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UNIDADE 3

TÓPICO 1

O DEBATE SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE

1 INTRODUÇÃO
O espaço do debate sobre gênero e sexualidade na educação exige o
reconhecimento dos aspectos biológicos e culturais da questão de gênero e
sexualidade, bem como a compreensão das identidades de gênero presentes em
nossa sociedade e, por consequência, na escola.

Inicialmente, lembremo-nos das formas como a questão de gênero


se expressa no contexto da escola. De forma geral, a distinção entre meninos e
meninas fica restrita à realização de atividades como jogos, por exemplo. Fora
dessas situações não são observadas outras distinções realizadas de forma
sistemática. Porém, as diferenças de gênero se expressam em outras formas, como
as expectativas dos professores, rituais escolares ou ainda no currículo oculto
(GIDDENS, 2005).

As representações de gênero podem ser observadas nos livros que são


utilizados nas escolas. Grande parte dos livros para meninos retrata meninos
em situações de independência e aventura em cenários variados, enquanto as
histórias para meninas mostram personagens mais passivas e, quando envolvidas
numa trama de aventura, essa se desenrola em um ambiente doméstico ou escolar
(GIDDENS, 2005).

Reconhecendo a tarefa de promover o respeito às identidades de gênero


como desafio e partindo do pressuposto de que é fundamental manter um diálogo
aberto e democrático no que compete à educação, buscaremos, neste tópico,
apresentar aspectos das teorias do gênero e da sexualidade com o objetivo de
ampliar nossas possibilidades de reflexão acerca dessa temática.

2 POR QUE TRATAR DA QUESTÃO DE GÊNERO E


SEXUALIDADE NA EDUCAÇÃO?
Caro(a) acadêmico(a), convidamos você a ler atentamente o trecho a seguir:

Em um episódio da série televisiva Law and Order, um grupo de


policiais é julgado por homicídio doloso, por haver deixado de
atender ao pedido de auxílio de um colega policial que havia sido
atingido (e, em seguida, morto) por um bandido. Esse colega era gay.

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A cena do julgamento mostra a acusação apontando para inúmeros


antecedentes de preconceito e discriminação que os réus tinham em
relação à vítima, e a defesa apela para o fato de que os réus (policiais)
haviam demonstrado sentimentos coerentes com os da maioria das
pessoas. Para apoiar seu argumento, a defesa chama um psiquiatra que
afirma que a homofobia é um sentimento comum, bastante frequente,
especialmente entre homens. Interpelado pelo promotor, o psiquiatra
explica que a manifestação de raiva extrema é patológica e, por isso,
é involuntária. Apelando para os jurados, a defesa pede-lhes para
pensar se não têm sentimentos semelhantes aos dos acusados (ou seja,
sentimentos de repulsa ou de rejeição) em relação aos homossexuais e
conclui: ‘Eles nada mais fizeram do que manter e preservar os valores
da comunidade em que viviam – e essa era sua função como policiais’.
O episódio termina com a absolvição de todos os réus. O final talvez
possa surpreender, mas, ao mesmo tempo, por mais intolerável que
seja, também parece coerente com o que se costuma ver na chamada
‘vida real’ (LOURO, 2007, p. 203).

Em primeiro plano é preciso considerar que as questões de gênero e


sexualidade são parte das relações sociais que atravessam nossa sociedade, não
constituem um universo paralelo. Tais questões podem, inclusive, gerar certo
desconforto quando debatidas, por expor práticas de preconceito e exclusão e
propiciar o questionamento da ordem social vigente.

Como nos mostra Louro (2007), gênero e sexualidade estão presentes em


instituições, discursos, normas e práticas e, por este motivo, atribuem sentido
à sociedade. E para compreender essas questões é necessário passar a pensá-
las como questões individuais e passar a reconhecê-las como sociais e culturais:
“As formas de viver a sexualidade, de experimentar prazeres e desejos, mais do
que problemas ou questões de indivíduos, precisam ser compreendidas como
problemas ou questões da sociedade e da cultura” (p. 204).

