio de Masseté cortaram qualquer vínculo com ele. As
exceções são o já conhecido padre Sabino, vigário do Cumbe, que frequentemente visita-
va o arraial e mantinha uma casa lá, e o espanhol Martinho Codizo Martinez, vigário de
Petrolina, acusado de fornecer armas aos conselheiristas.
114  Como diz o próprio frei, o Relatório é documento de missão que pôde
“apreender e denunciar a impostura e perversidade da seita fanática no próprio cen-
tro de suas operações” (Relatório..., p.7; destaque meu).
115  Desenvolvi com mais extensão o argumento que aqui se expõe em meu
livro Missão de guerra: capuchinhos no Belo Monte de Antonio Conselheiro. Edu-
fal, Maceió, 2014. Veja também Bartelt. Sertão, república e nação. Edusp. São Pau-
lo, 2009, p.116-121.
116  Essas anotações se encontram num caderno conservado no Arquivo do
Convento da Piedade em Salvador, onde o referido frei residiu durante muitos
anos. Neste caderno se conservam as memórias de todas as missões de que partici-
pou, bem como outras atividades e atribuições, como uma “série de conferências
sobre os erros modernos” (p.64) ou uma delegação do arcebispo soteropolitano
“para depor o padre Jose Antonio Moreira de Almeida” (p.65), ambas em 1896. O
relato sobre a missão ao Belo Monte se encontra às p.56-57 do referido caderno,
intitulado “Memórias de Frei João Evangelista de Monte Marciano Missionário
Apostólico Capuchinho, nascido em 1843, ordenado sacerdote em 1870 e chegado
na Bahia no dia 12 de outubro de 1872”.
117  José Calasans diz ter ouvido de um frei capuchinho que conhecera João
Evangelista que o Relatório fora redigido “pelo Monsenhor Basílio Pereira (1850-
252

1930), personalidade de relevo no clero baiano, escritor e orador conceituado,


irmão dos ilustres doutores Manuel Vitorino Pereira [então vice-presidente da Re-
pública] e Antônio Pacífico Pereira [...] Realmente, tudo nos leva a crer haver sido
de sua autoria o valioso documento, escrito em boa linguagem. O chefe da missão
não se distinguia pela clara redação” (José Calasans. “O relatório de frei João Evan-
gelista”. In: João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.7). Mais do que
do missionário, o relatório acaba por se tornar a palavra final da arquidiocese sobre
o arraial.
118  Pietro Vittorino Regni. Os capuchinhos na Bahia. Convento da Piedade
/ Escola Superior de Teologia S. Lourenço de Brindes, Salvador / Porto Alegre,
1991, p.115.
119  Talvez João Evangelista não fosse o missionário mais apropriado para
tão delicada missão, caso esta não tivesse o propósito de aguçar ainda mais os
ânimos. É verdade que ele era conhecido por sua franqueza e firmeza, mas
também pela rispidez: “o frade firmara-se como herói da história territorial da
Bahia. Melo Morais, pai, critica, porém, o frade italiano. Censura-lhe a ‘lin-
guagem estropiada, e muitas vezes cheia de trocadilhos obscenos’” (Abelardo
Montenegro. Fanáticos e cangaceiros..., p.136). Já no primeiro dia o frei dizia
que “ia abrir uma santa missão, e aconselhar o povo a dispersar-se e a voltar aos
lares e ao trabalho, no interesse de cada um e para o bem geral” (Relatório...,
p.4). No quarto dia se evidenciavam à gente do arraial os verdadeiros escopos
da missão, quando ouviu o frei falar da necessidade de submissão à república
recém-instalada e garantir que “a igreja católica não é nem será nunca solidária
com instrumentos de paixões e interesses particulares ou com perturbadores
da ordem pública” (p.6). A reação às exigências do missionário soou-lhe verda-
deiro desacato, levando-o a suspender a missão, apesar de apelos em contrário
do Conselheiro, e a amaldiçoar o arraial. Na redação do Relatório as tintas são
carregadas, e se indica claramente a solução para o impasse provocado por uma
“infeliz localidade” onde “não tem império a lei, e as liberdades públicas estão
grosseiramente coarctadas” (p.8).
120  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.7.
121  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.129.
122  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.325.
123  Roberto Pompeu de Toledo. “Caderneta de campo: viagem aos do-
mínios do Conselheiro”. In: Cadernos de literatura brasileira. São Paulo, 2002.
n.13/14, p.111.
124  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.4.
125  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.5.6.
126  Por secundária que seja, na argumentação do Relatório, a temática pro-
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 253

priamente religiosa, estranha ver como se possa afirmar que “a questão que levou o
Frei João Evangelista de Monte Marciano a Canudos foi a não aceitação ao regime
republicano e não qualquer problema ligado especificamente à esfera religiosa” (Jac-
queline Hermann. Histórias de Canudos: o embate cultural entre o litoral e o sertão
do século XIX. Dissertação de Mestrado, UFF, Niterói, 1990, p.161; destaque
meu).
127  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.4.
128  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.324.
129  Hugo Fragoso, “O apaziguamento do povo rebelado mediante as mis-
sões populares, nordeste do II império”. In: Severino Vicente da Silva (org.) A
Igreja e o controle social nos sertões nordestinos. Paulinas, São Paulo, 1988, p.10-53.
130  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.6.
131  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.4. A Pastoral coletiva
do episcopado brasileiro, publicada em 1890, afirma que “a Igreja é indiferente a
todas as formas de governo. Ela pensa que todas podem fazer a felicidade geral dos
povos, contanto que estes e os que os governam não desprezam a Religião” (veja
texto em: Anna Maria Moog Rodrigues (org.) A Igreja na República. Universidade
de Brasília, 1981, p.54). Isto é o dito. Quanto à prática, veja Oscar de Figueiredo
Lustosa. A igreja católica no Brasil república. Paulinas, São Paulo, 1991, p.21-30.
O autor cita como exemplar, na nota 20 da p.25, o caso do arcebispo do Rio de
Janeiro, que exigia o direito de, como cidadão, permanecer monarquista.
132  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.7.8.
133  Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros..., p.138.
134  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.6.
135  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.8.
136  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.7.
137  Hugo Fragoso. “O apaziguamento do povo rebelado...”, p.29-52.
138  Bartelt tem páginas interessantes sobre o processo de configuração do
Conselheiro como herege, por parte das autoridades eclesiásticas (Sertão, república
e nação. Edusp, São Paulo, 2009, p.99-102).
139  Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros..., p.138.
140  Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.98.
141  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.324.
142  Lizir Arcanjo Alves. Humor e sátira na guerra de Canudos. Secretaria de
Cultura e Turismo do Estado da Bahia / Empresa Gráfica da Bahia, Salvador, 1997,
p.28.
143  Edmundo Moniz. Canudos: a guerra social..., p.55.
144  Já se falou do mapa da vila feito por frei João para apoio às ações mili-
tares.
254

145  Veja a carta do padre Vicente Martins, de 22/1/1896, ao barão de Jeremo-


abo, lamentando “o procedimento do governo que temos depois que lhe foi entregue
pelo meu exímio prelado o Exmo. Sr. D. Jerônimo, o Relatório da Santa Missão dos
Canudos. Que providências tomou o Sr. Rodrigues Lima? Nenhuma importância
ligou ao Relatório” (Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos: cartas para o barão.
Edusp, São Paulo, 1999, p.114.
146  Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.85.
147  Texto de 07/07/1895, citado por Cândido da Costa e Silva. “O peregri-
no entre os pastores”..., p.229-230.
148  Texto de 06/05/1897, citado por Cândido da Costa e Silva. “O peregri-
no entre os pastores”..., p.229.
149  Carta pastoral comemorativa do centenário da independência do Bra-
sil, citada por Damião Duque de Farias. Em defesa da ordem: aspectos da práxis
conservadora católica no meio operário em São Paulo (1930-1945). Hucitec, São
Paulo, 1998, p.94.
150  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.327.
151  O tempo de permanência de Euclides no palco da guerra é controver-
tido, por haver imprecisões quanto à datação das reportagens. O Diário indica o
dia 10 de setembro como dia da sua chegada ao arraial, mas o apresenta, no dia
11, ainda em Monte Santo (Diário de uma expedição..., p.173-174). Se se leva em
conta que a última reportagem é datada de 01 de outubro, quatro dias antes do
término da guerra, pode-se pensar que ele não tenha passado em Belo Monte mais
que quinze dias. Para detalhes, Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra...,
p.246-265.
152  Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.66. A propósito desta
passagem, comenta Luiz Costa Lima: “A palavra ‘milagre’... não parece um auto-
matismo que houvesse deslizado da mão de um ateu, mas sim indício do tipo de
crença que o autor mantinha, no caso quanto ao fundamento da República” (Eu-
clides da Cunha: contrastes e confrontos do Brasil. Contraponto / Petrobrás, Rio
de Janeiro, 2000, p.14).
153  Euclides da Cunha. “A nossa Vendeia” (1). In: Diário de uma expedi-
ção..., p.51.
154  Euclides da Cunha. “A nossa Vendeia” (2). In: Diário de uma expedi-
ção..., p.58 (destaques do autor).
155  Euclides da Cunha. “A nossa Vendeia” (1). In: Diário de uma expedi-
ção..., p.52.
156  Euclides da Cunha. “A nossa Vendeia” (1). In: Diário de uma expedi-
ção..., p.51 (destaques de Euclides). E se em Os sertões Euclides irá num momento
negar o caráter de foco monarquista sistematicamente conferido ao arraial conse-
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 255

lheirista, que lhe justificara a comparação com a vila francesa, nem por isso a alusão
a esta será abandonada, e isso por conta da semelhança que o escritor encontra no
terreno das convicções religiosas, raiz do monarquismo atrasado lá e cá: “Canudos
era a nossa Vendeia. O chouan e as charnecas, emparelham-se bem com o jagunço
e as caatingas. O mesmo misticismo, gênese da mesma aspiração política...” (Os
sertões...., p.365).
157  Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.91 (grifo do autor). Por
outro lado, o líder de Belo Monte, “espécie bizarra de grande homem pelo avesso,
tem o grande valor de sintetizar admiravelmente todos os elementos negativos,
todos os agentes de redução de nosso povo” (p.89). As linhas seguintes mostrarão
Euclides tratando de “demitizar” a interpretação teológica que o Conselheiro faria
de si mesmo. E mesmo quando algumas dúvidas já se tiverem instalado no interior
das certezas do escritor, sua percepção do Conselheiro não se modificará: trata-se
de um “evangelizador fatal e sinistro que os arrastou [os sertanejos] a uma desgraça
incalculável” (p.187).
158  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.302.
159  Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.174-182.
160  A derrota nesse combate exigiu do general Artur Oscar, praticamente
confessando seu malogro nesta circunstância, pedir um reforço de cinco mil solda-
dos, o que repercutiu muito mal nos ambientes do Rio e São Paulo. Uma descri-
ção deste combate pode ser lida em Edmundo Moniz. Canudos: a guerra social...,
p.191-200. Como se vê, a chegada de Euclides a Belo Monte possibilita-lhe, mais
uma vez, buscar satisfazer a opinião pública, incomodada com a inexplicável de-
mora na eliminação do “incompreensível e bárbaro inimigo” (Euclides da Cunha.
Diário de uma expedição..., p.199).
161  Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.178.
162  Jerusalém também era apresentada, em textos proféticos, na perspectiva
da restauração do povo; mas não é nesta perspectiva que a cidade santa ganha es-
paço nas páginas das reportagens de Euclides, muito pelo contrário. A que importa
é outra, aquela dos terríveis vaticínios proféticos, expressões dos desígnios divinos,
como o seguinte, da profecia de Miquéias: “Ouvi isto, príncipes da casa de Jacó,
e juízes da casa de Israel [...] por vossa causa será lavrada Sião como um campo, e
Jerusalém será reduzida a um montão de pedras, e o monte do templo a umas altas
reboleiras de bosques” (3,9.12).
163  Para a qualificação dos soldados como mártires veja Euclides da Cunha.
Diário de uma expedição..., p.69.
164  Francisco Foot Hardman. “Brutalidade antiga: sobre história e ruína em
Euclides”. In: Estudos Avançados. São Paulo, 1996. n.26, p.294.
165  Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.178.
256

166  Essa é uma percepção que apenas recentemente a pesquisa exegética bus-
cou desenvolver (Ched Myers. O evangelho de são Marcos. Paulus, São Paulo, 1992,
p.237-241; John D. Crossan. O Jesus histórico. A vida de um camponês judeu do
Mediterrâneo. 2 ed., Imago, Rio de Janeiro, 1994, p.350-355).
167  Aliás, esta não é a primeira vez que Euclides aproxima os sertanejos dos
demônios: na reportagem de 20 de agosto, ainda na capital da Bahia, menciona
a “perversidade satânica” dos jagunços (Diário de uma expedição..., p.115). No
entanto, aqui é o substantivo que caracteriza os sertanejos rebeldes. Não mereceu
imagem semelhante o exército em qualquer das descrições de ataques por este
realizados. Por outro lado, cabe fazer aqui referência à “Legio Fulminata de João
Abade”, que encontraremos em Os sertões (p.403). A expressão latina, que Eucli-
des deve provavelmente a Ernst Renan (autor com quem logo nos depararemos),
refere-se a um fator providencial, tido por obra do sobrenatural (ao contrário do
que propõem Célia Mariana F. F. da Silva e Manoel Roberto F. da Silva, em en-
saio sobre a questão: “Esclarecendo o texto: ‘A Legio Fulminata de João Abade’”.
In: Gazeta do Rio Pardo [Suplemento Euclidiano]. São José do Rio Pardo, agosto
de 1987).
168  Euclides da Cunha. Diário de uma expedição..., p.140. Já no começo
das reportagens aparecia, quase perdido em meio a tantos elogios ao exército, a
necessidade do “mestre-escola” para civilizar os sertanejos (p.92). Mas no fim da
estadia em Belo Monte, parece que Euclides se mostra mais sensível ao drama do
outro, praticamente eliminado. E praticamente pede licença aos leitores da capital
paulista para expressar sua admiração pela bravura dos que anteriormente caracte-
rizara como portadores de uma “perversidade satânica”. Parece até antecipar aquela
decepção com o massacre que vê e com as atitudes do exército republicano que se
manifestará mais tarde em Os sertões, embora sem dúvida de que é a República que
deve triunfar, e de que não há espaço para o que Belo Monte representa: “Sejamos
justos – há alguma coisa de grande e solene nesta coragem estoica e incoercível, no
heroísmo soberano e forte dos nossos rudes patrícios transviados e cada vez mais
acredito que a mais bela vitória, a conquista real consistirá no incorporá-los, ama-
nhã, em breve, definitivamente, à nossa existência política” (p.208).
169  Também na reportagem de 1o de setembro (Diário de uma expedição...,
p.140) os sertanejos rebeldes são chamados “rudes patrícios”.
170  Nicolau Sevcenko. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cul-
tural na Primeira República. 4 ed., Brasiliense, São Paulo, 1999, p.145.
171  Esta é a primeira estrofe do soneto “Página vazia”, datado de 14/10/1897
(Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo, 2002. n.13/14, p.160-161).
172  “Não tive o intuito de defender os sertanejos porque este livro não é um
livro de defesa; é, infelizmente, de ataque” (Euclides da Cunha. Os sertões..., p.784).
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 257

173  Alfredo Bosi. Literatura e resistência. Companhia das Letras, São Paulo,
2002, p.213. Para a contextualização dessa “esquizofrenia” da obra de Euclides,
pode-se ler Valentim A. Facioli. Euclides da Cunha: a gênese da forma. Tese de
doutoramento, São Paulo, 1990, p.97-114.
174  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.252.
175  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.275.
176  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.274.
177  Quanto ao milenarismo (ou quiliasmo), é conveniente precisar o sen-
tido do termo. Ele vem de uma passagem do livro do Apocalipse (20,1-6), e diz
respeito à “crença num reino terrestre vindouro de Cristo e de seus eleitos – reino
este que deve durar mil anos, entendidos seja literalmente, seja simbolicamente”;
trata-se de uma “espera de um reino deste mundo, reino que seria uma espécie de
paraíso terrestre reencontrado” (Jean Delumeau. Mil anos de felicidade: uma histó-
ria do paraíso. Companhia das Letras, São Paulo, 1997, p.17-18; veja Pedro Lima
Vasconcellos. “A vitória da vida: milênio e reinado em Apocalipse 20,1-10”. In: Re-
vista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis, 1999. n.34, p.79-92).
Esperança essa alimentada por “movimentos sociais que procuram uma mudança
radical e maciça de acordo com um plano divino predeterminado. Seus membros
rejeitam, em geral, a ordem social vigente e dela se afastam” (Robert Levine. O
sertão prometido..., p.29), pois “agora mesmo o mundo estava se aproximando, por
meio de incessantes conflitos, de um estado sem nenhum conflito. Chegaria um
momento em que, em uma prodigiosa batalha final, o deus supremo e seus aliados
derrotariam as forças do caos e seus aliados humanos, aniquilando-os de uma vez
por todas. A partir de então, a ordem divinamente estabelecida estaria presente
de maneira absoluta; as necessidades e as misérias físicas seriam desconhecidas... a
ordem do mundo jamais voltaria a ser perturbada ou ameaçada” (Norman Cohn.
Caos, cosmo e o mundo que virá: a origem das crenças no Apocalipse. Companhia
das Letras, São Paulo, 1996, p.296). A ação divina transformará o cosmos e o
recriará de forma a se superarem os dramas presentes. O tempo novo integra um
plano divino previamente estabelecido e de cuja revelação e conhecimento vivem
os milenaristas, pois representará a salvação deles e a destruição dos pecadores, os
responsáveis pelo atual estado de coisas (Vittorio Lanternari. “Milênio”. In: Enci-
clopédia Einaudi. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994, s/l, v.30 (Religião
– Rito), p. 303-324).
178  A redação das profecias se distingue radicalmente da escrita das prédicas,
normalmente escritas com correção. Basta ver os textos analisados nas duas primei-
ras partes deste capítulo para verificá-lo. Quanto ao teor dos textos sertanejos, pelo
que busquei mostrar a perspectiva milenarista passa longe. Mas ainda voltarei ao
assunto.
258

179  Robert Levine. O sertão prometido..., p. 331-332 (a expressão citada é de


Norman Cohn).
180  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.299.
181  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.592. As considerações a seguir de-
vo-as a Flávio Aguiar, que gentilmente me cedeu cópia de seu artigo “A volta da
serpente. Um estudo sobre Os sertões, de Euclides da Cunha”.
182  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.592. As citações bíblicas em que as in-
vectivas contra Edom aparecem de forma mais categórica são o Sl 137 e a profecia
de Abdias, bem como Is 34. Nestes casos o contexto é o da colaboração edomita
para a destruição de Jerusalém pelos babilônios.
183  Flávio Aguiar. “A volta da serpente...”
184  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.714-715.
185  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.717.
186  Berthold Zilly. “A guerra como painel e espetáculo. A história encenada
em Os sertões”. In: História, ciências, saúde. Rio de Janeiro, 1998. v.5, p.29.
187  Expressões de Berthold Zilly (“A guerra como painel e espetáculo...”,
p.29). Na mesma página ele afirma: “Quando [Euclides] evoca o que acontece com
a cortina sobre o teatro da guerra, com essa ‘imprimadura, sem relevos, do fumo’
sentimos um calafrio que sobe das profundezas de nossa cultura e emotividade...”
188  Cabe notar que a alusão a tais fenômenos, como as trevas surgidas em
pleno dia e o rasgo do véu do templo, não é feita no evangelho segundo João, o
que acentua ainda mais seu caráter retórico. O contraponto que melhor evidencia
a densidade da narrativa oferece-nos o próprio Euclides, na reportagem relativa ao
mesmo dia 24 de setembro, quando fala de alguns prisioneiros (entre eles “uma
velha com a feição típica de raposa assustada”) e combates; a abertura sumaria o
sentido do que descreverá: “Completo ontem o cerco de Canudos, a luta correrá
vertiginosamente, agora. Os sucessos de hoje o indicam” (Diário de uma expedi-
ção..., p.182). Nem por um momento terá recordado qualquer sexta-feira da pai-
xão... E outro narrador, referindo-se ao mesmo momento, apresenta os prisioneiros
como “infelizes, bestializados pelo fanatismo com que cavaram a sua própria ruína”
(Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos. Jornal do Recife, 1912, p.252).
Sucessos do Exército, eis o que interessava mostrar, ou então a insanidade da gente
belomontense.
189  Carta ao crítico literário Araripe Junior, de 30/03/1903. In: Walnice
Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti (org.) Correspondência de Euclides da Cunha.
Edusp, São Paulo, 1997, p.159. Os artigos do militar José Maria Moreira Guima-
rães, publicados em inícios de 1903, externam esse incômodo, e a estranheza frente
às palavras desabonadoras frente à ação do Exército nos sertões baianos (veja textos
em José Leonardo do Nascimento e Valentim Facioli (org.) Juízos críticos: Os sertões
INSCRIÇÕES DA BÍBLIA EM BELO MONTE E AO SEU REDOR 259

e os olhares de sua época. Nankim / Unesp, São Paulo, 2003, p.87-101). O próprio
Araripe manifesta seu desacordo: este “imputou talvez maior importância do que
devia a esse despeitado da vida [Antonio Conselheiro]” (“Os sertões [Campanha de
Canudos por Euclides da Cunha]”. In: José Leonardo do Nascimento e Valentim
Facioli [org.] Juízos críticos..., p.65).
190  “Ao cobrir a guerra de Canudos, Euclides silenciou sobre o horror da
guerra. Deixou-se cegar pela máquina de propaganda da imprensa e do governo”
(Roberto Ventura. “Euclides da Cunha e a república”. In: Estudos avançados. São
Paulo, 1996. n.26, p.285).
191  Adilson Odair Citelli. “No mundo dos homens, na ordem de Deus”. In:
Benjamin Abdala Jr. e Isabel Alexandre (org.). Canudos: palavra de Deus, sonho da
terra..., p.73. A proposta que aí se faz, de comparação com o perfil do Conselheiro de-
senhado por Afonso Arinos em Os jagunços (como se sabe, um romance sobre a saga de
Antonio Conselheiro e seu Belo Monte, publicado em 1898), é ilustrativa para nossos
propósitos de destacar o caráter de construção da figura delineada por Euclides; pois
“estamos diante de duas imagens da personagem histórica sendo retrabalhadas segundo
visões de mundo que não se escondem por trás do ‘discurso da neutralidade’” (p.76).
192  Regina Zilberman. “Euclides e os outros”. In: Rinaldo de Fernandes
(org.) O clarim e a oração. Geração, São Paulo, 2002, p.410. Anteriormente Zilber-
man afirmara que Euclides “acaba por introjetar um modo [...] mágico de interpre-
tar os acontecimentos, modo esse que irrompe em meio ao discurso cientificista e
acadêmico que escolhe para descrever o processo ocorrido em Canudos” (p.408).
No tocante aos vínculos com a filosofia de August Comte, “desconhecida, mas
indubitável, foi a influência” desta “na formação de Euclides da Cunha” (Ivan Lins.
História do positivismo no Brasil. 2 ed., Companhia Editora Nacional, São Paulo,
1967, p.503). Mas parece que a influência do evolucionismo spenceriano na es-
crita de Os sertões, é maior (Clóvis Moura. Introdução ao pensamento de Euclides da
Cunha. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1964, p.28-33; Miguel Reale. Face
oculta de Euclides da Cunha. Topbooks, Rio de Janeiro, 1993, p.46-47). Por outro
lado, não é só na percepção fatalista e teleológica da história que religião e positivis-
mo se encontrarão nos primeiros anos da República (veja Roberto Romano. Brasil:
Igreja contra Estado. Kairós, São Paulo, 1979, p.118-139).
193  Walnice Nogueira Galvão. Gatos de outro saco..., p.95.
194  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.320.
195  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.499. Euclides aliava à “crença de que
tudo é previsível e controlável pela ciência” um “humanitarismo tendente à salvação
das camadas inferiores da sociedade pela educação positiva” (Milton Vargas. “Eucli-
des da Cunha e a poesia”, citado por Ivan Lins. História do positivismo no Brasil...,
p.510).
IV
ENCONTROS E DESENCONTROS,
CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS
262

Praza aos céus que abundantes frutos


produzam os conselhos que tendes ouvido.

(Antonio Conselheiro)

Canudos deixará de ser o reduto


da exploração e da ignorância do fanatismo,
levantando-se ali bem alta a vitória
das armas nacionais.

(Luiz Viana, governador da Bahia)


ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 263

Terra da promissão e arraial maldito, local para busca da salvação e seita polí-
tico-religiosa; com um líder ao mesmo tempo evangelizador sinistro e portador de
lenitivos, inimigo da autoridade sacerdotal e simples peregrino. O capítulo anterior
mostrou como as palavras que interpretaram Belo Monte e Antonio Conselheiro
foram divergentes, antagônicas mesmo, embora tantas vezes alimentadas da mesma
Bíblia judaico-cristã. O momento agora é de evidenciar contrastes e proximidades,
trazendo à tona outros aspectos da história da vida e morte do vilarejo conselhei-
rista. Eles revelarão com maior clareza de que maneira os registros recuperados e
comentados no capítulo anterior configuraram os diversos posicionamentos que se
chocaram à beira do Vaza-barris e culminaram num dos eventos mais marcantes da
violenta história de nosso país. Se até aqui enfatizei a inscrição variada e conflitiva
dos textos bíblicos pelos diversos sujeitos envolvidos na história de Belo Monte,
cabe agora salientar o que Carlo Ginzburg chamou de “redes interpretativas”, ou
seja, aquele conjunto de referências sócio-culturais interpostas entre os textos e seus
receptores, que inclusive determinou as formas com que eles foram apropriados.
Com isso será possível perceber as continuidades e descontinuidades entre
o projeto do Conselheiro e o de sua gente; relações semelhantes serão notadas
entre o projeto da Igreja Católica na Bahia (e no Brasil) e aquele da República
modernizante, representado (apesar de tantas ressalvas e críticas) por Euclides da
Cunha. Finalmente, concentrarei minha atenção numa página do manuscrito de
1895, aquele inédito; ela é reveladora, e de alguma maneira síntese do caminho
percorrido neste livro.
264

1. OS OLHARES, OS LUGARES
Assim, cabe nesse momento perguntar pelos universos de referências que per-
mitiram as diversificadas apropriações da Bíblia constatadas no capítulo anterior.
Para tanto, passarei por cada um dos quatro sujeitos que já mereceram nossa aten-
ção, agora em busca das estruturas de pensamento e de visão subjacentes a seus
olhares sobre Belo Monte e o Conselheiro.

A terra da promissão, os agentes do Anti-


cristo e o fim
É pelo trabalho de Roger Bastide, de um lado, e pelo de Hilário Franco Júnior,
de outro, que temos acesso a um universo cultural surpreendente, capaz de permitir
a densidade e a especificidade da inscrição, no mundo sertanejo, do mito da terra
prometida consignado nas histórias bíblicas sobre Moisés e os hebreus saídos do
Egito. É do sociólogo francês o seguinte parágrafo, altamente sugestivo:

O vaqueiro, acuado pela miséria, diante de uma terra ressequida pelo sol, de ossadas
de animais e de cadáveres que a morte semeou, de plantas que se transformaram em
coroas de espinhos ou em cravos, lanhando-o nos pés e nas mãos, renovando-lhe na
carne o suplício da cruz, sonha com uma terra abundantemente cortada de regatos,
adornada de eterna vegetação, ofertando doces frutos. Retoma por sua conta, e
mistura-os, o mito da “Terra sem Males” do antepassado índio e a história do povo
de Israel saindo do Egito em busca da “Terra da Promissão”, que é o mito do ante-
passado português. Daí toda uma série de movimentos místicos e fanáticos, que são
apenas o reflexo desta angústia diante da fome [...] movimentos que manifestam,
em sua continuidade, a degradação dos elementos indígenas, preponderantes nas
formas mais antigas como a pajelança, e sua substituição cada vez mais patente pelas
formas cristãs e ocidentais.1

Infelizmente Bastide insere suas considerações sobre a religiosidade sertaneja no qua-


dro do que chama “fanatismo religioso”, o que se evidencia na última parte da citação
acima. E ao confiar em demasia na narrativa euclidiana, acaba por não conseguir perceber
como Belo Monte materializa a articulação entre as duas Terras, a bíblica e a indígena,
que tão bem sintetiza a cosmovisão da gente que se fixou à beira do Vaza-barris com o
Conselheiro e que explica admiravelmente o sentido que a vila possuía para ela.2 Mas é no
interior desse quadro que se deve entender a expressão “terra da promissão, onde corre um
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 265

rio de leite, e são de cuscuz de milho os barrancos”, ouvida por frei João Evangelista para
caracterizar o Belo Monte e a atração que exerceu sobre tanta gente.
A sugestão de Bastide, que ele não levou às últimas consequências, se associa
de forma fascinante às observações de Hilário Franco Júnior sobre a presença e
permanência, no sertão nordestino, do mito medieval da Cocanha.3 Como se sabe,
este era o nome de uma “terra imaginária, maravilhosa, uma inversão da realidade
vivida, um sonho que projeta no futuro”.4 Trata-se de um mito elaborado por
escrito pela primeira vez na França do século XIII e foi várias vezes reelaborado,
chegando até o sertão nordestino brasileiro, onde se encontrou uma manifestação
sua em pleno século XX. Embora o estudioso tenha feito apenas uma alusão à vila
do Conselheiro, afirmando que a sua saga e a presença do referido mito no sertão
se devem ao mesmo “contexto sociopsicológico”5, parece possível dizer mais. A
proximidade entre a versão nordestina da Cocanha e a experiência de Belo Monte
por seus habitantes se justifica pelo fato de tanto uma como outra recriarem a terra
prometida bíblica, a que Moisés conduziu o povo hebreu em êxodo do Egito. Com
efeito, não é com outros termos que a mítica terra de são Saruê é descrita:

lá existem tudo quanto é de beleza


tudo quanto é bom, belo e bonito,
parece um lugar santo e bendito
ou um jardim da Divina Natureza:
imita muito bem pela grandeza
a terra da antiga promissão
para onde Moisés e Aarão
conduziam o povo de Israel,
onde dizem que corria leite e mel
e caía manjar do céu no chão.6

A presença dos mitos bíblicos não é notada por Hilário Franco, que assim deixa
de considerar o intercâmbio de que ambas as tradições se terão enriquecido.7 A leitura
do cordel permite perceber até o lugar especial ocupado pelo milho, capaz, por meio do
cuscuz feito dele, de forrar os barrancos de Belo Monte, como já se viu; na mítica terra
de São Saruê, “milho, espiga é pamonha / e o pendão é pipoca”.8 Da mesma forma, o
leite, que no mito bíblico manava, junto com o mel, da terra prometida, converte-se
em rio, tanto no sertão de Belo Monte como no imaginado pelo cordelista:

lá [em São Saruê] eu vi rios de leite


barreiras de carne assada
lagoa de mel de abelhas
266

atoleiros de coalhada
açudes de vinho quinado
montes de carne guisada.9
Outra aproximação sugestiva entre o que se propalava a respeito de Belo Monte
e as histórias de Cocanha diz respeito ao fato de que tanto num lugar como noutro
“não era preciso trabalhar”.10 Com efeito, em reelaborações do mito de Cocanha e
em testemunhos aproximados se falava de uma vida “sem se cansar”.11 E na Santi-
dade conhecida de Nóbrega o profeta indígena, tido por feiticeiro, exortava os seus
“que não curem de trabalhar, nem vão à roça, que o mantimento por si crescerá, e
que nunca lhes faltará o que comer... as enxadas irão a cavar”.12 E se Le Goff tem
razão ao propor que a “exaltação do far niente” encontrada nas histórias medievais da
Cocanha expressa a negação dos rumos “capitalistas” que as coisas estão tomando13,
poderíamos entender o far niente sertanejo como protesto contra a ordem fundiária e
semi-escrava secularmente implantada, e que a República veio agravar?
Poder-se-ia avançar muito nestas sendas, mas bastam essas sugestões, inclusive
para que se perceba como estamos longe daquele “cristianismo de penitência e de
apocalipse” que Bastide, fiando-se em Euclides, atribui ao Belo Monte como ca-
racterística principal.14 O que não significa que a vertente apocalíptica não se faça
presente, como se pode verificar. Mas ela predomina no contexto da guerra, e nem
de longe esgota o significado que Belo Monte tinha para seus habitantes. No caso
do Conselheiro, verificamos que essa perspectiva marcou sua percepção das coisas
principalmente quando dos eventos e conflitos em torno do embate de Masseté,
mas não se fez presente nos textos lidos nos manuscritos redigidos já em Belo Mon-
te, em 1895 e 1897, este último elaborado já em contexto de guerra.
Efetivamente a religiosidade sertaneja é permeada do apocalíptico, algo que já
vem de séculos e configura aquilo que foi chamado apropriadamente de “cultura
do fim do mundo”.15 Ela instaura

uma dinâmica histórica nova, onde, por um lado, os mitos cosmológicos-apoca-


lípticos (o fim do mundo, o dilúvio, o Juízo Final) são parâmetros de leitura do
mundo e da história, e, por outro lado, os rituais e os agentes do sagrado são instru-
mentos de intervenção na e de modificação da realidade.16

Textos de vários lugares e épocas evidenciam a relevância desta perspectiva es-


catológica no sertão, associada com situações de seca, guerra e calamidade, além de
ser tema preferencial nas missões e pregações do clero.17 Para além das afirmações
sobre o fim do mundo, há que se considerar que essa apocalíptica é decisiva para
a compreensão do entorno, bem como da condenação que este proclama sobre o
lugar dos eleitos. Os conflitos e a guerra só aguçarão essa percepção das coisas:
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 267

Talvez a motivação histórica dessa absolutização, ou radicalização, da experiência


liminar esteja na consciência da condenação pela sociedade envolvente [...] e, de-
pois, na hostilidade aberta [...] São os primeiros ataques da polícia ou, de qualquer
maneira, os boatos sobre sua iminência [...] o momento de “perda do mundo” e de
total reviravolta da dimensão do resgate, com a anulação da história e o triunfo da
meta-história.

E a autora acrescenta: a violência sertaneja, bem como a surpreendente resis-


tência até o fim, se insere aí num quadro de “ruptura radical, sem retorno, com a
velha ordem. Ela adquire os traços apocalípticos do Juízo Final: a morte como uma
modalidade de ‘aproveitar a alma’”.18
Também nos detalhes vemos a gente de Belo Monte compartilhar com outras co-
munidades sertanejas as inscrições de determinados temas bíblicos, apropriados em chave
apocalíptica. Pelo que se sabe, a história do dilúvio era contada particularmente em con-
textos em que se pretendia alertar para imoralidades e desonestidades.19 Nesse ambiente,
não estranha encontrar Belo Monte qualificado como a “barquinha de Noel”, livre da
corrupção do regime republicano. Aliás, é interessante notar as semelhanças entre o que
diz Ezequiel, na carta que apresentada no capítulo anterior e as memórias relativas ao pe.
Cícero, inclusive no tocante à paciência de Deus que, ao mesmo tempo em que apressa
o fim, quer a conversão de todas as pessoas.20 Assim, se a perspectiva do fim próximo não
explica a razão de ser do Belo Monte, certamente faz sentido (e muito) no ambiente dos
combates, ao estimular a admirável resistência às tropas do Anticristo. Alimentada de uma
apocalíptica que é mais do que anúncio da iminência do fim, a cosmovisão da gente de
Belo Monte, além de não se reduzir aos termos e preocupações básicas de Antonio Con-
selheiro, sustentou praticamente até o término das lutas e a mortandade geral a esperança
de refazer a terra da promissão e livrá-la dos inimigos. Fora disso, não havia senão esperar
o fim, a vingança definitiva dos céus: a salvação, esta os inimigos não poderiam destruir.

O amor de Deus e sua salvação

Se passamos à experiência do Conselheiro, cabe considerá-la a partir de pelo me-


nos duas referências: o universo sertanejo popular, do qual ele surge, mas se destaca,
ao ter acesso às letras e aos livros; e a cultura que chamaríamos “eclesiástica”, repre-
sentada aqui pelos livros Missão abreviada, do padre Manoel José Gonçalves Couto,
e o Compêndio narrativo do peregrino da América, de Nuno Marques Pereira. Se do
primeiro livro já se sabia ser de uso do Conselheiro, do segundo apenas a leitura dos
manuscritos permite concluir que também compunha o repertório das suas leituras.
268

É curioso notar de que forma ele, ao transitar por esses dois universos distintos, dis-
tingue-se de ambos; mas se apropria dos saberes e fazeres eclesiásticos e os recria nas
condições, nas conjunturas e na interação vividas com a gente que faz o seu séquito.
Por outro lado, em relação ao forte teor apocalíptico que desde Euclides da
Cunha vem sendo insistentemente atribuído à proclamação do Conselheiro em
Belo Monte, é preciso dizer deve-se dizer que essa ênfase é exagerada, e revela
um descuido na leitura dos materiais encontrados nos cadernos de 1895 e 1897,
quando não sua total ignorância. É bem verdade que diversos testemunhos, parti-
cularmente os de José Aras, dão conta de proclamações retumbantes, sobre fim de
mundo, batalhas escatológicas, etc. Mas eles todos são anteriores a Belo Monte; a
atribuição ao Conselheiro da “Profecia” sobre o fim dos tempos na virada do século
é mais um dos equívocos da obra euclidiana.
A observação dos manuscritos traz à tona um procedimento hermenêutico con-
vencional no tocante aos textos bíblicos: a já mencionada leitura tipológica. Não há
maiores novidades se se considera a tradição da pregação católica até então. Antonio
Conselheiro se mostra conhecedor dos elementos básicos do catecismo católico, bem
como do suporte bíblico que estes recebiam. Não deve surpreender que ele incentive
reconhecer a grande obra realizada por Jesus e perpetuada pela Igreja Católica, na fi-
gura de seus representantes hierárquicos e dos sacramentos que disponibilizam, bem
como das atribuições do clero em relação a eles; o que chama a atenção é verificar
como uma reflexão construída com os procedimentos hermenêuticos convencionais,
cujos resultados não destoam substantivamente dos dogmas e concepções católicas
de então não lhe venha a impedir o confronto com as autoridades eclesiásticas, quan-
do necessário. Pelo contrário: é em nome da Igreja e da fidelidade à doutrina que ele
se levantará contra “os padres falsos” e contra o que consideraria apropriação indevida
de funções: a monopolização da palavra por parte do clero.
Maior cuidado exige o esforço de estabelecer em bases mais consistentes as
relações entre os conteúdos dos cadernos de 1895 e 1897 e os livros aos quais teve
acesso e dos quais fez importante uso. Sabe-se, inicialmente, que a Missão abrevia-
da, de larguíssima difusão no Nordeste da segunda metade do século XIX, era, nas
palavras de Honório Vilanova, “o livro do Peregrino”,

onde muito se fala da morte, do inferno, do céu, do juízo final, dos açoites e espi-
nhos e da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Os frades pregadores daquele tempo
conduziam sempre este livro, que de tão cru, nas palavras, fechava sem piedade as
portas do céu. Também o Peregrino amava esse livro e varava o dia e a noite lendo
ou copiando as Meditações e os Exemplos dos Santos. Quando a mão do Peregrino
estava cansada, escrevia por ele Leão de Natuba, que tinha boa caligrafia e era muito
devoto.21
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 269

Que a Missão abreviada serviu de fonte para as prédicas conhecidas, não há


dúvidas: “o beato tirou deste livro muitos subsídios para as prédicas que se referem
aos mandamentos.”. No entanto, não se trata de simples cópia:

Há outros fragmentos em que o beato reelabora os elementos que o sermonário lhe


oferece. É preciso verificar que, mesmo as passagens transcritas, ele não as reproduz
sem qualquer alteração, mas resume alguns trechos, muda a ordem dos elementos,
altera determinadas construções, atenua algumas expressões, adapta o vocabulário,
acrescenta ou suprime períodos. Em síntese, poderíamos dizer que ele adapta as
instruções de Missão abreviada para um público específico.22

Essa observação é fundamental, mas insuficiente. Ela permite estabelecer uma


distinção entre a Missão abreviada e as formas de sua apropriação pelo Conselheiro.
O uso dela era seletivo, não servil. Mas justamente aí, no alterar de construções,
no atenuar expressões, no resumir uns trechos e eliminar outros, é possível vis-
lumbrar acentos diferenciados, perspectivas próprias, não redutíveis, no todo ou
em parte, às pretensões expressas em Missão abreviada? É enganoso simplesmente
situar ambos os escritos sob o genérico “ideologia da Igreja Católica”.23 Justamente
a criatividade no uso desta fonte, deve fazer pensar na originalidade que daí pode
advir. A conclusão seguinte é acertada:

Mesmo admitindo como verdadeiros os testemunhos que falam de trechos da Mis-


são Abreviada usados pelo Conselheiro em suas instruções espirituais aos fiéis, é líci-
to pensarmos que ele se servia daquele livro mais como um meio para animar a ora-
ção da assembleia do que como fonte de pregação. Com efeito, para o apostolado da
palavra ele dispunha de uma série de sermões que havia preparado, escrevendo-os de
próprio punho, num estilo completamente diferente do de Pe. Gonçalves Couto.24

Por outro lado, as duas coletâneas de versículos bíblicos (“Textos” no manus-


crito de 1895; “Textos extraídos da Sagrada Escritura”, no de 1897) de alguma
forma demarcam o universo religioso do Conselheiro, e o distanciam do universo
rigorista e ameaçador expresso na Missão abreviada, onde a ênfase é o pecado, a
ameaça divina, o sacrifício. Mesmo nas passagens em que se percebe uma depen-
dência direta em relação a esta, as palavras do Conselheiro vão em direção distinta:

Encontram-se [sic] nos manuscritos uma série de testemunhos da [...] cristologia sa-
crificial seguida pelo imperativo dolorista da reparação dos pecados correlacionada à
imagem de um Deus irado e temível, que obviamente provém da Missão abreviada.
Mas pode-se observar a tentativa de equilibrar essa corrente teológica sacrificial com
270

uma condescendente [...] De onde vem a teologia condescendente do Conselheiro?


