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DUCT, O>wald. Pamuponcte 2 Auris. Cuerccorsbin. Cavs t. 2 x Listen: depuis Wacoal. Cane Ar Mocke, 1384, np .394- 447. [Vt 2- bnquacpr. -Emmcinefio]. PRESSUPOSIGAO E ALUSAO 1. Implicito relative e¢ implicito absoluto E facil e banal notar a seguinte diferenca entre a linguagem natural e as linguagens artificiais (sobretudo légico-matematicas): é que € a primeira, € s6 ela, que admite, e torna mesmo necesséria, uma espécie de estratificaco do dizer. Nao basta, para descrever a fala de alguém, indicar «aquilo que esse alguém disse»; é preciso ainda precisar a que nivel o disse. Apresentou-o como o préprio objecto do seu discurso, sugeriu-o simples- mente como uma das consequéncias que se podem tirar das suas enuncia- Ges, ou, ainda, pé-lo como uma evidéncia prévia sobre a qual fundamentou a sua comunicagéo? Mais, para compreender um discurso, nfo nos podemos contentar em colocar-nos segundo o ponto de vista do locutor e em explici- tar a forma como ele quis ser compreendido. Porque pode acontecer que diga uma coisa diferente daquela que quis dizer. Mais precisamente, pode haver, naquilo que se quer dizer, alusdes a coisas que se no querem dizer e que, estando ausentes das intengdes de comunicacio, tornam possivel a pré- pria fala: o léxico e mesmo a sintaxe veiculam toda a espécie de crengas € de conhecimentos que sio introduzidos no discurso pelo prdprio facto de se uti- ie ar a lingua. Numa palavra, 0 sentido «explicito» (aquele cuja transmissio | € apresentada como 0 objecto do discurso) constitui apenas wm nivel _da semintica das linguas naturais, sob o qual se podem dissimular varios estra-| tos de significagdes «implicitasy: situagio que nao se encontra nas lingua- gens «légicasm, € que a lingua cientifica pretende ignorar. Ai, tudo 0 que é dito, ¢ (ou devia ser) dito com a mesma motivacao e da mesma maneira: as significagdes so expostas ¢ no sobrepostas—de forma que nenhum nivel intermédio é concebivel entre o dizer e 0 nao-dizer. Pelo menos em inten- ao, a lingua cientifica define-se pela eliminagio do implicito: dai as qualida- des de transparéncia e de honestidade que Ihe sio muitas vezes atribuidas ¢ que levavam por exemplo Condillac a dar-lhe o titulo de «lingua bem feita». Nio trataremos neste artigo de todos os aspectos que pode revestir o impli- cito. Mais precisamente, nao trataremos dos fendmenos mencionados na segunda parte da alinea precedente, isto é, dos conhecimentos e representa- Ges incorporadas nas palavras e expressdes em determinado estado de lin- gua, € transportadas ipso facto para os discursos em que esses elementos so utilizados. Por exemplo, nao ser4 tido em conta o facto de que todo 0 voca- bulrio implica uma classificagio da realidade, que implica, portanto, apro- ximag@es € distingdes que o locutor retoma cada vez que o emprega. Assim, na medida em que a palavra ‘coragem’ se aplica tanto a0 estoicismo do doente que suporta o sofrimento sem se queixar como a audécia do homem | joe erred ie Semantico, ou hermenéuti 395 PRESSUPOSIGAO E ALUSAO de acco que escolhe afrontar um perigo, ela nao poderia ser utilizada sem que se admitisse implicitamente que existe um certo parentesco entre essas duas atitudes, atribuiveis uma e outra a uma mesma «forca moral». E isto, mesmo se, na utilizagio que se faz da palavra, s6 se pensa numa delas. Nao € desse implicito «absoluto» que nés falaremos, mas dum implicito «telativo», interior aquilo que o locutor «quer dizer», ligado 4 forma como ele «escolhe» exprimir-se. Para explicar os termos ‘escolhe’ ou ‘quer dizer’, vamos por, antes de mais nada, a hipérese de que a compreensio duma enunciagio consiste sempre em atribuir ao locutor_um certo nimero de “Tnteng6es,.em supor que ele falou para fazer X, para fazer Y, ... formula geral que deve ser especificada substituindo 0 verbo ‘fazer’ por designacdes de actos ilocucionarios (cf. 0 artigo «Actos linguisticos» neste volume da Enciclopédia) ¢ as letras X, Y, ... pela designacao dos objectos desses actos. Imaginemos por exemplo que um locutor L diz a um destinatério D: «Tens cigarros?» Uma interpretacio possivel consiste em descrever: «L quis per- guntar a D (acto de interrogagio) se D tem cigarros». Uma outra seria compreender a'enunciagio nfo como pergunta mas como pedido, decidindo: «L quis pedit a D que lhe desse um cigarro». Uma terceira interpretacio poderia incluir a segunda e adicionar-Ihe uma componente suplementar: «L quis indicar 2 D que ele proprio (L) j& nfo tem cigarros», E nao ha divida de que muitas outras interpretagdes ficam em aberto. Trés observagdes a propésito desta hipétese de partida. A primeira, a propésito daquilo que ela nfo implica. Ela no implica que cada enunciacio tenha uma e uma s6 interpretacio verdadeira. Porque nada assegura que se possa determinar quais sio as «verdadeiras intengdes» do locutor, nem mesmo que essa expresso tenha um sentido; com mais forte razio, nada gssegura que 0 locutor