As questões de gênero e sexualidade compõem esse universo, na medida


em que a escola vivencia os reflexos de situações como a violência contra a mulher
e a homofobia. Considerando esse contexto, fica evidente a relevância desse debate
para a educação e para a promoção da garantia do acesso e permanência de todos
na escola e no respeito à diversidade.

3 GÊNERO E SEXUALIDADE: RESGATANDO CONCEITOS


Para compreender o que representam de fato os desafios apresentados
acima, relembramos que os conceitos de gênero e sexualidade são socialmente
construídos e carregados de intencionalidade.

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TÓPICO 1 | O DEBATE SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE

ATENCAO

Os conceitos de gênero e sexualidade foram apresentados na Unidade 1. Faça


uma pausa e releia o texto para relembrar a importância desses conceitos no contexto da
diversidade.

As discussões de gênero constantemente fazem referência à obra “O


segundo sexo”, de Simone de Beauvoir (1980, p. 9), e a célebre frase “ninguém
nasce mulher, torna-se mulher”. A obra colaborou para a afirmação do gênero
como construção social e para a superação de visões estritamente biológicas dessa
questão.

UNI

Educação sexual: precisamos falar sobre Romeo...


... Iana, Roberta e Emilson. A escola trata com preconceito quem desafia as normas
de papéis masculinos e femininos. A seguir, uma discussão sobre sexo, sexualidade e
gênero

O pequeno Romeo Clarke tem cinco anos e adora usar seus mais de 100 vestidos
para as atividades do dia a dia. "Eles são fofos, bonitos e têm muito brilho", explicou ao
tabloide britânico Daily Mirror. Clarke virou notícia em maio do ano passado. O projeto
de contraturno que ele frequentava na cidade de Rugby, no Reino Unido, considerou as
roupas impróprias. O menino ficou afastado até que decidisse - palavras da instituição - "se
vestir de acordo com seu gênero". [...]

Paradoxalmente, quem tem ensinado a escola a agir no respeito à diversidade são os


próprios estudantes. "Na contemporaneidade, multiplicaram-se os grupos, os sujeitos e
os movimentos, as maneiras de se identificar com gêneros e de viver a sexualidade. Não
há apenas uma forma de ser, mas tantas quantas são os seres humanos", afirma Guacira
Lopes Louro, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e uma das
principais referências na área de estudos de gênero. [...]

A instituição deve ser um ambiente em que todos os alunos se sintam acolhidos. Para que
isso aconteça, é importante que a sexualidade seja discutida constantemente, mostrando
que não há uma única maneira possível de explorá-la. Também é preciso apoiar alunos
que busquem os educadores para discutir sua sexualidade. Nas regras de convivência e nas
ações concretas de gestores e professores, deve estar claro que situações de homofobia e
piadinhas não são toleráveis.

FONTE: NOVA ESCOLA. Disponível em: <http://novaescola.org.br/conteudo/80/


educacao-sexual-precisamos-falar-sobre-romeo?fb_comment_id=75936716415
4935_889649957793321>. Acesso em: 2 nov. 2016.

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A partir dos anos 1960 a questão da identidade ganha espaço no debate


cultural na medida em que estudantes, negros, mulheres, minorias sexuais e
étnicas passam a questionar os padrões sociais excludentes e consolidados até
então. O foco inicial era dar visibilidade a diferentes modos de viver e, ao longo
do processo, passaram a travar uma luta pela representatividade (LOURO, 2008).

Essas lutas, incluindo movimentos sociais organizados, como o feminista e


das minorias sexuais, buscou acesso e controle de espaços culturais: “[...] a mídia,
o cinema, a televisão, os jornais, os currículos das escolas e universidades eram
fundamentais” (LOURO, 2008, p. 20). Observamos que essas lutas se davam no
âmbito dinâmico das transformações culturais, pois até então a voz que dominava
era branca e masculina, era necessário ocupar esses espaços para mostrar que
havia outras vozes e representações na sociedade. Observe com atenção a tirinha
de Laerte:

FIGURA 28 - GÊNERO E EDUCAÇÃO: A CONSTRUÇÃO DE PAPÉIS SOCIAIS

FONTE: Disponível em: <https://docencialpesquisa.files.wordpress.com/2010/06/


copadomundo-laerte-1.jpg>. Acesso em: 2 nov. 2016.

E agora a tirinha do personagem Armandinho, de Alexandre Beck:

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FIGURA 29 - GÊNERO E EDUCAÇÃO: IGUALDADE DE OPORTUNIDADES

FONTE: Disponível em: <http://67.media.tumblr.com/6d7a7307cceedffec629ca9d19cb8f19/


tumblr_ngndroNIX01u1iysqo1_1280.png>. Acesso em: 15 nov. 2016.

Afinal, é possível definir atividades para meninos e para meninas? Como


a escola reproduz padrões de gênero? Identifique situações, como a mostrada na
tirinha, que reproduzem padrões sociais preestabelecidos.

Vale lembrar que a proposta feminista não representa a luta pela construção
de um padrão onde o feminino é superior ao masculino. O feminismo busca a
igualdade de gênero através da superação da dominação masculina que prevalece
em nossa sociedade. Os exemplos dessa dominação podem ser observados na
violência contra a mulher no mercado de trabalho, com média salarial inferior em
relação aos homens. Acompanhe na figura a seguir as diferentes identidades de
gênero e suas representações.

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FIGURA 30 - IDENTIDADE DE GÊNERO

FONTE: Disponível em: <http://comarte.upf.br/wp-content/uploads/2013/11/


Alessandra-Formagini.jpg>. Acesso em: 2 nov. 2016.

UNI

Gênero e educação

Guacira Lopes Louro e Dagmar Estermann Meyer

Organizar este dossiê consistiu, para nós, um grande desafio. Por certo, não precisamos "inventar"
justificativas para a oportunidade de sua publicação: de um lado, porque a demanda pela inclusão
na REF de artigos voltados para a Educação já vem se manifestando há algum tempo; de outro
lado, porque reconhecemos que as questões de gênero e sexualidade vêm ganhando espaço
nas análises e pesquisas educacionais, ainda que não com o ritmo ou da forma como muitas
de nós, estudiosas feministas, desejávamos e esperávamos. De qualquer modo, entendemos
que a articulação entre Educação e Estudos Feministas é um processo em curso e que o dossiê
deveria ser representativo desse processo. Tal tarefa nos parecia, contudo, quase impossível de ser
realizada a contento.

Diversas questões e temáticas, com distintas perspectivas teóricas e enfoques metodológicos,


vêm sendo priorizadas e assumidas por educadores, trabalhadores culturais e intelectuais. Esses
estudiosos estão, por sua vez, espalhados em diversos centros de pesquisa, universidades ou
escolas, formam núcleos e grupos de estudos ou trabalham isoladamente, em várias regiões do

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país, e tentam estabelecer um diálogo com a teorização e a produção internacional da área. Seria
preciso reconhecer, ainda, que, não apenas nestes espaços, mas também em escolas e centros
comunitários, alguns docentes e estudantes questionam suas experiências e ensaiam práticas sob
a ótica do gênero. Um processo, portanto, plural, polêmico e complexo, no qual práticas educativas
e pedagógicas cotidianas incitam questões e problemas teóricos, ao mesmo tempo que novas
teorias e movimentos sociais provocam ou transformam as práticas pedagógicas. Seria possível
expressar adequadamente essa multiplicidade?

O presente dossiê traz apenas uma pequena amostra desse quadro. Os artigos que se seguem,
produzidos por estudiosos de algumas instituições brasileiras, são construídos a partir de diferentes
posições disciplinares e teóricas e elegem algumas temáticas relevantes para o campo educacional,
mais uma vez, distintamente concebidas. O leitor atento poderá perceber pontos divergentes e de
tensão entre eles. Entendemos, contudo, que essa característica se constitui em uma das "marcas"
mais instigantes e produtivas do feminismo e que, portanto, não há sentido em negá-la.

No artigo que abre o dossiê: "Educação formal, mulher e gênero no Brasil contemporâneo", Fúlvia
Rosemberg questiona a esperada articulação entre os estudos de gênero e o campo da educação
e, com apoio de dados quantitativos recentes, apresenta um quadro crítico da situação de
homens e mulheres no sistema educacional brasileiro. A autora analisa, ainda, as metas nacionais
e internacionais hoje afirmadas em relação à igualdade de oportunidades de gênero na educação
e põe em discussão algumas das interpretações convencionais.

Em "Teoria queer: uma política pós-identitária para a Educação", Guacira Lopes Louro busca
analisar questões significativas da teorização queer e indicar alguns desafios que ela pode sugerir
ao campo educacional. "Como", pergunta a autora, "uma tal teoria, declaradamente não propositiva,
pode 'falar' a um campo que, tradicionalmente, vive de projetos e de intenções, objetivos e planos
de ação?" A transgressão de fronteiras sexuais e de gênero e o questionamento da dicotomia
heterossexualidade/homossexualidade – centrais na análise queer – servem aqui de mote para
refletir sobre o atravessamento e a contestação de muitos outros binarismos importantes para o
campo educacional.

Para construir o artigo intitulado "Mau aluno, boa aluna? Como os professores avaliam meninos e
meninas", Marília Carvalho recorre a uma pesquisa qualitativa realizada com docentes de uma escola
pública de Ensino Fundamental em São Paulo. Os depoimentos favorecem uma aproximação mais
'direta' ao cotidiano escolar e permitem à autora uma análise interessante dos critérios de avaliação
e das opiniões dos docentes sobre comportamentos, atitudes, sucessos e insucessos de meninos
e meninas.

Helena Altmann privilegia uma questão que, nos últimos anos, ocupa (e preocupa) professoras
e professores das escolas brasileiras, ou seja, as diretrizes dos PCN. No artigo "Orientação Sexual
nos parâmetros curriculares nacionais", a estudiosa discute como o dispositivo da sexualidade é
apresentado neste documento oficial e as proposições que são feitas para operar nas escolas com
este 'tema transversal'. Finalmente, ela se volta para os efeitos de tais propostas nas salas de aula,
mais particularmente, nas atividades da Educação Física.

O artigo que encerra o dossiê: "Mídia e educação da mulher: uma discussão teórica sobre modos
de enunciar o feminino na TV", assinado por Rosa Fischer, sai do espaço escolar e assume a
educação em seu sentido mais amplo. Recorrendo a conceitos de Michel Foucault e Homi Bhabha,
bem como às formulações de Maria Rita Kehl sobre a enunciação do feminino, a autora analisa
criticamente o discurso que a televisão brasileira vem produzindo sobre as mulheres.

Longe de sugerir conclusões ou propostas definitivas, esperamos que este conjunto de textos
estimule o debate e suscite outros estudos e análises sobre possíveis articulações entre a Educação
e os Estudos Feministas.

FONTE: Revista Estudos Feministas. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_


arttext&pid=S0104-026X2001000200010>. Acesso em: 2 nov. 2016.

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4 GÊNERO E EDUCAÇÃO NO BRASIL


Para compreender as diferentes dinâmicas que se desdobram das questões
de gênero no Brasil, retomamos a trajetória da expansão do acesso à educação em
nosso país considerando o acesso de homens e mulheres ao ensino e sua relação
com a estrutura social brasileira.

Os reflexos dos desafios sociais apresentados até aqui tiveram repercussão


na educação brasileira. Um dos exemplos é o chamado hiato de gênero (genger
gap), ou seja, as desigualdades no acesso à educação. Esse hiato levou à formação
de uma estrutura social na qual a educação era privilégio masculino. O avanço
no acesso à escola no último século representou um passo significativo para as
mulheres (BELTRÃO; ALVES, 2009).

A história da educação no Brasil foi marcada pela exclusão das mulheres


do contexto educacional. No período colonial, a estrutura social e as relações
familiares patriarcais colocam o homem como figura de poder e autoridade,
portanto, não havia necessidade para as mulheres aprenderem a ler e escrever.
Além disso, somavam-se a esse contexto a influência da sociedade ibérica que
considerava a mulher como inferior, e a obra educativa da Companhia de Jesus
orientada pelos valores religiosos (BELTRÃO; ALVES, 2009).

FIGURA 31 - PRIMEIRAS ESCOLAS NO BRASIL E A PREDOMINÂNCIA MASCULINA

FONTE: Disponível em: <http://1.bp.blogspot.com/-gjfGMRMPAIc/TViJMF5BSkI/


AAAAAAAABnc/GFcL34HuCFo/s1600/escola_1910.png>. Acesso em: 2 nov.
2016.

A vinda da família real para o Brasil e, posteriormente, a Independência,


tornaram mais complexa a estrutura social brasileira. Somente nesse contexto a
educação feminina se tornou uma preocupação, pois as imigrações internacionais e
a diversidade econômica modificaram a visão da sociedade em relação à educação.
A partir desse momento, a educação passa a ser vista como um instrumento de
ascensão social. O Estado passou a ter responsabilidade pela educação, porém,

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TÓPICO 1 | O DEBATE SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE

devido à falta de professores, esse movimento não chegou à grande parte da


população (BELTRÃO; ALVES, 2009).

Esse cenário se transforma, no início do século XIX, com as primeiras


instituições de educação para mulheres.
[...] começaram a aparecer as primeiras instituições destinadas a
educar as mulheres, embora em um quadro de ensino dual, com
claras especializações de gênero. Ao sexo feminino cabia, em geral,
a educação primária, com forte conteúdo moral e social, dirigido ao
fortalecimento do papel da mulher como mãe e esposa. A educação
secundária feminina ficava restrita, em grande medida, ao magistério,
isto é, à formação de professoras para os cursos primários. As mulheres
continuaram excluídas dos graus mais elevados de instrução durante o
século XIX. A tônica permanecia na agulha, não na caneta (BELTRÃO;
ALVES, 2009, p. 128).

Enquanto avanços eram observados no ensino básico, no ensino superior


a situação era adversa para as mulheres, que não foram integradas aos primeiros
cursos superiores no Brasil e, sem acesso ao ensino secundário, não se habilitavam
para as faculdades. Contudo, as taxas de matrículas das mulheres no ensino básico
ampliaram-se no século XX, mas ainda em proporção menor que a dos homens
(BELTRÃO; ALVES, 2009).

Com o impulso da industrialização, a partir dos anos 1930, as novas


exigências do mercado de trabalho levaram ao surgimento das primeiras
escolas públicas de massa e à expansão do ensino. Porém, o desenvolvimento
do capitalismo não se deu de forma homogênea no território e, dessa forma, a
expansão do ensino se deu nas áreas mais desenvolvidas economicamente. A
educação, além de distribuída de forma desigual pelo território, era elitizada.
Apenas com a Lei de Diretrizes e Bases de 1961 o Estado garantiu o acesso de todos
ao sistema educacional (BELTRÃO; ALVES, 2009).

Para além do acesso de homens e mulheres ao ensino em nosso país –


que demonstra o longo caminho que temos a percorrer para validar a noção de
educação para todos –, cabe aqui ampliar nosso olhar para a não neutralidade
da educação. Já afirmamos que o gênero é uma construção social carregada de
intencionalidades e o mesmo acontece com a educação. Educar não é tarefa neutra,
é uma ação carregada de intencionalidades.

Partindo desse pressuposto, afirma-se que através da educação ensinamos


e aprendemos quais atitudes e padrões são socialmente aceitos e quais emoções
podemos externalizar e quando podemos ou não externalizá-las. Isso ocorre
porque a educação permite a elaboração de noções políticas e sociais, bem como de
princípios religiosos, regras morais e modos de ser, viver e se comportar (PASSOS;
ROCHA; BARRETO, 2011).

É importante dizer que a neutralidade da educação não é uma questão de


algum tipo de engajamento, mas decorre de sua conexão com as estruturas sociais:

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UNIDADE 3 | O ESPAÇO DA DIVERSIDADE NO COTIDIANO ESCOLAR

Teoricamente, a educação se coloca como desvinculada das questões


econômicas e sociais e comprometida apenas com a transmissão da
cultura e do saber; entretanto, mesmo quando não segue orientações
tendenciosas, a exemplo de privilegiar classes ou grupos, o seu fazer
se vincula a princípios que denunciam o seu engajamento social,
econômico, político e ideológico, porque, além de receber as influências
sociais, ela se estrutura a partir de visões de mundo e de um conceito
acerca do ser humano (PASSOS; ROCHA; BARRETO, 2011, p. 50).

Diante desse contexto que soma a intencionalidade da educação e


construção social de gênero, a educação possui um papel fundamental, pois se
propõe a contribuir para a transmissão de saberes e valores. Porém, a educação
formal acaba legitimando os padrões de dominação masculina.

Segundo Passos, Rocha e Barreto (2011), entre as características da educação


formal em relação ao gênero estão:

• O conteúdo dos livros didáticos que apresentam tarefas diferentes para homens
e para mulheres, com maior valor social para as tarefas dos homens.
• Nossa educação, de maneira geral, não apresenta homens e mulheres como
detentores de direitos iguais.
• Não mostra aos alunos como se formam as desigualdades sociais.
• Reproduz o modelo tradicional de ensino que desloca o conhecimento da realidade
valorizando ou desvalorizando características, atitudes e comportamentos.
• Valoriza o silêncio, a obediência e a acomodação.
• Reconhece a desobediência como característica natural para os meninos e negativa
para as meninas.

Como superar essa realidade e promover uma educação emancipatória,


que respeita a diversidade inclusiva? Ainda nas palavras de Passos, Rocha e Barreto
(2011), faz-se necessário repensar as práticas pedagógicas, como os processos de
avaliação e a relação entre professor e aluno. A proposta pedagógica deve estar
comprometida com a igualdade e com a liberdade.

Além disso, a inclusão da questão de gênero é importante, pois amplia


os horizontes do conhecimento. Através dela podemos discutir questões como a
desigualdade e a opressão e não só de gênero, mas também nas outras formas em
que se expressam e se vivenciam na sociedade:
Uma educação comprometida com uma nova ordem social precisa
ser capaz de romper com conceitos universais e imperativos morais
e investir em uma prática que respeite a subjetividade e proporcione
ao indivíduo o exercício da liberdade. Esse compromisso implica
na existência de um(a) novo(a) educador(a), de novos conteúdos
programáticos, na ressignificação do processo de avaliação, enfim, em
uma nova prática educativa (PASSOS; ROCHA; BARRETO, 2011, p. 36).

A questão de gênero mostra-se fundamental por diferentes motivos.


Incorporar esse debate no universo escolar nos permite conhecer e acompanhar
as transformações culturais que envolvem as questões de identidade sexual,

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TÓPICO 1 | O DEBATE SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE

compreender o papel, o espaço e os desafios da mulher na sociedade e, como se


esses já não fossem motivos suficientes, amplia nossos horizontes para superar
outras formas de dominação e exclusão.

