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Prof. Manuel Rolph Cabeceiras
SELETA DOCUMENTAL DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO1
O Código de Hamurábi ou Hammurapi (Império Paleobabilônico) foi conservado na sua quase totalidade
em uma estela hoje sob a guarda do Museu do Louvre (Paris). Entre um prólogo, no qual se apresenta como
o soberano chamado pelos grandes deuses para fazer justiça, e um epílogo, que encerra com uma série de
maldições para quem tentar aboli-lo, Hamurábi (1728- 1686 a.C.) insere um corpo legal contendo 282
parágrafos sobre os mais variados assuntos.
1 Material para uso exclusivo no âmbito da disciplina como recurso auxiliar na análise documental dos temas
estudados, sendo vedada a sua divulgação pública.
2
Awilum, por diversas vezes referido no documento, era como se designava, na sociedade babilônica, o
homem livre. A esta categoria pertencia os camponeses (aldeões), comerciantes, grande parte dos soldados
e os profissionais independentes, tais como escribas, funcionários e sacerdotes.
“(...) § 53 Se um awilum foi negligente na fortificação do dique de seu campo e (de fato) não
fortificou o dique de seu campo e abriu-se em seu dique um rombo e as águas carregaram um
terreno irrigado: o awilum em cujo dique se abriu o rombo indenizará pelo grão que perdeu.
§ 54 Se ele não pode indenizar o grão: venderão a ele e a seus bens e os moradores dos terrenos
irrigados, cujo grão a água carregou, dividirão.
§ 55 Se um awilum abriu seu canal para a irrigação, foi negligente e as águas carregaram o campo
de seu vizinho: ele medirá o grão correspondente ao de seu vizinho.
(...)
2
Código de Hamurabi, trad. e comentários de Emanuel Bouzon, 3ª ed., Vozes, Petrópolis, 1980, págs. 106-107.
§278 Se um awilum comprou um escravo ou uma escrava e antes de completar um mês foi
acometido de epilepsia3: ele [o] reconduzirá ao seu vendedor e o comprador levará consigo a
prata que tiver pesado.
§279 Se um awilum comprou um escravo ou uma escrava e surgiu reivindicação: seu vendedor
deve responder à reivindicação4.
§281 Se forem filhos de um outro país: o comprador declarará diante de deus a prata que pesou
e o proprietário do escravo ou da escrava poderá dar ao mercador a prata que ele pesou e
resgatar seu escravo ou sua escrava5.
§282 Se um escravo disse a seu proprietário: “Tu não és meu senhor”: ele comprovará que é o
seu escravo e seu proprietário cortar-lhe-á a orelha.
(...)
“[estas são] as palavras de justiça, que Hamurábi, o rei forte, estabeleceu e que fez o país tomar
um caminho seguro e uma direção boa.
(...). Eu (sou) Hamurábi, o rei perfeito. Para com os cabeças-pretas, que Enlil6 me deu de
presente e dos quais Marduk me deu o pastoreio, não fui negligente, nem deixei cair os braços.
