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Materialidade e

transdimensionalidade
nas novas textualidades
electrónicas: uma
transição de paradigma?
[Entrevista de Rui Torres (RT) a Pedro
Barbosa (PB), Março de 2016]
Revista Cibertextualidades n.8 [2017] - ISSN: 1646-4435 139 - 162 141

RT – Gostaria de começar por lembrar a tua pouco mais de uma década para que a globali-
Fábula ufológica n.º 12: «O UNIVERSO COMO zação da Internet tornasse este milagre possível.
HIPERTEXTO», na qual algumas questões re- Algo impensável há duas décadas atrás.
levantes para este diálogo parecem estar já
tratadas, nomeadamente a relação entre links Assim poderão conceber-se as viagens espaciais
textuais, portais dimensionais, wormholes e via- entre estrelas ou galáxias infinitamente distantes
gens intergalácticas. Transcrevo, na totalidade, segundo as leis espácio-temporais da geometria
com a tua autorização: einsteineana. Uma hiperligação feita de um texto
para outro é um verdadeiro wormhole, um portal
dimensional que liga informaticamente dois quais-
«O UNIVERSO COMO HIPERTEXTO» quer blocos de conhecimento do nosso mundo,
(links textuais, portais dimensionais, wormholes e por mais distantes que se encontrem.
viagens intergalácticas)
Então, sem violar sequer o limite da velocidade da
«E o mundo, sou eu que o contemplo, é ele que luz, as ainda hipotéticas viagens interestelares po-
me contempla, ou trocamo-nos?» Herberto Helder dem ser concebidas exactamente assim: na condi-
ção de conhecermos ou criarmos esses links, esses
Os wormholes, furos ou buracos de verme, de que túneis espácio-temporais entre mundos distantes
tanto se fala hoje em Cosmologia, são uma espécie ou entre mundos paralelos. Tais portais interdi-
de links, de verdadeiras hiperligações que atraves- mensionais permitiriam, com igual facilidade, a co-
sam o “hipertexto” do universo: o Universo é hiper- nexão entre mundos infinitamente distantes, e isso
dimensional. E o hipertexto, que hoje impregna o independentemente da distância a que se possam
mundo da cibercultura humana, nada mais é do encontrar num espaço euclideano – que não no
que uma alegoria textual desse universo. Outrora, hiperespaço! Basta conceber o Universo à seme-
e bastará recuar uns dez ou quinze anos, um histo- lhança estrutural do hipertexto, que é um texto
riador, antropólogo ou literato que quisesse estu- 4D, a quatro dimensões: tal qual o hipercubo dos
dar um livro chinês teria que agendar uma morosa matemáticos, que é um cubo 4D. Um link textual
viagem a Pequim para se deslocar à biblioteca na- torna-se então, no mundo cultural, o protótipo em
cional e lá o consultar. Levaria meses a consegui- escala reduzida do que poderia ser um “portal cós-
-lo. Hoje o investigador apenas precisa de se ligar à mico” ou ligação interestelar no infinito contexto
Internet e, mergulhado na infosfera, acede instan- transgaláctico do Universo: e usamos aqui o termo
taneamente ao texto desejado. Mais: se accionar “portal” (ou “vórtice interdimensional”) proposita-
no seu navegador uma ferramenta de tradução damente para evocarmos a terminologia cara aos
automática, poderá até obter uma versão apro- esotéricos da cosmologia ou da ufologia holística.
ximada do livro chinês para a sua própria língua.
Então, um link assim é um verdadeiro “buraco de Uma hipótese a ser ensaiada a curto prazo?
minhoca”, um atalho textual que liga quase instan-
taneamente dois universos culturais situados nos (Pedro Barbosa, in: Fábulas Ufológicas e outros en-
antípodas do nosso espaço geográfico: através saios: na órbita da questão extraterrestre, Bubok Pu-
dessa hiperligação ele passa imediatamente de blishing S. L., 2014)
um texto para outro texto independentemente da
distância. Praticamente todos os textos do mundo RT – Não deixa de ser curioso que este texto te-
virtual passaram a estar acessíveis à distância de nha como epígrafe um verso do Herberto Helder,
um nada, ou do simples clicar de uma tecla. Um poeta que ambos apreciamos e que nos serviu
texto na China não demorará muito mais tempo a como material base para experiências no âmbito
ser visto no ecrã do que um outro texto localizado da literatura gerada por computador… Diz esse
no nosso próprio computador. Anulou-se o tem- verso: «E o mundo, sou eu que o contemplo, é
po e o espaço que separava esses textos. E bastou ele que me contempla, ou trocamo-nos?».
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PB – Sem dúvida. O Herberto Helder, de facto, PB – De certo modo sim. Porque para mim o Todo
tinha uma intuição inata curiosíssima. Isto tem existe em estado potencial: o que chamamos de
um significado incrível. Nós julgamos que ob- realidade é tão-só uma das suas múltiplas ma-
servamos, mas na realidade não estaremos a ser nifestações. Daí o jogo entre o texto potencial
observados? Há aqui uma interacção muito in- (que é um texto matricial, gerador, mas em es-
teressante entre o sujeito e o mundo… Uma re- tado virtual) e o texto actual, ou multitexto, pois
lação que é dialéctica, biunívoca, bidireccional. na verdade é um campo textual, uma imensa
variabilidade de textos concretizáveis. Talvez
RT – De qualquer modo, neste texto acima por isso, esse sempre tenha sido o cerne do meu
transcrito, sugeres que a ligação entre dois links trabalho no âmbito da Ciberliteratura, tanto na
constitui uma espécie de wormhole. A minha exploração de estruturas combinatórias quanto
pergunta é: não fazemos já isso mentalmente, aleatórias. Não é a própria Natureza, tal como o
com os mecanismos de referência, com a inter- nosso próprio ADN, uma infinita combinatória
textualidade, as alusões discursivas? Qual a di- de átomos e de moléculas diferentemente es-
ferença entre este tipo de ligação, a qual activa, truturadas? Claro que isto nos levaria a modelos
tornando presente um certo dado de um certo científicos como a teoria dos mundos paralelos,
reportório, e essa tua referência aos links como a teoria dos mundos possíveis, ou ao conceito de
wormholes? multiverso.

PB – Essa questão é interessante, pois tudo está RT – A falta de instrumentos científicos estará
interligado com tudo. Mas aqui eu terei de an- relacionada com a falta de aparato conceptual
tecipar que tento hoje estabelecer uma ponte para entender estas manifestações, seja nas ci-
entre o que gostaria de chamar a minha passa- bertextualidades, seja nas trans-consciências do
da fase ciberliterária e a actual fase ufológica ou mundo? Faltam-nos metalinguagens?
alienígena. E viria a propósito evocarmos então
aqui um conceito algo distante mas que é a base PB – Eu diria que sim, mas só em parte. Admi-
do hermetismo (e Herberto Helder estava im- to que haja vários níveis evolutivos, cognitivos,
pregnado de hermetismo): ou seja, «o que está diferentes densidades e dimensões nessa cebola
em cima é o que está em baixo», ou então «o que cósmica do multiverso. Veja-se só neste nosso
está fora é o que está dentro». A ufologia anda à plano matérico 3D: conseguirá uma barata en-
procura, fora de nós, das respostas para aquilo tender algo da civilização humana dentro da
que está dentro de nós. E também conviria re- qual habita? Que saberá um peixe no mar, ou
cordar o conceito esotérico de Akasha, que em mesmo num aquário, da existência do ser hu-
sânscrito suponho ser equivalente a “éter”, daí mano? Ou como poderá um verme debaixo da
o “arquivo akáshico” ou etérico – algo que me terra, cego e surdo, conhecer as estrelas no céu?
me faz pensar na cloud, na “nuvem virtual” que Para ele não existe astronomia, é quase certo!
é hoje a internet global, onde se arquiva em es- E estamos a falar de seres que de certo modo
tado desmaterializado o conhecimento humano co-habitam o mesmo plano matérico que nós.
a nível mundial. Vejo essa grande rede mundial Com isto quero dizer que há barreiras sensoriais,
como uma espécie de protótipo electrónico, à cognitivas, evolutivas, intransponíveis neste
pequena escala humana, do akasha cósmico. universo. O que mais haverá num multiverso
Um sinal da transição planetária que, segundo pluridimensional? Por isso eu colocaria aqui as
creio, estamos a atravessar? coisas um pouco ao contrário. Talvez não seja só
a falta de instrumentação científica. Estou cada
RT – Esse mesmo princípio parece estar envolvi- vez mais convencido de que estamos num mo-
do na passagem do material ao imaterial, obri- mento de transição vibracional, a passar de 3D
gando-nos a repensar a própria relação entre para 5D: ainda estamos a meio do caminho, que
virtual e actual na textualidade? é uma situação instável de 4D, e é aí que a infor-
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mática, a meu ver, tem o seu lugar na transição.


Nesta fatia 4D transitória por que estamos a pas-
sar, a nossa consciência 5D vai precisar de formas
de expressão adequadas a uma nova compreen-
são das coisas. Quem está plenamente enraiza-
do na terceira dimensão não consegue entender
isto. Consideremos só a diferença entre uma in-
teligência concreta e uma inteligência abstracta.
Um agricultor primitivo, por exemplo, sabia mui-
to bem quando semear, como agir neste univer-
so, mas não tinha a compreensão abstracta de
como as plantas se desenvolvem, nem de todas
as energias solares, e outras, que intervêm nesse
processo de revitalização. Portanto, ele tem essa
inteligência concreta, mas não tem inteligência
abstracta. Pelo contrário, um biólogo, um biólo-
go de laboratório que estuda a célula, por exem-
plo, é capaz de compreender muito melhor o
processo vital, mas nem sempre de fazer o que o Figura 1. Representação de Cubo 4D. Fonte: https://
agricultor faz. Refiro esta distinção para ajudar a commons.wikimedia.org/wiki/File:Hypercube.svg
compreender a razão por que algumas pessoas
estão tão completamente formatadas para viver RT – É, no fundo, a história de Flatland: A Ro-
em 3D, no mundo matérico, e porque toda a sua mance of Many Dimensions, o “romance” de
inteligência é aplicada nesse processo. Digo isto 1884 escrito pelo Edwin Abbott (professor da
sem juízos de valor, simplesmente essas pessoas Universidade de Cambridge) com o curioso
não são capazes de entender uma vida diferente pseudónimo “A Square” (Um Quadrado), onde
dessa. Penso que há neste momento de transi- descreve um mundo de duas dimensões… Esse
ção duas humanidades em presença: uma invo- livro, aparte a questão de apresentar uma certa
lutiva ou estacionária, e outra evolutiva. Já não visão crítica das hierarquias vitorianas da época,
conseguem entender-se uma à outra: daí, talvez, ilustra de um modo muito criativo e peculiar a
a conflitualidade insanável que se instalou no forma como a dimensão em que vivemos nos
planeta a nível global. Uns continuarão a viver impede de entender outras dimensões, isto é,
em 3D, outros fazem a transição para 5D. nos impede, no fundo, de interpretar o que está
além daquilo que nos rodeia. Um pouco como as
obras de Lewis Carroll (pseudónimo de Charles
Lutwidge Dodgson, também ele foi um reco-
nhecido professor de lógica e matemática em
Oxford), por essa mesma altura, com obras de
efeito semelhantes, como Alice no País das Mara-
vilhas, entre tantas outras…

PB – Ora nem mais! Isso explica perfeitamente


muita coisa. Eu só acrescentaria a Flatland esta
faceta: a possibilidade do trânsito ou de comuni-
cação entre dimensões. A interdimensionalida-
de, portanto, em certas condições de transição.

