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INTRODUÇÃO
dois textos jornalísticos que trazem relatos pessoais de duas praticantes da religião
muçulmana. Empreendemos análises de tais excertos não centradas na materialidade
linguística, mas sim na verificação dos sentidos construídos em relação ao uso do hijab.
Na seção intitulada “A arqueologia foucaultiana na Linguística Aplicada”,
discutimos as principais concepções do método arqueológico foucaultiano e sua conexão
com os estudos em Linguística Aplicada que focalizam a linguagem como prática social.
Tal abordagem tem o geminado intuito de alicerçar o referencial teórico-filosófico
empregado e debater as contribuições de Michel Foucault para a Linguística Aplicada,
campo dos estudos linguísticos em que inserimos o presente estudo. Entendemos que os
diversos sentidos verificados no ato do uso do véu islâmico não se explicam a partir de um
único campo do saber. Desta forma, buscamos na Linguística Aplicada, no método
arqueológico foucaultiano e em autores de diferentes áreas das Ciências Humanas e
Sociais uma perspectiva múltipla que nos permita investigar a heterogeneidade da referida
prática social.
De maneira a apresentarmos a multiplicidade do islã, que se relaciona também com
a diversidade de entendimentos sobre a deliberação do uso do hijab por mulheres
praticantes da religião, apresentamos um breve contexto sobre o islã. Discorremos a
respeito dos aspectos pouco conhecidos sobre a religião muçulmana, tais como as divisões
sectárias e as diferentes interpretações do Alcorão. Entendemos que, ao contrário daquilo
que é majoritariamente preconizado no Ocidente no tocante ao islã como uma doutrina
única, com apenas uma forma padronizada de ser muçulmano, a complexidade deste
remonta às origens da religião e perdura nas diferentes práticas de seus seguidores. A
visualização de um islã único, não diversificado, radical é, muitas vezes, colocada em
oposição à ortodoxia judaico-cristã. Dessa oposição binária, comumente, emanam
entendimentos a respeito de outras questões, como a liberdade feminina nas duas
entidades. Assim como as religiões cristãs no Ocidente, o islã também não é único e
padronizado, visto que se constitui como uma religião de práticas múltiplas entre suas
divisões sectárias.
Em seguida, apresentamos a seção de análise em que examinamos excertos de dois
textos jornalísticos. O primeiro, intitulado “Tornei-me muçulmana por convicção”, foi
publicado em 2 de maio de 2018, na seção Eu, leitora da revista Marie Claire. O segundo,
“A luta de Fátima para usar seu véu islâmico e combater o preconceito”, foi publicado na
seção Sua vida da Revista Cláudia em 1º de outubro de 2018. Para a seleção dos excertos,
coletamos aqueles que abordam a questão do uso do véu sob o viés da mulher muçulmana
que o adota por livre consentimento. Buscamos entender como ocorre essa escolha, tendo
em vista que a opção pelo uso do véu ainda soa como uma realidade estranha para aqueles
desconhecedores das práticas religiosas muçulmanas. Além disso, consideramos também
as imagens que acompanham os referidos textos, pois tais figuras não apenas ilustram o
texto jornalístico, mas também produzem sentidos sobre a mulher muçulmana.
justifica por si mesma e que é constituída e constituinte do mundo social. Neste aspecto,
notamos que essa perspectiva aponta para a demanda de uma Linguística Aplicada que
transite, cruze fronteiras e atravesse os campos do saber, que questione, aqui inspirados
por Foucault (2008), as condições de existência de determinado enunciado a fim de
entendê-lo na singularidade de sua situação. Diante do exposto, com o intuito de
compreender as condicionantes sócio-históricas que permitem a circulação e dispersão dos
enunciados aqui analisados, bem como as relações que provocam, trazemos à discussão
estudos de diferentes áreas das ciências sociais e das humanidades.