Eu lhes procurei sempre lugares de paz, resolvi dificuldades graves, fiz-lhes aparecer a luz. Com
a arma poderosa com que Zababa e Ishtar me revestiram, com a sabedoria que Ea me destinou,
com a habilidade que Marduk me deu, aniquilei os inimigos de cima e de baixo, acabei com as
lutas, promovi o bem-estar do país. Eu fiz os povos dos lugarejos habitar em verdes prados,
ninguém os atormentará. Os grandes deuses chamaram-me e tornei-me o pastor salvador, cujo
cetro é reto; minha sombra benéfica está estendida sobre minha cidade. Eu encerrei em meu
seio os povos do país de Sumer e Acade, sob minha divindade protetora eles prosperaram, eu
sempre os governei em paz, em minha sabedoria eu os escondi. Para que o forte não oprima o
fraco, para fazer justiça ao órfão e à viúva, para proclamar o direito do país em Babel, a cidade
cuja cabeça Ea e Enlil levantaram, na Esagila7, o templo cujos fundamentos são tão firmes como
o céu e a terra, para proclamar as leis do país, para fazer direito aos oprimidos, escrevi minhas
palavras em minha estela e coloquei-a diante de minha estátua de rei do direito. (...). Que o
homem oprimido, que está implicado em um processo, venha diante da minha estátua de rei da
justiça, e leia atentamente minha estela escrita e ouça minas palavras preciosas. Que minha
estela resolva sua questão, ele veja o seu direito, o seu coração se dilate! (...). Que nos dias
futuros, para sempre, o rei que surgir no país observe as palavras de justiça que escrevi em
minha estela, que ele não mude a lei do país que eu promulguei, as sentenças do país que eu
3 O termo acádico bennum designa uma doença, que pela descrição dos textos babilônicos seria a epilepsia.
4 Se um escravo comprado for reclamado por um outro awilum como sendo propriedade sua, a
responsabilidade de responder ao processo recai sobre o vendedor.
5 Os parágrafos ou seções 280 e 281 se completam em sua casuística. Trata-se de um mercador que compra um
escravo no exterior e volta à sua pátria. Lá o antigo dono do escravo (a) o (a) reconhece e reclama oficialmente
seu direito sobre tal propriedade. A legislação de Hamurábi prevê dois casos: o de serem naturais do país ou
estrangeiros.
6
Em negrito são marcados os nomes de divindades quando surgem pela primeira vez no documento,
PROCURE saber quem são.
7 Em sumério É.SAG.ÍL ("templo de teto alto" ou, literalmente, "casa da cabeça erguida"), era um templo
dedicado aos deuses Marduk, deus protetor da Babilônia, e sua esposa Sarpanitu.
decidi, que ele não altere os meus estatutos! (...). Eu sou Hamurábi, o rei da justiça, a quem
Shamash deu a verdade. Minhas palavras são escolhidas, minhas obras não têm rival; só para o
tolo elas são vazias, para o sábio elas conduzem para a glória. [... e seguem diversas maldições].”
Nesta imagem, numa sequência de cinco registros são mostrados de cima para baixo a
apresentação ao Egito de tributos e embaixadores oriundos do Punt (1), da área do Mar Egeu
(2), de povos da Núbia, isto é, do então Reino de Kush (3), da Síria-Palestina ou Levante, chamada
pelos egípcios de Retenu, (4) e cativos núbios e sírio-palestinos acompanhados de mulheres e
crianças (5). A origem da imagem é a tumba do vizir Rekhmiré, cuja relevância como um dos
mais importantes sepulcros privados do Reino Novo advém em parte justamente das pinturas
que documentam as relações exteriores de Egito neste momento, assim como o alto nível a que
chegou a vida cortesã.
Não obstante, os textos escritos são os que mais despertam atenção. Na imagem adiante
(orientada de leste para oeste: E→O) o local exato onde o texto por nós destacado se acha na
tumba (indicado em francês “installation”):
Trata-se do discurso pronunciado pelo faraó Tutmosis III9 no momento de dar posse ao seu vizir.
8XVIIIª dinastia.
9Menkheperré Dyehutymose ou Tutmosis III ou Tutmés III, sexto faraó da XVIIIª dinastia, sucedeu ao seu
pai, Tutmosis II, em 1479 a.C., mas em razão de sua tenra idade, assumiu o governo, como regente, sua tia e
O cargo de vizir, existente desde o Reino Antigo, ao menos a partir do Reino Médio, tornou-se o
eixo do governo. A expansão do país, com as conquistas empreendidas, ampliou os atributos
administrativos, fazendo que, na XVIIIª. Dinastia, o cargo se desdobrasse em um Vizir para o
Baixo Egito (sede em Heliópolis) e outro para o Alto Egito (sede em Tebas, próximo ao soberano).
Suas funções eram muito variadas: da supervisão da fazenda até o exercício da justiça, passando
pelas obras públicas e supervisão dos recursos agropecuários, chegando a ser uma espécie de
“alter ego” do faraó assegurando a conexão dos diferentes serviços e províncias e o vigor do
centralismo administrativo praticado no Novo Reino.
madrasta Hatshepsut (era meia-irmã e esposa de Tutmosis II). No sétimo ano desta regência, porém, ela mesma
passa a se intitular faraó, governando mais quinze anos nesta condição até a sua morte em 1458, quando assume
o poder plenamente Tutmosis III. Daí até o fim do seu reinado em 1425 a.C. chama a atenção as dezessete
campanhas militares que realizou, expandindo o Reino, o que o fez ser chamado de “Napoleão do Egito”.
Instruções oferecidas ao vizir Rekhmiré. O Conselho foi admitido na Sala de Colunas do faraó, v.
p. s.11 É introduzido o vizir Rekhmiré, recém-nomeado. Então fala Sua Majestade:
“Atende ao departamento do vizir. Vela por tudo o que nele se faz. És o pilar fundamental de
todo o país. Lembre-se, o [cargo de] vizir certamente não é agradável, é amargo como o fel. Ele
é [como] o cobre que amuralha o ouro da casa de seu senhor. Não é ele ninguém que (possa)
favorecer seja magistrados seja conselheiros, que não faça de ninguém clientes. Lembre-se, o
que um homem faz na casa de seu senhor é a sua felicidade, e não haverá nada que faça (na
mansão) de outro.
Vêm suplicantes do Alto e Baixo Egito, de todo o país, preparados para atender ao [conselho do
vizir]. Hás de velar por tudo que se faça conforme a lei, e que tudo se cumpra de modo correto,
assim um homem se encontra justificado. Com respeito ao magistrado que julga em público, a
água e o vento informam todos os seus feitos, ninguém há que desconheça os seus atos. Se faz
algo [errôneo] com respeito ao seu caso e não o revela pela boca do funcionário
(correspondente), então será conhecido pela boca daquele a quem ele está julgando,
comunicando este, de sua parte ante o funcionário (correspondente), com estas palavras: “Este
não é o veredicto de meu caso” ... Não será ignorado o que tem feito. Lembre-se a salvaguarda
do magistrado é atuar conforme a norma, levando a cabo o que se disse. Então o suplicante em
juízo não [poderá dizer]: “Não é justo!” Lembre-se, há uma máxima no Livro de Mênfis que diz:
“Soberano favorável, vizir justiceiro.” Acautele-se da fama do vizir Hety. Dizia-se ter
empobrecido a todos à sua volta para (benefício) de outros, por temor de que se dissesse dele
que era [parcial]: se alguém apelava contra um juízo por ele antes determinado, persistia,
entretanto, em mantê-lo. Mas este é um excesso de justiça. Não julgues [incorretamente], pois
o deus detesta a parcialidade. Esta é a instrução: reflete e atua de acordo com ela; atende tanto
ao conhecido como ao desconhecido, ao próximo de ti como ao longínquo. O magistrado que
atuar conforme tais disposições será sempre exitoso nesta posição. Não passes diante de um
suplicante sem que hajas tomado em consideração suas palavras. Se um suplicante apela a ti
não rechaces o que disse como algo sem novidade, e despeça-o tão somente após tê-lo
escutado. Pois se diz que o suplicante prefere ter atendidas as suas palavras a que se julgue
aquilo pelo qual tem vindo. Não te mostres injustamente irritado contra um homem; enoja-te
somente por aquilo pelo que merece a pena enojar-se. Impõe o respeito a ti, de forma que se
te tema, pois um (autêntico) magistrado é aquele a quem se teme. Lembre-se, o valor de um
magistrado consiste em que faça justiça. Todavia, se um homem faz que se lhe tema (como) um
milhão de vezes, todos pensarão dele que há algo falso nele, e não dirão dele: “És um homem!”