RT – E como é que se define um mundo 5D?


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PB – Ora bem, para isso era preciso lá estarmos, tre materialismo e espiritualismo. Um tem uma
não é? (risos). Eu arriscaria dizer que o mais pró- visão ascendente, o outro descendente. Repito,
ximo do que julgo poder assemelhar-se a um não há aqui um juízo de valor de superioridade
mundo 5D seria a nossa experiência onírica. Ou ou inferioridade. Para o espiritualista é o espírito
as chamadas viagens astrais, que são experiên- que desce e que se materializa na matéria. Para o
cias fora do corpo físico, em corpo subtil, ener- materialista é o contrário: a consciência nasce da
gético. Já que citaste livros, também o clássico complexificação da matéria, da complexidade
Um Conto de Natal do Dickens, tem muito disso do cérebro, etc. É esse o ponto de vista das neu-
na sua última versão cinematográfica de Robert rociências. Para o espiritualista não é o cérebro
Zemeckis (2009). Ora, quando nós sonhamos, o que gera o pensamento, a consciência, antes se
espaço e o tempo anulam-se, nós transitamos vê o cérebro como uma espécie de antena, de
de um lugar para o outro, ou de um momento rádio, que capta vibrações mais subtis. Repare-
para outro, instantaneamente. Aí, a velocidade -se: quando ouvimos rádio, a música não está lá
é a do pensamento, ou da imaginação. Os seres dentro, no aparelho, ele apenas capta as ondas
com quem contactamos num sonho mudam de electromagnéticas que trazem a música gerada
visual e nós dizemos: é o Julião, é a Juliana. No noutro lugar. A meu ver foi assim que o pensa-
entanto, eles têm rostos diferentes do Julião e da mento científico materialista que vigorou nos
Juliana que conhecemos na vida real, no mundo últimos séculos, particularmente desde o Ilu-
concreto 3D, e no entanto essa experiência oníri- minismo, com o seu apogeu no positivismo do
ca que nos parece absurda no plano do real, não século xix, anulou por completo esta perspectiva
é absurda quando estamos a sonhar. Na verdade, triádica do ser humano, que é a sanduíche que
é a nossa realidade, quando estamos a sonhar. É nós somos na terceira dimensão. Para simplificar:
uma realidade que abdica de determinados ne- o corpo, a mente e a consciência, no meu modo
xos espácio-temporais, nexos lógicos, etc., dos de ver, correspondem exactamente ao triângu-
quais nós precisamos para viver nesta estrutura lo semiótico do significante, do significado e do
matérica densa. Mas nos sonhos o sentimento sentido. O triângulo semiótico está na nossa es-
íntimo, intrínseco, do nosso “eu” permanece o trutura humana 3D.
mesmo independentemente da forma, do cor-
po da personagem que a representa. O mesmo RT – Não deixa de ser intrigante o facto de, pelo
para o reconhecimento do “outro” (do Julião e da menos em teoria, a dimensão do imaginário do
Juliana). Esse “eu” que atravessa múltiplos planos ser humano, a sua perspectiva artística, tenda
é o que eu chamo de “eu transcendental”, para sempre para isso. Bastaria pensar em Pirandello
evitar as conotações religiosas de palavras como – e isto sem querer (ou querendo…) trazer aqui
alma ou espírito. E designo-o por “eu transcen- o teu passado, já que há todo um percurso teu
dental” porque é ele que também transcende o que também passa por isso, no que diz respeito
nascimento e a morte, o antes e o depois. E isto aos estudos de teatro, etc. – para encontrar essa
para não entrarmos nas teorias reencarnacionis- dissolução das fronteiras: a vida é arte e a arte é
tas… Mais uma vez, não há aqui um juízo de va- vida; o sonho é real e o real é sonho…
lor de superioridade ou inferioridade. Talvez até
seja o contrário, já que quem desce ao mundo PB – Vem mesmo a propósito, essa tua obser-
denso é quem mergulha numa vida mais difícil, vação. A dimensão imaginária, que referes, tem
é quem tem uma experiência de vida mais difícil, a ver com os sonhos na medida em que ambos
mais dolorosa, mais resistente… É muito mais fá- nos levam para outros mundos possíveis. “A rea-
cil voar num sonho do que aqui, pois lá, o nosso lidade é muito mais inverosímil do que a ficção”,
corpo flutua no ar… Porém, quando acordamos, afirmava Luigi Pirandello na esteira de Mark
quando reentramos no corpo físico, ficamos per- Twain – e toda a sua obra o demonstrou. No caso
plexos por já não conseguirmos fazer o mesmo. É de Pirandello a peça Sogno ma forse no (Sonho,
aqui que a meu ver se enraíza a velha disputa en- ou talvez não) é um bom exemplo. Faz lembrar
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aquele antiquíssimo paradoxo de Lao Tsé: Sou comunicação se fazia de um para todos, a partir
eu que sonho que sou uma libélula, ou sou uma de um centro difusor. No entanto, a comunica-
libélula sonhando que é um ser humano? Por ção em rede não tem centro nem periferia, vai de
isso vejo nesse verso de Herberto Helder algo todos para todos. E esta comunicação em rede
zen, algo da dualidade taoísta: «E o mundo, sou está a alterar a civilização humana em muitos as-
eu que o contemplo, é ele que me contempla, ou pectos, e isto tem sido já muito estudado. O que
trocamo-nos?». Supera a oposição clássica entre me parece importante na internet, na nuvem, na
subjectividade e objectividade. cloud, é que a internet, no fundo, é uma nuvem
electrónica à volta da Terra para a qual fazemos
RT – E como é que tudo isto te leva, como tens migrar todo o conhecimento humano. De cer-
comentado, às novas textualidades electrónicas? to modo, aquilo com que sonhava Teilhard de
Chardin e a que chamava noosfera, só que hoje
PB – Precisamente porque todas nasceram da não é já uma noosfera puramente mental, mas
computação. Penso que estarás de acordo co- antes uma esfera electrónica onde se materia-
migo se eu disser que neste último meio sécu- liza a informação. Nós passamos para essa nu-
lo a evolução tecnológica foi tão acelerada que vem electrónica todo o conhecimento humano,
ela evoluiu muito mais do que durante os vários para o bem como para o mal, as verdades e os
milénios que vão da civilização Suméria até à erros. Haja em vista a Wikipédia, o YouTube, e
Revolução Industrial na Inglaterra. A revolução congéneres… Na confusão da internet temos de
tecnológica tem pouco mais de um século, e não certa maneira a cultura humana condensada, e
sete milénios. E é aqui que a ufologia e a infor- quando nós precisamos de saber alguma coisa,
mática parecem cruzar-se, mesmo que pareçam instantaneamente vamos a um motor de busca e
tão divorciadas. Segundo muitas investigações encontramos lá alguma coisa, nem que seja um
ufológicas (e não são teorias da conspiração), hipercubo (risos), como há pouco nós próprios
parece poder concluir-se (e eu partilho dessa fizemos. Isto faz-me pensar no pensamento
hipótese) que muito desta última vaga da evolu- hermético, hindu, egípcio, hebraico, etc., até ao
ção electrónica se deve à colaboração secreta de neo-esoterismo, com o chamado arquivo akáshi-
alguns países com civilizações alienígenas muito co. Julgo que a ideia de muitas religiões de que
mais evoluídas que se encontram entre nós. Pe- “tudo está escrito” vem daí: todo o conhecimen-
las experiências que me foi dado vivenciar nos to do universo está nesse akasha etérico, que é
últimos anos, eu estou convencido que muita uma espécie de internet cósmica. Claro que nós
dessa tecnologia foi-nos fornecida por seres não temos acesso ao akasha no nível evolutivo
extra-planetários ou mesmo inter-dimensionais. em que nos encontramos… Mas a internet hu-
Mas isso é outra história, impossível de contar mana funciona como uma espécie de protótipo
aqui, nem teria cabimento. desse arquivo akáshico, ao qual acedem seres de
evolução superior. Ao que se admite, de 5D para
RT – Essa tecnologia refere-se à máquina univer- cima, pois isso implica estar fora dos constrangi-
sal do Turing, e o que daí adveio? mentos humanos do tempo e espaço…