A transdisciplinaridade permite que o problema de pesquisa e o modo de
investigação sejam explorados por diferentes prismas, motivando uma investigação de
modo situado e que considere as relações complexas entre os campos do saber. Pensar um
modo de pesquisa e de análise transdisciplinar em estudos de linguagem é compreender
que as teias epistemológicas que atravessam as diferentes áreas podem ter mais pontos de
contato do que poderíamos imaginar. Há uma possibilidade histórica que perpassa o
processo de construção das ideias e conceitos. Apesar da diversidade dos pressupostos
teóricos, entendemos ser possível investigar, em uma abordagem transdisciplinar que
ultrapasse as fronteiras da disciplina (em seu duplo sentido), as semelhanças, trocas,
correlações e regras análogas.
Importante, neste momento, explicitar o convite de Foucault (2008) para o método
arqueológico de análise do discurso, para quem o discurso não se trata de um conjunto de
signos cuja análise deve desvelar algo, buscar as reais intenções, aquilo que está oculto. O
conjunto de enunciados entrelaçados em uma regularidade, ou o discurso, é entendido
como elementos dispersos, não conectados a princípio, sobre o qual a análise observaria
tal dispersão e buscaria as regras de formação a que estão submetidos. Foucault (2008)
propõe que a análise do campo discursivo compreenda o enunciado em sua singularidade,
determine as condições que permitem a existência deste, as regras que o controlam e sua
dispersão anônima.
Neste sentido, há uma condição de possibilidade histórica que provoca, na presente
década, o advento de uma publicação em mídia de grande circulação sobre o uso do hijab
por mulheres ocidentais. Os relatos estão posicionados historicamente em um momento
que permite sua existência. O que há de singular nesses relatos para que sejam postos em
O islã é uma religião pouco conhecida pela maior parte da população que vive no
mundo ocidental1, a qual, majoritariamente, acredita que os devotos daquela se comportam
de forma similar ou única. Esta conjuntura advém das questões que envolvem a tradição e
as diferentes interpretações do Alcorão,influenciando no pensamento sobre inúmeras
questões sociais, políticas e culturais, como o uso do hijab e de vestimentas como a burca.
Em contraposição, conforme aponta Pinto (2010), a religião islâmica é múltipla
desde a sua origem, pois, a partir da morte de um dos maiores representantes do islã em
1
A questão da divisão do mundo entre Ocidente e Oriente não se trata de uma segmentação geográfica do
globo terrestre, mas de uma oposição binária construída discursivamente e mutuamente de modo a fabricar
ambas entidades como opostas (SAID, 2007).
2
Advindos do sufismo, vertente mística do islã.
3
Grupo voltado à valorização das leis do Alcorão, independentemente do líder, ou seja, não defendem, mas
também não se opõem, que a maior representatividade esteja centrada em um sucessor da família de
Muhammad, priorizando somente aquele que melhor gerenciará a sua fé.
formações discursivas distintas e, muitas vezes, contrárias entre si. A esse respeito, por
exemplo, temos as diferentes visões das vertentes islâmicas (PINTO, 2010;
GROSFOGUEL, 2016), o discurso colonial ocidental, para o qual tais mulheres devem ser
salvas da opressão, projetos governamentais de secularização, como aquele ocorrido no
Iran na década de 30, ou ainda a proposta de feministas islâmicas contemporâneas, para
quem “[...] esto es um asunto que cada mujer musulmana debe decidir y no que los
hombres deban decidir por ellas”4 (GROSFOGUEL, 2016, p. 28).
