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Rematerializando o feminismo

Teresa L. Ebert

Resumo: A “guinada cultural” no feminismo tem isolado questões de gênero e sexualidade de


suas condições materiais. Esse artigo discute tal guinada engajando conceitos como "gênero",
“história”, “agência”, “modernidade”, “pós-modernidade”, “essencialismo”, “teoria”, “classe”,
“sexualidade”, "identidades políticas”, “trabalho” e o “concreto” em suas materialidades. Ainda
que teorias “pós”-modernas tenham tratado essas e práticas relacionadas como efeitos “culturais”
e considerou-as como (semi)autônomos atos de resistência, a cultura nunca é isolada de sua base
material e resistência cultural, e por si só, não é capaz de transformar a totalidade social. A
maneira mais efetiva de realizar uma transformação dessa magnitude é pela luta de classes, a
qual provoca mudanças "radicais" através da reorganização das relações de trabalho e capital e
coloca um fim em todas as classes sociais. Todas as diferenças sociais, como gênero, são efeito
da classe - a desigualdade do trabalho.

O feminismo após a “pós modernidade” tornou-se na teoria e na prática largamente indiferente à


práticas materiais sob o capitalismo - como o trabalho, que molda as estruturas sociais do dia a
dia - e fetichizou a diferença. Em outras palavras, apagou a questão da “exploração”, difundindo
conhecimento sobre as questões básicas da realidade das mulheres enquanto uma pluralidade de
“opressões” particulares. O feminismo abraçou a guinada cultural - a retificação da cultura como
uma zona autônoma de práticas significativas - e colocou de lado transformações políticas.
Portanto, o renascimento de um novo feminismo requer que limpemos a vegetação rasteira da
ideologia burguesa, a qual limitou os termos pelos quais o feminismo compreende a condição da
mulher. Resumidamente, um novo feminismo - vermelho - não se preocupa somente com a
“questão da mulher”, é muito mais sobre as outras “questões” que constituem a “questão da
mulher”: as questões de classe e trabalho constituindo as condições de conhecimento - e
transformando - as realidades básicas do capitalismo global.
O presente texto é alicerçado na convicção de que a compreensão do feminismo canônico
sobre gênero e sexualdiade institucionalizados por teorias “pós-modernas” (como no pós-
estruturalismo, pós-colonialismo, pós-modernismo, pós-marxismo) são - depois que se permite
todas as diferenças locais e brigas familiares (por exemplo, Benhabib, et al., 1995; Butler, et al.;
2000) - estratégias para sobrepor questões do trabalho (como na teoria do valor do trabalho) e
capital (a relação social trincada em tornar a força de trabalho do outro em lucro), e em
contrapartida, reside em questões de diferenças culturais (como em comportamentos).
Reivindicando o conhecimento materialista, contesto a teoria cultural na qual base havia o
feminismo canônico. Especificamente, combato que a linguagem - “discurso” em suas
circulações sociais - é “consciência prática” (Marx e Engels, Ideologia Alemã) e que cultura,
longe de ser autônoma, é sempre e em última análise, uma articulação social das relações
materiais de produção. O feminismo canônico, em todas as suas formas, localiza gênero e
sexualidade como forma de honrar suas diferenças e especificidades de suas opressões. Ao fazer
isso, os isola da história e os reduz a “eventos”, em performatividades, e portanto, os desloca do
trabalho. Para o Feminismo Vermelho, o local, o específico e o singular, chamados de
“concreto”, são sempre um “concreto imaginado” e o resultado de “diversas determinações e
relações” que “juntas formam partes da totalidade, distinções com uma unidade. Produção
(relações de trabalho) predominam não somente sobre si...mas sobre todos os outros momentos
também” (Marx, Grundrisse).
Indo contra o movimento das teorias do feminismo canônico e ao invés de tornar a
mulher como algo "singular", situo gênero e sexualidade no processo global histórico de trabalho
e capital. Minha análise de gênero e sexualidade irá, provavelmente, ser rejeitada pelo feminismo
mainstream por ser muito deslocada, muito abstrata, muito teórica e, portanto, uma forma de
exclusão de mulheres, como a diferença. Eu não nego a diferença. Simplesmente não a vejo
como autônoma e imanente. Ao contrário, compreendo a diferença sempre e em última análise,
determinada pela diferença de classe - ou seja, pelas relações de propriedade.
Nas sessões seguintes, eu critico algumas das práticas dominantes na teoria cultural
contemporânea e mapeio algumas das condições nas quais gênero e sexualidade, abstraídos de
classe e exploração, são desmaterializados em opressões flutuantes. Pego as questões de
linguagem e referência; agência, essencialismo e anti essencialismo, teoria, pós modernidade,
política de identidades, ideologia, micropolíticas, objeto de desejo, o intelectual, totalidade,
trabalho, classe e o que eu chamo de “história global”, utilizando a China como exemplo. Apenas
destruindo esse rebaixamento ideológico que o Feminismo Vermelho pode limpar o terreno para
tornar as realidades básicas da exploração das mulheres - como a questão do trabalho - visíveis
para a luta.

A tarefa da teoria cultural e dos estudos culturais.


