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DEBATE 31

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


Pessoa da plateia tância da cultura. A cultura na diáspora foi fun-
Minha pergunta é de ordem clínica. Pelo que damental para a nossa reestruturação enquanto
entendi o significante genocídio chama atenção sujeito, só foi possível diante de um processo de
mas deixa à margem o significante negro. Nós es- extrema desumanização responder com a huma-
tamos falando de uma especificidade, não é qual- nidade se processa a partir do elemento cultural
quer genocídio, estamos falando de genocídio de de matriz africana. Então, conversar um pouco
uma população especifica. Eu percebo o quanto mais sobre essa dimensão da cultura e resistência
que essas especificidade pouco aparecem na nos- e também, quando você cita essa dimensão mais
sa prática, o quanto que a gente sabe que ela exis- da conjuntura histórica política que a gente tá vi-
te, mas o quanto ela não se faz presente no nosso vendo atualmente, relembrar aquela nossa… e ai,
discurso. A psicanálise nega as questões raciais pensando também aquelas nossas ações enquan-
historicamente e eu falo “nega” porque ela não to Movimento Negro, o comitê contra o genocí-

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dá luz e valor como dá para outras questões.. Fico dio, e outras atuações que a gente teve, quando
pensando que não é à toa que fica de lado, por- a gente ocupou o Shopping Higienópolis foi uma
que também, a escuta para essa dor, ela também ação que marcou bastante o período de lutas,
é especifica e a psicanálise, ela vem de uma for- acho que é bom relembrar essas situações para a
mação como a Psicologia que além de não vali- gente ver como é que a gente tem agido, né?
dar, colaborou para o racismo. Me parece que o
termo negro ficou à margem na fala de vocês, não Pessoa da plateia
sei se é um mecanismo inconsciente ou não, mas Nós somos psicanalistas teoricamente fa-
fica à margem. Isso me preocupa, isso também lando, epistemologicamente falando, mas nós
apareceu na minha clínica e a gente não cuida somos psicólogos e o Conselho de Psicologia é
da população que tá morrendo. A gente não cui- uma instância pública que regulamenta o exer-
da com a qualidade que essa escuta tem que ter, cício profissional em defesa da sociedade. En-
quando a gente leva em consideração diversos tão, temos sim, um Estado cuidando do cuidado.
aspectos da dor, mas a questão racial não chama Gostaria de apontar que não é só genocídio, é
tanto atenção. Acho que Catarina falou uma coisa inclusive um epistemicídio Concordo que a psi-
importante, aquilo que não foi significado, sim- cologia sempre é política, ela sempre é atraves-
bolizado pelo sujeito retoma como sintoma. Vo- sada pela ideologia. A questão é qual e não são
cês não significaram, não simbolizaram o termo todas e muito menos, as nossas e muito menos
negro e ele retoma como sintoma, na minha fala. dos indígenas, muito menos da América Latina.
Existe uma identidade, existe uma ideologia e
Pessoa da plateia existe uma postura política e esse é o problema,
Quero dizer que é um mito que a Psicologia porque isso é visto como se não houvesse, como
nunca fez essa discussão de questão racial ou que se a Psicologia fosse neutra e santa.Então, uma
ela é recente. Na historia da Psicologia no Brasil, Psicologia que é eurocêntrica, heteronormativa,
essa questão sempre foi colocada, agora, como branca, masculina é uma Psicologia que está po-
ela foi ela também foi com todos os problemas que litizada a serviço de um grupo social, então é por
a gente pode apontar ou não, em vários momen- isso que a Psicologia produz teoria e técnica para
tos, ela foi um suporte analítico importante para determinada faixa da população. Concordo que a
entender dimensões raciais, cito (incompreendi- Psicologia clínica sempre tem uma interferência
do), Neusa Souza Santos, que inclusive é lacania- indireta na sociedade, mas acho que a gente está
na. Então, como é que esses autores, subsidiam muito pouco preparado para fazer isso de modo
ou não o trabalho de vocês, porque me pareceu mais comprometido, consciente. Quando a gente
também ausente na fala de vocês essa discussão atende um individuo, a gente sabe que ao aten-
desses autores que fizeram essa discussão. E ai, der esse individuo, ele muda sua família, mas é
acho que quando a gente pensa na nossa atuação pouco pra mim, acho que a gente tem que saber
nos espaços públicos e ai, vou falar da minha ex- quais são os quadros de vulnerabilidade indivi-
periência na saúde pública, a gente tem algumas dual, social e programática, de preferencia, inter-
outras mediações que nos subsidiam nos nossos vir nos três. Para mim, pessoalmente, foi pouco
trabalhos e nesse sentido, e constatamos a impor- ficar na clínica, mesmo que seja uma clínica em
32 grupo ou em ambiente publico, que não esteja parte da população que está sendo internada
atenta, pelo menos, no diagnóstico, para inves- compulsoriamente é de pobres e negros. A pes-
tigar o pertencimento racial, o pertencimento de soa branquinha rica não vai ser internada com-
classe, a conjuntura de classe. Acho que a gente pulsoriamente. E queria levantar uma outra pre-
ainda precisa desenvolver teorias técnicas para ocupação que é sobre a regulamentação, Temos
chegar a praticas mais condizentes com a deman- o Conselho Regional de Psicologia, de Medicina
da social e nisso a gente está falhando bastante. e outros conselhos que zelam pelo bom exercí-
cio profissional, e assim como outras linhas e