PB – Podemos ver a coisa assim, na sua estrutura RT – Mais: estamos a construir esse “arquivo” em
básica. Mas a meu ver há algo mais. Tanta coisa tempo real, já que a internet está neste momen-
acelerou este processo vertiginosamente que to diferente daquilo que era quando começá-
a civilização actual já quase funciona em rede mos a nossa conversa, este arquivo “tosco” está
(não podemos esquecer que a internet tem ape- em metamorfose e em permanente transforma-
nas duas décadas…). E esta comunicação em ção, partilha da latência e da abertura…
rede constitui algo completamente diferente da
comunicação em leque, a que tínhamos até ao PB – Pois, acompanha a mutação da vida huma-
tempo da televisão e dos mass média, em que a na. Por isso eu vejo na internet uma espécie de
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metáfora ou protótipo do que chamamos Arqui- RT – Façamos aqui um pequeno parêntesis. A


vo Akáshico a nível cósmico, ou etérico, onde escrita já fazia um corte epistemológico com as
estão “registadas” as nossas vidas passadas, pre- nossas concepções de espaço e tempo. Ela ins-
sentes e futuras, ou seja, onde estão todas as po- creve, rasura, num suporte, permitindo enviar(-
tencialidades e aquilo que o labirinto da vida nos -se) à distância. No momento dessa inscrição, no
permitiu realizar, ou seja, as coisas actuais. Esta escrito, todas as outras opções, porém, desapa-
dicotomia entre potencial e actual joga-se aqui. recem. No hipertexto, pelo contrário, podemos
Tanto na vida como no texto virtual. Por isso é fazer uma espécie de reverse engineering, isto é,
que aquela citação do Fernando Pessoa que está nós conseguimos identificar os traços das possi-
ali (aponta para um poema na parede): “Quanto bilidades, o mapa dos sins e dos nãos. Que salto
fui, quanto não fui, tudo isso sou” ou ”Quanto é que há, na nossa concepção de espaço e tem-
quis, quanto não quis, tudo isso me forma.”, são po, da escrita, que dissolve um paradigma, para
para mim versos iluminados. De alguém que, o hipertexto?
através da poesia, do imaginário, acedeu a algo
de muito mais subtil. Do ponto de vista exis- PB – Era justamente aí que eu queria chegar. E
tencial, tanto quanto do ponto de vista textual. essa questão leva a múltiplas respostas, mas
Entrando agora no domínio das textualidades, aqui vou salientar apenas uma. É porque o hi-
consideremos a estrutura do hipertexto, que pertexto, tal como o texto combinatório ou o
é a mais conhecida e a que usamos com mais texto potencial, guarda dentro de si o passado,
frequência. O hipertexto é um labirinto: nós per- o presente e o futuro. Está de certo modo no
corremos um caminho de leitura, mas quem ge- extra-tempo, na tal transição do nosso plano
rou o hipertexto gerou imensas possibilidades, (ou planeta) de 3D para 5D. Daí a sua estrutura
gerou um campo de possíveis ou, se preferires, mediadora a 4 dimensões, o tal cubo 4D de que
um campo de leitura praticamente infinito. O falámos no início da nossa conversa. No entan-
leitor percorre um caminho com um objectivo to, para conseguirmos ligar estas manifestações
e uma meta: toma uma direcção. No entanto, textuais àquilo que a cosmologia e a ufologia es-
ele pode, se quiser, percorrer muitos outros ca- tudam, estas estruturas trans-dimensionais, não
minhos. E por ínvios caminhos atingir a mesma podemos prescindir daquela crença universal na
meta. Como na vida. Daí talvez o dito popular: “metempsicose” (ou teoria das vidas passadas,
“Deus escreve direito por linhas tortas”. Nós te- que nos leva à teoria dos mundos paralelos e
mos de facto um caminho a percorrer, e pode- à ideia de um universo multidimensional…). É
mos percorrê-lo em linha recta ou com muitas como se essa ideia estivesse de certo modo ins-
curvas, mas temos de chegar à meta, temos de crita em nós, no nosso inconsciente colectivo. E,
atravessar o Hipertexto da Vida. No entanto, to- voltando à experiência onírica, o que nos mos-
dos os outros caminhos que não foram percor- tra ela? Que o nosso “eu”, durante o sono, nos
ridos, eles também fazem parte de nós, porque sonhos, atravessa uma infinidade de vidas e de
fizeram parte das nossas escolhas. Escolhemos pequenos mundos no interior desta vida que
aquele percurso, aquele nó do labirinto, anulan- tomamos como vigília. A estrutura da realidade
do com isso todos os outros. Mas os outros tam- é fractal, um jogo de encaixes múltiplos como
bém são parte de nós, são aquilo que excluímos. o das caixas chinesas ou das bonecas russas –
São os nossos nãos, e nós somos feitos dos sins, umas dentro das outras.
que percorremos, e dos nãos, que recusamos
percorrer. Este verso do Fernando Pessoa, para
mim, resume muito bem estas novas estruturas
textuais, seja o hipertexto, o texto virtual, o texto
combinatório, etc.
Materialidade e transdimensionalidade nas novas textualidades electrónicas: uma transição de paradigma? 147

PB - Sim, um mapa electrónico, mas sobretudo


um outro procedimento cognitivo que talvez
nos ajude a evoluir para um outro estádio menos
agarrado a esta densidade matérica, a adaptar-
-nos a um novo estádio de consciência. Talvez
a passar de uma linearidade para uma multipli-
cidade de pensamento. Repara que um bebé,
quando nasce, precisa de aprender a viver nesta
dimensão: precisa de aprender a andar, a agarrar
os objectos, a compreender as distâncias…

RT – E isto sendo o ser humano o animal que


Figura 2. Imagem de um fractal do tipo Julia set. mais tempo demora a adaptar-se a todo esse
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Julia_ ambiente exterior…
set_(indigo).png
PB – É verdade. Viver neste plano matérico den-
E quem nos garante que este nível a que cha- so, aprender a utilizar este corpo biológico como
mamos vida real não é apenas o sonho de uma um escafandro para esta dimensão, é difícil, leva
outra realidade maior? Um outro nível, portan- tempo. Por isso, ao que se admite saber através
to. Por isso eu gosto de chamar a este “eu” que da ufologia holística, em níveis dimensionais
atravessa o infinito mundo dos sonhos de “eu superiores e mais subtis não há crianças. Isto
transcendental” (mas podemos chamá-lo de parece muito paradoxal. Não há crianças tal
“eu superior”, como Jung; ou alma, ou espírito, como não se envelhece, simplesmente porque
como as religiões). Não importa o nome. O facto o tempo nem existe. Haja em vista as chamadas
é que a nossa consciência atravessa todos estes “novas crianças” que começam a surgir no nosso
mundos, todas estas dimensões da realidade, e planeta em progressão geométrica: parece que
no entanto sente-se sempre a mesma – única. já nascem ensinadas, a escola nada lhes diz nem
E a partir de um certo nível evolutivo (digamos se adaptam a ela, manifestam capacidades para-
5D, 7D…), em que passamos a ter acesso a esse normais como a telepatia, visão astral ou radios-
arquivo akáshico, teremos acesso às vidas passa- cópica, etc. E já agora que conversamos sobre
das, presentes e futuras, simplesmente porque já informática: mesmo as crianças ditas “normais”
estamos fora do espaço e do tempo que limita espantam os seus pais com o modo como lidam
este plano matérico, denso. Aí ascende-se a um com as novas tecnologias, parece que sabem
estado subtilizado, a um não-tempo. usá-las intuitivamente sem que tenham aprendi-
do. Todos sabemos disso, e tu deves ter essa ex-
RT – Ao não escolhido, ao não denso… E, portan- periência em casa, não? [risos] Duvido que seja
to, um acesso ao não escolhido, ao não denso? só uma questão de ambiente familiar ou social.

PB – Sim. E repara que no hipertexto, como refe- RT – Eu sei que há mais de uma década só te
riste, nós podemos percorrer um caminho, mas dedicas àquilo que (talvez erradamente, como
podemos depois revisitar os outros, e temos também já me comentaste) se chama ainda
consciência de que há outros, e podemos ir lá, de ufologia. E tens tido algum receio, ou pu-
e vê-los. dor, em parecer delirante. No entanto, embora
apenas vagamente, sei que tudo isso tem uma
RT – Isto é, consegue-se criar um mapa, certo? O base, uma razão de ser. Queres aproveitar para
hipertexto, portanto, como mapa, e isto embora clarificar isto? Confio que o campo das ciber-
a internet, na sua arquitectura múltipla e descen- textualidades muito poderá aprender com essa
trada, não possa ser sujeita a uma topologia… experiência.
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PB – Ando a escrever longamente sobre esse as- nenhum texto formado. Aqui, a própria relação
sunto, que não é só matéria de estudo teórico, do autor com o texto altera-se radicalmente. E
mas de investigação em torno de uma vivência porquê? Porque eu posso imaginar, antever, uma
empírica. Voltaremos a isso talvez lá mais para a perspectiva daquilo que o algoritmo vai gerar,
frente. Neste nosso diálogo eu só queria era dei- em termos de sentido, em termos de estrutura,
xar algumas pistas que relacionassem essas duas mas não saberei nunca concretamente quais
áreas aparentemente tão distantes ou distintas: textos vão ser gerados, o que é que o leitor vai
o universo da ufologia e o mundo da informá- ler. Sobretudo se o algoritmo for de base aleató-
tica. Dar às cibertextualidades, digamos assim, ria, randómica. Nenhuma instituição de censura
uma dimensão metafísica, substancial, para lá poderia actuar eficazmente sobre esse livro vir-
do seu estrito formalismo, da sua materialidade. tual com o seu lápis vermelho! [risos] Porque ele
Digamos, tentar ver em tudo isto uma transição pode até produzir um texto tão imprevisto que
de um paradigma unidimensional para um para- o autor poderá nem se rever nele… Em termos
digma multidimensional. Então, voltando ao pla- pessoais, essa foi sempre a linha que mais me
no da textualidade: é como passar da escrita e fascinou: a indeterminação, a imprevisibilidade,
do pensamento linear, que ainda usamos, e usa- a desarticulação da linguagem literária estereo-
remos, à escrita e ao pensamento plurívoco. No tipada, a recriação de novos sentidos.
hipertexto, como na hipermédia, no texto com-
binatório, aleatório, generativo, potencial, virtual RT – Que é o que o surrealismo talvez não tenha
ou outro, não há verdadeiramente um texto nem conseguido plenamente fazer, embora o tenha
uma leitura (não me refiro ao plano semântico e tentado, já que os chamados “cadáveres esquisi-
sua pluralidade de hermenêuticas). Factualmen- tos”, embora procurem o inesperado, sempre e
te aqui não há uma leitura nem um texto únicos, necessariamente remetem para um repertório
há antes um “campo textual” que tende para a de informação, uma cultura, um centro de refe-
dispersão, para o infinito. Tudo isto, todas estas rências. E isto porque, ainda que de um modo in-
novas estruturas textuais traduzem, a meu ver, consciente, talvez exista já uma identidade, uma
uma clara mudança de paradigma potenciado aprendizagem e uma marca, que sobressaem,
pela invenção do computador: considerado este convocando o arquivo denso, o já existente…
não como um mero armazenador de informação
mas nas suas capacidades de gestão algorítmica. PB – Exacto. Essa diferença que referes é impor-
Ou seja, como um “extensor de complexidade”. tante. Aqui trata-se de uma lógica matemática,
E embora muitas destas estruturas textuais te- ou algorítmica, mais do que uma lógica do sub-
nham surgido, em grande parte, do movimento consciente como a do surrealismo! E já agora
da poesia concreta, visual, ou experimental, cha- deixa-me contar uma coisa divertida. É que só
memos-lhe assim, mas também de experiências me apercebi verdadeiramente disso, de que es-
formalistas como as do grupo Oulipo e depois tava a lidar com uma outra maneira de tratar a
Alamo, elas foram-se complexificando com a linguagem, aquando da representação teatral
ajuda da tecnologia apropriada. Trata-se de uma de AlletSator1: porque os actores tiveram imen-
mudança tão vertiginosa que se torna difícil sa dificuldade em memorizar o texto, e só então
defini-la, e defini-la hoje não será a mesma coisa percebi porquê. Porque não conseguiam encon-
que defini-la amanhã. Estas variedades textuais trar âncoras mnemónicas, associações de tipo
com que lidamos, naquilo que chamo de Ciber- psicológico. Era como se se tratasse realmente
literatura (reportando-me ao seu sentido mais de um “texto artificial”, algo estranho à mente
etimológico), obrigam-nos a pensar. E que é um
livro virtual? Na realidade é um algoritmo infor-
mático onde está uma matriz textual que produz
uma infinidade de textos – um objecto que gera 1 Para mais sobre AlletSator, cf. número 2 da Revista Ciber-
textualidades, disponível em http://cibertextualidades.ufp.
textos, mas onde não existe verdadeiramente edu.pt/numero-2-2007
Materialidade e transdimensionalidade nas novas textualidades electrónicas: uma transição de paradigma? 149

humana, pois na realidade a estrutura subjacen- Em segundo lugar, porque na sua fase mais expe-
te era combinatória, em espiral contínua, embo- rimental confluíam duas linhas: uma de tradição
ra a base geratriz tivesse sido aleatória. Digamos surrealista, digamos, e outra de linha combina-
que, ao contrário do acaso surrealista, que tinha tória mais cultivada pelo movimento concretista
uma base psicológica, aqui a base era mais ma- de então. Mas houve ainda uma terceira razão,
temática, algorítmica. Nem imagino o quanto que foi justificar a simbiose homem/máquina na
eles me devem ter ficado a odiar! [risos] criação artística. Sendo ele, para mim, um dos
maiores poetas vivos na época, frequentemente
RT – Isso talvez se deva, como referes, ao facto “via” que, ao trabalhar esses textos, o sintetiza-
de um actor estar efectivamente habituado a “in- dor textual me devolvia soluções metafóricas e
terpretar” textos, memorizando-os previamente. de sentido muito mais imaginativas que aquilo
Aqui, o software interpunha-se também no pro- que o próprio poeta, que já era um grande poe-
cesso, como performer, isto é, como parceiro na ta, propunha. Foi para tentar demonstrar que
geração textual dramática. O “inesperado” que com o computador era possível exceder os limi-
está associado à generatividade textual obriga- tes da imaginação humana. E não é para isso que
-nos a pensar numa espécie de libertação? servem as máquinas? Para exceder as limitações
humanas? Para que serve o guindaste? Para que
PB – Curiosamente, o texto generativo acaba serve uma bicicleta? Eu via no computador uma
por ser, no texto literário, aquilo que a gramática espécie de “prótese mental”.
generativa do Chomsky de certo modo propu-
nha, portanto assenta numa forma de trabalhar RT – Também eu acabei por experimentar isso
a linguagem com um certo paralelismo com a com o Húmus, já que a dimensão programada
linguística, enquanto ciência. E que sentido fazia dos textos e das variações que as novas combi-
introduzir a máquina no interior do processo? natórias textuais me devolviam faziam-me en-
Para potenciar a linguagem humana, libertá- trar numa espécie de vertigem do texto.
-la dos estereótipos mentais, desarticulá-la de
modo a gerar novos sentidos imprevistos, ou PB – Sim, o Húmus, claro. O Herberto Helder in-
inesperados, como referes. Aqui o computador felizmente nasceu antes da ferramenta de que
era então usado como auxiliar, e não como subs- precisava, que era o computador (risos), mas
tituto, da criatividade literária. O tal “telescópio deixou a semente, e a cultura é feita dessas se-
de complexidade”, um manipulador de sinais e mentes. E nós, ao trabalharmos nesta área, mas
portanto como “máquina semiótica”. Um liberta- na era “ciber”, desenvolvemos a semente… A
dor de sentidos… meu ver o “texto virtual” assenta em duas estru-
turas básicas do próprio universo (segundo o
RT – Além da programação de textos “teus”, re- ponto de vista científico actual): a combinatória
correste também, em alguns casos, à poesia de e o acaso. Ou seja, o pensamento atomístico na
Herberto Helder, como foi o caso das “Cinco can- ciência corresponde ao que foi chamado de es-
ções lacunares”. Porquê? truturalismo nas humanidades. Um exemplo: o
que é a química desde Mendeleiev? Uma imensa
PB – É verdade, e ainda bem que referes isso. combinatória de átomos e moléculas. E a lingua-
Não foi só por ser um dos meus poetas preferi- gem humana? Uma infinita combinatória estru-
dos. Houve dois outros factores que contribuí- turada de letras, sons, palavras. De certo modo,
ram para isso. Ou mesmo três. Primeiro, pela sua até o acaso na arte se espelha no princípio da
grande liberdade metafórica, o que facilitava a indeterminação de Heisenberg para a física das
coesão textual na programação, por forma a que partículas. Eu diria que, no caso de um algoritmo
os novos textos gerados produzissem sentido. textual, a aleatoriedade é uma forma incomple-
ta, pontual, de percorrer o infinito de uma com-
binatória que nos excede.
150 [Entrevista de Rui Torres (RT) a Pedro Barbosa (PB), Março de 2016]

RT – E também uma forma de garantir que esse disquete para o CD, aconteceu eu ver-me frente
grau de inesperado, de informação (do “novo”), a frente numa livraria com um outro leitor que
aflora à superfície do texto… tinha esse livro entre mãos tirado do escapara-
te. Fiquei a observar a sua reacção. E aqui está
PB – Exactamente. O que me fascinou quando a vantagem de o escritor poder fazer de mosca,
me aventurei a trabalhar nesta área (bem antes pois preserva um tanto o seu anonimato visual,
da internet…) foi precisamente isso. Na época salvo alguns casos mais mediáticos, claro, pois o
nem havia um nome para expressar o que eu que fica dele é apenas um nome (quando fica).
pretendia fazer: escolhi o nome de “ciberlitera- Pode assim passar despercebido, como neste
tura” por analogia com a cibernética, então na caso, entrar numa livraria e observar a reacção
moda, onde a raiz “ciber” estava ligada à noção de um leitor à nossa frente. Importa dizer que
de automação. Se pudesse voltar atrás talvez esse livro, embora apelidado de virtual, era um
preferisse o termo de “literatura algorítmica”, “objecto”: vinha embalado numa caixinha plas-
porque depois surgiu a internet e o radical “ci- tificada que se abria em duas partes, de um lado
ber” passou a ser mais associado à noção de estava um livrinho em papel com apenas a teoria
ciberespaço, popularizando um conceito total- e, do outro, a disquete com o “verdadeiro” texto
mente diferente ligado à grande rede mundial. em estado virtual. Ao abrir a caixa do livro, apa-
No texto virtual o computador é utilizado como rentemente interessado ou curioso com aquele
o matemático o usa: como máquina algorítmica. livro estranho, vejo-o folhear as páginas do livro
Nós concebemos um algoritmo, uma matriz, isto em suporte papel, e a ler aqui e ali. Depois caiu-
é, um padrão textual em estado de potência, e a -lhe ao chão a disquete da outra metade do livro:
máquina devolve uma grande parte do campo ele pegou nela, colocou-a no respectivo encaixe,
de possibilidades aberto por essa matriz. Tu, pos- e pôs de novo o “livro-objecto” na estante. Ou
teriormente, acrescentaste-lhe o carácter multi- seja, não percebeu que o livro não estava naqui-
média que era o que se impunha na era plena do lo que ele leu, e por isso deve ter achado que o
digital… Mas a ligação disto ao livro, ao e-book, autor seria doido varrido (risos), pois dá um livro
à escrita linear ainda me causa alguns engulhos. com instruções para quê? O que fazer com ele?
Sobretudo hoje, com o declínio do CD-DVD e a Não percebeu que o livro que ele deixou cair é
migração de tudo para a nuvem. Uma espécie de que era o que interessava.
nostalgia que é a perda do “objecto” (seja o livro,
CD, DVD, etc.). RT – Precisamente porque não acompanhava
esse “livro” o mecanismo que lhe permitiria acti-
RT – Essa desmaterialização, que se agudizou var e articular (gerar) o texto. Essa parece-me ser,
com a nuvem, resultando da transferência da aliás, uma das questões centrais que estas novas
informação, dos suportes físicos, tocáveis, para textualidades levantam: a progressiva anulação
o domínio do virtual, sem base atómica legível, do registo material que os processos de digita-
ou reconhecível, poderá levar os leitores a não lização e virtualização envolvem, como explica,
entender a dimensão e a profundidade dos ci- entre tantos outros, o Kittler. Com o escrito, que
bertextos? Quer dizer, o “livro” passa a não ter é inscrito numa superfície visível, apenas pre-
propriamente um índice, a sua própria dimensão cisamos de ter acesso ao código linguístico, e
passa a ser variável: é preciso que o leitor se “jo- conseguimos resolver, traduzir em ideias, essa
gue” nele, jogando-o, enfrentando o desconhe- codificação. Com a disquete da Teoria do Homem
cido, o labirinto… Sentado, pelo contrário, esse leitor precisaria de
todo um aparato tecnológico – hardware, soft-
PB – Certamente. A este respeito deixa-me con- ware, etc. –, e isso levar-nos-ia inclusive a ques-
tar um episódio engraçado. Quando um desses tões de obsolescência tecnológica, etc. Isto é,
meus trabalhos foi lançado, em disquete, a Teo- há todo um ecossistema de interdependências
ria do Homem Sentado, e isto já na transição da a que nem todos têm acesso. Levar um livro ou
Materialidade e transdimensionalidade nas novas textualidades electrónicas: uma transição de paradigma? 151

levar uma disquete para uma ilha não é bem a nismo admitir que estamos no final deste ciclo
mesma coisa… civilizacional.

PB – Bem visto, sim. Mas a nova geração já está RT – Um dos aspectos do imaginário ufológico
tão ligada a esses dispositivos que praticamente que me cria alguma inquietação tem que ver
consegue fazer um curso superior sem ter na es- com o modo como a cultura popular trata essas
tante um único livro. O que por um lado é lamen- questões, já que tudo isto aparece sinalizado e
tável. Tem tudo o que precisa no computador e recombinado em filmes, websites com pretensas
no telemóvel. A geração do telemóvel é uma ge- teorias da conspiração, notícias, narrativas em
ração para quem a tecnologia do computador, banda desenhada ou séries de TV… Serão estas
que já foi megalítica no início, se vai transfor- narrativas populares formas de distrair do essen-
mando em microtecnologia. Vejo um sinal disso cial? E, se sim, distrair de o quê, precisamente?
até nas experiências de computação quântica, Parece-me, por um lado, que estamos a afirmar
pois estamos a reduzir a tecnologia a tal ponto que as pessoas desconhecem, ou não querem
que qualquer dia o telemóvel é um chip que nos saber, mas, na verdade, elas entretêm-se com
colocam, e pronto. Passamos a ter acesso bióti- tudo isto, gostam do efeito de superfície que se
co ao “arquivo universal”, ao “akasha” subtil onde acaba por gerar.
tudo está escrito (dizem! rs). Na verdade, nós
hoje já estamos controlados por microtecnolo- PB – Ufa! Isso implica tanta coisa ao mesmo tem-
gias, as quais nos vigiam em qualquer lado em po que nem sei como responder. Precisaria de
que estejamos, e há planos secretos da parte de muitas respostas…
alguns governos para “chipar” toda a população,
dizendo que é para protecção dela contra a cri- RT – Podes escolher uma?
minalidade que eles próprios impulsionam…
PB – (risos) Acho melhor não! Mas repara como
RT – O sistema de cartões de crédito já foi um o nosso pensamento já é múltiplo… e temos
excelente campo de ensaios para tudo isso, no dificuldade em reduzi-lo a uma estrutura li-
sentido em que permitem uma vigilância e um near… Talvez quando o ser humano assumir a
mapeamento das nossas escolhas de consumo, sua natureza múltipla, multidimensional e não
de registo e mapeamento dos momentos em unidimensional, quem sabe já estaremos nou-
que fazemos essas escolhas… Uma sociedade tra dimensão? Aqui entra, no meu modo de
sem dinheiro vivo será certamente um passo ver, a dialéctica virtual/actual. Não só no plano
para uma sociedade mais facilmente controlada, do texto, mas no plano da realidade. Eu vejo a
sitiada. realidade, no seu todo, como um imenso estado
potencial de mundos possíveis: aquilo que cha-
PB – É verdade, e hoje já quase tudo se paga po- mamos de mundo concreto nada mais é do que
tencialmente, ou virtualmente, com os cartões a actualização de um desses estados virtuais. E
de crédito. Aliás, o que chamamos de dinheiro aqui aproximamo-nos outra vez de modelos
nada mais é do que um número num computa- científicos (ou filosóficos) a serem trabalhados
dor. O que é que recebes como vencimento ao num outro paradigma: caso da Teoria dos Mun-
fim do mês? Uma mera transferência de dígitos dos Paralelos. Talvez haja um mundo paralelo
no sistema bancário. Basta uma explosão solar, (ou possível) em que Napoleão tenha caído do
ou qualquer acto de sabotagem que destrua seu cavalo branco, e nesse mundo talvez a Eu-
os satélites de comunicação em torno da Terra, ropa não faça parte do mapa. A eterna questão
para que esta civilização entre toda em colapso. do livre arbítrio do ser humano está aqui conti-
É tudo tão frágil, e tudo assente num nada que é da: temos uma infinidade de decisões possíveis,
o dinheiro, que não me parece nenhum anacro- mas delas todas só podemos escolher uma. É
como no texto virtual, no multitexto, na navega-
152 [Entrevista de Rui Torres (RT) a Pedro Barbosa (PB), Março de 2016]

ção de uma hipermídia… O nosso livre-arbítrio é cial. É de Saramago, no início da sua “Viagem a
muito restrito, muito relativo: se a filosofia nunca Portugal”. Posso?
chegou a acordo nisto é porque usa uma lógica
dicotómica, do sim e do não entre dois absolu- “O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É
tos. Mas hoje, mais do que nunca, precisamos preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que
de lógicas modais. No entanto, para habitarmos se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver
este mundo da densidade matérica, precisamos de dia o que se viu de noite, com sol onde primeira-
desse “escafandro” a que chamamos corpo físico, mente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto madu-
e dentro dele estamos reduzidos a determinadas ro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui
estruturas de pensamento lógico, às noções de não estava. É preciso voltar aos passos que foram
espaço e de tempo, e sobretudo a esta modali- dados, para os repetir, e traçar caminhos novos ao
dade que nos limita muito, que é uma visão do lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.”
tempo linear, como passado-presente-futuro.
O viajante de Saramago é muitos viajantes. Ele
RT – Estamos condicionados, portanto. teve a intuição da multiplicidade de alternativas
que esta vida nos oferece inesgotavelmente,
PB – Exacto, estamos condicionados, condicio- mas não sei se pensou que estava sem querer a
nados para viver isto aqui. O famoso livre arbí- definir a “pluralidade de mundos possíveis” que
trio de que dispomos é muito limitado e relativo. num mesmo espaço se entrecruzam em função
Vestimos um escafandro pesado e incómodo da infinidade de momentos que compõem a
para mergulharmos no mar, não é assim? E o nossa linha do tempo. Ou seja: Saramago esta-
corpo biológico que usamos nesta dimensão é va a captar a limitação subtractiva que as nossas
o escafandro de que o nosso “eu” precisa para decisões trazem ao passarem do plano virtual
habitar aqui. Com toda uma formatação mental para o plano actual. Ao transitarem do multi-
(um software apropriado): as noções de espaço e verso para o universo. Enquanto a escrita linear
tempo são um desses constrangimentos. A uni- é subtractiva, o hipertexto é aditivo. Por isso a
cidade, a linearidade do pensamento, a lógica do hiperficção se perde e se dispersa num labirinto
sim e do não são outros mais. infinito de caminhos divergentes. Tal como na
vida. Do mesmo modo, quando nós começamos
RT – Estamos condicionados, OK, mas na poesia, a trabalhar com o que chamo de “cibertextuali-
nessa dimensão do imaginário, tal não parece dades”, começamos a ter dificuldades em pensar
acontecer. Como escrevia o poeta concreto brasi- as coisas de uma única forma. Daqui nasce o
leiro Augusto de Campos, há um “passente pres- pensamento múltiplo, e o ser humano começa
turo futuado” e um “pressado passuro futuente”, a evoluir para o ser multidimensional de que se
e por aí fora. Ou ainda, como gosto sempre de ci- esqueceu que é.
tar quando tento explicar a variabilidade ineren-
te ao texto computacional, o Fernando Pessoa,
de novo, agora em “modo” Álvaro de Campos:
“Canto, e canto o presente, e também o passado
e o futuro, / Porque o presente é todo o passado
e todo o futuro / E há Platão e Virgílio dentro das
máquinas e das luzes eléctricas”…

PB – Aí está uma boa dica. Sim… E já agora, a


propósito da relação virtual/actual, também eu
gostaria de aqui deixar um outro belo exemplo
literário que alegoriza a nossa dimensão viven-
Materialidade e transdimensionalidade nas novas textualidades electrónicas: uma transição de paradigma? 153

fisicamente, usando o nosso corpo. É um mode-


lo, digamos, sígnico, linear, assente numa lógica
ainda quase aristotélica. O imaginário que se
liberta através da arte, que assenta mais numa
lógica de teor simbólico, a meu ver investiga não
tanto esta realidade actual, aquilo que tomamos
por “mundo real”, mas a pluralidade de “outros
mundos” virtuais, as demais possibilidades de
realidade que não foram concretizadas no mun-
do em que estamos inseridos – as outras infini-
tas combinatórias da grande lotaria cósmica que
não nos calharam em sorte, ou azar (risos). É cla-
ro que esta minha perspectiva se inscreve numa
“teoria dos mundos possíveis” ou dos “mundos
paralelos”. Por este ponto de vista, a Ciência e a
Figura 3. Imagem de um labirinto. Die Gartenlaube Arte complementam-se: uma dirigida para a uni-
(1885). Fonte: https://upload.wikimedia. cidade do mundo actual, a outra dirigida para a
org/wikipedia/commons/thumb/b/bf/Die_ multiplicidade dos mundos possíveis. É como no
Gartenlaube_%281885%29_b_787_1.jpg/800px- caso do texto virtual de que falámos: há a infini-
Die_Gartenlaube_%281885%29_b_787_1.jpg dade dos textos possíveis, o tal “campo textual”, e
o texto efectivamente concretizado dentro des-
sa infinitude de possibilidades. Será que posso
RT – Então, e regressando à minha questão, deixar aqui um exemplo? É tão-só um fragmen-
como lidar com essa questão da cultura popu- to gerado com o sintetizador textual Sintext, o
lar… ? Do imaginário… ? fragmento de um texto que se prolonga inde-
finidamente até o leitor decidir parar o gerador
PB – A cultura popular é a cultura popular. Que textual. Por isso apelidei de “texto infinito” este
hei-de dizer? Há coisas ancestrais, lendárias, mi- tipo de cibertexto, fazendo explodir a carga
tológicas, que hoje revelam o que dantes oculta- semântica de qualquer texto (original ou não).
vam no inconsciente colectivo; mas há também Neste caso foi o universo herbertiano. A matriz
toda uma cultura popular que é manipulada textual pode ser idêntica, mas isto é algo que ele
pelos poderes estabelecidos, desde as religiões nunca escreveu:
seculares à publicidade actual e ao marketing, da
música pop-rock ao cinema hollywoodesco. Mas Olha: eu queria saber em que animal
tudo o que eu poderia dizer já está dito por ou- se morre, para ter uma chama e com ela
tros, e muito melhor do que eu poderia dizer… atravessar paisagens leves e ardentes e crimes
sem pausa. Existe nas máquinas absolutas
RT – OK, não vou então insistir mais nisso… um lírio para
(risos) a poeira tremer, e o teu ar
se voltar lentamente cheio
PB – Agora, no que respeita ao Imaginário, isso de febre para o país de uma criança
levanta outras questões muito interessantes. Eu terrível e fria.
vejo a arte como um complemento da ciência. Ofereço-te um pneu furado
A ciência (refiro-me sobretudo à ciência ofi- – diz a roupa sentada.
cial) explora o conhecimento necessário para
nos integrarmos neste mundo matérico, para
compreendermos como funciona o mundo
denso desta dimensão em que nos movemos
154 [Entrevista de Rui Torres (RT) a Pedro Barbosa (PB), Março de 2016]

RT – Belíssimo, de facto, o texto-matriz, mas continuam, de certo modo, a ser – acusadas de


incrivelmente nova, e diferente, a variação. Te- formalismo?
maticamente, mas também ao nível do proce-
dimento implícito no original, idêntico ao usado PB – Hoje já não serão assim tanto acusadas,
por Helder no já referido Húmus, enquanto leitor seria preciso recordar o contexto social e po-
de Brandão: “com um povo de estátuas em cima, lítico em que surgiram. O que eu acho é que
/ com um povo de mortos em baixo”, e ainda, tal- precisamos de restabelecer uma homologia
vez melhor: “Atrás desta vila há outra vila maior, entre o texto e a estrutura base do ser humano.
outra / imagem maior. (…)”… Helder, aliás, pa- Pensemos nas dimensões básicas da linguagem
rece ter trabalhado muito ao nível do texto definidas no triângulo semiótico, – o signifi-
possível (a ideia de “Ou o poema contínuo”…), cante, o significado e o sentido. O computador
e foi ele quem chegou a referir que o princípio trabalha ao nível do significante, e pelo menos
combinatório é a “base linguística para a criação por enquanto não tem consciência daquilo que
poética”… escreve. No entanto, ele produz significados, os
quais encontramos no dicionário. Mas enquan-
PB – Claro! Para mim, existe um paralelismo en- to estamos ao nível deste significado, estamos
tre as novas teorias científicas – caso da “teoria ao nível do aluno da escola primária a quem o
dos mundos possíveis”, o “pensamento quânti- professor ensinava a tabuada sem ele saber para
co”, etc. – e a própria evolução da arte, sobretudo que é que servia. Por muitas reguadas que le-
nestas textualidades que põem em prática, tam- vasse, a verdade é que a tabuada só lhe serviria
bém, algo que se aparenta muito a esses novos mais tarde, quando ele compreendesse, quando
paradigmas científicos. É por isso que eu julgo tivesse “consciência” do que era uma multiplica-
que a evolução destas novas textualidades, em ção, uma subtracção, etc. Ou seja, no meu tempo
paralelo com as novas teorias científicas, ante- retrógrado ensinava-se matemática à criança tal
cipam não só um outro estado de consciência, como hoje se ensina o computador na chama-
mas também preparam um novo paradigma de da Inteligência Artificial: sem ela compreender o
pensamento. Algo de que vamos precisar nesta porquê e o para quê, ou seja, sem compreender
época de transição em que estamos. Regressan- o “sentido” do que fazia… Só se começa a achar
do à questão que levantaste do imaginário, eu que a matemática é interessante quando se co-
diria então que o artista, o poeta, o ficcionista, meça a percebê-la e a ter consciência do sentido.
eles não mentem, não “inventam”: eles exploram Refiro-me ao “sentido” na acepção semântica da
os mundos possíveis que caíram fora da lotaria palavra. Ora “sentido”, num texto literário, como
da Vida. O cientista trabalha no mundo actual, o bem se sabe, é sempre plurissignificativo, pluri-
artista nos mundos potenciais. As tais Metamor- -isotópico, pluridimensional, e daí a necessidade
foses de Real… da hermenêutica, da interpretação do texto. Por-
que é que relembro isto aqui? Porque o compu-
RT – Essa visão do artista enquanto explorador tador, mesmo laborando o texto computacional
de mundos possíveis está de novo em Fernan- ao nível do significante e do significado, não
do Pessoa, no famoso poema «Autopsicografia» dispensa a “consciência do significado”, ou seja, o
(1931): “O poeta é um fingidor / Finge tão com- “sentido”, algo que até agora verdadeiramente só
pletamente / Que chega a fingir que é dor / A dor o ser humano que trabalhe com o computador
que deveras sente.” vai conseguir atribuir ao texto gerado. Então, se
repararmos bem, esta estrutura triádica do texto
PB – É isso mesmo. – o significante (material), o significado (concep-
tual), e o sentido (consciencial) – corresponde à
RT – Então porque é que estas textualidades, própria estrutura tríplice do ser humano (corpo/
que nos ajudam a fazer uma transição, foram – e mente/consciência), e também do conhecimen-
to que ele obtém do mundo (a física e a biologia
Materialidade e transdimensionalidade nas novas textualidades electrónicas: uma transição de paradigma? 155

para o plano material, a psicologia para o plano RT – Do concreto para o abstracto, e do abs-
mental, a filosofia para o plano da consciência). tracto para o concreto, portanto. Curiosamente,
Ou seja, a famosa trindade cérebro/mente/cons- como no texto de Helder/Brandão, que me está
ciência equivale ao triângulo semiótico signifi- a surgir vertiginosamente: “A um grito em baixo
cante/significante/sentido. Julgo que isto nos corresponde logo / um grito em cima”…
ajuda a resolver algumas das disputas que em
tempos se acendiam no terreno da Inteligência PB – Nem mais! Raul Brandão também tinha uma
Artificial e hoje na Robótica. Ou no âmbito do sensibilidade metafísica, não era?
texto computacional e da ciberliteratura: e por-
tanto na relação entre autor e leitor quando in- RT – Ou sensibilidade cósmica… a qual Brandão
termediados pelo computador criativo. certamente partilha com Helder, e tantos outros.
Isto faz-me lembrar, aliás, a tua proposta, no con-
RT – Ainda assim, se me permites mais um parên- texto da “noosfera” do Chardin, para uma robos-
tesis, aquilo que define a criatividade humana e fera. Queres abordar este assunto?
o valor da vida humana talvez seja precisamen-
te essa lacuna, essa ausência do conhecimento PB – Essa ideia ocorreu-me há uns 30 anos atrás,
total que parece estar embebido no arquivo quando lia o livro O Lugar do Homem no Universo,
akáshico. Por isso pergunto se esse outro tipo de Teilhard de Chardin. Às etapas do seu esque-
de consciência, essa passagem para uma quinta ma evolutivo (litosfera>hidrosfera>atmosfera>b
dimensão (que, por vezes, mais me parece um iosfera>noosfera) eu acrescentei, efectivamente,
julgamento final…), não retira todo o aspecto mais uma, a da “robosfera”. Nessa época vivia-se
lúdico da arte e da experiência humana… Não com entusiasmo o início da Inteligência Artificial
será esse caminho para descobrir, lentamente, e e da Robótica, e tinha-se começado a pousar os
cometendo os erros necessários, o que define o pés na Lua, era também o começo da Astronáu-
humano? tica… A robosfera, portanto, seria uma geração
de seres mecânicos, dotados de inteligência ar-
PB – Concordo inteiramente, é uma observação tificial, para quem nós transferíamos os nossos
subtil, mas não sei como responder. Apenas me conhecimentos e o nosso modo de agir. Ou seja,
ocorre este lema que está na base do velho her- de certo modo o robot era uma espécie de avatar
metismo, e que já referi: “O que está em cima é o tecnológico nosso, um ser dotado da inteligên-
que está em baixo.” Ou: “O que está em baixo é cia artificial, que nos substituía em condições
o que está em cima”. Hoje diríamos que a reali- adversas, com a vantagem de não sofrer nem ter
dade é fractal, que tem uma estrutura fractal, de medo da morte. Digamos que a robosfera seria
múltiplos encaixes, de níveis dentro de níveis. O uma geração futura de seres mecânicos, nossos
que nos leva ao curioso modelo astronómico de duplos, criados não por meios biológicos e sim
Frank Close, à “Cebola Cósmica” estratificada em por meios tecnológicos – numa espécie de re-
níveis sucessivos. Em todo o caso, podemos pen- produção mental. Uma duplicação da noosfera,
sar o mundo de baixo para cima ou de cima para portanto, mais vocacionada para o desenrolar da
baixo. Do matérico para o subtil; ou do subtil, do Aventura Espacial e a dispersão cósmica. Curioso
etérico (o akáshico) para o matérico. Na minha será notar que foi assim mesmo que nas décadas
perspectiva, a velha dicotomia filosófica – mate- seguintes a astronáutica veio a ter continuidade:
rialismo versus espiritualismo – resume-se a uma quem hoje explora Marte e outros planetas são
diferença de percursos. Ou a uma diferença de robôs e não seres humanos. Ora o que eu vislum-
prioridades ontológicas. Com o texto, a meu ver, brava aqui era uma ruptura antropológica, uma
sucede o mesmo: podemos ir do sentido para o mudança de era na História da Humanidade.
significante, mas também do significante para o Passava-se de uma consciência planetária para
sentido. uma consciência cósmica… A planetarização
foi aquilo a que tínhamos chegado até então: à
156 [Entrevista de Rui Torres (RT) a Pedro Barbosa (PB), Março de 2016]

consciência de que fazíamos parte de um pla- talidade do Real… Com toda a probabilidade
neta. Hoje carecemos de uma consciência mais elas não sabem que habitam dentro de uma ou-
ampla: a de que fazemos parte integrante de um tra civilização, que é a nossa – e ambos vivemos
vasto sistema interplanetário, galáctico e extra- dentro do mesmo mundo natural. Seremos nós
galáctico, onde a vida é uma constante universal. os ET delas? Se elas filosofassem, e fossem formi-
Para entrarmos nessa era cósmica precisamos gas ufólogas, qual seria o sentido da vida para
naturalmente de novos paradigmas, científicos, elas? Do mesmo modo, qual o sentido da vida
filosóficos, de linguagem, etc., precisamos, so- para o ser humano? Os existencialistas filosofa-
bretudo, de nos abrir à convivência com outros ram muito sobre isso e foram sempre levados ao
seres que co-habitam o Universo muito antes absurdo! A meu ver, todo o pensamento escato-
de nós (e digo isto com toda a certeza – dentro lógico deve ser encarado no interior desta gran-
do que é possível ter certezas…) (risos). É essa de estrutura fractal que chamamos de realidade.
aprendizagem difícil que nós hoje estamos a fa- No interior de um universo estratificado. Vamos
zer e que a ufologia, a exobiologia e a exopolíti- imaginar a Terra vogando no espaço como um
ca investigam. Chamemos-lhes irmãos cósmicos, pequeno palco carregando toda a tragicomédia
para termos um pensamento mais positivo. Para shakespeariana que é o mundo humano. E se a
eles a Terra é este jardim zoológico decadente Terra não passasse de um laboratório ou de um
em que vivemos. Alguns são os nossos antepas- jardim biológico para outros seres mais evoluí-
sados cósmicos. E muitos estão aqui, simples- dos? Vamos então admitir que haja jardineiros,
mente pouco sabemos deles tal como no mar os os “Watchers”, cuidando do jardim. Ora, na pers-
peixes pouco saberão da existência dos huma- pectiva do jardineiro, a lógica dele não é a lógica
nos – e no entanto vivemos lado a lado no mes- das plantas e sim a lógica do jardim. Por isso as
mo plano e no mesmo planeta! (E atenção que ervas entram em pânico quando vêem o jardi-
não estou a fazer nenhuma apologia da invasão neiro chegar: porque ele arranca as ervas dani-
extraterrestre, que é isso que a ficção científica nhas e preserva as outras… Mas também colhe
hollywoodesca divulga, com interesses obscuros flores e frutos maduros! O que é bom para o jar-
e subsidiados… Talvez Tarkovski fosse um exem- dineiro pode não o ser para a planta. Tudo isto é
plo mais poético a ter em conta…). tudo muito relativo. Estamos para lá do Bem e do
Mal nietzscheano…
Curiosamente, foi com a representação em pal-
co de AlletSator, em 2001, que se operou em RT – Voltamos, portanto, à cibertextologia?
mim uma visão diferente do trabalho com tex-
to aleatório, com o acaso na arte. Foi como se a PB – Pois. De facto esta divagação veio a pro-
geração randómica dessa peça, que no fundo pósito da questão do formalismo que puseste
é uma peça teatral de ficção científica, tivesse há pouco. Estas coisas enredam-se tanto umas
algo de premonitório em relação ao que logo a nas outras que é difícil tirá-las deste novelo de
seguir eu próprio iria viver! O acaso na Arte pa- ligações. Além do mais há coisas que não tenho
receu ser uma espécie de propedêutica à minha como exprimi-las em palavras numa conversa
compreensão do acaso na Vida. Ou do que cha- como esta… Mas quando colocaste a questão
mamos de “acasos” na vida – as sincronicidades. do formalismo em relação à poesia experimen-
A lei dos grandes números deixou-me essa sen- tal, eu penso que essa acusação era mais forte
sação: que da desordem parece nascer a ordem, antes e no pós-25 de Abril, quando as tendên-
que do caos provém o cosmos, como queriam os cias neo-realistas se faziam ainda sentir muito no
Antigos. Ou então, para reforçar o que aqui tento nosso meio literário. Aliás, durante os meus tem-
sugerir: que há uma “meta-física” do texto. Quan- pos de estudante em Coimbra cheguei a acom-
do nós, involuntariamente, colocamos o pé em panhar as azedas polémicas jornalísticas entre os
cima de um formigueiro, o que pensarão as for- surrealistas portugueses e os adeptos do “realis-
migas em pânico dessa catástrofe? Lá está a frac- mo socialista”. Os experimentalistas, como bem
Materialidade e transdimensionalidade nas novas textualidades electrónicas: uma transição de paradigma? 157

