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1518 3319 Topoi 15 28 00338
1518 3319 Topoi 15 28 00338
Cássio Fernandes*
Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 15, n. 28, p. 338-346, jan./jun. 2014 | www.revistatopoi.org 339
O legado antigo entre transferências e migrações
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executadas justamente para ornar o salão de às etapas do processo criativo, que incluía,
debates da referida academia. A tese de War- em primeira escala, as figuras do comitente e
burg aparece como primeiro capítulo em A do idealizador erudito. Era um modo muito
renovação da Antiguidade pagã. concreto de compreender a arte no âmbito
Na tese sobre Botticelli, Aby Warburg da cultura do Renascimento.
apresentava já o interesse pelo processo cons- O termo cultura do Renascimento, en-
titutivo das obras de arte e, ao mesmo tem- tretanto, remetia Warburg a um estudioso
po, sua disposição de seguir o caminho das cujo nome é já uma referência ao tema e de
transmissões do legado antigo no limiar da quem Warburg afirmaria, logo depois, ser
era moderna. E tudo isso é realizado num es- um seu continuador. Tratava-se de Jacob
tudo de caso, analisando dois quadros para Burckhardt, a quem Warburg enviou a tese
compreender, de modo individualizado, um sobre Botticelli e recebeu de volta uma carta
problema histórico que certamente não se com as seguintes palavras: “com o seu escrito
apresentava isoladamente, mas, ao contrário, o senhor fez cumprir um passo adiante no
indicava um edifício maior. Decerto, seu conhecimento do medium social, poético e
aprendizado em Bonn, com Carl Justi, teria humanístico no qual Sandro [Botticelli] vi-
contribuído para a elaboração de uma pers- via e pintava”.
pectiva microscópica. Justi havia aprendido Burckhardt concedera a Warburg, de
com seu antecessor e mestre, Anton Springer fato, o tema da cultura do Renascimento
(1825-1891), como abordar amplos proble- sob uma perspectiva de movimento e inter-
mas históricos focados em personagens in- -relações culturais que o estudioso de Ham-
dividuais. Springer é o criador de um gênero burgo aprofundará ao longo de seus estudos.
historiográfico, muito empregado no âmbito O livro de Warburg é organizado em seções
dos estudos culturais e artísticos, que ficou que, por sua vez, são compostas por textos
conhecido como Monographie. Carl Justi de várias fases de sua vida, revelando que o
transformou-se no mestre do gênero mono- autor lidou com alguns temas mais gerais,
gráfico, autor de monografias sobre Miche- revisitando-os ao longo de sua trajetória.
langelo, Velazquez e Winckelmann. Algumas dessas seções temáticas são intei-
Mas Warburg estivera também em Es- ramente ligadas a caminhos trilhados por
trasburgo e, sob orientação de Janitschek, Jacob Burckhardt. O mais claro exemplo é
autor do livro Die Gesellschaft der Renaissance a primeira seção, “A Antiguidade na cultura
und die Kunst in Italien (A sociedade do Re- burguesa florentina”, da qual faz parte a tese
nascimento e a arte na Itália), aproximara-se sobre Botticelli, seção facilmente referível
da perspectiva da história social da arte. Esse ao centro do estudo de Burckhardt contido
aprendizado estava presente na tese de 1893, em seu livro mais conhecido, A cultura do
no movimento de ampliação da interpreta- Renascimento na Itália, de 1860. Além dis-
ção da arte florentina do Quattrocento do so, é importante citar o texto warburguia-
âmbito propriamente do artista em direção no de 1902, “A Arte do retrato e a burgue-
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sia florentina”, que se anuncia, já na “Nota de altar” e “Os colecionadores”. Uma das li-
preliminar”, como continuação ao livro de nhas interpretativas que atravessavam esses
Burckhardt sobre o tema, recentemente edi- textos de Burckhardt era a importância da
tado no Brasil: O retrato na pintura italiana pintura flamenga para a formação do gosto
do Renascimento. Warburg se utiliza de um artístico de uma classe de mercadores flo-
único afresco, pintado por Domenico Ghir- rentinos encomendantes das obras artes e,
landaio na Capela Sassetti, na igreja floren- consequentemente, seu papel da execução
tina de Santa Trinità, para compreender o da pintura em Florença. O outro aconteci-
problema da relação entre cristianismo me- mento editorial importante para W arburg,
dieval e paganismo antigo na Florença da se- nesse momento, foi o aparecimento, em
gunda metade do século XV. A abordagem 1888, do livro de Eugène Müntz sobre
de Warburg colocava, de novo, no centro a as coleções dos Medici no século XV, Les
relação entre comitente e artista, nesse caso, collections des Médicis au quinzième siècle, que
entre o retratista, Ghirlandaio, e o retratado, também tinham sido de grande valia para os
Francesco Sassetti, que representa o figura citados estudos de Burckhardt. O estudo do
do burguês laico e culto do primeiro Renas- inventário dos Medici permitia compreen-
cimento florentino. Sassetti é o banqueiro, der um progressivo interesse, em Florença,
assolado cotidianamente pelo pecado da pela pintura de cavalete, sobre tela ou sobre
usura, que manda pintar sua capela fúnebre madeira, em comparação com a tradicional
em homenagem a São Francisco, santo que pintura a fresco. Com esse processo, era pos-
simboliza o despojamento dos bens mate- sível perceber a importância da arte flamen-
riais e exalta a pobreza como redenção. ga no ambiente dos Medici, e não apenas do
Entretanto, seria interessante nos vol- ponto de vista da pintura, mas também da
tarmos a outras duas seções do livro de tapeçaria. A partir do livro de Müntz, era
Warburg, com o intuito de compreender o possível concluir que os flamengos tinham
quanto foi-lhe importante o ensinamento de condicionado o desenvolvimento do primei-
Burckhardt. A primeira delas intitulou-se ro colecionismo italiano, em especial, pela
“O intercâmbio entre as culturas florentina capacidade realística da pintura a óleo de-
e flamenga”. Dois acontecimentos editoriais senvolvida em Flandres, mas também pela
marcaram o encontro de Warburg com o facilidade de circulação dos tecidos, dos
tema das relações culturais entre Florença tapetes e dos quadros flamengos de peque-
e Flandres no Quattrocento. O primeiro nas dimensões, fato que antecede a circula-
foi a edição póstuma de parte dos últimos ção dos próprios artistas nórdicos na Itália.