Pessoa da plateia outras práticas, a psicanálise é exercida por di-
Queria saber quantos no Margens Clínicas versas profissões, seja da saúde ou não e uma
são negros e queria saber também, se é possível preocupação é que quando você regulamenta e
dar uma ideia percentual de quantos brancos você supostamente cria um conselho de psica-
vocês atendem por grupo. E por fim, eu queria nalise, você limita a sua utilização.Assim como
saber se nesse grupo de dez psicanalistas essa o Conselho Regional de Psicologia foi contra o
emoção do racismo já aflorou e como é que vo- ato medico, também não quer que existam ou-
cês lidaram com isso. tros atos, queremos que o psicanalista, psicó-
logo ou médico ou um filosofo va buscar aquilo
Moacyr Miniussi Bertolino Neto, conselhei- que mais lhe convém e buscar o melhor cuidado
ro do CRP SP que respeite todas as religiões, culturas e a étni-
Queria pontuar algumas coisas, principal- co racial também.
mente quanto a saúde mental da população. Atu-
almente, no Brasil, vem sendo implantado, ain- Rafael Alves Lima
da não de maneira satisfatória, mas vem sendo Muitas perguntas, certamente não vai dar para
implantada a rede de atenção psicossocial que discutir tudo, então, vou tentar fazer uma brico-
foi pensada de maneira multidisciplinar por di- lagem. Estou de acordo que existe uma cegueira
versos teóricos, desde terapeutas ocupacionais, psicanalítica em relação as questões raciais. A
médicos, psicólogos - em grande parte, psicana- questão racial sempre esteve numa espécie de
listas mas também de outras linhas. A psicolo- ponto cego da psicanalise, a não ser em experi-
gia e a medicina, durante muito tempo, foram ências mais recentes, como por exemplo, a teoria
utilizadas como mecanismos para fazer com que do Franz Fanon e toda teoria pós colonialista que
a pessoa aceite ser sujeito de violência. A psico- se desenvolve muito bem na Inglaterra, mas da
logia e diversas áreas da saúde vêm tentando se qual ainda somos muito carentes no Brasil. Se
modificar para que isso não mais ocorra e uma o colega comentou que tinha um sonho de ter a
das maneiras é atenção psicossocial, que propõe questão da raça incluída nos nossos programas
uma atenção multidisciplinar, com respeito a to- de graduação em psicologia, eu como professor,
das as linhas. Penso que não é necessariamente, diria que eu tenho um sonho que eu gostaria que
a psicanalise que tem que se tornar uma política parte dessas cadeiras fossem ocupadas por teó-
pública, mas que o cuidado em saúde e saúde ricos pós colonialistas, pessoas que estudam os
mental tem que ser uma política pública multi- autores que o receberam na Inglaterra, o próprio
disciplinar, com diversas linhas, em que todas (incompreendido) também, desde antes disso,
essas linhas têm que respeitar principalmente, desde antes a discussão entra pela porta da fren-
a cultura do sujeito. Respeitando a cultura e as te pelo (incompreendido), psicanalista da colo-
suas matrizes, você vai estar olhando para um nização. E pegando a esteira aqui da questão da
sujeito e não para os seus sintomas e não para colonização, acho que fica sim, o desafio e esse é
uma doença. É uma proposta e é um cuidado na um desafio para o Margens, a gente já está se ha-
atenção psicossocial que nós olhemos para o su- vendo com essa questão, que somos herdeiros do
jeito com toda a sua composição: desde as suas pensamento colonizador, por assim dizer, né, a
matrizes religiosas, desde a sua comunidade, a psicanalise sendo eurocêntrica e tendo também,
sua família, e a questão étnico racial. O aspec- esse traço inegável de ser uma formação cara,
to cultural e o cuidado da diversidade, das di- ter tons de burguesia, o nosso grande desafio é
ferentes composições familiares e comunitárias realizar isso que algum participante chamou de
é uma preocupação muito grande, que também epistemicídio, alguns epistemicídio vão precisar
faz a frente com a internação compulsória que é ser feitos, para que nós possamos nos haver com
outra forma de segregação, exclusão . A maior essa questão que não pôde aparecer nem na In-
glaterra, nem na França, nem nos Estados Uni- Catarina Pedroso 33
dos.Vamos lembrar que o Fanon é um autor sul- Em primeiro lugar, eu reforço o que o Rafael
africano, então não é por acaso que a experiência disse em relação a uma resistência em nomear,

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histórica do apartheid o inspira a pensar num em falar a palavra negro. Embora esse seja um
livro, por exemplo como “Pele Negra, Máscaras esforço nosso em problematizar, em se racializar
Brancas”. Temos ai esse desafio, de fato, não que- também, em nos olharmos como brancos. Acho
remos continuar veiculando essa negação siste- que é uma questão inclusive que precisamos
mática das questões raciais, mas acho que talvez, aprofundar no grupo de que se trata essa clíni-
o primeiro passo seja cometer esse epistemicídio, ca atravessada e sustentada por uma discussão
não generalizado, claro, pois a psicanálise é o racial. E também respondendo a uma pergunta
que orienta a nossa escuta, é o que orienta o nos- feita, no nosso grupo, não temos negros a não ser
so trabalho, mas precisamos focar nesses pontos um rapaz que é recém chegado, que não é psicó-
cegos que a teoria tantas vezes, veiculou, que logo, é sociólogo ele é de movimento negro. Entre
chegou até nós e as coisas aqui são muito dife- os psicólogos não há nenhum negro e isso é um
rentes. Temos membros no grupo que estudam as grande problema para a gente, não só porque é

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epistemologias do Sul, lembro principalmente de uma questão para a gente pensar, mas como in-
um amigo que chama Anaturriani, que faz uma tefere na nossa atuação. Como que a gente pode,
pesquisa sobre a Guatemala, estuda os autores como brancos atender essa população? Sempre
que pensam para além dessa nossa razão coloni- encontramos uma resistência, porque os aten-
zada, universitária, nossa formação mais básica dimentos que a gente faz são na periferia, são
que temos em psicologia e esperamos que esse na quebrada e a gente tem sempre um olhar de:
tipo de estratégia da razão possa nos inspirar a ‘bom, vocês são psicólogos brancos vindo aqui,
resolver esse problema. Acho que não por acaso, quem são vocês?’.Acho que tem toda uma ques-
no nosso discurso a questão da negritude aparece tão que a gente enfrenta também e que a gente
como não dito, aparece quase como um sintoma tem que incorporar.Por fim, comentando as ques-
e eu diria que estamos atentos, digamos assim, a tões colocadas, acho que a gente não pretendeu
esse sintoma. Mas se nós quisermos desmontá-lo aqui, falar da psicanalise se tornando uma polí-
nós temos que ir às bases da organização dos nos- tica pública, não se trata exatamente disso. Mas
sos modos de pensar, da nossa organização da ra- a gente acha que a psicanalise, através do nosso
zão. Então, autores como Frantz Fanon e descen- trabalho, tem algo a contribuir, inclusive com a
dentes mais imediatos vão ser muito bem vindos rede de atenção psicossocial, e eu acho que vale
sim, no nosso trabalho do Margens Clínicas. a pena dizer uma coisa que a gente não disse an-
Em relação a questão do genocídio, isso é algo tes que é do caráter excepcional de uma política
que eu pensei, isso é uma hipótese muito rasa reparatória. A gente insiste que deve ser vincula-
nesse momento – mas tenho um pouco a impres- da a rede pública, deve ser uma política pública,
são de que se não prestarmos atenção, podemos mas ela precisa manter o seu caráter excepcional,
usar inclusive a palavra genocídio dentro de uma senão ela perde o caráter reparatório. O atendi-
razão colonizada, europeia. Afinal de contas, ela mento psicológico como uma forma de reparação
vem para significar e nomear o holocausto. Não pelos crimes cometidos pelo Estado, a gente acha
tenho nada contra o uso dela, acho que ela pode que isso deve ser sim, uma política do Estado,
continuar sendo veiculada, desde que prestemos porque ai, ele assume o caráter reparatório, extre-
atenção que ela vem deste lugar, ela vem com mamente articulado a toda rede, mas ainda com
este tom europeu. Sempre temos uma aposta essa especificidade de um recorte populacional.
na dimensão da linguagem, na possibilidade de Bom, eu acho que é isso, agradeço imensamente
podermos significar os acontecimentos clínicos, o CRP pelo convite, é um grande prazer poder de-
sociais e políticos por consequência, através de bater tudo isso aqui.
um uso criativo da linguagem. Se nós começar-
mos a chamar sempre fenômenos diferentes pela Joselicio Junior
mesma palavra, corremos o risco de sobrepormos Quase não fui provocado, né, então… acho
históricos diferentes, culturas diferentes, educa- que começar pelos agradecimentos, para não cor-
ções diferentes e por ai vai. Acho que se o desafio rer o risco de no final, sair correndo, né? Então,
é reorganizar os nossos modos de pensar e reor- agradecer mais uma vez pelo convite, parabeni-
ganizar a nossa razão, precisamos ir à questão lá zar mais uma vez, me sinto muito feliz, muito fe-
onde ela acontece. liz mesmo de poder partilhar esse momento com
34 vocês aqui. Bom, basicamente, o Marcinho levan- no, nos utilizamos muito dessa estratégia, né,
tou uma bola ai pra eu dar uma petecada e fazer entendemos que a cultura, ela não é uma perfu-
um jabazinho, né? Mas eu acho que esse debate maria ou algo… ou adereço a nossa ação política,
que ele traz da questão cultural, eu acho que ela ela por si só, a ação cultural por si só, ela é um
é central, né, porque muito na esquerda, a gente elemento transformador, um elemento de cons-
fala muito das relações econômicas, sociais e es- trução, de transformação e etc. Então, eu acho
tabelece isso como um elemento que condiciona, que até a Bete pode falar um pouco mais sobre
né, as desigualdades, mas às vezes, a gente es- isso na Mesa seguinte, que ela tem estudado bas-
quece da dimensão cultural como um motor da tante sobre isso. Então, eu acho que a cultura, ela
construção ideológica e da produção da hegemo- é um elemento fundamental, né, assim como eu
nia, né? E quanto isso foi um mecanismo impor- acho que nós temos que avançar no debate e eu
tantíssimo para as comunidades africanas e afro- tenho muito feito esse debate com os nossos ami-
brasileiras, como expressão não só de identidade, gos do hip hop para entender essa questão do
mas de resistência e de manutenção da sua ori- funk, eu acho que também, é um erro esse proces-
gem e da perpetuação da sua relação em comuni- so de criminalização do funk não só pelos apara-
dades, então, desde as próprias comunidades tos das pessoas, mas também, por parte da es-
tradicionais de terreiro, as religiões de matriz querda, por parte dos movimentos sociais
africana, expressões como… a congada que dialo- organizados, né, que não reconhecem como tam-
go com o sincretismo religioso, outras expressões bém uma expressão carregado de contradições e
o congo, o jongo, varias expressões culturais que de elementos importantes e que aquilo também é
têm uma importância significativa, né, o jongo, nossa cultura, aquilo também faz parte da nossa
por exemplo, era o espaço que os negros tinham tradição, né, inclusive a sua batida nada mais é
para falar bem do seus senhores ali, através dos do que um maculelê ritmado eletrônico, né, en-
batuques, através da brincadeira, do jogo, né, en- tão, tá imbricado na nossa cultura, não tem como
tão isso sempre foi algo importantíssimo para a fugir disso e além de todos os seus elementos so-
nossa construção social de resistência, né? Seja o ciais que também precisam ser incorporados e a
próprio samba, a própria capoeira, como eu disse gente tem procurado produzir um pouco esse tra-
recentemente, a cultura hip hop, né, e eu acredito balho lá no nosso Ponto de Cultura, trouxe aqui
que nesse momento, também isso se faz muito alguns folders, né, entrando ai no jabazinho, seu
presente. Se você pensar ai o que é hoje, esse cir- Joselicio, ali, pai trouxe os folderzinhos para aju-
cuito cultural que vem sendo construído e produ- dar ai a distribuir ai para a galera, onde a gente…
zido na periferia, até retomando ai, por exemplo, é um ponto de cultura e desenvolve já há seis
a polemica do macaco, que eu fiz até um texto so- anos, por exemplo, o Sarau Palmarino que inclu-
bre isso, desse processo de ressignificação das sive, hoje a noite temos, quem quiser dar uma
coisas, né, esse processo dessa reconstrução des- passeada, é só pegar o 124 aqui na Francisco Mo-
se circuito cultural periférico, sobretudo produzir rato, aqui no finalzinho da Teodoro, pega o 124 e
uma ressignificação, uma ressignificação do ter- em 40 minutos, e vocês estão lá. então, o Sarau
mo periferia, então, daquilo que é dito: “Aqueles que a gente realiza todo ultimo sábado do mês e
que estão lá, marginalizados”, para transformar várias outras ações que vocês poderão ver ai.
isso numa identidade como uma forma de se co- Com relação ao legado ai que o Marcinho coloca
locar a partir do seu lugar, né, na sociedade como também das iniciativas, a gente tem tido a experi-
o próprio Sarau, né, como algo, aquilo que até o ência de que diante de todo esse caldeirão politi-
Adorno coloca, de se apropriar da cultura popu- co cultural dessa efervescência conjuntural que
lar e transforma-la numa grande indústria, essa nós estamos vivendo, não é possível se pensar
coisa toda, a cultura periférica, ela inverteu essa que sozinhos, nós, ou categorias de classe ou en-
lógica, ela se apropriou de uma pseudo expres- tidade por si só vai dar conta de conseguir dar
são cultural da elite, que é o Sarau, algo privado, respostas às demandas que estão colocadas e
dos pequenos e seletos grupos da elite e a trans- cada vez mais, a gente vem nos esforçando para
formou algo como cultura popular e como algo produzir frentes, né, produzir espaços comuns
acessível que acontece no bar, que acontece naquilo que nos unifica, né, então mais do que
numa associação e etc., né, então, esse processo pensar naquilo que nos divide, as possíveis diver-
de ressignificação, de construção de identidade, gências, pensar aquilo que nos unifica, né, e a
de produção de elementos é algo muito interes- partir de 2010, com a ressignificação também do
sante e de certa maneira, nós do Circulo Palmari- 13 de maio que a gente conseguiu um 13 de maio
de luta, nós tivemos uma serie de iniciativas, diferenciada, né, Marcinho, lá da questão de ter 35
como audiência pública, inclusive em 2010, ou não ter uma estação do metro ali na região de
quando se completou quatro anos dos crimes de Higienópolis e a gente pensou nessa linha de

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maio, nós fizemos um 13 de maio de luta dedica- pensar os elementos simbólicos,. De pensar essa
do a questão dos crimes de maio, foi naquele mo- questão da construção do imaginário, a gente
mento que o professor lá do largo São Francisco, pensou numa ação de impacto que foi dar um
que eu não me recordo o nome agora ajudou a as- susto na burguesia, digamos assim, né, no senti-
sinar para protocolar o pedido de federalização do: nós existimos e temos uma pauta política
dos crimes de maio e ai, a partir daquilo, se de- para dialogar que foi a ocupação do Shopping Hi-
sencadeou todo um processo de audiências pú- gienópolis, né, foi um momento, foi o primeiro
blicas, de iniciativas que culminou na formação rolezinho, né, contemporâneo e mais recente-
do Comitê contra o Genocídio da Juventude Ne- mente, a gente fez um rolezinho contra o racismo
gra, né, que teve uma serie de iniciativas além da que nós fomos impedidos de entrar no Shopping
ocupação da Secretaria de Justiça, da Secretaria JK e fomos fazer boletim de ocorrência, teve uma
de Segurança Pública, nós também, pegando um grande repercussão também, né? E foi justamen-

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momento bem significativo ai, entre o final de te… a Lidiane falou aqui que tinha lido um texto
2011 e inicio de 2012, que tinham ocorrido al- lá do rolezinho no blog, né, e que terminava com
guns fatos muito interessantes assim, e escanda- uma frase que era muito significativa e essa frase
losos de casos de racismo, como por exemplo, foi imortalizada, digamos assim, pra gente, na-
aquele menino etíope, né, que foi descriminado quele momento e que a gente vem utilizando, in-
no Nona Paolo com os pais adotados, teve o caso clusive, o pessoal do serviço social também vem
da Ester que foi… que era secretaria de uma esco- usando largamente, acabou virando uma marca
la particular e foi impedida de trabalhar com ca- do movimento que é um trecho de um poema de
belo crespo, ela tinha que alisar o cabelo para ser um poeta aqui do interior de São Paulo, que eu
aceita como secretaria da escola. Tinham tido os não vou me lembrar o nome dele agora, mas que
motoboys que tinham sido assassinados, enfim, diz que é: “Por menos que conte a historia, não te
tinha uma efervescência de casos exemplares de esqueço, meu povo. Se Palmares não vive mais,
racismo na sociedade, tinha a questão do gente faremos Palmares de novo”. Valeu. Obrigado.
Enfrentamento e resistência: 37

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cultura, identidade e negritude
VERIDIANA SILVA MACHADO
GRADUADA EM PSICOLOGIA PELA ESCOLA BAIANA DE MEDICINA E SAÚDE PÚBLICA, ESPECIALISTA EM PSICOTERAPIA
JUNGUIANA, MESTRANDA EM PSICOLOGIA NA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Fui chamada pra falar de religiosidade afro- sujeito está, quem são essas pessoas.
brasileira, (seria afro-indígena, afro-ameríndia)? Todas essas religiosidades dialogaram com
Não vou me centrar em nenhuma religiosidade o catolicismo e é daí que surgiram as irmanda-