saiba, melhor que outra pessoa, 0 que quis fazer a0 “falar. A nocéo de intencao aqui utilizada no € um conceito psicolégico, mas. h .O que nds dizemos é que a actividade de inter- retacao, aquela que é utilizada a cada instante na comunicacao, se baseia na suposigio de que aquele que fala tem determinadas intengdes de comunica- do, e que a compreensio consiste em aprender essas intengdes. /A hipdt que pomos enquanto linguista, nfo é que essa suposigio seja verdadeira, mas que ela subtende a descodificacio efectiva das enunciagdes. Portanto,_nio femos de procurar saber 0, valor da suposi¢gio.em questo; contentamo-nos ‘em definir_mecanismos que permitam ler intengSes por trés de palavras. Que, a0 fazé-lo, se seja levado a prever, para um mesmo enunciado, uma pluralidade de interpretagdes, no provaria em nada que a descri¢&o linguis- tica é errada ow insuficiente. Pelo contrario, uma vez que essa multiplicidade é um facto de observacio corrente, é 0 inverso que seria inquietante, a saber, a descoberta de uma interpretacao incontestavel ¢ definitiva. As duas observgcdes seguintes dizem respeito aquilo que a nossa hipé- tese de base implicAVE preciso notar, primeiro, que ela se baseia num ctigao do sentido em termos de actos: compreendemos 0 querer dizer como umn giletér fazer, Esta extensio dada i nogdo de dizer parece-nos necessaria se se deve atribuir um sentido nao sé a afirmagées, mas a perguntas, a ordens, a promessas. Porque, se se toma o verbo ‘dizer’ na sua acepcio res trita, em que qualifica unicamente a comunicagio duma informacio, seria necessirio admitir que uma pergunta ou uma ordem nao querem dizer nada, que as suas enunciagdes nfo tém sentido. Na perspectiva em que nos, colo- PRESSUPOSICAO E ALUSAO 396 camos aqui, a afirmagdo € apenas um caso particular do dizer, no € mais que uma das miiltiplas acces cuja realizagio intencional constitui o sentido das nossas palavras. Ultimo ponto, inspirado, como o precedente, por J. L. ‘Austin. Nao se podem introduzir no sentido todas as intengdes de accio, mas somente aqueélas que dizem respeito aos «actos ilocuciondrios» (per- Buna, ordem, promessa...). Para justificar o privilégio assim dado a estes actos, é preciso notar que, se se atribui a uma fala a intencio de realizar um de entre eles, deve admitir-se a0 mesmo tempo que essa fala visa dar a conhecer essa inteno. Nao se pode pensar que L quis interrogar D sem pensar também que quis fazer-Ihe saber que o interrogava. E no se pode, igualmente, querer dar uma ordem a alguém e, a0 mesmo tempo, nfo querer que esse alguém saiba que se Ihe esté a dar uma ordem. Nao é 0 que se passa com todos 0s actos, € nomeadamente com aqueles a que Austin chama «perlocuciondrios» (é justamente a razio que nos leva a exclui-los do sen- tido). Suponhamos que L tem a intengio, ao dizer X, de desagradar a D; tal no implica necessariamente que ele tente fazer saber 2 D que lhe quer desagradar. Consequentemente, no introduziremos no sentido de um enun- ciado a intengio de produzir um acto perlocucionrio como o de desagradar. acto ilocucionario € necessariamente declarado, confessado, dito, ou, segundo a expressio de P. F, Strawson, «aberto». B por esta razdo que, uma ‘vez que a pergunta, a ofdem, & promiessa... sio necessariamente ditas (sem 0 que nao existiriam), ndo hé nada de paradoxal em as considerar como géne- 10s do dizer: ao atribuir a um discurso a intencéo de as realizar, esti-se a caracterizé-lo por aquilo que ele quer dizer (mais exactamente, atribui-se-lhe, com ou sem razio, um certo querer dizer) Portanto, quando dissermos que um enunciado foi interpretado, ou que alguém Ihe atribuiu um sentido, entenderemos, de aqui em diane, que nele” se leu a marca de actos ilocuciondrios, isto é, que se supds nos interlocutores um tipo particular de querer fazer. E neste quadro tedrico que serdo tratados os problemas da pressuposicio_e da alusio (ou subentendido), isto das Formas «relativas» de implicito que constituem modos da comunicacdo, ou, se se prefere, «formas de se exprimiry: trata-se, com efeito, nos dois casos, da maneira como se apresenta 0 objecto da comunicagio, da maneira como ele é introduzido no discurso, e nfo do «implicito absoluto», designando por esta tiltima expresso aquilo que se introduz de si préprio no discurso, aquilo que o locutor diz sem querer € mesmo sem saber. As paginas que se seguem sero consagradas a definir os dois conceitos de pressuposi¢ao e de alusio— fazendo ver os problemas tedricos que levanta a sua definigo. Mas mostraremos primeiro, servindo-nos de dois exemplos elementares (a que serd feita referéncia varias vezes na sequéncia deste artigo), como a teoria do sentido que acaba de ser esquematizada se articula com a nocio de im implicito relativo do qual pressuposicdes € aluses sio especificagdes. Mais precisamente, trata-se de ver que a teoria torna a0 mesmo tempo possivel € problemitica a existéncia desse implicito. Um exemplo clssico de pressuposic¢ao € fornecido pelas frases