Dessa forma, podemos inferir que o uso do hijab pelas mulheres muçulmanas não é
uma lei geral obrigatória, já que depende da vertente religiosa a qual cada uma é vinculada
e das motivações do grupo a que pertencem. Ademais, em sua origem, o véu era utilizado
com outros intuitos:
4
“[...] isto é um assunto que cada mulher muçulmana deve decidir e não que os homens devam decidir por
elas” (tradução nossa).
hostil, já que sua utilização pode simbolizar a fé e o orgulho de fazer parte da religião
(LAMRABET, 2016; ZOLIN VESZ; FELTRIN; SOUZA, 2019). A jornalista libanesa
Samira Zenni, que vive no Brasil, entrevistada por Lima (2016), justifica a não utilização
do hijab como forma de expressão de sua religiosidade.Apesar de contrária ao pensamento
de alguns xeiques, que a criticam, Zenni considera que, se utilizasse o aparato religioso em
seu ambiente de trabalho, acabaria chamando mais atenção por se destacar em meio a
outros colegas de trabalho, que utilizam as roupas mais convencionais nessa profissão,
roupas sociais em geral.
Além da estigmatização do uso do véu no Ocidente funcionando como elemento
materializado da opressão das mulheres muçulmanas, Lima (2016) aponta também outras
situações ocorridas em seu experimento de utilizar o hijab durante nove dias na capital do
Estado de São Paulo. A jornalista se ateve a frequentar os mesmos lugares que costumava
ir. Durante a sua pesquisa, constatou a postura tomada pela maioria das pessoas ao seu
redor, alterando seu semblante diante dela, com olhar piedoso, vindo a ser mais gentis
(também advindo da pena de lidar com uma mulher que carrega o estigma de submissa e
oprimida). A autora relata ainda o embaraço quanto à sua mãe, que não legitimava seu
trabalho (LIMA, 2016).
As disparidades encontradas nas imposições ou não da utilização obrigatória do
véu pelas mulheres muçulmanas têm em vista perspectivas diferentes tanto de pessoas não
praticantes quanto dos adeptos da religião islâmica, pois a questão do véu não é
consensual mesmo para os membros do islã. Por outro lado, conforme apontado por
Lamrabet (2016), o texto corânico traça orientações e diretrizes a homens e mulheres
sobre uma ética global de decência, respeito e moderação em relação ao corpo, sem
especificar uma maneira específica de se vestir. Ao abordar os diferentes discursos
islâmicos contemporâneos sobre o hijab, a autora apresenta as visões contraditórias que
partem da interpretação do texto corânico e da jurisprudência islâmica: o véu como
“proteção” (posicionamento defendido pela maioria dos ulemás xiitas e sunitas); o véu
como resistência política e emblema identitário (defendido por militantes do islã político e
intelectuais); ou ainda o uso do véu como recomendação e não obrigação (posicionamento
de xiitas e sunitas reformistas) e, por fim, a noção de recomendação-eleição
(posicionamento que deixa às mulheres a autorregulação de seus corpos). A diversidade de
Essas seções se enquadram em partes específicas das revistas, nas quais notamos a
presença de variados relatos excepcionais. Exemplificando, na seção Eu, leitora, da revista
Marie Claire, podemos verificar uma reportagem intitulada “Durante seis meses, namorei
o cara que me assaltou”; e na revista Cláudia, na seção Sua vida, há um relato denominado
“Casal abandona filha adotiva e a acusam de tentar matá-los”. Esta analogia tem o intuito
de explanar que relatos tão excepcionais como um assalto ou uma queixa de tentativa de
homicídio compartilhem das mesmas seções, nas respectivas revistas, em que se
encontram os relatos de mulheres convertidas ao islã e que decidem optar pelo uso do
hijab de maneira espontânea.
A partir do entendimento de que os elementos visuais recebem grande destaque nas
reportagens, analisamos preliminarmente os conteúdos das imagens. Entendemos que as
imagens apresentam um importante papel no convite ao leitor para entender mais sobre a
realidade daquilo que a fotografia representa, estampando (ou não) o retrato de um(a)
verdadeiro(a) leitor(a) de história atrativa, porém igualando-se ao leitor na condição de
também o ser. Posteriormente, trataremos dos títulos, juntamente com os excertos de
ambos os textos selecionados.