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específica, eu estou falando aqui do que se enten- des negras. Apesar de ter sido um instrumento
de como religiosidade afro-brasileira, que é um- criado também para evangelizar, os africanos as
banda, candomblé, e que em outros estados tem subverteram a seu favor, e através dessas irman-
outros nomes, como Xangô, Batuque, tambor de dades, começaram a cultuar as entidades que
Mina, entre outras coisas. De modo geral, essas conhecemos como orixás, como inquice, como
religiosidades foram desenvolvidas sob opres- vodu. Uma das mais importantes é a Irmandade
são, sob repressão e num contexto colonial escra- do Rosário dos Pretos, que existe na Bahia e em
vocrata. A ideia é refletir de que maneira essas re- vários estados. Nossa Senhora do Rosário foi le-
ligiosidades podem contribuir para a construção vada para África para evangelizar. Ficou muito
desses outros subtemas, que são a cultura, iden- famosa, caiu no gosto do povo e se tornou a Nos-
tidade e negritude, colaborando com o enfrenta- sa Senhora dos Pretos. Existiu muita gente contra
mento e o combate ao genocídio da população essa coisa: “Vamos afastar o catolicismo, vamos
negra. Essas religiosidades de que estou falando só africanizar”, mas teve uma importância mui-
desde o período colonial escravocrata já se con- to grande, porque foi no quintal dessa igreja que
figuravam naquele momento como organizações começa a se discutir, se articular politicamente.
religiosas vinculadas a elementos da cultura, tais Usaram isso como uma estratégia a favor da luta
como o talento musical, e aceitação de outras política libertária. De modo geral as religiosida-
expressões culturais. Eram inicialmente, de um des se expressavam junto com as expressões mu-
modo geral, chamadas de batuque. Depois foram sicais populares, como organizações religiosas,
também chamadas de calundus, que é uma pala- incluindo as irmandades afro-católicas. Seria o
vra africana que quer dizer o espírito que habita melhor nome, porque existiam as irmandades
o corpo do sujeito. Aqui no Brasil foi entendido dos brancos, e os negros eram proibidos de en-
como o modo carrancudo que é como fica o ros- trar nessas igrejas e de compartilhar os mesmos
to dessa pessoa. Essa ideia que saiu da religio- espaços, então comumente se fala da irmandade
sidade, da espiritualidade, se popularizou, aqui negra como a irmandade afro-católica, inclusive
em São Paulo e na Bahia também, e se usa essa algumas se utilizam de elementos afros para se-
palavra, calundu, para falar de mau humor. Na guir o ritual católico. Considero que todos esses
verdade é um mau humor porque, quando o es- movimentos, essas expressões populares, as or-
pírito habita o corpo, aquele rosto se transforma.. ganizações religiosas, as irmandades afro-cató-
Comumente se diz que a pessoa está de calundu, licas constituíram, sob uma perspectiva política
independente de estar com esse espírito habita- e sociológica, uma das bases dos movimentos de
do no corpo ou não, ou seja, já ultrapassou o li- resistência cultural e social dos africanos no Bra-
mite da religiosidade e passou a ser parte de um sil. Além de passarem anos submetidos a esse re-
conhecimento popular. Esse exemplo foi trazido gime escravocrata, após o 13 de maio foram uti-
para dizer que essa religiosidade não se limita só lizadas diversas estratégias para continuar essa
ao culto, dentro de um espaço religioso, mas é ab- subjugação, dentre elas, a desqualificação do que
sorvida pela comunidade pela população brasi- era uma espécie de alicerce: a religiosidade. Por
leira A psicologia deve estar atenta a como é que exemplo, o candomblé sofreu perseguição po-
a população absorve isso, em que contexto esse licial até 1945, a partir daí continuou a ser per-
38 seguido até 1976. É quando de fato começa um embora, era encosto, Ogum, que ele ia ficar ali
movimento de enfrentamento que começou a ser porque ia receber umas pessoas que iam chegar.
paralisado Ninguém entendeu nada, mas, se a ordem veio
Como é que começa esse enfrentamento? Pos- dele, ficaram algumas pessoas ali aguardando e
so dar alguns exemplos como o de Mãe Aninha aí o dia amanheceu e esses policiais chegaram.
do Ilê Axé Opá Afonjá, que dialogou com o Pre- Conta-se que tinha um policial tão desespera-
sidente Getúlio Vargas, que outorgou o primeiro do por ter ficado perdido na mata a noite intei-
decreto, que proibia a perseguição policial aos ra, sem entender nada, porque eles dominavam
candomblés, que eram invadidos e tomava-se aquilo ali tudo, ainda mais a cavalo, se ajoelhou
seus atabaques, altar de santo, assentamento, aos pés de enconce, entregou a sua arma, pedin-
tudo Uma outra mãe de santo importante foi do perdão por aquela atitude. O sujeito que me
Mãe Simplícia do Terreiro Oxumarê, que mesmo contou isso é um Ogam, um tata, tata kambundu,
depois do decreto, ainda quando essas persegui- o responsável pelos cânticos, pelos toques, e me
ções continuaram, voltou a dialogar. O presiden- disse que até hoje essa arma está guardada no
te foi à Bahia e ela, se dispos a fazer uma recepção acervo do Terreiro Bate Folha. Outro exemplo é
com aquelas iguarias baianas, e aproveitou, no o próprio mito fundador da Umbanda que é um
cantinho, para ter uma conversa ao pé de ouvido mito que vem para enfrentar o preconceito e ra-
com ele e dizer: “Olha, a perseguição continua”. cismo sofrido pela entidade Sete Encruzilhadas,
O terreiro dela não era um terreiro perseguido a entidade do médium Zélio de Moraes. Essa en-
porque, naquele período também já existiam os tidade é extremamente descriminada no ritual do
pesquisadores, e o terreiro onde se fazia pesquisa espiritismo e a entidade diz que a partir do dia
era um pouco mais protegido, porque eles tinham seguinte, iria voltar em determinado horário, em
acesso à polícia, eles dialogavam Mas o mais sim- determinado lugar e que iria fundar um culto que
ples, o mais pobre, menos conhecido, a polícia recebesse essas entidades que assim como ele
tocava o pau. Estou falando de uma tradição de eram discriminadas: os caboclos, os pretos ve-
candomblé, da tradição Ketu, de origem Ioruba. lhos e mais as outras entidades que não eram re-
E uma tradição também fez outro tipo de enfren- cebidas pelo centro espírita, e iria fazer caridade,
tamento, não no sentido de dialogar com esses para atender as pessoas que não sabiam ler, que
políticos, mas de enfrentamento da polícia. Estou não sabiam escrever. Enfim esse enfrentamento
falando da Senhora Maria Genoveva do Bonfim, está ai até hoje um dos enfrentamentos mais re-
Maria Neném, que fundou o Terreiro Tumbenci, centes foi noticiado pela Folha ........ lá, o juiz fe-
de nação Angola, um dos mais antigos da Bahia, deral que negou o pedido de retirar os vídeos, né,
ainda em funcionamento. Ela colocou no seu ter- que trata, são muito agressivos com o candom-
reiro essa palavra, Tumbenci, que os antigos tra- blé, com a umbanda, que trata de forma pejorati-
duzem como “Cá te espero” e dizem também os va, da rede, do Youtube. Além de ter negado, ele
antigos que a polícia lá não foi, ficou com medo disse que o candomblé e umbanda não são reli-
de Dona Maria Neném. Tem outro terreiro, conhe- giões porque não seguem o Alcorão, porque não
cido, também da nação Angola, que é o Terreiro seguem um livro, não segue um texto. Isso é uma
do Bate Folha, fundado em 1916, que tem uma tremenda ignorância nos dias de hoje, com tan-
história interessante. O Bate Folha fica no Bairro tos estudos falando que nesses povos, pelo go-
da Mata Escura que era uma fazenda, chamada verno federal também já são considerados povos
Fazenda do Bate Folha. O líder religioso desse e comunidades tradicionais, que significa dizer
terreiro no período, o Senhor Bernardino, deve que nesses povos, não só candomblé e umbanda
ter feito alguns favores espirituais a esse fazen- como outros, ciganos, ribeirinhos, feixo de pas-
deiro e ele doou uma parte da fazenda, parte essa to, enfim, uma série de comunidades ribeirinhas
que contém até hoje um pedaço enorme de mata também existe um pensamento próprio, existem
atlântica, talvez um dos maiores terreiros do Bra- concepções próprias de ser, de ver, existe uma
sil, até hoje com a preservação dessa mata. E aí cosmologia própria.
conta-se que alguns policiais, ao ouvir os ataba- Sob o âmbito da resistência o candomblé, a
ques do Bate Folha tocando, entraram na mata a umbanda e essas religiosidades preservam diver-
cavalo pra surpreender o terreiro e esses policiais sas culturas dentro do que significa povos e co-
ficaram perdidos nessa mata. A festa acabou, um munidades tradicionais, como uma língua, como
dos inquices, um dos nomes que se usa e equi- uma gastronomia. Falando dessas palavras que
vale ao orixá na nação Angola, disse que não ia vieram com esses povos e que ultrapassaram o
espaço religioso, eu posso citar, mais presente na tem de uma forma muitas vezes agressiva e que 39
cultura brasileira, a língua banto, principalmen- desloca o sujeito do seu contexto cultural. Até que
te o quicongo e o quimbundo, estão presentes no ponto isso vai te sustentar psicologicamente se

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


nosso vocabulário palavras como moleque, ca- você está deslocado, se você nega a sua memória,
çula, samba, tampa, bunda, a própria expressão que é a história do seu avô, a história de sua avó.
candomblé, que é uma expressão africana, a pa- Eu trabalhei num bairro em Salvador chama-
lavra cochilar, bengala, muxoxo, calundu, umbi- do Nordeste de Amaralina, na República, em um
go, tanga, quitanda. Nem todo mundo sabe que projeto de um pastor, que fazia justamente esse
são palavras africanas, já que às vezes não temos trabalho de resgate e tinha o apoio do governo.
outra palavra para as substituir e as utilizamos Ele pediu uma psicóloga e me indicaram e eu
no nosso cotidiano. Estou mencionando isso para fui. O trabalho acontecia dentro da igreja, eu tra-
marcar a presença de uma coisa que começa den- balhava em grupo, eu escutava os rapazes, eles
tro da religiosidade e ultrapassa esse espaço. Mas me contavam as histórias deles, dos crimes, das
do ponto de vista da construção de uma identida- pessoas que tinham matado, como foi o proces-
de pessoal e cultural, estão aí o terreiro de can- so de resgate e em um desses dias um deles dis-

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


domblé e a umbanda pra dar ao sujeito uma an- se para mim: “Mas como é que você lida com a
coragem. Depois que você se encontra com essa questão das religiões de matrizes africanas”, fui
cultura, depois que você se fortalece com isso, conversando com ele, falando do candomblé. Ele
você de fato se sente preparado para muita coisa disse: “Ah, não, professora, se eu visse alguma
Ontem eu fui a um evento da Secretaria Muni- reunião da macumba eu metia bala”, e eu pensei:
cipal de Promoção de Igualdade Racial, aqui em “O que é que eu faço com as minhas contas? Tá
São Paulo, e encontrei um senhor que me contou aqui no meu pescoço, eu guardo, eu escondo?”.
sua história. Quando moço ele passou por situa- Ele não teve nenhuma intenção de me agredir,
ções de vulnerabilidade, passou por privações, os mas era realmente o que ele fazia e percebi que
amigos deles todos foram mortos, alguns são de- aquele modo de trabalhar com ele só fazia refor-
pendentes químicos. Eu perguntei: “E você?”, aí çar aquele preconceito e reforçar aquela repulsa,
ele disse: “Não, hoje eu sou um tata”, que significa com relação à própria história, porque depois ele
pai de santo. “Mas como foi esse processo?”, ele me disse: “Ah, mas a minha avó mexia com essas
disse: “Da mesma maneira como acontece com as coisas, meu tio mexia com essas coisas”, Ele pode
religiões evangélicas ou protestantes, eu fui resga- até não mexer com essas coisas, mas ele tem que
tado, mas de um outro sentido, não fui convencido ter respeito e saber do seu pertencimento Se você
a nada, eu fui resgatado no sentido de resgatar a não tem esse pertencimento, se você não tem esse
minha ancestralidade, hoje eu tenho pertencimen- respeito, quem é esse sujeito que não tem histó-
to e eu acho que foi isso que me salvou”. Então ria? Cadê a memória desse sujeito? O que que vai
eu disse: “Se eu pudesse, eu levava você comigo ancorar esse sujeito psicologicamente, se não é
e você falaria lá no meu lugar e ele continuou fa- a cultura? Eu não estou falando da religião, eu
lando assim: “Eu acho que as pessoas de santo estou falando de religiosidade enquanto cultura,
precisam falar um pouco, precisam falar disso, né, que precisa ser respeitada e considerada. E no
temos que falar disso, parece que são só as outras que tange à psicologia eu acredito, que esse su-
religiosidades ou as outras expressões que têm jeito faz parte desse contexto sócio histórico que
essa capacidade, né”. Qualquer religião tem, mas colabora e muito, para esse avanço clínico.
40 ELISABETE FIGUEIROA
PSICÓLOGA, MESTRE E DOUTORANDA EM PSICOLOGIA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

Boa tarde a todas e a todos. Queria começar res- mente com o discurso veiculado pela elite, de que
gatando algumas falas que foram feitas anterior- a ação afirmativa é como se fosse uma gratifica-
mente durante o evento, que têm muito a ver com ção que está sendo dada para um grupo que não
o que quero discutir. O Hamilton diz: “Nós temos tem capacidade para entrar na universidade por
que falar por nós mesmos”. Acho que essa é uma si só. Fica difícil para o sujeito se assumir nes-
ideia importantíssima e temos que pensar nessa se lugar e se assumir negro também não é fácil,
noção dentro da psicologia e pensar o que psico- porque é se assumir como o não-sujeito social,
logia tem produzido como conhecimento, como aquele sujeito que não é bem quisto, que é o sus-
prática. Achei interessante também, Hamilton ter peito, que se atrela a uma série de representações
problematizado o termo afro-brasileiro, porque o pejorativas. Esse contexto me incomodou, prin-
“afro” remete a um resgate do sujeito e o “brasilei- cipalmente por questionar se essa dificuldade de
ro” é um engodo, pois a nação brasileira nunca de identificação era uma constante. Então comecei
fato acolheu o africano, e nos coloca de fato como a olhar para movimentos que são movimentos de
objetos. É necessário retomarmos a nossa voz. problematização e que propõem alguma forma
Faço parte de um grupo da UFSCAR chamado de enfrentamento do racismo. Transitando pe-
NUESTRA,( Núcleo de Trabalho Sociedade e Co- los saraus de São Paulo eu notei que havia uma
munidade), e nele são desenvolvidas pesquisas presença de corpos e de ideias negras muito fre-
que em sua maioria são feitas com grupos ditos quentes nesses espaços, e que a pauta da questão
minoritários. Muitos dos meus colegas pesquisa- racial se fazia muito presente , particularmente,
dores, colocam que uma das intenções de se fazer em alguns espaços. Se é dado o espaço pra esses
pesquisa com essa população é dar voz a esse su- sujeitos que são minoria, eles vão dizer das suas
jeito. E essa é uma discussão que tenho feito pois angústias, e os saraus de periferia mostram jus-
penso que não estamos dando voz a ninguém, tamente isso. É muito frequente a discussão de
e esses movimentos de resistência vêm mostrar gênero, de raça, de classe, porque isso perpassa o
justamente que esses sujeitos se organizam, eles cotidiano desses sujeitos que estão ali se colocan-
se coletivizam, eles se politizam e essa voz ecoa. do. Decidi, então, pesquisar esses coletivos dos
Então, trago algumas reflexões a partir da mi- saraus, partindo do pressuposto de que são cole-
nha pesquisa de doutorado, sobre o Movimento tivos que estão numa outra fase de identificação,
de Literatura Periférica que tem acontecido nas eles obviamente problematizam todo o malefício
periferias de São Paulo. Chego nesse campo de que o contexto racial brasileiro traz para as identi-
pesquisa a partir de algumas indagações na mi- dades de negros e negras, e para outras identida-
nha pesquisa de mestrado, na Universidade Fe- des também. São coletivos de afirmação. Eu quis
deral de São Carlos entrevistando jovens negros então não mais estudar aquilo que a psicologia já
que tinham ingressado nos três primeiros anos tem dito, que é o malefício do racismo à subjeti-
de implementação do programa de ação afirma- vidade de negros e negras, de brancos e brancas,
tiva. Eram jovens negros que tinham ingressado mas pesquisar este momento de identificação.
ou não pelo programa. Fazendo essa pesquisa me Quais são as representações que são forjadas nes-
deparei com algumas questões que me incomo- se contexto de ressignificação? Acho interessante
daram. Percebi que muitos dos estudantes que ler os trabalhos do Professor Alessandro de Oli-
ingressavam pela ação afirmativa e que optaram veira Santos, porque ele apresenta os momentos
pela ação afirmativa para negros, não necessaria- de tratamento da temática étnico-racial, e como
mente se assumiam negros e não necessariamen- a psicologia trata desse tema. O autor afirma que
te se assumiam nesse sistema de reserva de vagas. num primeiro momento existia movimento da Es-
Muitos estudos da ação afirmativa têm demons- cola Nina Rodrigues de eugenização e higieniza-
trado isso, e penso que essa dificuldade também ção, e nesse momento o negro é considerado um
não vem do nada. É difícil para esse sujeito se co- perigo social, aquele que deve desaparecer, que
locar como “reservista”, como adepto da reserva deve ser exterminado da sociedade. Num segun-
de vaga, tendo em vista todo o simbólico que se do momento, há o tratamento de outras questões,
aglutina à ideia de ação afirmativa e particular- como o preconceito, a discriminação, as atitudes

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