em que entra 0 verbo ‘deixar’. Ao dizer (1) O Pedro deixou de fumar implica-se, em geral, simultaneamente, (1') € (1”): Rees OS 6 Salen Srey poo 397 PRESSUPOSIGAO E ALUSAO (1) Dantes 0 Pedro fumava (1°) No momento em que estou a falar, 0 Pedro nao fuma. Todos 0s linguistas € filésofos da linguagem que utilizam a nogio de pressu- posi¢&o esto de acordo em chamar ao elemento (1') um pressuposto de (1), (Os critérios utilizados para esta qualificagao serdo expostos em pormenor no parigrafo seguinte). Ao fazé-lo, tentam fazer justi¢a a duas intuigdes complementares. Primeiro, ao facto de que nfo se pode dizer (1) sem tomar partido em relago a (1'), mais precisamente, sem tomar a responsabilidade da verdade de (1'). E a raz3o por que ninguém pensaria em dizer O Pedro deixou a fumar; de resto ele nunca o fez. E, igualmente, ninguém se lembra- ria de responder a (1), excepto por brincadeira de resto Sim, tens toda a raxio, 0 Pedro nunca fumou. @ mesmo ||A escolha de (1) implica, portanto, uma escolha consciente em favor de (1'), (le @ accitacéo de (1) implica uma aceitagio consciente de (1') Portanto, 0 pressuposto nfo entra no discurso de uma forma subrepti- “y+ _cia, no € imposto ao locutor pela lingua — mesmo se se alarga esta palavra “até fazé-la incluir 0 conjunto de representagdes e de crengas ligadas a0 voca- bulério ¢ a gramética. Pelo contririo, a lingua permite escolher entre a frase (1) —que impde o pressuposto (1’)—, € frases que, ou nfo o contém (por ,exemplo O Pedro no fuma, ou Desde que 0 conbeco 0 Pedro nunca fumou), ©" ou o negam (cf. O Pedro nunca fumon). Quando se escolhe enunciar (1), (1’) nao foi portanto, certamente, imposto por uma restrigo com origem na lin gua. Do ponto de vista linguistico, 0 pressuposto é escolhido, € objecto de~ uma vontade de comunicacio. Por esta razio, niio pode fazer parte daquilo a que chamAmos o um pressuposto X, se, e sd se, a informacio X é veiculada, habitualmente, tanto pelos enunciados de «F» como pelos de «neg-Fo, entendendo por «neg-Fo a frase negativa formada a partir de «Fy; por exemplo, no caso do portugués, a que se obtém prefixando a «F» «E falso que», ou modificando, por meio de «no», o verbo principal. Por extensio, atribuir-se-4 também a «neg-F» 0 mesmo pressuposto X. Vé-se que este cri- tério, aplicado a (1), dé os mesmos resultados que o precedente. Porque, maior parte das vezes, ao enunciar «neg-(1)» (0 Pedro ndo deixou de fumar), mantém-se que ele fumava antes. De forma que a negacio nao é mais total que a interrogacio; negar um enunciado, tal como interrogé-lo, niio prova necessariamente que nos tenhamos libertado dele (mesmo nao tendo em conta as teorias psicanaliticas sobre o cardcter aparente de muitas negagoes). i ns ge ge PRESSUPOSIGAO E ALUSAO 402 Objecta-se por vezes que o critério de negacio nio leva sempre aos mesmos resultados que o da interrogacio. Atesta-o um didlogo como: A’ Parece que 0 Pedro deixou de fumar. B Nao, nao «deixou» de fumar, ele nunca fumou na vida. Na sua réplica, B utiliza «neg-(1)> sem, evidentemente, ai incluir 0 pressu- posto (1') visto que a sequéncia do seu discurso mostra que ele o recusa igualmente, Ora (1') é, de acordo com 0 critério de negagio, um pressuposto de (1). Mas trata-se aqui de uma forma de negagio muito particular. Eo que se pode mostrar notando que B recorre geralmente a uma entoagio particu- lar, insistindo no verbo ‘deixar’. Por outro lado, seria impossivel a B dizer 0 que disse se no tivesse havido a intervencgio precedente de A: a negacao utilizada por B nio se compreende a nfo ser como um ataque contra uma afirmagio precedente. Finalmente, B teve de precisar explicitamente O Pedro nunca fumou na vida. Caso contririo, nao teria sido possivel com- preender que a sua negacio se aplicava 2 ideia de que o Pedro tinha fumado antes. Poderia chamar-se,«polémicay & forma de negaco que aparece neste exemplo. Consiste em recusar, em declarar inaceitavel um enunciado ante- Hor (que pode ser apenas virtual, e somente atribuido ao interlocutor). ‘Destaca-se niio sé pelo seu comportamento especial em relago ao pressu- posto, que ela pode atacar, mas também por um certo némero de outras propriedades linguisticas que convergem para Ihe dar um estatuto muito particular. Devemos, portanto, precisar que 0 critério de negacéo nao se aplica a esta forma de negacao, mas somente & forma de negacao dita «des- critiva», aquela que se utiliza directamente para dizer como sio as coisas, Sém apresentar necessariamente aquilo que se diz como opondo-se aquilo que alguém disse ou poderia ter dito (por exemplo, se, ao abrir as persianas de manhi, se anuncia: Nao hd uma tinica nuvem no céu). 