A tarefa de todos os conhecimentos, da teoria cultural e estudos culturais inclusos, é
transformar a práxis humana - colocá-la em um nível mais complexo. Pelo termo complexo não
quero dizer discursivamente complicado, ou hermeneuticamente sútil. Ao contrário, por
complexo quero dizer a habilidade de responder a formas de produção cada vez mais
complexificadas, mais complicadas e mais avançadas. Deixe-me explicar. Nenhuma ideia por si
só (ou seja, nenhum conhecimento, sistemático ou intuitivo) pode, de nenhuma forma, produzir
mudança ou transformação na história humana. Colocar os estudos culturais como agentes de
mudanças por si só é reinscrever um modelo hegeliano que considera a sociedade como um
movimento de ideias. Esse modelo nada mais é que uma articulação do poder hegemônico dos
intelectuais.
Conhecimento, como todas as ideias, é parte das séries superestruturais; é sempre uma
resposta aos desenvolvimentos no modo de produção. Marx vai tão longe ao teorizar tal teoria
materialista do conhecimento que escreve, em seu prefácio de Contribuição à crítica da
economia política: “portanto, a raça humana sempre se coloca apenas tarefas que a mesma pode
responder, já que ao olhar para a questão mais profundamente, sempre se descobrirá que a tarefa
em si surge apenas quando as condições materiais para sua solução já existem ou estão pelo
menos em processo de formação " (Marx, 1970, 21). Em outras palavras, qualquer tarefa que um
conhecimento em particular, seja física ou os estudos culturais, define para si é uma tarefa que é
exigida pelo desenvolvimento das relações materiais na cultura. Conforme as relações materiais
tornam-se mais complexas, os conhecimentos tornam-se mais complexos. Entretanto, em cada
sociedade existe uma lacuna entre os desenvolvimentos possibilitados pelas forças de produção e
o modo como a riqueza produzida por elas são distribuídas. Essa distribuição ou essa relação de
propriedade sempre ficam atrás do desenvolvimento das forças de produção. O papel dos
conhecimentos progressistas ou transformadores, no caso dos estudos culturais, é desmistificar as
relações sociais sedimentadas de produção e a forma como essas estão alavancando o avanço das
formas de produção. Para ser mais específica, o papel dos estudos culturais é ser um agente
transformador examinando e, mais importante ainda, explicando, por meio de análise teórica, as
relações sociais de produção, e como elas tornaram-se um obstáculo à promoção das forças de
produção e a capacidade da sociedade de atender às necessidades humanas.
Por exemplo, atualmente nos Estados Unidos, devido ao desenvolvimento das forças de
produção, é possível prover um sistema de saúde universal para cada criança, mulher e homem
no país. Em outras palavras, as forças de produção produziram um sistema complexo de
atendimento à saúde que é capaz de atender as necessidades do povo. Entretanto, a existência de
relações sociais de produção, baseadas na desigualdade de classes - ou seja, a prioridade do lucro
sobre a necessidade - torna a viabilidade de um sistema de saúde universal impossível. Empresas
de seguro e farmacêuticas, junto de outros comerciantes da saúde, são autorizados, de acordo
com as relações sociais de produção, de lucrar. Assim, enquanto esse conjunto de relações
sociais dominar a cultura, a distribuição universal e equitativa do sistema de saúde é impossível,
e milhões de pessoas ficarão sem assistência à saúde nos Estados Unidos.
O papel transformador dos estudos culturais, que eu chamo de “Red Cultural Studies”
(veja Ebert, 1996, 2001, 2003) é prover uma análise teórica concreta e sustentada do
funcionamento da relação entre as relações sociais e as forças de produção (neste caso, entre as
práticas e ideologias atuais da indústria da saúde e suas capacidades socioeconômicas e
tecnológicas) para produzir uma consciência teórica integrada em pessoas para que possam
compreender inteiramente as contradições nas quais vivem: as contradições, por exemplo, que
enquanto a assistência gratuita à saúde é potencialmente possível nos Estados Unidos, a maior
parte das pessoas tem acesso limitado, ou não possuem sequer acesso a esse sistema. Os Estudos
Culturais Vermelhos irão explicar o porquê dessa condição, e ao explicar, argumentam, neste
caso, por exemplo, pelo direito a um corpo saudável e a cuidados de saúde dignos como um
direito fundamental da cidadania e, através de tal argumento, tornam o cidadão em um agente
ativo da história (transformando a consciência teórica em consciência de classe), aquele que
trabalha para diferentes arranjos sociais - diferentes das condições sociais existentes.

Mobilizando uma agência contra hegemônica.


Qualquer mobilização de agência contra hegemônica demanda primeiro teorizar o termo
"agência" em si. Acho que existe uma tendência na teoria cultural contemporânea em teorizar
agência em uma concepção idealista que, de forma curiosa, é então situada na especificidade
situacional das ações. Em outras palavras, a teoria cultural contemporânea defende que todas as
ações efetivas tem uma forte dimensão local - às vezes, até clama que sua localidade é uma
forma de materialidade. Entretanto, enquanto localiza o sujeito, o teoriza de forma a-histórica - o
que considero idealista. De alguma forma acredita que o sujeito, pelo poder absoluto da
experiência espontânea, pode se sobrepor a “práxis humana”. Na verdade, a base da coalizão é
esse idealista, mas situado, sujeito: um sujeito que pode entrar em negociação (prática
discursiva) com outros sujeitos e de modo colaborativo, trazer mudanças. Mudança aqui é
sempre um sinônimo para reforma. Essa noção de agência - local, discursiva, coalizicionista - é
altamente defendida por políticas identitárias.
Deixe-me explicar com outras palavras: a teoria cultural contemporânea evita a questão
de classe - que é o único local de agência histórica. Ela faz isso primeiro pontuando classe como
uma análise ultrapassada e depois propõe, como uma visão atual, o sujeito de coalizão situado na
política identitária. Nós, entretanto, findamos com uma série de sujeitos: o sujeito feminista, um
americano afro-descendente, um sujeito latino, um sujeito queer. Esses sujeitos fragmentados -
celebrados em Deleuze e Guattari e seus seguidores como sujeitos nômades - são todos, em
minha visão, mascarados como sujeitos de agência. Acredito que uma noção produtiva de
agência precisa criticar todas as noções pós-estruturalistas de agência as quais, na análise final,
substituem práticas comportamentais (moldadas pelas políticas identitárias) por classe e
reconhecem esse estilo de vida de classe como eixo principal da práxis humana. Obviamente,
neste ponto eu serei criticada por mal interpretar a teoria pós-estruturalista ou serei considerada
indiferente à situação dos marginalizados ou inconsciente de que a classe não é o único local de
agência histórica - que gênero, sexualidade, raça são igualmente importantes.
Não estou de maneira alguma rejeitando sexualidade, gênero ou raça como locais de luta,
mas não os considero espaços autônomos. Sexualidade torna-se um marcador de diferença social
apenas na sociedade de classes. Raça é o local histórico do racismo sob o capitalismo, onde o
trabalho barato do escravo, o colonizado e o imigrante etnicamente/racialmente diferente, são os
sustentáculos da taxa de lucro. Em outras palavras, apesar de gênero, raça e sexualidade serem de
fato espaços de agência histórica e locais de luta social, todos tornaram-se isso justamente pelas
divisões do trabalho e das relações de sociedade (classe). Portanto, em um mundo penetrado
pelo capital o único agente histórico é o outro do capital - o trabalhador assalariado. Qualquer
agência contra hegemônica ou práxis humana que não se centra junto dessa contradição e esse
antagonismo de classe, irá produzir agências históricas mascaradas que pode fazer com que a
classe média alta intelectual sinta-se empoderada e ativa, porém, irá deixar as práticas sociais
existentes intactas. Sendo clara, o caminho para a transformação social não passa pela coalizão -
é firmemente centrado na revolução.