Surge ela vigorosa quando ele se aproveita da própria Bíblia. Os “Textos extraídos
da Sagrada Escritura” exaltam os prodígios e as maravilhas do amor de Deus, a gran-
deza dos benefícios do amor de Jesus Cristo que superam vitoriosamente o peso do
pecado. A razão da encarnação do Filho de Deus é o amor.25

Com efeito, as palavras do Conselheiro registradas nos dois cadernos manus-


critos se distinguem bastante do que era o dominante das pregações de missioná-
rios e vigários em geral nos sertões nordestinos. Um tom marcadamente peniten-
cial, de culpabilização pessoal e de ameaças quanto ao inferno e condenação eterna
(que praticamente não dá lugar ao tema da graça, detalhe particularmente grave
num contexto em que a vida no além é a grande referência, a salvação o grande
anseio), é substituído por expressões de esperança e apelos à vida comunitária, bem
como à imitação de Jesus e à devoção. Se a Missão abreviada fechava as portas do
céu, o empenho decidido e ousado do Conselheiro era em abri-las. Suas prédicas
salientam a gratuidade da ação amorosa de Deus, e a necessidade de corresponder
a ela. Segundo Otten, o Conselheiro bebe essa teologia amorosa dos ensinamentos
de pe. Ibiapina.26
Outro aspecto decisivo em que a pregação conselheirista se afasta do paradig-
ma expresso pelo livro de Manuel Couto é, mais uma vez, mostrado competente-
mente por Otten: as prédicas contidas nos cadernos manuscritos evidenciam

a resistência do beato à interiorização e privatização da vida religiosa que a Missão


abreviada tematiza [...] O fato de ele estar profundamente enraizado no catolicismo
popular autêntico o preservou de uma espiritualidade intimista e desencarnada [...]
A teologia do Conselheiro mantém o caráter popular enquanto preserva a visão
popular integrativa na qual não se separam céu e mundo, corpo e alma, espiritual e
temporal, individual e comunitário.27

Essa postura “integrativa” terá feito toda a diferença; doutra forma o próprio
Belo Monte não se viabilizaria a partir do pensamento (tornado ação) de Antonio
Maciel. Ela não passou despercebida aos contemporâneos; a envenenada afirmação
de um dos amigos do barão de Jeremoabo deixa claro que o beato rompe a dico-
tomia, tão convencional e tão conveniente, entre esperanças escatológicas e com-
promisso histórico; com efeito, Aristides Borges lamenta que o Conselheiro “possa
ter esquecido as coisas do Céu para só cuida® no que é exclusivamente terreno”.28
Ponderações de teor semelhante podem ser feitas no tocante ao uso do (à sua
época) famoso Compêndio narrativo do peregrino da América. A obra de Nuno Mar-
ques Pereira (1652?-1733?) foi um notável sucesso editorial durante o século XVIII
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 271

(cinco edições em cerca de quarenta anos), mas depois deixou de ser publicada, até
meados do século passado.29 No entanto este “curioso exemplo de prosa narrativa
barroca” acabou por deixar “mais marcas do que se pensava e menos do que se espe-
rava, e o que se constata é que assim como apareceu, desapareceu da superfície. [...]
Ficaram traços e a sua presença como um subtexto de cultura, motivando citações
no universo das culturas populares e tradicionais”.30
Tanto Nuno Marques, nos primórdios do século XVIII, como o Conselheiro
em fins do seguinte, preocupam-se com a pureza da fé católica, com a adesão de-
cidida a ela, e com a ação do demônio que impõe obstáculos a que tais propósitos
sejam alcançados. Ambos escrevem na perspectiva da salvação, ambos se se veem
peregrinos nesta terra já que, segundo Pereira, “a verdadeira pátria é o céu”31; teria
o Conselheiro algo a objetar quanto a isto?
Também aqui é importante não tirar conclusões apressadas. Nuno Marques
identifica uma das principais ameaças à religião católica no Brasil, e à salvação
eterna das almas, a proliferação de cultos de matriz africana: feitiçarias, calundus e
outras superstições pululam por todos os cantos; a fidelidade à verdadeira doutrina
é pensada contra este pano-de-fundo. Nesse contexto impressiona a naturalidade
com que o autor trata das relações entre senhores e escravos; aliás, o instituto da
escravidão só se justifica à luz de uma finalidade de outra ordem: tirar a gente afri-
cana da idolatria em que se encontrava e apontar-lhe o caminho da salvação.
Em vão se procurariam dizeres e acentos deste teor nos manuscritos que levam
o nome do Conselheiro, e não apenas porque no tempo deste não mais existisse a
escravidão formal; nada do horror às manifestações religiosas de origem africana,
mescladas ou não com rituais católicos e/ou de matriz indígena, que certamente
se davam no Belo Monte, se encontra nestes escritos. Também não se encontra
neles a verdadeira obsessão manifestada por Nuno Marques no tocante aos pecados
relativos ao sexto mandamento. O Conselheiro não precisa, como necessitou seu
antecessor, pedir licença aos moralistas – e principalmente à Bíblia! – para “tocar
neste primeiro Mandamento [sobre o amor a Deus] o que pertence ao sexto [sobre
a fornicação]”. Isto pela “razão de se encerrarem neste todos os dez”.32 E não por-
que ele, o líder do Belo Monte, não tivesse consciência da gravidade das questões
abrangidas neste fatídico preceito...
Ao final, a surpresa maior é encontrar uma dependência bastante grande do
texto do peregrino do século XVIII na configuração de conteúdos importantes dos
manuscritos do não menos peregrino de século e meio depois. São páginas e mais
páginas em que os paralelos se manifestam, talvez numa proporção maior do que se
encontraria na relação destes com a Missão abreviada. No entanto, a dependência é
em relação à letra, não ao espírito que anima o escritor do século XVIII. Valha um
único exemplo: a instituição do matrimônio aparece, no escrito de Nuno Marques,
272

como remédio e antídoto contra os pecados decorrentes da atividade sexual; já para


o Conselheiro, numa meditação composta quase totalmente com textos do Com-
pêndio narrativo, tal instituição aparece como desfecho do processo criador divino,
que há de ser prolongado pelas sucessivas gerações de seres humanos.33
Assim, o espírito das prédicas que compõem os manuscritos do Conselheiro é
original; ao não se inscreverem num quadro de cunho milenarista, nem serem meras
reproduções do que se expunha em geral como catolicismo naquelas épocas e sendas,
e ao mesmo tempo beberem de outra vertente cristã, da qual Ibiapina é significati-
vo representante, as meditações convocam para a responsabilidade histórica, para a
construção da comunidade, para a solidariedade efetiva. As citações da Escritura,
particularmente do Novo Testamento, apontam para a atenção aos pobres e esque-
cidos34, o que não contradiz a convicção fundamental de que todos estão aqui de
passagem, em peregrinação à pátria celeste.35 A observância a tais compromissos dá o
sentido que o Conselheiro deseja a seu Belo Monte, e prepara de forma qualificada “a
salvação dos homens”, como se lê na folha de rosto do manuscrito de 1895.

Todo poder vem de Deus

Já o olhar que o alto clero baiano dispensa ao arraial conselheirista é intensa-


mente marcado pelos interesses imediatos da instituição eclesiástica, e do momen-
to por esta vivido no Brasil recém-entrado na República com suas pretensões lai-
cizantes. O fato de o Relatório que leva o nome de João Evangelista provavelmente
não ter sido escrito por ele já dá conta do seu efetivo caráter e de sua finalidade
implícita, a de definir o lugar da arquidiocese baiana, e com ela da Igreja católica,
secularmente instalada no Brasil e até há pouco beneficiária de privilégios oriundos
de sua particular vinculação com o Império, na nova conjuntura política. Como
vimos, nele se condensam duas preocupações básicas: a defesa das prerrogativas do
clero e o esforço por apresentar a Igreja como parceira privilegiada e indispensável
do Estado, um Estado que ameaçava, por conta de seu regime, relativizar-lhe o lu-
gar e a importância. É hora de indicar os referenciais que viabilizaram essa postura
materializada no Relatório.
A autonomia do Conselheiro frente aos padres é questão antiga, e não está
associada necessariamente ao caráter supostamente errôneo ou supersticioso de sua
pregação e dos rituais que comanda (o que não significa que ele não venha a ser
qualificado como herege). O incômodo já fora expresso pela já mencionada carta
dirigida aos padres da arquidiocese baiana, que tinha o intuito de coibir as ações do
Conselheiro no campo religioso; é hora de tomar contato com ela:
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 273

Bahia, 16 de Fevereiro de 1882.

Rvmo. Sr. - Chegando ao nosso conhecimento que, pelas freguesias do centro des-
te arcebispado, anda um indivíduo denominado Antônio Conselheiro, pregando ao
povo que se reúne para ouvi-lo doutrinas supersticiosas e uma moral excessivamente
rígida com que está perturbando as consciências e enfraquecendo, não pouco, a
autoridade dos párocos destes lugares, ordenamos a V. Revma. que não consinta em
sua freguesia semelhante abuso, fazendo saber aos paroquianos que lhes proibimos,
absolutamente, de se reunirem para ouvir tal pregação, visto como, competindo na
igreja católica, somente aos ministros da religião, a missão santa de doutrinar os
povos, um secular, quem quer que ele seja, ainda quando muito instruído e virtu-
oso, não tem autoridade para exercê-la. Entretanto sirva isto para excitar cada vez
mais o zelo de V. Revma no exercício do ministério da pregação, a fim de que os
seus paroquianos, suficientemente instruídos, não se deixem levar por todo o vento
de doutrina. Outrossim, se apesar das advertências de V. Revma., continuar o indi-
víduo em questão a praticar os mesmos abusos, haja V. Revma. de imediatamente
comunicar-nos a fim de nos entendermos com o Exmo. Sr. Dr. chefe de polícia, no
sentido de tomar-se contra o mesmo as providências que se julgarem necessárias.
Deus Guarde a V. Revma. - Revd. Sr. Vigário da Purificação dos Campos. Luiz,
Arcebispo da Bahia.36

A intervenção arquiepiscopal visa principalmente a atividade de pregador do


Conselheiro, e se desenvolve em quatro momentos: a) uma constatação: a pregação
de Antonio perturba a ordem e fragiliza os padres; b) uma ordem: proíba-se ao
povo escutá-lo; c) uma justificativa: pregar é prerrogativa exclusiva do clero; d) uma
recomendação: os padres se dediquem mais a ela.37
Nessa perspectiva, o documento em questão se situa na esteira de outro, de
fundamental importância, também da sé episcopal baiana, as Constituições primei-
ras do arcebispado da Bahia. Datadas de 1707 e reeditadas com ajustes em meados
do século XIX, já nelas a pregação se definia como algo que a ser feito apenas com
expressa autorização eclesiástica; vejamos o parágrafo 513:

Conforme a doutrina do apóstolo são Paulo, ninguém pode pregar o Evangelho, e


palavra de Deus nosso Senhor por sua própria autoridade, sem lhe ser cometido e
mandado por legítimo Superior. E assim proibimos que nem um Pregador secular,
sob pena de excomunhão maior e de suspensão das ordens, e prisão, e das mais
penas que nos parecer, pregue neste nosso Arcebispado, sem ter para isso licença
nossa passada in scriptis.38
274

À margem temos a citação do texto paulino de Romanos 10,15, que fun-


damenta biblicamente o esforço de controlar a prática da pregação pelos pró-
prios padres: “Porém como pregarão eles, se não forem enviados?” No entanto,
o parágrafo anterior se aplica mais diretamente à questão que me interessa de
perto:

Porquanto a pregação da palavra de Deus nosso Senhor é o mantimento espiritual


das almas, e muito necessária para a salvação delas, se encarrega muito aos Prelados
pelo mesmo Concílio esta obrigação, e se chama no direito Canônico, ofício seu
próprio. E porque não podem ordinariamente cumprir com ele por si mesmos, lhes
é também muito encomendado, que escolham para isso sujeitos idôneos de virtude,
letras, e exemplo, pois ficam sendo seus Coadjutores, e cooperadores neste santo
ministério.39

Se de um lado se reconhece a possibilidade da pregação por parte de


agentes leigos, de outro se espera que ela esteja sob constante vigilância dos
prelados, que por sua vez deverão alcançar da sé arquiepiscopal a legitimi-
dade do seu próprio ministério.40 Assim, a proibição de que Antonio Con-
selheiro faça uso da palavra em público se justifica fundamentalmente pelo
fato de que, em vez de auxiliar e complementar a ação pastoral dos padres,
ele os desautoriza.
Acrescente-se a essa preocupação com as prerrogativas do padre quanto ao
uso da palavra em público a ostensiva repulsa que naqueles tempos os agentes ecle-
siásticos passam a manifestar por formas de expressão religiosa popular. Está em
curso um processo de substituição de devoções que dispensam a figura do padre
por outras que a têm por indispensável. Neste cenário, as imagens cultuadas pela
gente de Belo Monte são reprovadas de forma ainda mais intensa.41 São os tempos
da romanização:

Quanto ao campo [...] reinava [até pelo menos 1850] um cristianismo devocional
orientado por beatos e beatas que em grande parte dispensava a presença do sacer-
dote [...] A nova clericalização criou, por conseguinte, um campo de conflitos, seja
entre clero e confrarias, seja com os beatos e o assim chamado “fanatismo religioso”
[...] O caso trágico na guerra contra Canudos (1896-1897) exemplifica a incompa-
tibilidade entre a hierarquia e o mundo dos beatos.42

O apego aos santos tinha consequência óbvia aos olhos atentos do capuchinho
e à sua férrea lógica: as imagens deles adquiriam mais importância que os sacra-
mentos, ministrados exclusivamente pelos padres.
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 275

Antes de prosseguir, cabe notar que, se por um lado o conflito em torno da


legitimidade da autoridade religiosa do Conselheiro é reconhecido pela grande
maioria dos analistas, por outro tende a ser minimizado quanto à sua importância.
Refiro-me à querela sobre se o Conselheiro foi ou não, deveria ser ou não, classifi-
cado como herege. Várias manifestações se equivocam nesse pormenor. Por exem-
plo, lemos o seguinte sobre o esforço do arcebispo baiano, em 1887, de internar o
Conselheiro em um hospício da capital do país:

o arcebispo subscreve ao que será a preocupação maior do Estado e dos coronéis.


As “doutrinas subversivas”, se classificadas de “subversivas”, o foram com relação
à ordem política, marcada pelo domínio coronelista, já que as doutrinas religiosas
pregadas pelo Conselheiro nunca saíram do âmbito da teologia tradicional católica;
tanto é que os acusadores clericais de Antônio Conselheiro não citam nenhuma
prova a respeito.43

A concordância nos termos é enganosa. Se, com efeito, a ortodoxia cató-


lica pouco ou nada teria a objetar aos dizeres encontrados nas prédicas, o que
significa o fato de elas serem pronunciadas (e escritas) exatamente pelo Conse-
lheiro, justamente no Belo Monte? Bartelt, ao dar como certa a ortodoxia do
Conselheiro, precisa apresentar o arcebispo baiano apenas como porta-voz dos
interesses do poder político. Imaginar-se-ia então que o Conselheiro não repre-
sentava nenhum perigo para a Igreja propriamente, e que esta estaria agindo
apenas em função dos interesses políticos então em jogo. Essa avaliação não dá
conta da complexidade do problema. Pelo menos desde 1882 a hierarquia ca-
tólica da Bahia busca isolar Antonio Conselheiro. Desta forma, também não
convence a afirmação seguinte, agora em comentário ao Relatório atribuído a
frei João: “a razão do conflito entre a seita religiosa de Canudos e a Igreja não
dizia respeito a divergências doutrinárias ou questões dogmáticas, mas ao caráter
monolítico da estrutura de poder clerical”.44 Se o autor tem razão ao apresentar
a razão do conflito, peca em não perceber que a estrutura clerical monolítica está
estreitamente associada às “divergências doutrinárias ou questões dogmáticas”!
Daí que, mesmo parecendo ortodoxo em suas prédicas e conselhos, Antonio
Conselheiro possa ser considerado herege por frei João Evangelista, pelo próprio
fato de fazer as prédicas e reunir o povo atrás de si, sem a devida autorização, de
antemão negada!45 Bastos parece não notar que a análise do discurso não pode ser
feita apenas na superfície dos dizeres, mas devem ser percebidos o lugar donde
procedem, os interesses que estão em jogo, e como uma “mesma” compreensão
pode ser reapropriada e assumir então sentidos e funções absolutamente distintos
e contrários àquelas que anteriormente cumpria!46
276

Assim, o problema fica melhor equacionado quando se considera que “o pro-


blema que o beato causa em nível de autoridade e os conflitos nele contidos são
passados para o plano da doutrina”.47 O Relatório que leva o nome de frei João
Evangelista é mais uma expressão dessa perspectiva, que da desqualificação do pre-
gador deduz a inconsistência da pregação. Mas o contrário também acontece.
Como já foi dito, o segundo campo de argumentação joga papel mais impor-
tante para as intenções explícitas do Relatório, aquele que se constrói sobre o texto
de Romanos 13 e de outras passagens bíblicas para concluir pela necessidade de
submissão às autoridades constituídas.48 O recurso a elas não é novo, vem de antes
da Idade Média. Quando da proclamação do cristianismo como religião oficial do
império romano, este já em vias de arruinar-se, Ambrósio, bispo de Milão e mestre
de Agostinho, pode dizer, apoiando-se em Romanos 13 e em Marcos 12,13-17,
que o poder é bom em si, pois vem de Deus. Má é a ambição e a utilização inade-
quada dele. Pode-se então dizer, apesar de numa oportunidade Ambrósio ter con-
frontado fortemente a Teodósio, em fins do século IV, por conta de um massacre
por este comandado, que ele “aceita sem reservas o sistema monárquico de seu
tempo”.49 Neste autor eclesiástico se encontra uma das primeiras vozes a propor
a versão cristã da teoria do direito divino dos reis. E nos séculos iniciais da Idade
Média a Bíblia agiu poderosamente para forjar a imagem, os valores e os deveres do
príncipe cristão. As teologias políticas elaboradas em contexto de colaboração entre
os poderes eclesiástico e temporal, ou quando se está em busca de tal articulação,
terão em Romanos 13 uma referência fundamental.50
Em síntese, o texto de Romanos 13, acompanhado de outros, foi um dos
privilegiados na leitura quando se fez a pergunta à Bíblia pela relação entre os
poderes religioso e secular: este texto teve sua interpretação “carregada demais”.51
O diagnóstico seguinte é preciso: “Quase toda a história da exegese de nosso ca-
pítulo (Romanos 13) [...] peca por considerar como problema específico de nossa
passagem não a exortação em si mesma, mas sua motivação, concretamente o tema
de uma prescrição divina relativa a uma autoridade existente”. Transformada em
“uma doutrina sobre o estado, que poderia ser descrita mais precisamente como
uma metafísica do estado”, a passagem bíblica converte esse último em “elo de uma
estrutura que engloba em sua realidade o céu e a terra, o estado representa a ordem
conforme à criação ou de direito natural”.52
No processo de história do Brasil sob domínio português, essa teologia do Es-
tado se fez presente por meio da teoria do direito divino dos reis, cuja enorme pene-
tração a fez constituir um dos três componentes do que Marilena Chauí chamou o
“mito fundador” do país, que incidiu nestes últimos quinhentos anos das formas mais
inesperadas.53 A formulação sempre precisa e reveladora de Antonio Vieira fala por si:
“Todos os reis são de Deus, mas os outros reis são de Deus feitos pelos homens: o rei
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 277

de Portugal é de Deus, e feito por Deus, e por isso mais propriamente seu”.54 No fim
do século XIX, essa teoria se materializava na prática eclesiástica de oferecer ao Estado
o recurso das missões como forma de restabelecer a ordem pública em circunstâncias
particularmente delicadas. No Nordeste do século XIX por várias vezes,

quando o sofrimento do povo oprimido explodia num grande grito de revolta, os


detentores do poder concentravam toda a sua atenção na “desordem desse grito”
[...] E então convocavam os missionários para levarem, com sua palavra evangélica,
a paz e sossego a esse povo revoltado. E os missionários se prestavam de boa mente
ao papel de “pacificadores” desse povo, sobretudo porque também eram comissio-
nados pelos bispos diocesanos.55

Texto impresso, de autoria e data não identificadas, localizado na Biblioteca


do Convento da Piedade, dos frades capuchinhos, em Salvador, intitulado Capu-
chinhos: 321 anos de evangelização na Bahia e Sergipe, diz que entre 1892 e 1937
“os Capuchinhos da Piedade [foram] quase missionários oficiais da Bahia e de
outros Estados”. E, não sem uma dose de ufanismo, continua:

E, algumas vezes, o que foi muito importante, [os missionários alcançaram] a paci-
ficação dos ânimos em momentos de exaltação política, evitando lutas fratricidas,
como a [missão] que ocorreu em 1895, quando Frei João Evangelista de Monte
Marciano e Frei Caetano pregaram Santa Missão em Canudos pela conversão do
Bando de Antonio Conselheiro, a fim de evitar a violência das armas.56

Mas nas polêmicas que envolviam a imposição no país de um novo regime polí-
tico, o republicano, a teoria do direito divino dos reis suscitou acalorados debates. A
oposição eclesiástica alimentou-se dessa tese, como se pode ver nas entrelinhas da carta
pastoral do arcebispo da Bahia, D. Luís Antonio dos Santos, publicada dois meses an-
tes da proclamação da república.57 Sua postura nem de longe se assemelha àquela que
alguns anos depois será expressa no Relatório. Mesmo sem mencioná-la, não é difícil
notar que, para o arcebispo soteropolitano, a República que se avizinhava era o indi-
cativo mais claro da conspiração secular e universal em curso contra a Igreja Católica:

Coligaram-se o radicalismo e o maçonismo contra a fé e reconhecendo de pouco


efeito as velhas armas que puseram nas mãos de Lutero, de Calvino e Voltaire, e
tantos outros que se tornaram célebres pela mentira e pela calúnia, pela perseguição
e pelo ódio implacável a Jesus Cristo, mudaram de tática e como primeiro passo
necessário à nova e terrível campanha, depois de perseverantes e inauditos esforços
apoderaram-se dos governos das nações.58
278

A inspiração bíblica do velho arcebispo é muito mais a do salmo 2 ou do texto


de Atos 4,25-28, que cita o anterior e o relê aplicando-o aos inimigos conspirados
contra Jesus Cristo e sua obra, do que o texto de Romanos 13 que haverá de inspi-
rar frei João Evangelista. O paralelismo é evidente. Vejamos primeiramente o texto
neotestamentário:

Por que bramaram as gentes, e meditaram os povos projetos vãos? Levantaram-se os


reis da terra, e os príncipes se ajuntaram em conselho contra o Senhor e contra o seu
Cristo.59 Porque verdadeiramente se ligaram nesta cidade contra o teu santo Filho
Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com os gentios e com os povos de Is-
rael, para executarem o que o teu poder e o teu conselho determinaram que se fizesse.

Agora leiamos o texto arquiepiscopal:

Eis, caros irmãos e filhos em Jesus Cristo, uma pálida descrição do que vai pelo ve-
lho mundo, especialmente pela cidade de Roma. Eis em que estado acha-se esta luta
titânica pelas seitas maçônicas e pelo radicalismo movida contra a Igreja de Jesus e
a pessoa de Seu Vigário.

E agora a citação explícita, vinculando a situação do messias com a vivida pela


igreja por conta da incursão republicana:

Reuniram-se os reis da terra e os príncipes coligaram-se contra o Senhor, e contra


o Seu Cristo. A terra está em lágrimas e coberta de dó, sua fraqueza é visível. Está
aviltado tudo que havia de grande entre os povos, porque foram transgredidas suas
leis, seu direito está mudado, quebrado seu pacto eterno.60

A perda dos Estados Pontifícios e a consequente redução do poder temporal


do papa evidenciam o drama percebido pelo arcebispo. A república no Brasil, com
as medidas que a precediam, é mais um golpe neste combate sem fim, no qual não
se pode cansar, muito menos ceder.
No entanto, a hierarquia católica baiana negará em 1895, por meio de seu
missionário enviado a Belo Monte, o que afirmara em 1889, que o novo regime
de governo fosse antagônico à religião e a Cristo. A progressiva mudança de com-
portamento, passando da hostilidade a uma postura de tolerância e convivência,
reforçou-se com o processo que aqui analisado. E foi oportuna para ambos os la-
dos: o Estado volta a usufruir do bônus que é poder contar com a auxílio de uma
instituição que tem representantes por todos os lados, sem ter de arcar com o ônus,
os custos; a Igreja vê a possibilidade de, não apenas localmente, ser de novo privi-
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 279

legiada no trato com as instâncias governamentais e pode esperar recuperar ao me-


nos parte das benesses perdidas. A rigor, o Relatório de frei João confirmará, num
caso particular, o que fora sugerido na Pastoral coletiva do episcopado brasileiro, de
1890, antes ainda da intervenção de Leão XIII: a colaboração com o novo regime,
apesar das resistências e discordâncias. É interessante notar que o documento cita
exatamente os dois textos em que Euclides descobre a inspiração do missionário
capuchinho, Romanos 13,1ss e 1 Pedro 2,13ss (além de Mateus 21,21, que pede
dar a César e a Deus o que compete a cada um), para estabelecer a legitimidade do
poder temporal, mesmo republicano. Mas o escopo é claro, tanto em 1890 como
em 1895: “repelimos os católicos a separação da Igreja do Estado; exigimos a união
entre os dois poderes” (p.24).61 O movimento desencadeado pela já citada carta de
Leão XIII só reforçará o caminho que vinha sendo construído:

sob a inspiração das diretrizes do papa, os bispos serão os primeiros a compreender,


apesar de vários deles continuarem afeiçoados à monarquia, que não convinha a
contestação ao regime, porém era mais oportuno um comportamento de aceitação
do mesmo, acompanhado de movimentos populares, reivindicatórios de uma legis-
lação favorável à Igreja católica.62

No contexto do Império, sendo o catolicismo religião oficial, a caracterização


de alguém como herege já implicaria sanções provenientes do poder civil, o que
chegou a ocorrer em algum momento da vida de Antonio Maciel. Mudado o regi-
me, será necessário à sé episcopal baiana fazer ver ao Estado que, além de herege,
encontrava-se à beira do Vaza-barris um perigoso subversivo da ordem política que
precisava ser contido o mais cedo possível. Na denúncia eclesiástica, o incidente
de Masseté fora apenas uma pequena mostra do furor do Conselheiro contra a
república nascente: “A Igreja sentia necessidade de eliminar o quisto de Canudos.
Separada do Estado só encontrava um meio de agir: propalar o caráter político do
movimento que se processava em Canudos”.63 Não foi outra a ênfase principal do
relatório atribuído a frei João Evangelista de Monte Marciano.

“Um heresiarca do século II em plena idade


moderna”
Pelo menos três motivos explicam a presença da Bíblia na elaboração de Os ser-
tões. Vimos Berthold Zilly falar do recurso a arquétipos da cultura ocidental, entre
os quais se encontra a Bíblia, na construção literária de passagens dramáticas e deci-
280

sivas do livro vingador64, procedimento esse não isento de implicações. Vimos tam-
bém Walnice Nogueira Galvão afirmar que, por conta da temática, um movimento
fundado no religioso, a própria estrutura do livro se apresenta como uma recriação
do drama bíblico.65 Destaco, no entanto, uma terceira motivação, a que mais clara-
mente configura a avaliação euclidiana do Belo Monte: tido como uma identidade
absolutamente outra, seu desaparecimento era inevitável. Essa convicção, aliada à
denúncia que o autor pretende com seu livro, conflui na caracterização de Antonio
Conselheiro como profeta milenarista e na sua demonização. Assim, mais do que
um livro contraditório, foi possível a Os sertões soar

como um exorcismo junto à intelectualidade brasileira. Era preciso sacrificar o Con-


selheiro no altar da honorabilidade brasileira para que a elite do país pudesse recu-
perar-se do trauma causado pela memória de uma ação tão covarde do governo do
país diante de uma comunidade de pobres sertanejos.66

É esse percurso tortuoso que permite (ou melhor, exige) a Euclides associar
o Conselheiro a figuras praticamente desconhecidas do cristianismo do século II,
mormente Montano da Frígia. E aqui um autor será decisivo para nosso escritor:
Ernst Renan (1823-1892), historiador francês.67
Com efeito, quando finalmente Euclides passa a apresentar Antonio Maciel,
na parte IV de “O homem”, logo somos remetidos “aos primeiros dias da Igreja,
quando o gnosticismo universal se erigia como transição obrigatória entre o paga-
nismo e o cristianismo”. Esse deslocamento até um momento longínquo da histó-
ria se justifica: “um antropologista encontrá-lo-ia [o Conselheiro] normal, marcan-
do logicamente certo nível da mentalidade humana, recuando no tempo, fixando
uma fase remota da evolução”.68 É pela perspectiva evolucionista, que, aliás, marca
todo o livro, que tal recuo se dá.
Mas não é só. Euclides cita, um a um, movimentos surgidos no seio do cris-
tianismo do século II.69 A presença de tal lista seria despropositada não fosse a
síntese final, que dissipa qualquer dúvida: “relendo as páginas memoráveis em que
Renan faz ressurgir, pelo galvanismo do seu belo estilo, os adoidados chefes de seita
dos primeiros séculos, nota-se [em Antonio Conselheiro] a revivescência integral
de suas aberrações extintas”.70 O atavismo do beato de Belo Monte fica evidente
quando se consideram a ação e os ensinamentos desses desconhecidos mas alouca-
dos líderes cristãos.
Contudo o montanismo, o primeiro grupo citado por Euclides, não é apenas
um exemplo a mais de insânia. O autor descobre nele características específicas
que tornam a aproximação com o movimento liderado pelo Conselheiro mais que
justificável: necessária mesmo. Para Renan, o montanismo, termo derivado do
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 281

nome de um dos seus líderes, Montano, caracteriza “a última recrudescência do


milenarismo e do profetismo”.71 Efetivamente ele se apresenta como uma releitura
peculiar do Apocalipse, e foi motivado pela demora da vinda de Cristo no grande
dia final e pelo relaxamento que a Igreja passou a viver em função desse atraso. De
acordo com Renan,

cada vez era menor o contraste entre a Igreja e o mundo. Era inevitável que os ri-
goristas julgassem que se estava caindo no atoleiro da mais perigosa mundanidade
e que surgisse um grupo de pietistas para combater o tédio geral, continuar os dons
sobrenaturais da Igreja apostólica, e preparar a humanidade, por um redobramento
de austeridades, para as provações dos últimos dias.

Esse seria o lugar que ocuparia, quando em Roma eram os tempos do impera-
dor Marco Aurélio (161-180), o montanismo:

Espíritos simples e exaltados imaginavam ser chamados a renovar os prodígios da


inspiração individual, fora das cadeias já pesadas da Igreja e do episcopado. Uma
doutrina há muito tempo espalhada na Ásia Menor, a de um Paráclito que deveria
vir completar a obra de Jesus, ou melhor, retomar o ensinamento de Jesus, resta-
belecê-lo em sua verdade, purificá-lo das adulterações que os apóstolos e os bispos
nela haviam introduzido, tal doutrina, digo eu, abria a porta a todas as inovações.72

A forma específica a essas novidades foi dada por um tal Montano, da vila
de Ardabav, na Mísia, nos confins da Frígia (região interiorana do que hoje é a
Turquia): “sem dúvida a imitação dos profetas judeus e dos que a lei nova havia
produzido, no começo da idade apostólica, foi o elemento principal deste renas-
cimento do profetismo”, à margem das decisões episcopais: “era um profetismo
totalmente popular que surgia sem a permissão do clero, e queria governar a Igreja
fora da hierarquia”.73 Desenvolvido também por Priscila e Maximila, o movimento
teve grande repercussão, conquistando para suas fileiras o célebre apologista Ter-
tuliano. O rigorismo exigido de seus membros, a ânsia em recuperar o ardor dos
inícios cristãos e a exortação insistente ao martírio fizeram dele uma proclamação
de enorme apelo no fim do século II e início do III.
Euclides não tem dúvidas quanto a identificar no Conselheiro um novo Mon-
tano. O líder de Belo Monte “é um dissidente do molde exato de Themison. In-
surge-se contra a Igreja romana, e vibra-lhe objurgatórias, estadeando o mesmo
argumento que aquele: ela perdeu a sua glória e obedece a Satanás”. Com efeito,
de acordo com Renan, este personagem obscuro, mas um dos líderes da seita frí-
gia, “declarava que a Igreja católica tinha perdido toda a sua glória e obedecia
282

a Satanás”.74 Cá e lá as reprimendas ao “demônio dos cabelos”: se nos escritos


montanistas, garante-nos Renan, aparecem constantemente “proibições do luxo
feminino e, sobretudo, contra o artifício dos penteados”, o Conselheiro punia “as
vaidosas com dilaceradores pentes de espinho”.75 Que a beleza fosse “a face sedu-
tora de Satã” Renan já dizia ser convicção montanista.76 Na verdade, o ascetismo
supostamente vivido em Belo Monte denunciava, para o escritor, a recriação do
montanismo em terras sertanejas: “que os fiéis abandonassem todos os haveres,
tudo quanto os maculasse com um leve traço da vaidade”.77
Mais adiante Euclides deixa ainda mais claro o vínculo entre Montano e o
Conselheiro; com efeito, o frígio não é tanto um indivíduo, mas um paradigma:

Ademais esse voltar-se à idade de ouro dos apóstolos e sibilistas, revivendo vetustas
ilusões, não é uma novidade. É o permanente refluxo do cristianismo para seu berço
judaico. Montano reproduz-se em toda a história, mais ou menos alterado conso-
ante o caráter dos povos, mas delatando, na mesma rebeldia contra a hierarquia
eclesiástica, na mesma exploração do sobrenatural, e no mesmo ansiar pelos céus,
a feição primitivamente sonhadora da velha religião, antes que a deformassem os
sofistas canonizados dos concílios.

Mas esses pontos de contato são acessórios, na análise euclidiana. Mais impor-
tantes e decisivas são as concepções de fundo. O beato dos sertões refaz o caminho
do frígio: “a exemplo de seus comparsas do passado, Antônio Conselheiro era um
pietista ansiando pelo Reino de Deus, prometido, delongado sempre e ao cabo de
todo esquecido pela Igreja ortodoxa do século II”.78 Aqui o ponto central, como o
autor pudera expor um pouco antes:

Esta identidade avulta, mais frisante, quando se comparam com as do passado as


concepções absurdas do esmaniado apóstolo sertanejo. Como os montanistas, ele sur-
gia no epílogo da Terra [...] O mesmo milenarismo extravagante, o mesmo pavor do
Anticristo despontando na derrocada universal da vida. O fim do mundo próximo...