3) _Critério_de encadeamento. Este terceiro critério é menos geralmente Feconhecido que os dois primeiros. Baseia-se no comportamento seméntico da frase «Fs, contendo um pressuposto X, quando esta encadeada a uma outra frase «F'». Devem entio distinguir-se dois casos. Suporemos primeito que «F> ¢ «F’> servem para construir uma nova frase «G» (que Ch. Bally designa de «frase ligada»), susceptivel de ser objecto de um acto de enuncia do, € de, em seguida, quando as duas frases sio realizadas, dar lugar a uma enunciagéo Gnica (cf. ainda o artigo «Enunciagio»). Neste caso, a maior parte das formas de encadeamento tém a dupla propriedade de conservar em «G» os pressupostos de «F> e de «F'», e, por outro lado, de nao respeitarem esses mesmos pressupostos. Hlustra-se facilmente este facto tomando para "GO Pedro estd bem porque deixou de fumar, obtida encadeando, por meio de porque, (1) ¢ O Pedro esté bem. A primeira propriedade verifica-se porque o pressuposto (1') de (1) (=O Pedro fumava dantes) é efectivamente conservado em &G». Quanto & segunda, manifesta-se pelo facto de se pode- rem ter as duas situagdes seguintes, € sé essas: ou o pressuposto nio é minimamente afectado como no exemplo anterior, em que a ligacdo causal exptessa por porque poe a boa saiide actual do Pedro em relacio, no com 0 facto de que ele fumava antes, mas com o facto de que ele nao fuma agora; ou, segunda possibilidade, a ligagdo diz respeito, simultaneamente, ao pres- 403 PRESSUPOSIGAO E ALUSAO suposto € ao resto do contetido semintico (cf. O Pedro estd methor porque deixou de fumar). Mas é inteiramente excluida uma terceira eventualidade em que apenas seria tomado em consideragio 0 pressuposto: uma frase como O Pedro passava mal porque deixou de fumar n&o pode significar A razio da md saiide do Pedro dantes 6 que dantes ele fumava. Note-se que tivemos de resttingir a regra precedente & «maior parte das formas de encadeamento», porque existem certas construgdes, estudadas €m pormenor por L. Karttunen ( ou a um enunciado «Ex, os outros critérios ipliciveis 2 «F> ou a «E> conduzem também a esta atribuigio. Pode-se mesmo it mais longe. Se «F» pressupde X, chega-se geralmente & conclusio de que os enunciados de «F>, testados de acordo com os dois iltimos crité- rios, anicos utiliziveis para enunciados, comportam também o pressuposto X. Sem essa convergéncia, ter-nos-ia, de resto, sido impossivel chamar «cri- tétios» as quatro propriedades que acabam de ser estudadas, isto ¢, considera-las como condigées nao s6 necessatias mas também suficientes Se, apesar disso, pode haver certas divergéncias para a determina daquilo que é ou nao € pressuposto, a razio é a seguinte. Todos os critérios dao por admitido que se sabem reconhecer os elementos seménticos presen tes numa frase ou num enunciado, € indicam somente como etiquetar esses elementos. Com efeito, como saber o que é veiculado por um discurso? As divergencias possiveis sobre este ponto explicam que o inventirio que vai ser apresentado possa suscitar objecgdes. Ser4 sobretudo 0 caso das catego- rias a) ¢ 6). 4) Pressupostos gerais (que no tém qualquer relagio com a estrutura interna das frases): «O destinatario pode compreender 0 locutor», «Existe uum mundo ao qual “E” ou "F” podem ser referidos», ete. (Estes pressupos- tos, que desempenham um papel fundamental numa filosofia como a de Collingwood, so geralmente deixados de lado pelos linguistas) ) Pressupostos ilocuciondrios. A realizacio de um determinado acto ilocucionétio pode pressupor que a situacio de discurso torna possivel ¢ razoavel realizé-lo. Por exemplo, ao interrogar, posso pressupor que 0 meu interlocutor é capaz de me responder, que tenho 0 direito de o interrogar.. ao dar uma odem, pressupor que tenho autoridade para o fazer... (Se a pos- sibilidade de tais pressupostos € muito geralmente reconhecida, € necessitio, para crer que esto necessariamente ligados a toda a realizagio de um acto Hlocucionirio, admitir a teoria austiniana das «condigdes de felicidade», teoria que poe certos problemas; cf. ainda 0 artigo «Actos linguisticos») 5) Pressupostos de lingua, ligados & existéncia, na frase, de morfemas bem determinados. Citemos algumas categorias entre muitas outras: c!) Pressupostos existenciais. Se «F» contém um grupo nominal prece- dido de um artigo definido, tem-se, excepto se morfemas ov construgbes especificas vém impedir a sua formacio, o pressuposto de que existe um ou mais objectos tendo a propriedade descrita no grupo nominal. Assim, exem- plo célebre, «O rei de Franca é calvo» pressupde que existe um rei de Franca. Um exemplo de impedimento: dizendo acredita na Pedro demissao do governo opés-se a no se pressupde que venha a haver ov que tenha havido demissio do governo (note-se, de resto, que, neste caso, o artigo definido pode ser substi- tuido, sem grande alteragio de sentido, por um indefinido) 2) Pressupostos verbais. Quando uma frase, em virtude do seu verbo principal, descreve uma sucesso de dois estados, idénticos ou diferentes, ela pressupde a realizagio do primeiro desses estados. £ 0 caso ilustrado pelo exemplo O Pedro deixon de fumar. Set facil construir exemplos anilogos | b + 4) Pressupostos adverbiais. Certos advérbios, introduzidos numa frase, PRESSUPOSICAO E ALUSAO 406 com verbos como ‘continuar’, ‘perder’, ‘guardar’, ‘manter’, ‘ficar’, ‘deixar’, Outro exemplo. Certos verbos, construfdos com uma completiva, indicam uma opinigo ou um sentimento da pessoa designada pelo sujeito em relacio 20 facto descrito na completiva. Um subconjunto desses verbos (os «verbos factivos») tem a propriedade de levar a pressupor a verdade da completiva. Com efeito, seja 0 esquema de frase O Pedro... que o Jaime parti. Se substi- tuirmos as reticéncias por um dos verbos ‘saber’, ‘ignorar’, ‘aperceber-se’, ‘dat-se conta’, ‘alegrar-se’, ‘lamentar’, .... operando, se necessdrio for, tendo em vista a correcco gramatical, certos ajustamentos sintécticos na comple- tiva, obteremos entio frases que pressupdem, todas, que o Jaime partiv efectivamente. ) Pressupostos de construgio. E por vezes a forma como a frase é construida que é responsavel pelo pressuposto. E 0 que se passa quando se insere um membro de frase no interior da expresso ‘é... que’. Assim, a0 enunciar E 0 Pedro que vem, pressupde-se que alguém vem. Igualmente, muitas conjungdes de subordinagio fazem aparecer como pressuposta a ver- dade da proposi¢io que as segue. A frase depois O Pedra veio de o Jaime sair antes pressupde O Jaime satu. nada Ihe acrescentam a nao ser pressupostos. Entre O Pedro estd doente ¢ O Pedro estd ainda doente, a unica diferenga consiste no facto de a segunda frase conter pressupostos suplementares, nomeadamente o pressuposto de que o Pedro esteve (ou estava) doente antes do momento em que se fala, Igualmente, transformar O Pedro é mais velho que 0 Jodo em O Pedro é ainda mais velo que o Joao, € somente acrescentar 0 pressuposto O Joao é velho. Ultimo exemplo. Até 0 Pedro veio nao faz mais que acrescentar 4 ideia O Pedro veio os pressupostos Outros vieram além de Pedro e A vinda do Pedro é mais significativa que a vinda de um outro. ‘Muitos outros tipos de pressupostos foram estudados, e nfo se pretende aqui a exaustividade. O nosso objectivo era, primeiro, fazer sentir a exten do fenémeno da pressuposi¢ao; querfamos, por outro lado, mostrar que esse fenémeno tem raizes na estrutura da lingua, mesmo no sentido mais restrito do termo (isto é, no Iéxico e na sintaxe). Esta dltima observa¢io tem uma certa importéncia tedrica, se nos lembrarmos de que uma das propriedades caracteristicas do pressuposto 0 seu papel especifico na constituigao do dis- curso. Estamos, entio, em presenca de um fenémeno que poe em perigo a separagio tradicional da lingua e da fala (Jangue-parole). 2.3. Definigdes A diversidade das definigées dadas reflecte simultaneamente a diversi- dade dos critérios da pressuposicio, ¢ a situacéo-fronteira que ela ocupa entre a langue ¢ a parole. ‘A definigao légica tem por base 0 critério de negacio, que permite ligar a nogio de pressuposi¢éo as nogdes de verdade e de falsidade, e, daf, a rela- 407 PRESSUPOSIGAO E ALUSKO Gio de inferéncia ldgica. Dizer que uma frase «F» pressupde X, é, nesta perspectiva, uma forma abreviada de dizer que se pode inferir X simulta- neamente a partir de «F» e da negagio de «F». Para evitar certos absurdos que poderiam logicamente decorrer desta definicéo, é comodo recorrer a uma logica a trés valores. Se o pressuposto X de «F> é falso, nao se diré que «F» é falso, mas que «F> tem um terceiro valor, que nao € nem o verdadeiro nem o falso. Sem procurar discutir esta tese, que se baseia numa interpreta- fo da negacio linguistica em termos de condigdes de verdade, observaremos apenas que ela situa a pressuposi¢ao do lado da lingua: a descrigio pressupo- sicional de uma frase teria que ver, antes de tudo, com o seu valor informa- tivo, isto é, com as informagdes que ela da sobre 0 mundo, € no com as suas condigdes de utilizagao. Fica portanto por explicar 0 papel particular do Pressuposto no discurso. por esta razio que se tem muitas vezes procurado a definigio de pressuposigio numa direc¢o oposta, que se poderia chamar, num sentido muito lato, pragmécica (com isto entendendo-se simplesmente que 0 acento & posto naquilo que se passa no momento da enunciagio). Uma primeira forma, desenvolvida pela maior parte dos «fildsofos da linguagem» ingleses, consiste em apresentar 0 conhecimento prévio dos pressupostos por parte do destinatério D como uma condi¢ao imposta a utilizagao «normal» de uma frase. Se D nao est4 a0 corrente de X, a utilizagio de «F» € inapropriada, fora de propésito (em inglés out of place). Se D nao admite jé a existéncia de um rei de Franca, ou se ignora que o Pedro fumava dantes, é, nao falso, mas deslocado, dizer-Ihe que o rei de Franca é calvo, ou que o Pedro deixou de fumar. Por af se explicam imediatamente certas estipulagdes do critério pragmitico € do critério de encadeamento: se 0 pressuposto nio faz parte daquilo que € dito, mas condiciona somente o dizer, compreende-se que nao possa ser anunciado, e que 0 encadeamento nao possa incidir sobre ele. ‘A este propésito vamos assinalar somente dois problemas. O primeiro esté ligado ao facto de que no se pode saber