5
O orientalismo é conceituado por Said (2016, p. 29) como “um estilo de pensamento baseado numa
distinção ontológica e epistemológica feita entre o Oriente e (na maior parte do tempo) o Ocidente”. Para o
autor, o Oriente foi produzido discursivamente de modo a contrastá-lo ao Ocidente. De acordo com a tese
saidiana, ao se construir um Oriente primitivo, belicoso e bárbaro, o Ocidente é produzido, em contraste,
como moderno, pacífico e civilizado.
tendo como início aqueles que se encontram em destaque, logo abaixo do título e, em
seguida, os demais excertos que consideramos relevantes para esta análise. De modo a
entrelaçar ambos os textos, por entendermos que se conectam discursivamente,
intercalamos os excertos em alusão aos atos da confecção de uma veste – seja da agulha
que vai e volta na costura ligando dois pedaços de pano, seja dos fios que se entrecruzam
na produção de um único tecido. Entendemos que não só de seda, chiffon ou algodão se
fazem os véus islâmicos, mas também de relações de poder que produzem e apoiam
verdades sobre o mesmo, que permitem a durabilidade de concepções acerca do uso do
hijab.
nova fé”, é possível notar a dicotomia entre dois modos diferentes de vida. Tal qual
preconiza Said (2007), o modo de vida ocidental e oriental são construídos
discursivamente como antagônicos, sendo assim, ao ressaltar a independência da leitora e
seu estilo de vida, que retoma a liberdade feminina ocidental, o texto parece colocar em
evidência dois pontos principais: a conversão ao islã pode ser uma escolha livre e
consentida; há conciliação (embora esta precise ser contada, já que é desconhecida pelo
senso comum e infere estranheza) entre a vida ocidental e a fé islâmica. A imagem da
mulher ocidental livre, independente, que opta por uma fé cujas práticas são construídas
como antagônicas àquilo que a entidade Ocidente representa, faz oscilar as verdades
colocadas em circulação a respeito da mulher muçulmana, suas vestes, submissão e, como
nos apresenta Abu-Lughod (2012), sua necessidade de ser salva pelo Ocidente.
Ademais, “tornei-me”, no título da reportagem, indica a decisão da mulher,
construída discursivamente como livre e ocidental, de tornar-se muçulmana. Ela não foi
transformada, mas tornou-se sem que lhe impusessem tal conversão. O que se consolida
com “por convicção”, que reforça a ideia de uma ação por escolha própria, reiterando o
seu papel de uma mulher que enfrenta os desafios sociais, por mais surpreendente que seja
tornar-se uma muçulmana, sugerindo, assim, um comportamento inusitado. Dessa forma,
infere-se que as mulheres ocidentais são, indubitavelmente, livres. A incompatibilidade
entre a liberdade ocidental e a fé islâmica é reforçada pelo subtítulo “Ela conta como
concilia a vida de ocidental com a nova fé”, o qual transmite a ideia – ao comparar – de
que a mulher do Oriente seja, em todo (ou quase todo) caso, oprimida, além de contrastar
mulheres a partir da ótica orientalista que opõe as entidades oriental e ocidental. O verbo
“conciliar” funciona como um elemento que também ressalta tal entendimento, pois só é
necessário conciliar partes em desarmonia. Em outras palavras, a “nova fé” de Fátima é
percebida como um componente em discrepância com a vida ocidental.
O excerto 2 refere-se ao texto intitulado “A luta de Fátima para usar seu véu
islâmico e combater o preconceito”, encontrado na seção Sua vida da Revista Cláudia.
Vale ressaltar que a referida seção trata de assuntos variados e, entre esses, temas
inusitados que visam manter o interesse de seus leitores nas edições da revista. Sendo
assim, depreende-se que uma reportagem de temática que aborda a vida de uma mulher
muçulmana é, no mínimo, incomum. Similarmente à narrativa de Doha, a história de
Fátima se trata de um relato excepcional, surpreendendo os leitores da revista, já que relata
a história de vida de uma mulher anteriormente livre, que se propôs a lutar pelo uso do véu
islâmico, aquele que se pressupõe como sendo um símbolo marcante da opressão vivida
pelas mulheres muçulmanas. Outra semelhança se relaciona à escolha espontânea da
protagonista do relato, que toma a decisão de utilizar o hijab, se opondo à ideia implícita
de imposição.