O ascetismo exigido dos adeptos de um e outro movimento tinha a mesma


justificativa: “todas as fortunas estavam a pique da catástrofe iminente e fora teme-
ridade inútil conservá-las”.79 Daí que a pregação do Conselheiro seja monotemáti-
ca: “De todas as páginas de catecismos que soletrara ficara-lhe preceito único: ‘Bem
aventurados os que sofrem...’”80
Euclides vê em Belo Monte as mesmas expectativas de tipo milenarista culti-
vadas no seio do montanismo. Isto lhe permite mais uma vez recorrer a Renan, e
uma vez mais transportar para o sertão expressões com que o francês caracterizava
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 283

o movimento frígio: se o profetismo de Montano, que, “como todos os profetas


da nova aliança, transbordava de maldições contra o século e contra o império
romano”, não tratava de outra coisa que “o julgamento próximo, a punição dos
perseguidores, a destruição do mundo profano, o reino de mil anos e suas delícias”,
a proclamação do Conselheiro não fugia ao modelo: tinha “o mesmo tom com que
despontou na Frígia, avançando para o Ocidente. Anunciava, idêntico, o juízo de
Deus, a desgraça dos poderosos, o esmagamento do mundo profano, o reino de mil
anos e suas delícias”.81 A transcrição reforça a identificação entre um movimento e
outro. Com um agravante: a manifestação sertaneja tem séculos de atraso.
O perfil do arraial conselheirista, desenhado por Euclides, é decorrente desta
perspectiva. O que ali se vivia era apenas prefiguração do que estava para se dar, do
qual apenas eles seriam os beneficiados. Daí a separação do mundo, a recusa em
observar as leis estabelecidas, a revolta contra a República, que segundo tantos a
partir de Euclides teria sido a marca do cotidiano do arraial.82
Mas é preciso ser mais explícito. É Os sertões que funda essa vertente interpre-
tativa a respeito de Belo Monte, que tamanha repercussão haveria de ter posterior-
mente. Como já foi dito, esse perfil não encontra qualquer apoio nos documentos
conhecidos. A inserção da já comentada “profecia” num contexto narrativo que a
toma como exemplo da suposta pregação milenarista do Conselheiro, é expressão
clara do seu equívoco.83 Sua leitura não considerou uma distinção fundamental
entre expectativas milenaristas e aguardo de um juízo final, temerário e iminente;
aquelas supõem este, mas nem todo julgamento escatológico é pensado na perspec-
tiva de um milênio vindouro.84
No entanto, Euclides não teme tirar as consequências de sua “invenção”: se
na antiga Frígia “uma credulidade desenfreada, uma fé a toda prova nos carismas
espirituais, faziam do montanismo um dos tipos de fanatismo mais exagerados da
história da humanidade”85, o que se via no sertão baiano não merecia outra classi-
ficação. Assim, o recurso a Renan, particularmente a sua exposição sobre o mon-
tanismo, ocupa papel significativo na tarefa a que Euclides se propõe: descobrir o
sentido daquela manifestação sertaneja sem sentido. É um verdadeiro disparate a
presença de “um heresiarca do século II em plena idade moderna”86, liderando um
arraial de gente fanática e ignorante.
Vê-se também que a recuperação de manifestações heréticas do princípio do
cristianismo tinha a finalidade de mostrar o atraso do que se via nos sertões baia-
nos: “todas as seitas em que se fracionava a religião nascente, com os seus doutores
histéricos e exegeses hiperbólicas, forneceriam hoje casos repugnantes de insânia.
E foram normais”.87 Antonio Conselheiro e seu séquito teriam lugar garantido e
fariam sentido se houvessem aparecido dezessete, dezoito séculos antes. Mas hoje,
como
284

líder de uma “igreja” à margem da instituição religiosa oficial situada nos parâme-
tros positivistas de civilização, o Conselheiro é visto como “desnorteado apóstolo”
em “missão pervertedora” que “reunia no misticismo doentio todos os erros e su-
perstições que formam o coeficiente de redução de nossa nacionalidade”.88

Ou seja, Belo Monte e o Conselheiro estão na margem da margem, são o


atraso do atraso.
Assim, a recuperação do montanismo, além do evidenciar o atavismo do Con-
selheiro, ela permite a Euclides sustentar que este se alimentaria de esperanças
escatológicas similares àquelas de que viveram as comunidades cristãs da Frígia
e de outras regiões nos séculos II e III. Mas é preciso insistir: o que Euclides fez
não foi colocar dois movimentos milenaristas em paralelo, mas transformar, arbi-
trariamente, a pregação de Antonio Conselheiro, por meio de sua associação com
a de Montano, em algo de cunho milenarista. Foi a exposição de Renan sobre o
montanismo que permitiu a Euclides desenhar o pano de fundo quiliasta em que
os poucos dados recolhidos em Belo Monte puderam ser inseridos. O Conselheiro
euclidiano tem em Marc-Aurèle a base de sua insânia, na medida em que, atavi-
camente, atualiza as heresias da Frígia do século II. Essa estigmatização do líder
de Belo Monte se insere na longa tradição de caracterizar as expressões religiosas
outras como heréticas89, e é uma versão atualizada daquela que Euclides propusera
nas reportagens, quando definia o outro (os jagunços) como fanático, demonizava-
-o (lembremo-nos da “legião de demônios”) e determinava sua eliminação, exigida
pela “maldição tremenda dos profetas”.90 Evidencia-se, portanto, que a aproxima-
ção entre o Conselheiro e Montano, por disparatada que tenha sido, conveio aos
propósitos do escritor: ela “é precipitada e distorce os fatos históricos, mas vai ao
encontro do resultado que proveio da [sua] teoria da mestiçagem e da coletividade
anormal”.91
Uma digressão vale a pena ser feita. A ignorância a respeito das convicções
conselheiristas, mormente as de cunho escatológico, talvez explique por que Eu-
clides acabou por recorrer a Montano. Mas ele não precisava ter ido tão longe.
Bastava transcrever em seu livro maior o diálogo esclarecedor travado com um
“jaguncinho” de catorze anos, Agostinho, a 19/08/1897, registrado numa das
reportagens enviadas a O Estado de São Paulo.92 Aprisionado e trazido à capital da
Bahia, Agostinho é submetido a um interrogatório, de cuja importância Euclides
se mostra consciente. Depois de se ter informado sobre a gente do arraial e seus
líderes, bem como do cotidiano da vila, as perguntas foram “sobre questões mais
sérias”: armas e convicções religiosas. Quanto a estas últimas, a surpresa de Eu-
clides se manifesta na resposta à pergunta pela promessa do Conselheiro a quem
morresse em combate: “Salvar a alma”. Por que a resposta “soou inesperada” a
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 285

Euclides, se “salvar a alma” era tudo a que o cristão mediano, minimamente co-
nhecedor do catecismo, aspirava? O espanto parece vir justamente da concordân-
cia, nos termos, entre as promessas do herege e o que era ensinado conforme o
catecismo tridentino, certamente conhecido de Euclides! Pois para o inquisidor,
que a essa altura sintetizava o sentimento da nação e perguntava o que na verdade
julgava já saber, importava marcar a diferença, arrancar a aberração, comprovar
o absurdo. Não podia contar com uma concordância em assunto sobre o qual
julgava ter certeza e justificava todos os adjetivos com que os sertanejos eram
classificados: aquilo em que acreditavam. O fato de esta parte do interrogatório e
as surpresas por ele provocadas não terem sido inseridas em Os sertões, certamente
porque não se coadunavam com o modelo de Belo Monte que o autor insiste
em alimentar, esclarece, por outro lado, porque foi necessário recorrer a Renan
e ao montanismo: para configurar um modelo completamente distinto, em que
a diferença fica definitivamente marcada, o atavismo salientado, a aberração es-
tabelecida.93 Também nesse aspecto é verdade que Euclides, na confecção de Os
sertões, “tem necessidade de interpretar o movimento de Canudos como movi-
mento milenarista”94, já que não é mais possível continuar delineando-o a partir
da Vendeia de Victor Hugo. Se não monarquista, milenarista: sempre o “outro”.
Assim, não é apenas “ao transformismo sociológico” que “a ideia de conspiração
monárquica vai cedendo o passo”95, também à depreciação religiosa radicalizada.
Ou, dizendo melhor: o transformismo sociológico sugerido inclui de forma im-
portante uma avaliação depreciada da religião do outro. Por outro lado, saliente-
se que, se nos termos a escatologia do Conselheiro não diferia substancialmente
daquela estabelecida em Trento96, em termos práticos a distância era radical, na
medida em que o Conselheiro rompia o monopólio dos padres na administração
destas realidades últimas e do acesso a elas.
Como não podia deixar de ser, Euclides é impregnado por seu meio. Ele, que
notava determinismos implacáveis da natureza sobre a cultura, não terá percebido
suficientemente as interferências desta e da dinâmica social sobre suas opções e
definições. No caso das reportagens, certamente lhe estranharia ser visto como
adepto de uma teologia sobre o Brasil que já beirava quatrocentos anos, com deu-
ses e demônios ocupando lugares muito definidos. Ao expressar, o mais das vezes
em categorias provenientes do mundo das ciências de seu tempo, a distinção das
funções e ocupações, a percepção do rumo inexorável da história, a concepção
paternalista quanto a quem deverá construir o futuro da nação, traduz uma visão
teológica de fundo, cuja matriz é a interpretação a respeito do Brasil que se vinha
fazendo desde os tempos coloniais e se refazia agora perante “um levante cujo ful-
cro agregador é a religião, coisa que, francamente, para ele [Euclides] cheirava à
pior das superstições”.97
286

Assistimos, portanto, a uma situação curiosa: se Thompson tem razão ao afir-


mar que, “embora historiadores e sociólogos tenham recentemente se dedicado
com maior atenção aos movimentos e fantasias milenaristas, o seu significado se
mantém parcialmente obscurecido pela tendência em discuti-los em termos de de-
sajuste e ‘paranoia’”98, no caso da análise euclidiana foi necessário inventar um Belo
Monte milenarista para que seus habitantes, particularmente seu líder, pudessem
ser considerados sob prismas semelhantes àqueles mencionados pelo historiador
inglês. E, efetivamente, a invenção euclidiana fez história...99

2. CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS

Até aqui procurei expor os diversificados panos de fundo e filtros a partir dos
quais os vários sujeitos que fizeram a vida e a morte de Belo Monte se apropriaram
da Bíblia. O momento agora é o de avaliar de que forma essas inscrições confluíram
e se chocaram. Especificamente, quero compreender como as versões da gente do
Belo Monte e do Conselheiro, embora não idênticas, articularam-se no erguimen-
to do arraial. O mesmo se diga em relação à convergência entre o posicionamento
eclesiástico e aquele dos setores republicanos, de alguma forma representados por
Euclides da Cunha. Mas também nos interessa salientar as disjuntivas hermenêuti-
cas, que explicam, e muito, a guerra brutal.

O Conselheiro e sua gente

O comentário seguinte dá conta da complexidade do tema a ser tratado:

Há diferenças muito significativas entre a interpretação da situação [os conflitos que


levaram ao estabelecimento do arraial, a guerra] pelo próprio Conselheiro e a de
seus seguidores. O primeiro fazia uma interpretação política e de classe do processo
que estava atingindo o povo. Os segundos elaboravam uma esperança escatológica,
certamente alimentada e justificada pelo próprio Conselheiro.100

Os dados recolhidos no capítulo anterior nos permitem afirmar que Martins


se equivoca nos detalhes. É difícil qualificar o discurso (e a análise) do Conselheiro
como fundamentalmente “política e de classe”, embora estas dimensões não esti-
vessem ausentes de seu pensamento, como se evidencia principalmente pelas prédi-
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 287

cas que teria pronunciado quando das manifestações populares anti-impostos que
desembocaram no conflito de Masseté. Por outro lado, dando crédito quase irres-
trito a Euclides, Martins atribui centralidade a um aspecto da cosmovisão sertaneja
que, se existiu em Belo Monte, terá ocupado papel central apenas no contexto da
guerra, o elemento apocalíptico.101
Mas no fundamental o autor acerta: nota bem a importância de se caracterizar
a diferença entre o entendimento do Conselheiro e o da gente sertaneja a respeito
de sua experiência histórica. Como se viu, as apropriações da Bíblia encontradas
nos cadernos atribuídos ao Conselheiro e nas tradições da gente que com ele viveu
em Belo Monte adotam registros particularmente distintos, e permitem evidenciar
uma significativa diversidade de perspectivas a animar líder e liderados em Belo
Monte.102 O que, obviamente, coloca a questão da continuidade. De que forma
elas se articularam na viabilização do arraial? Consideremos dois pontos.
O fulcro da articulação entre as visões do Conselheiro e da gente que o seguia
se encontra primeiramente na ocupação com a vida presente, entendida não como
negação ou, para usar uma expressão consagrada, como um “vale de lágrimas”,
mas como espaço privilegiado de vida que prepara aquela que vem após a morte.
Podemos identificar o vértice entre essas percepções considerando as formas de
que se revestiram as apropriações da narrativa bíblica do êxodo-conquista da terra
prometida, bem como suas implicações. Como vimos, o Belo Monte materializava
para seus habitantes a terra da promissão; a roupagem é explicitamente política e
utópica. Já a apropriação que o Conselheiro faz do relato bíblico soa bem menos
“espetacular”103, com densidade peculiar: a narrativa que vai desde o chamamento
de Moisés até a posse da terra prometida e a liderança dos juízes aparece funda-
mentalmente como prefiguração das inúmeras realidades teologais e eclesiais que
todos são convidados a compreender e assimilar, e tem seu eixo na proclamação
do Decálogo, no bojo da aliança estabelecida no Sinai. E o resultado prático desta
confluência pode ser aquilatado nas palavras de Honório Vilanova, talvez as mais
célebres de seu depoimento a Nertan Macedo:

Recordações, moço? Grande era o Canudos do meu tempo. Quem tinha roça trata-
va de roça, na beira do rio. Quem tinha gado tratava do gado. Quem tinha mulher
e filhos tratava da mulher e dos filhos. Quem gostava de reza ia rezar. De tudo se
tratava porque a nenhum pertencia e era de todos, pequenos e grandes, na regra
ensinada pelo Peregrino.104

A síntese de Honório reconhece na palavra do Peregrino a fonte e o sustento


da experiência belomontense. Doutro lado, é recorrente, nos testemunhos de ini-
migos do arraial, a afirmação de que a ação e a palavra do Conselheiro instituem
288

uma nova legalidade: “a política dele é toda diferente”.105 É inevitável, portanto,


supor que a palavra do Peregrino se revista de um forte componente ético. Vai na
mesma direção a menção que o mesmo Honório faz de que nas orações e devoções
“o Peregrino estava sempre presente e sempre pronto a repetir os Mandamentos da
Lei de Deus e aconselhar o povo”.106 Lembremo-nos que são comentários ao de-
cálogo que formam grande parte dos dois cadernos de prédicas que levam o nome
de Antonio Conselheiro. Elas sugerem um direcionamento ético para a vida do
arraial, ao mesmo tempo em que viabilizam a salvação eterna das almas. A recepção
criativa das palavras do Moisés sertanejo, aliada à certeza de se estar refazendo a
saga dos hebreus libertados, propiciou à gente do Belo Monte ensaiar uma recria-
ção da forma de vida da primeira comunidade cristã, de Jerusalém, de acordo com
o livro neotestamentário dos Atos dos Apóstolos.
Ao mesmo tempo, as prédicas do novo Moisés terão sido capazes de neutra-
lizar o teor legalista, repressivo e amedrontador das pregações do clero. Eduardo
Moniz faz um comentário esclarecedor a respeito de uma passagem que Euclides,
mais uma vez, lê de forma desabonadora ao Conselheiro e a sua gente:

Mas se Antônio Conselheiro não admitia a violência, aceitava a franqueza dos que
cediam diante da tentação ou da impulsividade do próprio temperamento. Ao ter
conhecimento de que uma jovem ainda solteira se entregara sem relutância, apenas
disse: “Seguiu o destino de todas; passou por baixo da árvore do bem e do mal”. Es-
tas palavras [...] eram a réplica aos moralistas mais exigentes, que pediam a punição
da pecadora [...] Antônio Conselheiro conhecia a falsidade dos preconceitos, bem
como o valor da compreensão e da tolerância.107

O tom algo idealizado destas afirmações não impede que se tire a conclusão,
inevitável, sobre a vida no arraial:

Daí o irresistível clima de alegria e liberdade que caracteriza a comunidade e exerce


uma atração forte sobre todos quantos dela se aproximam [...] O Deus do Con-
selheiro fala diretamente ao homem, e lhe dá coragem de tomar a vida nas mãos
e caminhar livremente, mesmo sabendo-se abandonado pelos poderes públicos.108

Nesse ponto reside um aspecto central, mas pouco notado, para a compre-
ensão do sentido da pregação do Conselheiro e para se acompanhar melhor as
motivações que levaram tanta gente a deixar tudo o que tinha para viver naquele
lugar abençoado. Não é, portanto, sem razão que Belo Monte pode ser considerado
por seus habitantes a “barquinha de Noel”, imagem da Igreja, lugar de proteção,
caminho para a salvação.109
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 289

Rompe-se, portanto, a dicotomia entre expectativas escatológicas e compro-


missos no campo histórico, tão própria de uma mentalidade religiosa secularmente
enraizada: a comunidade “viabiliza, desta forma, um novo modo de vida, este sim,
concreto e real que, em si, é uma prefiguração da vida futura”.110 As palavras do
Conselheiro, feitas conselhos, viabilizam a comunidade, orientam decisões par-
ticulares, vislumbram horizontes inusitados, e ensinam o caminho da salvação.
De alguma forma, Belo Monte recupera um traço característico da religiosidade
popular brasileira, a atenção à vida terrena. Este aspecto, de longa duração em
nossa história, foi notado, não sem alguma imprecisão, por Adriana Romeiro, em
trabalho a respeito do século XVI:

a ênfase no caráter mais imediato das necessidades humanas, a valorização da salva-


ção terrena, em detrimento de uma salvação espiritual, situada no post mortem, a
busca de solução aos problemas cotidianos através de práticas mágicas, de feitiçarias
e de pactos com o demônio constituem uma postura materialista em relação ao
mundo, à medida que colide com o ideal de submissão e resignação pregado pela
Igreja como um meio para se assegurar, através do sofrimento, um lugar no Paraíso
celestial.111

Dificilmente se poderia tomar o Belo Monte como um lugar em que de for-


ma generalizada se buscava a salvação terrena em detrimento daquela espiritual. A
análise terá evidenciado que não havia descompasso, ou contradição, entre uma
e outra. O conflito com a instituição eclesiástica não se manifesta pela negação
pura e simples daquilo que ela proclamava (e julgava ser a única mediadora), a
salvação eterna, mas pela apropriação criativa desta e proposição em novos moldes,
em pelo menos duas direções. Primeiramente, rompendo com o monopólio dos
padres (recorde-se a afirmação que frei João afirma ter ouvido dos sertanejos, que
“não precisavam de padres para se salvar, pois tinham o seu Conselheiro”). Por fim,
definindo os termos da vida aqui como decisivos para a vida no além: cabe lembrar
aqui que a garantia dada pelo Conselheiro a quem fosse e morresse na luta era a
salvação da alma, segundo o “jaguncinho” Agostinho, entrevistado por Euclides.112
Outro ponto fundamental de convergência entre os olhares do Conselheiro e
os de sua gente diz respeito ao posicionamento contra a República e à “nostalgia
imperial”113 que de alguma forma delineava os contornos do arraial. Deve-se, ini-
cialmente, recordar que tanto a oposição como a nostalgia não eram característica
exclusiva do arraial conselheirista; pelo contrário, encontravam-se em amplos seto-
res da população, em várias regiões do país. Mais ainda: pode-se falar de um quadro
de forte desconfiança que se formou em relação ao novo regime no seio da popu-
lação em geral. Tendo assistido “bestializada” a proclamação do novo regime, nos
290

seus anos iniciais ela não percebeu motivos para aplaudi-lo: “caso tivesse sido tenta-
da qualquer revolução do tipo pretendido [pela corrente jacobina], o povo que em
Paris saiu para tomar a Bastilha e guilhotinar reis não teria aparecido. As simpatias
das classes perigosas do Rio de Janeiro estavam mais voltadas à Monarquia”.114 Na
verdade, “os missionários da modernização identificavam na população brasileira o
grande obstáculo ao progresso”.115
Voltando ao Belo Monte, já salientei as razões principais que motivaram a sua
oposição ao novo regime: elas são ao mesmo tempo religiosas e político-econômi-
cas. Mas, efetivamente, a caracterização da República adquiriu contornos funda-
mentalmente teológicos:

valeria a pena saber até onde palavras como Império, Imperador, Rei não se pren-
dem a um universo semântico carregado da tradição inspirada em mitos, lendas,
parábolas e legendas redencionistas. Afinal, a História Sagrada registra a presença
de um Deus que é Rei [...] No reino messiânico haverá fartura e justiça. Ou seja, é
possível admitir que no combate ao ‘governo herege’ a escolha retórica difundida
pela tradição religiosa tenha ganhado o poder de nomear formas de organização que
estavam em distonia com o novo Estado brasileiro.116

Assim, mais que militante, a não ser em nível local, pela recusa aos impostos e aos
padres mancomunados com o novo regime, Belo Monte materializou uma oposição à
República que tinha na tradição religiosa seu fundamento básico e nos acontecimentos
presentes sua razão de ser. E para essa posição convergiam tanto Antonio Conselheiro
como sua gente. A partir dessa negação Belo Monte constituía sua identidade.
Dessa maneira, para o erguimento e viabilização do arraial conselheirista con-
correram uma visão que enfatizava a vida neste mundo, e não a fuga dele, como o
espaço e o meio de vivência da religião, experimentada no compromisso coletivo,
e outra que via no novo regime implantado no país uma ameaça à satisfação das
necessidades básicas da vida e à própria salvação escatológica.

A Igreja e o positivista

Do outro lado, aquele dos inimigos do arraial, é possível identificar algumas


relações, até certo ponto inusitadas, entre os posicionamentos sobre Belo Monte da
Igreja católica na Bahia, sintetizados no Relatório de frei João Evangelista, e aqueles
dos setores envolvidos com a implantação e consolidação do novo regime político
no país, de alguma forma representados na trajetória de Euclides da Cunha. Pos-
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 291

sivelmente soariam estranhas aos próprios envolvidos, o que não impede de fazer a
pergunta por elas, que definiram, em última instância, os destinos do arraial conse-
lheirista. O sinal desta convergência poderia ser a visualização de Belo Monte como
Jerusalém, não aquela do céu ou a anunciada no Apocalipse, mas aquelas das mal-
dições, seja a de Jesus, segundo frei João, ou a dos profetas de Israel, segundo Eucli-
des.117 Ou então a indisfarçável percepção do outro em termos que lembram o olhar
dos primeiros colonizadores europeus; o que abaixo se diz dos navegantes dos séculos
XV-XVI vale, com as devidas ressalvas, para os modernos “desbravadores” do sertão:

A atitude de Colombo para com os índios decorre da concepção que tem deles.
Podemos distinguir, nesta última, duas componentes, que continuarão presentes até
o século seguinte e, praticamente, até nossos dias, em todo o colonizador diante do
colonizado [...] Ou ele pensa que os índios [...] são seres completamente humanos
com os mesmos direitos que ele, e aí considera-os não somente iguais, mas idên-
ticos e este comportamento desemboca no assimilacionismo, na projeção de seus
próprios valores sobre os outros ou então parte da diferença, que é imediatamente
traduzida em termos de superioridade e inferioridade (no caso, obviamente, são os
índios os inferiores): recusa a existência de uma substância humana realmente ou-
tra, que possa não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo.118

A convergência entre as perspectivas representadas pelo Relatório atribuído a


frei João e pela obra de Euclides, mesmo Os sertões, sobre Belo Monte, é a afirmação
inequívoca da impossibilidade do dissenso que o arraial representava. Primeira-
mente é preciso notar, e já insinuei algo a respeito, que se foi estabelecendo uma
progressiva sintonia entre ambas as vertentes (Igreja e República) no tocante ao
problema que Belo Monte caracterizava. E uma não se julgava em condições de
intervir sem a complacência e o apoio de outra. Com efeito, a arquidiocese baiana
não se furtou ao pedido do governo do Estado para que enviasse os missionários
encarregados de dissolverem o arraial com a força de sua palavra e autoridade.
Podemos imaginar que os interesses específicos que confluiram ao envio da mis-
são fossem distintos (a afirmação do monopólio clerical e o restabelecimento da
“ordem” tributária e social), mas não foi difícil ver que eles convergiam. Por outro
lado, o poder civil (estadual e depois federal) só fez uso das armas contra Belo
Monte depois que a Igreja dera, por meio do Relatório, seu placet e, mais ainda,
insinuara que só uma ação enérgica daria conta do problema.
No entanto, para essa conjugação de interesses, nota-se uma inversão curiosa.
Se compararmos o Relatório atribuído a frei João com a obra de Euclides sobre
Belo Monte, verificaremos como o primeiro, embora preocupado em recuperar o
lugar da instituição eclesiástica entre os sertanejos do Conselheiro, se esforça em
292

apresentar a questão no quadro de uma teologia política (o Belo Monte aparece


no Relatório mais como um foco de subversão da ordem que um cisma religioso),
enquanto o segundo, cioso do regime político pelo qual batalhou e justamente por
isso foi enviado ao palco dos combates, desde o início procura definir a necessi-
dade do desaparecimento do Belo Monte em termos religiosos, e até teológicos, a
começar com a identificação do Belo Monte com a Vendeia francesa, passando pela
certeza da maldição profética sobre o arraial, até a caracterização do Conselheiro
como novo Montano. De vilarejo monarquista a milenarista, a análise euclidia-
na adquire uma tonalidade teológica surpreendente, configurando a inversão de
papéis a que me referi. E manifesta uma sintonia admirável com as preocupações
das elites eclesiásticas que se esmeraram, no decorrer dos séculos, em desqualificar
as manifestações religiosas autônomas, dos indígenas e das comunidades negras, e
mais recentemente as próprias expressões populares do catolicismo. Só nessa pers-
pectiva, de longa duração na história brasileira, se entendem expressões, estranhas
na pena de um agnóstico, como aquela segundo a qual em Belo Monte se vislum-
brava o caso de uma “seita esdrúxula – caso de simbiose moral em que o belo ideal
cristão surgia monstruoso dentre aberrações fetichistas”. Como poderia o escritor,
de outra forma, afirmar que o Conselheiro “abeirara-se apenas do catolicismo mal
compreendido”? A que atribuir a qualificação dada à cerimônia do “beija das ima-
gens” de “transmutação do cristianismo incompreendido”119? Não se pode deixar
de assinalar o acordo básico aqui notado entre o positivista Euclides e o receituário
doutrinal do catolicismo ortodoxo e mesmo romanizado! E na caracterização do
Conselheiro Euclides da Cunha se servirá das abordagens que autores liberais do
século XIX, Ernst Renan à frente, propuseram do cristianismo nascente, obvia-
mente incômodos às elites eclesiásticas de seu tempo. Mas, nas mãos de Euclides,
tais conceituações servirão a uma caracterização do Conselheiro que coincidirá, de
alguma forma, com as representações que os próprios agentes eclesiásticos da Bahia
faziam do líder de Belo Monte.120
Esta convergência, quanto às apreciações e aos interesses, foi decisiva para
impedir que o arraial do Conselheiro vingasse:

ainda que descontente com os termos e a ideologia republicanos da legislação em


vigor, a Igreja católica vai aos poucos entrando no esquema do status quo governa-
mental. Não faltarão ocasiões que propiciam a aproximação entre dirigentes civis
e eclesiásticos – Canudos será um momento apropriado para mostrar que as auto-
ridades civis e eclesiásticas pensam e agem no mesmo diapasão, quando se trata,
dizem elas, do bem comum da sociedade. A rejeição e condenação de Antônio
Conselheiro, o arrasamento de Canudos pela força das armas, foram obra comum
da Igreja e do Estado (1897). A Igreja recusava o profeta que, em sua pregação, se
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 293

afastava da ortodoxia e desencaminhava os fiéis com os seus ensinamentos terra-a-


terra; o Estado eliminava o messias subversivo que propunha um projeto alternativo
para a ordem social, contrariando e hostilizando o próprio regime republicano e
suas medidas inovadoras. Em qualquer hipótese, Igreja e Estado se davam as mãos
em uma cruzada que interessava a ambos: a destruição do homem (Antônio Con-
selheiro) e sua obra.121

Em outras palavras, “a República que não gerou o descompasso entre o Pere-


grino e os Pastores veio aprofundá-lo e oferecer a estes um pretexto forte e conve-
niente para uma composição com o novo regime”.122 É significativo que um fran-
ciscano, capelão na quarta expedição, tenha manifestado, no fim de suas memórias
sobre os acontecimentos relativos a Belo Monte, o desejo de que “Deus permita
que doravante o progresso social, político e religioso não seja de novo perturba-
do”.123 Destaque-se aí a referência ao progresso, em relação a que o empreendimen-
to conselheirista se mostrava como um entrave. E ainda a ideia de que o progresso
religioso corre junto ao social e político, entendidos, obviamente, no horizonte do
poder estabelecido.
Não estranhará, então, encontrar nos anos seguintes o avanço da reaproxima-
ção, da parte da instituição católica, com o regime que há pouco tempo considera-
va ímpio. A afirmação do princípio da ordem será reiterado nos posicionamentos
eclesiásticos durante boa parte do século que estava para começar.124 Do outro
lado também havia movimentos amistosos. Belo Monte foi propício para mostrar
a ambos os lados que seus interesses não eram assim tão diversos como parecia
inicialmente. A intervenção de frei João Evangelista é sugestiva ao evidenciar que o
regime republicano, a despeito de suas pretensões secularizantes, não se forjou sem
o recurso ao que foi chamado, adequadamente, “sagração do poder”. Esta fundara
a monarquia, tanto portuguesa como brasileira, e agora, de forma não tão sorratei-
ra, fundava os termos específicos de nossa república.125

Disjuntivas, a guerra

Para a guerra que efetivamente começou em fins de 1896 foi necessário não
só munição, organização militar, acordos dessa ou daquela natureza; foi neces-
sário também estigmatizar Belo Monte e o Conselheiro; aliás, essa última tarefa
precedeu a guerra e sobreviveu a ela, como mostram a obra maior de Euclides e
tantos pronunciamentos que se repetiram durante o século XX, reproduzindo-o ou
reforçando ainda mais os preconceitos já tão enraizados. Por exemplo, a afirmação
294

seguinte é taxativa: “o autor de Os sertões referia-se a um Antônio Conselheiro mui-


to particular, construído no ventre de sua obra literária e que pouca semelhança
guarda com o Conselheiro das Prédicas, dos documentos oficiais ou do imaginário
sertanejo”.126 Tal particularidade é funcional, como já vimos. Assim como não cabe
compreender os modos de ser e ver do sertanejo no arraial:

Não lhe [a Euclides da Cunha] importa muito o porque será Canudos, aos olhos
dos jagunços “a terra da promissão, onde corre um rio de leite e são cuscuz de milho
suas barrancas”. Puro engano de broncos, o rio é positivamente de água, um ele-
mento químico bem conhecido por suas propriedades, e não haverá sentido algum
perscrutar a sua essência.127

Mas os termos do relatório que leva o nome de frei João também são funcio-
nais: preparam a guerra. Efetivamente o “cerco discursivo” (para usar a feliz expres-
são de Bartelt) a que foi submetido o Belo Monte precedeu o surgimento do arraial
e não terminou com seu trágico desaparecimento.128 Particularmente foi necessário
estigmatizar Belo Monte em relação ao delicado processo de reformas vivido pela
Igreja católica no Brasil, costumeiramente chamado de romanização. João Evan-
gelista deixa, em seu relatório, indicações muito claras nesse sentido, ao avaliar
a maneira de Antonio Conselheiro e sua gente conceberem a função dos padres
no contexto que viviam. A avaliação desqualificadora que o frei capuchinho fazia
das expressões rituais da gente belomontense, particularmente do culto às imagens
dos santos, soa coerente com o que expressara alguns parágrafos antes: “[Antonio
Conselheiro] desconhece as autoridades eclesiásticas, sempre que de algum modo
lhe contrariam as ideias, ou os caprichos”.129 Assim, a destruição, antes de ser aquela
provocada pelas armas e pelo fogo, foi a do mundo religioso, primeiramente no
sertão em geral, depois em Belo Monte:

afeita a viver longe do padre, a gente do sertão habituou-se a prescindir da


sua presença. Isto não significa reconhecer-se desvinculada da hierarquia, nem
muito menos infensa a ela. São oferecidas, no entanto, condições especiais para
viver a sua fé. Um espaço é aberto para que o cristão leigo sinta-se capaz de to-
mar iniciativas no campo do culto e repassar, com certa liberdade, os conteúdos
doutrinais remanescentes. Entregue a si mesmo pela imposição das circunstân-
cias, ele encontra margem para desenvolver um processo seletivo e reinterpreta-
tivo das expressões da fé, em particular do culto que entre nós, como na história
milenar do cristianismo, foi o momento privilegiado dessa metamorfose. Nesse
filtro as crenças e os ritos sofrem evidentemente alterações, revestem-se de no-
vos conteúdos.130
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 295

No entanto,

de repente, [o povo] se viu separado dos seus santos, impedido de cumprir suas típi-
cas promessas. E o clero passou a reprovar suas atitudes e costumes religiosos. Não
é, pois, de estranhar que alguns desses grupos marginalizados vissem no sacerdote
um inimigo de sua religião e de sua fé.131

No caso do Belo Monte, que experimentava de modo peculiar esta dinâmica


mais geral, é preciso evitar conclusões simplistas, que o próprio frei João Evange-
lista pretende tirar, e que por vezes se refletem na pesquisa acadêmica. No estreito
limite entre o reconhecimento e a repulsa se movem Antonio Conselheiro e sua
gente. Não dispensam o ministério dos padres, mesmo após Masseté, nem os sa-
cramentos por eles ministrados. No entanto, se por um lado os aceitam, por outro
não os consideram estruturantes da organização religiosa que se está a fazer, nem
prestam aos sacerdotes, mesmo os mais simpáticos ao arraial, obediência cega. Frei
João menciona que o pe. Vicente Sabino dos Santos tinha ficado cerca de um ano
sem aparecer no arraial conselheirista, embora ali tivesse uma casa, por um “grande
desacato” que teria sofrido.132 O afastamento do padre é sinal de que a gente de
Belo Monte elabora com sua história uma alternativa inclusive no terreno religioso,
e lida criativamente com os elementos disponíveis, e de modo progressivamente
autônomo. O que não impedirá que, após a missão capuchinha, o velho padre
volte a realizar suas funções no arraial. Documentos de 1896 mostram-no batizan-
do crianças que têm o Conselheiro por padrinho. Os números da missão relativos
a casamentos, confissões e batizados “nos confirmam o quanto podia ser fluida a
fronteira entre o catolicismo oficial e o rústico, já que, por mais que os padres in-
vestissem contra as práticas canudenses e os sertanejos insistissem em mantê-las, o
papel dos missionários enquanto portadores do sagrado jamais foi questionado”.133
E só a retomada dos contatos com o arraial conselheirista explica os incidentes que
o vigário teve com Moreira César, em fevereiro de 1897, quando este se dirigia para
combater o arraial e encontraria a morte: “Padre Sabino, de Cumbe, que ia muito
a Canudos, foi por isso mesmo judiado pelo Moreira César, o corta-cabeça, e salvo
de ser fuzilado pelo Coronel Tamarindo”.134
À luz desse complexo cenário, de estigmatização da figura do Conselheiro e
as pretensões deste em encarnar no Belo Monte os preceitos da religião, que por
sua vez, sob o impulso de alguns de seus mais notórios dignitários, experimentava
uma reconfiguração de seu perfil, afetando não pouco os sentimentos e devoções
do povo, quero encerrar esse último capítulo deslocando-me, imaginariamente, ao
Santuário, a casinha em que vivia Antonio Maciel, a algum dos primeiros meses de
1895, antes de maio certamente. O beato munia-se, como já há tanto tempo, da
296

Bíblia e dedicava-se a fazer (sozinho ou com a ajuda de Leão de Natuba) a transcrição


do Novo Testamento para um caderno de anotações, com mais de oitocentas páginas
disponíveis. O trabalho de cópia avançava, deixava o livro dos Atos dos Apóstolos
e avançava pela carta de Paulo aos romanos quando o arraial recebe algumas visitas
inesperadas: o padre Sabino, do Cumbe, reaparecendo no arraial depois de um ano,
acompanhando dois missionários capuchinhos, o já tão citado frei João Evangelista
de Monte Marciano e o frei Caetano de S. Leo. Chegavam eles para a missão já tão
comentada nesse trabalho, e que teve as dramáticas implicações também já discutidas.
O trabalho de transcrição certamente teve de ser interrompido, ou ao menos haveria
de prosseguir mais lentamente, dada a tensão do momento e as exigências que a
missão colocava. Mas em algum momento, com toda probabilidade durante a
missão, parou-se com a cópia. Sabemos disso porque o caderno de 1895 tem, após
tal interrupção, a folha de rosto onde se lê: Apontamentos dos preceitos da divina lei de
nosso senhor Jesus Cristo, para a salvação dos homens, e a data 24 de maio de 1895, três
dias após a partida abrupta dos missionários e a maldição pronunciada sobre a Jeru-
salém do sertão. Recorde-se que frei João diz ter começado sua querela com o Conse-
lheiro em torno do tema da submissão à República, e teria dito o seguinte: “Senhor,
[...] se é católico, deve considerar que a igreja condena as revoltas, e, aceitando todas
as formas de governo, ensina que os poderes constituídos regem os povos, em nome
de Deus”. A reação da gente do Conselheiro também se deu no campo da polêmica:
“V. Revm. é que tem uma doutrina falsa, e não o nosso Conselheiro”.135 O que isso
teria a ver com a transcrição truncada, se é que teve?
Basta verificar onde a cópia é interrompida, antes da folha de rosto com a data.
Sua última frase é: “Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem”
(Romanos 12,31), no fim da p.554 do caderno. Exatamente antes da exortação
que, reconhecia Euclides, inspirara frei João: “Todo o homem esteja sujeito às po-
testades superiores; porque não há potestade que não venha de Deus; e as que há,
essas foram por Deus ordenadas” (Romanos 13,1).
O poder é de instituição divina. Submeter-se a ele é, de alguma forma, reconhecer
o poderio de Deus, agindo por seus representantes. Ora, foi justamente em torno deste
problema, o da submissão à autoridade estabelecida por conta do mandato divino que
esta possuiria, que se desenrolou o tenso debate entre os missionários e o Conselheiro.
Este tem agora, diante de si, em seu trabalho de transcrição, o texto que fundamentava
o argumento de frei João. O conteúdo de Romanos 13 estivera no centro do debate e
do impasse representado pela missão, e parecia dar razão ao capuchinho...
A interrupção da transcrição do texto sagrado por parte de Antônio Conselheiro
passa a fazer todo sentido. Ela exprime um impasse, na medida em que o que haveria
então de ser copiado, da forma como tinha sido interpretado, lhe pareceria inadmissí-
vel. Ser-lhe-ia possível admitir que este texto possa agora ser aplicado à república, algo
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 297

que sempre repugnou as concepções católicas convencionais? A interrupção da cópia


seria a expressão de uma recusa hermenêutica, mas também o reconhecimento de uma
impossibilidade interpretativa, ao menos no momento. Naquela situação, como em
todas as outras, o texto sagrado não era absorvido de forma mecânica, mas seletiva. Se
o Conselheiro se afastava de suas fontes, como vimos no caso do Compêndio narrativo e
da Missão abreviada, agora o distanciamento era particularmente dramático, na medida
em que se referia a um texto que não apenas tem aprovação eclesiástica, mas se apresen-
ta como sagrado e inspirado. Se o discurso religioso é aquele no qual “o homem faz falar
a voz de Deus”136, o Conselheiro terá notado incompatibilidades irreconciliáveis entre o
que se o clero apresentava como fala divina antes e depois da proclamação da Repúbli-
ca. Em outras palavras: a aplicação que Romanos 13, reconhecidamente, para ambas as
partes, voz de Deus feita palavra escrita, recebia da parte de frei João Evangelista soava
incoerente com aquilo que por décadas o Conselheiro escutara como voz de Deus e
internalizara, conformando sua trajetória existencial a ela. Então cabe interromper. A
resposta a esse impasse, situado tanto no âmbito do texto como da situação a que ele
aparecia vinculado, Antonio Maciel vai sugerir no manuscrito seguinte, de 1897, em
plena guerra, em sua prédica sobre a República, quando os poderes dela já se estiverem
articulando para o choque definitivo contra o arraial.
Não é o caso de proceder à análise da mais célebre das prédicas conhecidas de
Antonio Conselheiro, aquela sobre a República: exposições a respeito dela são poucas,
mas, pelo menos duas, abrangentes e mais que satisfatórias.137 Importa aqui apenas
destacar alguns aspectos. Primeiramente aquela passagem em que o Conselheiro parece
responder a si mesmo, ao texto sagrado, aos missionários e principalmente ao seu sé-
quito, a respeito do impasse que terá carregado durante tanto tempo; tamanha tensão,
agora reforçada pelas investidas militares, ressoa nesta página lúcida e categórica:

Todo poder legítimo é emanação da Onipotência eterna de Deus e está sujeito a


uma regra divina, tanto na ordem temporal como na espiritual, de sorte que, obede-
cendo ao pontífice, ao príncipe, ao pai, a quem é realmente ministro de Deus para
o bem, a Deus só obedecemos [...] É evidente que a república permanece sobre um
princípio falso e dele não se pode tirar consequência legítima...138