sempre, quando se fala, aquilo que o destinatario pensa dos conteiidos que se véo pressupor. Nessas condi- ses, a definigio leva a considerar um grande niimero de discursos como «anormais», nomeadamente os discursos escritos, cujo autor néo pode geralmente conhecer as pessoas a quem se dirige. Mais geralmente, poderd um estudo descritivo da lingua tomar como um dado, como um facto, que tal enunciagio é normal ou anormal, apropriada ou no? onde esté essa norma? que autoridade Ihe serve de garantia? Segunda dificuldade. Nesta definicio, sé pode tratar-se dos pressupostos das frases, porque s6 as frases podem ter condigées de utilizagao, € no os enunciados, cada um dos quais constitui, ele proprio, uma utilizagdo. Mesmo se «F» pressupde X, a definicio leva a con- siderar como um abuso de linguagem a afirmagio de que um enunciado de «F> 0 pressupde também. A fortiori, seria absurdo dizer que um enunciado de «F> pressupde X se «F» no o pressupde. Ora, o nosso critério de enca- deamento (na sua segunda parte) sugere fazé-lo. E no sem razio. Supo- nhamos que L declara Bebi um copo em casa do Joao; jd nao tenho sede. Segundo este critério, L pressupde que foi a casa do Joio, uma vez que é obrigado, dada a primeira proposi¢ao, a reconhecé-lo, ¢ que, no entanto, a segunda proposigio nao estabelece ligacdo com este tema, € deixa de lado a estadia em casa do Jodo. Nao é de todo exagerado, e é esclarecedor para a anilise do discurso, aproximar a forma como é apresentada, aqui, a estadia PRESSUPOSIGAO E ALUSAO. 408 em casa do Joao, ¢ a forma como se trata o passado fumador do Pedro quando se diz, recorrendo a uma frase pressuposicionalmente marcada, O Pedro deixou de fumar. Estas observagées levam a uma terceira tencativa de definigio, pragmé- tica como a segunda, mas susceptivel de ser aplicada simultaneamente a frase € a0 enunciado. Far-se-4 da pressuposigao, jd nfio uma condicao de uti- lizagéo da frase, mas um acto ilocucionario realizado no momento em que ela € enunciada. Pressupor um conteiido X, é apresenté-lo tomo devendo set mantido ao longo do discurso ulterior, como nao devendo ser 0 tema, 0 ponto de partida, X é entGo colocado em segundo plano no discurso, serve para constituir 0 universo do discurso no interior do qual, mas nio a propé- sito do qual, se falaré. Pondo 4 parte, no contetido de um enunciado, certos elementos que sio objecto de um acto de pressuposigao, determina-se assim © seguimento que dever4 ser dado ao discurso. Portanto, se se admite que 0 sentido de um enunciado € constituido, parcial ou totalmente, pela orienta- Go que ele pretende dar & acgGo ou ao discurso futuro, isto é, pelo futuro que ele projecta, os actos pressuposicionais realizados na ocasiio de um enunciado participam de forma essencial no seu sentido. Duas observacées propésito desta concepcio. 1) Ela implica que se defina primeiro a pressuposigéo ao nivel do enunciado, Com efeito, ¢ evidente que nfo h4 acto numa frase. E, portanto, possivel que certos contetidos sejam pressupostos no momento da enuncia- Go, mesmo se, na frase utilizada, nada Ihes fixa esse estatuto. O que nio impede, evidentemente, que 0 acto de pressuposi¢ao possa ser também mar- cado na frase. Assim como a construgio sintactica da frase pode vocaciond-la para permitir a interrogagio, a assergio, 0 pedido..., assim também certos tracos formais, estudados no § 2. 2, c, fazem dela o instrumento privilegiado de tal ou tal acto de pressuposigéo. O que é destacado pelos critérios do § 2.1, na medida em que sao aplicados As frases, so justamente as virtuali- dades pressuposicionais inscritas na organizagio lexical ou gramatical 2) Que relacéo existe entre a pressuposicao, assim compreendida, € 0 dizer? E preciso ver, primeiro, que o verbo ‘dizer’ pode ter, pelo menos, dois sentidos. Se eu produzo o enunciado O Pedro partiu, digo, que afirmo a par- tida de Pedro, € digo: que o Pedro partiu. Se o meu enunciado é 0 Pedro partiu?, digo, que interrogo o meu destinatario sobre a partida do Pedro, mas nfo ha, no meu discurso, nenhum dizer, ‘Dizery' designa um acto ilocu- cionério particular (o de anunciar, ou de afirmar), ‘dizer," designa o facto de comunicar ao destinatério quais os actos que se realizam, Como todos os outros, 0 acto de pressuposicio é 0 objecto de um dizer), mas nfo constitui um dizer: E esta a razio por que a nossa concepgio do sentido exposta no § 1 permite considerar a pressuposi¢ao como um dos seus constituintes: ela tem, essencialmente, um cardcter confessado, e faz parte, como todo 0 ilocu- cionario, da imagem que o locutor dé 20 destinatério da sua enunciacio. Em contrapartida, 0 conteido pressuposto nao € objecto de um dizery: de outro modo, ele seria afirmado, anunciado. A pressuposicio ¢, como a afirmagio, a interrogacio..., uma atitude tomada em relagio a um contetido, A atitude é escolhida, reconhecida, com 0 mesmo direito que na afirmacio. E 0 contetido que é tratado de uma forma particular, e é investido de uma funcao diferente da do contetido afirmado. A pressuposicao é geradora de implicito, operando uma estratificagao dos contetidos veiculados, transformando alguns em subs- tratos, logo que aparecem, e subtraindo-os a0 movimento da parole. 409 PRESSUPOSIGAO E ALUSKO A alusio 3.1. Mecanismo interpretativo Para apresentar a nocdo de alusdo, imagindmos (§ 1) dois interlocutores Le D. L, querendo lamentar-se de uma indelicadeza cometida por D, diz-the: (2) Ha pessoas que néo se preocupam com os outros. Desta maneira, ele pretende fazer compreender: (2) D nao se preocupa com os outros. E dificil admitir que a expresso (2) seja relacionada com o sentido (2') directamente sem passar por uma significacio intermédia, imediatamente ligada a (2), mas que é, em tal ow tal circunstdncia, transformada em (2°). Porque, se se recusasse esta operagio, seria necessério imaginar uma regra geral do tipo: «A expressio portuguesa 'Hé pessoas..." designa o destinaté- rio». Mas entao 0 problema seria explicar os empregos de "HA pessoas’ que niio fazem, ou mesmo nao podem fazer, qualquer referéncia ao destinatario, como Hé pessoas que nao gostam de ti. Deveria portanto imaginar-se um mecanismo que apagaria uma primeira interpretagio, «O destinatério nao gosta do destinatario». Assim, nao sé nao se escaparia 4 necessidade de cons- truir mecanismos interpretativos indirectos, mas aqueles que devessem construir-se seriam inteiramente arbitrarios, ¢ nfo poderiam, sendo inventa- dos para resolver um problema particular, ser objecto de qualquer generalizacio. Daremos portanto por adquirido este primeiro ponto: que (2') é deri- vado de uma significagio prévia que (2) possui, significagio a que chamare- mos (2"), € que representaremos por uma férmula do tipo: (2°) Lafirma a D: Hé pessoas que tem a propriedade de nao se pre- ocupar com os outros. © problema é, agora, passar de (2") a (2'). Para isso, € preciso primeiro insistir ma expressio ‘L afirma a D', que introduzimos na significagio fun- damental de (2). Esta introdugio baseia-se na hipotese geral de que a signi- ficagio de uma frase contém a indicagéo de um acto ilocuciondrio A (que pode ser afirmacio, pergunta, ...). Quando esta frase é utilizada, o sentido do enunciado contém portanto, como parte integrante, uma descri¢io da sua enunciacio, sendo esta apresentada como a realizagio do acto A: no se pode falar sem dizer (no sentido do ‘dizer,’ do § 2.3) aquilo que se faz falando (cf. ainda o artigo «Enunciagio). Recorrendo a uma metéfora teatral: 0 locutor pde-se a si proprio em cena, Portanto, se a estrutura semantica da frase implica que 0 enunciado menciona a sua propria enunciagao, nao se pode falar sem sugerir perguntas sobre essa enunciagio considerada como um facto. Por que razio realizou os actos ilocucionarios que realizou? Pergunta que assume, ela propria, pelo menos dois aspectos, segundo se esta interessado nas razdes que tornaram 0 PRESSUPOSIGAO E ALUSKO 410 discurso possivel ou naquelas que o motivaram. Interpretar um enunciado de forma alusiva (no sentido geral do termo), ou ainda procurar nele subenten- didos, ¢ tomar pelo sentido do enunciado as respostas a estas questdes. Supde-se, portanto, que o locutor quis dizer que podia ou devia falar como 0 fez. Por meio dos actos ilocucionarios que realiza, ele significa que é capaz ou que esté desejoso de os realizar. Para ilustrar este movimento, voltamos primeiro ao enunciado (2), ten- tando derivar (2') de (2”). Afirmar implica que se assume a responsabilidade sobre a verdade daquilo que se afirma. Portanto, nao é razodvel afirmar C a no ser que se tenha razdes para crer que C é verdadeiro. Interpretada de forma alusiva, a afirmaco de C por L pode entGo tranformar-se numa afir- magio derivada tendo por objecto, j& nao 0 préprio C, mas o facto de que L tem razbes para acreditar em C. Aplicando esta ideia a0 nosso exemplo, é-se levado, a partir da significacio (2"), a atribuir a La afirmagio de que ele tem razbes para pensar que «existem pessoas que nao se preocupam com os outros». E, como uma excelente razio para o pensar é ter tido a experiéncia com esta ou aquela pessoa determinada, pode compreender-se, na situagdo de discurso imaginada, que 1 afirma que acaba de ter essa experiéncia: dai o sentido alusivo de (2') (D nao se preocupa com os outros) No exemplo precedente, encontra-se 0 mesmo tipo de acto na primeira significagao ¢ na significagao derivada: a tinica diferenga diz respeito ao con- tetido. Mas 0 tipo de acto pode, ele prdprio, ser transformado: situacao que se verifica nomeadamente quando o enunciado de uma frase interrogativa interpretado como realizacio de um pedido. Suponhamos que L, dirigindo-se a um vendedor D, numa papelaria, lhe diz Tem papel de carta? Salvo casos excepcionais, a pergunta ser4 compreendida, e destinada a ser compreendida, como um pedido (= Dé-me papel de carta!). f facil construir uma derivacio de acordo com 0 esquema precedente. Num primeiro estédio, L apresenta a sua enunciagio como uma pergunta. Mas, para que L esteja interessado em saber se D tem ou no tem papel de carta, é necessdrio que, dada a situagéo dos interlocutores, L tenha a intengio de o pedir, nio podendo a pergunta ter, aparentemente, outra razio de ser excepto preparar um pedido posterior (que se arriscaria a parecer ridiculo se 0 vendedor nao fosse capaz de o satis- fazer). A derivagio alusiva leva entio a sobrecarregar 0 enunciado com a intencio que explica a sua enunciagio. O paradoxo reside no facto de o enunciado ser utilizado com um valor segundo, o pedido, que € 0 valor real, mas que sé se revela na medida em que torna explicdvel um valor primeiro, em grande parte ficticio: a pergunta. (Note-se, de resto, que a interpretacio interrogativa, por mais ficticia que seja, nfo é inexistente, e deixa vestigios. Seria muito bizarro que L enunciasse Tem papel de carta?, se houvesse & vista sobre 0 balcio; ainda que o discurso funcione como pedido, mancém-se submetido a restrig6es ligadas & sua natureza primitiva de pergunta). E significativo, nesta perspectiva, que certos constituintes da frase pos- sam ter por efeito tornar necessdria a derivagio: adicionados a uma per- gunta, por exemplo, obrigam a lé-la como um pedido. E 0 caso da expressio “Por favor’ que, contrariamente ao que por vezes se diz, nio & fundamental- mente uma «férmula de cortesiay. Ela tem primeiro por fungio fazer saber que aquilo que é dito, quer se trate de uma pergunta ou de um imperativo, deve ser compreendido como um pedido. (O «efeito de cortesia» ligado a esta formula é sem diivida apenas uma consequéncia segunda. Este efeito 4 PRESSUPOSICAO E ALUSAO aparece sobretudo quando a formula vem unida a um verbo no modo impe- rativo. Ela impde entio que a derivagio, a partir do valor fundamental do imperativo, se faga em direccio ao pedido € no & ordem, precaucio que se interpreta facilmente como uma cortesia). Pode concluit-se, destes factos, que a derivacio alusive é, ela propria, prevista pela lingua, que impoe, por assim dizer, que se va para além da frase (cf. 0 conceito de «derivacio ilocu- cionéria» elaborado por Anscombre) 3.2. Alusao e sentido literal Admitir uma tal explicagio da alusio, e reconhecer por outro lado que a interpretagio alusiva esté prevista, algumas vezes é mesmo imposta, pela lingua, obriga a recorrer a um conceito simultaneamente prdximo e dife- rente da nogio tradicional de «sentido literal». Tradicionalmente, 0 sentido literal de um enunciado é aquele que se considera que ele tem antes de qual- quer interpretagio alusiva, sentido que 0 enunciado deveria somente A frase de que ele € uma realizacéo, Definigao que leva muitas vezes a valorizar 0 sentido literal, porque as possibilidades de interpretaco alusiva séo infinitas. (Se, com efeito, elas nascem de uma interrogacio sobre as razdes da enun. ciagao, exigem que o interpretante tente representar-se a situago em que se encontra 0 locutor no momento em que fala. Ora, toda a situacao de discurso Possui uma quantidade de aspectos diversds, até opostos, e a interpreta¢ao varia de acordo com aquele que se decide fazer intervir). Em contrapartida, ha, para cada frase, um s6 valor seméntico, ou, quando muito, em caso de ambiguidade, um niimero resttito e bem definido, determinado pelas dife- rentes formas de agrupar as palavras de que a frase é constituida, e de esco- Iher entre as suas acepgdes. A descodificago da frase é, por outro lado, necessariamente determinada apenas pelo conhecimento da lingua, e sem qualquer relagio com a situa¢ao. Dai a ideia de que uma comunicasio baseada unicamente no sentido literal das frases daria, e & a tinica a poder dar, algumas garantias de seriedade e de honestidade. Imporé o § 3. 1 uma conclusio deste tipo? Em certa medida, sim. Bla baseia-se, com efeito, na ideia de que a alusio é derivada, e deve ser com- Preendida na sequéncia de um caminho mais ou menos longo, a partir de um valor semantico primitivo ligado a frase, e independente da situagao de parole. Mas termina ai a analogia. 4) O valor semantico da frase (a que chamémos ‘significagio’ ¢ nfo ‘sentido’) no & objecto de uma comunicagéo possivel. Por um lado, tem «buracos», € precisa de ser completado por indicages que s6 a situagio de discurso pode dar. Por outro lado, contém marcas de acto ilocucionario (por exemplo, marcas de assercio, de interrogagao, ou ainda, como se viu no § 2, de pressuposi¢io). Ora, estes actos 56 tém, evidentemente, realidade, quando a frase é objecto de uma enunciagio, de modo que a frase, em virtude da sua natureza, s6 se torna inteligivel uma vez enunciada. Se se atém ao «sentido literal, no se diz, a bem dizer, nada. 4) A producio de interpretacées alusivas & imposta pela lingua, Pri- meiro, na medida em que ela contém marcas exigindo que se proceda a uma derivacio. Ja falamos da formula’ ‘Por favor’ que, mesmo ligada a uma Pergunta, impGe que se tire dessa pergunta um pedido, exigindo ao mesmo

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