escritos de Burckhardt sobre a arte italiana Desse modo, os inventários das coleções dos
do Renascimento, em 1898, as Beiträg zur Medici confirmavam a importância da liga-
Kunstgeschichte von Italien (Contribuições à ção entre a tarefa ditada pelo colecionador e
história da arte na Itália), que conteve três o conteúdo de uma obra. Warburg, então,
ensaios “O retrato na pintura”, “O retábulo dedica-se a ampliar e aprofundar as indica-
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ções a esse respeito, presentes nos textos de festa era, portanto, não apenas o momento
Burckhardt, com estudos de casos entre os de apresentação da expressividade artística,
anos de 1899 e 1907. Toda a seção do livro com todo o aparato que compõe a arquitetu-
trata desse tema, refletindo, uma vez mais, ra decorada, mas sobretudo o palco da ence-
o interesse de Warburg em compreender as nação da existência, quase uma transição da
imagens como símbolos de circulações, de vida para a arte. Os cortejos e as encenações
migrações de homens e de ideias, seu esfor- festivas eram, para Warburg, ocasiões para
ço em perfazer os caminhos das conexões, contemplar a vida social, bem como para
dos encontros entre elementos distintos, sua interpretar o aparato artístico de que eram
determinação em entender a fronteira como compostos. Esse aparato, em sua concretu-
o próprio terreno da história. Além disso, de, revelava-se, então, documento do signifi-
encantava-lhe o fascínio do mundo refinado cado histórico da Antiguidade clássica para
toscano pelos meios de expressar o vivo, tra- os homens dos séculos XV e XVI na Itália,
zidos à luz pela arte flamenga. Para Warburg, bem como no mundo nórdico, indicando
essa pintura é um exemplo emblemático da ainda as ligações entre esses dois universos
compreensão espontânea demonstrada pela culturais.
burguesia toscana em direção à arte nórdica, Exatamente a busca de diálogo entre
resultado da mescla de elementos humanos norte e sul dos Alpes havia movido War-
que se atraem por seu contrário. burg a idealizar sua biblioteca particular.
A outra seção que demonstra quão pe- Sua intenção era reunir um acervo de livros
rene foi o influxo de Burckhardt sobre a e documentos que constituíssem as malhas
obra de Warburg é aquela relativa ao tema de ligação entre o Sul e o Norte da Europa,
da “Antiguidade e o presente na vida festiva concentrando num único lugar a livre con-
do Renascimento”. Burckhardt tinha intitu- sulta de publicações fundamentais sobre esse
lado a parte 5 de A cultura do Renascimento contato cultural. Ele, então, escolheu um
na Itália de “A sociabilidade e as festivida- tema que pudesse amalgamar sua proposta
des”, entrelaçando o esplendor artístico nas de seguir o diálogo e as relações transalpi-
cidades da Itália renascentista às festividades nas, sem deixá-los dispersar-se no infinito.
em sua formulação mais elevada, como um Escolheu o tema da influência da Antigui-
movimento superior da vida do povo, mo- dade, com o qual desenvolvia já à época seu
mento no qual seus ideais religiosos, mo- trabalho de pesquisa.
rais e poéticos assumem uma forma visível. Corria o ano de 1902 e, numa conver-
Warburg, por sua vez, buscou conceber a sa em família, Aby Warburg adquiriu, por
expressão humana na obra de arte figurati- parte de seu pai, com o apoio de seu irmão
va como imagem da vida prática em movi- mais velho, Max, a quantia de 1.700 marcos
mento, tanto para o caso do culto religioso, para instalar sua biblioteca no edifício onde
quanto para aquele do drama da cultura por permanecera até 1933, em Hamburgo. Era
meio da festividade ou do palco cênico. A o início da Biblioteca Warburg para a Ci-
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