Temos nessa passagem a formulação do que foi o pensamento católico por tantos
séculos, a que o Conselheiro se mostra fiel, como o fora a Igreja nos tempos anterio-
res à proclamação da República e mesmo depois desta. O Conselheiro nada inventa,
mas demarca seu modo de ver, perfeitamente católico, distinguindo-o daquele expresso
por frei João Evangelista em maio de 1895. A seu modo, Antonio Maciel insere um
elemento relativizador à afirmação categórica do missionário: “os poderes constituídos
regem os povos, em nome de Deus”. Ao inserir o adjetivo “legítimo” após “todo po-
298

der”, o Conselheiro “desmonta” o tom indiscutível dos dizeres de frei João, e recoloca o
problema num nível mais delicado: o da legitimidade. Na verdade o tema já aparecera
antes, numa invectiva direta ao presidente da República: ele, “movido pela incredulida-
de que tem atraído sobre ele toda sorte de ilusões, entende que pode governar o Brasil
como se fora um monarca legitimamente constituído por Deus”.139
Além disso deixa no ar a mais que instigante suspeita de que a República só
foi proclamada por vingança ao fato de a princesa Isabel ter abolido a escravidão. A
passagem seguinte parece ser um desafio aos padres republicanos, àqueles que são
mestres no falar, mas confessam seus verdadeiros objetivos ao fazerem a oportunista
aliança com o novo regime; a Igreja está em perigo:

O sossego de um povo consiste em fazer a vontade de Deus e para obter-se a sua


glória é indispensável que se faça a sua divina vontade. Corrobora-se melhor esta
verdade pelo que diz Nosso Senhor Jesus Cristo (Mat., cap.7, v.21). Nem todo o
que me diz: Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus; mas sim o que faz a vontade
de meu pai que está nos céus; esse entrará no reino dos céus [...] É necessário que
se sustente a fé da sua [de Deus] Igreja. É necessário, enfim, que se faça a sua divina
vontade, combatendo o demônio que quer acabar com a fé da Igreja.140

O Conselheiro convoca sua gente para o combate, não apenas contra os sol-
dados das expedições sucessivas, mas contra o demônio e seus agentes, que querem
destruir a Igreja. O exemplo mais evidente de que há uma conspiração contra a
Igreja católica no Brasil é a implantação do casamento civil; com efeito, é a esse
tema que a prédica dedica particular atenção:

O casamento civil ocasiona a nulidade do casamento, conforme manda a santa


madre Igreja de Roma [...] Quando Deus autorizou com a sua presença o primeiro
estado que houve de casado no mundo, foi para nos mostrar as grandes excelências e
perfeição que nele se encerram e as obrigações que os casados têm de viver conforme
os preceitos divinos, unindo-se ambos numa só vontade [...] Porque é o casamento
(como todos sabem) um contrato de duas vontades ligadas com o amor que Deus
lhes comunica, justificados com a graça que lhes deu Nosso Senhor Jesus Cristo e
autorizada com a cerimônia que lhes juntou a santa madre Igreja, que este é o efeito
de um verdadeiro desposório: unir duas almas em um corpo; porém importam
obrigações dos preceitos divinos, que devem guardar em primeiro lugar e muito
à risca: todos os casados têm obrigação de viver perfeitamente no seu estado, sem
embargo de qualquer encargo ou desgosto. Em razão dos respeitos humanos, são
necessárias muitas circunstâncias para se guardar este perfeito estado, tanto para
segurança da honra e descaso da vida. Estas verdades demonstram que o casamento
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 299

é puramente da competência da santa Igreja, que só seus ministros têm poder para
celebrá-lo; não pode, portanto, o poder temporal de forma alguma intervir neste
casamento, cujo matrimônio na lei da graça Nosso Senhor Jesus Cristo o elevou à
dignidade de sacramento, figurando nele a sua união com a santa Igreja, como diz
São Paulo. Assim, pois, é prudente e justo que os pais de família não obedeçam à
lei do casamento civil, evitando a gravíssima ofensa em matéria religiosa que toca
diretamente a consciência e a alma.141

O casamento civil soa como ingerência inaceitável do poder secular sobre re-
alidades de ordem espiritual, ocasionando “o pecado do escândalo”, contra o qual
Deus não fará uso de sua misericórdia.142 O Conselheiro está de todo convencido
de que o regime que assim age não perdurará:

A república há de cair por terra para confusão daquele que concebeu tão horrorosa
ideia. Convençam-se, republicanos, de que não hão de triunfar porque a sua causa
é filha da incredulidade, que a cada momento, a cada passo está sujeita a sofrer o
castigo de tão horroroso procedimento.143

E, como se soubesse que frei João tinha lançado sobre seu Belo Monte maldi-
ção inspirada nas palavras desoladas de Jesus sobre Jerusalém, Antonio Maciel cita
essas mesmas palavras do Evangelho: “Ah! Se ao menos neste dia que agora te foi
dado conhecesses o que te pode trazer a paz, mas por ora tudo isto está encoberto
a teus olhos”. Note-se, contudo, que o tom é outro: se no caso do missionário tra-
tava-se de um lance praticado por quem, ao voltar dali, envidaria todos os esforços
para que o arraial desaparecesse, no caso do Conselheiro o que ocorreu a Jerusalém
é uma prova do que ocorre aos inimigos de Deus e da religião.144
Assim, Antonio Conselheiro se apresenta como o último defensor dos valores
e convicções que a hierarquia católica buscou incutir em seus fiéis durante tanto
tempo, e que em poucos anos descartou, em nome de uma composição sempre
mais estreita com o novo regime. Embora esse elemento não explique, sozinho, o
surgimento do arraial e mesmo a guerra, ele é indispensável para a compreensão
dos dramáticos conflitos que o originaram e o levaram à brutal eliminação. Esse
embate particular, contra o novo regime e contra os padres que se aliaram ao de-
mônio, é um fulcro decisivo em torno do qual se definiram os contornos da guerra,
simbólica e armada. Também o é aquela interrupção forçada na cópia da Bíblia.
Tal embate tem como objetivo insistente “a vossa [dos belomontenses] salvação e
o bem da Igreja”.145 Salvação que deriva necessariamente da vida bem vivida; bem
que deriva da fidelidade da Igreja a sua doutrina, e não de adesões oportunistas. Por
esses ideais Belo Monte surgiu, e foi dizimado.
300

CONCLUSÃO
Assistiu-se em Belo Monte e ao seu redor um verdadeiro “conflito de inter-
pretações”, derivado e alimentado intensamente de referências bíblicas, estabele-
cidas proeminentemente como alteridade no endereçamento das questões huma-
nas, justamente por permitir tantas possibilidades de significações a partir de cada
partícula de seu texto. Transmitida como código majestoso de compilações das
estruturas éticas e morais, ensaiadas e articuladas à saciedade no curso de um seg-
mento expressivo da saga humana, a Bíblia, tal como assistimos na tragédia serta-
neja, crava, inscreve, suscita múltiplos sentidos, constitui verdadeiro caleidoscópio
de interpretações, faustamente diversificadas. No sertão do Conselheiro serviu de
léxico, sintaxe, gramática e prosódia para as expressões genuínas do desamparo e
esperanças de brasileiros no seco e implacável interior nordestino; já no sertão da
igreja, defensora contumaz de seu status quo e dos privilégios que secularmente veio
acumulando, reinventou a subserviência ao poder constituído e reiterou o reivindi-
cado monopólio da salvação; finalmente, no sertão das capitais do Brasil recém-in-
gressado na república em busca de novas afirmações quanto a sua identidade, onde
reverbera o tosco positivismo, sustentou, através da pena de Euclides, a eliminação
do outro em nome de ideais supostamente civilizatórios, de um “cristianismo bem-
compreendido” e da superação do atraso.
Ou seja, encontramos situação a um só tempo distinta e semelhante à ve-
rificada na Inglaterra do século XVII estudada por Hill, em que a Bíblia se fez
referência, não apenas na forma de livro impresso, para a configuração e crítica
de sentidos, ações e instituições. Cosmovisões diferenciadas convergiram e con-
flitaram às margens do Vaza-barris, perfazendo um dos mais sangrentos lances da
história brasileira. O sonho por reeditar a terra da promissão não era incompatível
com o anseio pela salvação escatológica; aliás, este último se desenhou com con-
tornos diferenciados ao se articular com o primeiro. Mas ambos se chocaram com
posições peremptórias, intolerantes frente à diversidade; e não sobreviveram à pro-
clamação categórica e oportunista da sacralidade do poder (qualquer poder) e da
inferioridade de quem pensa e age a partir de outros referenciais e parâmetros. De
modo que a Bíblia, por meio de inscrições tão surpreendentemente distintas, tanto
fundamentou e deu vigor ao surgimento do arraial conselheirista como viabilizou
sua destruição.
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 301

NOTAS
1  Roger Bastide. Brasil, terra de contrastes. Difusão Europeia do Livro, São
Paulo, 1959, p.87-88.
2  Veja as p.92-94 de Brasil, terra de contrastes. Saliente-se que Bastide acerta
mais no que sugere do que no detalhe, já que não parece conveniente generalizar a
“Terra sem males” dos índios Apapocúva-Guarani para grupos de outras regiões. Há
todo um conjunto de controvérsias sobre esta questão que não é possível aqui reto-
mar (leia-se, a propósito, Ronaldo Vainfas. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia
no Brasil colonial. Companhia das Letras, São Paulo, 1995, p.41-46; Maria Cristina
Pompa. Religião como tradução: Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial. Tese de doutora-
do, Campinas, 1995, p.93-131). De toda forma, a sugestão de Bastide permanece,
ao evidenciar o intercâmbio entre tradições bíblicas e autóctones.
3  Hilário Franco Júnior. Cocanha: a história de um país imaginário. Compa-
nhia das Letras, São Paulo, 1998.
4  Hilário Franco Júnior. “Apresentação”. In: Hilário Franco Júnior (org.)
Cocanha: as várias faces de um país imaginário. Ateliê, São Paulo, 1998, p.10.
5  Hilário Franco Júnior. Cocanha: a história de um país..., p.295, n.145. A
diferença entre um e outro, segundo Hilário Franco, estaria em que na história
de Cocanha se expressa um desejo, enquanto no Belo Monte se materializa um
projeto.
6  Manoel Camilo dos Santos. “Viagem a São Saruê”. In: Hilário Franco
Júnior (org.) Cocanha: as várias faces..., p.175-176. Este cordel surgiu em 1947.
7  Hilário Franco aventa as seguintes etapas do caminho que conduziu a his-
tória de Cocanha desde a Europa medieval até o sertão do século XX: as condições
sócio-culturais do Nordeste, a influência holandesa, as tradições indígenas e o subs-
trato medieval francês (Cocanha: a história de um país..., p.220-226). Evidente-
mente ficou minimizada a presença das tradições bíblicas, que inclusive na Idade
Média fundaram o “ideal anticristão” da Cocanha (Jacques Le Goff. “Prefácio” a
Cocanha: a história de um país..., p.7-13).
8  Manoel Camilo dos Santos. “Viagem a São Saruê”. In: Hilário Franco
Júnior (org.) Cocanha: as várias faces..., p.172. O já citado Pedro de Rates Hene-
quim, português chegado às Minas Gerais no início do século XVIII e autor de
uma curiosa e atrevida cosmologia, tinha certeza de que o vinho com que no livro
bíblico do Cântico dos Cânticos se celebra o prazer de dois amantes na verdade é
uma “bebida, que há no Brasil, que se faz de milho pisado” (Plínio Freire Gomes.
Um herege vai ao paraíso: cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição
[1680-1744]. Companhia das Letras, São Paulo, 1997, p.166; veja comentário à
tese de Henequim, que está se referindo ao cauim, às p.118-119).
302

9  Manoel Camilo dos Santos. “Viagem a São Saruê”. In: Hilário Franco Jú-
nior (org.) Cocanha: as várias faces..., p.170. São vários os textos sobre a Cocanha
que falam do “rio de leite”: na versão italiana ele “nasce de uma grota / e corre pelo
meio do país” (citado por Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes. O cotidiano e as
ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Companhia das Letras, São Pau-
lo, 1998, p.165). Veja outras citações em Hilário Franco Júnior (org.) Cocanha: as
várias faces..., p.43.80.91.101.120.
10  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório apresentado, em 1895, pelo
reverendo Frei João Evangelista de Monte Marciano, ao Arcebispado da Bahia, sobre
Antonio Conselheiro e seu séquito no arraial dos Canudos. Tipografia do Correio
da Bahia, Salvador, 1895 (edição em fac-símile pelo Centro de Estudos Baianos,
1987), p.5.
11  Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes..., p.157.
12  Veja texto de Nóbrega em Ronaldo Vainfas. A heresia dos índios..., p.52.
13  Jacques Le Goff. “Prefácio” a Cocanha: a história de um país imaginário...,
p.10.
14  Roger Bastide. Brasil, terra de contrastes..., p.92.
15  Maria Cristina Pompa. Memórias do fim do mundo: para uma leitura do
movimento sócio-religioso de Pau de Colher. Dissertação de Mestrado, Unicamp,
Campinas, 1995, p.164. A exposição de Alexandre Otten a esse respeito é abran-
gente (“Só Deus é grande”: a mensagem religiosa de Antonio Conselheiro. Loyola,
São Paulo, 1990, p.287-299). Apenas não estou convencidos de que essa apocalíp-
tica, particularmente no tocante ao tema do fim, seja tão central no pensamento
e visão de mundo do Conselheiro (enquanto líder de Belo Monte) como pensa
Otten. Quanto ao termo, recorde-se o exposto na nota 98 do capítulo I.
16  Maria Cristina Pompa. Memórias do fim do mundo..., p.159. Vale para
o Belo Monte e para o sertão em geral essa e outras afirmações que Pompa faz a
respeito do já citado movimento de Pau de Colher.
17  É conhecida a profecia atribuída a frei Vital da Penha, que viveu no fim
do século XVIII (texto em Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra. Ática,
São Paulo, 1995, p.236). Também nas memórias populares do pe. Cícero, que,
aliás, citava constantemente frei Vital, o tema do fim próximo do mundo era re-
corrente (Maria da Conceição Lopes Campina. Voz do padre Cícero [organização
Eduardo Hoornaert]. Paulinas, São Paulo, 1985, p.23-24.35-36.124-126.154-
155.159.179, etc.). Estranhamente, contudo, em outro momento Hoornaert tenta
desvincular pe. Cícero deste universo apocalíptico (Os anjos de Canudos..., p.119-
120). O então famoso Missão abreviada, livro de que terei de tratar ao retomar as
prédicas de Antonio Conselheiro, numa de suas instruções diz: “são chegados os
últimos tempos do mundo, ninguém o pode contestar” (Manoel José Gonçalves
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 303

Couto. Missão abreviada para despertar os descuidados, converter os pecadores e sus-


tentar o fruto das missões. 9 ed., Sebastião José Pereira, Porto, 1873, p.549). Isso em
meio a tantas considerações sobre o juízo, o inferno e outros temas escatológicos.
Também as memórias relativas ao padre Ibiapina, a quem ainda aludirei, conser-
vam palavras suas a respeito do fim dos tempos (Georgettes Desrochers e Eduardo
Hoornaert [org.] Padre Ibiapina e a Igreja dos pobres. Paulinas, São Paulo, 1984,
p.135-138).
18  Maria Cristina Pompa. Memórias do fim do mundo..., p.161.
19  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.289; veja Maria da Conceição
Lopes Campina. Voz do padre Cícero e outras memórias..., p.89.
20  Veja Maria da Conceição Lopes Campina. Voz do padre Cícero..., 1985,
p.65.73-74.103.147-148, etc.
21  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova. 2 ed., Renes / Instituto Nacional
do Livro, Rio de Janeiro / Brasília, 1983, p.49.
22  José Luiz Fiorin. “O discurso de Antônio Conselheiro”. In: Religião e
Sociedade. Rio de Janeiro, 1980. n.5, p.118.
23  José Luiz Fiorin. “O discurso de Antônio Conselheiro”..., p.120.
24  Pietro Vittorino Regni. Os capuchinhos na Bahia. U. T. J., Jesi, 1991, v.3,
p.100.
25  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.283-284.
26  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.284-285. José Antonio Maria
Ibiapina (1806-1883), ordenado padre depois de exercer vários cargos públicos,
passa grande parte do seu ministério sacerdotal entre os pobres do sertão nordes-
tino, construindo casas de caridade, ao mesmo tempo em que atacava os maçons
e praticantes do vício. Segundo muitos autores, inclusive Otten, a influência de
Ibiapina sobre o Conselheiro, embora não constatada por um contato direto, é
indiscutível (veja “Só Deus é grande”..., p.265-273).
27  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.286-287.
28  Carta de Aristides Borges ao barão de Jeremoabo, de 2/4/1897, citada por
Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.332.
29  Nuno Marques Pereira. Compêndio narrativo do peregrino da América. 6
ed., Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 1939, 2v. O segundo volume
permaneceu inédito até esta edição. Do autor praticamente nada se sabe.
30  Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 36 ed., Cultrix, São
Paulo, 1994, p.46; Jerusa Pires Ferreira. “Notas preliminares para uma leitura do
Compêndio narrativo do peregrino da América, de Nuno Marques Pereira”. In: Revis-
ta USP. São Paulo, 2001. n.50, p.20. Uma presença sugestiva é a manifestada por
Ariano Suassuna em seu A pedra do Reino: a personagem Quaderna fala de Nuno
Marques como mestre e precursor.
304

31  Nuno Marques Pereira. Compêndio narrativo..., p.21.


32  Nuno Marques Pereira. Compêndio narrativo..., p.132).
33  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Como Adão e Eva foram feitos
por Deus o que lhes sucedeu no Paraíso até que foram desterrados dele por
causa do pecado”. In: Apontamentos dos preceitos da divina lei de nosso se-
nhor Jesus Cristo, para a salvação dos homens. Manuscrito, Belo Monte, 1895,
p.165-173.
34  Antonio Vicente Mendes Maciel. Tempestades que se levantam no
coração de Maria por ocasião do mistério da anunciação. Manuscrito, Belo
Monte, 1897, p.442-443.558-559. In: Ataliba Nogueira. António Conselheiro
e Canudos: revisão histórica. 3 ed., Atlas, São Paulo, 1997, p.159.185.
35  Antonio Vicente Mendes Maciel. Tempestades que se levantam..., p.343-
346. In: Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos..., p.136-137.
36  Extraído de Manoel Benício. O rei dos jagunços..., p.29. Otten opina que
o texto seja efetivamente do governador do Arcebispado, Mons. Santos Pereira,
visto que D. Luís só assumiu o posto em agosto de 1882 (“Só Deus é grande”...,
p.308). A acusação, ou pelo menos a suspeita, de que Antonio Conselheiro esteja
extrapolando seu lugar de simples leigo vem, pelo menos, de 1875, pouco depois
de aparecer nos sertões da Bahia e de Sergipe como peregrino (veja Cândido da
Costa e Silva “O peregrino entre os pastores”. In. Cadernos de literatura brasileira.
São Paulo, 2002. n.13/14, p.204).
37  O documento exorta os padres a que se dediquem ciosamente à pregação,
para que seus fiéis “não se deixem levar por todo o vento de doutrina”. Avalia que
o descaso dos ministros com o exercício competente da pregação tem permitido
o surgimento de gente como Antonio Conselheiro que, embora implicitamente
reconhecido como “instruído e virtuoso”, propaga “doutrinas supersticiosas e uma
moral excessivamente rígida”. A aparente contradição é plenamente explicável: é
necessário desqualificar o conteúdo da pregação para que o simples exercício dela
se veja desautorizado. Mas a doutrina só é adequadamente verdadeira se emanada
de alguém autorizado.
38  Sebastião Monteiro da Vide. Constituições primeiras do arcebispado da
Bahia. Paschoal da Silva, Lisboa, 1719, p.208. Trata-se de texto aprovado pelo
sínodo arquidiocesano de 1707, que veio a ser reeditado em 1853 (Tipografia 2 de
Dezembro, São Paulo), com um “Apêndice para se mostrar em que a Constituição
do Arcebispado da Bahia se acha revogada pelas Leis do Império, e modificada final-
mente pelos usos e costumes”, em que se lê que “cessou a pena de prisão” a quem
infringir o disposto no referido artigo (p.159).
39  Sebastião Monteiro da Vide. Constituições primeiras do arcebispado da
Bahia..., p.207-208.
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 305

40  Para as idas e vindas no reconhecimento eclesiástico da pregação leiga


no território da arquidiocese baiana, veja Cândido da Costa e Silva. “O peregrino
entre os pastores”..., p.209-212.
41  Eduardo Hoornaert. Os anjos de Canudos: uma revisão histórica. Vozes,
Petrópolis, 1997, p.40-43.
42  “A igreja no Brasil”. In: Enrique Dussel (org.) Historia liberationis: 500
anos de história da Igreja na América Latina. Paulinas, São Paulo, 1992, p.311.
43  Dawid Danilo Bartelt. “Cerco discursivo de Canudos”. In: Cadernos do
Ceas. Salvador, 1997. s/n, p.42. Aí se lê o teor da carta enviada pelo arcebispo ao
presidente da província, solicitando providências em relação ao Conselheiro.
44  José Augusto Carvalho Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro inimigo:
a guerra simbólica contra Canudos. Edufba, Salvador, 1995, p.139. No entanto,
duas páginas antes, o autor pôde, comentando o relatório de frei João, afirmar que
a ação conselheirista foi aí caracterizada como herética!
45  Bastos reconhece que o problema fundamental que opôs o Conselheiro à
hierarquia católica foi “o exercício do monopólio dos ofícios de salvação e da dou-
trinação dos povos” (Incompreensível e bárbaro inimigo..., p.133).
46  Uma ambiguidade semelhante a essa encontramos na afirmação seguinte:
“[No Relatório] a questão da doutrina da seita fica para o segundo plano. As de-
núncias quanto às heresias não pesam no contexto” (Alexandre Otten. “Só Deus é
grande”..., p.322). A questão não soa muito exata se formulada apenas dessa forma,
ainda mais se se leva em conta o que lemos na mesma página: “a heresia do Con-
selheiro é, antes de tudo, o fato de ele se tornar autoridade para o povo simples do
sertão e suplantar a Igreja institucional [...] Eclipsando as autoridades eclesiásticas
qualquer ortodoxia se torna heresia”.
47  Alexandre Otten, “Só Deus é grande”..., p.309. Otten situa essa passagem
do nível da desobediência para o da doutrina entre os anos 1886 e 1888. Mas o
documento de 1882 permite datar esta passagem de alguns anos antes. Não quero
alongar-me nessa questão, mas cabe reafirmar o que julgo ser o equívoco básico
das análises comentadas: a “teologia tradicional católica” não é algo intocável e
imutável. Aquilo que posteriormente será considerado a doutrina católica foi sendo
definido aos poucos, em meio a muitos conflitos de poder no interior da igreja em
toda a sua história. Isolar o corpo de ideias ditas “ortodoxas” dos agentes que as tor-
naram assim e se fizeram seus administradores levaria ao equívoco de considerá-las
isentas de circunstâncias conjunturais e históricas, seja quanto a sua origem, seja
quanto a sua aceitação oficial.
48  E não é apenas o texto de 1 Pedro 2,13-17, aquele citado por Euclides,
que se somou a Romanos 13 na configuração de uma suposta doutrina neotesta-
mentária sobre o Estado. Veja-se, por exemplo, a passagem seguinte: “Lembra-lhes
306

[aos cristãos] que devem ser submissos aos magistrados e às autoridades, que devem
ser obedientes e estar sempre prontos para qualquer trabalho honesto” (Tito 3,1).
Outro, dos mais importantes, é Marcos 12,17, sempre traduzido por “Dai a César
o que é de César e a Deus o que é de Deus” e compreendido, em especial a partir
da Idade Média, como justificadora da existência harmônica dos poderes políti-
co e sagrado (Rubén Dri. A utopia de Jesus. Ícone, São Paulo, 1986, p.139-140).
Também os textos da Bíblia judaica idealizadores do rei Davi tiveram significativa
importância na constituição dessa teologia política cujas linhas principais estou
apresentando.
49  Marc Reydellet. “La Bible miroir des princês du IVe au VIIe siècle”.
In: Jacques Fontaine et Charles Pietri (org.). Le monde latin antique et la Bible.
Beauchesne, Paris, 1985, p.434.
50  Agostinho poderá solicitar: “o poder de dar o império e o reino não o atri-
buamos senão ao verdadeiro Deus, que dá a felicidade no reino dos céus somente aos
piedosos, e o reino terrestre a piedosos e ímpios, como lhe apraz a Ele, a quem nada
apraz injustamente” (A cidade de Deus. 4 ed., Vozes, Petrópolis, 1999, p.222 [Livro
V, capítulo XXI]). Veja Marc Reydellet. “La Bible miroir des princês du IVe au VIIe
siècle”..., p.440-445. E Pierre Riché nota que as duas citações que estou comentando
estão entre as mais utilizadas na afirmação do poder carolíngio (“La Bible et la vie
politique dans le haut Moyen Age”. In: Pierre Riché et Guy Lobrichon (org.) Le moy-
en age et la Bible. Beauchesne, Paris, 1984, p.400). Neste contexto se pode entender,
por exemplo, que o monarca cristão, porque ungido do Senhor, seja considerado
capaz de atividades taumatúrgicas e seu poder seja encarado como sobrenatural, isso
na Idade Média e mesmo em pleno absolutismo francês do século XVIII (Marc Blo-
ch. Os reis taumaturgos. O caráter sobrenatural do poder régio – França e Inglaterra.
Companhia das Letras, São Paulo, 1998). Com efeito, as disputas do século XIV e
o advento da Reforma Protestante não fizeram alterar o teor básico da doutrina do
direito divino dos reis; ao contrário, reforçaram-no, no que o texto de Romanos 13
jogou papel importante.
51  Klaus Wengst. Pax romana: pretensão e realidade. Paulinas, São Paulo,
1991, p.116. O autor acrescenta: “Paulo [...] não quer dar algo como uma teoria
do Estado, mas exorta aqueles a quem dirige a carta a se submeterem às diversas
autoridades [...] ele exorta-os, portanto, a se comportarem com lealdade” (p.117).
52  Ernst Käsemann. “Puntos fundamentales para la interpretación de Rm
13”. In: Ensayos exegéticos. Sígueme, Salamanca, 1978, p. 33. E mesmo o surgimen-
to da exegese crítica não arrefeceu a força da leitura tradicional inspirada em Rm
13: “No que tange às relações com o estado vale igualmente que o cristão deve sub-
meter-se a ele como algo dado dentro da ordenação do mundo, já que é instituição
de Deus [...] O ódio que vai crescendo contra Roma no Apocalipse não se baseia
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 307

num rechaço por princípio da ordenação do estado, mas surge da irritação produ-
zida pela pretensão do culto a César, o que, naturalmente, vai além dos limites da
obediência cristã. Não devemos, pois, considerar a postura do Apocalipse como
contradição ao reconhecimento geral da ordenação estatal” (Rudolf Bultmann. Te-
ología del Nuevo Testamento. Sígueme, Salamanca, 1981, p.659-660).
53  Marilena Chauí. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. Perseu
Abramo, São Paulo, 2000, p.79-87.
54  Citado em Laura de Mello e Souza e Maria Fernanda Baptista Bicalho.
1680-1720: o império deste mundo. Companhia das Letras, São Paulo, 2000, p.7.
55  Hugo Fragoso. “O apaziguamento do povo rebelado mediante as missões
populares, Nordeste do II império”. In: Severino Vicente da Silva (org.) A Igreja e o
controle social nos sertões nordestinos. Paulinas, São Paulo, 1988, p.29.
56  p.3 (grifo nosso).
57  A carta é de 08/09/1889, e reage ao projeto de lei enviado pela princesa
Isabel ao Senado, instituindo no país a liberdade de culto. Essa medida, garante o
arcebispo, é sinal da queda do império e do triunfo dos inimigos da Igreja.
58  O argumento da carta é cuidadosamente estudado por José Augusto Ca-
bral Barretto Bastos (Incompreensível e bárbaro inimigo..., p.107-116), donde foi
tirada a presente citação (p.108).
59  Até aqui a citação do salmo 2,1-2, assim traduzido por Figueiredo: “Por
que razão se embraveceram as nações, e os povos meditaram coisas vãs? Os reis
da terra se sublevaram, e os príncipes se coligaram contra o Senhor e contra o seu
Cristo”.
60  Citado em José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro
inimigo..., p.111-112.
61  Veja texto em Anna Maria Moog Rodrigues (org.) A Igreja na República.
Universidade de Brasília, 1981, p.24. Por isso, deve ser matizada a afirmação de
Sérgio Buarque de Holanda, para quem a Pastoral coletiva “surge quase como um
aplauso franco ao regime republicano” (Raízes do Brasil. 26 ed., Companhia das
Letras, 1999, p.118).
62  Oscar de Figueiredo Lustosa. A igreja católica no Brasil república. Paulinas,
São Paulo, 1991, p.25.
63  Abelardo Montenegro. Fanáticos e cangaceiros. Henriqueta Galeno, For-
taleza, 1973, p.138.
64  Vale relembrar o artigo do crítico literário alemão, “A guerra como painel
e espetáculo. A história encenada em Os sertões”. In: História, ciências, saúde. Rio
de Janeiro, 1998. v.5, p. 13-37.
65  “Para amarrar a matéria [constitutiva do livro, Euclides] tomou ainda
emprestada dos canudenses [...] a visão escatológica. E mostra como, através da
308

inversão demoníaca das imagens bíblicas que presidem ao mito salvacionista, é


possível aderir ao ponto de vista deles. Isso se efetiva através da imitação – ou mais
precisamente mimese – da narrativa bíblica, que começa pelo Gênese e termina
pelo Apocalipse, por meio do qual foi possível traçar o arco que vai da gênese de
Canudos até seu aniquilamento pelo fogo, em conjunção com as profecias bíblicas”
(Walnice Nogueira Galvão. “Euclides da Cunha. Os sertões”. In: Lourenço Dantas
Mota [org.] Introdução ao Brasil. . Senac, São Paulo, 1999, p.190).
66  Eduardo Hoornaert. Os anjos de Canudos..., p.81-82.
67  Renan (1823-1892) foi autor de uma obra monumental, a Histoire des
origines du christianisme (surgida entre 1863 e 1882), assumida por Euclides com
particular acento no aspecto seu racial e evolucionista (Luiz Costa Lima. Terra
ignota: a construção de Os sertões. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1997,
p.108-124; veja também José Leonardo do Nascimento. “De Marc-Aurèle de Er-
nest Renan a Os sertões de Euclides da Cunha: milenarismo e atraso histórico”. In:
Interpretações sobre o movimento sertanejo de Canudos. Faculdades Salesianas, Lore-
na, 1997, p.13-18). Segundo Otten, a leitura de Renan forma, com as teorias da
escola antropológica italiana e da psicologia das multidões, o arcabouço teórico da
análise sobre a religiosidade do Conselheiro e de sua gente que lemos em Os sertões
(“Só Deus é grande”..., p.51).
68  Euclides da Cunha. Os sertões: campanha de Canudos. 4 ed., Ateliê, São
Paulo, 2009, p.254.
69  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.255. Além do montanismo, sobre o
qual já terei de tratar, Euclides cita os “adamitas infames”, que, segundo Renan,
“pretendiam renovar os dias do paraíso terrestre por meio de práticas muito afas-
tadas da inocência primitiva” (Marc-Aurèle et la fin du monde antique. 26 ed., Cal-
mann-Lévi, Paris, 1929, p.125); os “ofiólatras”, “pagãos adoradores da serpente, a
quem conveio um dia chamar-se cristãos” (Marc-Aurèle..., p.132); os “maniqueus”,
indefinidos entre o ideal cristão e o budista (Marc-Aurèle..., p.136), os “discípulos
de Marcos”, um gnóstico que propunha “fórmulas sobre a tétrade” e “inventou
sacramentos particulares” (Marc-Aurèle..., p.127) e os “encratitas abstinentes”, que
repudiavam o casamento, e por consequência as relações sexuais, o vinho e a carne,
e se serviam apenas de água nos rituais (Marc-Aurèle..., p.166-167).
70  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.275.
71  Ernst Renan. Marc-Aurèle…, p.207. O montanismo foi objeto de alguns
estudos importantes surgidos no século XX, que certamente matizariam e recolo-
cariam as afirmações de Renan em outro patamar. Mas aqui importa recuperar a
visão do historiador francês a respeito do movimento, para que se possa verificar
mais detidamente a compreensão euclidiana a respeito, baseada integralmente nele.
72  Ernst Renan. Marc-Aurèle..., p. 207-208.210.
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 309

73  Ernst Renan. Marc-Aurèle..., p.211.213.


74  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.275; Ernst Renan. Marc-Aurèle..., p.222.
75  Ernst Renan. Marc-Aurèle..., p.243-244; Euclides da Cunha. Os sertões..., p.276.
76  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.276; Ernst Renan. Marc-Aurèle..., p.553.
77  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.276.
78  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.274-275. E não apenas se encontram
no Conselheiro traços anteriormente verificados em Montano; Euclides considera
possível supor no antigo heresiarca aquilo de que tinha certeza em relação ao líder
sertanejo: “O frígio pregava-a [a moral, ‘a castidade exagerada ao máximo horror pela
mulher’], talvez como o cearense, pelos ressaibos remanentes das desditas conjugais”
(Os sertões..., p.276). Quanto ao “refluxo do cristianismo para o seu berço judaico”,
por este último se entenda, principalmente a expectativa da instauração do reino de
Deus neste mundo, como julgava Euclides que Belo Monte estaria aguardando (veja
Marilena Chauí. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária..., p.78).
79  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.276.
80  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.300 (destaque do autor).
81  Ernst Renan. Marc-Aurèle..., p.215;.Euclides da Cunha. Os sertões...,
p.278.
82  “O rebelado [o Conselheiro] arremetia com a ordem constituída porque
lhe afigurava iminente o reino de delícias prometido. Prenunciava-o a República
– pecado mortal de um povo – heresia suprema indicadora do triunfo efêmero do
Anticristo” (Os sertões..., p.319).
83  Recordem-se aqui os pontos já desenvolvidos sobre essa “profecia” (Ca-
derneta de campo..., p.74-75): primeiramente Euclides atribui ao Conselheiro um
texto anônimo; e julga milenarista um texto que apenas fala do fim próximo.
84  As confusões no tocante a essas duas concepções são comuns, e levam
a equívocos quando se pretende compreender o universo religioso dos diversos
movimentos religiosos (Jean Delumeau. História do medo no Ocidente: 1300-1800:
uma cidade sitiada. Companhia das Letras, São Paulo, 1996, p.207-215).
85  Ernst Renan. Marc-Aurèle..., p.233.
86  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.278.
87  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.255. A percepção do Conselheiro,
acompanhado de figuras desconhecidas do cristianismo das origens, mormente
Montano da Frígia, fica definitivamente comprometida: ele “está fora do nosso
tempo” (Os sertões..., p.222).
88  Aleilton Fonseca. “Os sertões: as prédicas de Antônio Conselheiro e a
poesia de Canudos”. In: O olho da história. Salvador, 1996. v.2, n.3, p.127 (as
citações de Os sertões são da p.280.282.283). Acrescentem-se ainda as afirmações
de Euclides que dão conta de um Conselheiro dotado de “uma oratória bárbara e
310

arrepiadora” (Os sertões..., p.274); elas são gratuitas, senão no fato de que formam
parte do quadro cujas características básicas procuro aqui expor.
89  “Quem não vê o enorme perigo de uma crença como essa?”, eis a per-
gunta que Renan se fazia para expor e justificar a reação da hierarquia eclesiástica
ao montanismo que se espalhava ameaçadoramente por toda parte (Ernst Renan.
Marc-Aurèle…, p.212-213). Euclides a todo momento, ao apresentar Antonio
Conselheiro e sua suposta pregação, se pergunta pelo perigo, mas também pela
insânia das concepções que faziam a vida e as ilusões da gente de Belo Monte.
Para ambos a solução para tais fanatismos era um só: “Se Marco Aurélio... tivesse
empregado a escola primária e um ensino de Estado racionalista, ele teria pre-
venido mais eficazmente a sedução do mundo pelo sobrenatural cristão” (Ernst
Renan. Marc-Aurèle…, p.345-346). O comentário é inevitável: “é impossível não
pensar aqui no mestre-escola reivindicado para os sertões nordestinos” (Célia
Mariana F. F. da Silva e Manoel Roberto F. da Silva. “Alexandre de Abonótico”.
In: Gazeta do Rio Pardo (Suplemento Euclidiano). São José do Rio Pardo, agosto
de 1986). A educação serve para eliminar os atavismos, para estabelecer a unifor-
midade cultural, e em particular para que se abandonem as crendices religiosas e
fantasmagóricas. Mas por que razões Euclides não transcreve em Os sertões o re-
gistro, recolhido em sua Caderneta de campo (p.23), que dava conta da existência
de escolas em Belo Monte?
90  O processo de demolição do outro que identificamos nas reportagens
euclidianas não é muito distinto daquele que Laura de Mello e Souza descobre
nos tempos coloniais: 1) a outra humanidade, 2) a animalização e 3) a demo-
nização (O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no
Brasil colonial. 6 ed., Companhia das Letras, São Paulo, 1999, p.56ss). Vale
ainda lembrar que já faz séculos que o demônio está no sertão. Afinal, já nos
garantia frei Vicente do Salvador em 1627, o diabo, não tendo mais lugar na
Europa medieval cristianizada, se instalou por aqui, fazendo com que o nome
dessas terras não fosse aquele que mencionava o símbolo da salvação e sim
um mais conveniente com sua nova morada. E tendo os portugueses roubado
a ele, pela evangelização, as terras do litoral, contentando-se “de as andar ar-
ranhando ao longo do mar como caranguejos” (Vicente do Salvador. História
do Brasil [1500-1627]. 7 ed., Itatiaia, Belo Horizonte, 1982, p.59), coube-lhe
preferencialmente o interior. Coube a Euclides precisar exatamente onde ele se
encontrava.
91  Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.57. Assinale-se, por outro lado,
e apenas a título de observação, que já Gilberto Freyre censurava em Euclides a
“importância exagerada ao problema étnico, parecendo não ter atinado com a ex-
tensão e a profundidade da influência da chamada ‘economia agrário-feudal’ sobre
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 311

a vida brasileira. Ou seja: despreza o sistema monocultor, latifundiário e escra-


vocrata na análise da nossa patologia social; e exalta a importância do processo
biológico – mistura de raças – como fator, ora de valorização, ora de deterioração
regional e nacional” (Perfil de Euclides e outros perfis. 2 ed., Record, Rio de Janeiro,
1987, p.32).
92  Euclides da Cunha. Diário de uma expedição. Companhia das Letras, São
Paulo, 2000, p.105-111.
93  Marco Antonio Villa. “O ‘Diário de uma expedição’ e a construção de Os
sertões”. In: José Leonardo do Nascimento (org.) Os sertões: releituras e diálogos.
Unesp, São Paulo, 2002, p.23.
94  Edgar Salvador de Decca. “Euclides e Os sertões: entre a literatura e a
história”. In: Rinaldo de Fernandes (org.) O clarim e a oração. Geração, São Paulo,
2002, p.164; o destaque é meu).
95  Luiz Costa Lima. O controle do imaginário: razão e imaginação nos tem-
pos modernos. 2 ed., Forense, Rio de Janeiro, 1989, p.210.
96  “A Igreja católica insistiu doravante muito mais no juízo particular que no
Juízo Final” (Jean Delumeau. História do medo no Ocidente..., p.238).
97  Walnice Nogueira Galvão. Gatos de outro saco: ensaios críticos. Brasilien-
se, São Paulo, 1981, p.94.
98  Edward P. Thompson. A formação da classe operária inglesa. 3 ed., Paz e
Terra, Rio de Janeiro, 1997, v.1, p.50.
99  “[...] deve ter ocorrido, entre os anos de 1895 e 1896 [entre, portanto, a
missão capuchinha enviada pelo arcebispado da Bahia a pedido do governador do
Estado e o início da guerra], uma mudança na concepção de mundo do Conselhei-
ro. Ou ele se tornou mais arrogante, convencido da invencibilidade de sua cidade,
ou passou a acreditar que toda aquela conjuntura milenarista era irreversível e que
um conflito armado só iria acelerar o advento do Dia do Juízo. Se estivesse mais
preocupado com os assuntos do cotidiano do que consumido pela dimensão es-
piritual [...]” (Robert Levine. O sertão prometido: o massacre de Canudos. Edusp,
São Paulo, 1995, p.336). Em outra oportunidade o mesmo autor comenta: “[...]
sob a tensão do conflito ele [o Conselheiro] teria prometido até mesmo o Segundo
Advento no ano de 1900” (p.322).
100  José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil. 2 ed., Vozes,
Petrópolis, 1983, p.53. Por esperança escatológica Martins entende particularmen-
te a espera pelo fim imediato do mundo e o retorno de D. Sebastião.
101  Aliás, é interessante notar, mesmo de forma bastante esquemática (e
mais talvez não seria possível, dado o caráter fragmentário das informações de que
dispomos), como entre Antonio Conselheiro e seu séquito as perspectivas quanto
ao presente e ao futuro foram sensivelmente diferentes desde antes do estabeleci-
312

mento do arraial até o momento em que sua destruição se avizinhava. Para o líder,
os eventos que culminaram no embate de Masseté teriam soado como anúncios
apocalípticos do fim próximo; Belo Monte seria o Harmagedon sertanejo. Já para
a gente que o acompanhava a vitória no conflito armado terá sido entendida priori-
tariamente como senha para um novo êxodo, pelo qual a libertação dos faraós atu-
ais se apresentava viável. E, coerente com essa percepção, temos a permanência do
paradigma da Terra Prometida durante os anos de vida do arraial, e mesmo quando
este já parecia fadado à destruição: os prognósticos de um fim próximo, agora nas
palavras da gente sertaneja, não ofuscaram a esperança de que naquele lugar a terra
pudesse voltar a se mostrar abençoada. Por outro lado, cabe ressaltar como, estra-
nhamente, a guerra não terá ressuscitado no Conselheiro os temores apocalípticos
que se haviam apossado dele quando dos eventos em torno de Masseté. Justamente
o período do qual temos testemunhos sertanejos dando conta de expectativas sobre
a proximidade do fim dos tempos e do juízo. Mas estas se articulam bem com o que
terá sido a tônica da pregação escatológica do Conselheiro durante toda a trajetória
de Belo Monte: a certeza da salvação das almas.
102  A identificação prática entre um posicionamento e outro é, em grande par-
te, responsabilidade de Euclides. Embora algumas das expressões conselheiristas sejam
citadas em Os sertões (e, efetivamente, devamos a ele boa parte do que se conservou das
vozes da gente belomontense), Euclides efetivamente as subordinou à perspectiva que
considerou fundamental e mesmo inventou, o milenarismo do Conselheiro.
103  Vicente Dobroruka fala de uma “teologia sisuda” do Conselheiro, em
cujo interior “há pouco espaço para o maravilhoso” (Antônio Conselheiro: o beato
endiabrado de Canudos. Diadorim, Rio de Janeiro, 1997, p.185).
104  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.67 (o destaque é meu).
105  Nas cartas enviadas ao barão de Jeremoabo essa percepção se repete (ver
Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos..., p.97.111.114; a citação é da p.131).
106  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.68.
107  Eduardo Moniz. Canudos: a guerra social. 2 ed., Elo, Rio de Janeiro,
1987, p.50. Euclides situa a palavra do Conselheiro em outra perspectiva: “Ao
saber de caso escandaloso em que a lubricidade de um devasso maculara incauta
donzela teve, certa vez, uma frase ferozmente cínica, que os sertanejos repetiam
depois sem lhe aquilatarem a torpeza: ‘Seguiu o destino de todas: passou por de-
baixo da árvore do bem e do mal’. Não é para estranhar que se esboçasse logo,
em Canudos, a promiscuidade de um hetairismo infrene” (Os sertões..., p.238).
O que torna suspeita a leitura de Euclides é que Manuel Ciríaco, em entrevista a
Odorico Tavares, “desmente a versão de que o Conselheiro contemporizava com os
atentados à moral das moças” (Canudos: cinquenta anos depois (1947). Fundação
Cultural do Estado, Salvador, 1993, p.48).
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 313

108  Eduardo Hoornaert. Os anjos de Canudos..., p.117-118.


109  Para o pe. Cícero, a arca “era a figura da Igreja do Deus verdadeiro, que
fora dela não há salvação, assim como Noé não podia salvar a vida do corpo sem
ser trancado na arca, ou grande navio de madeira” (Maria da Conceição Lopes
Campina. Voz do padre Cícero e outras memórias..., p.65). Aqui é o Belo Monte que
é prefigurado na “barquinha de Noel”...
110  Josildeth Gomes Consorte. “A mentalidade messiânica”. In: Ciências da
Religião. São Bernardo do Campo, 1983, n.1, p.47.
111  Adriana Romeiro. Todos os caminhos levam ao céu: relações entre cultura
popular e cultura erudita no Brasil do século XVI. Dissertação de mestrado. Uni-
camp, Campinas, 1991, p.293-294.
112  O descaso, próprio da Modernidade, para com a expectativa esca-
tológica constitutiva do discurso cristão convencional, em geral associada ao
descompromisso com a vida atual, a ser experimentada como um “vale de lá-
grimas”, acabou por contaminar a análise de historiadores e cientistas sociais,
como o fragmento de Romerio acima citado evidencia. Ao comentar o desfe-
cho trágico do movimento do Pau-de-Colher, Maria Cristina Pompa afirma: “a
derrota do movimento, além de estar em sua destruição física, está também, de
um ponto de vista simbólico, nesse deslocamento final do plano da salvação,
que não é mais constituído por Caldeirão ou Juazeiro, mas volta a ser o lugar
das almas, o Além, que será alcançado só depois (e só através) da morte” (“Me-
mórias do fim do mundo: o movimento de Pau de Colher”. In: Revista Usp. São
Paulo, 2009. n.82, p.86. Para quem a salvação após a morte soaria como der-
rota? E como entender que, no Belo Monte, pessoas do grupo conselheirista,
na iminência da morte, dirigiam-se, arrogantes, a seus algozes despedindo-se:
“Até o dia do juízo!”?
113  A expressão intitula o livro de Ricardo Salles (Topbooks, Rio de Janeiro, 1996).
O subtítulo da obra é: “a formação da identidade nacional do Brasil do segundo reinado”.
114  José Murilo de Carvalho. A formação das almas: o imaginário da Repú-
blica no Brasil. Companhia das Letras, São Paulo, 1998, p.26.
115  José Murilo de Carvalho. Pontos e bordados: escritos de história e política.
UFMG, Belo Horizonte, 1999, p.112-125 (a citação é da p.125).
116  Adilson Odair Citelli. “No mundo dos homens, na ordem de Deus”. In:
Benjamin Abdala Jr. e Isabel Alexandre (org.) Canudos: palavra de Deus, sonho da
terra. Senac / Boitempo, São Paulo, 1997, p.80.
117  Segundo Leopoldo Bernucci, Euclides poderia ter tido acesso ao Rela-
tório de frei João antes ainda de seguir rumo à Bahia para cobrir os dias finais da
guerra (“Pressupostos historiográficos para uma leitura de Os sertões”. In: Revista
Usp. São Paulo, 2002. n.54, p.14).
314

118  Tzvetan Todorov. A conquista da América: a questão do outro. 2 ed.,


Martins Fontes, São Paulo, 1999, p.50.
119  Euclides da Cunha. Os sertões..., p.279.302.314.
120  Não estranha que, na crítica a Belo Monte, as vozes e as penas se tenham
dirigido mais contra Antonio Conselheiro que contra sua gente. Como vimos,
esta, quando aparece, surge como vagabunda (por vezes criminosa) ou fanática.
Mas o alvo do bombardeio é prioritariamente Antonio Maciel. Talvez também isso
explique que, se Euclides conseguiu alterar sensivelmente sua percepção sobre o
povo conselheirista, praticamente nada mudou em seu olhar sobre o Conselheiro;
pelo contrário, o “grande homem pelo avesso” das reportagens tem seus contornos
radicalizados, desembocando no “documento raro de atavismo” e no “gnóstico
bronco” (Os sertões..., p.253.255), bem como no Montano redivivo.
121  Oscar de Figueiredo Lustosa. A igreja católica no Brasil república..., p.27-28.
122  Cândido da Costa e Silva. “O peregrino entre os pastores”..., p.226-227.
123  Pedro Sinzig. Reminiscências de um frade. 2 ed., Tipografia Vozes, Petró-
polis, p.204.
124  Veja-se, a propósito, Romualdo Dias. Imagens de ordem: a doutrina ca-
tólica sobre autoridade no Brasil. Unesp, São Paulo, 1996; Oscar de Figueiredo
Lustosa. A igreja católica no Brasil república..., p.28-37.
125  Marilena Chauí. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária..., p.85-87.
126  Vicente Dobroruka. Antônio Conselheiro..., p.50.
127  Milton Vargas. “Euclides da Cunha e a poesia”, citado por Ivan Lins. História
do positivismo no Brasil. 2 ed., Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1967, p.509.
128  Sem contar todas as tentativas, que nos levariam à década de 70, em anular a
influência do Conselheiro no sertão, por parte das autoridades locais e da própria Igreja
católica na Bahia. O próprio estilo de vida ambulante de Antonio Maciel, entendido
por ele, como vimos, como seguimento dos caminhos de Jesus, é objeto de condenação,
como evidencia documento arquidiocesano de 1888: “De nenhum modo deve ser aceito
tal indivíduo nas igrejas deste arcebispado acompanhado de seus sequazes [...] nenhum
trabalho dele deve ser aceito, pela razão de desviar de suas ocupações os pobres homens
do campo com as práticas supersticiosas de que usa, levando-os errantes pelas estradas [...]
tornando-se assim ociosos e prejudiciais à sociedade” (citado por Cândido da Costa e Sil-
va. “O peregrino e os pastores”..., p.221). Não é como peregrino, mas como vagabundo,
líder de outros vagabundos, que Antonio Conselheiro é visto há tanto tempo.
129  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.5 (o destaque é meu).
130  Cândido da Costa e Silva. Roteiro da vida e da morte. Ática, São Paulo,
1982, p.23.
131  Riolando Azzi. “Elementos para a história do catolicismo popular”. In:
Revista Eclesiástica Brasileira. Petrópolis, 1976. n.141, p.130.
ENCONTROS E DESENCONTROS, CONVERGÊNCIAS E DISJUNTIVAS 315

132  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.4; sobre o teor do


“desacato” pode-se ler Marco Antonio Villa. Canudos: o povo da terra..., p.70-73.
Segundo Honório Vilanova, o Conselheiro, após a partida dos missionários, teria
dito: “Conheço os padres falsos. Os que eu quero, abraço. Aceito quem acredita no
Bom Jesus” (Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.129).
133  Vicente Dobroruka. Antônio Conselheiro..., p.187.
134  Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.37. Escreve a este respeito
Oleone Coelho Fontes: “Interrogado por Moreira César, o padre Sabino confessou
suas andanças por Canudos, acrescentando haver chegado à tapera muito antes de
Antonio Vicente Mendes Maciel, com quem mantinha boas relações, não a ponto,
porém, de comungar com ideias e propósitos do santarrão. Disse mesmo estar sendo
alvo de crítica e restrições, por discordar de certos métodos usados em Canudos, a
ponto de ali ser alcunhado de ‘republicano’. Ainda assim o vigário recebeu voz de pri-
são e lhe foi dito que teria de agregar-se às tropas na marcha para o fronte” (O treme-
terra: Moreira César, a república e Canudos. 2 ed., Vozes, Petrópolis, 1996, p.221).
135  João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.4.5.
136  Eni Pulcinelli Orlandi. As formas do silêncio: no movimento dos senti-
dos. 4 ed., Unicamp, Campinas, 1997, p.30.
137  José Luis Fiorin. A ilusão da liberdade discursiva: uma análise das pré-
dicas de Antônio Conselheiro. Dissertação de mestrado, USP, São Paulo, 1980,
p.147-149; José Augusto Cabral Barretto Bastos. Incompreensível e bárbaro inimi-
go: a guerra simbólica contra Canudos. Edufba, Salvador, 1995, p.114-121; cir-
cunstanciadas e sensíveis à lógica e cosmovisão do Conselheiro são as an álises de
Alexandre Otten (“Só Deus é grande”..., p.229-231) e Vicente Dobroruka (Antônio
Conselheiro..., p.168-174; certamente a mais completa).
138  Antonio Vicente Mendes Maciel. “A Companhia de Jesus – O casa-
mento civil – A família imperial – A libertação dos escravos”. In: Tempestades que
se levantam..., p.566.567; editado em Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Ca-
nudos..., p.186.
139  Antonio Vicente Mendes Maciel. “A Companhia de Jesus – O casamen-
to civil – A família imperial – A libertação dos escravos”. In: Tempestades que se
levantam..., p.564; editado em Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos...,
p.186. Saberia o Conselheiro que o 15 de novembro foi, efetivamente, um golpe
militar, a que o povo assistiu “bestializado”?
140  Antonio Vicente Mendes Maciel. “A Companhia de Jesus – O casamen-
to civil – A família imperial – A libertação dos escravos”. In: Tempestades que se le-
vantam..., p.569-600.601-602; editado em Ataliba Nogueira. António Conselheiro
e Canudos..., p.187. Recorde-se que por algum engano na paginação do caderno se
passa de 569 para 600.
316

141  Antonio Vicente Mendes Maciel. “A Companhia de Jesus – O casamen-


to civil – A família imperial – A libertação dos escravos”. In: Tempestades que se
levantam..., p.602-603.604.605-608; editado em Ataliba Nogueira. António Con-
selheiro e Canudos..., p.187-189.
142  Antonio Vicente Mendes Maciel. “A Companhia de Jesus – O casamen-
to civil – A família imperial – A libertação dos escravos”. In: Tempestades que se
levantam..., p.610; editado em Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canudos...,
p.192. O periódico da arquidiocese baiana qualificava o casamento civil como
“torpe mancebia”, “adultério legal”, “prostituição autorizada”, “vergonhoso concu-
binato” (Hugo Fragoso. “Canudos, um desencontro entre duas igrejas”. Mimeo,
p.9. Conclui Fragoso: “Como seria difícil para o Conselheiro e seus seguidores [...]
compreender a linguagem do missionário Frei João Evangelista, intimando-os a
aceitar este governo republicano” (p.10).
143  Antonio Vicente Mendes Maciel. “A Companhia de Jesus – O casa-
mento civil – A família imperial – A libertação dos escravos”. In: Tempestades que
se levantam..., p.615-616; editado em Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Ca-
nudos..., p.193.
144  Antonio Vicente Mendes Maciel. “A Companhia de Jesus – O casa-
mento civil – A família imperial – A libertação dos escravos”. In: Tempestades que
se levantam..., p.616-617; editado em Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Ca-
nudos..., p.193.
145  Antonio Vicente Mendes Maciel. “Despedida”. In: Tempestades que se
levantam..., p.616-617; editado em Ataliba Nogueira. António Conselheiro e Canu-
dos..., p.197.
V
ALGUMAS CONCLUSÕES
318

Incompreensível e bárbaro inimigo!

(Euclides da Cunha)

A guerra de Canudos foi o requinte


da perversidade humana.

(César Zama)

Se não houvessem matado o Peregrino


ainda hoje eu estaria em Canudos...

(Honório Vilanova)
ALGUMAS CONCLUSÕES 319

Não é preciso enfatizar a importância de se “revisitar” o Belo Monte de Anto-


nio Conselheiro. No mínimo, a análise de movimentos como esse, com metodolo-
gias que se foram aprimorando ao longo do século passado, “contribuiu para que
o mito do caráter incruento e pacífico de nossa história fosse desfeito” pois acaba
por revelar “não só as tensões que fizeram com que tais movimentos surgissem
como também as soluções violentas pelas quais o Estado, em alianças com a Igreja,
resolveu os conflitos pela liquidação dos oprimidos”.1
De toda forma, cabe ressaltar que Belo Monte indica o quanto expressões
como “antagonismos em equilíbrio” e assemelhadas são insuficientes para compre-
ender a violência com que se fez a história brasileira, principalmente se se leva em
conta que fatos como Belo Monte não são episódios surpreendentes ou casuais,
mas resultado de trajetórias variadas e de longa duração, referentes às formas assu-
midas pela empreitada da colonização entre nós, pela consolidação dos sucessivos
modelos de poder, bem como pelas diversas expressões de resistência dos setores
subalternos.2
Mas retornemos a este trabalho, em seus definidos escopos. Boa parte das
conclusões a que cheguei nesta pesquisa sobre Belo Monte foi exposta no capítulo
IV: ele procurou oferecer uma síntese dos elementos trazidos à tona anteriormente,
inserindo-os num quadro geral das confluências e embates culturais, discursivos,
que fizeram a vida a e morte de Belo Monte. Entendo ter evidenciado que a ba-
talha travada em torno do Belo Monte, e que culminou com sua total destruição,
configura um quadro muito mais complexo do que a seguinte exposição propõe:

a repressão ao arraial liderado por Antonio Conselheiro, mais que puramente fí-
sica, foi uma luta de significados e representações, foi a explicitação clara de dois
320

campos semânticos opostos, de duas visões de mundo baseadas em pressupostos ab-


solutamente distintos e incompatíveis [...] Estas oposições de direção e de objetivo
revelam uma complexidade um pouco maior que a recorrente entre republicanos e
monarquistas, pois, ao considerarmos que o conjunto de valores que organiza a vida
dos homens varia no tempo e no espaço e que a luta pelo poder inclui o seu mono-
pólio, estaremos colocando como necessária e fundamental o controle não só dos
aspectos econômicos, políticos e dos mecanismos coercitivos de controle social, mas
também do que aqui é chamado cultural, para a efetiva construção da hegemonia
de uma classe sobre a outra.3

Como vimos, não foram apenas dois campos opostos que ali se chocaram: a
cosmovisão do Conselheiro e a dos sertanejos seus seguidores não se identifica-
vam de todo (e as discrepâncias estão longe de serem irrelevantes), assim como
eram variadas as visões dos setores que se articularam visando a destruição do
arraial. Mas, por outro lado, o principal esforço nesse trabalho se vê confirma-
do pelas afirmações de Jacqueline Hermann, na medida em que ela destaca o
choque de cosmovisões, de valores e de práticas do qual o choque de interesses
sociais, políticos e econômicos foi inseparável, para fazer a guerra. Nem de longe
tive a pretensão de desviar a atenção destes últimos componentes; mas, ao me
haver dedicado a salientar as apropriações, conscientes ou não, feitas da Bíblia
no bojo da história da vida e morte de Belo Monte, quis apreendê-los sob uma
perspectiva que mostrasse os diversos sujeitos envolvidos a partir de seus respec-
tivos universos de referências, convicções e interesses, convencido daquilo que
diz Roger Chartier:

ocupar-se dos conflitos de classificações ou de delimitações não é, portanto, afastar-


se do social – como julgou durante muito tempo uma história de vistas demasiado
curtas –, muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento
tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais.4

Chegado ao final desse processo, quero propor ainda algumas considerações


para as quais este trabalho aponta. Elas dizem respeito à abordagem do religioso
em Belo Monte, à sua classificação convencional como movimento messiânico e/
ou milenarista, e sobre a presença da Bíblia na constituição dos universos concei-
tuais e simbólicos no interior da cultura brasileira. Tais considerações, de alguma
forma decorrentes do processo desenvolvido até aqui, são provisórias, porque
indicativas de caminhos a serem ainda trilhados, para além do caso específico
do arraial liderado pelo Conselheiro. Não são conclusivas, senão no sentido de
indicarem que a tarefa continua.
ALGUMAS CONCLUSÕES 321

1. O RELIGIOSO EM BELO MONTE E AO SEU REDOR


Talvez a “história de vistas demasiado curtas” referida por Chartier tenha ajuda-
do a que o Belo Monte de Antonio Conselheiro venha sendo considerado sem que
seu componente religioso (bem como o que compunha as visões dos seus inimigos)
fosse submetido a uma adequada avaliação. Não foram poucos os trabalhos – vimo-lo
no primeiro capítulo deste livro, que abordaram o religioso em Belo Monte de forma
superficial e deficiente, sem contar aqueles que praticamente não o consideraram
senão como veículo de aspirações originárias de outras instâncias da vida, individual
e coletiva. A pouca repercussão do trabalho de Otten sobre a “mensagem religiosa
de Antonio Conselheiro”, por um lado, e o fato de que Villa em seus livros possa
satisfazer-se com afirmações genéricas sobre a religião belomontense, por outro, soam
como sintomas dessa tendência ainda marcante no interior das pesquisas em ciências
sociais no Brasil. Mas urge levar a sério a afirmação de Otten, e ampliar seu alcance:
“o ideário religioso do Conselheiro foi a força motriz e modeladora do movimento
de Canudos. O verdadeiro significado do ideário, porém, só se revela, quando a di-
mensão religiosa for lida no seu contexto histórico, político, sociológico e cultural”.5
A questão se torna mais complexa quando se constata que havia diferenças sensíveis
entre o ideário religioso do líder e a cosmovisão dos liderados. Foi o amálgama deles,
feito não sem alguma conflitividade, que viabilizou o arraial.
Assim, não se pode avaliar um movimento como o do Belo Monte apesar do seu
caráter religioso, sob pena de comprometer decisivamente a interpretação. Se é claro
que não se pode reconstruir a história sem que seja dada voz a seus participantes, dei-
xando de vê-los como portadores de uma consciência ingênua, alienada, pré-lógica
ou assemelhadas, constata-se que há um longo caminho a percorrer no tocante ao
arraial conselheirista. Como é possível que ainda hoje se trate de Belo Monte sem
levar em conta o conteúdo dos cadernos que levam o nome de Antonio Conselheiro?
E como entender que um desses cadernos permaneça até hoje inédito?6
Creio ainda que a leitura da documentação que registrou fragmentos das vozes
que ecoaram no arraial conselheirista seja capaz de lançar luzes para se repensar
um aspecto da religiosidade sertaneja que costuma ser constantemente reiterado:
o sacrificialismo e o penitencialismo como eixo monotemático, de que nem o bri-
lhante trabalho de Maria Cristina Pompa logrou escapar:

A pregação itinerante entre a população sertaneja [...] caracterizou-se também pelo


forte penitencialismo, durante e depois do fim da experiência das missões entre
os índios. Na segunda metade do século XVIII e, sobretudo, ao longo do XIX, os
capuchinhos italianos foram os protagonistas das Santas Missões no sertão, que
percorreram de novo os caminhos que foram dos jesuítas [...] Tratou-se de uma
322

adaptação local de um método de fazer missão entre as camadas populares, espe-


tacular e teatral, trazido da Itália e regulado na base dos ditames do Concílio de
Trento [...] No encontro entre a pregação capuchinha (e, antes, jesuítica) e a elabo-
ração “cabocla” de uma visão da história como permanente ameaça da morte, a ser
exorcizada mediante rituais de penitência, está a raiz cultural daquela história sem
resgate, continuamente exposta ao risco do Apocalipse, que permeia ainda hoje a
religiosidade popular sertaneja [...] Uma análise da documentação relativa ao século
XIX permitirá, creio, completar o percurso e voltar ao ponto de partida: àquela
religiosidade popular que constrói a cultura do Fim do mundo e em cujo cerne
nasceram os movimentos sócio-religiosos do sertão.7

O fato de para o livro que edita sua tese Pompa ter reescrito essa passagem,
evitando afirmar o nexo necessário entre os movimentos sócio-religiosos do século
XIX e a “cultura do fim do mundo” talvez indique uma preocupação em matizar a
afirmação anterior.8 De toda forma, fica evidente que o trabalho visando compre-
ender o universo religioso popular, particularmente em situações similares ao Belo
Monte, em que certamente não faltam a festa e a alegria, é uma tarefa desafiadora,
dado o caráter complexo e multifacetado daquele, resultado de tantos influxos,
alguns dos quais desconhecidos a nós.
Por outro lado, cabe pensar na permanência subjacente do religioso, muitas vezes
de maneira inconsciente, no seio de manifestações culturais ou de pensamento que não
se apresentem explicitamente com esse teor. Espero ter mostrado a carga fortemente
religiosa, e até teológica, das formulações euclidianas lidas nos artigos e reportagens de
1897 e em Os sertões. Claro que a temática do arraial conselheirista acabara por exigir
do escritor esse viés; mas é possível suspeitar que ele seja mais um dos escritores da lite-
ratura brasileira cuja obra poderia ser frutuosamente abordada desde o ponto de vista
da religião e da teologia, com resultados promissores, quiçá surpreendentes.
E ainda valeria salientar a importância de se considerarem as inúmeras variá-
veis no campo religioso, mas também as possíveis imbricações no seu interior, para
que se possa aquilatar o teor do conflito que opôs o Conselheiro e sua gente à mais
alta hierarquia da arquidiocese da Bahia. Polarizações como “catolicismo oficial”
x “catolicismo popular”, embora indicativas, não são suficientes, como também
não o são aquelas tendências a reduzir o discurso e a proposta do Conselheiro ao
simples âmbito do universo católico, como se nesse campo o conflito ou não tivesse
existido ou fosse irrelevante. Nesse sentido, não é inútil relembrar as possibilidades
abertas pelas investigações de Carlo Ginzburg, a partir do conceito de “circulari-
dade cultural”, bem como de todos os trabalhos que vêm mostrando o que já se
chamou de “surpreendente convergência de horizontes simbólicos”9, fruto de tan-
tas e variadas formas de interação sócio-cultural entre grupos humanos distintos.
ALGUMAS CONCLUSÕES 323

2. MESSIÂNICO? MILENARISTA?
Essa atenção ao religioso como elemento constitutivo do Belo Monte exige
enfrentar o delicado problema da classificação convencional de movimento messi-
ânico e/ou milenarista, que tem o escopo de justamente destacar a relevância desse
tipo de ideário na constituição de movimentos sociais e de protesto político. As
linhas que se seguem não se pretendem definitivas; apenas levantam algumas inda-
gações quanto à definição do Belo Monte como um movimento messiânico e/ou
milenarista, ao mesmo tempo em que sintetizam argumentos e críticas arrolados ao
longo do trabalho. Assim, temos de retornar à obra seminal de Maria Isaura Pereira
de Queiroz e, mais uma vez, a Euclides da Cunha.
Afirme-se, primeiramente, uma certa imprecisão nos termos, apesar de ressalvas
de Maria Isaura a respeito: numa das notas da introdução de seu clássico, ela alerta
para uma tendência, que ela atribui a estudiosos franceses e ingleses, a tomar os ter-
mos “messianismo” e “milenarismo” como sinônimos, “preferindo hoje o segundo
termo ao primeiro”.10 Embora a autora censure esse procedimento, sua opção termi-
nológica acaba por não ajudar muito, ao vincular necessariamente ambos; no final
os termos acabam por se tornarem intercambiáveis. É interessante notar como na
análise do movimento do Contestado os termos variam: para Maria Isaura, Maurício
Vinhas de Queiroz e Laís Mourão trata-se de “messianismo”; já para Duglas Teixeira
Monteiro e Ivone Gallo estamos diante de uma manifestação milenarista.11
Minha suspeita é de que os termos, particularmente “messianismo”, efetiva-
mente sejam tomados de maneira genérica, sem se atentar suficientemente para a
especificidade que cada um deles sugere. Comecemos com “milenarismo”, o termo
que, desde Euclides, passou a qualificar a religiosidade e as esperanças conselhei-
ristas. Não preciso aqui repetir as observações feitas ao longo deste trabalho: a
“busca de uma salvação total, iminente, derradeira, terrena e coletiva”12 não define
adequadamente as esperanças e empenhos escatológicos da gente do Conselheiro,
muito menos dele. Belo Monte não era, para seus habitantes, uma comunidade de
pessoas ansiando pela vinda do milênio, de uma nova era. O anúncio do “reino dos
mil anos e suas delícias” só passou a configurar a pregação do Conselheiro após a
morte dele, quando lhe foram atribuídas, características do líder cristão do século
II, Montano. Obra de Euclides, equívoco monumental, que perdura mesmo em
obras recentes a respeito de Belo Monte.13 O rótulo “milenarista” desfigura a reli-
giosidade conselheirista, desvirtua a compreensão dos motivos que levaram tanta
gente ao arraial; afinal de contas, abandonar seus lugares de origem em direção a
outro, onde se pudesse “aguardar o advento iminente do milênio”14, é bastante
diferente de um deslocamento motivado por razões de ordem sócio-econômica,
aliadas ao desencantamento com a instituição administradora do sagrado.15
324

Se passamos ao conceito de “messianismo”, vemos que a imprecisão e as difi-


culdades são ainda maiores. Tomo a seguinte definição: “essencialmente a crença
na vinda de um Redentor que porá fim à ordem atual de coisas, quer seja de manei-
ra universal ou por meio de um grupo isolado, e que instaurará uma nova ordem
feita de justiça e de felicidade”.16
Já que se deve denunciar, com Vittorio Lanternari, o tom “bibliocêntrico e
cristianocêntrico” de definições desse teor (embora os termos sejam imprecisos,
como se na Bíblia, e mesmo no interior do cristianismo, tivéssemos um único con-
ceito de messias), tomemos a sugestão do estudioso italiano:

são, com efeito, parte constitutiva das mais variadas civilizações religiosas algumas
figuras míticas que atuam na época mítica das origens como criadores ou como
heróis civilizadores. Em certos casos, prediz-se que hão de voltar e trazer ao mundo
riqueza, bem-estar e a cessação de todos os males. São mitos messiânicos e figuras
messiânicas pertencentes às mais arcaicas tradições. A sua presença não incide de
modo relevante nos comportamentos coletivos enquanto não surge, em relação a
eventos históricos que envolvem a comunidade como tal, um movimento messiâ-
nico.17

Deixando de lado uma possível petitio principii nessa definição mais elástica18,
perguntemo-nos pela aplicabilidade dessas conceituações ao que sabemos de An-
tonio Conselheiro e Belo Monte: quem seria o “Redentor que porá fim à ordem
atual de coisas”? O próprio Conselheiro? Mas que “nova ordem feita de justiça e de
felicidade” seria essa, que não é mencionada em qualquer dos pronunciamentos de
Antonio Maciel? Se passamos ao conceito menos “bibliocêntrico” de Lanternari,
que figura da mitologia sertaneja o Conselheiro estaria encarnando? Ao bom Jesus?
A Moisés? Essas identificações (reais, diga-se de passagem), devem ser entendidas à
luz de profecias que anunciariam o retorno dessas figuras ancestrais? Ou seria mais
adequado entendê-las como explicitações da compreensão das atribuições de que o
Conselheiro é investido como líder de Belo Monte?
Ou será que, mais uma vez, a fortuna messiânica do arraial conselheirista deve
seus créditos a Euclides da Cunha, devido ao fato de o escritor entender, na esteira
do suposto milenarismo belomontense, a centralidade da figura de D. Sebastião,
que segundo as pregações atribuídas, em Os sertões, ao Conselheiro, estaria para
voltar?19 Quem seria o messias, então: o Conselheiro ou D. Sebastião? Como se vê,
o emaranhado é mais que suficiente para nos deixar a suspeita de que, talvez, quali-
ficar o Belo Monte como movimento messiânico mais atrapalhe que ajude.20 Alba
Zaluar Guimarães tem razão ao alertar para os riscos de se trabalhar com movimen-
tos como o de Belo Monte a partir de categorias assim tão abstratas e genéricas:
ALGUMAS CONCLUSÕES 325

Definições desse tipo usualmente encobrem uma problemática que conduz ao pri-
vilegiamento da “forma” do movimento, ou seja, do seu caráter messiânico conce-
bido nos termos da tradição judaico-cristã, tendendo-se a buscar apoio em teorias
gerais que expliquem o seu surgimento nas mais variadas sociedades e nos mais
variados momentos de sua história. O risco que se corre é de passar de um fenôme-
no definido abstratamente a uma teoria tão geral que muitas vezes as determinações
do movimento concreto escapolem à tentativa de entendê-los. Focaliza-se a atenção
nas semelhanças entre os vários movimentos e não nas suas diferenças, nas suas
particularidades. As semelhanças consideradas dizem respeito exclusivamente aos
movimentos previamente incluídos nessa classe geral. Perde-se, portanto, a opor-
tunidade de encontrar os mecanismos comuns a todos os movimentos que partem
de uma recusa da ordem social vigente e se propõem a mudá-la, sejam movimentos
religiosos ou políticos, já que nestes também não faltam líderes carismáticos, con-
cepções maniqueístas e até mesmo crenças escatológicas. Por outro lado, as diferen-
ças na organização, no projeto e na trajetória dos vários movimentos religiosos não
sendo examinadas, mantêm-se obscurecidas as conexões entre elas e a composição
social dos vínculos que os originaram, bem como seus diferentes vínculos com os
aparelhos institucionais presentes.21

A conclusão da autora é, ao nosso ver, certeira:

Esses problemas não solucionados, longe de negarem o necessário vínculo entre o


geral e o particular, apontam para os percalços no uso do método comparativo não
controlado e as armadilhas a evitar na construção de conceitos teóricos [...] Não
estaremos nós [no caso do messianismo] diante de mais uma ilusão teórica?22

Por outro lado, a utilização do conceito parece derivar de uma pequena dis-
posição em adentrar às distintas cosmovisões dos grupos sob análise. No entanto,
se é necessário sempre mais dar a palavra aos membros do grupo em questão, urge
avançar na identificação das especificidades da trajetória do arraial conselheirista,
para além de considerações vagas. Um caminho que Duglas abriu no artigo seminal
sobre Juazeiro, Contestado e o Belo Monte, na medida em que se perguntou pelas
especificidades de cada um desses movimentos brasileiros no início da República.23
Para resumir: a dificuldade em qualificar o Belo Monte como um movimento
milenarista advém, entre outras razões, do fato de nada se encontrar, nem na pre-
gação do Conselheiro, nem nas manifestações sertanejas, a respeito da expectativa
pela era dos “mil anos de felicidade”, a não ser nas afirmações artificiais e equivo-
cadas de Euclides. Em grande parte o seu equívoco radica na sua fixação na esca-
tologia atávica que atribuiu ao Conselheiro, e na insensibilidade, daí decorrente,
326

às formas de vida sob a sua liderança. Quanto ao “messianismo”, trata-se de um


termo vago demais; ao invés de ajudar, dificulta na compreensão das especificida-
des do movimento cuja lógica se quer apreender. As dificuldades para se inserir a
trajetória do Belo Monte no interior do que seria o “messianismo”, qualquer que
seja sua definição, são insuperáveis:

Se não há dúvida do valor e da importância de Antonio Conselheiro no contexto


específico em que suas palavras assumem tamanho sentido, não há como tomá-lo,
a partir da análise do grupo principal de seus discursos, como um pretenso messias
que oferece a salvação a quem o seguir. Em nenhum momento ele coloca-se como
Salvador, em nenhum momento oferece um mundo de abundância, liberdade se-
xual, permissividades.24

Mas as considerações gerais de Zaluar sugerem ainda outras perguntas: a


atenção às supostas expectativas, mesmo que centrais, de um determinado grupo
social seria capaz de dar conta das peculiaridades de sua organização cotidiana?
Caracterizar o grupo por conta de sua escatologia supostamente “exótica” seria
suficiente para apreender as particularidades de sua trajetória, de seus conflitos
internos, e mesmo suas relações com o entorno? Efetivamente, essas classificações
(messianismo, milenarismo) incidem (ou pretendem incidir) num aspecto que,
embora virtualmente importante, nem de longe dá conta de todas as dimensões
do movimento em questão: “qualquer explicação finalista é incapaz de compre-
ender esse acontecimento histórico [Belo Monte]”25, dada sua complexidade.
Alexandre Otten sintetiza muito bem o problema (com mais clareza que em sua
obra principal):

mesmo que na comunidade de Belo Monte haja traços e elementos messiânicos e


milenaristas, não se pode caracterizar o movimento como messiânico. Como tam-
bém não é apocalíptico, mesmo que a dimensão apocalíptica marque fortemente o
movimento. A dimensão profética preponderou.26

Prefiro aqui falar de “movimentos de alternativas sócio-religiosas”, conceito


que há de englobar no seu interior várias tendências, a serem nomeadas a partir da
avaliação cuidadosa das especificidades dos movimentos a serem estudados.27 E não
se trata de mera discussão terminológica ou semântica. Para fugir o quanto possível
dos estereótipos, preconceitos e pré-julgamentos, é preciso introduzir-se profun-
damente na dinâmica dos grupos proponentes de alternativas sócio-religiosas (e,
certamente, essa observação vale para a análise de outros fenômenos). Até porque,
para lidar com o caso de Belo Monte, impõe-se uma tarefa desafiadora: lidar com
ALGUMAS CONCLUSÕES 327

os preconceitos derivados da obra euclidiana, incapaz (ou impossibilitada, aqui não


vem ao caso) de apreender o que pensavam e viviam Antonio Conselheiro e sua
gente, bem como os sentidos que imprimiam à sua existência à beira do Vaza-barris
e ao mundo ao seu redor. Não convém substituir tantos postulados apriorísticos
por outros.28

3. MOVIMENTOS “BIBLADOS”

Sem qualquer pretensão “cristianocêntrica”, encerro este trabalho chamando


a atenção para a importância de se considerar os elementos de origem bíblica na
constituição dos movimentos brasileiros de alternativas sócio-religiosas. Para usar
mais uma vez a expressão de Gruzinski, depois de séculos de maciça “colonização
do imaginário”, não se poderia esperar um quadro diferente. Os resultados a que
chegaram Genovese e Hill, por exemplo, dificilmente poderiam ser atribuídos a
algum “cristianocentrismo” dos autores, ou a algo semelhante. Faz quinhentos anos
que a Bíblia vem redesenhando por aqui os contornos da terra, das pessoas, dos
ares, dos embates e das conquistas. Esse processo não é isento de consequências, e
o que procurei mostrar em relação ao Belo Monte de Antonio Conselheiro quer
servir de indicativo para ulteriores investigações.
A suspeita é a de que, mesmo no âmbito da cultura brasileira fortemente
marcada pelo cristianismo de corte católico, com escassa presença do livro bíblico
(se comparamos, por exemplo, com o universo estudado por Christopher Hill),
haveremos de topar a todo momento com a Bíblia, com a diversidade de textos e
conteúdos nela contidos, aliada ao reconhecimento da sacralidade/autoridade de
seu teor, sempre que, na análise de processos históricos, nos encaminharmos da
sociologia dos eventos para a antropologia do sentido dos eventos, principalmente
quando estiverem em cena os grupos populares.29 Afinal de contas, desde as Santi-
dades indígenas, por exemplo, aquela de Jaguaripe, no fim do século XVI, quando
não fazia ainda cinquenta anos da catequese jesuítica naquelas paragens, temos a
internalização de referências bíblicas na história brasileira: a igreja do aldeamento
tupinambá não tinha outro nome que Nova Jerusalém.30
Mas me detenho em dois movimentos brasileiros do século XIX e início do
XX, e nas indicações já sugeridas por algumas investigações. Em seu estudo sobre
o já mencionado movimento milenarista do Contestado (desenvolvido desde mea-
dos do século XIX, mas que encontrou seu auge entre 1912 e 1916, em terras dis-
putadas por Paraná e Santa Catarina), Ivone Gallo, ao reconhecer que um grande
atrativo de seu tema é o “instigante problema de, em pleno século das luzes, uma
328

multidão, estimada em torno de 20 mil pessoas, insurgir-se contra o regime, inspi-


rada, não como se suporia, no pensamento racionalista, mas nos temas bíblicos”31,
dedica um capítulo de seu trabalho a buscar as raízes do pensamento apocalíptico
na tradição judaico-cristã, consagrando uma atenção especial ao livro do Apocalip-
se de João. Consciente de que no movimento por ela estudado “os textos bíblicos
convertem-se em um apelo fundamental para a interpretação do presente, tanto
quanto para a formulação de novos parâmetros para a convivência comunitária” e
que um elemento de particular importância era o fato de um dos líderes do grupo
possuir “um considerável conhecimento dos textos bíblicos, ou, então, uma ma-
neira pessoal de interpretação da palavra revelada”32, Ivone se lança a esta tarefa que
poderia parecer absurda a muitos olhos. Os resultados são promissores:

dentre os temas bíblicos, o que ocupa um lugar de destaque no imaginário popu-


lar do Contestado é essa história da certeza da extinção do tempo imperfeito do
calendário oficial, agonizando às portas do Paraíso na Terra [...] o fato de a guerra
derradeira não ter ocorrido também contribui para uma leitura sempre atualizada
sobre o livro do Apocalipse.33