sabes, também andaram envolvidos nessa ba- PB – Sim. Ainda há cerca de um ano, numa en-
talha irrisória. Em termos pessoais eu senti isso trevista por telefone de Lisboa, um jornalista pôs
quando comecei a “experimentar” nesta área, na minha boca palavras que eu nunca disse ao
em 1976. Nessa altura estávamos ainda a viver publicar um artigo sobre literatura e computa-
os resquícios do chamado Verão quente, em que dor. Segundo ele, eu fazia ciberliteratura porque
por pouco não se caiu em guerra civil, e quando a colocava no ciberespaço, ou algo assim. Pois
a estética idanovista não se cansava de procla- é esse o uso quotidiano que um jornalista faz
mar uma arte “ao serviço de”… Como se a arte do computador, um jornalista ou a nova gera-
devesse estar “ao serviço” de algo que não fosse ção: para se ligar à internet, usar os motores de
dela própria, para ser o que é. Daí eu, nos primei- busca, ou armazenar ficheiros. O computador
ros “auto-poemas cibernéticos”, ter tido a preo- deixou de ser a fascinante máquina algorítmica
cupação de introduzir temáticas diferentes, pois e criativa que dantes era, aliás ainda fácil de pro-
na verdade uma forma pode sempre moldar-se a gramar, para se tornar num mero armazenador e
qualquer conteúdo. Assim nasceram textos mais difusor de informação.
“interventivos”, tão circunstanciais que talvez
não façam qualquer sentido hoje para a nova RT – E quando era essa “fascinante máquina”,
geração, como será o caso da litania electrónica qual era o teu objectivo: geração de complexi-
“25 de Novembro”, por exemplo, se a memória dade? E como lidavas com os resultados dessa
não me falha. Ou mesmo de outros textos ge- complexidade?
rados automaticamente em computador, como
fosse a lengalenga electrónica “Silêncios”, onde se PB – De início foi para ver como se pode, com
faziam variações permutacionais como “MORRE um texto combinatório, por exemplo, e com
NA PALAVRA DA FORÇA O MEDO DA VERDADE” uma mesma estrutura textual, passar da temá-
ou “NA VERDADE DA PALAVRA CRESCE O MEDO tica poética de uma cidade como Aveiro (“UMA
DO SILÊNCIO”, etc., etc., etc. Nessa época todos ÁGUA SEM RIA NA TRISTEZA DA ALEGRIA”), para
éramos mais ou menos interventivos ou acti- uma cidade como o Porto (“NA SAUDADE DO
vistas, pelo que textos deste teor dificilmente GRANITO A PEDRA DA HISTÓRIA”), e daí tirar
poderiam ser alvo dos críticos da “arte pela arte”. derivações semânticas imprevistas (trovas elec-
Além de que, ao longo da extensa combinatória, trónicas). Preocupei-me por introduzir um deter-
tanto se podia dizer uma coisa como o seu con- minado léxico, alimentando os programas com
trário. A dificuldade de aceitação talvez viesse um repertório ainda limitado. Note-se que com
mais da ideia peregrina de se usar o computador apenas estes oito elementos lexicais o número
para fazer literatura em vez da pena de pato e do de permutações é descomunal à escala da leitu-
tinteiro para lhe molhar o bico. Ou também da ra humana: na ordem dos 40 320 “versos”. Quem
dificuldade da crítica em catalogar esses textos os leria? Foi preciso introduzir no programa
estranhos para os quais nem havia ainda nome “filtros sintácticos”, com o que consegui reduzir
que se lhe pudesse atribuir. Eu próprio me de- drasticamente as realizações sem sentido, mas
bati com esses problemas de nomenclatura mesmo assim, com apenas as oito palavras dos
quando fui publicando os primeiros livros. E essa textos iniciais como Porto ou Aveiro, o texto com-
nomenclatura foi variando de livro para livro até pleto gerado pela máquina era na ordem dos
que infelizmente me fixei na de “ciberliteratura”, 620 versos escritos em escassíssimos minutos
que agora se tornou equívoca com o triunfo da (hoje seria em fracção de segundos)! No entanto,
internet e do termo “ciberespaço” ligado a ela. acrescentando só mais uma palavra, num total
Mas nessa época a Grande Rede Mundial ainda de apenas nove, o número de permutações atin-
estava longe de chegar. gia as 362 880. Com dez palavras, chegava-se à
ordem dos milhões! Foi aí que comecei a aperce-
RT – Tornou-se equívoca e, provavelmente, ainda ber-me do quanto o computador podia superar
que sem intenção, provocou equívocos…
158 [Entrevista de Rui Torres (RT) a Pedro Barbosa (PB), Março de 2016]

as limitações humanas: trabalhando em simbio- regresso, calhou vir acompanhado por dois físi-
se com ele, como um extensor de complexidade. cos quânticos norte-americanos. A viagem ainda
deu para conversar bastante, e dormir um pouco
RT – Como é o caso do poema-algoritmo que tu, (risos). Mas foi um acaso curioso (se um acaso
e depois também eu, retextualizamos, do E. M. foi) porque eu tinha ido lá apresentar esse meu
de Melo e Castro, publicado no livro Álea e Va- trabalho, porém com algum receio de fazer ex-
zio, “Tudo pode ser dito num poema”, onde se lê, trapolações indevidas. O que me interessava era
entre muitas outras possíveis variações, “Acaso a lógica subjacente ao pensamento quântico. Ti-
o fogo é luz em presença da noite?”. Um texto nha tido discussões com amigos meus, da física
fundador, de certo modo, destas experiências… clássica, que sempre recusaram liminarmente a
minha ideia. Mas foi muito curioso que um des-
PB – Exactamente. Porque aí entramos dentro ses físicos americanos, que aliás se considerava
do que eu gosto de chamar (perdoem-me os um químico quântico, e não um físico, disse:
rigoristas) “pensamento quântico”: no qual uma “Realmente nós nunca pensámos nisso; nós va-
coisa pode ser e não ser ao mesmo tempo. Pode mos para o laboratório e fazemos experiências,
ser partícula e pode ser onda, ou, melhor dizen- anotamos registos, mas nunca nos interrogámos
do, pode encontrar-se num estado de partícula sobre isso, não somos filósofos, somos técni-
ou num estado de onda. É um outro modo de cos”… Ou seja, lá concordaram comigo, e estou
pensar. Uma lógica de certo modo não-aristo- em crer que não foi só por gentileza. Em suma,
télica: porque viola o princípio da identidade. isto deixou-me mais tranquilo, mais seguro nas
Aliás já Lautréamont, muito antes dos físicos das minhas incertezas. E essas textualidades ajuda-
partículas, brincou assim com a linguagem. Por ram-me também a perceber o quanto a verda-
exemplo, dizer: “Perdemos a vida com alegria, de é instável: uma coisa pode ser, e ao mesmo
contanto que disso se fale” (Pascal) ou o seu con- tempo ser o seu contrário – de resto todos nós
trário: “Perdemos a vida com alegria, contanto somos um monte de contradições… (risos). O
que disso se não fale” (Lautréamont), equivalem- pensamento é feito de jogos de linguagem (Wit-
-se. Apesar de em negação simétrica, ambas tgenstein), mas o inverso também pode ser dito:
fazem sentido! Para mim, a teoria quântica, que que a linguagem, mormente a literária, é um
infelizmente, hoje, está a transformar-se numa jogo de pensamentos. A infinita variabilidade
moda, usada a propósito e a despropósito de desse texto era isso: aleatória mas não vazia!
quase tudo, representa acima de tudo um outro
modo de pensar as coisas. Um novo paradigma. RT – Aliás, as primeiras estruturas combinatórias,
Não a tomo exclusivamente nos limites técnicos chamemos-lhes assim, são os labirintos textuais,
da mecânica quântica, mas de uma outra lógica, os anagramas, os emblemas, etc., do Barroco,
um outro olhar sobre o mundo… Claro que eu recolhidos e estudados pela Ana Hatherly, en-
tinha medo de errar, ou de ser abusivo, ao ten- tre outros, que fez um trabalho maravilhoso de
tar aplicar esse modo de pensar à linguagem e recuperação dessa tradição literária “escondida”,
à criação textual. A experiência com AlletSator e que esteve precisamente no centro da releitu-
foi exemplo disso. E, já agora, um aparte curioso: ra da história literária que o experimentalismo
uma vez vinha do Brasil, daquela cidade com um sempre procurou fazer. Ana Hatherly, já agora,
nome muito engraçado, Juiz de Fora, e vinha de que também trabalhou, ela própria, com es-
um congresso, numa carrinha que nos trouxe ao truturas variacionais nos seus poemas (o livro
Rio de Janeiro para apanharmos o avião. Eu tinha Anagramático sendo talvez um dos mais belos
lá ido a convite da UFMG para apresentar esse resultados desse imenso trabalho). Foi também
trabalho na versão hipermédia, em que também ela quem recebeu e recenseou os teus volumes
tu colaboraste grandemente, e que com o Luís de A Literatura Cibernética, na revista Colóquio/
Carlos Petry decidimos chamar de “ópera quânti- Letras…
ca”, um tanto por brincadeira. Acontece que, no
Materialidade e transdimensionalidade nas novas textualidades electrónicas: uma transição de paradigma? 159

PB – É verdade, e eu tenho essa dívida kármica porque se fala tanto do texto de Balestrini, talvez
para com ela, porque realmente nunca aprovei- pelo tal “espírito de grupo”, pois quase pela mes-
tei as oportunidades que surgiram para a con- ma época o matemático francês Louis Couffignal
tactar pessoalmente, embora julgue que o fiz fez algo de muito maior qualidade poética, em-
uma vez por carta. Ela foi muito generosa com bora numa linha surrealizante e não combinató-
os meus dois primeiros livros, e mais, foi talvez ria. E de tal modo que no congresso em que ele
a única pessoa que escreveu sobre eles na épo- apresentou esse texto gerado por computador
ca. E embora a admirasse, eu era tímido e evitei muitos dos presentes o preferiram a um outro
por isso o desconforto de a conhecer. No entan- texto do poeta Paul Éluard, que foi colocado
to – e isto fica aqui entre nós (risos) –, a verdade anonimamente em confronto.
é que também esse interesse inicial talvez tenha
sido um pouco no sentido de me integrarem no RT – Qualidade talvez equivalente a alguns dos
movimento da poesia experimental. O proble- textos produzidos pelo Angel Carmona, tam-
ma é que eu, por modo de ser, nunca gostei de bém ele pouco conhecido…
pertencer a grupos de espécie nenhuma, o que
me prejudicou muito na vida. Não nasci “peixe PB – Sim, os Poemas V2, mas esses surgem ape-
de cardume”, eis o motivo, e sempre fiz ques- nas na década seguinte. No caso do Couffignal
tão de manter a minha independência de pen- não se sabe até que ponto ele manipulou o
samento e de actuação. Digo isto sem o menor resultado, para despoletar a discussão nessas
negativismo, e reconheço hoje que talvez tenha Conferências de Genebra. Eu estou convencido
feito mal, pois foi sem dúvida o movimento da disso, já que o propósito dele não era criar um
poesia experimental que, na minha adolescên- robot-poeta, mas incentivar a discussão em tor-
cia, enquanto leitor, me abriu o caminho para no da questão da inteligência artificial.
o que fiz depois neste domínio da literatura
computacional… RT – Já vai longa a conversa…, mas eu não queria
deixar de te pedir para abordares a linguagem,
RT – Além do Álea e Vazio, já referido, e dessas enquanto prática essencialmente combinatória,
releituras do Barroco, não esqueçamos que foi aspecto que me parece central para o entendi-
Herberto Helder e, mais ainda, António Aragão, mento das cibertextualidades, em ligação com
quem trouxe a notícia, de Itália, das experiências a ideia de link, de significação, relação/viagem
do Nanni Balestrini… E o primeiro número da entre um significante e o seu significado.
revista da Poesia Experimental, hoje considerado
um arauto da libertação da poesia dos cânones, PB – Sim. Aproveito para referir, nesse contexto,
foi onde o Helder publicou os primeiros frag- que o Cláudio Fajardo trabalhou muito bem, na
mentos de A máquina de emaranhar paisagens, sua tese de mestrado na PUC de SP, uma ques-
dedicando-se portanto à poesia combinatória tão que também muito me interessa, e que está
(ou de inspiração combinatória, porque em Por- interligada: a relação entre a noção de texto
tugal não haveria máquinas…). virtual, tal como aqui a estamos a considerar,
como texto generativo computacional, com
PB – Sim. E isso é curioso, pois o texto do Ba- algo semelhante que pode ser encontrado no
lestrini, para quem conhece italiano, é um tex- esoterismo judaico, com a cabala, embora numa
to literariamente muito fraquinho. Foi apenas perspectiva totalmente mística. Digamos, a ideia
uma experiência, e uma experiência sem conti- de que o verbo tem um poder potencialmente
nuidade por parte dele, que eu saiba, mas uma criador, um poder demiúrgico, genesíaco (e lá
semente que, se deu fruto, talvez tenha sido pre- vem a conhecida frase bíblica: “No princípio era
cisamente porque inspirou outros poetas como o Verbo”), mas ao mesmo tempo a ideia de com-
o Herberto Helder que intuiu a ideia e a cultivou binatória, pois todo o universo é aí concebido
com outra densidade, embora à mão. Nem sei como combinação infinita de letras. Outra coisa
160 [Entrevista de Rui Torres (RT) a Pedro Barbosa (PB), Março de 2016]

não é aquilo que hoje a ciência pensa do ADN: semelhante ao modo como eu presumo que ou-
uma combinação infinita de moléculas, às quais tros seres vêm de planetas e galáxias que nós jul-
são atribuídas letras e, portanto, há aqui seme- gamos que estão a não sei quantos anos-luz de
lhanças tão curiosas entre essa ideia do criacio- distância. Isso está sugerido na fábula ufológica
nismo judaico e a genética contemporânea que que citaste de entrada. Os links textuais serão
nos faz pensar duas vezes. É por isso que algumas algo como os chamados “portais dimensionais”,
vezes eu digo, quando me perguntam o que é a os “vórtices” da ufologia; ou os wormholes, os
literatura computacional, que é um trabalho de “buracos de verme” da cosmologia relativística.
genética textual. Genética textual porque o au-
tor manipula os genes do texto, ainda em estado RT – Portanto, essa ligação entre os dois
potencial, e não sabe a infinidade de existências pontos…
verbais que daí vão resultar. Outras vezes, mais
para galhofar, digo que a Ciberliteratura consiste PB – …está situada fora do espaço-tempo, tem
num trabalho literário em que o autor trabalha a ver com outras concepções. E, possivelmente,
com ovos e não com galinhas: porque o ovo é a aquilo de que se fala agora muito, os wormho-
galinha em potência, tal como a semente ainda les, sejam esses vórtices, essas pontes interdi-
não é árvore criada. Daí a metáfora que também mensionais, esses atalhos por onde se pode,
uso de “texto-ovo”, ou de “texto-semente”, para de muito longe, chegar instantaneamente, ou
caracterizar a literatura virtual. E para lhe retirar quase instantaneamente, porque não é de mui-
aquele ar mais laboratorial que outros termos to longe que eles (os ET) vêm, a nós é que nos
poderiam sugerir, como texto-matriz ou texto- parece assim, pois a noção de espaço é uma ne-
-genético… Pois há quem, no meio literário, ain- cessidade da percepção humana. Eles podem
da considere esta linha criativa como literatura estar muito mais perto em termos não espaciais
de laboratório! (risos) Na verdade é uma litera- (se assim me posso exprimir). E isto é muito se-
tura programada, uma literatura que exige uma melhante ao modo como o hipertexto trabalha:
programação informática prévia… aproximando, através das suas hiperligações,
textos que estão no espaço e no tempo muito
RT – O William Burroughs, que também fez as distanciados, mas nós acedemos a eles quase
suas combinatórias, embora com “faca e tesou- instantaneamente no ecrã de um computador,
ra”, nos seus cut-ups e nos fold-ins, dizia: “Langua- do mesmo modo que acedemos a um texto que
ge is a virus from outer space”, o que deu título a esteja no disco duro – também aqui o espaço e
uma música da Laurie Anderson… a distância pouco importam. Podemos hoje ace-
der a um texto que está na biblioteca de Pequim,
PB – Exactamente. Aliás, acho que ele aí estava e até traduzi-lo aproximativamente num tradu-
cheio de razão… A heroína ou o LSD devem ter- tor automático, sem termos de nos deslocarmos
-lhe dado clarividência nesse momento! (risos) à China. Basta clicar num link, nesse portal tex-
Na ufologia admite-se que a linguagem terá tual, e temos o texto no ecrã do computador!
sido dada ao homo sapiens pelos Anunnaki, ou Será assim que os aliens fazem as suas viagens
Elohim, seres que vieram do espaço há uns mi- intergalácticas? Pois eu admito que sim. Usando
lénios atrás. E há muitos mitos nesse sentido, vórtices energéticos como links espácio-tempo-
inclusive os mitos sumérios: veja-se a investiga- rais? Talvez. Não sei. Um dia saberemos… (risos)
ção arqueológica de um Zecharia Sitchin… Mas
continuando: o texto potencial, ou generativo, RT – Retomando, portanto, a questão com que
como lhe queiramos chamar, nas suas várias começámos: algo que o nosso cérebro já fazia,
modalidades, levanta uma questão filosófica in- através da linguagem, esse vírus, com os proces-
teressante entre potencial e actual. O hipertexto, sos de mediação, referencialidade, ou até inter-
por exemplo, pode ser visto como uma metáfora textualidade, ou não?
do cosmos, porque um link, uma hiperligação, é
Materialidade e transdimensionalidade nas novas textualidades electrónicas: uma transição de paradigma? 161

PB – Sim, de certo modo. Mas eu vejo a questão


da intertextualidade deslizando só no plano
semântico do texto, não no plano da sua reali-
zação. É uma questão interessante, sem dúvida,
tens razão em lembrar isso. No entanto, pensan-
do bem, não será todo o texto, afinal, mais do
que um mero locus intertextual? Todos os textos
se interpenetram, pelo menos na nossa cons-
ciência, naquilo que lemos. Nós nunca escreve-
mos: escrevemos…

RT – Não é apenas a intertextualidade: é a re-


ferencialidade, a economia da linguagem, esse
mecanismo de significação que nos permite
convocar objectos, estabelecendo relações en-
tre significantes e significados…

PB – Concordo: é o tal poder genesíaco da lin-


guagem, do verbo, da palavra. E, também, até
que ponto a nossa realidade não é só compreen-
dida, mas é também construída através da lin-
guagem? A crença numa coisa, até que ponto
determina a sua existência, ou não? Para quem
acredita em fantasmas, eles existem e condicio-
nam a sua reacção; para quem não acredita, é
apenas uma palavra ou uma alucinação. O que
eu gostava realmente de deixar acentuado nesta
conversa é que eu vejo nestas cibertextualida-
des um reflexo da transição de uma “era planetá-
ria” para uma “era cósmica” da humanidade, uma
transição em que outros paradigmas estão neste
momento a ser forjados em todos os domínios,
seja na ciência ou na arte, seja na política ou nas
relações humanas.
162 [Entrevista de Rui Torres (RT) a Pedro Barbosa (PB), Março de 2016]

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