Políticas identitárias vs Materialismo Histórico


Políticas identitárias são a última formação do sujeito sob o capitalismo. No geral,
provide a classe administrativa (como passou a ser chamada pela sociologia burguesa) com uma
maneira de compreender a si mesma completamente deslocada do fator de classe - ou seja
perpassa classe, a compreende de uma forma neo-Weberiana, como oportunidades de vida em
relação ao mercado. A classe administrativa (que na verdade é uma fração de classe) implanta
políticas identitárias para se definir de uma forma idealista que não pressiona ou ameaça as
relações sociais de trabalho existentes. Mesmo quando a questão do trabalho não pode ser
evitada, por exemplo, nas discussões do feminismo e das lutas anti-racistas - tomando duas
formas proeminentes de política de identidade - o trabalho torna-se principalmente uma questão
de empregos e empregatícia, ou seja, de renda (por exemplo, "igualdade salarial”). Mas, como
demonstrou a teoria marxista, a renda, por si só, não determina a relação do sujeito do trabalho
com as estruturas conflitantes do trabalho. A renda, para ser mais precisa, pode ser proveniente
do lucro ou do "salário". Faz uma diferença radical se a renda provém do lucro (isto é, o
resultado do trabalho excedente do outro) ou dos salários (o efeito da venda da força de
trabalho).
Quando a questão do trabalho abordada pelo feminismo ou anti-racismo, em grande
parte, foi reduzida a questão de como aumentar a renda do sujeito - até mesmo a questão do
trabalho doméstico foi amplamente entendida em termos de "trabalho não remunerado" e renda
para o trabalho doméstico. Raramente o feminismo ou o anti-racismo lutaram contra as relações
de trabalho existentes baseadas na hegemonia do capital. As poucas exceções a isso foram
aquelas feministas materialistas históricas e anti-racistas que se engajaram nas construções
históricas de gênero, raça e sexualidade por meio da divisão do trabalho. Mas esse trabalho,
especialmente no feminismo das décadas de 1970 e 1980, foi em grande parte interrompido pela
ascensão hegemônica do pós-estruturalismo e das políticas identitárias.
Na verdade, a política identitária é o espaço no qual o sujeito adquire um lugar nas
relações sociais ao contornar as questões fundamentais do trabalho - as questões, em suma, do
lugar do sujeito em relação à propriedade dos meios de produção. A "diferença" é adquirida na
política de identidade ao essencialmente naturalizar as divisões sociais do trabalho. A relação
entre raça, classe e gênero é obviamente contestada. Chegamos a teorias sociais radicalmente
diferentes pela maneira como relacionamos esses termos uns com os outros. Como forma de
compreender isso, vincular e interligar, arriscarei uma simplificação assumindo que há dois
modos de compreender essas relações complexas.
O modo pós-estruturalista concede autonomia ou, pelo menos, semi-autonomia a cada
uma dessas categorias. Nessa visão, raça, gênero e sexualidade têm uma lógica intrínseca
própria, intratável em qualquer lógica. E a relação que eles têm entre si, para usar o termo de
Althusser, é "sobredeterminada". Em outras palavras, de acordo com essa visão, não se pode
chegar ao conhecimento da sexualidade por meio da raça, nem compreender o gênero por meio
da classe, etc., sem que seja exercida uma violência excessiva aos termos separados. Tal teoria
gerou vários livros que tratam da lógica interna e das estratégias imanentes pelas quais a
sexualidade, a raça ou o gênero são articulados. Outra maneira de colocar essa questão é que,
nesse paradigma, a questão principal é como gênero e raça, por exemplo, funcionam, o que, com
efeito, torna secundária a macrologia dessas relações - as questões que permeiam o por que
gênero funciona da maneira que funciona costumam ser bastante marginais.
A outra teoria, o materialismo histórico, substitui esta teoria da autonomia e argumenta a
favor de relacionar as várias categorias a cada outra, não por lógicas separadas e múltiplas de
raça, gênero e sexualidade, etc, mas por meio da lógica única e inclusiva da força de trabalho e
capital. A maioria das feministas, anti-racistas e teóricos queer foram rápidos em rejeitar a teoria
materialista, dizendo que a lógica do trabalho não pode explicar o desejo na sexualidade, a
opressão no racismo e a desigualdade nas relações de gênero. Entretanto, gênero, sexualidade e
raça transformam-se em diferenças sociais unicamente quando viram parte da divisão social do
trabalho, e cada um tem um caminho diferente e longo dentro da divisão social do trabalho e
uma significante diferença social.
Racismo, ao contrário da teoria foucaultiana, não é simplesmente uma questão de
relações de poder assimétricas; tampouco são gênero e sexualidade. A homofobia não é
simplesmente opressão - o exercício do poder de heterossexuais sobre homossexuais. O ataque à
comunidade gay é a articulação de uma violência, isto é, o efeito do poder, mas não pode ser
compreendido em termos de poder sem inquirir em uma genealogia do poder. Contrariando a
teoria pós-estruturalista, o poder não é o efeito do discurso nem simplesmente é a condição
iminente de todas as relações. Poder é a manifestação social e política da propriedade dos meios
de produção. Em outras palavras, poder é sempre gerado no ponto da produção, e seus efeitos
também deveriam ser examinados em relação às relações de produção. Racismo, em outras
palavras, não é simplesmente opressão (o exercício do poder de brancos sobre negros);
machismo não é simplesmente opressão (o exercicio de homens sobre mulheres). É verdade que
racismo, machismo e homofobia são experienciados pelo sujeito (por exemplo, americanos afro-
descendentes, mulheres, lésbicas) como efeitos da opressão e poder. Se limitarmos nossa
investigação a este nível experiencial, acabaremos simplesmente com etnografias de poder, que
penso que seriam de uso muito limitado. Se, entretanto, formos além de considerar racismo,
machismo e homofobia como simples efeitos de poder para entender como o poder é derivado da
propriedade dos meios de produção, então seremos capazes de teorizar as relações de classe,
gênero, raça e sexualidade de uma maneira mais historicizada e materialista. Nesta visão,
sexismo, racismo e homofobia não são exatamente exemplos de opressão, mas casos de
exploração. Essa é outra maneira de dizer que uma teoria pós-estruturalista do social como o
local de práticas de multiopressão não levará a uma compreensão produtiva das relações entre
classe, gênero, raça e sexualidade. O modo mais produtivo é colocar as relações de trabalho e
suas consequências - relações de produção - no centro dessa rede complexa e compreender
gênero, sexualidade e raça como fatores produzidos pela divisão histórica do trabalho: isso é,
como contradições produzidas pelo antagonismo fundamental sob o capitalismo - o antagonismo
entre trabalhador assalariado e capital.

As ilusões do modernismo/pós-modernismo
Conceitos como modernismo/pós-modernismo e modernidade/pós-modernidade estão
acima de qualquer lugar de contradição: são termos que foram usados para chegar a um acordo
com a história e as mudanças no capitalismo. Parece-me que, enquanto pensarmos no
capitalismo nestes termos, continuaremos substituindo o que é basicamente um debate discursivo
por uma análise materialista. Modernidade, em outras palavras, é a junção de todas as estratégias
conceituais - desde a ciência, à pintura, à sociologia, à psicanálise - usada pelos sujeitos
modernos para se localizarem nas contradições entre trabalhador assalariado e capital. Não há
estilos (modernistas) isolados do desdobramento histórico do trabalho assalariado e do capital -
do capitalismo laissez faire ao capitalismo monopolista. Separar modernismo e pós-modernismo,
ou pós-modernismo e pós-modernidade, pode dar a ilusão de clarificação conceitual e
localização histórica, mas é eventualmente um comportamento que Marx e Engels chamam em
Ideologia Alemã de “combatendo apenas as frases deste mundo” (1976, 36) - isso é, a política
das frases. As várias formas da pós-modernidade - em Jameson, Lyotard, Butler, Zizek - são
todas contínuas tentativas de entender o capitalismo, todas baseadas em uma espécie de “rumor”
atestando que o capitalismo mudou: que ocorreu uma mudança fundamental na estrutura, uma
“ruptura” no capitalismo exigindo um novo conjunto de categorias conceituais para compreender
o impacto do capitalismo na cultura e na sociedade. Essa visão - que uma mudança estrutural
fundamental no capitalismo exige que abandonemos o modernismo/modernidade - é um tema
recorrente mesmo para escritores como Habermas, que coloca uma segunda modernidade no
lugar da pós-modernidade. Acredito que a questão não se baseia nem no estilo, nem na cultura,
porque ambos o estilo e cultura acabam por ser o resultado do que já designei como a
contradição primária do capitalismo: o conflito entre trabalhador assalariado e o capital. Parece-
me que a teoria cultural contemporânea seria capaz de substituir as categorias desgastadas de
modernidade/pós-modernidade, modernismo/pós-modernismo e seus ensaios em Habermas,
Eagleton, Jameson e Butler voltando à questão principal. E a questão principal é o capitalismo.
Em vez de postular - com base em evidências muito superficiais, como mudanças nos estilos de
gestão, ou aumento no número de pessoas que especulam no mercado financeiro, ou a
emergência de cibertecnologias - que o capitalismo mudou, é necessário retornar a uma questão
básica: no que exatamente o capitalismo mudou? O capitalismo da “modernidade” realmente foi
transformado em outro capitalismo (da pós-modernidade)? Ou o capitalismo permanece no
mesmo regime de exploração - no qual capitalistas extraem mais valia do trabalhador
assalariado? O que mudou não foi esse fator fundamental das relações de propriedade, mas a
forma como a exploração é articulada. Não foi exatamente a exploração que se transformou - e
este é o único índice da estrutura da mudança - mas sim o modo de exploração que mudou. Se
esse simples "fato" for reconhecido, todo o debate sobre modernidade/pós-modernidade,
modernismo/pós-modernismo acabará sendo simplesmente uma política de frases.
Usar os paradigmas da modernidade e da pós-modernidade para chegar a um acordo com
o que é essencialmente o desenrolar da história do capitalismo não é a conceituação mais eficaz
das questões. Dizer, por exemplo, que a China é moderna ou pós-moderna ou as "margens da
modernidade e pós-modernidade" é traduzir a história emergente da China - com toda sua imensa
complexidade, bem como suas relações complexas com a Europa e o resto da Ásia - em um
paradigma hegemônico e imperialista. Definir a China em termos de modernidade/ pós-
modernidade é marginalizar as relações dentro da China e entre a China e o resto da Ásia, senão
com o resto do mundo.
Ao tratar da questão da história e do lugar do humano na história, o fator determinante
não deve ser a modernidade/pós-modernidade, mas sim o que passa pelo moderno e o pós-
moderno e coloca o humano na história densamente estratificada e complexa. Essa relação -
entre o homem e a história - é a relação do trabalho. A questão da situacionalidade da China, a
meu ver, é respondida de maneira muito mais eficaz, não por referência à modernidade-pós-
modernidade, oeste ou leste - todos esses conceitos são notas da história, não exames dela - mas
envolvendo as modalidades de trabalho na China. A China não é marginal, mas exemplar em seu
enredamento com a história do trabalho, e é somente por meio desse enredamento que se pode
olhar para sua relação com o Ocidente. Obviamente, a história do trabalho da China tem
semelhança com a história do trabalho em outras partes do mundo, incluindo a Europa, mas ao
mesmo tempo tem sua própria temporalidade - seus próprios desníveis. Em certo sentido, estou
defendendo a deslocalização das teorias atuais da história e a construção de uma história global:
uma história que é a história de modos de trabalho (modos de produção) e, como tal, o trabalho é
a lógica global da história independentemente da especificidade do lugar no qual essa lógica se
desdobra. Tomo como meu texto aqui os escritos de Marx sobre a Índia, onde ele argumenta por
uma história global e rejeita as devoções liberais sobre o local e o particular. As devoções
liberais mistificam o movimento do trabalho humano e sua formação no capitalismo por
confundir capitalismo e eurocentrismo. Eurocentrismo é apenas uma forma particular do
capitalismo imperialista e deveria ser reconhecido como tal.
Para ver/observar que o socialismo revoga as categorias de modernidade/pós-
modernidade, modernismo/pós-modernismo, é necessário examinar o capitalismo, em suas
formas mais sofisticadas e estratificadas, com as formas disponíveis do socialismo, que são -
dada a historicidade de sua emergência e as condições de sua sobrevivência - não muito
desenvolvidas e sofisticadas. Mas mesmo uma comparação superficial das instituições humanas
básicas (por exemplo, saúde, educação, segurança dos trabalhadores e cuidado infantil) em
países socialistas, como Cuba e China com instituições europeias e americanas semelhantes, irá
indicar como Cuba e China, mesmo dentro de seus recursos escassos, colocaram as necessidades
humanas acima do lucro. Esse fato - ou seja, a relação entre lucro e necessidade e que é
priorizado em uma dada sociedade - é o que define uma sociedade e todas as suas formas
culturais. Se chegarmos a esse nível de labor humano e necessidade humana, então vemos, eu
proponho, o quão irrelevantes se tornarão as categorias de modernidade/pós-modernidade ao
discutir a história humana.

Referencialidade: perdida ou transformada?


O pós-modernismo não se liberta do referente; em vez disso, substitui novos modos e
formas de referência e referencialidade por aquelas noções do referente que perderam sua
utilidade histórica sob o capitalismo. Para ser clara, as teorias tradicionais da relação entre
linguagem e realidade (que têm sido o cerne das noções comuns de referente e referencialidade)
foram baseadas no que poderia ser chamado de relação "fordista" de adequação entre significante
e significado. Essa forma de referencialidade era mais adequada para o capitalismo industrial
nascente, cujas principais características eram a administração Taylorista e a linha de montagem
na produção. Contanto, com a emergência das cibertecnologias - que trouxeram com elas
técnicas de gestão/administração, assim como organização plural e gestão coletiva, substituiu o
local de trabalho flexível pós-Taylorista pela antiga gestão Taylorista e expandiu a força de
trabalho para mulheres, americanos afro-descendentes, latinos e outros grupos marginalizados - o
modo de representação baseado na adequação do significante para significado tornou-se
historicamente irrelevante. Uma das consequências das novas cibertecnologias é a
hipersexualização e pluralização do sinal. O sinal - que no industrialismo fordista trabalhou em
larga escala, principalmente em um único nível - tornou-se repentinamente sujeito para várias
formas de duplicação e auto-referenciação, efeito do que Baudrillard chama de “simulação” e
“simulacra”.
O fato que sinais tornaram-se plurais e as relações entre significante e significado
transformaram-se em relações de transmissores dentro de transmissores não significa que o
referente está perdido. O referente tornou-se plural - ficou mais difícil escolher um único
referente para um único sinal. No lugar de um referente único, uma rede de referentes - que estão
em um relacionamento de ludicidade entre si - formam a base para uma nova teoria de
referencialidade. Como as oclusões dos outros "pós” (pós-fordismo, pós-industrialismo, pós-
classe, etc), acredito que essa referencialidade pós-referencial reduziu a efetividade da linguagem
como arma de intervenção social e tornou-se um objeto de desejo, um local de textualidade
lúdica e jogo significante. Uma nova (não “pós”) forma de referência é necessária. Ao re-obter
um referente mais eficaz socialmente para a linguagem, acho que o referente será re-teorizado;
não tanto pelos trabalhos de Wittgenstein, Austin, Saussure, Derrida, Baudrillard e outros, que
submeteram a linguagem a simplesmente uma crítica epistemológica; mas por meio do trabalho
de linguistas materialistas como Voloshinov. Entretanto, o próprio Voloshinov mostra alguns
lapsos culturalistas, e às vezes, em sua própria compreensão da linguagem. Portanto, acredito
que o modo mais efetivo para se repensar a questão do referente será pelo Capital,
especificamente pelo capítulo 10 do volume I, no qual Marx explica o trabalho do labor na
jornada de trabalho. Brevemente, a discussão da jornada de trabalho diária provide um quadro
bem efetivo ao estabelecer a teoria da referência na qual a linguagem é mais uma vez colocada
numa relação de materialidade para história na forma de trabalho. A nova teoria da referência
será baseada em uma teoria da linguagem do trabalho.

Duas noções de teoria


Vejo duas noções de teorias contestatórias no momento. Uma - que chamo de “teoria
lúdica”, que é a teoria enquanto um jogo - considera que a teoria é essencialmente um conjunto
de estratégias de textualização, estratégias que irão demonstrar, por meio de uma retórica
meticulosa, como conceitos que deveriam assegurar sentido e dar-lhe estabilidade, são de fato
tropos vacilantes, errantes. Como Paul de Man afirma em Alegorias da leitura, todos os
conceitos são uma espécie de escrita. Ele vai além ao indicar em seu The Resistance to Theory e
A Ideologia da Estética que textualizar é por si só a forma mais material de teorizar. Essa noção
lúdica da teoria - teoria como textualização e retextualização como forma de resistência contra o
encerramento - é, claramente, a forma mais rigorosa de desconstruir a ideia da teoria como uma
prática positivista (teoria como uma formulação máxima que irá prever e explicar o fenômeno
em questão).
O que desafia a teoria como textualização (teoria lúdica) é uma teoria materialista.
Entretanto, a própria noção de materialismo é por si só uma categoria contestada teoricamente
por muitos pós-estruturalistas da segunda geração, como Judith Butler e até Slavoj Zizek, para o
qual materialismo é uma resistência ao conceito: o local de proliferação de significado - um jogo
excessivo de significação que não pode ser contaminado em nenhuma interpretação singular.
Existe, claramente, uma imensa diferença entre Zizek, que postula o material (por meio de uma
retransmissão dos textos de Lacan) como o "trauma do real" (1989) e Butler, que propõe o corpo
e sua "citacionalidade" - o "performativo" (1993) - como o lugar da significação incessante .
Apesar dessas diferenças específicas sobre onde situam o excesso significativo, todos eles
colocam a materialidade como uma oposição à conceitualidade hegeliana. Essa noção lúdica de
materialidade, creio, é ela própria uma reescrita do idealismo - fundamentalmente, todas essas
variações lêem o material em termos de alguma forma de discurso (significado). A própria
Butler, assim como Zizek e inúmeros teóricos que, seguindo Raymond Williams, se
autodenominam materialistas culturais, tentaram minimizar esse idealismo, mas seus esforços
levaram (especialmente no trabalho de materialistas culturais) ao que chamei, em vários escritos
de "materiaismo". Em outras palavras, na tentativa de evitar o idealismo, eles voltaram à uma
noção feuerbachiana sobre materialismo que confunde a matéria inerte com materialidade.
Em uma compreensão materialista histórica da teoria, a teoria não é somente um meta
discurso para ser aplicado; a teoria é, na verdade, uma compreensão histórica das práticas
sociais em seu complexo inter-relacionamento. Em outras palavras, a teoria é uma compreensão
da totalidade social de um modo materialista. É claro, o “materialismo” do materialismo
histórico é fundamentalmente diferente da noção Maniana de materialismo, assim como a
butleriana, zizekiana e visões culturalistas. Em uma compreensão materialista histórica da teoria,
o materialismo é a estrutura do trabalho humano em suas relações com a natureza e, portanto,
com a totalidade social. Em outras palavras, o materialismo aqui não é resistência à
conceitualidade nem é matéria inerte; em vez disso, é a estrutura dos conflitos nas relações
humanas de trabalho. As dificuldades, portanto, em "traduzir", "importar" e "exportar" a teoria,
como tentei indicar ao longo do texto, acabam por ser problemas de labor. A razão pela qual
traduções de teorias tornam-se um problema, e sua importação de uma cultura para outra cria
dilemas, é porque as teorias em questão são fórmulas idealistas, e a característica de tais
formulações idealistas é estar sempre em conflito com seus discursos hospedeiros. No entanto, se
a teoria é concebida de forma materialista histórica, ela está sempre apreendendo as totalidades
sociais na história e no trabalho, e história e trabalho estão sempre ligados ao que chamo de
história global. Isso significa que a teoria está complexamente conectada a diversas culturas que
estão ligadas à história global por meio da estrutura de suas práticas de trabalho - tais conexões
materiais tornam o tropo de tradução, importação e exportação de muito menor significado.

