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GERALDO DA CRUZ ALMEIDA

Mestre em Direito

ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO


e outros escritos jurídicos

Praia, 2007
TÍTULO: ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO
e outros escritos jurídicos

AUTOR: GERALDO DA CRUZ ALMEIDA

EDITOR: LIVRARIA SABER - PRAIA


Rua Miguel Barbosa nº 18
Tel./Fax: 261 88 30
Praia - Cabo Verde

EXECUÇÃO GRÁFICA: GRÁFICA DA PRAIA, Lda.


Praia — CABO VERDE
Zona Industrial de Tira-Chapéu
Telef. 262 81 70 • Fax: 262 81 73
Email: grafica.praia@cvtelecom.cv

Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro


qualquer processo, sem prévia autorização escrita do
Editor, é ilícita e passível de procedimento judicial con-
tra o infractor.
ÍNDICE GERAL

ÍNDICE ……….. ………………………………….......………………........ 3

AGRADECIMENTOS ……………………………...…………….……...... 7

ABREVIATURAS …………………………………………....…………..... 9

I
Estudos doutrinários

1. O Direito Pessoal de Autor no Código do Direito de Autor


e Direitos Conexos ........................................................................... 13

2. O ónus da prova em Direito Internacional Privado ............................ 71

3. Subsídios para o Estudo do Direito Internacional Privado


na Antiguidade Clássica ..…............................................................ 121

4. A tipologia dos actos legislativos no Direito Constitucional


Cabo-verdiano.................................................................................... 147

5. Do Exercício e Tutela dos Direitos - anotação aos artigos 334º


e segs. do Código Civil .....………………..………………….... 173

6. Subsídios em torno dos direitos de cidadania na Sociedade


da Informação ………………………………………....………….... 195

II
Estudos de política e sociologia pró-legislativa

1. A inversão do princípio do indeferimento tácito


– uma análise de política legislativa ............................................... 233
2. Plano Director Municipal e Planos Urbanísticos Detalhados
da Ilha da Boa Vista ............................................................................. 271

3. Sobre a reforma do Regime Processual Civil em Cabo Verde .............. 309

4. Reforma da Lei das Bases de ordenamento do Território


e Planeamento urbanístico .................................................................. 323

III
Jurisprudência Comentada

1. Acórdão do Tribunal de Primeira Instância das Comunidades,


de 18 de Outubro de 2001: uso indevido do correio
electrónico; direito à reserva da vida privada;
despedimento ……………………....................................................... 379

2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) de 13 de


Novembro de 2002: docente; subordinação jurídica ……............. 399

3. Acórdão do Tribunal Constitucional português, de 13 de


Maio de 1987: prescrição dos créditos laborais;
discriminação de bens jurídicos; inconstitucionalidade ..…........... 411

4. Acórdão do Tribunal Constitucional português nº. 224/98:


despedimento de mulher grávida; inconstitucionalidade …........ 425

5. Sentenças do Tribunal Judicial da Comarca da Praia,


1º Juízo Cível, de 24 de Outubro de 2005 e 23 de Março
de 2006: posse judicial avulsa; conflito de títulos..………….......... 431

6. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) de 30


de Junho de 1999: transmissão de estabelecimento;
destino dos contratos de trabalho ……………………………......... 445

7. Sentença do Tribunal Cível da Comarca da Praia de 21


de Abril de 2004: serviço público das telecomunicações;
exclusivo; violação; inconstitucionalidade ……………………....... 453
IV
Notas dispersas

1. Estado constitucional e Estado real ….…………………….....…......... 489

2. Competência legislativa em matéria de taxas ……………….…......... 499

3. Sobre a responsabilidade civil do Estado e outras pessoas


colectivas públicas …..…………………………………………....... 507

4. Sobre o valor do registo matricial na prova da propriedade ............. 519

5. Licença sem vencimento. Regime Jurídico Geral das Relações


de Trabalho. Estatuto do Pessoal do Banco de Cabo Verde......... 529

6. Sobre a revisão do processo disciplinar ………………………............ 541

Índice Ideográfico ........................................................................................ 551

Índice Onomástico ........................................................................................ 567


AGRADECIMENTOS

Reúnem-se neste volume alguns estudos por mim realizados e dados


a lume, em várias oportunidades, sobre matérias específicas de direito cabo-
verdiano e outros escritos, publicados ou inéditos, sobre diversos temas ju-
rídicos. Deste volume ficaram excluídos alguns estudos produzidos sobre o
Direito do Trabalho Cabo-verdiano, pela perspectiva da sua integração numa
futura monografia em curso de preparação.
O interesse desta publicação foi-me suscitado pelo Senhor Presidente
da Câmara Municipal da Boa Vista, Dr. José Pinto ALMEIDA, quando, há
alguns anos, pronunciei uma palestra, a convite da Associação Nacional de
Municípios, subordinada ao tema O papel do registo matricial na prova da pro-
priedade, de que se publica aqui um pequeno extracto. Nessa altura o Sr. Presi-
dente manifestou o interesse da Câmara em subsidiar a publicação de uma co-
lectânea dos meus textos científicos. Aceitado o desafio, aproveito para deixar
ao Município da Boa Vista e ao Dr. Pinto ALMEIDA os meus agradecimentos
pelo apoio recebido.
No actual estádio das ciências nacionais, é meu entendimento de que
toda a publicação de criações do espírito deve ser subsidiada para permitir
embaratecer a obra e viabilizar que a mesma chegue a um número significa-
tivo de interessados. Entendo, assim, que o eventual subsídio concedido para
a publicação da obra, não deve ser entendido como um subsídio atribuído
ao autor, mas sim à publicação e divulgação por se reconhecer que a mesma
tem interesse científico. Rejeito, portanto, qualquer enriquecimento pessoal
em virtude de subsídios recebidos para a publicação e divulgação de obras do
espírito. O público é, e deve ser, o beneficiário directo desse mesmo subsídio,
para permitir-lhe aceder à obra mediante um preço cómodo.

O Autor.
ABREVIATURAS

AAFDL = Associação Académica da Faculdade de Direito


de Lisboa
Ac = Acórdão
AN = Assembleia Nacional
ANMCV = Associação Nacional dos Municípios
de Cabo Verde
BMJ = Boletim do Ministério da Justiça (Portugal)
BO = Boletim Oficial
CC = Código Civil
CDA = Código de Direito de Autor
CDADC = Código do Direito de Autor e Direitos Conexos
Cf = confrontar
Cit = citado
CL = Carta de Lei
CLT = Comissões de Litígios do Trabalho
CN = Código do Notariado
Col = Coluna
Col. Jur = Colectânea de Jurisprudência
CPC = Código do Processo Civil
CR = Constituição da República
CRP = Código do Registo Predial
CSC = Conselho Superior das Colónias
CSDC = Conselho Superior de Disciplina das Colónias
CSDU = Conselho Superior de Disciplina do Ultramar
CSIC = Conselho Superior do Império Colonial
DGOTH = Direcção-Geral do Ordenamento do Território
e Habitação
D = Digesto
DeC = Direito e Cidadania
DIP = Direito Internacional Privado
Doc elec = documento electrónico
EDAAP = Estatuto disciplinar dos Agentes da
Administração Pública
EDFAACRL = Estatuto disciplinar dos funcionários e Agentes
da Administração Central, Regional e Local
Enc. Del Dir. = Enciclopedia del Diritto
Enc. Lus. Bras. Cult. = Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura
Enc. Polis = Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado
HIV = Human Imnunodeficiency Vírus
INA = Instituto Nacional de Administração
INE = Instituto Nacional de Estatística
LBOTPU = Lei das Bases de Ordenamento do Território
e Planeamento Urbanístico
LCT = Lei de Contrato de Trabalho
Liv. = Livro
MpD = Movimento para a Democracia
Ob. = obra
Ob.Cit. = Obra Citada
PAICV = Partido Africano para a Independência
de Cabo Verde
PDM = Plano Director Municipal
PDU = Plano de Desenvolvimento Urbano
PGR = Procuradoria-Geral da República
PP = Portaria Provincial
Pp = página
PR = Presidente da Republica
RAU = Reforma Administrativa Ultramarina
RC = Relação de Coimbra
RE = Relação de Évora
Rev. Trim. Droit. Civ. = Revue Trimestrielle de Droit Civil
Riv. Trim. Dir. Proc. Civ. = Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile
RJGRT = Regime Jurídico Geral das Relações de Trabalho
RL = Relação de Lisboa
STA = Supremo Tribunal de Administrativo
STJ = Supremo Tribunal de Justiça
TIC = Tecnologia de Informação e Comunicação
Tit. = Título
U.S. = Unitet State
UNESCO = Organização das Nações Unidas para a Educação,
Ciência e Cultura
Vb = Vocabulário
Vol = Volume
I

ESTUDOS DOUTRINÁRIOS
e outros escritos jurídicos 13

1. O DIREITO PESSOAL DE AUTOR NO CÓDIGO DE DIREITO DE


AUTOR E DIREITOS CONEXOS1

Sumário:

RAZÃO DE ORDEM. I. - Introdução. 1. Objecto do direito


pessoal de autor. 2. Os programas de computador. 3. A consa-
gração legislativa do direito pessoal de autor. II. – O Direito
Pessoal de Autor no CDADC. 4. Conteúdo do direito de autor.
5. Terminologia. 6. Noção de direito pessoal de autor. 7. Ca-
racterísticas do direito pessoal de autor. a) Inalienabilidade; b)
Irrenunciabilidade; c) Imprescritibilidade. 8. Sujeito do direito
pessoal de autor. 9. Conteúdo do direito pessoal de autor. 10.
Direito ao inédito. 11. Direito à paternidade da obra. 12. Di-
reito ao nome. 13. Direito à integridade da obra. 14. Direito à
modificação. 15. (cont.) modificações do projecto arquitectóni-
co. 16. Direito de retirada. 17. Sucessão em direito pessoal de
autor. CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA.

RAZÃO DE ORDEM

Seja qual for a opção tomada quanto à estrutura do direito de autor,


na construção dogmática deste ramo de direito, o direito pessoal de autor
aparece amiúde em todas as suas vicissitudes. A tentativa de recortar este
sector ou resulta debalde sem o percurso de todos os institutos que inte-
gram este ramo de direito ou impõe-nos um esforço de delimitação.
Em vista deste facto não é nosso propósito tratar de todo o direito
pessoal de autor. Referiremos, em jeito de introdução, à obra literária ou
artística, como objecto do direito pessoal de autor e referiremos à tutela
dos programas de computador. A consagração legislativa do direito pes-
soal de autor, seja a nível internacional, seja a nível nacional, será igual-
mente objecto da nossa atenção. De seguida, entraremos na análise da
regulamentação legal deste direito: falaremos do conteúdo do direito de

1
Estudo elaborado em 1993 e publicado nos estudos em homenagem ao Professor Doutor
Manuel Gomes da Silva, Coimbra Editora, 2001, pp 1057 e segs. Procedeu-se apenas à
actualização da legislação portuguesa.As disposições legais citadas sem indicação da
procedência respeitam ao Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, aprovado
pelo Decreto-lei nº 63/85, de 14 de Março, com as alterações introduzidas pela Lei nº
45/85, de 17 de Setembro; Lei nº 114/91, de 3 de Setembro e Decreto-Lei nº 334/97, de 27
de Novembro.
14 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

autor, para fixar o lugar do direito pessoal de autor no quadro da dogmá-


tica do direito de autor, discutiremos a problemática da terminologia em
direito pessoal de autor, dele daremos uma noção e falaremos das suas
características essenciais.
A análise do conteúdo do direito pessoal de autor ocupará a maior
parte do nosso trabalho. Procederemos à determinação das prerrogativas
reconhecidas pelo CDADC, e daremos, relativamente a cada uma delas,
o respectivo desenvolvimento. Terá igualmente cabimento referirmo-nos
ao exercício do direito pessoal post mortem auctoris.
Em conclusão questionaremos sobre a natureza jurídica do direito
pessoal de autor.
De fora ficarão aspectos não menos importantes do estudo desta
temática, como sejam as obras em especial – v. gr. cinematográfica, coreo-
gráfica, fotográfica, e bem assim a obra futura – que referiremos de modo
incidental e na medida reclamada pelo desenvolvimento das matérias.
e outros escritos jurídicos 15

I. INTRODUÇÃO

1. OBJECTO DO DIREITO PESSOAL DE AUTOR

A realidade sobre a qual actua o direito de autor revela-se-nos sobre


três aspectos fundamentais. Ela é antes de mais uma actividade que nor-
malmente se exprime nas fórmulas “criação intelectual”, “produção inte-
lectual”. Desta actividade criadora ou produtora resulta uma obra, neste
particular, uma obra literária ou artística, a que aparecem associados desde
o primeiro momento aspectos íntimos da personalidade do criador, de tal
modo que a actividade e a obra que dela resulta, constituem a emanação
objectiva dessa mesma personalidade.
A lei não é indiferente aos três aspectos referidos: actividade – obra
– pessoalidade.
À actividade criativa liga um efeito decisivo: o autor é o criador
intelectual da obra – dispõe o art. 27º, nº 1, enunciando um como que prin-
cipio da verdade intelectual no estabelecimento da paternidade sobre a obra.
É autor da obra intelectual2 qui agit3 e é do efeito atribuído por lei a quem
se encontre nestas circunstâncias que resulta o conceito jurídico de autor4,
a quem a lei reconhece o direito de autor (art. 11º)5.
Outrossim à obra resultante da actividade criadora ou produtora
liga a lei determinados efeitos. Esta recebe a qualificação jurídica de coi-

2 Com maior rigor diríamos “obra literária e artística”, já que autor da obra intelectual, visto
independentemente do contexto em que se insere, refere-se quer às obras que constituem
descobertas quer àquelas que representam criações do espírito.
3 Ou como se exprime DAMBACH, aquele de cuja actividade intelectiva resulta uma obra
(in Funfzig Gutachten ecc.pp. XXVII e 55, cit. por TOMASO BRUNO, Diritti d’autore,
Digesto Italiano, vol. IX, pp. 644, Milão, 1898-1901).
4 Non agit sed facit – explica TITO CARLETTI (in Enciclopédia Jurídica Italiana, vb, autore,
vol. I, parte V, Milão, 1904, pp. 701). Todavia, nem sempre a lei respeita o princípio
da verdade intelectual no estabelecimento da paternidade sobre a obra. O próprio art.
27º admite nos seus termos que outras entidades que não o criador intelectual possam
reclamar direito de autor sobre a obra criada por outrem. Cf. art. 14º sobre a obra de
encomenda, por conta de outrem ou em cumprimento de dever funcional. Recentemente
a lei francesa nº 85-660 de 3 de Julho de 1985, que modificou a Lei sobre o Direito de Autor
nº 57-298, de 11 de Março de 1957 preceituou que os software criados pelo trabalhador no
âmbito de uma relação de trabalho subordinado pertencem ao empregador, incluindo o
próprio direito moral, podendo contudo estabelecer-se uma convenção em contrário (cf.
Serafino Gatti, in La Tutela Giuridica del software, Rivista del Diritto Comerciale e del Diritto
Generale delle Obligazioni, jan.-abr. 1987, nº 1-2/3-4, pp. 26)
5 O preceito do art. 27º nº 1 é cronologicamente anterior ao do art. 11º que lhe é uma
consequência. O art. 27º pertence à estática e o art. 11º à dinâmica do direito de autor.
16 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

sa – neste particular, coisa incorpórea – e são reconhecidos ao autor os


poderes de usar, fruir e dispor dela, poderes que configuram o conteúdo
tradicional do direito de propriedade – jus utendi, fruendi et abutendi (art.
9º, nº 2), com as especialidades próprias do exercício do direito de autor.
De igual modo, em virtude da relação intrínseca que liga a obra ao seu au-
tor, ela é tratada como bem da personalidade, daí se extraindo as devidas
consequências, nomeadamente, do ponto de vista da protecção que lhe é
reconhecida por lei. Ao conjunto dos poderes de agir como proprietário
da obra chama a lei direitos de carácter patrimonial (art. 9º, nº 1), por con-
traposição aos direitos de natureza pessoal, também chamados direitos
morais (art. 9º, nº 1 e 3), que constituem a expressão da tutela normativa
da personalidade do autor vertida na obra literária e artística.
Os três aspectos referidos não constituem compartimentos estan-
ques. A obra pressupõe actividade e, tanto a obra quanto a actividade, re-
velam-se-nos imbuídas de características que reflectem em cada momento
a personalidade do autor. Já a afirmação legal segundo a qual o autor é o
criador intelectual da obra está eivada de aspectos pessoais particulares
que se traduzem numa ligação intrínseca entre quem cria e o que cria,
ligação que não é apenas material, mas sobretudo espiritual. Há, pois,
desde o primeiro momento da criação intelectual revelações da persona-
lidade do criador, ou, pode-se mesmo dizê-lo, cada singulis momentis da
criação intelectual constitui uma tradução objectiva de aspectos particula-
res dessa personalidade.
Atendendo a esta osmose inextrincável entre a obra e o seu criador,
todo o regime legal do direito de autor revela a par e passo disposições
que de um modo ou doutro retratam ou protegem os aspectos pessoais
vertidos na obra literária ou artística. Ao conjunto destas disposições cha-
ma a lei e os autores direito moral de autor, ou mais propriamente direito
pessoal de autor, o qual constitui o objecto do presente estudo.

2. OS PROGRAMAS DE COMPUTADOR

Uma inovação tecnológica que vem justificando a alteração do di-


reito de autor em vários países, são os programas de computador. A ques-
tão que se coloca é a de saber qual a protecção legal a conceder a tais pro-
gramas, sendo certo que há unanimidade de pontos de vista quanto à sua
necessidade. A posição dos diferentes países relativamente à problemáti-
ca da protecção jurídica do software6 varia de país para país. Pode contudo

6 Como observa VINCENZO FRANCESCHELLI (in Computer, diritto e protezzione giuridica


del software – Rivista de Diritto Civile, anno XXXII, nº 4, Luglio-Agosto de 1986, pp. 374)
e outros escritos jurídicos 17

considerar-se que a discussão gira à volta de duas posições fundamentais


que os ordenamentos jurídicos acolhem, umas vezes isoladas, outras ve-
zes em cumulação. Países há que consideram aplicável o direito de autor
aos programas de computador. Nos Estados Unidos da América, onde o
problema da protecção jurídica do software se colocou pela primeira vez,
a solução inicial foi a do recurso às disposições legais que regulam a atri-
buição de patentes. Mas, rejeitada esta possibilidade pela jurisprudência,
o problema foi resolvido por via legislativa, com recurso às normas sobre
direito de autor7.
Semelhante solução foi igualmente adoptada por alguns países
europeus. Em face do obstáculo apresentado pelo art. 52º da Convenção
Europeia de Patente que expressamente exclui da protecção os progra-
mas de computador, enquanto tais, a opção foi no sentido do recurso às
normas que regulam o direito de autor. Assim, em 1985 foi publicado na
Grã – Bretanha o Copyright Computer Software Amendment Act, que atribui
aos programas de computador o regime das obras literárias. Igual solução
ocorreu em França com a Lei nº 85-660 de 3 de Julho de 1985; na Alemanha
com a lei de 24 de Junho de 1985, para os programas de calculadoras8 e em
Espanha com a Ley 22/87, de 11 de Novembro, cujo art. 10º, al. i), inclui
expressamente os programas de computador entre as obras protegidas,
dedicando o Titulo VII desta mesma lei um conjunto de seis artigos à sua
regulação9.

historicamente o primeiro problema que os juristas tiveram que defrontar relativamente


às interferências entre o direito e o computador é o da protecção jurídica do software.
7 Segundo SERAFINO GATTI (ob.cit., pp. 24) nos EUA a tutela do software está prevista
em três tipos de normas, a nível federal e a nível de cada um dos estados, entre si
complementares: a) US Copyright Act de 1976, U.S.C. parr. 1-810, a que está relacionado o
Semiconductor Chip Protection Act, de 1984, 17 U.S.C., parr. 901 e segs, e as decisões dos
tribunais que os interpretem; b) U.S. Patent Act., de 1952 e as decisões dos tribunais que o
interpretam; e c) as leis sobre o segredo comercial dos cinquenta estados.
8 Para maiores desenvolvimentos, cf. SERAFINO GATTI, ob. cit., pp. 25 e segs. Segundo
este autor, também na Austrália e no Japão os programas de computador se regem pelas
disposições que regulam o direito de autor, respectivamente, de acordo com a Emenda
feita ao Copyright Act de 1984 e pela Lei nº 62 de 4 de Junho de 1985. Todavia, neste último
país, os programas podem ser sujeitos à lei das patentes quando impliquem soluções
técnicas aplicáveis às forças naturais. Este parece ser igualmente o sentido do art. 96º, nº
3 da Lei espanhola (Ley 22/1987, de 11 de Novembro), nos termos do qual os programas
que formem parte de uma patente ou de um modelo de utilidade, gozarão da protecção
que lhes corresponde por aplicação do regime jurídico da propriedade industrial, sem
prejuízo da aplicação das regras sobre direitos de autor.
9 Em síntese são estes os termos da lei espanhola: protege não apenas os programas – que
define como toda a sequência de instruções ou indicações destinadas a ser utilizadas,
directa ou indirectamente, num sistema informático para realizar uma função ou tarefa
18 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Os problemas jurídicos suscitados pela utilização do computador


são inúmeros e variados10. No que ao nosso tema respeita ocorre pergun-
tar quais as consequências que daí se podem extrair do ponto de vista do
direito pessoal de autor.
Os países que protegem os programas de computador pelo direito
de autor estendem igualmente esta protecção ao próprio direito moral,
mas no caso dos programas produzidos para outrem a tendência parece
ser no sentido de se fazer beneficiar desta protecção não o criador intelec-
tual mas sim o comitente11.
Em Portugal dividiu-se a doutrina quanto à protecção jurídica do
software, pronunciando-se favorável à protecção o Dr. FRANCISCO RE-
BELLO, opinião porém combatida pelo Prof. OLIVEIRA ASCENSÃO12,
para quem o software não podia ser protegido em termos de direito de au-
tor, sendo certo que o direito de autor não tutela processos ou esquemas
para a acção que caracterizam os programas de computador13. Tal solução

ou para obter um resultado determinado, seja qual for a sua forma de expressão ou fixação
– e as suas versões sucessivas ou derivadas, mas também toda a documentação técnica e
os manuais para uso do programa. A protecção tem a duração de cinquenta anos, está
vedada a reprodução sem o consentimento do autor, mas este não poderá opor-se a que
o cessionário titular do direito de exploração realize ou autorize a realização de versões
sucessivas do programa. Estes direitos podem ser objecto de inscrição no Registo de
propriedade Intelectual.
10 O seu inventário poderá fazer-se a partir de OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito de Autor
e direitos conexos, lições…, Lisboa, 1989/90, pp. 143 e segs. Les Nouveaux moyens de
reproduction – Trabalho da Associação HENRI CAPITANT, tomo XXXVII, 1986, pp 353
e segs.; ETTORE GIANNANTONIO, Il valore guiridico del documento elctronico, Rivista
del Diritto Comerciale e del Diritto generalle delle obligazioni, ano 1986, nº 9-10/11-12,
Setembro-Dezembro, pp 261 e segs.; CARLO ROSSELO, I contrati di manutenzione del
software, Rivista del Diritto Comerciale …, ano 1986, nº 9-10/11-12, Setembro-Dezembro,
pp 311 e segs.; VINCENZO FRANCESCHELLI, ob. cit., pp. 371 e segs. Este último autor
apresenta uma síntese da situação doutrinária em vários países relativamente ao tema
em análise, considerando que nos EUA Computers and Law é hoje um novo ramo de
direito privado em pleno desenvolvimento.
11 É esta a solução da lei francesa 85-660, de 3 de Julho de 1985 e bem assim da lei espanhola
22/87, de 11 de Novembro, a qual parece harmonizar-se com a directriz do Conselho das
Comunidades de 12 de Abril de 1989 que serviu de base ao projecto de lei nº 396/V, da
autoria do deputado António Raposo. Sobre os termos deste projecto, cfr. O. Ascensão,
Direito de Autor…, pp. 180 e segs.

12 Direito de Autor…, pp. 178 e 179, nota 1.


13 Os direitos conexos ao Direito de Autor e as situações nacionais, Revista Jurídica nº 8, Out./
Dez., 1986, nova série, pp. 10 e 11. Este tema foi consideravelmente desenvolvido pelo
autor em Direito de Autor…, pp. 143 e segs., tendo concluído no mesmo sentido. Embora
admita que os programas de computador são susceptíveis, em abstracto, de tutela por
alguma ou algumas das categorias de direitos intelectuais, considera que o programa
e outros escritos jurídicos 19

só se justificava em virtude de um movimento de banalização do direito


de autor, cujo objectivo não é senão o de proteger os países exportadores
de obras intelectuais14.
Esta questão ficou, todavia, ultrapassada na sequência da Directiva
Comunitária nº 91/250, de 14.05.91, transposta para a ordem jurídica por-
tuguesa pelo DL nº 252/94, de 20 de Outubro, que conferiu aos programas
de computador “protecção análoga à conferida às obras literárias quando
tenham carácter criativo” (art. 1º, nº 2 do DL 252/94, de 20 de Outubro).

3. A CONSAGRAÇÃO LEGISLATIVA DO DIREITO PESSOAL


DE AUTOR

Os civilistas que se ocupam do Direito de Autor são unânimes em


admitir que o Direito Romano não regulou esta matéria. A justificação
comummente apresentada radica no carácter individualista da proprie-
dade romana que aplicada às obras intelectuais redundaria num poder de
usar, fruir e dispor da obra, não concedido ao seu criador, mas àquele a
quem, por qualquer modo, a obra tivesse sido alienada. Todavia, a partir
da consagração legislativa da vertente pessoal do direito de autor alguns
doutrinadores vêm pretendendo que nesta faceta o direito romano o te-
ria regulado através da actio injuriarum, um instituto de natureza penal
destinado a salvaguardar os bens da personalidade15. Todavia, não temos
noticia que alguma vez tivesse sido aplicada para a defesa dos interesse
pessoais do autor.
Uma ideia que se deve, contudo, reter é a de que o direito moral
de autor sempre viveu na consciência jurídica das comunidades. Dir-se-á

não tem a realidade ou utilidade que caracteriza a patente de invenção e em termos de


direito de autor escapa à noção de obra, por faltar-lhe a criatividade que é essencial à
existência de obra tutelável. Como projecto não é igualmente susceptível de protecção,
ou por faltar-lhe valia estética que a justifique ou porque a obra final em que se traduz
não é tutelável. Ainda que se admitisse que o programa como expressão linguística
pudesse ser tutelado como obra literária ou artística, de modo nenhum lhe poderiam ser
aplicáveis as normas sobre a execução ou sobre a tradução. Nesta hipótese, já poderia
merecer alguma protecção pelas regras relativas à reprodução, mas esta tutela seria
sempre indirecta e incompleta.
14 O. ASCENSÃO, Direito de Autor…, pp. 178 e 179, nota 1.
15 Cf. PIOLA CASELLI (in Diritti d’autore, Novíssimo Digesto Italiano, vol. V, pp. 675) que
confirma ter sido esta a opinião defendida por VITORIO SCIALOIA no seu discurso
proferido na Conferência de Roma de 1928. Esta opinião é igualmente defendida por
NICOLA STOLFI, Traité de la Propriété Literaire e Artistique, tradução da 2ª edição italiana,
1919, pp. 23, citado por PHILADELPHO AZEVEDO, in Direito Moral do Escriptor, Rio de
Janeiro, 1930, pp. 36.
20 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

mesmo que a situação jurídica regulada pelo direito moral é ela própria
anterior às situações jurídicas sobre as quais intervém o direito patrimo-
nial de autor. Não é debalde que se afirma que o direito ao inédito é o
primeiro direito que se constitui com a criação intelectual. Interesses eco-
nómicos terão justificado a protecção do direito patrimonial antes do di-
reito moral, mas isto não invalida o facto de mesmo antes desse reconhe-
cimento encontrarmos ao longo da história exemplos claros de exercício
do direito pessoal de autor, independentemente do seu reconhecimento
legal. Assim, diz-se que o poeta VIRGILIO autorizou a seus amigos que
destruíssem o poema Eneida que ele considerava inacabado e não tivera
tempo de aperfeiçoar antes de morrer16. DESCARTES, perante o terror da
condenação de GALILEU pela defesa do heliocentrismo, manteve inédito
Le Monde, escrito em 1629, porém, publicado postumamente em 166417 e
MONTESQUIEU por razões que desconhecemos terá destruído o original
da História de Luís XI18.
Quanto seja do nosso conhecimento, a manifestação mais antiga do
reconhecimento legal do direito pessoal de autor encontra-se num PAR-
TI publicado em VENEZA, em 1545, no qual se reconhecia aos autores
ou seus parentes mais próximos o poder de consentirem na impressão e
venda de livros, sob pena de serem destruídos e os contraventores puni-
dos com prisão e multa19. Todavia, só a partir de 1800, e não obstante a
histórica declaração da natureza real do direito de autor, a jurisprudência
francesa foi chamada a pronunciar-se sobre situações não patrimoniais
relacionadas com o direito de autor, tendo logrado impedir violações do
direito ao inédito, como no caso de ANATOLE FRANCE versus LEMERRE,
do direito de modificação, como foi no caso F. JAMMES versus BOUILLOT
ou mesmo do direito de retirada20.

16 Referido por STIG STRÖHMHOLM, cit. por BRUNO HAMES, in O Direito Moral De Autor,
Revista Interamericana de Direito Intelectual, Julho/Dezembro de 1978, pp. 101.
17 Segundo PHILADELPHO, Mundo teria sido destruído por DESCARTES, mas a
circunstância de ter sido publicado após a morte do cientista leva-nos a considerar que a
obra terá sido simplesmente mantida inédita, ainda que em termos de possibilitar a sua
reconstituição.
18 Citados por PHILADELPHO, ob. cit., pp. 67.
19 D. JUAN GUIMENEZ BAYO y D. LINO RODRIGUEZ-ARIAS BUSTAMANT, in Autor
(derecho de), Nueva Enciclopédia jurídica, tomo III, Barcelona 1951, pp. 136.
20 Sobre os diferentes casos em que a jurisprudência foi chamada a pronunciar-se cfr.
PEREZ SERRANO, in El derecho moral de los autores, Anuário de Derecho Civil, tomo II,
e outros escritos jurídicos 21

A partir da CONFERÊNCIA DE BERLIM de 1908 é colocada a pre-


ocupação do reconhecimento internacional do direito pessoal de autor, no
que tiveram papel preponderante nomes como KÖHLER, que segundo
PHILADELPHO, foi quem proclamou a emancipação do direito moral, e
PAUL HERVIEU que integrava a delegação francesa.
Mas a consagração internacional definitiva do direito pessoal de
autor ocorreu na CONFERÊNCIA DE ROMA, de 1928, sob proposta da
delegação italiana, então presidida por PIOLA CASELLI. Com efeito, a
Itália encontrava-se na altura entre os poucos países cuja lei de direito
de autor regulava expressamente o direito pessoal. Foi, pois, partindo do
texto do art. 18º da Lei italiana sobre direito de autor, de 1925, que essa
delegação se inspirou para propor o que veio a constituir o art. 6º -bis da
CONVENÇÃO DE BERNA para a Protecção das Obras Literárias e Artís-
ticas, de 9 de Setembro de 188621, ainda hoje em vigor22.
Em Portugal nem o Decreto Ditatorial de 1851, nem o Código Civil
de 1867, regularam o direito pessoal de autor. Rompendo definitivamente
com o sistema dos privilégios, aquele diploma propôs-se “reconhecer e
honrar, consagrar os direitos do pensamento, e fortificar ainda mais a li-
berdade de os comunicar”23, mas apesar disso não acolheu um único traço
revelador da intenção de proteger o direito pessoal de autor. Pelo contrá-
rio – o que também aconteceria no Código Civil de 1867 e no Decreto nº
13 725, de 3 de Julho de 1927 – o direito de autor foi concebido e regulado
como um direito de propriedade, dele não se extraindo quaisquer conse-
quências do ponto de vista dos interesses não patrimoniais do autor. Ao
autor atribuía o exclusivo da publicação da obra, donde poderia resul-
tar implicitamente um direito ao inédito, cuja violação, aliás, punia nos
termos dos arts. 27º e 28º § 1º. Além disso, submetia, em alguns casos, a
utilização das obras à autorização do autor, mas estas aparentes manifes-

fasc. I, jan.-mar., 1949, pp. 11, 12, 19 e 20.


21 A aprovação do art. 6º -bis não foi isenta de objecções. A delegação inglesa sustentou
que o reconhecimento do direito pessoal de autor era contrário ao copyright no que foi
combatida pela delegação italiana que logrou demonstrar que também a Common Law
permitia o reconhecimento do direito moral, como resultava da Fine Art Copyright Act,
de 1862, que “permitia que a protecção concedida pelo copyright fosse completada com
a protecção da honra e reputação do autor” (Cfr. PIOLA CASELLI, ob. cit., pp. 720 e 721
e no mesmo sentido PHILADELPHO AZEVEDO, ob. cit., pp. 44).
22 Portugal aderiu à Convenção de Berna pelo Decreto com Força de Lei de 18 de Março de
1911 e ao Acto de Roma de 1928 pelo Dec. Lei nº 27 670, de 26 de Abril de 1937, ratificado
pelo Dec. Lei nº 38 304, de 16 de Junho de 1951.
23 Lia-se no preâmbulo do diploma em questão.
22 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

tações do reconhecimento do direito pessoal de autor visavam objectivos


claramente patrimoniais.
À luz do Código Civil de 1867, alguns autores julgaram ver nos
arts. 574º, que exigia o consentimento do autor para a publicação das suas
obras, e 588º, que impunha ao editor o dever de não modificar ou alterar
o texto de uma obra, manifestações do reconhecimento do direito pessoal
de autor, mas também neste caso os objectivos visados eram de natureza
claramente patrimonial24.
Só com a publicação do decreto nº 13 725 de 3 de Julho de 1927 foi
recebida no direito português a consagração expressa do direito pessoal
de autor. Este diploma regulou o direito ao inédito (arts. 8º, 103º e 129º);
o direito à paternidade da obra (arts. 15º, al. c), 74º, 97º e 108º); o direito à
integridade da obra (arts. 15º, al. c), 89º, e 132º §4); e o direito de retirada
(art. 34º), mas intitulando-se “Propriedade literária, scientifica e artística”
regulava o direito de autor na sua essência como um direito real “… con-
siderada e regida como qualquer outra propriedade mobiliária…” (art.
36º)25.
A matéria foi retomada no Código de Direito de Autor de 1966,
aprovado pelo Decreto-Lei nº 46 980, de 27 de Abril do mesmo ano, que,
sem tomar posição definida sobre a natureza do direito de autor, regulava
expressamente o direito pessoal de autor nos arts. 55º a 57º, além de várias
outras disposições semeadas por todo o seu texto directa ou indirecta-
mente relacionadas com o direito pessoal de autor26. Não analisaremos
estes preceitos, na medida em que o essencial do seu regime foi recebido
pelo Código de Direito de Autor e Direitos Conexos, aprovado pelo De-
creto-Lei nº 63/85, de 14 de Março, com as alterações introduzidas pela
Lei nº 45/85, de 17 de Setembro, a cuja análise procederemos de seguida.

24 Para maiores desenvolvimentos cfr. CUNHA GONÇALVES, in Tratado de Direito Civil,


vol. IV, Coimbra, 1931, pp. 27 e segs.; ALBERTO SÁ E MELO, in O Direito Pessoal de
Autor no Ordenamento Jurídico Português, Lisboa, 1989, pp. 48 e segs.
25 Para maiores desenvolvimentos cfr. ANTONIO DE ALMEIDA SANTOS, Ensaio sobre o
direito de autor, Separata do Vol. XI ao suplemento do Boletim da Faculdade de Direito
de Coimbra, Coimbra, 1955; SÁ E MELO, ob. cit., pp. 52 e segs.
26 Cf. os arts. 5º, 21º, 22º, 23º, 51º, 58º, 59º, 60º do CDA de 1966.
e outros escritos jurídicos 23

II. O DIREITO PESSOAL DE AUTOR NO CDADC

4. CONTEÚDO DO DIREITO DE AUTOR

O direito de autor analisa-se em faculdades que se vão tornando


cada vez menores à medida que progredimos nessa análise.
A distinção que faremos neste lugar é a que separa as faculdades
de carácter patrimonial das faculdades ou direitos de carácter pessoal ou
moral. A análise impõe-se por virtude das características que a lei liga
a um e outro do conjunto dessas faculdades. Às faculdades de carácter
patrimonial ligam-se as características da alienabilidade, renunciabilidade e
prescritibilidade, por oposição às características da inalienabilidade, irrenun-
ciabilidade e imprescritibilidade das faculdades de natureza pessoal. Tratam-
se de direitos subjectivos parcelares27 que se destinam, aqueles a garantir a
exploração económica da obra e estes a satisfazer as exigências de carácter
pessoal que ligam a obra ao seu autor ou a proteger os aspectos pessoais
vertidos na obra literária ou artística.
Ao conteúdo patrimonial do direito de autor se refere o art. 9º, nº 2
que por sua vez o analisa nas faculdades de usar, fruir e dispor da obra,
total ou parcialmente, directamente pelo autor ou por terceiro, faculdades
a que a lei estabelece consideráveis limites ou especificidades, seja de or-
dem temporal, seja em atenção ao interesse público28.
A lei não é indiferente às relações entre a faceta patrimonial e a fa-
ceta pessoal do direito de autor. Esta preocupação é manifesta no art. 56º,
cujo nº 1 dispõe que os direitos pessoais são independentes dos direitos
patrimoniais, expressão que pode prestar-se a uma de duas interpreta-
ções: tanto poderá ser entendida no sentido de que os direitos pessoais
independem, isto é, estão separados dos direitos patrimoniais, donde se po-
deria retirar argumento para a defesa da teoria dualista quanto à estrutura
do direito de autor; ou no sentido de que além dos direitos patrimoniais o
autor goza ainda de direitos de natureza pessoal.

27 O termo é de ANTÓNIO MARIA PEREIRA, in Direito de Autor, Enciclopédia Polis,


vol. 2, col.383.
28 Os limites de carácter temporal são os constantes dos arts. 31º e segs. que fixam os
prazos de caducidade do direito de autor em 50 anos após a morte do criador da obra,
prazo este reduzido a 25 anos tratando-se de obra fotográfica e equiparada, ou a 10
anos, tratando-se de obra incluída em herança que tenha sido declarada vaga a favor do
Estado. Os limites fixados em atenção ao interesse público são os constantes do art. 75º
e são impostos pelas necessidades sociais de informação e de ensino, de formação e de
pesquisa (ANTÓNIO MARIA PEREIRA, ob. cit., col.383).
24 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Vai longe o percurso do advérbio “independentemente” com que


se abre o art. 56º. Constou do texto do art. 16º da Lei Italiana de 1925 que
regulava o direito pessoal de autor e, sob proposta da delegação deste
país, foi transposto para o que veio a constituir o art. 6º -bis da Conven-
ção de Berna. Dizia o texto da lei Italiana “Independentemente dai diritti
patriminiali riconosciuti dagli articoli precedenti…” e o texto da Conven-
ção de Berna passou a referir: “Independament des droits patrimoniaux
d’auteur…”, texto que transitou seja para o Código de Direito de Autor de
1966 (art. 55º), seja para o Código actual.
Este modo de exprimir tem que ver com a circunstância de, ao tem-
po da formulação do preceito, já ser reconhecido o direito exclusivo de
exploração económica da obra, ao qual veio juntar-se o direito pessoal de
autor. PIOLA CASELLI esclarece o seu entendimento, considerando que
visa estabelecer que o direito pessoal se diferencia do direito exclusivo
patrimonial, mas faz parte com este do conteúdo do direito de autor29.
Além desta diferenciação estática, seja qual for a sorte dos direitos
patrimoniais ela não afecta os direitos pessoais30. É o que o art. 56º exprime
na fórmula “ainda que os tenha alienado ou onerado”31-32, donde resulta
que o exercício das faculdades de divulgar, publicar e explorar economi-
camente a obra (art. 67º/1), não contende com o exercício dos direitos de
natureza pessoal, seja qual for a forma de utilização da obra (art. 68º), ou

29 Ob. cit., pp. 1035. O Dr. SÁ E MELO também se preocupa em explicar esta terminologia
(ob. cit., pag. 121), mas fá-lo no âmbito do direito à integridade da obra, o que constitui
um erro de sistemática, na medida em que esta parte do preceito legal, e bem assim
a expressão que lhe segue – e ainda que os tenha alienado ou onerado – respeita não
apenas ao direito à integridade da obra, mas a toda a relação entre o direito pessoal e o
direito patrimonial de autor.
30 PIOLA, ob. cit., pp. 36.
31 A expressão não corresponde nem ao texto do art. 55º do CDA de 1966, nem ao texto
da Convenção de Berna. O Código de 1966 referia-se apenas à alienação e o texto da
Convenção de Berna refere-se à cessão que já constava da proposta italiana. Mas,
enquanto este texto dizia “e não obstante toda a cessão”, o texto da Convenção passou
a referir “mesmo após a cessão”, substituição que, segundo PIOLA, foi feita para evitar
entrar na questão de saber quais os efeitos contratuais sobre o exercício do direito moral,
especialmente no que respeita à integridade da obra (ob. cit. pp. 1036). A substituição
da palavra “cessão” pela expressão “alienação e oneração” terá sido ponderada pela
circunstância de que no direito português toda a cessão é alienação, mas nem toda a
alienação é cessão. Além disso, a alienação tem um conteúdo jurídico diferente do da
oneração, sendo certo que há igualmente situações de oneração do direito patrimonial
de autor em que os interesses pessoais deste necessitam de ser salvaguardados.
32 Não era porém esta a formulação da lei Italiana de 1925 que permitia ao autor intentar
acção a todo o tempo para a defesa dos seus direitos de carácter pessoal (l’autore há in
ogni tempo azione…).
e outros escritos jurídicos 25

na formulação genérica do Dr. SÁ E MELO, as vicissitudes subjectivas ou


objectivas sofridas pelos direitos patrimoniais não afectam a posição jurí-
dica do autor relativamente aos restantes indicados33 (direitos pessoais).
Todavia, não é indiferente à face da lei a relação entre o conteúdo
patrimonial e o conteúdo pessoal do direito de autor. Amiúde se verifi-
cam situações de inter-relação entre estas duas vertentes de relevante im-
portância. O exercício do direito ao inédito impede a exploração económica
da obra e a divulgação ou publicação faz extinguir essa faculdade de natu-
reza pessoal. Do mesmo modo, o exercício do direito de retirada faz cessar
a exploração económica da obra e em muitas outras situações o exercício
dos direitos de modificação ou integridade da obra cria constrangimentos ao
exercício de direitos de natureza patrimonial. Não há, pois, como já foi
dito, uma separação estanque entre estes dois direitos, mas sim uma os-
mose permanente em todas as vicissitudes da vida da obra literária ou
artística.

5. TERMINOLOGIA

O direito pessoal de autor tem sido referido sob uma terminologia


variada. Os franceses falam em direito moral (droit moral); os belgas em
direito ao respeito (droit au respect); os alemães em direito pessoal (per-
sönliches urheberech) ou direito de personalidade (persönlichkeitsrecht). Mas
fala-se igualmente em direito de vigilância34, direito ao controlo ou simples-
mente em direito intelectual35. A expressão direito moral foi uma criação do
jurista francês MORILLOT e terá sido empregada pela primeira vez em
1872 no seu estudo De la personalité du droit de copie36, a quem se atribui,

33 Ob. cit. pp. 121. Como se explica no Guia da Convenção de Berna relativo à protecção
das Obras Literárias e Artísticas (Acta de Paris, 1971, Genebra, 1960 nota ao art. 6º -bis,
alínea 1, pp. 47) esta precisão tende a proteger o autor contra si mesmo, quer dizer, a
evitar que as contrapartidas financeiras permitam que o direito moral se torne imoral.
34 De harmonia com a tese defendida por PAUL HERVIEU na Conferência de Berlim de
1908. Cf. NICOLAS PEREZ SERRANO, ob. cit., pp. 11.
35 Cf. PHILADELPHO AZEVEDO, ob. cit., pp. 22 e 34.
36 SERRANO, ob. cit., pp. 10. No mesmo sentido P. AZEVEDO, ob. cit., pp. 34; BRUNO
JORGE HAMMES, ob. cit., pp. 101. Todavia, WALTER DE MORAIS advoga a ideia de
que a expressão direito moral foi uma criação dos tribunais franceses, nomeadamente
uma decisão do Tribunal de Lion, datada de 1845 em que LOCARDAIRE usou a formula
“personalidade moral” para fundamentar a protecção do autor (in Direito Patrimonial
do autor, Revista Interamericana de Direito Intelectual, Jul.-Dez. de 1978, vol. 1, pp.
119). Não deixa de ser verdade que a jurisprudência se antecipou quer à consagração
legislativa, quer à consagração doutrinária do conceito de direito moral de autor. Mas
aqui somos forçados a distinguir entre a paternidade do conceito e a paternidade da
26 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

em consequência, a distinção entre direitos morais e direitos patrimoniais


do autor. Todavia, não tem faltado quem advogue que é na Alemanha
que se deve encontrar a verdadeira sede desta separação, já que teria sido
da leitura de autores alemães que MORILLOT se inspirou para distinguir
entre direitos morais e direitos patrimoniais de autor37.
A atitude da doutrina face à questão terminológica em direito de
autor, e, em particular, no que se refere às faculdades de carácter pesso-
al, tem sido variada, mas poderá resumir-se a três posições fundamen-
tais. Uns consideram o problema como uma disputa vã de palavras e sem
qualquer importância. É a ideia defendida por ANTONIO SCIALOJA,
porém combatida por GIANINNI, para quem a questão é substancial38.
Outros advogam um como que fatalismo em face do problema e propõem
a aceitação acrítica da expressão direito moral, com o argumento de não
aumentar a confusão. É a proposta de PEREZ SERRANO39 que recomenda
esta atitude como a mais prudente, sobretudo a partir da Conferência de
Roma de 1928, onde se estabeleceu a terminologia direito moral. Todavia,
a quase generalidade dos autores adopta uma atitude positiva e critica
perante o problema, considerando que não se trata apenas de uma dis-
puta de palavras mas prende-se senão com a filosofia, pelo menos com a
dogmática própria do direito de autor.
A expressão direito moral de autor, sendo a mais generalizada40, é
todavia a mais criticada. Quer-nos contudo parecer que o ânimo desta cri-
tica tem sido tal que a generalidade dos autores não desenvolve nenhum
esforço para compreender o verdadeiro sentido da expressão.
Vamos proceder a um apanhado destas críticas.

expressão direito moral. Quanto a esta última parece haver unanimidade em atribui-la a
MORILLOT, mas a disputa sobre a paternidade do conceito parece dever estabelecer-se
entre a doutrina alemã e a jurisprudência francesa.
37 Esta é a tese defendida por HUARD e BRANDT, entendendo este último que o conceito
(não a expressão) já era referida nas obras de KÖHLER e GIERKE (citado por N. P.
SERRANO, ob. cit., pp 11). No mesmo sentido ADOLF DIETZ, citado por BRUNO
HAMMES, ob. cit., pp. 101.
38 AMADEO GIANNINI, in Opere protette, opere non protette, utilizzationi libere, Rivista del
Diritto Commerciale…, anno LVIII (1960), prima parte, pp. 341. Cfr. também ALMEIDA
SANTOS, Ensaio…, pp. 85.
39 Ob. cit., pp. 8 e em certa medida ADRIANO DE CUPIS que parece aceitar a critica
segundo a qual a expressão direito moral (ou pessoal) seria pouco feliz, mas admite que
podemos conservar o seu uso, tendo sempre presente que ela é equivalente ao direito à
paternidade intelectual – in Os direitos da Personalidade, tradução de Adriano Vera Jardim
e Miguel Caeiro, Lisboa, 1961, pp. 312 e 313.
40 O. ASCENSÃO, Direito Autoral, Lisboa 1989, pp. 71.
e outros escritos jurídicos 27

Alguns consideram-na simplesmente pouco clara41. Outros apo-


dam-na de inexpressiva, ambígua e até desorientadora ou redundante42.
Outros julgam-na ainda contraditória43, pouco apropriada44, imprópria e
incorrecta45. Todavia, o acento tónico destas criticas põe-se sobre o quali-
ficativo moral que, na expressão de PHILADELPHO AZEVEDO, empres-
taria protecção jurídica a simples preceitos da ética46, ou faria deslocar a
protecção do direito de autor do campo jurídico para o campo da ética,
como pretende FRANCISCO REBELO47. Se é certo que não há sectores
não éticos do direito48 ou, como esclarece PIOLA CASELLI, todo o direito
é moral, mas nem toda a moral é direito49, não nos parece justo criticar a
expressão direito moral com esse fundamento, porquanto o termo moral é
(e só pode ser) aqui empregado com a significação ampla de espiritual ou
mental por oposição a físico ou corpóreo. É que direito e moral, no sentido
ético deste termo, ou se reúnem – e é neste sentido que não há sectores não
éticos do direito – ou se excluem, tendo em conta os aspectos da moral
não recebidos pelo direito. A crítica, a nosso ver, prende-se com o âmbito
da significação atribuída ao termo moral. A ser correcto o nosso ponto de
vista de lhe atribuir o significado de mental ou espiritual50 verifica-se uma
clara aproximação entre a denominação e o conteúdo que lhe é atribuído.
As tentativas de substituição da expressão direito moral têm na
maioria dos casos resultado infrutíferas.
As expressões “direito de criação” ou “paternidade literária” pro-

41 KÖHLER, citado por PHILADELPHO AZEVEDO, ob. cit., pp. 37.


42 PEREZ SERRANO, ob. cit., pp. 7 e 8; BRUNO HAMMES, ob. cit., pp. 99.
43 PIOLA CASELLI, ob. cit., pp. 695.
44 FRANCISCO REBELO, in Código de Direito de Autor e Direitos Conexos, anotado, Lisboa,
1985, pp. 60.
45 OLIVEIRA ASCENSÃO, in Direito Autoral, pp. 71; CUNHA GONÇALVES, ob. cit., pp.
27 e 29, Coimbra, 1931.
46 Ob. cit., pp. 34.
47 Ob. loc. cit.
48 O. ASCENSÃO, ob. loc. cit..
49 Ob. loc. cit.
50 Termo igualmente criticado por PEREZ SERRANO com o argumento de estabelecer
uma hierarquia entre dois sectores de uma mesma instituição: interesses espirituais e
interesses económicos (ob. cit., pp. 8). A crítica é procedente principalmente se a análise
se reportar ao ordenamento jurídico francês, onde esta hierarquia é admitida (cfr. ALAN
LE TARNEC, in Manuel Juridique et Pratique de la Proprieté Literaire et Artistique, pp. 21,
Paris, 1956).
28 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

postas por CUNHA GONÇALVES não trazem nada de novo. A expressão


“direito de criação” um pouco à semelhança da liberdade de pensamento
reduz as faculdades de natureza pessoal ao plano das ideias que como
tais não são objecto da contemplação do direito de autor. E embora a ex-
pressão “paternidade literária” tenha o condão de revelar a relação um-
bilical que se estabelece entre o autor e a sua obra, adiciona um conteúdo
restritivo ao objecto imediato do direito de autor que é não apenas a obra
literária, mas também artística51.
O mesmo se dirá da denominação belga – droit au respect – que co-
loca o acento tónico sobre a integridade da obra, postergando os demais
aspectos do conteúdo do direito pessoal de autor.
O CDADC não toma uma posição clara quanto à denominação a
adoptar relativamente à vertente não patrimonial do direito de autor. An-
tes parece hesitar numa solução de compromisso, ao falar em “direitos de
natureza pessoal, denominados direitos morais” (art. 9º)52.
Seja como for, a expressão direito pessoal de autor é a que melhor
caracteriza o conteúdo deste direito. Se os direitos pessoais são os ineren-
tes à pessoa humana, como seja o direito ao nome, à honra, à intimidade
pessoal e familiar, o direito à imagem… o direito pessoal de autor é o di-
reito inerente à pessoa em virtude da sua qualidade de autor. Dir-se-á que
existe uma zona de sobreposição entre estas duas categorias de direitos:
direitos de personalidade e direito pessoal de autor. Mas é mais adequa-
do referir que o direito pessoal de autor especializa, tanto por via directa,
como por via indirecta os direitos de personalidade. Ao permitir ao autor
aferir livremente, sobre o momento em que deve ou não publicar a obra,
garantindo-lhe um instrumento de carácter preventivo sobre uma decisão
pessoal que nele poderá repercutir positiva ou negativamente, o direito ao
inédito especializa o direito à honra e consideração. O direito à paternidade
da obra na sua vertente potestativa de atribuição à obra do nome do autor,
por identificação legalmente permitida (art. 28º), especializa o direito ao
nome. Outro tanto se poderá dizer dos demais aspectos do conteúdo do
direito pessoal de autor, como seja o direito à integridade da obra ou o direito

51 E nem se pense que a suprimir-se a palavra “literária” o problema terminológico fica


resolvido com a expressão direito de paternidade, pois sendo a paternidade um conceito
translativo, sempre fica por esclarecer o objecto da relação. Mas nem por isso é aceitável a
proposta de ADRIANO DE CUPIS – direito à paternidade intelectual – por impossibilitar
a distinção entre a paternidade intelectual das obras que constituem criações do espírito,
relativamente às obras que constituem descobertas (ob. cit., pp. 312 e 334).
52 Todavia, é dominante a expressão direitos morais.
e outros escritos jurídicos 29

de retirada que também especializam o direito à honra e consideração53.

53 Problema terminológico semelhante põe-se relativamente à denominação Direito de


Autor. Como observam alguns juristas (cfr. TOMASO BRUNO, ob. cit., 739; PEREZ
SERRANO, ob. cit., pp. 8, nota 1) a controvérsia que se gerou na discussão da Convenção
de Berna entre a delegação francesa que propunha a expressão “propriedade literária e
artística” e a delegação alemã que advogava a utilização da expressão “direito de autor”
foi tal que a Convenção esteve a ponto de fracassar não fosse encontrada a formula
híbrida do art. 1º - os países aos quais se aplica a presente convenção constituem-se em
união para a protecção dos direitos dos autores (satisfação da exigência da delegação
alemã) sobre as suas obras literárias e artísticas (cumprimento da exigência da delegação
francesa).
As denominações mais generalizadas são Propriedade Intelectual, Propriedade Literária e Artística
e Direito de Autor. Em Espanha, após o abandono pela Ley de 1870 da expressão propriedade
literária adoptada pela Ley de 1847, em favor da expressão propriedade intelectual, foi esta a
designação que fez carreira, a qual, como reconhecem D. JUAN GIMENEZ BAYO e D. LINO
RODRIGUEZ-ARIAS BUSTAMANTE (ob. cit., pp. 134) tem merecido o aplauso da maior
parte dos juristas. A utilização desta expressão foi justificada por BRUGI como a extensão do
principio romano res mea est, aplicável aos valores económicos, aos bens ou valores intelectuais,
como a obra musical, o nome, a efígie, etc. – BRUGI, in Della proprietá, t.I, pp. 426, cit. por
BAYO e BUSTAMANTE, ob. loc.cit.. A expressão foi mantida pela actual Ley 22/1987, de 11 de
Novembro, precisamente conhecida por LEY DE PROPRIEDADE INTELECTUAL (cfr. JOSÉ
MANUEL OLIVARES ABAD, in De una primera solucion pratica e formal: discordâncias
entre derechos dominicales sobre inmeubles y derecho moral en la propriedad intelectual de
decoradores, jardineros y arquitectos, Revista de Derecho Privado, Maio de 1989, pp. 467). Não
obstante, mesmo em Espanha um certo sector da doutrina opina contra a sua utilização. JOSÉ
CASTAN, que a considera imprópria, prefere a expressão bens imateriais (citado por BAYO e
BUSTAMANTE, ob. loc.cit.). que a nosso ver não reduz a dimensão do problema, pois está eivada
da mesma carga de generalidade com que se acusa a expressão “propriedade intelectual”. Mas é
em particular o adjectivo intelectual que tem suscitado a reacção de alguns autores que o reputam
impróprio (MORILLOT), inadequado e inconveniente (ASCARATE), ambos citados por BAYO e
BUSTAMANTE, ob. loc.cit.. A expressão propriedade intelectual tem sido utilizada para acolher
duas realidades: a propriedade industrial (marcas e patentes) e as obras literárias e artísticas. É este
o conteúdo com que foi acolhida na Convenção de Estocolmo de 14 de Julho de 1967 que instituiu
a ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL (art. 1º - al. viii). Embora
esta expressão possa ser utilizada como categoria geral, fica a dúvida sobre como distinguir a
utilização da expressão referenciada às obras intelectuais que constituem criações do espírito, ou
seja, as obras literárias e artísticas. Para esta segunda categoria de obras alguns autores reservam
precisamente a expressão “obras literárias e artísticas” para distinguir o domínio das criações do
espírito da propriedade industrial. O direito de autor é igualmente referido sob as denominações
propriedade espiritual, Copyright e até direito de edição. Copyright é a expressão comummente
utilizada nos países anglo-saxónicos que traduzida à letra significa direito de cópia. Engenhosa
é a construção de WENCESLAO GONZALEZ OLIVEROS (Los princípios filosóficos de la
propriedade intelectual, 1920-30, citado por BAYO e BUSTAMANTE) para quem a denominação
adequada a este ramo de direito é a de Direito de Edição que a seu ver circunscreve gramaticalmente
o objecto do direito pecuniário do autor, responde à verdadeira exteriorização deste e, porque,
sem necessidade de mencionar nem especificar o seu titular, apresenta generalidade para poder
ser atribuído tanto ao autor, como àquelas pessoas a quem o direito pode ser transmitido. Dada a
compreensão gramatical do termo, abrangeria igualmente as produções intelectuais pictóricas e
30 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

6. NOÇÃO DE DIREITO PESSOAL DE AUTOR

De um modo geral os autores não se curam de definir o direito


pessoal 54de autor. Dele dão-nos uma noção, umas vezes descritiva55 e ou-
tras vezes finalística, sem atingir a verdadeira essência desse direito. STIG
STRÖHMHMLOM define-o como o princípio segundo o qual os autores
podem a todo o tempo requerer a protecção do direito a favor dos seus
legítimos interesses de ordem não patrimonial56, noção que a nosso ver
peca por excesso, pois enquadraria perfeitamente qualquer direito de per-
sonalidade ou qualquer interesse de ordem não patrimonial.
Outra é a noção de PIOLA CASELLI que o define como a expressão
do vínculo indissolúvel que liga a obra de engenho a quem a cria57. Toda-

escultóricas. Todavia, esta construção parece ficar aquém da expressão propriedade intelectual,
ao reduzir a dimensão da obra literária e artística ao aspecto material pelo que não parece ser o
melhor caminho a seguir. Não obstante este aspecto da matéria estar fora do âmbito do trabalho
a que nos propusemos, é nosso entendimento que a expressão DIREITO DE AUTOR
é a que melhor corresponde a este ramo de direito. Com efeito, se o objecto imediato
deste direito é toda a obra intelectual que constitua uma criação literária ou artística,
traduzida num complexo de situações de sentido material e espiritual, pressupõe, como
já dissemos, uma actividade – actividade intelectual. Por isso, houve quem admitisse
a sua regulamentação pelo Direito do Trabalho (cfr. os arts. 570º e segs. do Código de
Seabra que o disciplinavam como “Trabalho Literário e Artístico”, solução ainda hoje
vigente no direito italiano – cf. a este propósito PIOLA-CASELLI, ob. cit., pp. 677). Mas
reclama igualmente a ideia de propriedade, não a propriedade da ideia em si mesma,
nem tão pouco do suporte em que a obra foi materializada (corpus mechanicum), mas a
propriedade da própria criação, pela sua objectividade, não obstante a sua imaterialidade.
Se a estes dois aspectos juntarmos o elemento pessoalidade e procurarmos determinar o
seu denominador comum, verificamos que todos estes aspectos estão abarcados por um
ramo de direito, cuja denominação toma como referência principal a pessoa à volta de
quem gravitam, ou seja, o autor. DIREITO DE AUTOR é pois a denominação que melhor
corresponde ao conteúdo deste ramo de direito.
54 Deve igualmente discutir-se se se trata de um direito no verdadeiro sentido do termo
ou de uma mera faculdade. Sem nos preocuparmos com a questão da estrutura deste
direito, o paralelo com o direito de propriedade é-nos útil para a compreensão do
fenómeno. O direito de propriedade também se analisa nos poderes de usar-fruir-
dispor, igualmente referidos como faculdades mas nem por isso perdem a sua qualidade
de direitos menores que integram o direito principal. O mesmo acontece no direito de
autor, pelo que o direito pessoal pode ser referido, indiferentemente, seja como direito
seja como faculdade (no mesmo sentido, Prof. O. ASCENSÃO, Direito Autoral, pp.321).
55 Descritivas são igualmente as definições legais (cfr. art. 6º-bis da Convenção de Berna e
art. 56º do CDADC).
56 Citado por BRUNO HAMMES, ob. cit. pp. 100.
57 Ob. cit. pp. 695.
e outros escritos jurídicos 31

via, nota-se em PIOLA o interesse em não apresentar uma noção rigorosa


do instituto, mas sim em definir os seus contornos fundamentais, partin-
do do seu fundamento último – a expressão da personalidade do autor.
Do ponto de vista de PIOLA há um vínculo indissolúvel que liga a obra
ao seu autor, mas este vínculo não é a essência própria do direito pessoal,
mas o seu fundamento. É em atenção a esse vínculo indissolúvel que a lei
reconhece ao autor o poder de reivindicar a paternidade da obra, modifi-
cá-la, etc. porém, do que se trata não é de determinar a causa naturalística
do direito pessoal, mas sim tomar este dado como adquirido e defini-lo
pela sua essência.
O direito pessoal é antes de mais um direito subjectivo e, como di-
reito subjectivo, é um poder conferido pela ordem jurídica para defesa
de um bem – a personalidade do autor reflectida na obra literária ou ar-
tística58. Este poder é absoluto, no sentido de que pode ser exercido erga
omnes e exclusivo no sentido de que o seu exercício compete ao autor com
o afastamento de todos os demais sujeitos, salvo precedendo autorização
desse.
Por isso, diríamos que o direito pessoal de autor consiste no poder
conferido pela ordem jurídica ao titular de direito de autor para a defesa
da personalidade criativa reflectiva na obra literária ou artística.

7. CARACTERÍSTICAS DO DIREITO PESSOAL DE AUTOR

A análise das características dos direitos de autor impõe a distinção


entre as características comuns aos direitos pessoais e patrimoniais e as
características específicas do direito pessoal de autor. As características
comuns são características do direito de autor. Destas não nos ocupare-
mos por exceder o âmbito do trabalho a que nos propusemos. Cuidare-
mos apenas das características específicas dos direitos pessoais de autor
e, neste particular, é-nos útil a análise que empreendemos sobre a génese
deste direito.
Historicamente o direito pessoal de autor surge como um direito de
personalidade, característica em virtude da qual é igualmente tributário
das marcas distintivas que qualificam os direitos desta natureza.
Já o CDA de 1966 considerava o direito pessoal de autor inaliená-
vel e imprescritível (art. 57º, nº 2), características a que o Código actual

58 Há uma diferença de graus entre esta formulação e a formulação de PIOLA. A obra


só está indissoluvelmente ligada ao seu autor se nela estiver reflectida a personalidade
deste. Logo, a essência do direito pessoal de autor não é o vínculo que a liga ao seu autor,
mas sim o reflexo da personalidade deste na obra literária ou artística.
32 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

veio juntar a da irrenunciabilidade59. É o que dispõe o art. 56º, nº 2, nos


termos do qual este direito60 é inalienável e irrenunciável e imprescritível,
disposição que vem na sequência da doutrina estabelecida pelo art. 42º,
que estipula que os poderes concedidos para a tutela exclusiva do criador
intelectual não podem ser objecto de transmissão ou oneração voluntárias
ou forçadas. Parece ser nesta ordem de considerações que a lei considera
nulo o contrato de transmissão ou oneração de obras futuras, sem prazo
limitado (art. 48º, nº 3)61.

a) – INALIENABILIDADE.

O carácter inalienável do direito pessoal de autor tem o sentido de


que a situação jurídica em que consiste não pode variar de titular62, sob
pena de nulidade do acto de disposição (cfr. art. 294º, ex vi do art. 1303º,
nº 2, todos do CC). Resta saber se a inalienabilidade a que se refere este
artigo é absoluta ou relativa. A doutrina distingue estas duas figuras pela
circunstância de a primeira se encontrar ligada a uma pessoa (direitos de

59 Sobre as características dos direitos pessoais de autor no domínio do Código de Seabra e


em particular face ao Decreto nº 13 725 de 3 de Junho de 1927, cfr. ALMEIDA SANTOS,
ob. cit., pp. 184 e segs. Segundo este autor o Código de Seabra admitia nos seus artigos
703º, 1737º e 2014º a intransmissibilidade inter vivos e mortis causa dos direitos pessoais
e, embora o Decreto de 1927 considerasse no seu art. 15º, paragrafo 1 que os direitos de
defesa da personalidade intelectual e da integridade da criação podiam ser transmitidos
aos herdeiros ou a terceiros, a titulo gratuito ou oneroso, como qualquer outro direito
patrimonial, a verdade é que esta proposição era desmentida por outras disposições
deste diploma, cuja doutrina era no sentido da inalienabilidade dos direitos pessoais de
autor.
60 Pretende o preceito referir-se ao direito pessoal de autor, mas a formulação deste nº 2
está em contradição seja com a epigrafe do capitulo que fala em “direitos morais” no
plural, seja com o nº 1 do mesmo artigo que fala em direito de reivindicar a paternidade
da obra e direito de assegurar a integridade da obra, donde resulta igualmente a flexão
plural. O legislador terá pretendido não tomar posição quanto à questão de saber se
há um ou vários direitos pessoais de autor, mas fê-lo a nosso ver da pior maneira, pois
da epigrafe da Secção e também do nº 1 parece resultar a opção por uma estrutura
pluralista, quando o nº 2 parece fazer inclinar para uma tese monista, no que respeita ao
direito pessoal.
61 Sobre a problemática da obra futura, cfr. AMADEO GIANINNI, in Opere future, Rivista
del Diritto Commerciale…, pp. 21 e segs., que igualmente, e com GIERKE, também
opina no sentido de que os limites à cessão da obra futura têm claramente em vista a
protecção da personalidade do autor (sobre este ponto ver nº 3).
62 O. ASCENSÃO, in Inalienabilidade, Enc. Lus. Bras. De Cult., tomo 10, col. 1115.
e outros escritos jurídicos 33

personalidade, v. gr.) e a segunda permitir certas alienações e outras não63.


No que ao direito pessoal respeita, pensamos que não há razão para não
considerar este direito concedido intuito personae. É atendendo à qualida-
de de autor e em virtude dos aspectos pessoais reflectidos na obra literá-
ria ou artística que a inalienabilidade é estabelecida. A inalienabilidade é
uma proibição que se opera contra o próprio autor, porém, para a defesa
da sua personalidade como tal. Esta circunstância levar-nos-ia a consi-
derar a inalienabilidade como sendo absoluta, mas restam-nos algumas
situações susceptíveis de levantar dúvidas.
Uma delas diz respeito à faculdade que a lei concede ao autor de
consentir na modificação da obra, donde resultaria uma faculdade de
disposição do direito à integridade da obra, por isso alienável. A outra
situação respeita à possibilidade de exercício dos direitos pessoais pelos
herdeiros, enquanto a obra não cair no domínio público.
No que respeita à possibilidade de o autor consentir na modificação
da obra por terceiros deve observar-se que isso não significa o despojar de
nenhuma das faculdades em que se analisa o direito pessoal de autor. Este
conserva, quer o direito à paternidade da obra, quer o direito à integrida-
de desta. Com efeito, continua a ser o criador intelectual da obra; mantém
o direito de dar à obra o seu nome, com todas as consequências que este
facto acarreta, e pode a todo o tempo revogar a autorização concedida a
terceiro para modificar a obra. Em todas as vicissitudes da obra ele man-
tém o domínio sobre ela. Aliás, é notável, como, salvo em casos verdadei-
ramente excepcionais, como é o caso da obra de encomenda em que a lei
permite à pessoa por conta de quem a obra é feita adquirir direito de autor
sobre ela (art. 14º, nº 3), a lei evita despojar ou permitir ao autor despojar-
se do seu direito. Mesmo na obra de encomenda a presunção é no sentido
de que é autor quem for o criador intelectual da obra e não a pessoa por
conta de quem a obra é feita (art. 14º, nº 2). Só no caso de o nome do autor
não vir indicado na obra há lugar a inversão da presunção (art. 14º, nº 3),
a qual pode ser, contudo, ilidida mediante prova em contrário.
Por conseguinte, salvo melhor opinião a faculdade de modificação
da obra por terceiros quando autorizada pelo autor não retira o conteú-
do absoluto ao carácter inalienável do direito pessoal, na medida em que
permanecem na esfera jurídica do autor todas as faculdades em que este
direito se analisa64.
Uma situação em certa medida particular é a que respeita às obras

63 O. ASCENSÃO, in Inalienabilidade, cit..


64 Diferente é a situação de co-titularidade de direitos concedida ao comitente e ao criador
intelectual.
34 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

de arquitectura em que a lei parece impor ao autor as modificações in-


troduzidas pelo dono da obra dando-lhe a alternativa de exigir indem-
nização por perdas e danos e/ou de repudiar a paternidade da obra (art.
60º). As obras de arquitectura serão objecto da nossa apreciação quando
nos ocuparmos do direito de modificação. Todavia, sublinhe-se desde já
que as soluções serão diferentes consoante o autor exija indemnização por
perdas e danos e renuncie igualmente à paternidade da obra modificada,
ou exija apenas a indemnização por perdas e danos. No primeiro caso
há uma omissio adquirendi, isto é, por ficção legal tudo se passa como se o
autor não tivesse criado a obra em causa. A indemnização está justifica-
da pela circunstância de o autor ter sido obrigado a despojar-se de uma
expectativa legitimamente constituída. Logo, o problema de modificação
da obra produz os seus frutos jurídicos e desaparece da ordem jurídica.
No segundo caso, em que o exercício do direito à indemnização não vem
acompanhado do repúdio da paternidade da obra, temos uma situação em
que a modificação é imposta por lei ao autor, tendo em conta interesses
superiores do dono da obra. Mas mesmo neste caso não há alienação do
direito de modificação, já que a alienação pressupõe um acto de vontade
do autor que não existe neste caso, em que há uma espécie de comunhão
forçada entre os interesses do autor e os interesses do dono da obra.
A mesma ordem de considerações é possível fazer relativamente
à possibilidade de os herdeiros poderem exercer os direitos pessoais por
morte do autor. O art. 57º,nº 1 do CDADC não é uma norma de direito
sucessório, isto é, dele não decorre a sucessão mortis causa nos direitos
pessoais do autor. Por morte do de cujos autor, constitui-se originariamen-
te na esfera jurídica dos seus sucessores o direito de exercer as faculdades
contidas no direito pessoal de autor. Eis a razão pela qual a lei fala unica-
mente em “exercício” dos direitos pessoais.

b) – IRRENUNCIABILIDADE.

Outra característica do direito pessoal de autor é a sua irrenuncia-


bilidade. Em virtude dela o autor não pode exprimir vontade no sentido
de abdicar ou abandonar o seu direito. A proibição é dirigida ao autor
para a defesa dos seus próprios interesses. A contratar normalmente com
entidades mais poderosas o autor podia sentir-se tentado a abdicar do seu
direito a favor de terceiros, mas a lei impede-o de poder fazê-lo. A proibi-
ção é dirigida ao autor seja a priori, seja a posteriori, relativamente às obras
ainda não produzidas ou relativamente às obras já produzidas.
Poderíamos pensar que o princípio da irrenunciabilidade sofre uma
derrogação na obra de encomenda, mas uma análise mais aprofundada
e outros escritos jurídicos 35

leva-nos a concluir noutro sentido. Nos termos do art. 14º, nº 1, haven-


do convenção em contrário a autoria da obra de encomenda pode passar
a pertencer ao comitente. Esta convenção não envolve uma renúncia ao
direito pessoal de autor. O que se verifica neste caso é uma omissio ad-
quirendi, ou seja o repúdio de uma situação jurídica, em si mesmo bem
diverso da renúncia65. Resta saber se o comitente adquire a totalidade do
direito de autor, incluído direitos pessoais e direitos patrimoniais. Discor-
rendo sobre a lei brasileira, admite o Prof. OLIVEIRA ASCENSÃO que a
resposta deve ser afirmativa, chegando mesmo ao extremo de reconhecer
ao comitente o direito ao inédito. Com efeito, se uma empresa manda ela-
borar um relatório confidencial sobre a sua situação financeira – diz – só
ela poderá determinar se ele deve ou não ser divulgado. Neste caso, há
um obstáculo que impede na prática a utilização da obra pelo seu criador
intelectual66. A nosso ver o exemplo é pouco feliz, na medida em que será
sempre possível argumentar que é a confidencialidade do relatório que
cria obstáculo à sua divulgação e não os aspectos pessoais do autor nele
reflectidos.
Retomaremos este aspecto quando tratarmos do direito à paterni-
dade da obra.

c) – IMPRESCRITIBILIDADE.

O direito pessoal de autor é igualmente imprescritível, ou seja, não


pode extinguir-se pelo decurso do tempo. Excluída está igualmente a sua
prescritibilidade aquisitiva. Ninguém poderá adquirir o direito pessoal
de autor em virtude desse facto jurídico stricto sensu.
Nos termos do art. 56º, nº 2, o direito pessoal perpetua-se após a
morte do autor, mas daí não se pode extrair o carácter perpétuo deste di-
reito. Pelo contrário, o direito pessoal extingue-se com a morte do de cujus.
Todavia, enquanto permanecer na esfera jurídica dos herdeiros o direito
de exploração económica da obra, a lei concede a estes o poder de exercer

65 Não há unanimidade na doutrina sobre este ponto. SÁ E MELO admite que é de uma
verdadeira renúncia que se trata (ob. cit., pp. 120) e parece ser esta igualmente a opinião
de ULMER, para quem irrenunciável é apenas um saldo do direito moral, na medida em
que podem opor-se-lhe convenções em sentido contrário (cit. por BRUNO HAMMES,
ob. cit., pp. 105).
66 Direito Autoral, pp. 54 e 55. Este ponto de vista foi vigorosamente criticado por SÁ
E MELO, com o argumento subtil de que ao apresentar o relatório à empresa o autor
exerce o seu direito de divulgação (inédito) – o parêntese é nosso – de que é afinal o
único titular (ob. cit., pp. 120, nota 193). Mas este autor entra em contradição, pois parece
concordar com DE SANCTIS no sentido de que a publicação de uma obra com carácter
confidencial não faz quebrar o ineditismo desta (ibidem, pp. 67 e 68).
36 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

determinadas prerrogativas incluídas no direito pessoal de autor (art. 57º,


nº 1). Do mesmo modo, tendo em conta o interesse público subjacente às
obras literárias ou artísticas, permite a lei que a genuinidade e integridade
destas possam ser defendidas pelo Estado, através do Ministério da Cul-
tura, em face da inércia dos herdeiros ou quando a obra cair no domínio
público (art. 57º, nºs 3 e 2). O direito pessoal de autor extingue-se com a
morte do criador intelectual67.

8. SUJEITO DO DIREITO PESSOAL DE AUTOR

Nos termos da lei, quem é o sujeito do direito pessoal de autor? Ou


mais latamente podemos perguntar: quem é o titular do direito pessoal
de autor? A questão tem importância na medida em que nem sempre a lei
estabelece uma sobreposição total entre o criador intelectual e o titular do
direito de autor. Esta proposição está consubstanciada em vários artigos
do CDADC em que a lei se refere à palavra autor em sentido lato, abran-
gendo o sucessor e o transmissário dos respectivos direitos. É a doutrina
da disposição residual do nº 3 do art. 27º que deverá ser tomada como
regra do jogo no entendimento de todas as referências ao autor constante
dos diversos artigos do Código.
Todavia, não estamos seguros de ter o legislador cumprido em to-
das as circunstâncias a regra por ele enunciada68. Situações há em que a re-
ferência ao autor tem em vista só e unicamente o criador intelectual, como
na situação prevista no art. 57º: por morte do autor o exercício dos direitos
morais compete aos seus sucessores. O autor neste caso é e só pode ser o
criador intelectual. Os sucessores não estão seguramente contemplados e
os transmissários também não.
Ao longo da exposição que temos vindo a fazer quase ficou sufi-
cientemente caracterizado quem é o sujeito do direito pessoal de autor.
Embora tivéssemos enunciado o que chamamos princípio da verdade inte-

67 Parece ser esta a posição dominante na doutrina. O carácter perpétuo do direito de autor
chegou a ser defendido na doutrina jurídica portuguesa por nomes ilustres como LOPES
PRAÇA, DIAS FERREIRA e CUNHA GONÇALVES (O. ASCENSÃO, Direito de Autor…,
pp. 16) e veio a ser consagrado no Decreto nº 13 725, de 3 de Julho de 1927, em cujo
preâmbulo se desenvolveu vigorosa fundamentação que hoje serviria para justificar, não
o direito pessoal de autor como direito subjectivo, mas o interesse público na defesa das
obras literárias e artísticas. Na doutrina estrangeira, e a favor do carácter perpétuo do
direito pessoal de autor, pode ver-se JOSÉ LUIZ LACRUZ BERDEJO, in El exercício “post
mortem auctoris” del aspecto moral de la propriedad intelectual, TEMIS, Revista de Ciência
y Técnica Jurídicas, nº 1, 1962, pp. 36 e segs. Para uma critica desta posição, ver, O.
ASCENSÃO, ob. loc. cit. e Direito Autoral, pp. 190.
68 No mesmo sentido, Prof. O. ASCENSÃO, Direito de Autor…, pp. 196.
e outros escritos jurídicos 37

lectual no estabelecimento da paternidade sobre a obra, donde resultaria


uma sobreposição quase total entre o autor e o criador intelectual, vimos
já, nessa oportunidade, que nem sempre a lei fez essa sobreposição. E
embora continuemos persuadidos de que o princípio prevalece, forçoso
é considerar com o Prof. OLIVEIRA ASCENSÃO que “autor, para as leis
de direito de autor, designa o titular do direito de autor e não já o criador
intelectual”69.
A lei utiliza vários caminhos para a determinação do sujeito do di-
reito de autor sendo o primeiro de entre eles o facto da criação intelectual.
É neste sentido que o art. 6º da Lei Italiana dispõe que o título originário
da aquisição do direito de autor é constituído pela criação da obra, como
expressão pessoal do trabalho intelectual, salvo disposição expressa em
contrário70.
Esta proposição está consubstanciada em vários artigos do código.
O direito de autor pertence ao criador ou criadores intelectuais na obra de
colaboração (art. 17º); na obra compósita (art. 20º); na obra radiodifundida (art.
21º); na obra cinematográfica (art. 23º); na obra fonográfica (art. 24º); na obra
videográfica (art. 24º); na obra de arquitectura (art. 25º); e nas obras literárias
ou artísticas em geral (arts. 2º e 3º).
Já fizemos referência à obra de encomenda. Esta é uma situação em
que, ao lado da obra colectiva (art. 19º) e da obra subsidiada (art. 13º), a lei
permite a entidade que não o criador intelectual adquirir direitos de autor
sobre a obra. Na obra colectiva essa atribuição é legal, mas a lei ressalva os
trabalhos assinados ou que contenham a identificação do autor (art. 174º,
nº 4). Nas demais obras essa atribuição poderá ser convencional, mas na
obra de encomenda, em determinadas condições, pode operar-se a pre-
sunção no sentido da atribuição da titularidade a entidade por conta de
quem a obra é feita (art. 14º, nº 3)71.

9. CONTEÚDO DO DIREITO PESSOAL DE AUTOR

Não há unanimidade na doutrina quanto à determinação do con-

69 In Direito de Tradução e Direitos do Tradutor na Lei Portuguesa, Separata do BMJ Nº 275, PP.
6 E 10, Lisboa, 1978. Esta opinião veiculada pelo referido Prof. tomou como referência a
legislação sobre o direito de autor anterior ao código actual. Mas a nosso ver ela mantêm-
se válida.
70 Parece haver uma contradição entre a formulação do art. 11º e a do art. 27º, nº 3. Mas
deve notar-se que esta última disposição tem valor interpretativo. Fixa uma regra do
jogo.
71 Sobre a questão de saber se a atribuição de titularidade do direito de autor inclui o
direito pessoal, ver infra direito à paternidade da obra.
38 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

teúdo do direito pessoal de autor. Alguns analisam-no em quatro facul-


dades, outros em seis, e outros ainda numa multiplicidade de faculdades,
que, como observa BRUNO J. HAMMES, leva ao exagero e consequente-
mente à diluição da protecção72. Adoptamos nesta matéria a posição có-
moda, mas a nosso ver mais adequada, de fazer sobressair estas faculda-
des através da análise do direito positivo. As disposições fundamentais
são os arts. 9º e 56º, nº 1, mas todo o Código está semeado de disposições
que de um modo ou doutro respeitam às prorrogativas pessoais do autor.
Vamos proceder ao seu inventário.
A primeira ideia que devemos discutir é a de saber quais as facul-
dades reconhecidas pelos arts. 9º e 56º, nº 1. Das acções previstas nestes
artigos resultam seguramente duas, por inversão da preposição contida
no art. 2º do CPC. Se a todo o direito corresponde uma acção, toda a acção
pressupõe um direito à paternidade, como a acção destinada a assegurar
a integridade da obra supõe um direito à integridade desta. Direito à pa-
ternidade e direito à integridade da obra são pois dois direitos que se obtêm
das referidas disposições. Outros direitos estarão consagrados nos arts. 9º
e 56º?
Além da integridade a lei refere-se à “genuinidade da obra”. Have-
rá um direito à genuinidade da obra diverso do direito à integridade?
Nem a Convenção de Berna de 1886, nem o CDA de 1966 se refe-
riam à genuinidade entre as prerrogativas pessoais concedidas ao autor.
Dizia este último diploma no seu art. 57º, nº 2 que a defesa da integrida-
de e genuinidade da obra caída no domínio público pertence ao Estado,
expressão que transitou seja para o Decreto-Lei nº 393/80, de 25 de Se-
tembro, seja para o Decreto-Lei nº 150/82, de 19 de Abril, diplomas que
regulamentaram o referido art. 57º, nº 2. Com a revisão do CDA de 1966
o termo genuinidade foi atraído quer para o art. 10º, nº 3, quer para o art.
60º, nº 1 do Decreto-Lei nº 63/85, de 14 de Março, que passaram a consti-
tuir os arts. 9º e 56º do CDADC, na versão da Lei nº 45/85, de 17 de Setem-
bro, e da Lei nº 114/91, de 3 de Setembro salvo algumas alterações73.
Esta atracção do termo genuinidade não tinha valor autónomo. A
sua omissão no art. 55º e consagração no art. 57º nº 2 desse diploma atri-
buía-lhe papel meramente regulamentar do direito à integridade da obra,
este sim consubstanciado no art. 55º. A questão parecia, pois, não ter im-

72 Ob. cit., pp. 99.


73 O Dec.-Lei nº 63/85, de 14 de Março caracterizava os direitos morais como direitos
sui generis, opção que foi abandonada pelo CDADC na versão actual. Além disso, foi
substituída a palavra cessão a que se referia o art. 10º, nº 3 do Dec.-Lei nº 63/85, pela
palavra transmissão que passou a constar do art. 9º, nº 3.
e outros escritos jurídicos 39

portância. Outro tanto não se poderá dizer do CDADC em que o termo ge-
nuinidade aparece ao lado do termo integridade. A lei fala predominante-
mente em integridade e genuinidade, utilizando a forma copulativa, mas
outras vezes – e esta é a situação prevista no art. 198º, al. b) – utiliza a for-
ma disjuntiva: integridade ou genuinidade. Das duas formas – e sendo certo
que uma é autónoma da outra – apenas podemos extrair a consequência
de que no primeiro caso há um elo de ligação e identidade funcional entre
as duas palavras e, no segundo, um elo de ligação e disjuntividade entre
elas. Assim, as formas copulativa e disjuntiva utilizadas pelo legislador
não nos levam a nenhuma conclusão, na medida em que, quer se fale em
“integridade e genuinidade” ou em “integridade ou genuinidade”, ex-
primindo no primeiro caso uma ideia de associação e no segundo uma
ideia de separação, os dois termos mantêm a sua individualidade, não se
podendo dizer se uma coisa é ou não o resultado da outra.
Se tomarmos essa individualidade como ponto de partida e tendo
em conta o valor etimológico destas palavras, poder-se-ia considerar que
a integridade respeitaria à forma externa da obra e a genuinidade à forma
interna da obra. Uma obra íntegra seria uma obra completa em toda a sua
dimensão, sem qualquer mutilação. Uma obra genuína seria uma obra
pura na sua essência criativa, tal como foi concebida e revelada pelo autor.
Mas se adiantarmos neste raciocínio verificamos que a integridade poderá
ser referida quer à forma interna quer à forma externa da obra. Basta pen-
sar nas acções de mutilação. Mutilar uma obra não é apenas cortar ou des-
truir uma ou mais das suas partes. Mutilar é também truncar ou deturpar
a mensagem transmitida pelo autor. Neste sentido invade a forma interna
da obra, pervertendo a sua genuinidade. Foi, aliás, em ambos os sentidos
que o termo integridade foi utilizado na Convenção de Berna (art. 6º bis)
quer no CDA de 1966 (art. 55º).
Se integridade inclui genuinidade, então tudo parece fazer inclinar,
afinal, no sentido de que não há um direito à genuinidade da obra diverso
do direito à integridade desta. Falaremos apenas em direito à integridade
da obra.
Prossegue o art. 56º, nº 1: “… opondo-se à sua destruição, a toda e
qualquer mutilação, deformação ou outra modificação da mesma…”. As
acções de mutilação e deformação da obra são tratadas pela lei como ac-
ções de modificação da mesma, por isso se reúnem na única categoria de
modificações da obra. Da parte enunciada do dispositivo legal resultará
um direito à modificação da obra? Resulta seguramente um direito à não
modificação da obra como pressuposto da acção destinada a impedir que
se produzam alterações na obra não desejadas nem consentidas pelo au-
tor. Mas o direito à não modificação é a antítese do direito à modificação,
40 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

donde se deverá concluir que desta parte do dispositivo legal transcrita,


não resulta um direito à modificação da obra, mas sim um direito à não
modificação, ou seja o direito à integridade da obra. A oposição do autor
destina-se a manter a integridade da sua criação contra acções de mutila-
ção, deformação, outra modificação, ou toda e qualquer acção susceptível
de desvirtuar a obra. A forma gerundiva “opondo-se” empregada pelo
legislador é, não apenas reveladora do carácter instrumental ou adjectivo
desta oposição, - o autor assegura… opondo-se… - mas traduz igualmen-
te a contemporaneidade entre a acção destinada a assegurar a integridade
da obra e as acções de oposição aos actos que a possam desvirtuar.
Mas outras disposições legais se ocupam da modificação. Na obra
de colaboração qualquer autor pode solicitar a modificação (arts. 16º e 17º)
e no contrato de edição o autor pode introduzir modificações que não se
justifiquem por circunstâncias diversas (art. 94º, nº 5). Outras disposições
requerem amiúde o consentimento do autor para se introduzir modifica-
ções na obra, donde resulta seguramente o poder de as introduzir pelo
seu próprio punho74.
Se admitirmos que o direito à modificação consiste no poder de in-
troduzir alterações na obra e no poder de impedir que pessoas, que não o
autor, possam introduzir alterações na obra sem o seu consentimento, ten-
do em conta as prerrogativas num sentido e noutro acabadas de referir,
parece manifesto que o direito à modificação está consagrado no quadro
das faculdades pessoais reconhecidas ao autor pelo CDADC.
Questão que se poderá colocar é a de saber se o direito de modi-
ficação terá autonomia no conjunto de prerrogativas referidas. Quer pa-
recer-nos que, na sua vertente negativa, o direito de modificação é uma
decorrência do direito à integridade da obra, e, na sua vertente positiva,
uma manifestação do direito à paternidade da obra. Quem cria modifica,
criando ex novo. Ou dito com o Prof. Oliveira Ascensão: quem cria pode
aproveitar a essência criativa e criar de novo, modificando.
Contra este nosso ponto de vista poderá argumentar-se: se quem
cria modifica, então quem cria mantém inédito; quem cria arrepende-se;
etc. A análise feita nestes termos resultaria defeituosa, pois reconduziria
todas as faculdades de natureza pessoal ao direito à paternidade da obra.
Mas tal critica só seria verdadeira se a paternidade literária decorresse
unicamente do facto de criação intelectual e se a lei não atribuísse estatuto
autónomo a cada uma das faculdades contidas no direito pessoal. Assim,
do ponto de vista da sua violação a lei sanciona autonomamente o direito
ao inédito (art. 195º); o direito à paternidade da obra (arts. 196º, 198º e

74 Cf. arts. 15º, nº 2; 60º; e 115ª, nº 3.


e outros escritos jurídicos 41

202º); o direito à integridade da obra (art. 198º b)); e o direito ao nome (art.
198º, b) e 201º), mas em nenhuma disposição sanciona a violação do direi-
to de modificação, que pode traduzir-se quer em obstáculos apresentados
por terceiros com vista a impossibilitar o autor de alterar a sua própria
criação, quer em alterações introduzidas por terceiros na obra sem o con-
sentimento do autor. O primeiro aspecto não foi contemplado no capítulo
da violação do direito pessoal de autor, e, quanto ao segundo (a vertente
negativa do direito de modificação) está abrangido pelas normas que re-
gulam a violação do direito à integridade da obra.
Mas, apesar disso, não esgotámos todas as possibilidades de contra
argumentação. Poder-se-ia ainda referir que aquele fundamento tem em
conta apenas os aspectos penais e contra-ordenacionais da violação do
direito pessoal de autor, com exclusão dos aspectos civilísticos e admi-
nistrativos dessa violação, podendo acontecer que na sua faceta positiva
a violação ou direito de modificação seja objecto de uma sanção civil, que
mais não seja com fundamento no art. 483º, do CC. Mas este contra argu-
mento apenas parece confirmar o carácter não autónomo do direito de
modificação, pois a violação do direito à paternidade da obra, de que o
direito de modificação, na sua faceta positiva, é decorrência, é não apenas
susceptível de uma sanção penal, mas também civil, como aliás acontece
com todas as faculdades que integram o direito pessoal de autor.
Tudo leva pois a considerar que o direito de modificação não tem
autonomia no quadro das prerrogativas pessoais concedidas ao autor
pelo CDADC75.
Nesta ordem de considerações podemos perguntar: reconhecerá a
lei um direito ao inédito? Em várias disposições o CDADC se refere a situa-
ção da obra inédita e fixa determinados aspectos do seu regime. Assim, o
art. 50º isenta da penhora e arresto as obras inéditas, salvo se o autor tiver
revelado por actos inequívocos o seu propósito de divulgar ou publicar
a obra, além de toda uma série de disposições destinadas a garantir o
inedetismo. Embora possa ser objecto de contrato (art. 85º), é vedado ao
empresário na representação cénica dá-la a conhecer antes da primeira re-
presentação (art. 116º). Nas artes plásticas, gráficas e aplicadas só o autor
pode expor ou autorizar outrem a expor publicamente as suas obras de

75 SÁ E MELO é igualmente desta opinião, mas admite que a faceta positiva do direito de
modificação é uma decorrência do direito de retirada (ob. cit., pp. 128). A retirada seria um
mais em relação à modificação. Julgamos que as coisas não se põem neste pé. Há algo de
mais subtil. A retirada faz cessar a divulgação ou publicação da obra, mas nada tem de
criativo, no que se traduz o direito de modificação. O que se pode dizer é que a retirada
permite ao autor deslocar a obra para a sua esfera privada, possibilitando-lhe o exercício
de um outro direito, qual seja, o direito à modificação.
42 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

arte (art. 157º, nº 1), direitos cuja violação acarreta uma sanção de natureza
penal (art. 195º, nº 2, b)).
Este conjunto de faculdades e proibições estabelecidas à volta do
inedetismo da obra permite-nos concluir pelo reconhecimento ao autor de
um verdadeiro direito ao inédito.
De igual modo, tendo em conta a multiplicidade de disposições que
se referem ao nome do autor e às funções que este desempenha na obra
literária e artística, não carece de demorada justificação que a lei reconhe-
ce ao autor um direito ao nome literário ou artístico. Mas aqui é igualmente
questionável se este direito terá autonomia no quadro da regulamentação
legal estabelecida ou se será uma mera decorrência do direito à paterni-
dade da obra.
No passado defendemos a opinião negativa, considerando que o
nome ou a menção de designação seria uma mera decorrência do direito
à paternidade da obra. É o pai de uma obra literária ou artística quem a
cria, sendo o nome ou a menção de designação o meio de identificar essa
relação de paternidade estabelecida entre a obra e o seu autor.
A questão que hoje se nos põe é a de saber se o nome terá unica-
mente esta função identificadora que o subordina ao direito à paternidade
da obra, ou, além disso, a lei lhe reserva outras funções. A análise das
diversas disposições do CDADC que regulam o nome literário e artístico76
permitiu-nos concluir que, não obstante a importância dessa função, a lei
conserva ao nome uma outra atribuição não menos importante que é a de
estabelecer o status de autor de obra literária ou artística, entendendo-se
como tal toda a honra e reputação social reconhecidas ao autor em virtude
das suas produções intelectuais. O nome literário e artístico é tratado pela
lei como um verdadeiro património pessoal do autor à volta do qual gra-
vitam interesses os mais díspares, o que justifica a distinção entre o direito
ao nome e o direito à paternidade da obra.
O nome é uma menção, ao passo que a paternidade é uma relação.
O nome identifica o autor como sujeito de direitos e obrigações, enquanto
criador da obra literária ou artística. Por isso, não se esgota na aposição do
nome à obra. A defesa do direito ao nome é a defesa do status de cientista,
historiador, jurista… com a dimensão e reputação social granjeada e reco-
nhecida pelo círculo de especialistas da área do autor ou pela comunidade
em geral.

76 Cfr. as seguintes disposições do CDADC: arts. 14º, nº 3; 16º; 17º; 19º; 27º, nº 2; 28º a 30º;
33º, nº 2; 60º, nº 3; 76º, nº 1, a); 97º; 115º, nº 4; 134º; 142º; 154º; 160º; 161º; 167º; 168º, nº 2;
171º; 180º; 205º; 210º; 215º, b); e 216º.
e outros escritos jurídicos 43

São estas as razões que justificam o registo do nome literário ou


artístico e a proibição dirigida a terceiros de usarem o nome de outrem,
ainda que hipoteticamente tenha retirado todas as suas obras de circula-
ção, como justificam que tratemos separadamente o direito ao nome ou
menção de designação.
Além dos direitos referidos a lei reconhece expressamente o direito
de retirada ou arrependimento, previsto no art. 62º
Direito à paternidade da obra; direito de modificação; direito ao inédito;
direito ao nome; e direito de retirada, são pois as seis prerrogativas pessoais
reconhecidas ao autor pelo CDADC77.
Vamos proceder à sua análise, não necessariamente pela forma
enunciada.

10. DIREITO AO INÉDITO

O acto de criação literária ou artística estabelece uma relação um-


bilical entre a obra e o seu criador. É uma relação perpétua pela razão de
que, por um lado, mesmo após a publicação o autor conserva o domínio
sobre a obra e as suas vicissitudes – o que tem a sua grande expressão no
exercício do direito de retirada – e, por outro, mesmo após a morte, atri-
buindo lhe o seu nome (78). Esta relação caracteriza-se na primeira fase da
criação da obra por uma convivência íntima entre o autor e a obra, a qual
se inicia no primeiro momento da criação literária ou artística e termina
com a divulgação ou publicação da obra. Nesta fase o autor tem poder
total sobre a obra. Poderá alterá-la, modificá-la ou até destruí-la sem que
daí lhe resultem quaisquer consequências desfavoráveis. O período que
decorre entre o primeiro momento da criação literária ou artística e a pu-
blicação ou divulgação da obra, durante o qual o autor mantém a obra na
sua esfera privada é o período do inédito, no decurso do qual a lei reco-
nhece ao autor o direito ao inédito, também chamado direito de primeira
publicação ou direito de divulgação (79).

77 Não é este o elenco admitido pelo Dr. SÁ E MELO que identifica quatro faculdades
contidas no direito pessoal de autor: o direito de divulgação: o direito de retirada; o
direito de reivindicar a paternidade da obra; e o direito à integridade e genuinidade da
obra. Todavia, este autor não demonstra como chega a esta conclusão (ob. cit., pp. 61 e
segs).
78 Cfr. art. 29.º n.º 1 in fine que teve como fonte o art. 22.º n.º 3 do CDA de 1966. Este
foi aliás um dos argumentos em que o legislador de 1927 se baseou para atribuir
carácter perpétuo à propriedade literária, artística e científica. Cfr. o preâmbulo do
Decreto 13 725, de 27 de Maio de 1927.
79 Embora alguns doutrinadores identifiquem as duas figuras, a verdade e que não são
44 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

O direito ao inédito consiste, pois, na faculdade reconhecida ao au-


tor de manter a obra na sua esfera privada ou de se decidir livremente
pela sua divulgação ou publicação. É um direito que encontra o seu fun-
damento na liberdade de auto-responsabilização pessoal, segundo o qual
todos devem assumir as consequências dos seus próprios actos e cada um
é livre de praticar ou deixar de praticar os actos que o responsabilizam.
Ao decidir pela publicação ou divulgação da obra o autor se auto-
responsabiliza perante o público. Esta responsabilização é meramente
moral, mas repercute-se positiva ou negativamente na vida social, profis-
sional e até familiar do autor. Eis a razão pela qual a lei protege o autor, re-
conhecendo-lhe a faculdade de se decidir livremente entre manter a obra
na sua esfera privada ou levá-la ao conhecimento do público (80).
Como já foi dito, o CDACD não regula expressamente o direito iné-
dito. É do conjunto das disposições semeadas por todo o seu texto que
este direito de obtém. A mesma solução foi acolhida na Convenção de
Berna de 1886, mas como reconhecem WILHELM NORDEMANN e ou-
tros autores (81), este direito resulta da lei combinada nos artigos 3.º n.º 3;
10.º n.º 1; 10.º -bis; 11.º, 11.º -bis; 11.º -ter e 14.º, ao reservarem ao autor o
direito de autorizar a publicação da obra pela forma adequada ao modo
de publicação.

identificáveis, pela sua própria natureza. O direito ao inédito é um direito pessoal, ao


passo que o direito de divulgação é um direito de natureza patrimonial.
80 Pretende SÁ E MELO que não se pode falar de um direito ao inédito, traduzindo na
mera faculdade conservar a obra inédita, na medida em que este direito “não traduz
mais do que a formulação negativa do direito de divulgação”, isso porque não seria
concebível um direito pessoal que sendo irrenunciável e imprescritível se esgotaria com
o seu exercício, já que ninguém pode quebrar o inedetismo mais do que uma vez. (ob.
Cit., pp. 72). Salvo o devido respeito, esta tese é inexacta, na medida em que não tem em
conta a actual conformação legal do direito ao inédito. É falso dizer-se que este direito se
esgota com o seu exercício, na medida em que nem todo o exercício de direito ao inédito
implica a automática extinção deste. Ao conservar a obra na sua intimidade pessoal;
ao perseguir criminalidade aquele que atentar contra essa relação de intimidade; ao
requerer a apreensão do manuscrito roubado; ao exigir na representação cénica que a
obra não possa ser divulgada antes da primeira representação, em todos estes casos o
autor está a exercer o direito ao inédito, mas nem por isso há lugar a extinção deste.
Ainda que se tome como verdadeira a afirmação – que só poderá resultar da confusão
entre o direito ao inédito e o direito de divulgação – é comum a existência de direitos que
se esgotam em um só momento. Por outro, não se pode deixar de notar que a convivência
entre o autor e a obra, durante o período do inédito pode ser de tal modo longo que se
justifique de pleno a tutela do direito. EÇA DE QUEIRÓS terá levado dez anos a escrever
O crime do Padre Amaro; embora não se saiba quanto tempo Camões levou a escrever os
Lusíadas, sabe-se, entretanto, que o terá mantido inédito pelo menos durante 3 anos. E
outros exemplos poderiam ser citados retirados da nossa própria vivência quotidiana.
Ora, não é concebível que o direito não confira à obra nenhuma tutela neste período de
convivência íntima entre o autor e a obra.
81 In Droit d’auteur International et Droit Voisins, Bruxelas 1983, pp. 88.
e outros escritos jurídicos 45

Uma ideia que resulta da lei é a de que as obras inéditas ou incom-


pletas podem ser objecto de penhora ou arresto, quando o autor tenha
revelado por actos inequívocos o seu propósito de as divulgar ou publicar
(art. 50.º). Deve observar-se todavia que esta ideia está indevidamente ex-
pressa, pois nunca há a penhora ou o arresto de obras inéditas. Na verda-
de o art. 50.º do CDADC deve ser lido no contexto das demais disposições
legais que se ocupam da penhora ou do arresto de autor. Nos termos do
art. 46.º é o conteúdo patrimonial do direito de autor que pode ser dado
em penhor, ideia que é reafirmada pelo art. 47.º Destas disposições resul-
tam que não há penhora ou arresto de obras inéditas ou incompletas, mas
sim penhora ou arresto de direitos patrimoniais resultantes da exploração
económica de obras inéditas ou incompletas.
Outra ideia que se deve afastar na leitura do art. 50.º é a de que a
penhora ou arresto não recai sobre os manuscritos inéditos, esboços, de-
senhos, telas ou esculturas, como podia dar a entender a conjugação dos
n.os 1 e 2 do mesmo artigo (82). Isto é, não se trata de uma penhora de coisas
móveis, mas sim de uma penhora de direitos, tal como resulta da última
parte do n.º 2, do mesmo art. 50.º, já que o credor pignoratício não adquire
quaisquer direitos sobre os suportes materiais da obra (art. 46.º).
Só se poderia falar da penhora do direito ao inédito se da manuten-
ção da obra inédita resultasse um lucro patrimonial capaz de satisfazer
os interesses do credor. Mas esta ideia é impensável, na medida em que
qualquer forma de exploração económica da obra põe fim ao inédito. A
chamada penhora de obra inédita não é mais do que a intervenção de
uma forma de exploração económica da obra que pela sua natureza põe
fim ao inédito. O inédito tem esta particularidade de constituir um direito
de natureza pessoal cuja extinção poderá ocorrer com o exercício de uma
faculdade de natureza patrimonial. Desta circunstância parece resultar
que a penhora incide, sobre uma das formas de exploração económica da
obra que constitua divulgação ou publicação, de tal modo que não haverá
lugar à penhora quando esta forma de divulgação ou publicação não se
encontra determinada. Isto é, não é lícito ao credor pignoratício determi-
nar sobre a forma de exploração económica da obra.
Seja a situação em que o autor decide editar parte já concluída de
uma obra em preparação. Este é o modo pelo qual o autor revelou em
termos inequívocos a sua vontade de explorar economicamente a obra.
Sendo a obra penhorada não pode o credor pignoratício autorizar, v. gr.
a representação dessa mesma obra. Assim, entendemos que o propósito
inequívoco da vontade de publicar ou divulgar os trabalhos a que se refere
o n.º 2 do art. 50.º, deverá ser entendido não apenas no sentido de o autor
ter manifestado a vontade de divulgar ou publicar a obra, mas também no

82 Em sentido contrário, SÁ E MELO, ob. Cit., pp. 89 nota 119.


46 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

de que tomou posição definida sobre a forma pela qual a obra deverá ser
explorada economicamente. Não nos parece que seja lícito impor ao autor
em beneficio do credor pignoratício uma forma de exploração económica
da obra que ele considere inadequada, tendo em conta o estado em que se
encontra a preparação da obra (83).
Vejamos agora quais os pressupostos de aplicação do art. 50.º Do
seu n.º 1 resulta o princípio geral de que a obra inédita não pode ser pe-
nhorada ou arrestada, quando incompleta, salvo se tiver sido oferecida
pelo autor. Portanto, a lei deixa no livre critério do autor decidir se deter-
minada obra sua inédita pode ser penhora ou arrestada. Quando faltar
esse consentimento a penhora ou o arresto não são permitidos, sob pena
de violação do direito ao inédito e aplicação das sanções cominadas na
lei. Todavia, se a regra é esta para as obras inéditas incompletas, outra é
a regra para as obras já publicadas ou divulgadas em que a lei dispensa o
consentimento do autor para a penhora ou arresto. É o que resulta da lei-
tura dos arts. 46.º e 47.º: a lei estende o regime das obras já publicadas ou
divulgadas às obras inéditas, ainda que incompletas, quando o autor tiver
revelado por actos inequívocos o seu propósito de as divulgar ou publi-
car. O sentido da lei é o de que a manifestação de vontade de divulgar ou
publicar a obra inédita incompleta faz cessa a necessidade de protecção
do inedetismo da obra.
Resta saber se, ainda neste caso, o autor poderá exercer o direito de
retirada. Sem prejuízo do que diremos quando nos ocuparmos deste di-
reito pessoal de autor, julgamos que a posição afirmativa pode em alguns
casos esvaziar-nos de sentido o penhor ou o arresto, mas não podemos
prescindir da aplicação do ar. 61.º, segundo o qual em caso de penhora os
direitos morais de autor não são afectados (n.º 1).
Outro requisito exigido por lei para a penhora de obras inéditas é o
consentimento para a penhora ou arresto de obras literárias e artísticas. A
penhora segue o regime normal regulado nos arts.666.º a 685º do Código
Civil e 821.º e segs. do CPC. A necessidade do consentimento do autor
para a penhora ou arresto de obras inéditas prende-se com o estado de
privacidade em que a obra se encontra com o autor. Tendo o autor mani-
festado, por actos inequívocos, o seu propósito, justifica que seja tornado
extensivo às obras inéditas ou incompletas o regime das obras já publica-
das ou divulgadas.

83 Os arts. 61.º n.º 1 e 68.º n.º 3 confirmam esta nossa afirmação. Do conteúdo do primeiro
podia ser-se levado a entender que, porque o arrematante pode promover a publicação,
então poderá escolher a forma de o fazer. Mas não é assim. O legislador teve o cuidado
de se referir à obra penhorada e “publicada”, donde resulta determinada a forma de
utilização.
e outros escritos jurídicos 47

Uma última nota sobre as relações entre o direito ao inédito e a


obra futura, cuja disposição antecipada é consentida pelo CDADC (art.
48.º). Alguns autores vêem nesta disposição um contrato sujeito à cláusu-
la “se poder”, ou “se quiser”, mas qualquer das duas teses é combatida
pela doutrina. GIANINNI parece concordar com a doutrina francesa que
considera errado pensar que a sorte do contrato fique dependente da von-
tade do autor, enquanto este assume um empenho contratual válido de
publicar uma ou mais das suas obras (84). E quanto à cláusula si potuero
admite que só será válida de for expressa. Alegando o autor que ficou im-
possibilitado de cumprir o contrato, nada impede verificar se concorrem
as causas por ele invocadas (85).
Parece haver, porém, unanimidade de pontos de vista quanto à
consideração de que a obrigação contratual não faz impender sobre o au-
tor o dever de pôr fim ao inédito, sem prejuízo de responder pelo incum-
primento do contrato. Esta doutrina é igualmente válida para a lei portu-
guesa (cfr. art. 104.º n.º 5 e o lugar paralelo do art. 62.º).

11. DIREITO À PATERNIDADE DA OBRA

A paternidade é um conceito positivo que pressupõe um facere (cria-


ção intelectual). Para que alguém possa ser considerado pai de uma obra
literária ou artística é necessário que a tenha concebido e a tenha dado
à luz (exteriorização). Mas a paternidade tem igualmente uma vertente
negativa (translativa) pois pressupõe que além do criador intelectual, res-
salvadas as situações previstas na lei, ninguém pode reivindicar tal direito
sobre a obra; e negativa (reflexiva), na medida em que o autor não poderá
reclamar para si obras que não sejam da sua criação intelectual (86).

84 In opere future…, pp.24.


85 Ibidem, pp. 25.
86 Pretende DEBOIS que é em virtude de um direito à qualidade de autor que este rejeitará
a responsabilidade de uma obra que por erro ou fraude lhe foi atribuída a paternidade
(in Droit d’auteur en France, Paris, 1978, pp. 508 e 509). Deve, contudo, reconhecer-se
que a fronteira entre estes dois direitos é, neste caso, de difícil definição. Na atribuição
por fraude o visado é geralmente o autor, nesta qualidade, com o fim de manchar a sua
reputação. Todavia, a questão suscitada por DEBOIS não é comezinha como à primeira
vista pode dar a entender. Prende-se com o âmbito de aplicação das normas que protegem
o direito de autor e das normas do direito privado comum que protegem o direito ao
nome. É verdade que qualquer pessoa tem o direito de rejeitar a falsa paternidade de
uma obra, mas sendo ela própria, autora, como tal reconhecida, dilui-se completamente
a fronteira entre as duas qualidades. O CDADC não sanciona penalmente a atribuição
fraudulenta da paternidade de uma obra literária ou artística (cfr, arts. 195º e segs.).
48 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Ao conceito de paternidade estão intimamente associadas as ideias


de mérito e originalidade. São estes requisitos de protegibilidade da obra
literária ou artística que possibilitam o estabelecimento legal da paterni-
dade sobre a obra. Dito de outro modo, a protegibilidade é o único titulo
bastante para o estabelecimento da paternidade na obra.
O direito à paternidade é afirmado de modo indirecto no texto le-
gal. É a partir da inversão da proposição contida nos arts. 9.º e 56.º - direito
de reivindicar a paternidade da obra - que este direito se obtém. Todavia, o
direito à paternidade da obra não se esgota em acções de reivindicação
dessa mesma paternidade (87). Traduz-se igualmente em direitos potesta-
tivos, como seja o direito de atribuir à obra o seu nome e em outras facul-
dades como seja a de estabelecer limitações por via convencional.
Algum sector da doutrina não distingue o direito à paternidade do
direito ao nome, por isso define aquele, habitualmente como o poder que
assiste ao criador intelectual de uma obra de lhe atribuir o seu nome. To-
davia, como já tivemos oportunidade de demonstrar, embora uma coisa
reclame outra, a sobreposição não é total, nem na sua essência, nem nos
seus fundamentos.
O nome é uma menção, ao passo que a paternidade é uma relação.
A paternidade existe independentemente da atribuição do nome à obra,
como o demonstram as obras anónimas ou pseudónimas, em que apesar
da ocultação do nome a paternidade se mostra estabelecida. O nome, nes-
te caso, tem valor meramente formal. Serve para identificar a paternidade
(relação) estabelecida, mas não é o mesmo que ela, cujo valor é substancial.
Além disso, o que justifica o reconhecimento da paternidade é a criação de
uma obra com mérito e originalidade, diferentemente dos fundamentos
do reconhecimento de um direito ao nome que se mostra justificado, por
um lado, pela necessidade de preservar a fé pública (interesse público) e,
por outro, evitar confusão de identidades (interesse privado).
Não há, pois, sobreposição entre as duas figuras.
Em determinadas situações permite a lei que pessoa ou entidade,
que não o criador intelectual de uma obra, possa arrogar direitos de autor
sobre ela. Já referimos incidentalmente a estes casos, cuja sede legal é o
art.14.º. Permite esta disposição que nas situações de obra feita por enco-
menda ou por conta de outrem, em cumprimento de dever funcional ou
de contrato de trabalho possa ser convencionada a titularidade de direito

Mas poderá constituir uma contra-ordenação ou constituir crime de injúria quando


caracterize ofensa à honra e reputação autor. Cfr. sobre este ponto DE CUPIS.ob.cit., pp.
325.
87 Por isso, deve-se evitar falar só em “direito de reivindicar a paternidade da obra”.
e outros escritos jurídicos 49

de autor sobre ela. Na falta de convenção, a lei estabelece a presunção de


que a titularidade pertence ao criador intelectual, salvo se o seu nome não
for indicado no local destinado para o efeito, pois neste caso inverte-se a
presunção no sentido de que o direito de autor fica a pertencer à entidade
por conta de quem a obra é feita (art.14.º n.ºs 1,2,e 3).
Os arts.13.º e 14.º não só impõem a distinção entre criador intelec-
tual e titular do direito de autor (88), como alertam para as situações de
conflito que poderão surgir entre ambos quanto ao exercício do direito
de autor.
Já ocupámos do problema da titularidade do direito de autor, mas
vamos aqui retomá-lo como havíamos prometido.
O art. 13.º fixa, como princípio geral, que a pessoa que subsidia
uma obra não adquire por esse facto qualquer direito de autor sobre ela.
Esta mesma disposição admite que as partes (entidade que subsidia ou
financia – pessoa singular ou colectiva – e o criador ou criadores intelectu-
ais) possam acordar no sentido da atribuição a essa entidade de parte ou
totalidade dos poderes incluídos no direito de autor.
Julgamos que tem interesse questionar sobre o momento em que a
obra é subsidiada ou financiada e sobre os termos do contrato de subsídio
ou financiamento. Por vezes determinada entidade pretende realizar uma
obra – um projecto de arquitectura, v. gr., ou um estudo sobre certo insti-
tuto jurídico – e contrata um especialista na matéria para a sua realização.
Outras vezes uma terceira entidade – uma empresa pública v. gr. – neces-
sita de um estudo determinado e requer a uma entidade financiadora que
o subsidie ou financie, entidade esta que posteriormente contratará com
o autor a sua produção. Outras vezes ainda o autor já concluiu a obra e
apresenta-a à entidade financiadora com vista à obtenção de um subsídio
ou financiamento para a sua publicação ou divulgação.
Importa distinguir estas diversas situações, cujo tratamento jurídi-
co é igualmente diverso. Os arts. 13.º e 14.º não prevêem a segunda hipó-
tese considerada que se traduz numa relação triangular entre o autor, a
entidade que financia ou subsidia a produção da obra e a entidade que
beneficia dessa mesma obra.
Deve considerar-se todavia, que esta situação está contemplada
pela conjugação dos arts. 13.º e 14.º. A relação entre a entidade financia-
dora e a entidade que beneficia da produção da obra é regulada pelo di-

88 A distinção terá sido introduzido na doutrina civilista por ÜLMER. Cfr. WILHELM
NORDEMANN e outros, ob.cit.pp.54.
50 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

reito privado comum, pois poderá consistir numa doação, num contrato
de mútuo ou no cumprimento de uma obrigação. São as relações autor
– entidade financiadora; autor – entidade beneficiadora; autor - entidade
financiadora – entidade beneficiadora que requerem a intervenção do di-
reito de autor. Isto é, a intervenção do direito de autor é requerida pela
presença do autor na relação, mas para qualquer das situações inventa-
riadas a lei apresenta solução nos arts. 13.º e 14.º. As primeiras duas si-
tuações têm solução individualizada nestes dois artigos, cuja aplicação
conjugada é requerida quando uma das partes seja plural. Num primei-
ro momento a solução deverá resultar dos termos do contrato. Mas se
este for omisso quanto à titularidade do direito de autor fica desde logo
excluída a possibilidade de a entidade financiadora adquirir direitos de
autor sobre ela e recorre-se às presunções estabelecidas no art. 14.º para
a determinação da titularidade entre o criador intelectual e a entidade
que beneficia da obra. Se o nome do criador intelectual não vier mencio-
nado no local destinado para o efeito segundo o uso universal, entende-se
que o direito de autor pertence à entidade por conta de quem a obra é
feita, podendo esta presunção ser ilidida mediante prova em contrário.
Diferente é a outra situação por nós configurada de a obra já se
mostrar concluída e, a pedido do autor, uma entidade subsidia ou finan-
cia a sua publicação ou divulgação ou a adquire para satisfação dos seus
interesses. A obra está concluída e o autor mantém-na inédita. Poderão,
neste caso, ser acordados direitos de autor sobre a obra, incluindo direitos
pessoais? O art. 13º parece apontar em sentido afirmativo, desde que a
convenção obedeça a forma legal, ou seja, a forma escrita. Mas quer pa-
recer-nos que, neste caso, a convenção sobre a titularidade só abrange os
direitos de natureza patrimonial, com exclusão dos direitos de natureza
pessoal, pois, o direito de autor já se mostrava constituído na esfera jurí-
dica do seu criador intelectual.
A transmissão do direito pessoal constituiria violação ao disposto
no art. 56.º n.º 2 que os declara inalienável.
Pretendem, contudo, alguns autores que a atribuição do direito de
autor a entidade diversa do seu criador intelectual envolve sempre, em
todos os casos, apenas direitos de natureza patrimonial, com exclusão do
direito pessoal (89), dado o carácter inalienável deste. Que pensar desta
solução?

89 Neste sentido FRANCISCO REBELO, ob. Cit., s. 67; SÁ E MELO, ob. Cits., pp. 120. Na
doutrina estrangeira, PUGLIATTI, GRECO, DE SANCTIS, todos citados por DE CUPIS,
que também adere a esta posição (ob. Cit., 234).
e outros escritos jurídicos 51

Tudo depende do resultado da interpretação das disposições conju-


gadas dos arts. 13.º a 15.º e, em particular, deste último que fixa os limites
à utilização da obra realizada ao abrigo dos dois primeiros artigos. Na
vigência do Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de Março, outro era o conteúdo
do art. 15.º. Sob a epigrafe “exercício do direito pelo destinatário da obra”, este
artigo permitia a pessoa diferente do criador intelectual adquirir direitos
de autor sobre a obra, mas dispunha que, quando pertencesse ao criador
intelectual, o destinatário só podia utilizar a obra para os fins previstos no
respectivo acordo ou que levaram à sua celebração. O n.º 2 deste mesmo
artigo permitia ao destinatário da obra introduzir-lhe modificações com o
acordo expresso ou tácito do criador intelectual.
Com as alterações introduzidas pela lei n.º 45/85, de 17 de Setem-
bro, o art. 15.º foi objecto de revisão. Suprimiu-se a terminologia desti-
natária, deu-se uma nova redacção aos nºs. 1 e 2 e alterou-se a epígrafe
do artigo para a fórmula “limites a utilização”. A aquisição originária do
direito de autor por entidade que não o criador intelectual continuou a ser
consentida, mas restringiu-se a faculdade de utilização da obra, apenas
para os fins previstos na convenção, limite este dirigido não apenas ao
destinatário da obra, mas a todas as partes envolvidas no acordo. Sofreu
igualmente alterações a faculdade de introduzir modificações na obra, que
deixou de ser consentida mediante acordo tácito do criador intelectual e
passou-se a exigir o acordo expresso deste, não podendo a modificação
ser introduzida para além do convencionado.
A conjunção entre estas duas formulações é elucidativa quanto à
dimensão dos poderes reconhecidos à entidade que subsidia ou beneficia
de uma obra. Na versão actual há um claro reforço dos poderes do criador
intelectual, quanto ao exercício das faculdades de natureza pessoal e uma
evidente restrição desse exercício por parte do comitente. A supressão do
Decreto-Lei n.º 63/85 e a exigência de acordo expresso são elucidativos
quanto a este ponto. Além disso, o art. 15.º vem tornar mais exigente o
estipulado no art. 59.º, ao reclamar não apenas o consentimento do criador
intelectual, mas também uma convenção sobre os termos da modificação.
Todavia, estas restrições só serão válidas ”quando o direito de au-
tor pertença ao criador intelectual” – diz o preceito do art.15.º n.º 1, donde
resultam seguramente duas coisas: a primeira é a de que o direito de autor
pode não pertencer ao criador intelectual – o que é igualmente válido para
os direitos de natureza pessoal – a segunda a de que o direito de autor
pode pertencer em co-titularidade ao criador intelectual e ao comitente.
É este o sentido do art. 15.º – resolver os conflitos de interesses entre o
comitente e o criador intelectual da obra, mas quando o direito de autor
pertença igualmente a este.
52 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Tudo leva, pois, a concluir no sentido de que as convenções a que


se referem os arts. 13.º e 14.º abrangem sejam direitos patrimoniais, sejam
direitos pessoais.
A doutrina parece unânime em admitir que a aquisição do direito
de autor por entidade diversa do criador intelectual é uma aquisição ori-
ginária (90).
O que se poderá questionar, como aliás tem feito a doutrina, é saber
se tal convenção envolverá uma renúncia ao direito pessoal de autor ou
se tem outra natureza. SÁ E MELO admite que sim com o argumento de
que a titularidade do direito de autor cabe ”naturalmente e por regra” ao
criador intelectual, por isso é de uma verdadeira renúncia que se trata (91).
Salvo o devido respeito, esta interpretação não tem apoio legal. Se por via
de regra a lei estabelece uma sobreposição total entre o criador intelectual
e o titular do direito de autor, esta regra contém excepções que são aque-
las que neste momento nos ocupam.
Quando de um modo ou doutro resulta atribuída a titularidade
do direito de autor a pessoa diversa do seu criador intelectual, seja por
virtude de convenção, seja pela intervenção de presunções legais, não há
que estabelecer qualquer hierarquia entre este titular do direito de autor
e aquele que é igualmente criador intelectual da obra, pois, do ponto de
vista legal se encontram em igualdade de circunstâncias. E esta igualdade
existe desde o primeiro momento da constituição do direito que é a todas
as luzes uma aquisição originária. Ora, se se trata de uma aquisição ori-
ginária, este direito não chega a constituir-se na esfera jurídica do criador
intelectual, que não pode por esse facto renunciá-lo.
É que a renúncia ”é o acto pelo qual o autor exprime a vontade de
abdicar, de abandonar um direito subjectivo que se extingue por tal fac-
to”(92). Ora, um direito não pode extinguir-se antes da sua constituição.
A figura que nos parece mais adequada para este caso é a do re-
púdio, ou seja “a rejeição de uma posição ou situação jurídica”(93). Como
ensina o Prof. OLIVEIRA ASCENSÃO, o interesse do conceito de repúdio
se manifesta em especial no campo da chamada omissio adquirendi, poden-
do enquadrar-se numa categoria de actos jurídicos omissivos (94). Ora, a

90 Em sentido contrário, AULETTA, citado por DE CUPIS, ob. cit. pp. 334. nota 56.
91 Ob cit, pp. 173 e 174.
92 ARMINDO RIBEIRO MENDES, vb. Renúncia. Enc. Lus. Brás. De Cult., Vol. 16 col. 315.
93 Vb. Repúdio, in Enc. Lus. Brás. De Cult.vol 16. col. 369 e 370.
94 Ibidem. Por vezes a doutrina identifica a renúncia ao repúdio. Como ensina o Prof.
CASTRO MENDES, (ob. Cit., pp. 54 e 55), a renúncia toma diversos nomes consoante
e outros escritos jurídicos 53

situação configurada nos arts.13.º e 14.º parece em sintonia com o conceito


de repúdio, pois não chega a constituir-se o direito na esfera jurídica do
criador intelectual.

12. DIREITO AO NOME

A primeira distinção a fazer consiste na separação entre o nome


próprio e o nome literário ou artístico. A legislação sobre direito do autor,
não se ocupa do nome próprio, cuja regulamentação compete ao direito
privado comum. Como direito privado especial o direito do autor ocupa-
se do nome literário ou artístico que de um ponto de vista formal coincide
na maioria dos casos com o nome próprio.
Não obstante esta coincidência formal a distinção impõe-se que
mais não seja para efeitos de determinação da legislação aplicável. O
nome literário ou artístico identifica-o como autor, como criador de uma
obra literária ou artística. Quem não é criador de uma obra literária não é
titular de um nome literário ou artístico e, em consequência, não beneficia
da protecção do direito de autor.
Potencialmente todas as pessoas, incluindo os incapazes, podem
ser sujeitos de um nome literário ou artístico. Todavia, este direito só se
constitui na sua esfera jurídica a partir do momento da criação.
Não é indiferente para o direito a composição do nome literário
ou artístico. Exceptuadas as situações ocasionais, porém, existentes, de
pessoas com o mesmo nome próprio, a composição do nome literário ou
artístico deve obedecer ao princípio da verdade, isto é, não ser susceptível
de se confundir com outro anteriormente usado em obra divulgada ou
publicada por outrem (art. 29.º n.º 1). A lei exige igualmente que o nome
literário ou artístico não seja confundível com o de personagem célebre da
história das letras das artes ou das ciências e bem assim com o de parente
ou afim com nome idêntico (art. 29.º n.º 2).
Quando tal acontece, como nas situações de pai e filho com o mes-
mo nome, a distinção deve fazer-se juntando ao nome civil aditamento in-
dicativo de parentesco ou afinidade, como na menção João Lopes Filho.
Se o nome é uma menção e a paternidade uma relação, como já mais
de uma vez referimos, por via de regra o nome é justificado pela pater-
nidade, dado o seu papel identificativo da relação. Todavia, há situações
em que a lei manda partir do nome para identificar a relação. Tal acontece

a situação jurídica a que se reporta. Tratando-se de direitos reais toma o nome de


abandono; quanto aos direitos de crédito recebe o nome de remissão e quanto aos direitos
sucessórios recebe a designação de repúdio.
54 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

na obra realizada por encomenda ou por conta de outrem em que a cir-


cunstância de o nome do criador intelectual não vir mencionado na obra
implica a presunção de que o direito de autor fica a pertencer a entidade
por conta de quem a obra é feita (art.14.º n.º3) ou na obra feita em colabo-
ração em que a falta de designação explícita de um ou mais colaboradores
implica a presunção de que os outros cederem os seus direitos àqueles em
nome de quem a divulgação ou publicação é feita (art.17.º n.º 2).
O autor pode identificar-se pelo nome próprio completo ou abre-
viado, as iniciais deste, pseudónimo ou qualquer sinal convencional (art.
28.º), mas este direito comporta limitações, quais sejam o de não usar em
obra sua o nome de outro autor, ainda que com autorização deste (art.29º
n.º 3).

13. DIREITO À INTEGRIDADE DA OBRA

Cessado o período do inédito por um dos modos de utilização da


obra, um outro direito entra na esfera jurídica do autor, qual seja o direito
à integridade da obra. Na pendência do inédito não nos parece licito falar
da aquisição de um direito à integridade da obra, na medida em que esta
ainda não se encontra divulgada ou publicada, isto é, não é conhecida de
terceiros (95). É o contacto da obra com terceiros que tornam susceptível
das interferências da parte destes, com potencialidade para afectar a sua
integridade ou genuinidade (96).
O direito à integridade da obra protege o autor contra as acções de
mutilação, deformação ou outra modificação da mesma e de um modo ge-
ral contra todo e qualquer acto, susceptível de a desvirtuar e possa afectar
a honra e reputação do autor (art. 56.º n.º 1 in fine). Como já foi referido,
a lei reúne na categoria única de modificações, quer as acções de mutila-
ção, quer as acções de deformação da obra. Poder-se-ia questionar se as
acções de mutilação serão diferentes das acções de deformação da obra.

95 Todavia, como observa DE SANCTIS (in Autore ‘diritto di’, Enciclopedia del diritto,
vol. IV, pp. 393) há situações de conhecimento da obra por terceiros que não constiuem
publicação, como seja a circulação de um manuscrito entre especialistas para se obter
um juízo sobre a obra, ou a exibição de uma obra cinematográfica ou televisiva, frente a
um grupo de convidados. Nestes casos, não há lugar à extinção do direito ao inédito, não
obstante a obra ser conhecida de terceiros. Assim, as eventuais interferências na obra
susceptíveis de a desvirtuar, constituem violação não apenas do direito ao inédito, mas
também do direito à integridade da obra.
96 Esta parece ser a ideia expressa por PIOLA CASELLI, para quem o direito à integridade
não atinge a obra no seu conteúdo intelectual, mas sim quando seja reproduzida,
difundida, executada, adaptada ou de outro modo utilizada (ob.cit., pp. 695). Cf.,
igualmente, neste sentido, ALain LE TARNEC, ob.cit., pp. 36 e 37.
e outros escritos jurídicos 55

Mas o conteúdo destes termos não deve preocupar o intérprete, tendo em


conta a fórmula abrangente utilizada pelo legislador: “todo e qualquer
acto susceptível de desvirtuar a obra”. Isto é, se é verdade que a lei inclui
na categoria genérica de modificações, as acções de mutilação e deforma-
ção da obra, também é verdade que estas modificações se traduzem em
todo e qualquer acto susceptível de desvirtuar a obra e afectar a honra a
reputação do autor. Serão, pois, as modificações que desvirtuem a obra e
afectem a honra e a reputação do autor que se traduzem na violação da
integridade da obra.
Resta saber se os actos que desvirtuam a obra, mas não afectam a
honra e reputação do autor ainda constituem violações do direito a inte-
gridade da obra. Bastará o elemento objectivo desvirtuamento da obra
para que se verifique a violação do direito à integridade, ou será ainda
necessária a verificação do elemento subjectivo afectação da honra e re-
putação do autor?
Tudo leva a crer que sim. A forma copulativa “e” utilização pelo
legislador parece levar ao entendimento de que o requisitos desvirtua-
mento da obra, traduzido em acções de mutilação, deformação ou outra
modificação, e afectação da honra e reputação do autor são cumulativos,
mas isto não quer dizer que em alguém, cujo sentimento de honra não é de
modo nenhum afectado, a respectiva obra não poderá ser nunca desvirtu-
ada. Dois passos de lei desmentem esta conclusão. O primeiro respeita à
característica da inalienabilidade do direito à integridade da obra. Se fosse
permitido ao autor em virtude da ligeireza de sentimentos, consentir em
todo e qualquer desvirtuamento da obra verificar-se-ia a despersonaliza-
ção desta que muito afectaria a fé pública. Além disso, a lei se contenta
com a simples virtualidade de afectação da honra e reputação do autor,
não sendo necessária uma afectação real ou actual. Esta circunstância re-
sulta de forma inequívoca, seja do disposto no n.º 1 in fine do art. 56.º, seja
do art. 198.º al. b), pela utilização do conjuntivo “possa”.
Assim sendo, torna-se necessária alguma correcção na afirmação
por nós feita anteriormente. Não obstante o carácter cumulativo dos re-
quisitos enunciados, no que respeita ao segundo a lei se basta com a sim-
ples virtualidade da sua verificação (97).
Essencial ao direito à integridade da obra é o conceito de modifi-
cação.

97 Este ponto é discutido na doutrina estrangeira em face da formulação do art. 6.º - bis
da Convenção de Berna que se refere a modificações prejudiciais à honra e reputação
do autor, diversamente do art. 56.º em análise. Sobre os termos da controvérsia, cfr.
WILHELM NORDEMANN e outros autores, ob. Cit., pp. 88 e segs.
56 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

14. DIREITO DE MODIFICAÇÃO

Definimos o direito de modificação em duas vertentes fundamen-


tais. Numa vertente positiva o direito de modificação consistiria no poder
conferido pela ordem jurídica ao criador intelectual de uma obra literá-
ria ou artística de lhe introduzir alterações a todo o tempo, diversa, mas
não separada da vertente negativa que consistiria na proibição dirigida a
terceiros de introduzirem modificações na obra sem o consentimento do
seu autor. Na sua vertente positiva o direito de modificação entronca-se
no direito à paternidade da obra. Na sua vertente negativa constitui uma
manifestação do direito à integridade da obra.
O CIDADC acolhe três espécies de modificações:
a) modificações introduzidas pelo autor;
b) modificações introduzidas por terceiros, com autorização do au-
tor e
c) modificações introduzidas por terceiros, sem autorização do au-
tor.
Como pai da obra literária ou artística, o autor tem o poder de a
alterar a todo o tempo. Este poder é ilimitado, mas não deve contender
com as convenções de natureza patrimonial livremente estabelecidas pelo
autor. Assim, no contrato de edição é vedado ao autor introduzir correc-
ções, modificações ou aditamentos que não se justificam por circunstân-
cias novas (art. 94.º n.º 5, a contrario), mas estas restrições não contendem
com o carácter ilimitado do direito de modificação. Visam, sim, respeitar
os termos de um contrato em que o autor livremente se vinculou (98). Nes-
tas circunstâncias, não seria lícito permitir ao autor introduzir, a todo o
tempo e a seu bel-prazer, todas as modificações que julgasse necessárias,
pois correr-se-ia o risco de a obra não ser nunca publicada em virtude das
exigências intelectuais do autor, ou, sendo publicada acarretar conside-
ráveis prejuízos para o editor. Por isso, dada a dificuldade natural em se
distinguir as correcções, aditamentos e modificações que não se justificam
ou que se justificam por circunstâncias novas, a lei estabelece um limite
de oneração do editor, fixando-o em 5% sobre o preço da impressão, a
suportar por este e, acima desta percentagem, pelo autor (art.94.º n.º 5).
Mas esta disposição tem carácter supletivo, pelo que as partes são livres
de estabelecer convenção em contrário, assumindo uma de três alternati-
vas: serem as referidas despesas suportadas pelo autor, pelo editor ou por
ambos, na proporção convencionada.
A possibilidade de o autor autorizar alterações na obra por ele

98 Neste sentido, O. ASCENSÃO, Direito Autoral, pp. 182.


e outros escritos jurídicos 57

produzida pressupõe a licitude destas. Sendo lícitas, o consentimento é


dispensado e não são poucas as situações em que a lei dispensa esse con-
sentimento.
Na formulação genérica do art. 56.º n.º 1 estão vedadas as modi-
ficações que desvirtuem a obra e possam afectar a honra e reputação do
autor, donde resulta que toda e qualquer modificação insusceptível de
desvirtuar a obra e afectar a honra e reputação do autor está em princípio
consentida. Outras vezes, estas alterações estão justificadas pelo carácter
utilitário das obras em questão e pelo seu interesse formativo e informa-
tivo. Tal é o caso das enciclopédias, dicionários e outras obras didácticas
que depois da morte do autor podem ser actualizadas ou completadas
pelo editor (art.95.º).
De entre as modificações não consentidas pelo autor cabe especial
referência às modificações do projecto arquitectónico.

15. MODIFICAÇÕES DO PROJECTO ARQUITECTÓNICO

O CDADC contém disposições específicas sobre as modificações


do projecto arquitectónico. O art. 60.º que as regula estabelece no seu n.º
1 o chamado direito de acesso que é um direito instrumental do direito à
integridade da obra; no n.º 2 o direito à modificação e, no n.º 3, as conse-
quências pessoais decorrentes da modificação da obra sem autorização
do autor.
O principio acolhido por estes preceitos e que, aliás, já resulta do
art.59.º, é o de que a obra não pode ser modificada ou alterada sem o con-
sentimento do autor do projecto.
Em regra, o dono da obra não pode introduzir alterações no pro-
jecto arquitectónico sem o consentimento do autor. A lei não resolve se a
proibição é dirigida a toda e qualquer alteração ou às alterações que revis-
tam determinadas características. Da conjugação entre este artigo e o pre-
ceito da última parte do art. 56.º n.º 1 parece tratar-se daquelas alterações
que desvirtuem a obra e afectem a honra e reputação do autor. Por isso,
se o dono da obra não pode fazer as alterações que entender, não lhe está
vedada toda e qualquer alteração sem consulta prévia do autor (99). Todas
as alterações que não desvirtuem a obra nem afectem a honra e reputação
do autor poderão ser introduzidas pelo dono da obra.
Uma questão suscitada pelo n.º 2 do art. 80.º é a de saber se a con-
sulta prévia, a que o preceito se refere, é ou não vinculativa. Tratar-se-á
de uma mera consulta cujo resultado o dono da obra é livre de acatar ou

99 Em sentido contrário, F. REBELLO, Código…, pp. 111.


58 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

deixar de acatar ou pelo contrário o que se requer é um verdadeiro con-


sentimento do autor do projecto para que se introduzam as modificações
pretendidas? A esta questão se liga uma outra que é a de saber se é a
simples ausência de consulta que dá lugar à indemnização por perdas e
danos ou se é a ausência do consentimento do autor do projecto que justi-
fica a eventual indemnização pretendida.
Se, consultado o autor do projecto, o seu consentimento é irrele-
vante, o acto de consulta adquire valor meramente formal. Não vemos
como a ausência dessa consulta seja por si só suficiente para justificar a
indemnização por perdas e danos. Isso porque, não obstante a ausência de
consulta, pode acontecer que as modificações introduzidas satisfaçam as
exigências técnicas e estéticas do autor do projecto que não saiu de modo
nenhum prejudicado, nem ele nem a obra, por virtude das alterações nes-
ta introduzidas. Esta interpretação é, aliás, corroborada pelo art.56.º n.º 1,
já referido. Mas esta argumentação é igualmente válida para a ausência
de consentimento, não obstante a verificação de consulta prévia. Se o au-
tor foi consultado e mesmo assim não prestou o seu consentimento, de
duas uma: ou as alterações introduzidas à sua revelia desvirtuam a obra e
afectam a sua honra e reputação; ou não desvirtuam a obra nem afectam
a honra e reputação do autor. Neste último caso as alterações seriam sem-
pre lícitas, por força do disposto no art. 56.º n.º 1, mas poderão dar lugar à
reparação civil na primeira situação configurada.
Por este caminho, quase se dispensou o n.º 2 do art. 60.º A falta de
consulta prévia só por si não é condição nem necessária nem suficiente
para justificar a indemnização por perdas e danos, nem tão pouco a sim-
ples ausência de consentimento, não obstante a consulta. Se é necessário
que as modificações acarretem um desvirtuamento da obra e afectem da
honra e reputação do autor, tudo o que resta do n.º 2 do art. 60.º é o prin-
cípio da indemnização por perdas e danos. Mas temos que presumir que
o legislador exprimiu com fidelidade o seu pensamento.
Julgamos que a ligação entre o n.º 2 e a primeira parte do n.º 3 do
art. 60.º é imprescindível. O n.º 2 requer a consulta prévia, mas esta con-
sulta destina-se, como parece resultar do n.º 3 do mesmo artigo, a obter o
acordo do autor do projecto sobre as modificações a introduzir na obra.
Se é assim, para clarificar as nossas ideias, vamos inventariar as
situações que resultam da combinação entre os dois preceitos referidos.
São quatro as situações possíveis resultantes da leitura combinada
dos n.os 2 e 3 do art. 60.º:
a) O autor do projecto é consultado sobre as modificações e presta
o seu consentimento;
e outros escritos jurídicos 59

b) O autor do projecto é consultado sobre as modificações, mas não


presta o seu consentimento;
c) O autor do projecto não é consultado sobre as modificações, mas
presta o seu consentimento;
d) O autor do projecto não é consultado sobre as modificações, nem
presta o seu consentimento.
A situação prevista na alínea a) não requer quaisquer comentários.
Há uma sobreposição total entre os interesses do titular da obra e os inte-
resses do autor do projecto. Do mesmo modo, se o autor do projecto não é
consultado (al. c)), mas tomando conhecimento das alterações, manifesta
expressa ou tacitamente o seu consentimento, prosseguiu-se a finalidade
pretendida com a norma que requer a consulta prévia. Então não há que
falar em indemnização, que, neste caso, seria absurda quando é o próprio
autor a reconhecer, pelo consentimento prestado, que não sofreu quais-
quer danos. Reconhecer um direito à indemnização, neste caso, seria dar
um poder exagerado ao autor do projecto, em virtude da omissão de uma
formalidade, cuja finalidade foi afinal de contas prosseguida.
Mas se autor consultado ou não sobre as alterações, não prestar o
seu consentimento, nasce um conflito que importa dirimir, cujos termos
são os seguintes:
- as alterações introduzidas ou a introduzir pelo dono da obra des-
virtuam-na a obra e afectam a honra e reputação do autor;
- aquelas alterações não desvirtuam a obra nem afectam a honra e
a reputação do autor.
Nos termos da lei, este conflito se resolve, antes de mais, por acordo
entre o proprietário e o autor do projecto. Mas, na falta de acordo, dispõe
a lei que o autor pode repudiar a paternidade da obra modificada, fican-
do vedado ao proprietário invocar para o futuro, em proveito próprio, o
nome do autor do projecto iniciado. A dúvida que nos surge da leitura
deste preceito resulta da utilização da palavra “pode” que parece conferir
ao autor do projecto um poder discricionário para repudiar a paternidade
da obra, donde resulta, seguramente, igual poder de não repudiar a pater-
nidade da obra e de até pugnar por essa mesma paternidade. Isso porque
o autor pode ter um interesse legítimo em manter o seu nome ligado a
uma obra que tanto esforço lhe custou, esforço que nenhuma indemni-
zação poderá reparar, mormente tratando-se de alterações introduzidas
unicamente para recreio do dono da obra.
Na doutrina estrangeira onde o problema se tem igualmente colo-
cado, dois critérios têm sido utilizados para a sua solução. O critério do
limiar de tolerância (seuil de tolerance ou, na língua alemã, Zumutbarkeit)
60 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

(100) e o critério da proporcionalidade das alterações relativamente aos ob-


jectivos legitimamente prosseguidos pelo proprietário.
O critério do limiar de tolerância consiste em o dono da obra não
introduzir modificações que atinjam a essência da obra de arquitectura e
que, por isso, se afastam das tendências e concepções que constituem a
originalidade da construção (101).Cabe ao arquitecto provar que o dono da
obra excedeu o limiar de tolerância. Na ordem jurídica portuguesa esse
limiar de tolerância é definido pelo não desvirtuamento da obra e pela
não afectação da honra e reputação do autor.
O critério da proporcionalidade, segundo IVAN e FRANÇOIS (102),
conduz o juiz ou o árbitro a considerar todos os elementos do problema,
como, por exemplo, a qualidade e o valor da construção, as despesas com
as soluções que evitariam um atentado à integridade da obra, a oportuni-
dade das transformações, a honra profissional do arquitecto e o interesse
público.
Estes critérios apontam para uma solução caso a caso, seja por via
de arbitragem, seja por via judicial, donde se poderia inspirar por aplica-
ção do art. 217.º Todavia, este artigo exclui da arbitragem os chamados
direitos indisponíveis, como são os direitos pessoais e não apresenta so-
luções para o caso de se degladiarem direitos disponíveis com direitos
indisponíveis. Parece bastar a presença no conflito de um único direito
indisponível para tornar impossível o recurso à arbitragem.
Seja como for, o que não está seguramente excluído é o recurso à
via judicial para a resolução do conflito. A solução casuística parece ser a
mais adequada (103).

100 Cfr. IVAN CHERPILLOD e FRANÇOIS DESSEMONTET, in Les Droits de l’auteur, Das
Architektenrecht (Le droit de l’architecte), Suisse, 1986, pp. 316.
101 Ibidem.
102 Ibidem.
103 Não parece ser esta a interpretação avançada pelo Prof. OLIVEIRA ASCENSÃO para
o art. 27.º da lei brasileira que contém a mesma doutrina do art. 60.º da lei portuguesa.
Para este autor prevaleceria sempre o interesse do proprietário, sendo apenas relevante
que o arquitecto não fique com o seu nome ligado a uma obra que lhe repugna (Direito
Autoral, pp. 187).
e outros escritos jurídicos 61

16. DIREITO DE RETIRADA (104)

O direito de retirada obteve consagração legislativa pela primeira


vez em Portugal com o Decreto n.º 13 735, de 27 de Maio de 1927, cujo
art. 34.º o regulava expressamente. Duvidoso é se este direito terá sido
regulado neste diploma como um direito de natureza pessoal ou se como
um direito de natureza patrimonial. A questão não é despida de qual-
quer importância na medida em que, ao ser retomada a sua regulação
pelo CDA de 1966, a colocação sistemática deste direito da secção relativa
aos direitos morais, parecia fazer inclinar no sentido de que o legislador
evitou caracterizá-lo com um direito moral ou pelo menos tomar posição
definida quanto à sua natureza. No passado, a Lei de 1925 configurou-o
como um direito de natureza patrimonial (105), mas não foi esta a natureza
com que foi recebida pela lei hoje em vigor que o considera intransmissí-
vel, irrenunciável e imprescritível (106), características com que foi recebi-
do pelo actual CDADC.
O direito de retirada está consubstanciado no art. 62.º do CDADC,
mas resulta igualmente de outras disposições do referido diploma, nome-
adamente no art. 101.º n.º 2 que permite ao autor desistir da publicação de
parte da obra já entregue ao editor quando tenha ficado impossibilitado
de a concluir e do art. 114.º que o permite retirar a obra do mercado quan-
do por decisão judicial tenha sido suprimido a esta parte que a compro-
meta ou desvirtue (107).

104 Não é uniforme a terminologia utilizada. Fala-se em direito de retirada e direito de


arrependimento, expressões a que a doutrina francesa liga conteúdos diversos. Segundo
DEBOIS, o arrependimento refere-se à ruptura do contrato que intervém antes da
publicação e a retirada após a publicação, opinião a que adere CLAUDE COLOMBE
(in Propriétè literaire et artístique, Paris, 1980, pp. 157). Esta distinção não parece ter
importância no direito português. Todavia, não podemos seguir SÁ E MELO na
crítica a DEBOIS, no sentido de que a afirmação segundo a qual o autor arrepende-se e
posteriormente retira a obra da circulação seria destituída de interesse prático (Ob. Cit.,
pp. 102). A retirada pressupõe efectivamente uma resolução intelectual que se traduz
no arrependimento e em actos materiais posteriores que consistem em retirar a obra da
circulação. O pensamento do Prof. HENRI DEBOIS afigura-se nos correcta.
105 Neste sentido, PEREZ SERRANO, ob. Cit., pp. 21. Todavia não parece ser este o
entendimento de PIOLA; ob. Cit., pp. 700.
106 De SANCTIS, ob. Cit., pp. 415.
107 Houve um claro apuramento da técnica legislativa na consagração do direito pessoal
de retirada. O art. 34.º do Decreto de 1927 permitia ao autor exercer o direito de retirada
relativamente a “obra impressa” pelo autor ou por contrato de edição, expressão que
no CDA de 1966 foi substituída pela de “obra intelectual já divulgada” por qualquer
modo. O DL n.º 63/85, de 14 de Março manteve a expressão, mas à semelhança do
62 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Este direito resolve um conflito entre os interesses pessoais do au-


tor e os interesses patrimoniais deste e de terceiros, no sentido da maior
tutela dos seus interesses pessoais (108). Por isso, não faltam autores que se
pronunciam contra o seu reconhecimento, com o argumento de que o seu
exercício põe em perigo a segurança do direito (109). Deve, porém, admi-
tir-se que estas críticas se mostram hoje esbatidas com o esvaziamento da
discricionariedade que chegou a caracterizar o seu exercício.
São idênticos os fundamentos pelos quais se permite ao autor man-
ter a obra inédita ou retirá-la da circulação. Quando tratámos do direito
ao inédito esclarecemos que este direito é concedido ao autor pela circuns-
tância de a ordem jurídica lhe reconhecer um certo domínio sobre a obra
(ou sobre as suas vicissitudes), já que a decisão que houver que tomar
quanto à sua publicação ou não publicação se repercute positiva ou nega-
tivamente na sua esfera pessoal. Antes da publicação, isto é, enquanto a
obra se mantiver inédita esta repercussão é nula ou neutra, na medida em
que a obra não foi posta em contacto com o público. Mas uma vez estabe-
lecido esse contacto cria-se um intercâmbio de comunicações entre o autor
e o público através da sua obra, de tal modo que a pessoa do autor sofre
ou beneficia da apreciação que a respeito da obra for feita. Além disso,
pode acontecer que o autor altere as suas concepções éticas ou estéticas
(110) e bem assim as convicções políticas ou religiosas que estiveram na
base da sua produção literária ou artística (111). Neste caso, a lei permite ao
autor retirar a obra da circulação.
A retirada é pois um acto unilateral e configura-se, na maioria dos
casos, como um verdadeiro direito potestativo ou mesmo como um poder
de sujeição concedido ao autor de uma obra literária ou artística para a
defesa da sua personalidade.
O autor pode exercer o direito de retirada, a todo o tempo, mas
deverá preencher duas condições:
a) demonstrar a existência das razões morais e
b) fazer a prova da sua atendibilidade.

que aconteceu em vários artigos do código foi substituída na Lei n.º 45/85, de 17 de
Setembro por “obra divulgada ou publicada”, de âmbito mais abrangente. Nesta
mesma perspectiva foi suprimida a fórmula analítica do art. 58.º do CDA de 1966 –
retirar a obra de circulação, fazer cessar a sua exploração, recolher a edição, suspender a
autorização para a representação e execução – pelas formulação genérica – fazer cessar
a perspectiva utilização, seja qual for a modalidade desta – igualmente de conteúdo
mais abrangente.
108 Assim, também, DE SANCTIS, ob. Cit., pp. 415.
109 Esta é a opinião de KLAUER, cit. Por PEREZ SERRANO, ob.cit., pp. 20.
110 A expressão do Prof. OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Autoral, pp. 80.

111 Cfr. DE SANCTIS, ob. Cit., pp. 415.


e outros escritos jurídicos 63

A doutrina parece unânime em admitir que a existência ou inexis-


tência de razões morais se determina subjectivamente. É em face da perso-
nalidade intelectual e da situação concreta da pessoa do autor que se deve
proceder a essa determinação. É uma análise caso a caso em que releva
o sentimento do próprio autor. Já houve quem admitisse o exercício do
direito de retirada em caso de inadimplemento do contrato (112), mas além
de esta faculdade não ser concedida pelo actual CDADC, implicaria um
desvio do fim pelo qual o direito de retirada foi concedido. Nestes casos,
há uma verdadeira inexistência do direito de retirada por falta de um dos
pressupostos do seu reconhecimento, ou seja, razões morais atendíveis.
Todavia, este será um campo de eleição de abuso de direito que ficará ca-
racterizado na situação de difícil prova em que, não obstante a existência
de razões morais atendíveis, o autor se aproveita da situação justificativa
da retirada para obter um aumento de remuneração (113).
A lei não se contenta com a simples verificação de razões morais. É
ainda necessário que estas sejam atendíveis. A atendibilidade das razões
morais está demonstrada quando um bom pai de família colocado na situ-
ação concreta do autor agiria daquela maneira. Também aqui se impõe
uma análise caso a caso (114).
Discute-se se os sucessores ou transmissários do direito de autor
podem ou não exercer o direito de retirada. PIOLA CASELLI admite que
não por não considerar aquelas entidades como seguros titulares das
razões morais que justificam a retirada da obra do comércio (115). Esta
é igualmente a opinião de DE SANCTIS (116) como o argumento de que
quando o legislador italiano quis que determinados direitos pudessem ser
exercidos depois da morte disse-o expressamente.

112 STRÖMHOLM, cit., por BRUNO HAMMES; ob.cit., pp. 105.


113 É esta a ideia expressa pelo Prof. OLIVEIRA ASCENSÃO (Direito Autoral, pp. 80),
porém combatida por SÁ E MELO, para quem é dispensável a figura do abuso de
direito visto no critério fornecido pela lei (ob. Cit., pp. 104).
114 Não podemos seguir o pensamento do Dr. SÁ E MELO, segundo o qual na valoração
da atendibilidade das razões morais deverá o intérprete ponderar os prejuízos morais
que a circulação da obra acarreta para o autor e os danos não patrimoniais causados a
terceiros (colectividade) pela retirada da obra da circulação (ob. cit., pp. 104). Esta tese
não só desfigura o sentido do direito de retirada, como o descaracteriza como direito
pessoal que é. A ponderação proposta pelo Dr. SÁ MELO constituirá o pressuposto de
uma eventual expropriação ou licença compulsiva da utilização da obra, mas nunca, a
nosso ver, elemento condicionante do exercício do direito de retirada.
115 Ob. Cit., pp.700.
116 Ob. Cit., pp.415.
64 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Na doutrina portuguesa opina pela afirmativa o Dr. FRANCISCO


REBELO relativamente aos transmissários do direito de autor, apoiando-
se no art.42.º (117).
O CDADC não toma posição definida sobre este ponto. A colocação
sistemática do art. 57.º logo a seguir ao art. 56.º que se refere ao direito de
reivindicar a paternidade da obra e ao direito de defender a integridade
e genuidade desta, parece fazer inclinar no sentido de que os sucessores
estão coibidos de exercer os direitos constantes dos artigos seguintes, ou
seja o direito de modificação e o direito de retirada. Se o legislador pre-
tendesse conferir aos sucessores o poder de modificar a obra ou retirá-la
da circulação teria optado por uma outra colocação sistemática do conte-
údo do art. 57.º, neste caso, no fim do Capitulo VI do título I relativo aos
direitos morais. A este argumento se acresce a circunstância de o art. 57.º
se referir ao exercício “destes” direitos, indicando uma relação de proxi-
midade entre este preceito e algo já enunciado que parece tratar-se dos
direitos referidos no art. 56º.
Ainda que se ponha em causa a validade desta interpretação com
fundamento no elemento sistemático, deve notar-se que o art. 57.º n.º 1
confere aos sucessores um poder de agir em interesse alheio. É à luz do
interesse do de cujus que a lei lhes permite reivindicar a paternidade da
obra e opor-se a toda e qualquer modificação que a possa desvirtuar e
afectar a honra e reputação do autor. Por isso, a lei não se exprime dizen-
do que os direitos morais de transmitem aos herdeiros, mas sim que o
seu exercício compete a estes. Ora, permitir que os sucessores pudessem
modificar a obra ou mesmo retirá-la da circulação poderia pôr em perigo a
personalidade do criador intelectual, cuja defesa afinal se pretende, o que
constituiria um verdadeiro desfoque do sentido pelo qual a lei conferiu
este poder aos sucessores. Poder que, como veremos de seguida, poderá
ser utilizado mesmo contra estes.
Resta acrescentar que o exercício do direito de retirada confere aos
interessados o direito a serem indemnizados pelos prejuízos que a reti-
rada lhes causar. É dominante na doutrina o entendimento de que esta
indemnização não se funda numa ideia de culpa (118). Com efeito, o autor
não pratica nenhum acto ilícito ao retirar a obra da circulação. A indemni-
zação está, contudo, justificada pela necessidade de se garantir um míni-
mo de segurança do comércio jurídico.

117 Ob. Cit., pp. 112.


118 Neste sentido. O. ASCENSÃO, Direito Autoral, pp. 80 e 81 e ainda HENRI G. J.
GEESTERANUS, in Le Droit Moral de l’ auteur dans la legislation Moderne, Bulletin de la
Sociétè de Legislation Comparée, tome soixante e unième, 1931-1932, pp. 122.
e outros escritos jurídicos 65

17. SUCESSÃO EM DIREITO PESSOAL DE AUTOR

Já nos ocupámos, embora incidentalmente, de alguns aspectos re-


lativos à transmissão e oneração do direito pessoal do autor. Nomeada-
mente, quando tratámos do direito ao inédito tivemos a necessidade de
discorrer a propósito da chamada penhora do direito ao inédito, em que
a nossa conclusão foi no sentido de que não existiria uma verdadeira pe-
nhora do direito ao inédito, mas sim de uma faculdade patrimonial que
pelas suas características põe fim ao inédito. Referimos igualmente à pro-
blemática da sucessão em direito pessoal de autor, manifestando a nossa
discordância relativamente ao ponto de vista segundo o qual o art. 57.º n.º
1 do CDADC envolveria uma verdadeira transmissão do direito pessoal
de autor. Debrucemo-nos mais detidamente sobre este ponto.
A problemática da sucessão em direito pessoal de autor é tão an-
tiga quanto a discussão que levou à consagração internacional do direito
pessoal. Já na Conferência de Roma de 1928 a delegação italiana era porta-
dora de uma proposta destinada à protecção do direito moral post mortem
auctoris, mas esta viria a ser abandonada “por se tratar de matéria de di-
reito interno”(119). A questão viria a ser retomada na Conferência Interna-
cional dos Artistas realizada em Veneza (1952) na qual foi recomendada
à Unesco o estudo da problemática, com vista a impedir a publicação de
obras modificadas, ou obras que o autor considere indignas de serem pu-
blicadas ou divulgadas em seu nome (120).
Ao tempo da realização desta Conferência, Portugal encontrava-se
entre os poucos países, cuja lei de direitos de autor regulava expressamen-
te a sucessão em direito pessoal. Desta circunstância deu devida nota o
relatório já referido, reportando-se ao art. 6.º parágrafo 3.º do Decreto n.º
13 725, de 27 de Maio de 1927, que submetia ao consentimento dos her-
deiros a publicação de manuscritos inéditos recolhidos nos arquivos ou
bibliotecas públicas. Mas a tónica desta Conferência foi no sentido da in-
suficiência das legislações para regular todos os aspectos do exercício do
direito pessoal post mortem auctoris e recomendava que se tivesse em con-
sideração as seguintes hipóteses: a) os herdeiros procedem eles próprios
às publicações incriminadas; b) os herdeiros estão em desacordo quanto
ao exercício do direito pessoal do autor; c) os herdeiros não são conheci-
dos ou se negligenciam em intentar acção contra terceiros responsáveis
pelas referidas publicações; d) as prerrogativas morais se extinguem com
a cessação do direito de autor.

119 PIOLA; ob. Cit., pp. 721.


120 Cfr. Relatório CIDA, relativo ao exercício do direito moral dos autores pelos seus
herdeiros, in Bulletim du droit d’auteur, vol. VII, n.º 2, Paris, 1954, pp. 119 e segs.
66 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Actualmente esta matéria está contemplada em vários artigos do


CDADC que acolheu a generalidade das preocupações manifestadas pela
Conferência Internacional dos Artistas. Com efeito, não só não é consen-
tida aos herdeiros qualquer modificação da obra (art. 59.º), como lhes está
vedada a sua reprodução em alguma das versões anteriores quando o
autor tiver fixado a divulgação ne varietur (art. 58.º). PERRAUD-CHAR-
MANTIER (121) pretende mesmo que a morte do autor fixa definitivamen-
te a forma da obra que assim ficaria estabelecida ne varietur. Embora haja
uma grande dose de verdade nesta afirmação, deve considerar-se que a
lei portuguesa não acolhe em absoluto esta solução. Não está proibida aos
herdeiros a escolha entre esta ou aquela versão da obra, salvo se o de cujus
tiver fixado a sua publicação ou divulgação ne varietur. Mas é certo que
mesmo perante a inexistência da cláusula ne varietur os herdeiros não po-
derão reproduzir a obra em nenhuma outra versão que não uma daquelas
deixadas pelo autor.
Uma disposição já várias vezes referida é a constante do art. 57.º n.º
1 que permite aos sucessores o exercício dos direitos pessoais, por mor-
te do autor, enquanto a obra não cair no domínio público. A sua aná-
lise quase ficou completa, quando nos ocupámos das características do
direito pessoal de autor. Refira-se, entretanto, que dela não resulta para
os sucessores do de cujus nenhum poder absoluto sobre a obra, nem lhes
faculta exercer todas as prerrogativas que se incluem nos direitos pessoais
de autor. Está-lhes vedado o direito de modificação da obra, salvo prece-
dendo autorização concedida em vida do autor, como lhes está vedado o
exercício do direito retirada, pelas razões atrás referidas. As faculdades
do direito pessoal que os sucessores poderão exercer parecem ser apenas
o de conservar a obra inédita (art. 70º), salvo se o autor tiver autorizado a
publicação da obra, e o de reivindicar a paternidade da obra e defender a
integridade e genuinidade desta, mas estas faculdades poderão ser exer-
cidas mesmo contra os sucessores, seja por um deles (122), seja pelo Minis-
tério da Cultura. Por isso, algum sector da doutrina se manifesta contra a
atribuição desta faculdade aos sucessores, para a defesa do direito pessoal
de autor. PERRAUD considera-os os piores inimigos da integridade da
obra, daí a falta de uniformidade das legislações quanto a este ponto (123).

121 In de L’ exercice du droit moral de l’ auteur ou de l’artiste sur son oeuvre, d’ après la jurisprudence
française, Revue Critique de Législation et de jurisprudence, LXXVIIe année, Paris 1937,
pp. 128.
122 Neste sentido, DE SANCTIS, ob. cit., pp. 413.
123 Para maiores desenvolvimentos cfr. PIOLA CASELLI, ob. cit., pp. 569;
O. ASCENSÃO, Direito Autoral, pp. 72 a 74; 132 e 133; DE SANCTIS, ob. cit., pp. 413;
e outros escritos jurídicos 67

CONCLUSÃO

NATUREZA JURIDICA DO DIREITO PESSOAL DE AUTOR

A questão da natureza jurídica do direito pessoal do autor entron-


ca-se numa questão de ordem mais geral que é a de saber qual a estrutura
do direito de autor e qual a natureza deste direito. Qualquer destes aspec-
tos escapam ao nosso tema, por isso não os trataremos com profundidade.
Além disso, há um outro obstáculo que nos impede de pronunciar com
segurança sobre a problemática da natureza jurídica do direito pessoal de
autor. É que não tendo nós estudado os aspectos patrimoniais do direito
de autor fica-nos por preencher uma lacuna, a nosso ver imprescindível,
para a compreensão, seja da estrutura do direito de autor, seja da sua na-
tureza. Por isso, os pontos de vistas que deixaremos aqui expressos são
emitidos sob reserva.
Da análise que empreendemos até agora relativa ao direito pessoal
de autor julgamos ser possível concluir pelo carácter monista do direito de
autor. Estamos a par das críticas que se dirigem a este entendimento, mas
também ainda não dissemos se a reunião se faz no núcleo pessoal deste
direito ou se no seu núcleo patrimonial. O que nos parece certo é aquilo
que temos vindo a chamar osmose permanente entre as duas faces deste
mesmo direito, de tal modo que não nos parece possível conceber o exer-
cício de uma dessas faculdades sem que acarrete o exercício da outra. Ao
longo do texto apresentámos alguns exemplos. Referimos a publicação ou
divulgação que faz extinguir o direito ao inédito e referimos igualmente
à retirada como meio de fazer cessar o exercício do direito de divulgação
ou publicação.
Além destes exemplos, vários outros podiam ser citados. Sendo a
penhora um aspecto claramente patrimonial, o seu exercício, no que res-
peita ao direito de autor, está fortemente limitado por condicionantes de
natureza pessoal. Na obra futura o inadimplemento do contrato não dá
nunca lugar à execução específica, havendo até quem considere que esta-
mos em face de um contrato cum potuered ou mesmo cum voluered, o que
só se justifica em virtude dessa interligação permanente entre os aspectos
pessoais e patrimoniais do direito de autor. Existem até figuras híbridas
como é o caso do direito de retirada que no passado foi concebido como
um direito de natureza patrimonial e que hoje a generalidade da doutrina
trata como um direito pessoal de autor, cuja componente patrimonial é

CLAUDE COLOMBE, ob. Cit., pp. 226 e segs.; PERRAUD-CHARMANTIER, ob. cit., pp.
128 e segs.; LUIZ BERDEJO, ob. Loc. Cit.
68 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

bastante forte, não obstante a sua natureza pessoal. Esta parece ser igual-
mente a nota que nos dá o direito de sequência, porém, em percentagem
diferente. Aqui parece ser predominante o elemento patrimonial relativa-
mente ao aspecto pessoal, que apesar de tudo está presente.
Foi esta comunicabilidade permanente entre a vertente patrimonial
e a vertente pessoal do direito de autor que nos fez inclinar para uma es-
trutura monista deste direito.
Mas, esta análise permitiu-nos igualmente concluir que o direito
de autor não é um direito real, caracterização que deixaria de fora um
aspecto importante do conteúdo do direito de autor, precisamente aquele
que foi objecto do nosso estudo, ou seja, o direito pessoal de autor. Pela
mesma razão, julgamos que o direito de autor não é um direito de perso-
nalidade, nem se integra no direito do trabalho.
O que podemos aqui perguntar é se teremos forçosamente que,
incluir o direito de autor em uma das categorias tradicionais, se não se
conceberão figuras jurídicas que acolhem traços característicos de dois ou
mais institutos, de tal modo que, partindo da sua estrutura, seja de todo
impossível determinar a sua natureza, sem que tenhamos que sacrificar
uma ou outra das possíveis opções.
Este parece ser o caso do direito de autor que, ao compatibilizar
elementos de natureza patrimonial e elementos de natureza pessoal, com
uma existência autónoma de qualquer das referidas categorias, aponta ne-
cessariamente para um instituto, cuja natureza é diversa da dos institutos
que estão na sua génese, ou para uma natureza híbrida, resultante da fu-
são da natureza dos institutos em presença.

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e outros escritos jurídicos 71

2. O ÓNUS DA PROVA EM DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO *

Sumário:

1. Introdução. 2. Colocação do problema. 3. O principio iura


novit curia e o direito estrangeiro: a) Nas Ordenações. b) No
Código Civil de 1867. c) No Código de Processo Civil de 1939.
d) No Código Civil de 1966. 4. O princípio da Lex Fori. 5. Ex-
cepções e limitações. 6. Presunções – sua natureza. 7. O ónus
da prova. 8. Distinção entre normas substantivas e processu-
ais: a) Critério negativista. b) Critério prático. c) Critério teó-
rico. d) O caso particular das normas sobre a prova. e) posição
adoptada. 9. Natureza jurídica das normas sobre a prova: a)
Tese processual. b) Tese substantiva. c) Posição adoptada. 10.
Qualificações. 11. Ordem pública. Bibliografia consultada.

1. INTRODUÇÃO

O tema da natureza jurídica do ónus da prova já foi considerado


por alguns autores a espinha dorsal do Direito Processual Civil. Mas se
atendermos que a sua raiz histórica se entronca na antiga distinção es-
tatutária entre a litis ordinatio e a litis decisio podemos admitir, com segu-
rança, que no centro desta problemática está igualmente a espinha dorsal
de todo o Direito Internacional Privado. Se, como diz BÜTLER, a ciência
do DIP inspira humildade a quem a cultiva, uma humildade redobrada
deve animar a quem se debruça sobre este tema que até hoje não cessou
de preocupar autores de reconhecida craveira internacional, desde que
JACOBVS BALDVINVS (sec. XII-XIII) estabeleceu a distinção entre nor-

(*) Estudo realizado em 1993 e publicado na Revista da Ordem dos Advogados (Portugal)
Ano 53, II Abril-Junho, 1993 pp. 251 e segs.
72 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

mas substantivas e normas processuais, essencial a toda a problemática


da aplicação das normas no espaço 124-125.
Dele se ocupou a quase generalidade dos cultores do DIP, tem sido
objecto de estudo em congressos nacionais e internacionais e a quase ge-
neralidade dos processualistas, apesar da aparente simplicidade do prin-
cípio da lex fori, lhe tem dedicado muito do seu afã, sem que, contudo, até
hoje, tenha sido encontrado um critério de distinção isento de quaisquer
dúvidas. Por isso, queremos ter bem presente a dificuldade do tema que
nos propomos tratar, embora não esperemos, como pretenderia o mesmo
BÜTLER, ser avaliados com benevolência, pois a busca da verdade cientí-
fica não se compadece com acções de altruísmo. Que tenhamos apenas o
mérito de recolocar o problema e desafiá-lo uma vez mais com uma hipó-
tese de solução. Por isso, refutamos in limine as soluções negativistas, hoje
com um considerável número de adeptos e até de alguns ordenamentos
jurídicos, que mais não seja pela importância prática de que o tema se
reveste para ordens jurídicas como a portuguesa.

124 Até ao séc. XIII a solução dos conflitos de leis foi dominada ou pela aplicação global
da lex fori, (cfr. neste sentido Gonzaléz CAMPOS, Les Liens entre compétence judiciaire et
la compétence legislative en Droit International Privé, Rec. Cours, 1977, III, tome 156, 1980,
pp. 248) defendida, entre outros, por AZON, KAROLOUS DE TOCCO e ACURSIO, ou
pela aplicação da lei considerada mais justa. Segundo E. M. MEIJERS (Droit International
Privé, Rec. Cours, 1934, III, tome 49, pp. 592 e segs) JACOBVS BALDVINVS veio romper
com esta tradição considerando necessário distinguir entre “[…] o costume que diz
respeito ao processo e o costume que diz respeito à decisão do processo”. No que
respeita ao primeiro é necessário seguir o costume do juiz; no que concerne ao segundo
deve seguir-se o costume do lugar onde o contrato foi celebrado. Esta distinção, que
surgia como reacção à aplicação cega da lei do foro, não logrou de imediato grande
aceitação, sendo certo que a doutrina e a jurisprudência permaneceram durante muito
tempo orientadas pelo ponto de vista de ACURSIO. A sua importância posterior foi,
todavia, de tal modo que valeu ao seu autor o titulo de pai da ciência moderna de
direito internacional privado. Sobre estes aspectos ver MEIJERS, ob. cit. pp. 595-596.
Cfr. igualmente ARMAND LAINÉ (in Introduction au Droit International Privé, tomo I,
paris, 1888, pp. 166); JEAN MICHEL (in La prescription libératoire en Droit International
Privé, Paris, 1911, pp. 27); WERNER GOLDSCHMIDT (in Sistema y Filosofia del Derecho
Internacional Privado, Buenos Aires, tomo III, segunda edição, pp. 51).
125 Segundo CLAUDIA MORVIDUCCI (in la legge competente a regolare l’ammissibilitá dei
mezzi di prova nel diritto internazionale privato italiano, RDIPP, anno XIII, nº 4, ottobre-
diciembre, 1977, pp. 733-734) BALDO, na sua glosa à margem da Lei Cunctus Populus
(“a primeira constituição do titulo Summa Trinitate do Código de Justiniano” – JEAN
MICHEL, ob. cit. pp. 14) já havia solucionado o problema da lei aplicável à matéria
da prova no sentido de reconduzir as normas sobre a admissibilidade da prova à litis
decisio e as normas sobre a assumpção da prova à litis ordinatio. Como veremos adiante,
é este ainda grosso modo o procedimento dominante em Portugal (cfr. VAZ SERRA in
Provas – Direito Probatório Material – BMJ nº 110, pp. 151 e segs).
e outros escritos jurídicos 73

O título sob o qual nos propomos desenvolver o presente estudo


– O ÓNUS DA PROVA EM DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO126
– requer algum esclarecimento. Não vamos tratar de toda a problemática
do ónus da prova em DIP. Com efeito, todas as situações privadas inter-
nacionais, sejam as absolutamente internacionais sejam as relativamente
internacionais127, suscitam problemas relacionados com o ónus da prova.
O estado e a capacidade das pessoas, os negócios jurídicos, as coisas, as
relações de família, a revisão de sentenças estrangeiras, a aplicação do
direito estrangeiro, todos estes temas colocam, de um modo ou de ou-
tro, problemas relacionados com o ónus da prova. Poder-se-ia pensar que
estudaríamos um a um aqueles institutos e trataríamos de igual modo
todos os problemas do ónus da prova suscitados por aqueles temas. Não
é este o objecto do nosso estudo. Ele situa-se num plano anterior, mais
propriamente a nível da interpretação do conceito - quadro, ou mais es-
pecificamente ainda a nível da qualificação128, plano este necessariamente
preliminar. Trata-se estritamente da questão de saber se feita a remissão
para um certo ordenamento estrangeiro são ou não aplicáveis as regras
que disciplinam a prova, maxime o ónus da prova, vigentes naquele orde-
namento, o que está dependente da opção que se fizer quanto à qualifica-
ção jurídica deste instituto.

2. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA

A questão do ónus da prova em Direito internacional privado en-


tronca-se em três outros problemas de ordem mais geral que são o da dis-

126 O tema é tratado na doutrina sob diferentes títulos. Sob o título proposto tratou-o DE
NOVA num estudo a que não tivemos acesso L’onere della prova in diritto internazionale
privato, cit. por CLAUDIA MORVIDUCCI, in Prova (dir. int. priv.) Enc. Del. Dir.,
vol. XXXVII, pp. 172. Mas utilizam-se igualmente os títulos Le regime dés Preuves en
Droit International Privé Français, ROGER PERROT, Atti del III Congresso Internazionale
di Diritto Processuale Civile (Venezia 12 a 15 de Abril de 1962), Milão 1969, e ainda Les
Conflits de Lois en Matiére de Preuve, ANDRÉ HUET, Paris, 1965, ou em língua inglesa
Conflict of Law in the Field of evidence… LARS WELAMSON, atti… cit., pp. 88 e segs.
127 Na terminologia de JOSEPHUS JITTA igualmente adoptada pela doutrina portuguesa.
Cfr. entre outros, BAPTISTA MACHADO, Lições de Direito Internacional Privado,
Coimbra, 1974, pp. 10 a 12; RUI MANUEL GENS DE MOURA RAMOS que situa
em JITTA, com a sua distinção tripartida de situações nacionais, situações relativamente
internacionais e situações absolutamente internacionais, o aparecimento da tendência
impressionista (free law school) em Direito Internacional Privado (cf. o seu Direito
Internacional Privado e Constituição – Introdução a uma análise das suas relações, Coimbra,
1991, pp. 44 e segs.).
128 Cfr. HUET, ob. cit.pp. 14; GIORGIO BALLADORE PALIERI in L’ ammissibilitá dei
mezzi di prova nel diritto internazionale privato, Atti…cit. pp. 165 e segs.
74 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

tinção entre normas substantivas e normas processuais, o da aplicação da


lei processual no espaço e ainda o da natureza substantiva ou processual
das regras sobre a prova. Embora seja pacífico o entendimento segundo o
qual a aplicação no espaço das normas processuais se rege pelo principio
da lex fori, existem determinadas normas relativamente às quais é contro-
versa a sua natureza, se material, processual ou híbrida, donde a dúvida
sobre se hão-de reger-se pela lex fori ou pela lex causae. A este problema
acresce o facto de não existir ainda absoluta segurança na doutrina quanto
ao que se deve entender por normas substantivas e normas processuais,
nem que, em face de um hipotético critério de distinção entre estas duas
classes de normas, determinadas categorias jurídicas, como são o direito à
acção129, a prescrição130, as presunções, o ónus da prova, e outros institutos

129 Cfr. MARIE-LAURE NIBOYET-HOEGY, L’action en justice dans les rapports internationaux
de droit prive, Paris, 1986.
130 O problema da prescrição em Direito Internacional Privado (DIP) é igualmente um
dos temas mais antigos desta disciplina, porém prenhe de actualidade. Os pioneiros
do DIP já lhe faziam referência. Dele se ocuparam autores como BARTOLO, BALDO,
GUILLAUME DURANT, JACQUES DE REGYGNY, PIERRE DE BELEPERCHE,
CINUS, ALBERIC ROSATE, JEAN FABRE, todos citados por JEAN MICHEL in
La prescription libératoire…cit., pp. 15 e segs. e muitos outros. Sobre este ponto ver
igualmente E. M. MEIJERS, in Droit International Privé, Rec. Cours, 1934, III, tome 49,
pp. 592 e segs. O tema terá sido objecto de estudo por parte dos comentadores da
glosa Quod si boniensis escrita à margem da lei Cunctos populus (MICHEL ob. loc. Cit.).
ULRICH HUBER (1636-1694) ocupou-se desta matéria em mais do que um lugar. Foi
objecto do capítulo VII da sua obra De conflictu legum de que existe uma tradução
portuguesa realizada no Seminário de Direito Internacional Privado da Faculdade de
Direito da Universidade Católica do Rio de Janeiro, dirigida pelo prof. Dr. HAROLDO
VALLADÃO, Rio de Janeiro, 1951, obra que por sua vez constitui o Titulo III da Parte II
das Proelectionum Juris Civiliis Secundam Institutiones et Digesta Justiniani, Leipzig, 1707
– cfr. o prefácio do Prof. VALLADÃO à tradução portuguesa, pp. 3 e 4 – e também
na obra Jurisprudência Universa, como se refere M. MERLIN, in Répertoire Universel et
Raisonné de Jurisprudence, tome douziéme vb. Prescription Sect. I, III, Paris, MDCCXXX,
pp. 692. Também VOET se ocupou do tema em mais de um lugar. Cfr. MERLIN (ob.
loc. Cit.). O tema foi posteriormente retomado por JOSEPH STORY ) in Commentaires
on the Conflict of Law, London, 1841, pp. 830 e segs.) e M. F. C. DE SAVIGNY (in Traité
de Droit Romain, vol. 8, tradução francesa de M. CH. GUENOUX, Paris, 1851, pp. 269 e
segs.).
É abundante a bibliografia sobre os conflitos de leis em matéria de prescrição. Além dos
textos já referidos ocorre-nos citar ainda M. MERLIN, Recueil Alphabétique des Questions
de droit qui se presente plus fréquentemment dans les tribunaux, tome premier, vb. Appel,
pp. 324 e segs., quatriéme édiction, Paris MDCCXXVII; tome deuxiéme, quatriéme édiction,
vb. Communaux (bien), pp. 347 e segs., Paris MDCCXXVII; tome, quatriéme édiction, vb.
Garantie), pp. 512 e segs., Paris MDCCXXVIII; tome sixiéme, édiction, vb. Prescription, pp.
323 e segs., Paris MDCCXXIX; e bem assim as obras de M. TROPLONG Comentaire sur la
prescription, Bruxelles, 1843, pp. 24 e segs; JEAN MICHEL La prescription libératoire en
Droit International Privé; P. ARMINJON, L’usucapion et la prescription extinctive en Droit
e outros escritos jurídicos 75

similares devam ser considerados de natureza substantiva ou proces-


sual.
A controvérsia pode considerar-se universal. Com excepção dos
chamados países socialistas que adoptaram a atitude de não tomar conhe-
cimento do problema, em todos os ordenamentos jurídicos de que temos
conhecimento tem sido eterno o debate quanto à fronteira que separa as
normas substantivas das normas processuais.
Na doutrina jurídica anglo - saxónica, embora todos os autores se-
jam concordes em afirmar que a procedure se rege pelo princípio da lex fori,
ainda não estão de acordo sobre os termos da distinção entre o right e o
remedy, critério com base no qual se distingue a substantive law da proce-
dure law. Nos sistemas jurídicos romano - germânicos o critério básico de
distinção tem sido encontrado na divisão estatutária entre a litis ordinatio
e a litis decisio, mas também aqui não há unanimidade de pontos de vista
sobre se aqueles institutos de fronteira se integram em uma ou outra des-

International Privé, in Mélange ANTOINE PILLET, Paris, MCMXXIX, pp. 19 e segs; CARLO
CERRETI, Legge regolatrice della prescrizione estintiva, RDP, vol. IV, 1934, parte seconda,
pp. 67 e segs.; ROGER DAYANT, Prescription civile, Repertoire de Droit international, tome
II, Paris, 1969, pp. 615 e segs.; ANDREA GIARDINA, La prescrizione in tema di vendite
internazionali: la convenzione promossa delle Nazioni Unite, in RDIPP, anno XI-n.3, Luglio-
Settembre 1975, pp. 465 e segs.; JEAN MICHEL, Extrait du repertoire de Droit International,
Paris, 1931; RICARDO MONACO, L’efficacia della legge nello spazio (Diritto Internazionale
Privato), Torino, 1954, pp. 91 e segs.; MAXIMILEN PHILONENKO, De la prescription
extintive en Droit International Privé, Journal du Droit International, 63e année, 1936, Janvier-
Fevrier, 1936, pp. 259 a 283; 513 a 546; GIUSEPPE PUGLIESE, La prescrizione estintiva,
Parte segonda, terza edizione, Torino, 1914, pp. 727 e segs.
Além das obras referidas, o tema aparece praticamente em todas as obras de carácter geral.
Porém, esta abundância de literatura estrangeira sobre o tema é contrastada com a escassez de
literatura portuguesa dedicada especificamente aos problemas de conflitos de leis em matéria
de prescrição. Quanto pudemos apurar a questão é estudada apenas em obras gerais ou em
estudos que versam problemas de qualificação e ordem pública. Cfr., a este respeito, ISABEL
DE MAGALHÃES COLLAÇO, in Da qualificação em Direito Internacional Privado, Lisboa,
1964, pp. 231 e segs.; A. FERRER CORREIA, in Direito Internacional Privado, Enc, POLIS,
vol. 2, cols. 468 e segs. e também em Lições de Direito internacional Privado, Coimbra, 1973,
pp. 285-286; JOÃO BAPTISTA MACHADO, Lições…cit. pp. 138 e 357.
Refira-se igualmente que a própria jurisprudência não se revelou muito estimulante a este
propósito, sendo certo que apenas apurámos um único caso em que ela se ocupou dos conflitos
de leis sobre esta matéria (cfr. Ac. da RL, de 10 de Outubro de 1978, publicada na Colectânea
de Jurisprudência, ano III, 1978, 2º vol. pp. 1338 e 1339, sob o titulo transporte marítimo
– contrato de fretamento – prescrição e caducidade – normas de conflitos – reenvio para a lei de
um terceiro estado).
Para uma tentativa de reconduzir a solução dos conflitos de leis em matéria de prescrição à teoria
da Governamental interest analysis de BRAINERD CURRIE cfr. GARY L. MILHOLLIN in
Interest analysis and conflicts between statutes of limitation, The Hastings Law Journal, vol. 2,
Septembre 1975, pp. 33 e segs.
76 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

tas categorias.
As tentativas de solução do problema têm sido variadas, como tere-
mos oportunidade de dar a conhecer ao longo deste estudo. O seu interes-
se teórico é grande, mas maior ainda é o seu interesse prático, particular-
mente em ordens jurídicas como a americana, suíça e argentina, em que o
problema se apresenta com uma dupla faceta: põe-se a nível de questões
puramente internas, em virtude do princípio vigente nos EUA segundo o
qual o Tribunal aplica, nas situações interlocais, o direito substancial de
cada Estado federado e o direito processual da federação, principio que
na Suiça e na Argentina ganha uma formulação inversa, ou seja, cada Es-
tado federado ou cada cantão aplica o direito substancial da federação às
situações que estejam em contacto com mais do que um Estado federado
ou mais do que um cantão. Mas põe-se igualmente nas situações inter-
nacionais, sejam as relativamente internacionais, sejam as absolutamente
internacionais, por virtude do princípio de que o tribunal do foro aplica
as suas próprias regras processuais, com exclusão portanto das normas
processuais estrangeiras.
Um interesse menor apresenta o problema nos ordenamentos ro-
mano – germânicos a nível das questões puramente internas. Na ausên-
cia de disposições legais transitórias que regulem a aplicação das normas
processuais no tempo, é pelo critério de distinção entre normas substanti-
vas e normas processuais que se resolvem os problemas daí decorrentes,
em virtude da regra segundo a qual as normas substantivas se regem pelo
principio tempus regit actum e as normas processuais pelo da aplicação
imediata. A este nível a distinção apresenta também interesse quanto à
aceitação de determinadas espécies de recurso, como o recurso de revista
e, em certa medida, o da apelação. Mas o interesse maior da distinção
põe-se, tal como nos direitos anglo-saxónicos, a nível das questões inter-
nacionais, em particular relativamente àqueles institutos sobre os quais é
duvidosa a sua natureza se substancial ou processual.
A doutrina e a jurisprudência dos países submetidos a um e outro
sistema dão-nos notícia de um sem número de situações que a todo o mo-
mento põem à prova a fragilidade dos critérios de distinção entre as duas
classes de normas. Seria fastidioso enumerá-los aqui, por isso remetemos
para a literatura, aliás abundante sobre esta matéria131. Contudo, não vem

131 ANDRÉ HUET, ob. cit. pp. 42 e segs.; R. H. GRAVESON, in Conflict of law – Private
International Law, 7ª edição, Londres, 1974, pp. 594 e segs.; WOLFF, in Private
International Law, 2ª edição, Oxford, 1950, pp. 227 e segs.; R. H. GRAVESON, in Cases
on the conflict of law, Londres, 1949, pp. 445 e segs.; J. H. C. MORRIS, in Cases on Private
International Law, 4ª edição, Oxford, 1968, pp. 515 e segs.; The American Law Institute,
Restatement of the Law second Conflict of Law 2d, St. Paul, 1934, pp. 698 e segs. e ainda a
edição de 1971, pp. 349, entre outros.
e outros escritos jurídicos 77

a despropósito referir alguns exemplos que suscitam o problema da natu-


reza jurídica do ónus da prova.
Na situação do contributory negligence admite-se em alguns estados
membros dos Estados Unidos da América que cabe ao réu fazer a prova
da negligência do autor, ao passo que em outros estados defere-se ao au-
tor a demonstração de como agiu com a diligência necessária. Se se con-
siderar que o ónus da prova tem natureza substantiva (a rule of substance),
rege-se pela lex loci delicti, mas se se admitir que tem natureza processual
(a rule of procedure), rege-se pela lex fori. Assim, se A intentar uma acção
no Estado X que obriga o autor a fazer a prova da negligência do réu, por
danos causados no Estado Y que perfilha a posição contrária, qual será a
lei aplicável, a do Estado X ou a do Estado Y?
CHESHIRE apresenta ainda o seguinte exemplo: no direito inglês
existe a presunção de que, conforme o seu nível de vida, o marido res-
ponde pelas despesas domésticas feitas pela esposa. Cabe ao marido afas-
tar a presunção, demonstrando, por exemplo, que as despesas feitas pela
mulher não eram necessárias. Supondo que pela lei do país X o marido
responde pelas despesas domésticas feitas pela esposa, salvo se tiver sem-
pre uma reserva de mercadorias, mas cabe ao vendedor provar que o for-
necimento era insuficiente ao tempo do contrato. Supondo ainda que as
compras foram feitas no país X em relação ao qual as três partes se encon-
tram ligadas por conexões de nacionalidade, domicilio e residência. Se o
comerciante accionar o marido em Inglaterra pelo preço das mercadorias
cabe a ele provar que eram estritamente necessárias ou cabe ao marido
fazer prova de desnecessidade132?
Um outro exemplo poderá ser construído a partir do direito portu-
guês quando em contacto com o direito inglês. A norma do art. 68º, nº 2,
CC estabelece a presunção de que em caso de dúvida sobre o momento
do falecimento de duas ou mais pessoas, admite-se que uma e outra fa-
leceram ao mesmo tempo. No direito inglês a presunção é no sentido de
que, em caso de dúvida, o mais novo faleceu em último lugar. Supondo
um acidente de viação ocorrido em Portugal que envolveu dois cidadãos
ingleses, A e B, respectivamente, de 20 e 30 anos, em que ambos encon-
traram a morte, sem que se possa determinar qual deles terá morrido em
primeiro lugar. Se alguém pretender obter determinado efeito jurídico de-
pendente da sobrevivência de A sobre B, aplicando-se o direito português
cabe-lhe fazer prova de que A faleceu em último lugar, ao passo que apli-
cando o direito inglês, funciona a favor dele a presunção, pelo que cabe à
contraparte provar que B terá falecido em último lugar.

132 In Private International Law, 6ª edição, Londres, 1965, pp. 582.


78 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

A solução desta e de outras questões passa pela opção que se fizer


quanto à natureza jurídica do ónus da prova. No último exemplo apon-
tado, se optarmos pela natureza processual destas regras, aplicaremos à
situação sub judice a disposição do art. 68º, nº 2, CC, ao passo que se atri-
buirmos ao instituto natureza substantiva, reger-se-á pelo direito inglês.
Procuraremos nas páginas que se seguem dar resposta a estas ques-
tões, para cujo enquadramento cremos justificar o estudo da problemática
da aplicação do direito estrangeiro.

3. O PRINCIPIO IURA NOVIT CURIA E O DIREITO ESTRANGEIRO

A aplicação do direito incumbe aos tribunais133. Deste princípio


resultam duas consequências de sentido oposto: a primeira traduz-se na
injunção dirigida ao juiz que consiste no dever de conhecer e aplicar o
direito134; a segunda na não obrigatoriedade para as partes de fazer pro-
va das disposições legais em que apoiam as suas pretensões135. Todavia,
nem aquele dever, nem este poder – dever são absolutos. Nem o juiz tem
sempre o dever de conhecer o direito aplicável ao caso sub judice, nem as
partes se situam sempre na posição cómoda de meros colaboradores do
tribunal no conhecimento do direito. Com efeito, o princípio iura novit
curia é de âmbito nacional, no sentido de que o comando que impende
sobre o juiz só tem valor absoluto com referência à lex fori. Mas quando se
trata de conhecer e aplicar o direito estrangeiro (lex causae ou lex delictum)
como que se opera uma inversão da posição relativa das partes e do tribu-
nal. Quando o direito regulador do caso sub judice é um direito estrangeiro
incumbe à parte que funda a sua pretensão em tal direito fazer a respec-

133 Este principio vem da Idade Média e exprime-se igualmente nos seguintes brocardos:
da mihi factum, dabo tibi jus; la cour sait le droit. Cfr. CYRILLE DAVID in La loi étrangére
devant le juge du fond, Paris, 1965, pp. 7, 202 e 203; MANUEL DE ANDRADE, Noções
elementares de processo civil, Coimbra, 1979, pp. 195. Sobre o principio, ver igualmente
MIAJA DE LA MUELA, in Derecho Internacional Privado, vol. I, 2ª edição, Madrid, 1954,
pp. 369 e segs. