Práticas proibidas: práticas se construíram ao longo do tempo as ações, as
tentativas de controle, os discursos de costumeiras de aborto e criminalização, as penas para as condenadas, infanticídio no século XX. enfim, a publicização em torno do corpo feminino, interpretando e discutindo fontes PEDRO, Joana Maria (Org.). variadas de pesquisa. Nesse livro o/a leitor/a irá encontrar uma profusão de discursos a respeito da imagem da Florianópolis: Cidade Futura, 2003. mulher, em que as/os autoras/es tentaram 312 p. vislumbrar os meandros dos discursos que imprimiam a culpabilidade às mulheres que praticavam atos como aborto e infanticídio em Desterro/Florianópolis. E essas mulheres passavam, Casos como estes – de práticas de aborto a partir desses atos, a ser alvo de intensos e infanticídio – foram, e continuam a ser, debates, seja na imprensa, nos discursos encontrados no século XX; registrados em judiciários ou mesmo em toda a sociedade. ocorrências policiais, em notícias de jornal As narrativas contidas no livro revelam e em processos judiciais (p. 20). algumas histórias das mulheres que viviam na Florianópolis do início do século XX, mostrando suas resistências, seus amores, os relacionamentos Essas palavras nos convidam a adentrar nos entre os vizinhos, a família, as trajetórias, enfim, textos do livro organizado por Joana Maria Pedro apresentam ao leitor as situações e as relações Práticas proibidas: práticas costumeiras de que estão presentes na discussão sobre aborto e aborto e infanticídio no século XX. Sem sombra infanticídio. Os 12 capítulos trazem múltiplos de dúvida, o aborto e o infanticídio são temas olhares sobre essas práticas. Os amores e dores, polêmicos, uma vez que colocam questões éticas a passagem dos processos judiciários, as e morais importantes diante do que consideramos experiências, os silêncios, a autonomia do corpo direitos humanos e controle sobre o próprio corpo. feminino, a publicização das imagens femininas, Os textos que compõem o livro analisam o o debate na imprensa são enunciados conjunto dos discursos que se engendram e que elaborados e reelaborados pelas/os autoras/es, constroem concepções acerca das práticas que se preocuparam em mostrar as realidades femininas. São diversas vozes que se manifestam, vivenciadas no cotidiano da cidade. compondo um campo em que se constituem os A leitura desperta o interesse sobre como caminhos trilhados pelas mulheres. as práticas costumeiras de aborto e infanticídio Cristiani, Núcia, Roselane, Eliana, Luciana, foram discutidas e criminalizadas no passado, Maria Conceição, Maristela, Aniele e Vanderlei, quando temos uma imagem de que seriam temas coordenadas/os por Joana Pedro, mostram como próprios apenas do momento atual. A
representação dada a essas práticas atravessa relação a essas práticas é construído socialmente o tempo, e ainda na contemporaneidade e que o jornal serviu como um veículo para a consegue nos fazer refletir sobre o corpo, o nosso qualificação ou (des)qualificação das mulheres. corpo, o corpo das mulheres que praticaram Na divulgação dos jornais, percebe-se a esses atos. construção de uma imagem de mulher: a mãe O capítulo I, “Aborto e infanticídio: práticas dedicada, a esposa comportada, as moças que muito antigas”, aponta como se construíram, nos seguem as regras de conduta. Ainda hoje, o períodos históricos, a criminalização das práticas corpo feminino, silencioso e dissecado, continua de aborto e infanticídio, principalmente com a sendo o principal suporte da publicidade.1 atuação do poder público e também da Igreja Já no capítulo VI, “Mulheres, memórias e Católica, os quais fomentavam os discursos sobre experiências...”, as autoras mostram as ‘vozes’ das a valorização dos preceitos da moral. mulheres, trazendo as práticas que não foram O capítulo II, “Amores e dores, brigas e alvo de debates na imprensa, mas em que essas intrigas de Zulmas, Marizas, Florências...: mulheres, a maioria com mais de 65 anos de processos judiciais”, mostra a história das rés idade, moradoras de Florianópolis, evidenciaram envolvidas com infanticídio e aborto, em que o as estratégias femininas de autonomia e as agrupamento de vários depoimentos – das rés, resistências ao controle cotidiano sobre seu dos namorados, dos maridos, dos vizinhos, dos corpo. Assim, falar do corpo, dos partos, parentes, dos advogados – compõe o cenário menstruação, aborto, trocar remédios só era para a análise das condutas das mulheres que possível nas redes de relações das mulheres. As praticavam o aborto e o infanticídio. Os comadres, as vizinhas, todas casadas, detinham personagens exprimiam seus pontos de vista, um saber sobre o corpo feminino e, através do acusando, indicando o erro, pregando uma uso de chás, de banhos descortinavam um punição, e assim se constituíam os discursos mundo de práticas desconhecidas pelos ‘saberes negativos para os atos das mulheres, apontando- científicos’. as como culpadas. Os capítulos VII, “A repercussão das disputas O terceiro capítulo, “Aborto e infanticídio nos legislativas: a legislação sobre o aborto na códigos penais e nos processos judiciais: a imprensa”, e VIII, “A prática do aborto sobre falas pedagogia de condutas femininas”, destaca as autorizadas: seus usos e abusos na mídia impressa mudanças na legislação brasileira, mostrando brasileira”, permitem que o/a leitor/a acompanhe como os aparatos jurídico e médico inseriram as mudanças em relação à legislação: de duras novas formas de controle do corpo feminino. penas aplicadas às mulheres até estratégias Assim, o corpo das mulheres, que permanecia utilizadas para que algumas fossem absolvidas. quase sempre em silêncio, ganhava espaço nos Além disso, nesses capítulos são apontados os códigos penais, e, das profundezas do olhar e caminhos e os argumentos, na legislação e na do desejo, seus segredos mais íntimos passaram imprensa, a favor e contra a criminalização do a ser avaliados. aborto. Em relação ao controle do corpo, o quarto O capítulo IX, “Corpos femininos em debate: capítulo, “Um outro olhar sobre o corpo e práticas aborto e infanticídio na imprensa de Florianópolis, femininas: medicalização do aborto e infanticídio uma história de controle e normatização”, o na cidade de Florianópolis”, apresenta a capítulo X, “Uma história de notícias: o debate introdução do conhecimento médico e de que sobre o aborto em jornais e revistas”, e o capítulo forma a construção do saber especializado XI, “Com a palavra, os leitores...”, trazem a interferiu nos processos de criminalização do profusão de imagens e discursos proferidos pela aborto e do infanticídio. As autoras aprofundam mídia focalizando a historicidade dos debates a discussão sobre os discursos que forjaram a sobre o aborto, em que se buscava um controle constituição dos sujeitos e de suas práticas, da autonomia do corpo feminino em um tom criminosas ou não. Elaboram-se os saberes sobre moralizador e normatizador. Os discursos o corpo da mulher, o qual passa a ser amparados pela medicina ganharam relevância esquadrinhado, avaliado, medido e do qual se com a discussão política, tornando visível e dizível obtêm todas as informações sobre os atos de ações e práticas das mulheres. A imprensa, aborto e infanticídio. segundo as autoras, ocuparia um espaço de O capítulo V, “O infanticídio na imprensa de fórum debatedor, orientando a opinião pública Florianópolis..”, descortina a publicização da sobre o aborto. Entram em cena os argumentos imagem da mulher nos jornais locais e nacionais, favoráveis e os contra à prática do aborto, em tentando mostrar que o estranhamento em que todos os setores da sociedade são
convidados a opinar sobre a ação da mulher. ao prazer, sendo impossível ignorar as questões Esses capítulos mostram que a voz das mulheres em relação ao corpo feminino. era silenciada em meio à profusão de discursos, Em suma, o livro apresenta uma leitura opiniões, debates. histórica, e feminista, das práticas costumeiras Esse silêncio foi problematizado no capítulo de aborto e infanticídio em Santa Catarina. XII, “Em silêncio... as mulheres que decidam”, no Histórica porque mostra essas práticas em sua qual é apresentado como se dão o processo de construção, em meio aos debates que estiveram disciplina e as tentativas de controle da conformando os discursos e as ações dos sexualidade e do corpo da mulher, mas ao mesmo personagens: das mulheres, dos juízes, das tempo mostra que muitas mulheres desafiaram as testemunhas, dos homens que seriam pais, das políticas de controle, mantendo suas práticas parteiras, dos médicos. Feminista porque assume costumeiras. Porém, a decisão do aborto e a culpa claramente uma postura de desconstrução dos ficavam restritas às mulheres, sendo que ninguém estereótipos relacionados ao tema do aborto e queria discutir ou registrar isso. Logo, quando os do infanticídio. Após a leitura, com certeza o/a discursos destacam o aborto como “coisas de leitor/a vai ‘olhar’ essas práticas de forma mulher” atinentes ao campo privado, contribuem diferente. durante muito tempo para que o aborto não seja desnaturalizado. 1 PERROT, Michele. “Os silêncios do corpo da mulher”. In: A discussão sobre a desnaturalização, as MATOS, Maria Izilda S.; SOIHET, Raquel (Org.). O corpo penas e os debates em torno do assunto fecham feminino em debate. São Paulo: Editora da UNESP, 2003. o último capítulo, mas não fecham a p. 15. problematização a respeito do aborto e do infanticídio. Nesse capítulo destaca-se que a visibilidade das práticas de aborto e infanticídio Jaqueline Aparecida M. Zarbato Schmitt permite que se faça uma reflexão sobre o direito Universidade Federal de Santa Catarina ao corpo, a descriminalização do aborto, o direito