E ela exemplifica: “entre as inúmeras utilizações práticas dos símbolos do Apo-


calipse no Contestado, encontra-se a projeção, para os inimigos da causa santa, das
características das Bestas do livro da revelação [...] a imagem da nova Jerusalém
descrita no livro do Apocalipse encontra também um paralelo nas comunidades
estabelecidas pelos rebeldes”.34 Certamente não foi só o Apocalipse que alimentou
a mística e a cosmovisão da gente do Contestado. As indicações acima servem de
exemplo que evidencia a importância de se fazer a pergunta pelas raízes (também
bíblicas) das concepções que contribuíram decisivamente na articulação do referi-
do projeto popular para que se possa aquilatar o sentido que seus participantes lhe
imprimiram.35 Por outro lado, é tentador verificar como as instâncias oficiais da
Igreja Católica argumentaram em relação aos rebeldes do interior catarinense: não
será improvável encontrar argumentações (alimentadas de textos bíblicos?) simila-
res àquelas que lemos no documento que leva o nome de frei João Evangelista de
Monte Marciano.
Voltemos ao Nordeste, a meados do século XX, ao encontro de antigos segui-
dores de pe. Cícero, agora estabelecidos em Pau de Colher, noroeste da Bahia.36 Os
testemunhos dos sobreviventes ao massacre confirmam de forma impressionante o
aspecto que aqui quero salientar: a Bíblia e suas referências surgem espontaneamen-
te nas falas das pessoas envolvidas com o movimento. Seus beatos, feitos “profetas
pregando a necessidade de melhorar o mundo”, são acusados em jornais da época de
pretenderem “penetrar as amplas zonas transcendentes da exegética”.37 Falava-se da
ALGUMAS CONCLUSÕES 329

caracterização do papel das lideranças de beatos como arregimentadores de “in-


cautos” e “miseráveis” que, graças a uma capacidade retórica e a um conhecimento
da Bíblia, eram capazes de convencer e seduzir grandes contingentes de sertanejos
passivos, “autômatos” e destituídos de suas experiências de vida e tradições de reli-
giosidade.38

Foi também a Bíblia, segundo jornais da época, que motivou a que os inte-
grantes do movimento permanecessem reunidos e em oração mesmo depois do
confronto com a polícia.39 As memórias sobre José Senhorinho, líder da irmandade
de Pau de Colher, dão conta de que ele “sabia ler e gostava de ler a Bíblia”, além do
tão citado Missão abreviada.40 Outro líder do movimento, José Camilo, é apresen-
tado em jornal, anos após o massacre, como “lido em coisas da Bíblia”.41 Embora
quase analfabeto, uma vez preso, recitou versículos inteiros, “profundo conhecedor
da Bíblia” que era.42 Mesmo cinquenta anos após os eventos, ao dar depoimentos
sobre sua história, “a mensagem bíblica era tão forte que se havia tornado a prin-
cipal referência explicativa da sua vida e do mundo”.43 Sirva de exemplo sua espe-
tacular “declamação” de Mateus 5,1-16, notável pela capacidade de memorização
das bem-aventuranças e do que vem a seguir, e principalmente pela maneira como,
ao recriar o texto, deu-lhe feições particulares, inclusive ajustando-o ao cenário
sertanejo. Seguem-se alguns fragmentos:

ele [Jesus] vinha na frente e o pessoalzão atrás dele e quando ele vinha na estrada
tinha um monte... um montesinho de pedra... ele subiu pra riba do monte, história
da Bíblia, e sentou, o pessoal foi se chegando... estrada do interior apenada... era
muita gente... quando chegou o derradeiro, ele se levantou... abriu os braços... e
virou pro pessoal e começou... dizendo assim: [seguem-se sete bem-aventuranças,
faltando aquela relativa aos famintos e sedentos de justiça; a seguir continua] bem
aventurado são o voz outro quando sofre perseguição servil [...] assim também fo-
ram perseguidos os profetas antes de vós, os profetas são o sal da terra [...]44

Também expectativas de retorno, no fim dos tempos, de um conselheiro-pro-


feta, se alimentaram de referências bíblicas, tiradas principalmente do Apocalipse.45
Surpreende ainda a recorrência do termo “parábola” nas falas de José Camilo; algo
que de alguma forma aponta para a a originalidade de sua apropriação dos textos
sagrados. Uma passagem é particularmente significativa: “as parabolo ele disse e o
povo ouvindo, agora a criatura que souber interpretar... cada parabolo dessa é um
ramo duma história, ... muita gente não compreende, lê o caso no livro mas não
compreende para declarar o que é”.46 Com efeito, as narrativas de Camilo contêm
vários exemplos de
330

(re)codificação de parábolas, profecias bíblicas – quase sempre relacionadas a um


imaginário apocalíptico – , que adquirem sentido próprio na cultura caatingueira.
Chama atenção que, no universo de uma cultura oral, ele tenha aprendido a pala-
vra de Deus mediante parábolas, que contêm mensagens abertas [...] suscetíveis de
serem reelaboradas e retomadas continuamente.47

Destaque-se, por fim, o lugar que ocupam, nas memórias de José Camilo, as
histórias sobre Moisés; aliás, se todas as lideranças da comunidade foram rebatiza-
das com nome de santos, coube ao depoente justo o do líder hebreu.48 Este surge
principalmente como o comunicador dos dez mandamentos da lei de Deus; a no-
meação de Camilo como “segundo Moisés”, além de consolidar sua autoridade,
constituiu-o mediador entre o texto sagrado (que “foi iscrivido por mão de homem
mais a palavra é de Deus”49) e os ouvintes, e o encarregou de zelar pelas normas de
conduta da comunidade, fundadas nos preceitos bíblicos.50 Como se vê, por essas
observações incompletas, Pau de Colher não é exceção:

na cultura oral do sertão nordestino brasileiro, mais do que intérpretes ou traduto-


res de textos do Evangelho, beatos e conselheiros podem ser apreendidos como elos
de interlocução entre a apostolar tradição de pregação da palavra de Deus – que
chegou à região com textos bíblicos e ordens religiosas missionárias – e uma tradi-
ção popular de oralidade, que encontrou nas escrituras religiosas meios e recursos
para expressar, no seu universo cultural, seus anseios, sofrimentos e expectativas.
O entrelaçamento dessas tradições guarda referência desde Canudos até Juazeiro
do Norte e Caldeirão Grande, que, do Ceará, potencializaram uma circulação de
práticas e pregadores.51

Os exemplos mencionados, ao se somarem à exposição aqui proposta sobre o Belo


Monte de Antonio Conselheiro, ilustram de maneira eloquente as impressões que Car-
los Alberto Steil registrou diante das manifestações religiosas que presenciou junto ao
santuário de Bom Jesus da Lapa, interior da Bahia, mas que apontam para um quadro
muito mais amplo que o sertão nordestino:

as estórias [ali ouvidas] revelam uma presença da Bíblia entre os romeiros que apon-
ta para uma cultura bíblico-católica, onde pode-se [sic] ver realizada, embora em per-
manente tensão, a síntese entre o texto bíblico e a teia de sentidos que os romeiros
vão tecendo para sustentá-los na difícil arte de viver.

Logo adiante o estudioso fala de “uma apreensão da Bíblia no catolicismo


popular tradicional brasileiro que é profundamente comunitária e oral, apesar de
ALGUMAS CONCLUSÕES 331

se tratar de um texto escrito”.52 É viável, portanto, procurar os vínculos existentes


entre as tradições populares autóctones e os mitos bíblicos, e as bricolages estabe-
lecidas entre eles durante tanto tempo e em formas as mais variadas. Assim, “as
palavras e os temas da Bíblia eram a tal ponto familiares e de uso popular, que
somos obrigados a fazer um grande esforço para entendê-las”, tanto na Inglaterra
protestante e revolucionária do século XVII como no Brasil popular católico de
tantos séculos.53 Efetivamente, a Bíblia jogou papel decisivo na constituição da
história deste país. Belo Monte é apenas um momento, privilegiado, é certo, da
eclosão deste “caldo” cultural, feito protesto e elaboração de alternativas, destruídas
também com o influxo da Bíblia. E até quando se pretende demarcar um certo
campo de autonomia religiosa, precisa-se definir a percepção em relação ao livro
sagrado.54 Mais uma vez citando Hill, pode-se afirmar que vale para o Brasil o que
o notável historiador afirmava da Inglaterra do século XVII, e que procurei notar
no contexto do nascimento, vida e morte do Belo Monte de Antonio Conselheiro:
“A Bíblia teve um papel central em toda a vida da sociedade; nós nos arriscamos
ao ignorá-la”.55

________

NOTAS

1  Rubem Alves. O suspiro dos oprimidos. 3 ed., Paulinas, São Paulo, 1992,
p.121-122.
2  Josildeth Gomes Consorte. “Movimentos messiânicos no Nordeste”. In: A Igreja
Católica diante do pluralismo religioso (II). Paulinas, São Paulo, 1993, p.60. A expressão
“antagonismos em equilíbrio” aparece em lugares estratégicos da obra de Gilberto Freyre,
particularmente em Casa-grande e senzala, e aponta para um certo acordo e consenso que,
apesar de todas as tensões e violências, se teria estabelecido entre os diversos grupos sociais
na história brasileira, particularmente entre senhores e escravos. Para uma discussão deta-
lhada do conceito, Ricardo Benzaquen de Araújo. Guerra e paz. Casa-grande e senzala e a
obra de Gilberto Freyre nos anos 30. 34, São Paulo, 1994, p.43-73.
3  Jacqueline Hermann. Histórias de Canudos: o embate cultural entre o litoral
e o sertão do século XIX. Dissertação de mestrado, UFF, Niterói, 1990, p.222-223.
4  Roger Chartier. A história cultural: entre práticas e representações. Difel /
Bertrand Brasil, Lisboa / Rio de Janeiro, 1990, p.17.
332

5  Alexandre Otten. “A influência do ideário religioso na construção da co-


munidade de Belo Monte”. In: Luso-Brazilian Review. Wisconsin, 1993. v.30, n.2,
p.72.
6  Minha tese de livre-docência, consagrada a este caderno, e a que já fiz refe-
rência, está em processo de publicação.
7  Maria Cristina Pompa. Religião como tradução: missionários, Tupi e “Ta-
puia” no Brasil colonial. Tese de Doutorado, Unicamp, Campinas, 2001, p.438.
8  Veja Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil colo-
nial. Edusc / Anpocs, Bauru / São Paulo, 2003, p.416-417.
9  Maria Cristina Pompa. Religião como tradução..., p.25 (citação do livro).
10  Maria Isaura Pereira de Queiroz. O messianismo no Brasil e no mundo. 3
ed., Alfa-Ômega, São Paulo, 2003, p.31, nota 23.
11  Basta ver os títulos e subtítulos das obras desses autores para se constatar
a oscilação: La guerre sainte au Brésil: le moviment messiánique au Contestado,
de Maria Isaura; Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do Contestado
(1912-1916), de Maurício Vinhas; “Contestado: a gestação social do messias”, de
Laís Mourão; Os errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do
Contestado, de Duglas Teixeira Monteiro; e Contestado: o sonho do milênio igua-
litário, de Ivone Gallo.
12  Robert Levine. O sertão prometido: o massacre de Canudos. Edusp, São
Paulo, 1995, p.29.
13  Para não me deter em elementos de ordem teológica ou conceitual, reco-
lho aqui a observação de Vicente Dobroruka, que chama a atenção para o caráter
dinâmico da economia de Belo Monte, indicativo, segundo ele, de um caráter
não-milenarista, ao menos predominantemente, do arraial conselheirista: “A estru-
tura econômica de Canudos esteve sempre longe do mero parasitismo, como o da
economia do Contestado, por exemplo (emprego o termo sem qualquer conotação
pejorativa, mas apenas para ilustrar que uma coletividade na espera iminente do
eschaton se permitiria uma economia que viva somente do saque e que desperdi-
ce tal como os rebeldes do Contestado fizeram; Canudos manteve, tanto quanto
pôde, atividade econômica regular)” (Antônio Conselheiro: o beato endiabrado de
Canudos. Diadorim, Rio de Janeiro, 1997, p.129); veja ainda Marco Antônio Villa
(Canudos: o povo da terra. Ática, São Paulo, 1995, p.230-240).
14  Robert Levine. O sertão prometido..., p.327.
15  Levine, o autor que, mais recentemente, tem insistido no caráter milenarista
do movimento liderado pelo Conselheiro, tem enormes dificuldades para manter-se
dentro do paradigma que a priori impôs ao Belo Monte, como mostram as constantes
ressalvas que se vê obrigado a fazer: “Se sua [do Conselheiro] visão era messiânica e mi-
lenarista, do ponto de vista de sua teologia e do comportamento social que pregava, ele
ALGUMAS CONCLUSÕES 333

não oferecia nenhum tipo de ameaça” (O sertão prometido..., p.320); b) “A maioria de


seus [do Conselheiro] sermões não era nem apocalíptica nem taumatúrgica: pedia sim-
plesmente que todos trabalhassem duro e dentro da moral, para que assim obtivessem
proteção espiritual contra o mundo secular corrompido” (p.322); c) “a cidade era um
refúgio organizado em bases teocráticas, mas ligado de forma pragmática ao ambiente
circundante, um fato que por si só já demonstra a flexibilidade do Conselheiro e de seus
auxiliares” (p.323; não faltarão oportunidades em que destacada é a intransigência dos
mesmos!); d) “Antes do cerco a Canudos, seus moradores estavam demasiado entregues
à tarefa de construir a comunidade e de seguir os austeros preceitos do Conselheiro
para se preocuparem com fantasias de fim de mundo” (p.325); e) “Não sabemos até
que ponto suas [do Conselheiro] pregações apocalípticas não eram concretas ou eram
simplesmente simbólicas. E, mesmo que ele desse tanta ênfase a visões proféticas como
queriam seus inimigos, tais imagens não eram estranhas nem ao cristianismo nem ao
sertão” (p.329); f) “Em Canudos, simplesmente desconhecemos qual a importância
dada pelo Conselheiro à iminência do Apocalipse” (p.330).
16  Hans Kohn, citado por Henri Desroche. Dicionário de messianismos e
milenarismos. Umesp, São Bernardo do Campo, 2000, p.20.
17  Vittorio Lanternari. “Messias”. In: Enciclopédia Einaudi. Imprensa Nacio-
nal / Casa da Moeda, s/l, 1994, v.30 (Religião – Rito), p.280.283.
18  O que define o messias? A eclosão de um movimento messiânico. Mas
este só pode ser assim caracterizado pela presença de uma figura messiânica. No
fim das contas, quem define quem?
19  Euclides da Cunha. Os sertões: campana de Canudos. 4 ed., Ateliê, São
Paulo, 1985, p.278. Veja-se o seguinte parágrafo, tão elucidativo (do pensamento
de Euclides) quanto pouco operacional, no esforço de compreender a religiosida-
de sertaneja e, especificamente, belomontense: “Uma grande herança de abusões
extravagantes, extinta na orla marítima pelo influxo modificador de outras crenças
e de outras raças, no sertão ficou intacta. Trouxeram-na as gentes impressionáveis,
que afluíram para a nossa terra, depois de desfeito no Oriente o sonho miraculoso
da Índia. Vinham cheias daquele misticismo feroz, em que o fervor religioso rever-
berava à cadência forte das fogueiras inquisitoriais, lavrando intensas na Península.
Eram parcelas [...] da mesma gente que após Alcácer-Quibir, em plena ‘caquexia
nacional’ [...] procurava, ante a ruína iminente, como salvação única, a fórmula
superior das esperanças messiânicas” (p.199). Como se sabe, Alcácer-Quibir é o
nome da batalha em que desapareceu, em 1580, o rei D. Sebastião, cujo retor-
no passou a ser esperado em amplos setores da população portuguesa e mesmo
no Brasil. As referências ao rei português nas prédicas atribuídas ao Conselheiro
inexistem, e mesmo nas trovas populares recolhidas por Euclides sua presença é
secundária.
334

20  Para nos darmos conta do terreno pantanoso em que estamos metidos,
recorde-se que José Calasans, num de seus primeiros trabalhos sobre o Belo Mon-
te, fala do “despertar do messianismo conselheirista” somente a partir da morte de
Antonio Maciel, que teria sido entendida por seus seguidores, segundo Euclides,
como prenúncio de um retorno próximo (O ciclo do bom Jesus conselheiro: con-
tribuição ao estudo da campanha de Canudos. Edição fac-similada pela Edufba,
Salvador, 2002, p.94). Embora seja afirmado por alguns documentos que muitos
belomontenses esperavam a ressurreição do Conselheiro, é difícil explicar toda a
trajetória do Belo Monte a partir dessa crença, por mais importante que em algum
momento ela possa ter sido.
21  Alba Zaluar Guimarães. “Os movimentos ‘messiânicos’ brasileiros: uma
leitura”. In: O que se deve ler em Ciências Sociais no Brasil. Cortez / Anpocs, São
Paulo, 1986, n.1, p.144-145. Maria Cristina Pompa sintetiza dessa forma o pensa-
mento de Zaluar sobre a categoria “messianismo”: “a leitura determinada por cate-
gorias construídas aprioristicamente acaba tornando a interpretação redutiva e não
permite a compreensão global do fenômeno” (“A construção do fim do mundo.
Para uma releitura dos movimentos sócio-religiosos do Brasil ‘rústico’”. In: Revista
de Antropologia. São Paulo, 1998. v.41, n.1, p.191).
22  Alba Zaluar Guimarães. “Os movimentos ‘messiânicos’ brasileiros: uma
leitura”..., p.146. Sinto-me confirmado diante das ponderações de Adriana Ro-
meiro sobre um fenômeno muito menos abrangente, o “sebastianismo” expressas
numa terminologia ainda ambígua ao se referirem a milenarismo e messianismo:
“O conceito de sebastianismo usado para englobar todas estas manifestações de
caráter messiânico, desde as trovas do Bandarra até as formulações da cultura po-
pular, passando pelas concepções do padre Antonio Vieira, não resiste a uma aná-
lise mais atenta. Afinal, estão em jogo elementos tão dispares que a tentativa de
abarcá-los sob um conceito demasiadamente rígido nada acrescenta ao seu estudo,
antes produz uma concepção generalizante e atemporal. Se é necessário buscar
definições mais amplas e elásticas – como a de milenarismo messiânico –, uma
tal empresa somente terá sentido dentro de uma análise bastante particularizada,
submetendo-as ao refinamento de uma abordagem que privilegie as especificidades
de cada fenômeno” (Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas
Minas Gerais. Editora da UFMG, Belo Horizonte, 2001, p.70). O que, de alguma
forma inviabiliza continuar falando de “messianismo”.
23  Lísias Nogueira Negrão notou muito bem esse aspecto do pensamento
de Duglas, distinguindo-o do de Maria Isaura: enquanto para esta “predominam
os conceitos – o conceito de ‘movimento’ seguido do qualificativo ‘messiânico’,
ou ainda o termo genérico ‘messianismo’, que os engloba”, nos textos de Duglas
“aparecem predominantemente referências a casos concretos”. Maria Isaura
ALGUMAS CONCLUSÕES 335

“procura equalizar os casos estudados, minimizando suas peculiaridades e


ressaltando suas semelhanças”. Essas diferenças não são acidentais, “derivam-se de
procedimentos metodológicos distintos”; nos trabalhos de Maria Isaura verifica-se
a predominância do “método explicativo, em que os fenômenos estudados [...]
ganham um significado que lhe é atribuído do exterior”. Já os textos de Duglas
Monteiro evidenciam “a utilização do método compreensivo, em que o observador
procura situar-se ao nível dos agentes e com eles identificar-se, captando o significado
que os mesmos atribuem à sua ação” (Lísias Nogueira Negrão. “Apresentação”.
In: Josildeth Gomes Consorte e Lísias Nogueira Negrão. O messianismo no Brasil
contemporâneo. FFLCH-USP/CER, São Paulo, 1984, p.8). Essas distinções me-
todológicas fazem toda a diferença, na medida em que é o caminho aberto por
Duglas Monteiro que permite um olhar mais qualificado sobre o Belo Monte de
Antonio Conselheiro, desafiando que se identifique a lógica intrínseca a ele, e evi-
tando impor a priori quadros teóricos e referenciais que poderiam comprometer a
apreensão daquele processo específico. Assim, não é casualidade que o autor evite
o termo “messianismo”, reservando “milenarismo” para aquela situação em que, a
seu ver, há precisamente a esperança pelo milênio, ou pelo novo século, o caso do
Contestado.
24  Jacqueline Hermann. Histórias de Canudos..., p.193.
25  Marco Antonio Villa. Canudos: o campo em chamas. Brasiliense, São
Paulo, 1992, p.76. Nesse sentido seria necessário fazer uma ressalva ao trabalho,
cuidadoso e importante, de Maria Cristina Pompa, na medida em que insere, sem
mais, o Belo Monte de Antonio Conselheiro no seio daquela corrente que ela
denomina “a construção do fim do mundo” ou “cultura do fim do mundo”, na
medida em que este referencial (o fim do mundo) não dá conta das motivações
(talvez nem mesmo as mais importantes, cabe verificar caso a caso) que levam
ao surgimento de uma vila como Belo Monte. Com os dados que recolhemos
nos capítulos anteriores, seria adequado qualificar o arraial do Conselheiro, pelo
menos antes da eclosão da guerra, como “uma coletividade que conceptualiza a
realidade presente como crise e a define como um Tempo (ou um Tempo / Espa-
ço) chegando ao Fim”, vivendo na “expectativa de uma mudança mais ou menos
radical dessa realidade, cuja mudança definida é como salvação e anunciada pelas
profecias”? Seria adequado compreender o “corpus de crenças e práticas religiosas”
desenvolvido no Belo Monte como processo pelo qual “a coletividade visa realizar
a mudança e inaugurar a nova ordem” (Maria Cristina Pompa. “A construção do
fim do mundo...”, p.179)? Em outras palavras, a ressalva diz respeito à tendência
em compreender todo o processo histórico, político, religioso e cultural vivido
pelo Belo Monte em chave quase exclusivamente escatológica, como se outras di-
mensões não fossem, também elas, produtoras de sentido para a vida do arraial
336

do Conselheiro. O “catolicismo rústico”, “base imprescindível do surto” (p.192)


de movimentos como o do Belo Monte, tem mais a oferecer que a perspectiva
escatológica. Não quero, com isso, afirmar que essa última seja menos importante;
apenas não é a única.
26  Alexandre Otten. “A influência do ideário religioso na construção da co-
munidade de Belo Monte”..., p.93. Já anotei que em seu livro Otten se mostra
um tanto vacilante na caracterização dos contornos apocalípticos em Belo Monte,
sua forma específica e sua relevância na cosmovisão geral que animou o arraial
antes e durante a guerra. As elaborações weberianas sobre o “profeta”, retomadas
e ampliadas para além do indivíduo carismático, são terreno fértil para avanços
significativos na análise dos movimentos brasileiros formuladores de alternativas
sócio-religiosas.
27  Pedro Ribeiro de Oliveira sugere falar de “movimentos religiosos de
protesto social” (Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função do
catolicismo romanizado no Brasil. Vozes, Petrópolis, 1985, p.241). Trata-se de
expressão não de todo adequada, já que, se Belo Monte e outros movimentos
expressaram algum tipo de protesto, este se deu também no campo religioso.
Também a expressão “movimentos sócio-religiosos”, usada por tantos estudiosos,
soa insuficiente, por não explicitar o componente conflitivo da trajetória dos
grupos em questão.
28  A leitura da síntese que Maria Amélia Schmidt Dickie propôs de sua
tese de doutorado, sobre os Mucker (“Milenarismo em contexto significativo: os
Mucker como sujeitos”. In: http://www.ifcs.ufrj.br/jornadas/papers/09st0804.
rtf [30/09/03]), sugere novas possibilidades analíticas. E chama a atenção o tra-
balho de Alicia Barabas que, inspirada em Bloch, estuda os movimentos de alter-
nativas sócio-religiosas a partir do conceito de “utopia concreta”. Desenvolvi um
pouco mais os problemas envolvidos na utilização do conceito “messianismo”
pelas Ciências Sociais em “Messianismo: problemas de um conceito”. In: Gilbraz
Aragão, Newton Cabral e Edênio Valle (ed.) Para onde vão os estudos da religião
no Brasil? Anptecre, São Paulo, 2014, p.121-138 (disponível em http://www.uni-
cap.br/anptecre/wp-content/uploads/2013/12/livro-palestras-Anptecre-2014.
pdf [28/06/15]).
29  Essa passagem, da sociologia dos eventos para a antropologia do sentido
dos eventos, caracteriza, segundo Maria Cristina Pompa, a contribuição princi-
pal de Duglas Teixeira Monteiro para o estudo dos movimentos de alternativas
sócio-religiosas brasileiros (“A construção do fim do mundo...”, p.187).
30  Ronaldo Vainfas. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil
colonial. Companhia das Letras, São Paulo, 1999, p.105-112. Comentando uma
virtual identificação entre a santidade (cerimônia tradicional dos Tupi) em busca
ALGUMAS CONCLUSÕES 337

da Terra sem Males e o Paraíso cristão, sugerida pelas fontes a respeito de Jagua-
ripe, Vainfas, embora reconheça que seria prudente desconfiar de tais analogias,
afirma que não fazê-las “seria desconhecer a complexidade do processo acultu-
rador que se operava no Brasil quinhentista, especialmente no domínio da cate-
quese, espaço onde diariamente se tecia menos a difusão da fé católica que um
amálgama cultural diferenciado” (p.109). É no interior desse “amálgama cultural
diferenciado” que a Bíblia vai fazendo interferindo diretamente na confecção da
história brasileira desde o século XVI.
31  Ivone Cecília D’Ávila Gallo. Contestado: o sonho do milênio igualitário.
Unicamp, Campinas, 1999, p.173.
32  Ivone Cecília D’Ávila Gallo. Contestado..., p.175.71 (grifo nosso).
33  Ivone Cecília D’Ávila Gallo. Contestado..., p.46.50.
34  Ivone Cecília D’Ávila Gallo. Contestado..., p.53.54. Veja também a p.147,
onde a autora fala da configuração arquitetônica do reduto que a gente do Contes-
tado chamava de nova Jerusalém.
35  Ivone Gallo não entra em maiores detalhes sobre como os textos bíblicos
se teriam tornado acessíveis à gente do Contestado; afirma apenas que “a formação
religiosa, naquela região, realizou-se, sobretudo, pela pregação de leigos [...] Isso
facilitou a utilização dos textos sagrados como apoio na interpretação dos aconte-
cimentos do cotidiano” (Contestado..., p.174).
36  Ao que parece, ao menos parte dos participantes do movimento participa-
ra da organização conhecida como “Caldeirão”, liderada pelo beato José Lourenço,
e reprimida violentamente em 1936. Sediados agora no município de Casa Nova,
no lugarejo Pau de Colher (que não mais existe; situava-se à margem esquerda do
rio São Francisco, próximo a Juazeiro e à fronteira com o Piauí), formaram uma
comunidade de cerca de mil pessoas, das quais algumas centenas foram massacra-
das em janeiro de 1938 por tropas policiais. Ressalte-se que a imprensa da época
e os “coronéis” da região insistiram na caracterização de Pau de Colher como uma
“segunda Canudos”. Para os detalhes, Maria Cristina Pompa. Memórias do fim do
mundo: para uma leitura do movimento sócio-religioso de Pau de Colher. Disser-
tação de Mestrado, Unicamp, Campinas, 1995; Gilmário Moreira Brito. Pau de
Colher na letra e na voz. Educ, São Paulo, 1999.
37  Coluna do jornal Estado da Bahia / Diários Associados, citada por Gilmá-
rio Moreira Brito. Pau de Colher..., p.82.83.
38  Gilmário Moreira Brito. Pau de Colher..., p.108.
39  Gilmário Moreira Brito. Pau de Colher..., p.123.
40  Maria Cristina Pompa. Memórias do fim do mundo..., p.105.
41  Jornal Estado da Bahia / Diários Associados, citado por Gilmário Moreira
Brito. Pau de Colher..., p.130.
338

42  Jornal Estado da Bahia / Diários Associados, citado por Gilmário Mo-
reira Brito. Pau de Colher..., p.132s: “sabe-se que José Camilo teve acesso ao
conhecimento bíblico por meio de ‘leituras’, feitas aos domingos, compartilha-
das com outros participantes de Pau de Colher. Senhorinho [...] fazia reuniões
em sua casa e de outros interessados [...] Esse processo é revelador de uma das
formas como os textos sagrados, juntamente com valores, normas e uma moral
religiosa constituída no imbricamento de princípios bíblicos com experiências
locais foram sendo transmitidos de grupo em grupo, de geração em geração”
(p.134-135).
43  Gilmário Moreira Brito. Pau de Colher..., p.172.
44  Fala de José Camilo transcrita em Gilmário Moreira Brito. Pau de Co-
lher..., p.174.175.
45  Gilmário Moreira Brito. Pau de Colher..., p.183-185.
46  Fala de José Camilo transcrita em Gilmário Moreira Brito. Pau de
Colher..., p.186. Veja também dizeres de Camilo à p.187: ali fica claro que
para ele “parabolo” tem a ver com enunciados incompreensíveis na superfície.
A Bíblia aparece contraposta à já citada Missão abreviada; esta tem dizeres de
compreensão imediata: ela “é assim pam, pam, e vão dizendo e mostrando o
resultado”. Por outro lado, há as próprias “parabolo” de Camilo, por exemplo,
sobre a criação e o fim do mundo, alimentadas da sempre criativa apropriação
da Bíblia, particularmente dos livros do Gênesis, Êxodo, Daniel e Apocalipse
(p.195.199).
47  Gilmário Moreira Brito. Pau de Colher..., p.185-186.
48  Maria Cristina Pompa. Memórias do fim do mundo..., p. 116-117; Gilmá-
rio Moreira Brito. Pau de Colher..., p.202-203.
49  Gilmário Moreira Brito. Pau de Colher..., p.208.
50  Fica evidente que estes e outros textos bíblicos que surgem da fala de
José Camilo, apreendidos e memorizados ao longo de sua longa existência, “não
foram justapostos cumulativamente, como elementos exteriores às suas experi-
ências e lembranças, mas criativamente integrados às suas vivências, construindo
/ reconstruindo seus modos de ser, de ver, de viver e recordar [...] José Camilo
leu / escutou textos sagrados à luz de suas tradições e práticas culturais, formu-
lando falas e projetando imagens entremeadas na cultura letrada e na oral [...] os
textos bíblicos deram a forma, evocaram e permitiram apreender, nas memórias
de José Camilo, substratos de uma cultura popular religiosa lenta e contradito-
riamente maturada no sertão nordestino, em melo a contínuas e violentas repres-
sões, distorções e desqualificações” (Gilmário Moreira Brito. Pau de Colher...,
p.178.185.196).
51  Gilmário Moreira Brito. Pau de Colher..., p.212.
ALGUMAS CONCLUSÕES 339

52  Carlos Alberto Steil. O sertão das romarias: um estudo antropológico so-
bre o santuário de Bom Jesus da Lapa – Bahia. Vozes, Petrópolis, 1996, p.151. Steil
deve o conceito de cultura bíblico-popular a Otávio Velho (Besta-fera: recriação do
mundo: ensaios críticos de antropologia. Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1995.
p.13-43).
53  Christopher Hill. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. Civiliza-
ção Brasileira, 2003, p.52.
54  Note-se o depoimento de Roldão Mangueira, um dos líderes do mo-
vimento dos Borboletas Azuis, estudado por Josildeth Gomes Consorte e Lísias
Nogueira Negrão: “A Bíblia é verdadeira, agora, muitas criaturas fizeram, como
muitos escritores que escrevem livros e outras coisas mais, eles geralmente, eles
acrescenta muita coisa pelo meio, interesse comercial [...] A própria Bíblia diz que
eles [Adão e Eva] foram os primeiros do mundo e num outro texto, na frente,
outro capítulo, eles dizem que o filho de Adão, quando ele matou um ao outro,
ele saiu [...] encontrou uma cidade [...] e casou-se. Agora, com quem, se eles eram
os primeiros? É por isso que nós num adotamo a Bíblia” (O messianismo no Brasil
contemporâneo. FFLCH / USP – CER, São Paulo, 1984, p.368-369). Apesar disso,
são os autores que mostram, as falas dos membros do grupo ecoam a todo momen-
to referências bíblicas, por meio de paráfrases.
55  Christopher Hill. A Bíblia inglesa…, p.24.
EpÍLOGO
EPÍLOGO 343

O autor que chega ao final dessa viagem a Belo Monte certamente não é o
mesmo que aprontou as malas. Trafegou no decorrer de mais de uma década no
infinito vértice dos sertões da Ciência da Religião, da História, da Antropologia
e mais recentemente da Psicanálise. No trajeto, como o leitor deve ter observado,
foram muitos os exercícios de identificações, de inscrições, de rupturas, de lutos e
de renovadas perspectivas e expectativas para a construção de saberes diante do tão
imperativo Real, impossível de se inscrever. A labuta de caminhar num segmento
de tempo tão dilatado articulando questões tão complexas e arredias a conclusões
estáveis exigiu idas e vindas na feitura de um tecido textual que foi cosendo seus
pontos de estofo tendo muitas vezes de rasgar o já costurado para refazer o entre-
laçado em mais justas medidas. Foram constantes revisões. Portanto, essas últimas
linhas impõem no acabamento final uma operação curiosa. O encontro com um
achado estrutural em todo o processo: o interminável dos enigmas, a potência per-
turbadora para mais uma invenção, mais um modo de abordar o problema, mais
um desdobramento da questão, mais uma resposta pertinente, que tantas vezes
deixa o que está posto para trás, e ao mesmo tempo provisória. Mas se é preciso
terminar, é possível entrever novas significações, sempre uma a mais. Contudo,
concluir é uma operação retroativa e devo evocar algo de fundamental no ponto de
partida, ali onde as malas se aprontaram: o desejo particular e obstinado de fazer
justiça ao nome daquela figura sem a qual Belo Monte não teria existido. Antonio
Conselheiro, personagem da história do Brasil real segundo a proclamação de Aria-
no Suassuna; encarnação da celebridade segundo Machado de Assis; Moisés do ser-
tão segundo a voz da gente sertaneja é decididamente outro daquele da grande obra
euclidiana, o tal “anacoreta sombrio” ou “gnóstico bronco”. Toda a história do Belo
Monte revisitada revela de maneira claríssima que existiu na segunda metade do
344

século XIX, nos sertões da Bahia, um homem incomum, de vigor extraordinário,


capaz de articular com milhares de pessoas um projeto sócio-político-religioso ím-
par, que a “sagrada aliança” entre Igreja e Estado se encarregou de destruir. Leitor
de muitos livros, em particular dos textos sagrados, motivo da alcunha de “homem
biblado” registrada por um sertanejo da saga funesta, articulou com sua gente uma
urbe alternativa, perante a nova ordem republicana, a velha desordem fundiária e
a renovada pretensão eclesiástica de monopolizar as esperanças mais decisivas do
povo do sertão. A simples existência do Belo Monte mostrou-se conflitiva, produ-
ziu um feixe disjuntivo de entendimentos; contudo, em todos os sujeitos envolvi-
dos nesta saga se constata a marca da Bíblia como Alteridade, fundando sentidos
e fincando valores, inspirando resistências e sustentando repressões. A onipresença
do enredo bíblico no Belo Monte, em um sem-número de inscrições, releituras e
interpretações, eis o que o presente livro pretendeu retirar da invisibilidade, come-
çando pela ressignificação do protagonista da saga. Isso está feito, tendo como ex-
tensão o desdobramento desse trabalho na publicação, no prelo, do manuscrito de
1895, contribuição maior para a retificação do tão mal contado enredo, largamente
difundido, sobre nosso admirável personagem.
Todavia a composição do olhar que preside essa autoria sofreu diversos e in-
tensos impactos nesse trajeto, nessa ótica afortunadamente dilatado. Belo Monte
foi Escola para se retomar e avançar frente à perspectiva geertziana da religião como
poderosa instauradora de disposições e motivações decisivas nos seres humanos,
configurando visões de mundo e sentidos para a ação, em pelo menos duas dire-
ções. Em primeiro lugar, no entendimento de que tais inscrições se dão de forma
radicalmente distinta nos diversos sujeitos, e é preciso extremo cuidado diante das
inevitáveis generalizações. A Bíblia de Antonio Conselheiro não é a mesma que
funda o imaginário da gente que o segue. E nem se diga das particularidades que
caracterizam tais inscrições em cada homem, em cada mulher, enfim, em cada su-
jeito que se juntou ao Conselheiro na viabilização do Belo Monte. E ainda: como
seria possível pensar que a Bíblia da gente sertaneja e a do Conselheiro se identi-
fiquem com aquela que sustentou o lugar da instituição católica perante o Belo
Monte, da qual frei João Evangelista se fez contumaz defensor?
Em segundo lugar, a viagem pelo Belo Monte se mostrou uma oportunidade
ímpar para a confecção de perguntas sobre o lugar da religião na vida brasileira e,
de forma mais ampla e profunda, na vida humana, na cultura. Euclides da Cunha
não é exatamente um escritor que se poderia qualificar como “religioso”, muito
pelo contrário. Mas se constata que a religião se espraia e alcança, com as inscrições
que instaura, mais que aquilo abrangido nos espaços, discursos e práticas que se
tenderia a denominar religiosos. Euclides e universo o que representa ficaram en-
redados na trama significativa com que neles a religião se inscreveu. Sua Bíblia não
EPÍLOGO 345

era a de frei João, muito menos a do Conselheiro ou a da pobre gente do sertão.