Para além do “fim da ideologia”


Na teoria social pós-moderna, especialmente no trabalho de Ernesto Laclau e de Chantal
Mouffe, a ideologia é vista como se estivesse passando por uma “ruptura”. Em seus escritos,
Laclau e Mouffe, por meio de uma aliança bem consolidada com Lacan e Althusser, suprimiram
a teoria materialista da ideologia articulada em A Ideologia Alemã por Marx e Engels, e mais
enfaticamente reiterada no próprio O Capital de Marx. Na tentativa de dramatizar a ruptura eles
reduziram a teoria marxista clássica de ideologia a uma simples “falsa consciência" e com grande
fanfarra representaram as visões althusserianas e pós-althusserianas como feitos conceituais
inovadores. A ideologia, após essa “ruptura” tornou-se uma representação generalizada da qual
ninguém pode escapar e na qual todos estão condenados a viver seu ser social. Uma das
consequências dessa noção de ideologia, obviamente, foi o apagamento da clareza rígida dos
antagonismos de classe e quaisquer outras binaridades (como verdadeiro/falso,
poderoso/impotente; explorador/emancipatório). Esse paradoxo - que em um mundo no qual
ideologia é um dos eixos de identidade e processos sociais, intelectuais declararam que a mesma
acabou - é causado pelo fato que o regime das relações sociais de produção, que a teoria marxista
explicou por meio do conceito de ideologia, não somente não acabou, mas intensificou seu
domínio sobre o sujeito. A maneira mais eficaz de desembaraçar o impasse contemporâneo sobre
a ideologia é re-compreender a teoria materialista sobre ideologia.
A ideologia possui um significado muito específico e materialista na tradição marxista,
especialmente no Capital de Marx (no qual, curiosamente, tornou-se comum falar que a noção de
ideologia foi abandonada por Marx). Em vários capítulos de O Capital (especialmente nos
capítulos 1, 6, 9, 10, 11 e 12), Marx explica o processo pelo qual o trabalhador troca seu/sua
força de trabalho por um salário. No capítulo dez, ele explica o preciso mecanismo da jornada
de trabalho, durante o qual o trabalhador produz o equivalente ao seu salário e também a mão-
de-obra excedente. No capítulo seis, ele teoriza a diferença entre trabalho e força de trabalho e
conclui que força de trabalho é aquela "mercadoria particular cujo valor de uso possui a
propriedade peculiar de ser uma fonte de valor, cujo consumo real é, portanto, ele mesmo e a
objetificação do trabalho, portanto, uma criação de valor "(1977, 270). A troca, ele conclui, entre
o capitalista e o trabalhador é uma troca de força de trabalho por salários. Essa troca é
representada na teoria burguesa como livre, sem restrições e proporcional. Na realidade, ao fim
do capítulo seis, Marx faz questão de pensar nessa visão de "livre comércio vulgaris" sobre a
troca de salários pelo poder de trabalho; ele conclui que é tudo menos uma troca igualitária -
deixa o trabalhador, Marx pontua, “como alguém que trouxe sua própria pele para o mercado e
agora não tem mais nada a esperar além de - um bronzeamento” (1977, 280).
O conceito materialista histórico da dialética procura considerar as representações dessa
troca como uma troca igualitária e justa. Isso, quero enfatizar, é o cerne da teoria materialista da
ideologia: como a relação entre o trabalhador assalariado e capital é representada como livre e
igualitária quando é tudo menos isso (é um “bronzeamento”). A falsa consciência (o ponto
crítico das teorias pós-modernas sobre ideologia) é um “conceito de luta” (adotando o termo de
Maria Mies) pelo qual uma compreensão materialista marca a consciência de que essa troca é
uma troca entre iguais e conduzida pela liberdade. É uma falsa consciência, porque é vista como
livre coagida, quando na verdade, como o próprio Marx argumenta, essa troca acontece diante de
“a compulsão silenciosa das relações econômicas” - uma compulsão que “sela o acordo do
domínio do capitalista sobre o trabalhador” (Marx, 1977, 899). A falsa consciência é a
consciência que não reconhece a compulsão das relações econômicas como livres e, portanto,
aceita a troca de salários por força de trabalho como iguais.
Uma rápida investigação nas teorias pós-althusserianas sobre ideologia deixará claro que,
longe de serem teorias pioneiras, a noção pós-moderna de ideologia é simplesmente um
apagamento da teoria materialista da ideologia e uma marginalização do papel do trabalho. Por
fim, essencialmente legitima a relação entre o trabalhador assalariado e o capital. Ao dizer que,
como as teorias pós-modernas sobre ideologia afirmam frequentemente, não há espaço fora da
ideologia é afirmar que é impossível marcar qualquer relação como uma relação de desigualdade.
Por que afirmar que a troca de salários por força de trabalho é desigual, de acordo com a teoria
pós moderna, é estabelecer uma relação verdadeira (ou seja, “igual”). Isso é errado de acordo
com a teoria pós-moderna, porque estabelece uma binaridade na qual uma relação real domina
uma relação falsa. Mas isso é exatamente o que acontece sob o capitalismo. A relação entre
trabalho pago e capital é uma relação desigual, e dizer simplesmente que chamar atenção à
desigualdade é cair um uma binaridade é substituir a epistemologia por justiça social. Ideologia
não é epistemologia: tentar tornar a ideologia parte da epistemologia e assim desconstruí-la por
meio de uma manobra na qual certo e errado, correto e incorreto, verdadeiro e falso são
colocados um contra o outro é simplesmente legitimar relações capitalistas. A crise a qual
estamos testemunhando hoje diante da teoria da ideologia é a crise dessa legitimação de uma
relação injusta no discurso de intelectuais que, em suas teorias formais, declaram-se
anticapitalistas e amigos do povo.

No silêncio das micropolíticas

A emergência das micropolíticas marca o impacto da globalização da produção


capitalista e a maneira pela qual as dimensões dessa realidade objetiva tornaram-se menos e
menos compreensíveis por um sujeito que, por meio do trabalho da ideologia, foi remapeado
como sujeito de desejo. O sujeito de desejo é, por sua própria formação, um sujeito local e
localista. Este sujeito desejante apreende o mundo por meio de sua identidade e constrói,
igualmente, essa identidade por meio de satisfações que adquire em suas relações de consumo
com o mundo ao seu redor. Micropolítica é a política de consumo, e consumo é sempre uma
questão de localidades. A micropolítica não possui uma relação inversa com a realidade objetiva
universal, mas ao contrário, é complementar à ela: preocupa o sujeito com o aqui e agora e, ao
fazê-lo, desvia sua atenção da realidade objetiva abrangente que de fato determina o aqui e
agora. O capitalismo avançado implanta a micropolítica para restringir o acesso do sujeito à
dinâmica do capital itinerante e sua extensão de exploração. É irônico, claro, que a micropolítica
seja vista como uma política capacitadora - uma política que atende às conexões e relações do
sujeito com suas condições imediatas e se separa como base para coalizões e outras práticas
locais. Na verdade, a micropolítica tornou-se a lógica do ativismo nos novos movimentos sociais.
Em outras palavras: micropolítica é a política que evita a classe e coloca em seu lugar estilo de
vida e consumo. É uma política que apaga qualquer investigação das estruturas de exploração,
substituindo a instauração de estudos etnográficos do comportamento do sujeito nessas relações
de consumo múltiplas.

Essencialismo e teoria cultural contemporânea


O movimento para colocar o essencialismo e o antiessencialismo no centro da teoria
contemporânea é semelhante ao movimento que descrevi em minha discussão sobre ideologia. É
um movimento para traduzir a luta social e sua compreensão materialista em epistemologia. A
objeção de Gayatri Spivak não é tanto uma objeção se alguém deveria, de acordo com Laclau e
Mouffe, ser sempre antiessencialista, mas uma objeção à própria lógica de tal posição. Traduzir a
luta social - que é sempre sobre trabalho excedente - em epistemologia é reiterar um movimento
hegeliano, no centro do qual está a explicação da história por ideias e não pelo trabalho.
Portanto, qualquer teoria materialista que insiste na primazia do trabalho sobre as ideias, a
primazia do materialismo sobre o espectralismo, está fadada a ser vista pela teoria pós-moderna
como essencialista. Parece, portanto, que para ser essencialista é necessário acreditar que uma
teoria cultural deve estar enraizada, em última instância, em dar sentido ao trabalho humano.
Não estou afirmando, obviamente, que a teoria cultural deveria terminar aqui. Estou dizendo que
a teoria cultural deve sempre atender a essa prática humana fundamental, que é a prática de
transformar o mundo pelo trabalho. A teoria cultural explica a forma como essa prática é
mediada por inúmeras séries culturais. Insistir que tal contabilidade deve sempre ser anti
essencialista - isto é, sempre lidar apenas com práticas situacionistas específicas - é reificar as
micropolíticas e, como eu já descrevi com frequência, cortar a relação entre as micropolíticas e
sua lógica global subjacente de produção. Em outras palavras, o debate pós-moderno sobre
essencialismo/anti essencialismo é um debate que eventualmente mira na separação entre o local
e o global colocando o global como uma abstração essencialista. Isso confunde as linhas de
classe e coloca no lugar da própria classe uma série de fragmentadas, quase autônomas,
identidades (raça, gênero, sexualidade) - marginaliza a solidariedade humana, que é baseada em
práticas coletivas de trabalho.

O papel do intelectual práticas políticas contemporâneas


A genealogia do novo intelectual começa com a afirmação de Foucault em sua entrevista
“Verdade e Poder”, onde ele contesta a noção do intelectual universal com a ideia do intelectual
específico. O intelectual específico, em contraste com o intelectual universal, é aquele que
sempre trabalha no nível micro e produz conhecimentos específicos. Ele não sofre com a ilusão
de grandes narrativas, como a emancipação humana. Para Foucault, é antiético realizar feitos tão
grandiosos quando se pode engajar problemas específicos em contextos específicos. Em sua
conversa com Gilles Deleuze, Foucault elabora sua ideia sobre o intelectual e a prática
intelectual ao afirmar que a função de um intelectual é essencialmente possibilitar que o
oprimido encontre sua voz e possa falar por si mesmo.
A noção do intelectual específico submeteu inúmeras redescrições na teoria
contemporânea, e uma das mais famosas é a ideia do novo “intelectual público”. Por intelectual
público entende-se aquela pessoa capaz de conectar a lacuna entre o conhecimento disciplinar
acadêmico e conhecimento do grande público. Foucault, assim como teóricos contemporâneos,
que em resposta a ele, focaram no intelectual público, são, obviamente, influenciados por
Gramsci e sua noção do papel do intelectual. Parece-me que a questão sobre o que constitui o
intelectual não é simplesmente uma questão de fixar uma identidade ou prescrever um conjunto
de tarefas (como fazem Foucault, Gramsci e teóricos contemporâneos). O papel do intelectual,
acredito, é mais claramente marcado pela tradição marxista em que o intelectual -
independentemente da afiliação do saber, expertise disciplinar, conexões institucionais e
profissão - é aquele que sempre produz uma consciência teórica. Por consciência teórica, tenho
em mente Lênin e a ampla paráfrase de Lênin em Lukács. Lenin considera esta função - a
produção de consciência teórica - tão importante que ele escreve que “sem teoria não pode haver
movimento revolucionário. Essa ideia não pode ser insistida com muita força em uma época em
que a tendência do oportunismo anda de mãos dadas com uma paixão pelas formas mais restritas
de atividade prática” (O que fazer?). Lênin chega a eliminar a diferença entre o trabalhador e o
chamado intelectual. Em certo sentido, ele argumenta que o trabalhador é um intelectual. Aqui, é
claro, Gramsci ecoa Lenin quando fala sobre o papel do senso comum e dos filósofos. Gostaria
de citar aqui a declaração de Lenin em O que fazer?, porque vai além dos limites da teoria
contemporânea e esclarece a relação do intelectual e da sociedade, do intelectual e do
proletariado, e lança mais luz sobre a questão da própria teoria. Lenin escreve que:

Isso não significa, é claro, que os trabalhadores não possuem um papel na criação de uma ideologia
[socialista]. Eles participam, entretanto, não como trabalhadores, mas como teóricos socialistas, como
Proudhon e Weitling; em outras palavras, eles participam somente quando podem e na medida em que
podem, mais ou menos, para adquirir o conhecimento de sua época e desenvolver esse conhecimento.
Mas para que homens [e mulheres] trabalhadoras possam ter sucesso nisso com mais freqüência, todos os
esforços devem ser feitos para elevar o nível de consciência dos trabalhadores em geral; é necessário que
os trabalhadores não se limitem aos limites artificialmente restritos da "literatura para trabalhadores", mas
que aprendam em um grau crescente a ampliar a literatura geral [ou seja, a teoria]. Seria ainda mais
verdadeiro dizer "não se confinem", em vez de "não confinem a si mesmos", porque os próprios
trabalhadores desejam ler e ler tudo o que está escrito para a intelectualidade e apenas alguns (maus)
intelectuais acreditam que isso. é suficiente "para os trabalhadores" ouvirem algumas coisas sobre as
condições da fábrica e repetir continuamente o que se sabe há muito tempo. (1988, 107)

Como feminista, minha convocação ao conceito de intelectual de Lenin pode paracer


muito contraproducente, dado o grande antagonismo entre feminismo e Lenin. Portanto,
considero extremamente necessário um momento para abordar a relação entre feministas,
teóricas sexuais e Lenin. Atualmente, é um clichê entre feministas e teóricas sexuais considerar
Lenin um dos grandes dos opressores patriarcais. Esse desdém antagônico comum por Lenin
vem, creio eu, tanto da demonização generalizada de Lenin na ideologia burguesa quanto de uma
leitura errônea de Lênin muito básica e amplamente difundida por feministas - mais
notavelmente de duas de suas cartas a Inessa Armand (Lênin, 1974). Essas cartas são comumente
tomadas como prova da indiferença patriarcal e puritana opressora de Lenin pelas preocupações
e sexualidade das mulheres: especificamente a questão da "liberdade afetiva" e sua supressão
direta do trabalho intelectual feminista - o panfleto proposto por Armand para mulheres
proletárias sobre amor, casamento e o família. Mas essa leitura de Lênin é bastante a-histórica -
ela ignora a real situação histórica da obra de Armand e dos escritos de Lenin - e ignora o
apagamento fundamental da classe e o viés burguês no próprio feminismo. Lenin está levantando
aqui a questão básica de classe que feministas e teóricas sexuais, em quase todas as suas formas,
suprimiram em grande parte - o que Lenin chama de "lógica objetiva das relações de classe nos
assuntos de amor" (1974, 39) em oposição a "compreender" subjetivamente o “amor "e a
sexualidade como Armand e a maioria das feministas propõem. Lenin critica a noção de
"liberdade afetiva" enumerando uma série de entendimentos materialistas do conceito contra as
noções burguesas predominantes nas "classes proeminentes" (1974, 38-39). Ele então argumenta
que será a ideologia burguesa dominante que prevalecerá, resultando em interpretações errôneas
do argumento de Armand. Em suma, ele não está suprimindo o projeto de Armand, mas sim
apoiando-o criticamente e, por meio de uma pedagogia paciente, tentando ajudar Armand a
proteger seu projeto da realidade de distorções burguesas que vão "arrancar dele frases ... [para]
mal interpretar você" (1974, 42) - isto é, interpretar mal as distinções de classe e realidades de
classe objetivas das condições da sexualidade, bem como interpretar mal as necessidades
materiais das mulheres proletárias para uma sexualidade livre de restrições materiais, em
oposição às demandas burguesas para o exercício de desejo livre de restrições morais. Esta é uma
distinção que continua a ser perdida nas teóricas feministas e sexuais hoje, e o antagonismo
contínuo em relação à paciente, mas crítica, pedagogia de Lenin, diz muito mais sobre a própria
incapacidade das intelectuais feministas de engajar a crítica e os limites de classe de suas
próprias. compreensão do que sobre Lenin.

Pragmatismo, totalização, totalidade


A questão da totalidade, hoje, ou é rejeitada em nome do pragmatismo ou transformada
em uma noção de totalização. Para muitos, a totalização não é o problema - ela é vista como um
aspecto inevitável da teoria. O que importa são os propósitos para que a totalização sirva. Mas se
tivermos de avaliar a totalização considerando puramente suas consequências ("os propósitos a
que foi feita para servir"), praticaremos o pragmatismo e suas várias narrativas de que a verdade
é o que funciona. Se aceitarmos tal definição operacional de verdade, então se tornará ainda mais
difícil argumentar por uma sociedade pós-capitalista que seria inclusiva em seus acessos
econômicos e suas liberdades políticas e culturais. Em outras palavras, uma abordagem
pragmatista da verdade - que eu vejo como basicamente por trás da proposição de que a
totalização deve ser julgada por suas consequências - retornará ao que descrevi em minha
discussão sobre ideologia como um não reconhecimento da relação entre trabalho e capital. Uma
abordagem pragmática teria que dizer que tal relação é aceitável e verdadeira porque, no nível
prático, funciona. Parece-me que qualquer teorização da totalização deve ser muito crítica a esse
pragmatismo e suas várias versões na teoria pós-moderna. A versão de pragmatismo que acabei
de parafrasear foi desenvolvida mais notavelmente por Richard Rorty. Mas em seu Just Gaming
e Diferendo Lyotard também apresenta uma versão da teoria social pragmatista. A teoria social
de Lyotard toma como ponto de partida sua declaração final em A condição pós-moderna:
"Vamos travar uma guerra contra a totalidade; vamos ser testemunhas do inapresentável" (1984-
82). A teoria social de anti-totalidade Lyotardiana eventualmente leva a uma noção de
julgamento indeterminado, que não é baseada em nenhum fundamento da verdade. Essa teoria
Lyotardiana torna-se o paradigma da jurisprudência pós-moderna em que a justiça é separada da
verdade porque a verdade é, por definição, uma totalização e a justiça deve atender ao
"diferendo" - o "inapresentável" e o intraduzível.
Em contraste à um pragmatismo anti-totalidade Rortyiano e um “diferendo” Lyotardiano
(julgamento sem verdade), acredito que uma forma mais produtiva de lidar com a totalidade é
voltar à Lukács - um Lukács cujo idealismo hegeliano deve-se ter muito cuidado. Lukács
argumenta em História e consciência de classe: Estudos sobre a dialética marxista que o
pensamento burguês é por sua própria constituição destotalizado e destotalizante: é um um modo
fragmentário do saber. Ele chama essa consciência fragmentada, de forma bastante idealista, de
“falsa consciência”. Entretanto, meu ponto aqui não é criticar o modo que Lukács teoria falsa
consciência, mas ao invés disso, focar no que ele propõe como o outro pensamento burguês:
"análise concreta”, que significa “a relação com a sociedade como um todo” (1983, 51). A
totalidade está longe de ser uma abstração que ignora diferenças específicas (que é, afinal de
contas, como o pós-modernismo enxerga a totalidade) - é um reconhecimento concreto das
diversas relações que produzem o social. Entretanto, como Lukács insiste e, claro, como o
próprio Marx indicou em sua `'introdução" à Grundrisse, o concreto da totalidade não é idêntico
com o empírico e com o individual; esse é o concreto que “é a concentração de diversas
determinações, portanto, uma unidade do diverso" (1993, 101). Para Lukács, é somente ao
chegar ao conhecimento da sociedade como um todo que "se torna possível inferir os
pensamentos e sentimentos que os homens teriam em uma determinada situação se fossem
capazes de avaliá-la e os interesses dela decorrentes em seu impacto. na ação imediata e em toda
a estrutura da sociedade " (1983, 51).
Se o propósito da teoria cultural é chegar a um acordo não apenas com as estruturas das
relações culturais, mas também com os "pensamentos e sentimentos", ela precisa superar sua
relutância pós-moderna e teorizar rigorosamente a totalidade que de fato abrange e informa em
particular. Longe de ser o monstro-mestre que é feito para ser na teoria contemporânea, totalizar
é uma apreensão histórica do concreto em suas relações divergentes: é uma reinscrição dialética
do abstrato e do concreto, do local e do global, do particular e do geral.
É essa apreensão histórica do concreto do trabalho que fundamenta o Feminismo
Vermelho.

Referências
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