O título é composto por elementos que reforçam a decisão de Fátima como uma
escolha, além de demonstrarem que tal escolha se constituiu como um ato de embate. O
substantivo “luta” e o verbo “combater”, encontrados no título do texto, demonstram o
demasiado esforço de Fátima ao decidir, finalmente, usar o véu do islã, superando o seu
medo de usá-lo no Brasil e tentando combater o preconceito que se tem sobre as mulheres
que o utilizam. A sua escolha, portanto, é construída como advinda de sua própria decisão
e não da imposição por outrem ou por entidade religiosa ou cultural, muito embora, em
trecho da reportagem, o jornalista apresente a noção de que o véu é uma prática
requisitada pela religião islâmica.
O sentido produzido por “luta” e “combater” retomam uma formação discursiva
que constrói o islã como uma alteridade radical no mundo ocidental, ou seja, a escolha de
Fátima se transmuta em luta e combate por estar associada a uma entidade oposta ao
Ocidente, lugar em que ela é posicionada. O preconceito a ser combatido é também
advindo dos estereótipos que foram mobilizados sobre o islã, ao longo de muitos anos, de
modo a produzir generalizações que ocultam a diversidade do mesmo (PINTO, 2010),
além de minimizarem ou silenciarem as contradições do próprio mundo ocidental.
O hijab é, muitas vezes, entendido no Ocidente como um símbolo da opressão
feminina, do atraso, além de, em especial após 2001, ser associado ao estigma do islã
terrorista. Por outro lado, embora a reportagem ressalte o preconceito, Pinto (2010) aponta
que, no Brasil, a concepção que atrela o islã ao terrorismo com a queda das Torres Gêmeas
concorria, em 2001, com os discursos de cunho positivo veiculados na novela O Clone.
Ainda que haja preconceito, a arena de embate de sentidos envolvida na escolha do uso do
véu islâmico não monopoliza o discurso da intolerância, pois é possível que haja a um só
tempo, na construção discursiva sobre o Brasil contemporâneo, o país da hospitalidade,
que abarca diferenças, e também o da intolerância, que destila o preconceito (SOUZA;
ZOLIN VESZ, 2018).
Outrossim, a singularidade da história de Fátima se repara no subtítulo, pois, ao
usar o véu, Fátima “sentia medo por estar no Brasil” e se morasse no Líbano seria
considerada uma mulher comum. Os trechos concernem ao pressuposto de que o uso do
véu é restrito a uma região específica do mundo, o Oriente, refutando-se o caráter religioso
que está além do âmbito cultural e varia de acordo com a vertente do islã. Além
disso,ainda que a principal parcela de muçulmanos esteja no Oriente Médio e Norte da
África, é possível encontrá-los em qualquer região do mundo. Vale ressaltar que no Brasil
há uma significativa comunidade de muçulmanos, tanto imigrantes advindos do Oriente
quanto brasileiros convertidos, e constata-se ainda que “o número de convertidos na
comunidade muçulmana do Rio de Janeiro passou de 15% em 1997 para 85% em 2009”
(PINTO, 2010, p. 211). Ou seja, esses convertidos podem ou não optar por utilizar as
vestimentas características do islã, dependendo da vertente em que escolham se inserir,
por conta disso, o uso do véu não se restringe somente a pessoas advindas de países afora.