Vale lembrar, caro acadêmico, das discussões que você acompanhou nas
Unidades 1 e 2, que mostraram os desafios da diversidade e também como o
respeito à diversidade e o acesso à educação de qualidade para todos são previstos
na legislação brasileira.

LEITURA COMPLEMENTAR

EXISTE “IDEOLOGIA DE GÊNERO”?

Em entrevista à Pública, a doutora em Educação Jimena Furlani, que


desenvolveu extensa pesquisa sobre o assunto, explica os equívocos do conceito.

O que é “ideologia de gênero”, afinal? De onde ela surgiu?

A ideologia de gênero é um termo que apareceu nas discussões sobre os


Planos de Educação, nos últimos dois anos, e tem sido apresentado a nós como
algo muito ruim, que visa destruir as famílias. Trata-se de uma narrativa criada no
interior de uma parte conservadora da Igreja Católica e no movimento pró-vida e
pró-família que, no Brasil, parece estar centralizado num site chamado Observatório
Interamericano de Biopolítica. Em 2015, especialmente, algumas pessoas se
empenharam em se posicionar contra a “ideologia de gênero”, divulgando vídeos
em suas redes sociais: o senador pastor Magno Malta, o deputado Jair Bolsonaro,
o deputado pastor Marco Feliciano, o pastor Silas Malafaia, a pastora Damares
Alves, a pastora Marisa Lobo. Meus estudos mostraram que o termo é usado em
1998, em uma Conferência Episcopal da Igreja Católica realizada no Peru, cujo tema
foi “A ideologia de gênero – seus perigos e alcances”. Parece que seus criadores se
baseiam em dois livros para compor essa narrativa chamada “ideologia de gênero”:
primeiro, no livro de Dale O’Leary intitulado Agenda de gênero, de 1996. O’Leary
é uma militante pró-vida que participou das Conferências da ONU (do Cairo, em
1994, e de Pequim, em 1995) como delegada. Ela faz um relato dessas conferências,
descreve, sob o seu ponto de vista, a ação das feministas em apresentar o conceito
gênero e como, a partir dali, a ONU assume a chamada perspectiva de gênero
para as políticas públicas sobre os direitos das mulheres. O outro referencial
usado na construção dessa narrativa é o livro de Jorge Scala, cuja primeira edição
é intitulada Ideologia de gênero: o gênero como ferramenta de poder, de 2010, que
no Brasil, curiosamente, é intitulado Ideologia de gênero – o neototalitarismo e a
morte da família, de 2015. O autor é um advogado argentino, conhecido defensor
de causas antiaborto e contra os direitos das mulheres, membro do movimento
pró-vida, que apresenta uma série de interpretações dos estudos de gênero,
extremamente problemáticas e convenientemente articuladas para desqualificar
tais estudos e apresentá-los como danosos para a sociedade. Portanto, parecem ser
esses os principais referenciais usados na criação da narrativa chamada “ideologia

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UNIDADE 3 | O ESPAÇO DA DIVERSIDADE NO COTIDIANO ESCOLAR

de gênero”, que nos últimos dois anos vem sendo divulgados e exaustivamente
repetidos em vídeos, textos, cartilhas, documentos da CNBB, palestras etc. Uma
retórica que afirma haver uma conspiração mundial entre ONU, União Europeia,
governos de esquerda, movimentos feminista e LGBT para “destruir a família”,
mas que, em última análise, objetiva, sim, propagar um pânico social e voltar as
pessoas contra os estudos de gênero e contra todas as políticas públicas voltadas
para as mulheres e a população LGBT, sobretudo nas questões relacionadas aos
chamados novos direitos humanos, por exemplo, no uso do nome social, no direito
à identidade de gênero, na livre orientação sexual.

E qual a diferença entre ideologia de gênero e estudos de gênero?

Primeiro, entender que todos nós, seres humanos, possuímos um sexo


e um gênero. Enquanto o “sexo” é o conjunto dos nossos atributos biológicos,
anatômicos, físicos e corporais que nos definem menino/homem ou menina/
mulher, o gênero é tudo aquilo que a sociedade e a cultura esperam e projetam, em
matéria de comportamento, oportunidades, capacidades etc. para o menino e para
a menina. O conceito gênero só surgiu porque se tornou necessário mostrar que
muitas das desigualdades às quais as mulheres eram e são submetidas, na vida
social, são decorrentes da crença de que nossa biologia nos faz pessoas inferiores,
incapazes e merecedoras de menos direitos. O conceito gênero buscou não negar
o fato de que possuímos uma biologia, mas afirmar que ela não deve definir nosso
destino social. Originalmente, as reflexões acerca da influência da sociedade e
da cultura, no conjunto das definições que nos dizem o que é “ser homem” e o
que é “ser mulher”, se iniciaram nas ciências sociais e humanas, como sociologia,
história, filosofia e antropologia, mas, hoje, os estudos de gênero se constituem
num campo multidisciplinar, composto por várias abordagens e presente em
todas as ciências – nas naturais, nas exatas, nas jurídicas, nas da saúde, nas da
comunicação, do esporte etc. Hoje os estudos de gênero se aproximam também
das discussões com outras identidades, como raça-etnia, classe social, religião,
nacionalidade, condição física, orientação sexual etc., sendo, por isso, chamados
de estudos de interseccionalidade. O conceito gênero permite, ainda, explicar os
sujeitos LGBT, especialmente os sujeitos trans, na medida em que discutem, por
exemplo, a identidade de gênero e o uso do nome social. Portanto, a perspectiva
de gênero está na base dos novos direitos humanos e na justificativa das políticas
de amparo às mulheres que repercute nas discussões acerca do conceito de vida e
das leis sobre direitos sexuais e reprodutivos, e aborto e à população LGBT. Sem
dúvida, se considerarmos que o conceito gênero permite as discussões acerca da
posição da mulher na sociedade, da aceitação dos novos arranjos familiares, das
novas conjugalidades nos relacionamentos afetivos, ampliação da forma de ver
os sujeitos da pós-modernidade e no reconhecimento da chamada diversidade
sexual e de gênero, então, não há campo do conhecimento contemporâneo mais
impactante e perturbador para as instituições conservadoras e tradicionais
que os efeitos reflexivos dos estudos de gênero. Isso nos faz entender porque o
empenho tão enfático, persistente e até, em algumas situações, antiético das
instituições que criaram e divulgaram essa narrativa denominada “ideologia de

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TÓPICO 1 | O DEBATE SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE

gênero”. Na minha opinião, há usos distintos da chamada “ideologia de gênero”.


Parece que, no âmbito da cúpula da Igreja Católica, trata-se de uma questão
dogmática e relacionada aos valores da ideologia judaico-cristã, que, segundo seus
representantes, estariam sendo ameaçados pelo conceito gênero por causa das
mudanças no comportamento das mulheres e nas leis sobre aborto, por exemplo,
da aceitação das várias famílias e do reconhecimento dos direitos da população
LGBT. Outro uso vem de representantes evangélicos: embora existam aqueles
católicos que se aproveitam eleitoralmente dessa narrativa, usar a “ideologia de
gênero” e sua suposta “ameaça” às crianças e à família tem sido mais presente
em candidatos evangélicos – vide a chamada bancada cristã, que não apenas no
Congresso Nacional, mas em todos os legislativos do país, deve aumentar, nas
próximas eleições, à custa de campanhas cujo foco de “convencimento” deverá ser
combater a ideologia de gênero.

FONTE: Existe ideologia de gênero? Pública. Disponível em: <http://apublica.org/2016/08/existe-


ideologia-de-genero/>. Acesso em: 3 nov. 2016.

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