Mas era ela: o texto que sustenta a cultura ocidental.
A Bíblia foi, neste trabalho, o meio através do qual pretendi abordar o mundo
tremendo e fascinante, tanto quanto enigmático, da complexidade e da densidade
feitas história na vida e morte do Belo Monte, impregnadas, encharcadas do reli-
gioso, lugar de ancoragem da verdade e do poder. As teias e emaranhados de sig-
nificados que, em seu devir histórico, ao mesmo tempo convergiram e conflitaram
na batalha épica pela atribuição de sentido à realidade vivida no sertão baiano de
fins do século XIX são exemplares de tantas potencialidades que se abrem a quem
considera o decisivo enraizamento da religião na tão difícil e conturbada edificação
civilizatória, sem a confinar, ou à esfera supostamente inócua da intimidade, ou ao
conjunto das obsolescências que a aventura da ordem simbólica estaria por descar-
tar. A tarefa é de empolgante, permanente e inquietante atualidade: os fundamen-
talismos de várias matrizes estão aí para ilustrá-lo; felizmente não só eles. Pode-se
recordar Feuerbach e seu reconhecimento de que na religião se dá a confissão pú-
blica dos segredos de amor dos seres humanos. No Belo Monte de Antonio Conse-
lheiro, como em tantos outros espaços e tempos, também os mal-estares e os ódios.
BIBLIOGRAFIA
BIBLIOGRAFIA 349

1. Fontes

A Bíblia Sagrada, traduzida em português segundo a Vulgata Latina. Ilustrada


com prefações por Antonio Pereira de Figueiredo. Garnier, Rio de Janeiro, 1864,
2v.
AGUIAR, Durval Vieira de. Descrições práticas da província da Bahia. 2 ed.,
Cátedra/MEC, Rio de Janeiro/Brasília, 1979 (original de 1888).
ALMEIDA, Cícero Antônio F. de (org.) Canudos: imagens da guerra. Lacerda,
Rio de Janeiro, 1997 (fotos de Flávio de Barros).
ASSIS, Machado de. A Semana. W. M. Jackson, Rio de Janeiro/São Paulo/Porto
Alegre, 1946, v.3.
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: Obra completa. Nova Aguilar, Rio de Ja-
neiro, 1997, v.1.
BARRETO, Emídio Dantas. Destruição de Canudos. Jornal do Recife, 1912
(original de 1898).
BENÍCIO, Manoel. O rei dos jagunços: crônica histórica e de costumes serta-
nejos sobre os acontecimentos de Canudos. 2 ed., Getúlio Vargas, Rio de Janeiro,
1997 (original de 1899).
BOMBINHO, Manuel Pedro das Dores. Canudos, história em versos. Hedra/
Imprensa Oficial do Estado/Edufscar, São Paulo, 2002 (original de 1898).
CALASANS, José. “Documentos para a história de Canudos”. In: Revista FAE-
EBA. Salvador, 1995. Número especial Canudos, p.167-174.
CANTUÁRIA, João Thomaz. Relatório apresentado ao Presidente da República dos Es-
tados Unidos do Brasil. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1898 (Anexo A: Forças em
operação na Bahia).
350

COUTO, Manoel José Gonçalves. Missão abreviada para despertar os descuida-


dos, converter os pecadores e sustentar o fruto das missões. 9 ed., Casa de Sebastião José
Pereira, Porto, 1873.
CUNHA, Euclides da. Caderneta de campo. Cultrix, São Paulo, 1975 (anota-
ções do autor e coleta de materiais quando de sua presença na região do combate).
CUNHA, Euclides da. Diário de uma expedição. Companhia das Letras, São
Paulo, 2000 (reportagens e telegramas enviados da Bahia e do campo dos combates
entre julho e outubro de 1897; contém ainda os dois artigos de Euclides sobre Belo
Monte, intitulados “A nossa Vendeia”, de março e julho de 1897).
CUNHA, Euclides da. Os sertões: campanha de Canudos. 4 ed., Ateliê, São
Paulo, 2009 (original de 1902; edição, prefácio, cronologia, notas e índices por
Leopoldo M. Bernucci).
GALVÃO, Walnice Nogueira. No calor da hora: a guerra de Canudos nos jor-
nais. 3 ed., Ática, São Paulo, 1994 (reportagens, dos jornais de 1897, sobre a guer-
ra).
GALVÃO, Walnice Nogueira e GALOTTI, Oswaldo (org.) Correspondência de
Euclides da Cunha. Edusp, São Paulo, 1997.
HORCADES, Alvim Martins. Descrição de uma viagem a Canudos. Litho-
Typografia Tourinho, Bahia, 1899 (edição fac-símile pela Empresa Gráfica da
Bahia/UFBA, Salvador, 1996).
LEÃO XIII. Litteras a vobis. In: Documentos de Leão XIII. Paulus, São Paulo,
2005, p.573-578 (carta enviada aos bispos do Brasil em 1894).
MACIEL, Antonio Vicente Mendes. Apontamentos dos preceitos da divina lei
de Nosso Senhor Jesus Cristo, para a salvação dos homens. Manuscrito, Belo Monte,
1895. Edição em CD-rom pela Universidade Federal da Bahia, 2001 (precedido de
transcrição interrompida do Novo Testamento cristão). Transcrição em VASCON-
CELLOS, Pedro Lima. Abrindo as portas do céu: apontamentos para a salvação,
subscritos por Antonio Vicente Mendes Maciel. Tese de livre-docência em Ciências
da Religião. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009, p.46-170.
MACIEL, Antonio Vicente Mendes. Tempestades que se levantam no coração de
Maria por ocasião do mistério da Encarnação. Caderno manuscrito, Belo Monte,
1897. Editado em Ataliba Nogueira. Antônio Conselheiro e Canudos: revisão histó-
rica. 3 ed., Atlas, São Paulo, 1997, p.57-197.
MARTINS, Cícero Dantas. Carta enviada ao Jornal de Notícias, de Salvador, e
publicada na edição de 4 e 5 de março de 1897. In: ARRUDA, João (org.) Canu-
dos: messianismo e conflito social. UFC/Secult, Fortaleza, 1993, p.173-183.
MONTE MARCIANO, João Evangelista de. Relatório apresentado, em 1895,
pelo reverendo Frei João Evangelista de Monte Marciano, ao Arcebispado da Bahia,
sobre Antonio Conselheiro e seu séquito no arraial dos Canudos. Tipografia do Correio
BIBLIOGRAFIA 351

da Bahia, Salvador, 1895 (edição em fac-símile pelo Centro de Estudos Baianos,


1987).
MONTE MARCIANO, João Evangelista de. Memórias de Frei João Evangelista
de Monte Marciano Missionário Apostólico Capuchinho, nascido em 1843, ordenado
sacerdote em 1870 e chegado na Bahia no dia 12 de outubro de 1872. Caderno ma-
nuscrito.
NERY, Antonio Constantino. A quarta expedição contra Canudos. Pinto Barbo-
sa, Pará, 1898 (edição em fac-símile pela Edua/Governo do Amazonas, Manaus,
1997).
PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio narrativo do peregrino da América. Aca-
demia Brasileira, Rio de Janeiro, 1939, 2v. (originalmente publicado em 1728)
PIEDADE, Lélis (org.). Histórico e relatório do Comitê Patriótico da Bahia
(1897-1901). 2 ed., Portfolium, Salvador, 2002 (original de 1901).
RENAN, Ernest. Marc-Auréle et la fin du monde antique. Calmann-Lévy, Paris,
1929.
RODRIGUES, Ana Maria Moog (org.) A Igreja na República. UnB, Brasília,
1981.
SALVADOR, Vicente do. História do Brasil (1500-1627). 7 ed., Itatiaia, Belo
Horizonte, 1982.
SAMPAIO, Consuelo Novais (org.) Canudos: cartas para o barão. Edusp, São
Paulo, 1999.
SINZIG, Pedro. “Diário inédito de um frade – Franciscanos nos Canu-
dos/1897”. In: Revista de Cultura Vozes. Petrópolis, 1975. n.5, p.61-78.
SINZIG, Pedro. Reminiscências dum frade. 2 ed., Tipografia Vozes, Petrópolis,
1925.
SOARES, Henrique Duque-Estrada de Macedo. A guerra de Canudos. 3 ed.,
Philobiblion/Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1985 (original de 1902).
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do arcebispado da Bahia.
Paschoal da Silva, Lisboa, 1719 (2a edição pela Tipografia 2 de Dezembro, São
Paulo, 1853).
VIEIRA, Antonio. História do futuro. 2 ed., Imprensa Nacional/Casa da Moe-
da, s/l, 1992.
VIEIRA, Antonio. Defesa perante o tribunal do Santo Ofício. Progresso, Salva-
dor, 1957, 2v.
VILLELA JR., Marcos Evangelista C. Canudos: memórias de um combatente.
2 ed., Eduerj, Rio de Janeiro, 1997.
ZAMA, César. Libelo republicano acompanhado de comentários sobre a guerra de
Canudos. Tipografia e Encadernação do Diário da Bahia, Salvador, 1899 (edição
fac-símile pelo Centro de Estudos Baianos, 1989).
352

2. Sobre o sertão, Belo Monte e Antonio


Conselheiro
ABDALA Jr., Benjamin e ALEXANDRE, Isabel (org.). Canudos: palavra de
Deus, sonho da terra. Senac/Boitempo, São Paulo, 1997.
ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes.
Joaquim Nabuco/Cortez, Recife/São Paulo, 1999.
ALMEIDA, Ângela Mendes de, ZILLY, Berthold e LIMA, Eli Napoleão de
(org.) De sertões, desertos e espaços incivilizados. FAPERJ/Mauad, Rio de Janeiro,
2001.
ALMEIDA, Cícero Antônio F. de. “Que nos ficará depois da vitória da lei?”
In: ALMEIDA, Cícero Antônio F. de (org.) Canudos: imagens da guerra. Lacerda/
Museu da República, Rio de Janeiro, 1997, p.11-27.
ALVES, Lizir A. Humor e sátira na guerra de Canudos. Secretaria de Cultura e
Turismo do Estado da Bahia/Gráfica da Bahia, Salvador, 1997.
ALVES, Lizir A. “Pelo nome da Bahia”. In: Revista da Bahia. Salvador, 1997.
n.22, p.22-31.
Anais do 1o Simpósio Internacional sobre o Padre Cícero e os romeiros de Juazeiro
do Norte. UFC, Fortaleza, 1998.
ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste: contribuição
ao estudo da questão agrária no Nordeste. 6 ed., UFPE, Recife, 1998.
AQUINO, Ivânia Campigotto. Literatura e história em diálogo: um olhar sobre
Canudos. Universidade de Passo Fundo, 2000.
ARAGÃO, Pedro Moniz de. “Canudos e os monarquistas”. In: Revista do Insti-
tuto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1957. n.237, p.85-131.
ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedições militares contra Canudos: seu aspecto
marcial. Imprensa do Exército, Rio de Janeiro, 1960.
ARAS, José. Sangue de irmãos. Museu do Bendegó, Salvador, 1953.
ARAÚJO, Heitor de. Vinte anos de sertão. Empresa Gráfica, Bahia, 1953.
ARAÚJO, Luiz Carlos. “Antônio Conselheiro, peregrino e profeta”. In: Estudos
Bíblicos. Petrópolis, s/d. n.4, p.67-70.
ARAÚJO, Nelson de. Pequenos mundos. Um panorama da cultura popular na
Bahia. Universidade Federal da Bahia/Fundação Casa de Jorge Amado, Salvador,
1988, 3 t.
ARAÚJO FILHO, Ismar de Oliveira. “A adesão do clero ao movimento conse-
lheirista”. In: Revista FAEEBA. Salvador, 1995. Número especial Canudos, p.83-
90.
ARRUDA, João. Canudos: messianismo e conflito social. UFC/Secult, Forta-
leza, 1993.
BIBLIOGRAFIA 353

ATAÍDE, Yara Dulce B. de. “Origens do povo do bom Jesus Conselheiro”. In:
Revista USP. São Paulo, 1993/1994. n.20, p.88-99.
ATAÍDE, Yara Dulce B. de. “Império de Bello Monte: alguns aspectos da sua
vida cotidiana (Canudos 1893-1897)”. In: Revista FAEEBA. Salvador, 1995. Nú-
mero especial Canudos, p.63-81.
AZEVEDO, Sílvia Maria. “Manuel Benício: um correspondente da guerra de
Canudos”. In: Revista USP. São Paulo, 2002. n.54, p.82-95.
AZEVEDO, Sílvia Maria. “O rei dos jagunços de Manoel Benício: um estudo
introdutório”. In: O rei dos jagunços de Manoel Benício: entre a ficção e a história.
Edusp, São Paulo, 2003, p.11-38.
Bahia de todos os fatos. Cenas da vida republicana – 1889-1991. Assembleia Le-
gislativa do Estado da Bahia, Salvador, 1996.
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O feudo. A Casa da Torre de Garcia d’Ávila:
da conquista dos sertões à independência do Brasil. Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro, 2000.
BANDEIRA, Maria de Lourdes. Os Kariri de Mirandela: um grupo indígena
integrado. Ufba, Salvador, 1972.
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. A terra da mãe de Deus: um estudo do
movimento religioso de Juazeiro do Norte. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1988.
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. “Canudos: o registro da violência”.
In: http://www.portfolium.com.br/artigo-lutigarde3.htm (13/12/02).
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. “O sertão de Ibiapina e o mundo dos
beatos”. In: http://www.portfolium.com.br/artigo-lutigarde.htm (13/12/02).
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. “De Belo Monte a Canudos: a utopia
materializada”. In: A Tarde Cultural. Salvador, 29/01/1994, p.8-9.
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. “Um fuzil da Guerra de Canudos:
memória da violência na paz do Conselheiro”. In: BLAJ, Ilana e MONTEIRO,
John M. História e utopias. Associação Nacional de História, São Paulo, 1996,
p.378-389 (Anais do XVII Simpósio Nacional de História em 1993).
BARTELT, Dawid Danilo. “Cerco discursivo de Canudos”. In: Cadernos do
CEAS. Salvador, 1997. s/n, p.37-46.
BARTELT, Dawid Danilo. “Os custos da modernização: dissociação, homo-
geneização e resistência no sertão do Nordeste brasileiro”. In: Revista Canudos.
Salvador, 1999. v.3, n.1, p.117-127.
BARTELT, Dawid Danilo. Sertão, república, nação. Edusp, São Paulo, 2009.
BASTOS, José Augusto Barretto. A ideologia dos discursos sobre Canudos. Disser-
tação de mestrado. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1979.
BASTOS, José Augusto Barretto. Incompreensível e bárbaro inimigo. A guerra
simbólica contra Canudos. Edufba, Salvador, 1995.
354

BLOCH, Didier (org.) Canudos: cem anos de produção. Fonte Viva, Paulo
Afonso, 1997.
BORGES, Dain. “Salvador’s 1890s: paternalism and its discontents”. In: Lu-
so-Brazilian Review. Wisconsin, Madison, 1993. v.30, n.2, p.47-57.
BRITO, Gilmário Moreira. Pau de Colher na letra e na voz. Educ, São Paulo,
1999.
Cadernos de Literatura Brasileira. Instituto Moreira Salles, São Paulo, 2002
(n.13/14).
CALASANS, José. O ciclo folclórico do Bom Jesus Conselheiro. Contribuição ao
estudo da campanha de Canudos. Tipografia Beneditina, Salvador, 1950 (edição
em fac-símile pela Edufba, Salvador, 2002).
CALASANS, José. No tempo de Antônio Conselheiro. Figuras e fatos da campa-
nha de Canudos. Universidade da Bahia, Salvador, 1959.
CALASANS, José (org.) Canudos na literatura de cordel. Ática, São Paulo, 1984.
CALASANS, José. Quase biografias de jagunços: o séquito de Antônio Conse-
lheiro. Centro de Estudos Baianos, Salvador, 1986.
CALASANS, José. Cartografia de Canudos. Secretaria de Cultura e Turismo do
Estado da Bahia/Conselho Estadual de Cultura/Empresa Gráfica da Bahia, Salva-
dor, 1997.
CALASANS, José. “Belo Monte resiste”. In: Revista da Bahia. Salvador, 1997.
n.22, p.10-21.
CAMPINA, Maria da Conceição Lopes. Voz do padre Cícero e outras memórias
(organização Eduardo Hoornaert). Paulinas, São Paulo, 1985.
CAVA, Ralph della. “Messianismo brasileiro e instituições nacionais. Uma re-
avaliação de Canudos e Juazeiro”. In: Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, 1975.
v.6, n.1 e 2, p.121-139.
CAVA, Ralph della. Milagre em Joaseiro. 2 ed., Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1985.
CAVALCANTE, Raimundo Eliete. “A figura e a atividade de Antônio Conse-
lheiro”. In: Estudos Bíblicos. Petrópolis, 1993. n.37, p.57-66.
CENTRO DE ESTUDOS EUCLIDES DA CUNHA. Arqueologia histórica de
Canudos: estudos preliminares. Portfolium, Salvador, 1996.
CENTRO DE ESTUDOS EUCLIDES DA CUNHA. Arqueologia e reconsti-
tuição monumental do Parque Estadual de Canudos. Uneb, Salvador, 2002.
CONSORTE, Josildeth Gomes. “Movimentos messiânicos no Nordeste”. In:
A Igreja Católica diante do pluralismo religioso (II). Paulinas, São Paulo, 1993, p.54-
66.
COSTA, Francisco (org.). “Textos de José Calasans”. In: Revista USP. São Pau-
lo, 1993/1994. n.20, p.6-27.
COSTA, Flávio José Simões. Antônio Conselheiro, louco? Editus, Ilhéus, 1998.
BIBLIOGRAFIA 355

DANTAS, Monica Duarte. Fronteiras movediças: a comarca de Itapicuru e a


formação do arraial de Canudos. Hucitec/Fapesp, São Paulo, 2007.
DESROCHERS, Georgettes e HOORNAERT, Eduardo (org.) Padre Ibiapina
e a Igreja dos pobres. Paulinas, São Paulo, 1984.
DIAS, Clímaco. “Canudos: poesia e mistério de Machado de Assis”. In: Revista
Canudos. Salvador, 1997. n.1, p.91-103.
DOBRORUKA, Vicente. Antônio Conselheiro: o beato endiabrado de Canu-
dos. Diadorim, Rio de Janeiro, 1997.
EQUIPE RURAL DO CEAS. “A guerra do fim do mundo” In: Cadernos do
CEAS. Salvador, 1997. n.171, p.73-88; n.172, p.79-103.
FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. 6 ed., Civilização Brasileira/Universidade
Federal do Ceará, Rio de Janeiro, 1980.
FERRAZ, Renato, PINHEIRO, José Carlos da Costa, e SANTOS NETO,
Manoel Antonio. Cartilha histórica de Canudos. s/e, Salvador, 1991.
FIORIN, José Luiz. A ilusão da liberdade discursiva: uma análise das prédicas de
Antônio Conselheiro. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 1978.
FIORIN, José Luiz. “O discurso de Antônio Conselheiro”. In: Religião e Socie-
dade. Rio de Janeiro, 1980. n.5, p.95-129.
FONSECA, João Justiniano da. Rodelas: curraleiros, índios e missionários. Edi-
ção do autor, Salvador, 1996.
FONTES, Oleone Coelho. O treme-terra: Moreira César, a república e Canu-
dos. 2 ed., Vozes, Petrópolis, 1996.
FRAGOSO, Hugo. “Canudos, um desencontro entre duas igrejas”. Mimeo,
Salvador, 17p.
GALVÃO, Walnice Nogueira. O império de Belo Monte: vida e morte de Canu-
dos. Perseu Abramo, São Paulo, 2001.
GALVÃO, Walnice Nogueira e PERES, Fernando da Rocha (org.) Breviário de
Antonio Conselheiro. Edufba, Salvador, 2002.
GALVÃO, Walnice Nogueira. “Tributo a José Calasans”. In: Revista USP. São
Paulo, 2002. n.54, p.66-71.
GAMA, Raimundo. Recortes de Canudos. BDA, Salvador, 1997.
GRABOIS, José. “Que urbano é esse? O habitat num espaço de transição do
norte de Pernambuco”. In: Estudos avançados. São Paulo, 1999. n.36, p.79-104.
GREENFIELD, Gerald Michael. “Sertão and sertanejo: na interpretative context for
Canudos”. In: Luso-Brazilian Review. Wisconsin, Madison, 1993. v.30, n.2, p.35-46.
GUERRA, Sérgio. Universos em confronto: Canudos versus Bello Monte. Uneb,
Salvador, 2000.
GURGEL, Rodrigo. “Antônio Conselheiro: o inusitado de Deus no sertão”. In:
Revista de Cultura Vozes. Petrópolis, 1997. v.91, n.3, p.82-106.
356

HERMANN, Jacqueline. Histórias de Canudos: o embate cultural entre o litoral


e o sertão do século XIX. Dissertação de mestrado, Universidade Federal Flumi-
nense, Niterói, 1990.
HERMANN, Jacqueline. “Canudos sitiado pela razão: o discurso intelectual
sobre a ‘loucura’ sertaneja”. In: História: questões e debates. Curitiba, 1996. v.13,
n.24, p.126-150.
HERMANN, Jacqueline. “Canudos destruída em nome da República”. In:
Tempo. Rio de Janeiro, 1997. v.2, n.3, p.81-105.
HERMANN, Jacqueline. “Canudos: a terra dos homens de Deus”. In: Estudos
Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro, 1997. n.9, p.16-34.
HOEFLE, Scott William. “Igreja, catolicismo popular e religião alternativa no ser-
tão nordestino”. In: Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, 1995. v.26, n.1/2, p.24-47.
HOORNAERT, Eduardo. Os anjos de Canudos. Uma revisão histórica. Vozes,
Petrópolis, 1997.
LEVINE, Robert M. “‘Mud-Hut Jerusalem’: Canudos Revisited”. In: Hispanic
American Historical Review. Gainesville, 1988. v.68, n.3, p.525-572.
LEVINE, Robert M. O sertão prometido: o massacre de Canudos. Edusp, São
Paulo, 1995.
LEVINE, Robert M. “Brazil’s Canudos as a Millenarian Moviment”. In: http://
software2.bu.edu/mille/publications/winter2000/levine.PDF (10/03/03).
LITRENTOS, Oliveiros. Canudos: visões e revisões. Biblioteca do Exército,
Rio de Janeiro, 1998.
MACEDO, José Rivair e MAESTRI, Mario. Belo Monte: uma história da guer-
ra de Canudos. 2 ed., Moderna, São Paulo, 1997.
MACEDO, Nertan. Antônio Conselheiro: a morte em vida do beato de Canu-
dos. Record, Rio de Janeiro, 1969.
MACEDO, Nertan. Memorial de Vilanova. 2 ed., Renes/Instituto Nacional do
Livro, Rio de Janeiro/Brasília, 1983.
MADDEN, Lori. “Evolution in the interpretations of the Canudos move-
ment”. In: Luso-Brazilian Review. Wisconsin, Madison, 1991. v.28, n.1, p.59-75.
MADDEN, Lori. “The Canudos War in history”. In: Luso-Brazilian Review.
Wisconsin, Madison, 1993. v.30, n.2, p.5-22.
MAESTRI, Mario. “Bacamarte versus comblain. Apontamentos sobre a histo-
riografia da república sertaneja de Belo Monte”. In: http://www.portfolium.com.
br/artigo-maestri.htm (09/03/03).
MAESTRI, Mario. “Elogio à dominação: R. M. Levine e a república sertaneja de
Belo Monte”. In: http://www.portfolium.com.br/resenha-maestri.htm (09/03/03)
MAIOR, Armando Souto. Quebra-quilos: lutas sociais no outono do império.
Companhia Nacional, São Paulo, 1978.
BIBLIOGRAFIA 357

MARTINS, Paulo Emílio Matos. A reinvenção do sertão: a estratégia organiza-


cional de Canudos. Getúlio Vargas, São Paulo, 2001.
MASCARENHAS, Maria Lucia Felício. Rio de sangue e ribanceira de corpos.
Monografia de bacharelado em antropologia, UFBA, Salvador, 1995.
MATTOS, Florisvaldo. “Canudos: Ruy Barbosa contra o republicanismo de
açougue”. In: A Tarde Cultural. Salvador, 11/10/1997. Caderno 4, p.2-3
MATTOSO, Kátia de Queirós. Família e sociedade na Bahia do século XIX.
Corrupio, São Paulo, 1988.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom (org.) “‘Meu empenho foi ser o tradutor do
universo sertanejo’ (Entrevista com José Calazans)”. In: Luso-Brazilian Review.
Wisconsin, Madison, 1993. v.30, n.2, p.23-33.
MELLO, Fernando Pernambucano de. A guerra total de Canudos. A Girafa, São
Paulo, 2007.
MELLO, Maria Lúcia Horta Ludolf de. “As fontes documentais da história de
Canudos”. In: Revista Canudos. Salvador, 1997. n.1, p.147-155.
MENDES, Bartolomeu de Jesus. Formação cultural e oratória de Antônio Con-
selheiro. BDA, Salvador, 1997.
MENEZES, Eduardo Diatahy B. de. “Une réévaluation des movements soi-di-
sant messianiques du nord-est du Brésil”. In: Cahiers du Brésil contemporain. Paris,
1998. n.35/36, p.47-60.
MENEZES, Eduardo Diatahy B. de. “A historiografia tradicional de Canu-
dos”. In: http://www.portfolium.com.br/artigo-diatahy.htm (13/12/02)
MENEZES, Eduardo Diatahy B. de e ARRUDA, João (org.) Canudos: as falas
e os olhares. UFC, Fortaleza, 1995.
MILTON, Aristides A. “A campanha de Canudos”. In: Revista Trimestral do Ins-
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1902. v.63, parte 2, p.5-147.
MONIZ, Edmundo. Canudos: a guerra social. 2 ed., Elo, Rio de Janeiro, 1987.
MONIZ, Edmundo. Canudos: a luta pela terra. 8 ed., Global, São Paulo, 1997.
MONTENEGRO, Abelardo F. História do fanatismo religioso no Ceará. A. Ba-
tista Fontenele, Fortaleza, 1959.
MONTENEGRO, Abelardo F. Fanáticos e cangaceiros. Henriqueta Galeno, Fortale-
za, 1973.
MONTEIRO, Duglas Teixeira. “Um confronto entre Juazeiro, Canudos e
Contestado”. In: FAUSTO, Boris (org.) História geral da civilização brasileira. 4
ed., Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1990. t.3, v.2, p.39-92.
MOURA, Clóvis. Sociologia política da guerra camponesa de Canudos: da destrui-
ção do Belo Monte ao aparecimento do MST. Expressão Popular, São Paulo, 2000.
NOGUEIRA, Ataliba. António Conselheiro e Canudos. Revisão histórica. 3 ed.,
Atlas, São Paulo, 1997.
358

SANTOS NETO, Manoel dos. “Canudos: tempo de pensar, tempo de contar”.


In: Cadernos do CEAS. Salvador, 1997. s/n, p.163-170.
SILVA, Severino Vicente da (org.) A Igreja e o controle social nos sertões nordesti-
nos. Paulinas, São Paulo, 1988.
OLIVEIRA, Enoque de. Conselheiro do sertão (líder camponês): entre prédicas e
conselhos. s/e, Salvador, 1997.
OLIVEIRA,  Itamar Freitas de. “No rastro de Conselheiro”. In: http://www.
infonet.com.br/canudos/roteiro.htm (08/03/03)
OTTEN, Alexandre. “Só Deus é grande”. A mensagem religiosa de Antônio
Conselheiro. Loyola, São Paulo, 1990.
OTTEN, Alexandre. “A influência do ideário religioso na construção da co-
munidade de Belo Monte”. In: Luso-Brazilian Review. Wisconsin, Madison, 1993.
v.30, n.2, p.71-95.
OTTEN, Alexandre. “Deus é brasileiro. Uma leitura teológica do catolicismo
popular tradicional”. In: Vida Pastoral. São Paulo, 1999. n.209, p.13-23.
PEREGRINO, Artur. “Canudos: um ritual de passagem para um final de mun-
do”. In: Estudos Bíblicos. Petrópolis, 1998. n.59, p.53-73.
PESSAR, Patricia R. “Three moments in brazilian millenarianism: the inter-
relationship between politics and religion”. In: Luso-Brazilian Review. Wisconsin,
Madison, 1991. v.28, n.1, p.95-116.
PINHEIRO, José Carlos da Costa. “Ano de 1896 – término das obras da capela
de Santo Antônio de Belo Monte?” In: Revista Canudos. Salvador, 2000. v.4, n.1/2,
p.65-74.
PINHO, Patrícia de Santana. Revisitando Canudos no imaginário popular. Mes-
trado em Sociologia, Universidade Estadual de Campinas, 1996.
PINTO, Luiz Fernando. “A personalidade carismática de Antônio Conselheiro
– aspectos psicanalíticos”. In: Revista FAEEBA. Salvador, 1995. Número especial
Canudos, p.23-53.
POMPA, Maria Cristina. Memórias do fim do mundo: para uma leitura do mo-
vimento sócio-religioso de Pau de Colher. Dissertação de Mestrado, Unicamp,
Campinas, 1995.
POMPA, Maria Cristina. “Pau de Colher: un movement sócio-religieux dans
le sertão de Bahia”. In: Cahiers du Brésil contemporain. Paris, 1997. n.35/36,
p.61-86.
POMPA, Maria Cristina. “A construção do fim do mundo: para uma releitura
dos movimentos sócio-religiosos do Brasil ‘rústico’”. In: Revista de Antropologia.
São Paulo, 1998. v.41, n.1, p.177-212.
POMPA, Maria Cristina. “As muitas línguas da conversão: Tupi e ‘Tapuia’ no
Brasil colonial”. In: Tempo. Niterói, 2001. n.11, p.27-44.
BIBLIOGRAFIA 359

POMPA, Maria Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia”


no Brasil Colonial. Tese de Doutorado em História pela Unicamp, Campinas,
2001 (em livro: Edusc/Anpocs, Bauru, São Paulo, 2003).
POMPA, Maria Cristina. “Memórias do fim do mundo: o movimento de Pau
de Colher”. In: Revista Usp. São Paulo, 2009. n.82, p.68-87.
PONCIO, Denise dos Santos. “Canudos – uma construção oligárquica”. In:
Cadernos do CEAS. Salvador, 1997. s/n, p.47-53.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. 3 ed.,
Alfa-Ômega, São Paulo, 2003.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. “D. Sebastião no Brasil”. In: Revista USP.
São Paulo, 1993/1994. n.20, p.28-41.
RAMOS, Jovelino P. “Interpretando o fenômeno Canudos”. In: Luso-Brazilian
Review. Madison, 1974. v.11, n.1, p.65-83.
REESINK, Edwin. “Jerusalém de taipa ou vale das lágrimas: algumas obser-
vações sobre o debate na literatura referente a Canudos”. In: O olho da história.
Salvador, 1996. v.2, n.3, p.141-151.
REESINK, Edwin. “A tomada do coração da aldeia: a participação dos índios
de Massacará na guerra de Canudos”. In: Cadernos do Ceas. Salvador, 1997. s/n,
p.73-95.
REESINK, Edwin. “Dos campos de pedra: uma visão contemporânea de Ca-
nudos”. In: Revista Canudos. Salvador, 2000. v.4, n.1/2, p.93-106.
REESINK, Edwin. “Curiosidades em torno de Canudos”. In: http://www.
portfolium.com.br/resenha-edwin.htm (10/03/03)
REESINK, Edwin. “Til the end of time: the differential attraction of the ‘Re-
gime of Salvation’ and the ‘Entheotopia’ of Canudos”. In: http://www.mille.org/
publications/winter2000/reesink.PDF (10/02/03)
REGNI, Pietro Vittorino. Os capuchinhos na Bahia. U. T. J., Jesi, 1991, 3v.
SAMPAIO, Consuelo Novais. Partidos políticos da Bahia na primeira república.
Edufba, Salvador, 1999.
SAMPAIO, Consuelo Novais. “Repensando Canudos: o jogo das oligarquias”.
In: Luso-Brazilian Review. Madison, 1993. v.30, n.2, p.97-113.
SAMPAIO NETO, José Augusto Vaz; SERRÃO, Magaly de Barros Maia;
MELLO, Maria Lúcia Horta Ludolf de e URURAHY, Vanda Maria Bravo. Canudos:
subsídios para a sua reavaliação histórica. Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 1986.
SAMPAIO-SILVA, Orlando. Tuxá: índios do Nordeste. Annablume, São Pau-
lo, 1997.
SANTOS, Manoel Camilo dos Santos. “Viagem a São Saruê”. In: FRANCO
Jr., Hilário (org.) Cocanha: as várias faces de um país imaginário. Ateliê, São Paulo,
1998, p.165-177.
360

SENA, Consuelo Pondé de. Introdução ao estudo de uma comunidade do agreste


baiano. Itapicuru, 1830/1892. Fundação Cultural do Estado da Bahia, Salvador,
1979.
SENA, Consuelo Pondé de. “João Pondé e a campanha de Canudos”. In: Revis-
ta da Fundação Pedro Calmon. Salvador, 1997. v.2, n.2, p.75-84.
SILVA, Alberto Martins da. “Médicos militares mortos em Canudos”. In: Revis-
ta FAEEBA. Salvador, 1995. Número especial Canudos, p.163-166.
SILVA, Cândido da Costa e. Roteiro da vida e da morte: um estudo do catolicis-
mo no sertão da Bahia. Ática, São Paulo, 1982.
SILVA, José Maria de Oliveira. Rever Canudos: historicidade e religiosidade po-
pular (1940-1995). Tese de Doutoramento, USP, 1996.
SILVA, José Paulino da. Itinerários de libertação. Tese de Doutorado, Unicamp,
Campinas, 1989.
SILVA, José Paulino da. “Breve roteiro para se chegar a Canudos”. In: Cadernos
do CEAS. Salvador, 1997. s/n, p.27-34.
SILVA, Rogério Souza. Antônio Conselheiro. A fronteira entre a civilização e a
barbárie. Annablume, São Paulo, 2001.
SLATER, Candace. “Messianism and the padre Cicero stories”. In: Luso-Brazil-
ian Review. Wisconsin, Madison, 1991. v.28, n.1, p.117-127.
SOUZA, Candice Vidal e. A pátria geográfica. Sertão e litoral no pensamento
social brasileiro. UFG, Goiânia, 1997.
SOUZA NETTO, Francisco Benjamim de. “Antônio Conselheiro e Canudos,
Ataliba Nogueira”. In: Simpósio. São Paulo, 1975. n.13, p.36-37.
STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias: um estudo antropológico sobre o
santuário de Bom Jesus da Lapa – Bahia. Vozes, Petrópolis, 1996.
TAVARES, Odorico. Canudos: cinquenta anos depois (1947). Fundação Cul-
tural do Estado, Salvador, 1993.
VALENTE, Waldemar. Misticismo e região. Aspectos do sebastianismo nordes-
tino. Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais/MEC, Recife, 1963.
VASCONCELLOS, Pedro Lima. “Apocalypses in the History of Brazil”. In:
Journal of Studies of New Testament. London/New York, 2002. n.25/2, p.235-254.
VASCONCELLOS, Pedro Lima. Abrindo as portas do céu: apontamentos para
a salvação, subscritos por Antonio Vicente Mendes Maciel. Tese de livre-docência
em Ciências da Religião. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009.
VASCONCELLOS, Pedro Lima. Do Belo Monte das promessas à Canudos des-
truída: o drama bíblico da Jerusalém do sertão. Catavento, Maceió, 2010.
VASCONCELLOS, Pedro Lima. “‘Para poder haver a guerra’: uma aproximação
ao ‘Relatório’ de frei João Evangelista sobre Antônio Conselheiro e seu Belo Monte
(Canudos)”. In: Revista Domincana de Teologia. São Paulo, 2010. n.5, p.59-78.
BIBLIOGRAFIA 361

VASCONCELLOS, Pedro Lima. Missão de guerra: capuchinhos no Belo Mon-


te de Antonio Conselheiro. Edufal, Maceió, 2014.
VASCONCELOS, Sandra Guardini T. “A guerra sem fim (Notas sobre O sertão
prometido: o massacre de Canudos, de Robert Levine)”. In: DECCA, Edgar Sal-
vadori de e LEMAIRE, Ria (org.) Pelas margens: outros caminhos da história e da
literatura. Unicamp/UFRGS, Campinas/Porto Alegre, 2000, p.85-98.
VASSALO, Lígia. O sertão medieval: origens europeias do teatro de Ariano Su-
assuna. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1993.
VENEU, Marcos Guedes. “A cruz e o barrete. Tempo e história no conflito de
Canudos”. In: Religião e sociedade. Rio de Janeiro, 1986. n.13/2, p.38-56.
VILLA, Marco Antonio. Canudos: o campo em chamas. Brasiliense, São Paulo, 1992.
VILLA, Marco Antonio. Canudos: o povo da terra. Ática, São Paulo, 1995.
VILLA, Marco Antonio. “Em busca de um mundo novo”. In: Revista Canudos.
Salvador, 1997. n.1, p.25-35.
VILLA, Marco Antonio (org.). Calasans, um depoimento para a história. Uneb, Salva-
dor, 1998.
VILLA, Marco Antonio. Vida e morte no sertão. História das secas no Nordeste
nos séculos XIX e XX. Ática, São Paulo, 2000.
ZANETTINI, Paulo Eduardo. “Por uma arqueologia de Canudos e dos brasi-
leiros iletrados”. In: O olho da história. Salvador, 1996. v.2, n.3, p.99-104.
ZILLY, Berthold. “Flávio de Barros: o ilustre cronista anônimo da guerra de
Canudos”. In: Estudos avançados. São Paulo, 1999. n.36, p.105-114; também in:
História, ciências, saúde. Rio de Janeiro, 1998, v.5, p.316-320.

3. Euclidiana

ABREU, Regina. O enigma de Os sertões. Funarte/Rocco, Rio de Janeiro, 1998.


ABREU, Regina. “O livro que abalou o Brasil: a consagração de Os sertões na vi-
rada do século”. In: História, Ciências, Saúde. Rio de Janeiro, 1998. v.5, p.93-115.
AGUIAR, Flávio. “A estrutura da espera. Fabulação, simbologia e narrativa a
propósito de Os sertões, de Euclides da Cunha: o papel interpretativo do sebastia-
nismo”. In: VÉSCIO, Luiz Eugênio e SANTOS, Pedro Brum (org.) Literatura e
história: perspectivas e convergências. Edusc, Bauru, 1999, p.79-96.
AGUIAR, Flávio. “O anacoreta sombrio. Estudo sobre as máscaras literárias
atribuídas a Antonio Conselheiro”. Mimeo, 5p.
AGUIAR, Flávio. “A volta da serpente. Um estudo sobre Os sertões, de Euclides
da Cunha”. Mimeo, 8p.
362

AGUIAR, Flávio e CHIAPPINI, Lígia (org.) Civilização e exclusão: visões do


Brasil em Érico Veríssimo, Euclides da Cunha, Claude Lévi-Strauss e Darcy Ribei-
ro. Boitempo, São Paulo, 2001.
ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de. “Uma genealogia de Euclides da Cunha”. In:
VELHO, Gilberto (org.) Arte e sociedade. Ensaios de sociologia da arte. Zahar, Rio de
Janeiro, 1977.
ANDRADE, Olímpio de Souza. História e interpretação de Os sertões. 4 ed.,
Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 2002.
AZEVEDO, Vivianne Milward de. “A literatura no projeto jornalístico de Os
sertões”. In: Revista Canudos. Salvador, 2000. v.4, n.1/2, p.75-83.
BACON, Henry. “A filosofia e a religião do autor de Os sertões”. Mimeo, 9p.
BARBOSA, Francisco de Assis. “Euclides da Cunha: a marca de um drama”. In:
Revista USP. São Paulo, 2002. n.54, p.38-51.
BASTOS, Abguar. A visão histórico-sociológica de Euclides da Cunha. Compa-
nhia Nacional, 1986.
BERNUCCI, Leopoldo M. A imitação dos sentidos: prógonos, contemporâneos
e epígonos de Euclides da Cunha. Edusp, São Paulo, 1995.
BERNUCCI, Leopoldo M. “A ontologia discursiva de Os sertões”. In: História,
ciências, saúde. Rio de Janeiro, 1998, v.5, p.57-72.
BERNUCCI, Leopoldo M. “Pressupostos historiográficos para uma leitura de
Os sertões”. In: Revista USP. São Paulo, 2002. n.54, p.6-15.
BÔAS, Gláucia Villas. “Iluminista e romântico: o tempo passado em Os sertões
de Euclides da Cunha”. In: História, ciências, saúde. Rio de Janeiro, 1998, v.5,
p.149-161.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 36 ed., Cultrix, São Pau-
lo, 1994.
BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. Companhia das Letras, São Paulo, 2002.
BRAIT, Beth (org.) O sertão e Os sertões. Arte e Ciência, São Paulo, 1998.
BRANDÃO, Adelino. A sociologia d’Os sertões. Artium, Rio de Janeiro, 1996.
BRANDÃO, Adelino. O paraíso perdido: Euclides da Cunha/vida e obra. Ibra-
sa, São Paulo, 1996.
CALASANS, José. “Algumas fontes de Os sertões”. In: Revista de Cultura da
Bahia. Salvador, 1971. n.6, p.37-44.
CALASANS, José. “Euclides da Cunha nos jornais da Bahia”. In: Revista de
Cultura da Bahia. Salvador, 1969. n.4, p.47-50.
CARDIA, Ana Laura Mendonça. “Canudos da velha República”. In: http://
www.fclar.unesp.br/publi/pesquisa/caderno/analaura.htm (10/02/03)
CITELLI, Adílson Odair. Os caminhos da salvação: modos de ver e de compor em
Os jagunços, de Afonso Arinos. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, 1990.
BIBLIOGRAFIA 363

CITELLI, Adílson Odair. “Um enclave perturbador: Notas sobre espaço e re-
ligião em Os sertões e Os jagunços”. In: Revista USP. São Paulo, 1992/1993. n.16,
p.122-133.
CITELLI, Adílson Odair. Roteiro de leitura: Os sertões de Euclides da Cunha.
Ática, São Paulo, 1996.
CITELLI, Adílson Odair. “Canudos: formas de composição”. In: Revista USP.
São Paulo, 1993/1994. n.20, p.66-73.
COLI, Jorge. “A palavra pensante”. In: Revista USP. São Paulo, 1993/1994.
n.20, p.60-65.
DANTAS, Paulo. Euclides da Cunha e Guimarães Rosa: através dos sertões. Mas-
sao Ohno, São Paulo, 1996.
FACIOLI, Valentim. Euclides da Cunha: a gênese da forma. Tese de doutorado,
Universidade de São Paulo, 1990.
FERNANDES, Rinaldo de (org.) O clarim e a oração: cem anos de Os sertões.
Geração, São Paulo, 2002.
FONSECA, Aleilton. “Os sertões: as prédicas de Antônio Conselheiro e a poe-
sia de Canudos”. In: O olho da história. Salvador, 1996. v.2, n.3, p.125-140.
FREYRE, Gilberto. Perfil de Euclides e outros perfis. 2 ed., Record, Rio de Ja-
neiro, 1987.
FURTADO, Celso. “Revisitando Euclides da Cunha”. In: Revista Brasileira.
Rio de Janeiro, 2002. n.30, p.91-96.
GALVÃO, Walnice Nogueira. Saco de gatos. Ensaios críticos. Duas Cidades, São
Paulo, 1976.
GALVÃO, Walnice Nogueira. Gatos de outro saco: ensaios críticos. Brasiliense,
São Paulo, 1981.
GALVÃO, Walnice Nogueira. “Canudos, Euclides e nosso primeiro reitor”. In:
Revista USP. São Paulo, 1993/1994. n.20, p.54-59.
GALVÃO, Walnice Nogueira. “Euclides da Cunha”. In: PIZARRO, Ana (org.)
América Latina: palavra, literatura e cultura. Memorial da América Latina/Uni-
camp, São Paulo/Campinas, 1994. v.2, p.615-633.
GALVÃO, Walnice Nogueira. “‘Os sertões’ faz 100 anos: o alcance das ideias de
Euclides da Cunha”. In: Revista Brasileira. Rio de Janeiro, 2002. n.30, p.97-114.
GALVÃO, Walnice Nogueira (org.) Euclides da Cunha. Ática, São Paulo, 1984.
GÁRATE, Miriam V. Civilização e barbárie n’Os sertões: entre Domingo Faus-
tino Sarmiento e Euclides da Cunha. Mercado de Letras/FAPESP, Campinas/São
Paulo, 2001.
HARDMAN, Francisco Foot. “Brutalidade antiga: sobre história e ruína em
Euclides”. In: Estudos Avançados. São Paulo, 1996. n.26, p.293-310.
HARDMAN, Francisco Foot. “Tróia de taipa: Canudos e os irracionais”. In:
364

HARDMAN, Francisco Foot (org.) Morte e progresso. Cultura brasileira como apa-
gamento de rastros. Unesp, São Paulo, 1998, p.125-136.
LEMOS, Maria Alzira Brum. Os sertões e o que nós chamamos de realidade. Ci-
ência e simbolismo num clássico da literatura. Tese de doutorado, Pontifícia Uni-
versidade Católica de São Paulo, 1997.
LIMA, Luis Costa. O controle do imaginário. Razão e imaginação nos tempos
modernos. 2 ed., Forense, Rio de Janeiro, 1989.
LIMA, Luiz Costa. Terra ignota. A construção de Os sertões. Civilização Brasi-
leira, Rio de Janeiro, 1997.
LIMA, Luiz Costa. Euclides da Cunha: contrastes e confrontos do Brasil. Con-
traponto/Petrobras, Rio de Janeiro, 2000.
LIMA, Nísia Trindade. “Missões civilizatórias da República e interpretação do
Brasil”. In: História, ciências, saúde. Rio de Janeiro, 1998, v.5, p.163-193.
LIMA, Nísia Trindade e KROPF, Simone P. (org.) “Fato e ficção na obra de
Euclides da Cunha”. In: História, ciências, saúde. Rio de Janeiro, 1998, v.5, p.287-
303 (depoimento de Walnice Nogueira Galvão).
LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. Revan/IUPERJ, Rio de Janei-
ro, 1999.
LINS, Ivan. História do positivismo no Brasil. 2 ed., Companhia Editora Nacional,
São Paulo, 1967.
MOURA, Clóvis. Introdução ao pensamento de Euclides da Cunha. Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1964.
NASCIMENTO, José Leonardo do. “De Marc-Aurèle de Ernest Renan a Os ser-
tões de Euclides da Cunha: milenarismo e atraso histórico”. In: Interpretações sobre o
movimento sertanejo de Canudos. Faculdades Salesianas, Lorena, 1997, p.13-18.
NASCIMENTO, José Leonardo do (org.) Os sertões de Euclides da Cunha:
releituras e diálogos. Unesp, São Paulo, 2002.
NASCIMENTO, José Leonardo do e FACIOLI, Valentim (org.) Juízos críticos:
Os sertões e os olhares de sua época. Nankim/Unesp, São Paulo, 2003.
OLIVEIRA, Franklin de. Euclides: a espada e a letra. Paz e Terra, São Paulo,
1983.
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. “A conquista do espaço: sertão e fronteira no pensa-
mento brasileiro”. In: História, ciências, saúde. Rio de Janeiro, 1998, v.5, p.195-
215.
OLIVEIRA, Ricardo de. “Euclides da Cunha, Os sertões e a invenção de um
Brasil profundo”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, 2002. v.22, n.44,
p.511-537.
PEREGRINO, Umberto. Euclides da Cunha e outros estudos. Gráfica Record,
Rio de Janeiro, 1968.
BIBLIOGRAFIA 365

REALE, Miguel. Face oculta de Euclides da Cunha. Topbooks, Rio de Janeiro,


1993.
RODRIGUES, Lêda Boechat. “Uma nova interpretação de Os sertões, de Eucli-
des da Cunha, e do beato Antônio Conselheiro”. In: Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1990. n.368, p.393-401.
ROLAND, Ana Maria. Fronteiras da palavra, fronteiras da história. Contribui-
ção à crítica da cultura do ensaísmo latino-americano através da leitura de Euclides
da Cunha e Octavio Paz. Universidade de Brasília, Brasília, 1997.
SALLES, Maria Inês P. C. Cicatrizes submersas d’Os sertões: Descartes Gadelha
e Euclides da Cunha em correspondência. Cone Sul, São Paulo, 2000.
SANTANA, José Carlos Barreto de. “Geologia e metáforas geológicas em Os
sertões”. In: História, ciências, saúde. Rio de Janeiro, 1998, v.5, p.117-131.
SANTOS, Ricardo Ventura. “A obra de Euclides da Cunha e os debates sobre
mestiçagem no Brasil no início do século XX: Os sertões e a medicina-antropologia
do Museu Nacional”. In: História, ciências, saúde. Rio de Janeiro, 1998, v.5, p.237-
253.
SEGATTO, José Antônio e BALDAN, Ude. Sociedade e literatura no Brasil.
Unesp, São Paulo, 1999.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural
na Primeira República. 4 ed., Brasiliense, São Paulo, 1999.
SEVCENKO, Nicolau. “O outono dos césares e a primavera da história”. In:
Revista USP. São Paulo, 2002. n.54, p. 30-37.
SILVA, Célia Mariana F. F. da e SILVA, Manoel Roberto F. da. “Alexandre de
Abonótico”. In: Gazeta do Rio Pardo (Suplemento Euclidiano). São José do Rio
Pardo, agosto de 1986.
SILVA, Célia Mariana F. F. da e SILVA, Manoel Roberto F. da. “Esclarecendo
o texto: ‘A Legio Fulminata de João Abade’”. In: Gazeta do Rio Pardo (Suplemento
Euclidiano). São José do Rio Pardo, agosto de 1987.
SODRÉ, Nelson Werneck. A ideologia do colonialismo: seus reflexos no pensa-
mento brasileiro. 3 ed., Vozes, Petrópolis, 1984.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. 9 ed., Bertrand Bra-
sil, Rio de Janeiro, 1995.
SOUZA, Antonio Candido de Mello e. Literatura e sociedade. T. A. Queiroz/
Publifolha, São Paulo, 2000.
VALENTE, Luiz Fernando. “Entre Clio e Calíope: a construção da narrativa
histórica em Os sertões”. In: História, ciências, saúde. Rio de Janeiro, 1998, v.5,
p.39-55.
VASCONCELLOS, Pedro Lima. “Em meio a mártires e demônios: Euclides da
Cunha no palco da guerra”. In: Margem. São Paulo, 2001. n.14, p.153-167.
366

VASCONCELLOS, Pedro Lima. “Legião de demônios ou novos crucificados?


Elementos religiosos e teológicos nos olhares de Euclides da Cunha sobre Belo
Monte e Antonio Conselheiro”. In: Revista Canudos. Salvador, 2002. n.6/7, p.103-
115.
VEIGA, Cláudio. “Pethion de Villar e Euclides da Cunha: Caim no cenário da
morte”. In: A Tarde Cultural. Salvador, 04/10/1997. Caderno 4, p.7-8.
VENÂNCIO FILHO, Paulo. “Os sertões: atualidade e arcaísmo na represen-
tação cultural de um conflito brasileiro”. In: In: História, ciências, saúde. Rio de
Janeiro, 1998, v.5, p.73-91.
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no
Brasil. Companhia das Letras, São Paulo, 1991.
VENTURA, Roberto. “‘A nossa Vendeia’: Canudos, o mito da Revolução
Francesa e a constituição de identidade nacional-cultural no Brasil (1897-
1902)”. In: Revista de Crítica Literaria Latinoamericana. Lima, 1986. n.24,
p.109-125.
VENTURA, Roberto. “A escrita da história em Canudos”. In: Literatura e me-
mória cultural. Belo Horizonte, 1991. v.1, p.574-580 (Anais do Congresso da As-
sociação Brasileira de Literatura Comparada).
VENTURA, Roberto. “Euclides da Cunha e a república”. In: Estudos Avançados.
São Paulo, 1996. n.26, p.275-291 (também in: Revista da Bahia. Salvador, 1997.
n.22, p.32-42).
VENTURA, Roberto. Os sertões. Publifolha, São Paulo, 2002.
VENTURA, Roberto. Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha.
Companhia das Letras, São Paulo, 2003 (org. Mario Cesar Carvalho e José Carlos
Barreto de Santana).
WANDERLEY, Vernaide e MENEZES, Eugênia. “Religiosidade em Canudos:
interpretação da visão euclidiana”. In: O olho da história. Salvador, 1996. v.2, n.3,
p.116-124.
ZILLY, Berthold. “A guerra como painel e espetáculo. A história encenada
em Os sertões”. In: História, ciências, saúde. Rio de Janeiro, 1998, v.5, p.13-37.
ZILLY, Berthold. “A reinvenção do Brasil a partir dos sertões. Como Ca-
nudos é a quintessência do sertão, e o sertão a quintessência do país, o livro de
Euclides da Cunha ‘e’ o país, ele reinventa o Brasil, contribuindo para a ideia
que a nação tem de si mesma”. In: Revista Canudos. Salvador, 2000. v.4, n.1/2,
p.107-121.
ZILLY, Berthold. “A guerra de Canudos e o imaginário da sociedade ser-
taneja em Os sertões, de Euclides da Cunha: da crônica à ficção”. In: CHIA-
PPINI, Ligia e AGUIAR, Flávio (org.) Literatura e história na América Latina.
Edusp, São Paulo, 2001, p.37-47.
BIBLIOGRAFIA 367

4. História e cultura do Brasil


ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial. 7 ed., Itatiaia/Publifolha,
São Paulo, 2000.
ANASTÁSIA, Carla Maria Junho. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas
na primeira metade do século XVIII. C/Arte, Belo Horizonte, 1998.
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o imaginário
das elites –século XIX. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1987.
AZZI, Riolando. “Elementos para a história do catolicismo popular”. In: Revis-
ta Eclesiástica Brasileira. Petrópolis, 1976. n.141, p.95-141.
AZZI, Riolando. Razão e fé: o discurso da dominação colonial. Paulinas, São
Paulo, 2001.
BASTIDE, Roger. Brasil: terra de contrastes. Difusão Europeia do Livro, São
Paulo, 1959.
BENEDETTI, Luiz Roberto. Os santos nômades e o Deus estabelecido. Paulinas,
São Paulo, 1984.
BENJAMIN, Roberto Câmara. “A religião nos folhetos populares”. In: Revista
de Cultura Vozes. Petrópolis, 1970. v.64, n.8, p.609-633.
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 3 ed., Companhia das Letras. São Pau-
lo, 1995.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo. 2 ed., Brasiliense, São Paulo,
1986.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua. Papirus, Campinas, 1989.
CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da república no
Brasil. 7 ed., Companhia das Letras, São Paulo, 1998.
CARVALHO, José Murilo. Pontos e bordados. Escritos de história e política.
UFMG, Belo Horizonte, 1998.
CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que
não foi. 3 ed., Companhia das Letras, São Paulo, 1999.
CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10 ed., Ediouro,
Rio de Janeiro, s/d.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. 2 ed., Companhia das Letras, São
Paulo, 1999.
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial.
Companhia das Letras, São Paulo, 1999.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos trabalhadores
no Rio de Janeiro da Belle Époque. 2 ed., Unicamp, Campinas, 2001.
CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. Perseu Abra-
mo, São Paulo, 2000.
368

CHAUÍ, Marilena. “Profecias e tempo do fim”. In: NOVAES, Adauto [org.] A


descoberta do homem e do mundo. Companhia das Letras, São Paulo, 1998, p.453-
505.
COHEN, Thomas. “Millenarian themes in the writings of Antonio Vieira”. In:
Luso-Brazilian Review. Wisconsin, Madison, 1991. v.28, n.1, p.23-46.
CONSORTE, Josildeth Gomes. “A mentalidade messiânica”. In: Ciências da
Religião. São Paulo, 1983. v.1, n.1, p.43-50.
CONSORTE, Josildeth Gomes e NEGRÃO, Lísias Nogueira. O messianismo
no Brasil contemporâneo. FFLCH-USP/CER, São Paulo, 1984.
COSTA, Ângela Marques da e SCHWARCZ, Lília Moritz. 1890-1914: no
tempo das certezas. Companhia das Letras, São Paulo, 2000.
COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias
e formas. DP&A, Rio de Janeiro, 2000.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história, etnici-
dade. 2 ed., Brasiliense, São Paulo, 1987.
DIAS, Romualdo. Imagens de ordem: a doutrina católica sobre autoridade no
Brasil (1922 – 1933). Unesp, São Paulo, 1996.
DICKIE, Maria Amélia Schmidt. “Milenarismo em contexto significativo: os
Mucker como sujeitos”. In: http://www.ifcs.ufrj.br/jornadas/papers/09st0804.rtf
(30/09/03).
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasi-
leiro. 10 ed., Globo/Publifolha, São Paulo, 2000, 2v.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha: a história de um país imaginário. Com-
panhia das Letras, São Paulo, 1998.
FRANCO JÚNIOR, Hilário (org.) Cocanha: as várias faces de um país imagi-
nário. Ateliê, São Paulo, 1998.
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4
ed., Editora da Unesp, São Paulo, 1997.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. 13 ed., Universidade de Brasília,
1963.
GALLO, Ivone. Contestado: o sonho do milênio igualitário. Editora da Uni-
camp, Campinas, 1999.
GOMES, Plínio Freire. Um herege vai ao paraíso: cosmologia de um ex-colono
condenado pela Inquisição (1680-1744). Companhia das Letras, São Paulo, 1997.
GUIMARÃES, Alba Zaluar. Os homens de Deus: um estudo dos santos e das
festas no catolicismo popular. Zahar, Rio de Janeiro, 1983.
HAUCK, João Fagundes, FRAGOSO, Hugo, BEOZZO, José Oscar, GRIJP,
Klaus van der e BROD, Benno. História da Igreja no Brasil. Segunda época, século
XIX. 2 ed., Vozes, Petrópolis, 1985.
BIBLIOGRAFIA 369

HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: a construção do sebastianismo


em Portugal – séculos XVI e XVII. Companhia das Letras, São Paulo, 1998.
HERMANN, Jacqueline. 1580-1600: o sonho da salvação. Companhia das Le-
tras, São Paulo, 2000.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed., Companhia das Le-
tras, São Paulo, 1999.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. Brasiliense/Publifolha, São
Paulo, 2000.
HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro 1550-1800. En-
saio de interpretação a partir dos oprimidos. Vozes, Petrópolis, Vozes, 1974.
HOORNAERT, Eduardo. O cristianismo moreno no Brasil. Vozes, Petrópolis, 1991.
HOORNAERT, Eduardo. “Sacerdotes e conselheiros: uma reflexão a partir de
alguns textos dos primórdios da história do Brasil”. In: Estudos Bíblicos. Petrópolis,
1993. n.37, p.67-74.
HOORNAERT, Eduardo, AZZI, Riolando, GRIJP, Klaus van der e BROD,
Benno. História da Igreja no Brasil. Ensaio de interpretação a partir do povo. 3 ed.,
Paulinas/Vozes, Petrópolis, 1983, v.II/2.
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os subversivos da república. Brasiliense,
São Paulo, 1986.
KARNAL, Leandro. Teatro da fé: representação religiosa no Brasil e no México
do século XVI. Hucitec, São Paulo, 1998.
KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil.
2 ed., Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1994.
LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. A igreja católica no Brasil república. Paulinas,
São Paulo, 1991.
MANOEL, Ivan A. “D. Macedo Costa e a laicização do Estado: a Pastoral de
1890” (Um ensaio de interpretação)”. In: História. São Paulo, 1989. n. especial,
p.179-192.
MARTINS, Ismênia de Lima, MOTTA, Rodrigo Patto Sá e IOKOI, Zilda
Gricoli (org.). História e cidadania. Humanitas, São Paulo, 1998.
MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. 2 ed., Vozes,
Petrópolis, 1983.
MONTEIRO, Duglas Teixeira. Os errantes do novo século: um estudo sobre o
surto milenarista do Contestado. Duas Cidades, São Paulo, 1974.
MORSE, Richard M. O espelho de próspero: cultura e ideias nas Américas. 3 ed.,
Companhia das Letras, São Paulo, 2000.
MOTA, Clarice Novaes. “Sob as ordens da Jurema: o xamã Kariri-Xocó” In:
LANGDON E. Jean Matteson (org.). Xamanismo no Brasil: novas perspectivas.
UFSC, Florianópolis, 1996, p.267-295.
370

MOTA, Lourenço Dantas (org.) Introdução ao Brasil: um banquete no trópico.


Senac, São Paulo, 1999.
MOURÃO, Laís. “Contestado: a gestação social do messias”. In: Cadernos. São
Paulo, 1974. n.7, p.59-98.
MYSCOFSKI, Carole A. “Messianic themes in portuguese and brazilian liter-
ature in the sixteenth and seventeenth centuries”. In: Luso-Brazilian Review. Wis-
consin, Madison, 1991. v.28, n.1, p.77-94.
NEGRÃO, Lísias Nogueira. “Surtos messiânico-milenaristas no Brasil”. In: Ci-
ências da Religião. São Paulo, 1983. v.1, n.1, p.51-56.
OLIVEIRA, Pedro. Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função do
catolicismo romanizado no Brasil. Vozes, Petrópolis, 1985.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 5 ed., Brasiliense, São
Paulo, 1994.
PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. Brasiliense/Publifolha,
São Paulo, 2000.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. La “guerre sainte” au Brésil: le moviment
messiánique du Contestado. Universidade de São Paulo, 1957.
QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e conflito social: a guerra sertane-
ja do Contestado: 1912-1916. 2 ed., Ática, São Paulo, 1977.
QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Os radicais da república. Brasiliense, São
Paulo, 1986.
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês. 3 ed.,
Companhia das Letras, São Paulo, 2003.
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no século
XIX. Companhia das Letras, São Paulo, 1999.
REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no
Brasil escravista. Companhia das Letras, São Paulo, 1999.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. Compa-
nhia das Letras, São Paulo, 1999.
ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado: crítica ao populismo católico.
Kairós, São Paulo, 1979.
ROMÃO, Lucília Maria Souza e TFOUNI, Leda Verdiani. “Vejam, caros ami-
gos: o litígio no discurso jornalístico”. In: http://www.achegas.net/numero/dois/
lucilia_e_leda.htm (19/12/02).
ROMEIRO, Adriana. Todos os caminhos levam ao céu: relações entre cultura
popular e cultura erudita no Brasil do século XVI. Dissertação de mestrado, Uni-
camp, Campinas, 1991.
ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenaris-
mo nas Minas Gerais. UFMG, Belo Horizonte, 2001.
BIBLIOGRAFIA 371

SALLES, Ricardo. Nostalgia imperial: a formação da identidade nacional no


Brasil do Segundo Reinado. Topbooks, Rio de Janeiro, 1996.
SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século
XVIII. 3 ed., Graal, São Paulo, 1990.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religio-
sidade popular no Brasil colonial. 6 ed., Companhia das Letras, 1999.
SOUZA, Laura de Mello e BICALHO, Maria Fernanda Baptista. 1680-1720:
o império deste mundo. Companhia das Letras, São Paulo, 2000.
SUÁREZ, José I. “Portugal’s saudosismo movement: an esthetics of sebastian-
ism”. In: Luso-Brazilian Review. Wisconsin, Madison, 1991. v.28, n.1, p.129-140.
TAVARES, Maria José Ferro. “O messianismo judaico em Portugal (1a metade
do século XVI)”. In: Luso-Brazilian Review. Wisconsin, Madison, 1991. v.28, n.1,
p.141-151.
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no
Brasil. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1997.
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colo-
nial. Companhia das Letras, São Paulo, 1999.
VAINFAS, Ronaldo e SOUZA, Juliana Beatriz de. Brasil de todos os santos.
Zahar, Rio de Janeiro, 2000.
VILELA, Magno. Uma questão de igualdade: Antônio Vieira e a escravidão ne-
gra na Bahia do século XVII. Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1997.
VILLA, Marco Antonio. O nascimento da república no Brasil: a primeira década
do novo regime. Ática, São Paulo, 1997.
VILLALTA, Luis Carlos. “O que se fala e o que se lê: língua, instrução e lei-
tura”. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.) História da vida privada no Brasil: co-
tidiano e vida privada na América portuguesa. Companhia das Letras, São Paulo,
1999, p.331-385.
WECKMANN, Luis. La herencia medieval del Brasil. Fondo de Cultura Eco-
nómica, México, 1993.
WEINHARDT, Marilene. Mesmos crimes, outros discursos? Algumas narrativas
sobre o Contestado. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2000.
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. “Da escravidão à liberdade: dimen-
sões de uma privacidade possível”. In: SEVCENKO, Nicolau (org.) História da
vida privada: República: da Belle Époque à era do rádio. Companhia das Letras, São
Paulo, 1999. v.3, p.49-130.
372

5. Exegese, hermenêutica, teologia e re-


cepção da Bíblia
BAUER, Walter. Orthodoxy and heresy in earliest christianity. 2 ed., Sigler Press,
Mifflintown, 1996.
BOER, Martinus de. “A influência da apocalíptica judaica sobre as origens cristãs: gêne-
ro, cosmovisão e movimento social”. In: Estudos de religião. São Bernardo do Campo, 2001.
n.19, p.11-24.
BULTMANN, Rudolf. Teología del Nuevo Testamento. Sígueme, Salamanca,
1981.
ECO, Umberto. Obra aberta. 8 ed., Perspectiva, São Paulo, 1997.
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. 2 ed., Martins Fontes, São
Paulo, 1997.
ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Perspectiva, São Paulo, 1995.
GONZÁLEZ FAUS, José Ignacio. A autoridade da verdade: momentos obscu-
ros do magistério eclesiástico. Loyola, São Paulo, 1998.
HILL, Christopher. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 2003.
HOORNAERT, Eduardo. “A leitura da Bíblia em relação à escravidão negra
no Brasil-colônia (um inventário)”. ln: Estudos Bíblicos. Petrópolis, 1983. n.17,
p.11-29.
KÄSEMANN, Ernst. “Puntos fundamentales para la interpretación de Rm
13”. In: Ensayos exegéticos. Sígueme, Salamanca, 1978, p.29-50.
KÖSTER, Helmut. Introducción al Nuevo Testamento. Sígueme, Salamanca,
1988.
NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. “A Bíblia dos primeiros protestantes
no Brasil”. In: Estudos de Religião. São Bernardo do Campo, 1998. n.14, p.99-110.
ORLANDI, Eni Puccinelli (org.) Palavra, fé, poder. Pontes, Campinas, 1987.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Terra à vista: discurso do confronto: velho e novo
mundo. Cortez/Unicamp, São Paulo/Campinas, 1990.
PEREIRA, J. “Portugaises (versions) de la Bible”. In: VIGOUROUX, F. Dictio-
naire de la Bible. Letouzey et Ané, Paris, 1922. t.5, p.1, col.559-569.
PIXLEY, Jorge. “O aspecto político da hermenêutica”. In: Revista de Interpreta-
ção Bíblica Latino-Americana. Petrópolis, 1999. n.32, p.85-100.
REYDELLET, Marc. “Le Bible, miroir des princes, du IVe au VIIe siècle. In:
FONTAINE, Jacques et PIETRI, Charles Pietri (org.). Le monde latin antique et la
Bible. Beauchesne, Paris, 1985, p.431-453.
SCHARBERT, Josef. Introdução à Sagrada Escritura. 3 ed., Vozes, Petrópolis,
1980.
BIBLIOGRAFIA 373

SEIBOLD, Jorge R. “La Sagrada Escritura en la evangelización del Brasil: en los


centenarios del beato José de Anchieta y del P. Antonio Vieira”. In: Stromata. San
Miguel, 1998. v.54, n.3/4, p.187-238.
SEVERINO CROATTO, José. Hermenêutica bíblica. Sinodal/Paulinas, São
Leopoldo, 1986.
SILVA, Valmor da, QUARESMA, Hermínio e PULGA, Rosana. “Historia de
la lectura de la Biblia en América Latina”. In: La Palabra hoy. Santafé de Bogotá,
1994. v.XIX, n.71/72, p.26-59.
STAM B., Juan. “Exégesis bíblica en la teología de los conquistadores”. In:
Boletín Teológico. Flórida, 1992. v.24, n.47/48, p.267-272.
THEISSEN, Gerd. Sociologia do movimento de Jesus. Sinodal/Vozes, Petrópolis, 1989.
THEISSEN, Gerd. Sociologia da cristandade primitiva. Sinodal, São Leopoldo, 1987.
VAAGE, Leif E. “O cristianismo galileu e o evangelho radical de Q”. In: Revista
de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis, 1995. n.22, p.84-108.
VASCONCELLOS, Pedro Lima. “A vitória da vida: milênio e reinado em Apo-
calipse 20,1-10”. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis,
1999. n.34, p.79-92.
VIELHAUER, Philipp. Historia de la literatura cristiana. Sígueme, Salamanca, 1991.
VOIGT, Simão. “Versões em português”. In: Josef Scharbert. Introdução à Sa-
grada Escritura. 3 ed., Vozes, Petrópolis, 1980, p.167-168.
VOLKMANN, Martin, DOBBERAHN, Friedrich Erich e CÉSAR, Ely Éser
Barreto. Método histórico-crítico. CEDI, São Paulo, 1992.
WENGST, Klaus. Pax romana: pretensão e realidade. Paulinas, São Paulo, 1991.
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento. Sinodal/Paulus, São Leopoldo, 1999.
ZIMMERMANN, Heinrich. Los métodos histórico-críticos en el Nuevo Testa-
mento. BAC, Madrid, 1969.

6. Ciências Sociais e da Religião, História,


Hermenêutica e outros campos
ALVES, Rubem. O suspiro dos oprimidos. 3 ed., Paulinas, São Paulo, 1992.
BARABAS, Alicia. Utopías indias: movimientos sociorreligiosos en México. 3
ed., Inah/Plaza y Valdés, México, 2002.
BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. Companhia das Letras, São Paulo,
1998.
BURKE, Peter. O mundo como teatro: estudos de antropologia histórica. Difel,
Lisboa, 1992.
374

BURKE, Peter (org.) A escrita da história: novas perspectivas. 2 ed., Unesp, São
Paulo, 1992.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da his-
toriografia. Unesp, São Paulo, 1997.
BURKE, Peter. As fortunas d’O cortesão: a recepção europeia a O cortesão de
Castiglione. Unesp, São Paulo, 1997.
BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro, 2000.
CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (org.) Domínios da Histó-
ria: ensaios de teoria e metodologia. 4 ed., Campus, Rio de Janeiro, 1997.
CARDOSO, Ciro Flamarion. “Introdução: uma opinião sobre as representa-
ções sociais”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e MALERBA, Jurandir (org.) Re-
presentações: contribuição a um debate interdisciplinar. Papirus, Campinas, 2000,
p.9-39.
CASSIRER, Ernst. El mito del estado. 9 ed., Fondo de cultura económica, Méxi-
co, 1997.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2 ed., Forense Universitária, Rio
de Janeiro, 2000.
CERTEAU, Michel de, GIARD, Luce e MAYOL, Pierre. A invenção do cotidia-
no. Vozes, Petrópolis, 2000, 2v.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Difel/
Bertrand Brasil, Lisboa/Rio de Janeiro, 1990.
CHARTIER, Roger. “‘Cultura popular’: revisitando um conceito historiográfi-
co”. In: Estudos históricos. Rio de Janeiro, 1995. n.16, p.179-192.
COHN, Norman. Na senda do milênio: milenaristas revolucionários e anarquis-
tas místicos da Idade Média. Presença, Lisboa, 1981.
COHN, Norman. Cosmos, caos e o mundo que virá: as origens das crenças no
apocalipse. Companhia das Letras, São Paulo, 1996.
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história
cultural francesa. 2 ed., Graal, Rio de Janeiro, 1988.
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. Com-
panhia das Letras, São Paulo, 1995.
DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da
França moderna. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1990.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800: uma cidade
sitiada. Companhia das Letras, São Paulo, 1996.
DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma história do paraíso. Compa-
nhia das Letras, São Paulo, 1997.
DESROCHE, Henri. Sociologia da esperança. Paulinas, São Paulo, 1985.
BIBLIOGRAFIA 375

DESROCHE, Henri. Dicionário dos messianismos e milenarismos. Umesp, São


Bernardo do Campo, 2000.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Martins Fon-
tes, São Paulo, 1996.
FERNANDES, Rubem César. “‘Religiões populares’: uma visão parcial da lite-
ratura recente”. In: O que se deve ler em Ciências Sociais no Brasil. Cortez/Anpocs,
São Paulo, 1990, n.3, p.238-273.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Vozes, Petrópolis, 1997 e 2002,
2v.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. LTC, Rio de Janeiro, 1989.
GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Zahar, Rio de Janeiro, 2001.
GENOVESE, Eugene D. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram.
Paz e Terra/CNPq, Rio de Janeiro/Brasília, 1988.
GINZBURG, Carlo. “O inquisidor como antropólogo”. In: Revista Brasileira
de História. São Paulo, 1990/1991. n.21, p.9-20.
GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos sécu-
los XVI e XVII. 2 ed., Companhia das Letras, São Paulo, 2001.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro
perseguido pela inquisição. 10 ed., Companhia das Letras, São Paulo, 1998.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. 3 ed.,
Companhia das Letras, São Paulo, 1999.
GRUZINSKI, Serge. La colonización del imaginario: sociedades indígenas y oc-
cidentalización en el México español. Siglos XVI-XVIII. Fondo de Cultura Econó-
mica, México, 2000.
GUIMARÃES, Alba Zaluar. “Os movimentos ‘messiânicos’ brasileiros: uma
leitura”. In: O que se deve ler em Ciências Sociais no Brasil. Cortez/Anpocs, São
Paulo, 1986, n.1, p.141-157.
HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: ideias radicais durante a Revolu-
ção Inglesa de 1640. Companhia das Letras, São Paulo, 2001.
HIRSCHMAN, Albert O. Retóricas de la intransigencia. Fondo de Cultura
Económica, México, 1991.
HOBSBAWM, Eric J. Bandidos. 2 ed., Forense-Universitária, Rio de Janeiro,
1976.
HUNT, Lynn (org.) A nova história cultural. 2 ed., Martins Fontes, São Paulo,
2001.
KANTOROWICZ, Ernst H. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia
política medieval. Companhia das Letras, São Paulo, 1998.
KRANTZ, Frederick (org.) A outra história: ideologia e protesto popular nos
séculos XVII a XIX. Zahar, Rio de Janeiro, 1990.
376

KUPER, Adam. Cultura: a visão dos antropólogos. Edusc, Bauru, 2002.


LADURIE, Emmanuel Le Roy. Montaillou: povoado occitânico – 1294-1324.
Companhia das Letras, São Paulo, 1997.
LANTERNARI, Vittorio. As religiões dos oprimidos: um estudo dos modernos
cultos messiânicos. Perspectiva, São Paulo, 1974.
LANTERNARI, Vittorio. “Milênio”. In: Enciclopédia Einaudi. Imprensa Na-
cional – Casa da Moeda, s/l, 1994, v.30 (Religião – Rito), p.303-324.
LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (org.) História: novos objetos. 4 ed., Fran-
cisco Alves, Rio de Janeiro, 1995.
LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (org.). História: novas abordagens. 3 ed.,
Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1988.
LEITÃO, Valton de Miranda. A paranóia do soberano: uma incursão pela alma
da política. Vozes, Petrópolis, 2000.
LEVINE, Robert M. “Editor’s introduction: the millenarian and messianic leg-
acy”. In: Luso-Brazilian Review. Wisconsin, Madison, 1991. v.28, n.1, p.1-3.
LIMA, Luiz Costa (org.) A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. 2
ed., Paz e Terra, Rio de Janeiro, 2002.
OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. Religião e dominação de classe: gênese, estrutura
e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1985.
ONG, Walter J. Oralidad y escritura: tecnologías de la palabra. Fondo de Cul-
tura Económica. México, 2001.
ORTIZ, Renato. A consciência fragmentada: ensaios de cultura popular e reli-
gião. Paz e Terra, São Paulo, 1980.
PARKER, Cristián. Religião popular e modernização capitalista: outra lógica na
América Latina. Vozes, Petrópolis, 1996.
POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. In: Estudos históricos.
Rio de Janeiro, 1989.v.2, n.2/3, p.3-15.
REIS, José Carlos. Escola dos Annales; a inovação em História. Paz e Terra, São
Paulo, 2000.
RUDÉ, George. Ideologia e protesto popular. Zahar, Rio de Janeiro, 1982.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. Zahar, Rio de Janeiro, 1999.
SATRIANI, Luigi M. Lombardi. Antropologia cultural e análise da cultura subal-
terna. Hucitec, São Paulo, 1986.
THOMAS, Keith. Religião e o declínio da magia: crenças populares na Inglater-
ra – séculos XVI e XVII. Companhia das Letras, São Paulo, 1991.
THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. 3 ed., Paz
e Terra, Rio de Janeiro, 1997, 3v.
THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos.
Unicamp, Campinas, 2001.
BIBLIOGRAFIA 377

THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura


popular tradicional. Companhia das Letras, São Paulo, 1998.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. 6 ed., Vozes, Petrópolis,
2002.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. 2 ed., Mar-
tins Fontes, São Paulo, 1999.
TRINDADE, Liana. Conflitos sociais e magia. Hucitec/Terceira Margem, São
Paulo, 2000.
VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da história: micro-história.
Campus, Rio de Janeiro, 2002.
VALENSI, Lucette, RANDLES, W. G. L., CHRÉTIEN, Jean-Pierre, MAR-
GARIDO, Alfredo e WATCHEL, Nathan. Para uma história antropológica: a no-
ção de reciprocidade. 70, Lisboa, 1978.
VASCONCELLOS, Pedro Lima. “Messianismo: problemas de um conceito”.
In: ARAGÃO, Gilbraz; CABRAL, Newton e VALLE, Edênio (ed.) Para onde vão
os estudos da religião no Brasil? Anptecre, São Paulo, 2014, p.121-138 (disponível
em http://www.unicap.br/anptecre/wp-content/uploads/2013/12/livro-palestras-
-Anptecre-2014.pdf [28/06/15]).
VELHO, Otávio. Besta-fera: recriação do mundo: ensaios críticos de antropolo-
gia. Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1995.
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. 2 ed, Brasiliense, São Paulo,
1991.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Zahar, Rio de Janeiro, 1979.
WILLIAMS, Raymond. Cultura. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1992.
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade na história e na literatura. 2 ed.,
Companhia das Letras, São Paulo, 2000.
ANEXOS
380

Fotos de Flávio de Barros, da coleção “Guerra de Canudos”,


pertencentes ao acervo da Casa de Cultura Euclides da Cunha –
São José do Rio Pardo (SP).

Reproduzidas com autorização.


ANEXOS 381

400 conselheiristas prisioneiros


382

Ataque e incêndio no vilarejo


ANEXOS 383

Cadáveres nas ruínas de Belo Monte


384

Vista parcial da vila


ANEXOS 385

Ruinas da igreja do bom Jesus


386

Soldados no leito seco do rio Vaza-barris


ANEXOS 387

Refeição de militares junto a crianças do arraial


388

Generais e auxiliares
ANEXOS 389

General e seu estado-maior


390

Sepultamento de um capitão
ESTA OBRA FOI COMPOSTA EM ADOBE GARAMOND E
IMPRESSA PELA EDUFAL EM NOVEMBRO DE 2105

Você também pode gostar