Também se diz que um magistrado que fala falsamente terá sua paga (merecida). Terás êxito
desempenhando esta função se atuas justamente. É desejável que se faça justiça por meio das
decisões do vizir. [com respeito ao vizir], é ele o autêntico guardião desde (o tempo) dos deuses.
Lembre-se do que é costume dizer do Escriba Maior do vizir: é chamado de “Escriba de Ma'at”12.
Em relação ao departamento no qual tu julgas, há nele uma espaçosa sala com [todos] os
vereditos [postos por escrito]. É o vizir quem há de fazer justiça ante todo o povo. Lembre-se, o
10
José Miguel Serrano DELGADO, Textos para la Historia Antigua de Egipto, Madrid, Cátedra, 1993, págs.
179-181.
11 V. P. S., “vida, prosperidade e saúde”, expressão que segue o termo “faraó” sempre que mencionado.
12 VIDE nota 5.
homem permanecerá em sua função enquanto atue de acordo com o cargo que lhe tem sido
conferido. É inocente o homem que atua de acordo com o que se lhe diz. Assim pois, não atues
segundo teu desejo em um caso do que seja bem conhecida a lei a respeito. Ademais, respeito
ao arrogante, o senhor prefere o respeitoso ao arrogante. Atua, pois, conforme o cargo que lhe
tem sido conferido... (seguem algumas recomendações adicionais).”
Estamos na XIXª dinastia, no quinto ano de seu reinado (cerca de 1274 a.C.): Ramsés II combateu
aos hititas do rei Muwatalli II em Qadesh (ou Kadesh), na Síria, no 5º ano de seu reinado. Em
dado momento, segundo o próprio, cercado de inimigos, conseguiu salvar-se graças ao seu valor
pessoal. Após a “vitória”13, mandou gravar, em várias paredes dos templos por ele construídos14,
ao lado de imagens
das diversas fases
da batalha (como à
esquerda, copiada
de uma parede do
templo de Luxor), o
poema cujo trecho é
objeto do nosso
estudo no qual
narra a batalha e
13 A partir da confrontação da documentação hitita com a egípcia tudo permiti-nos concluir não ter sido
conclusiva a batalha em virtude do seu resultado indeciso em campo. Não muito tempo depois, após
continuadas escaramuças, o jeito foi ambos os impérios, no 21º ano do reinado de Ramsés II, assinarem um
tratado de paz (o mais antigo que chegou até nós) pondo fim ao conflito e selando uma aliança de proteção
mútua. Deste tratado temos preservadas as suas duas versões, a hitita, escrita em tabuinhas de argila em
cuneiforme babilônico e encontrada em Bogazkoy (sítio na Ásia Menor, atual Turquia, onde foi escavada a
antiga Hatusa, capital do Hati) e a egípcia gravada em duas estelas na antiga Tebas. Ramsés ainda governaria
por cerca de 40 anos (no todo estendeu-se de cerca de 1279 a 1213 a.C.), tornando-se o mais longevo faraó.
14 No Egito, em Tebas (templos de Karnak, Luxor e Ramesseum) e em Abidos; na Núbia em Abu Simbel.
Cópia bem conservada e muito aproximada destes textos, hoje em Londres15, é um papiro do
qual segue um trecho da prece a Amon que abre o poema encomendado pelo soberano.
15 Papyrus Sallier III (col. 11), BM10181,11, British Museum, escrito em hierático. No total sob este nome são
um conjunto de quatro papiros, resultado de cópias feitas como exercícios de escrita datadas do governo de
seu sucessor, poucos anos após a sua morte.
16 VVAA. Preces do Oriente Antigo, São Paulo, Paulinas, 1985, págs. 70-71.