Além disso, o medo de usar o véu e a noção de que não sentiria tal medo no Líbano
são construções que retomam uma vez mais o caráter antagônico entre o estilo de vida
ocidental e o islã. Importante ressaltar que, por outro lado, o medo relatado se contradiz
com os ideais ditos ocidentais de liberdade feminina, que apontam, quando em contradição
com a mulher oriental, a liberalidade da escolha de vestimenta e a autorregulação do corpo
feminino. Ao se enfatizar o medo de usar o véu islâmico durante o dia, símbolo de uma
alteridade radical, não se discute, por exemplo, o medo da mulher ocidental em utilizar
uma minissaia no período noturno. Para além dos véus e saias, ou da localização aqui ou
lá, a liberdade para escolha da vestimenta está justaposta por sistemas de poder que
ratificam a opressão sobre o corpo feminino – esteja ele no Brasil ou no Líbano.
autobiografia e ter sido laureada com um Prêmio Nobel, continua vestindo roupas comuns
paquistanesas (BASTOS, 2016). Assim, mesmo sob a égide da liberdade e autonomia
ocidentais, Yousafzai decidiu continuar a usar o hijab que tanto combina consigo mesma,
em sua opinião, e ainda simboliza a sua fé.
Na ordem do discurso, o sujeito fala de um determinado lugar, não sendo, portanto,
plenamente autônomo em suas práticas discursivas (FOUCAULT, 2008), o que, por outro
lado, não significa que tal sujeito não possa se perceber como dono das próprias escolhas.
Trata-se de “[...] um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por
indivíduos diferentes” (FOUCAULT, 2008, p. 107). A multiplicidade de concepções sobre
o uso do véu islâmico aponta para as posições ocupadas por diferentes indivíduos. Os
enunciados que apontam para a prática do uso do véu como uma escolha do indivíduo não
se originam no relato das brasileiras Fátima e Doha, mas estão dispersos em uma malha
discursiva que alcança, inclusive, mulheres muçulmanas que vivem no Oriente Médio, na
Europa, em diversas partes do globo terrestre.
Os efeitos de sentidos colocados em circulação por relatos como o de Doha,
Fátima, Malala e outras milhares de muçulmanas que usam o véu islâmico no Ocidente, ao
nosso ver, sinalizam a multiplicidade não apenas do islã, como também do espaço
polissêmico em que se constrói o mundo contemporâneo. O perigo da história única, que
aponta uma verdade irrefutável sobre o véu islâmico, silencia outras verdades, outras
vozes e histórias de vida que podem nos permitir uma compreensão sobre o mundo social
– que não é único e fixo, mas móvel, flexível e fragmentado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, analisamos os relatos de duas brasileiras que usam o véu islâmico
como prática religiosa no Brasil e afirmam utilizarem a veste por livre escolha.
Concebemos tais relatos como vozes díspares frente aos discursos comumente percebidos
no mundo ocidental sobre o véu islâmico, pois colocam em circulação enunciados que se
distanciam daqueles que conectam o hijab à submissão feminina. A possibilidade de
escolha feminina pelo uso do véu contradiz os discursos dominantes que apontam que tal
vestimenta é imposta às muçulmanas. Ao mesmo tempo, tais relatos nos permitem
entender que tal escolha não é isenta de complicações, o que se denota na confissão do
REFERÊNCIAS
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Disponível em: <https://claudia.abril.com.br/sua-vida/a-luta-de-fatima-para-usar-seu-veu-
islamico-e-combater-o-preconceito/>. Acesso em: 23 ago. 2020.
FOUCAULT, M.; MACHADO, R. (Org.). Microfísica do poder. 25.ed. São Paulo: Graal,
2012.
GROSFOGUEL, R. Breves notas acerca del Islam y los feminismos islâmicos. In:
GROSFOGUEL, R. (Org.). Feminismos Islámicos. 1.ed. Caracas: Fundação Editorial El
perro y larana, p. 10-37, 2016.
LIMA, K. Descobrindo o Islã no Brasil. 1ªed. São Paulo: Editora Hedra, 2016.
SALVADOR, M. A luta de Fátima para usar seu véu islâmico e combater o preconceito,
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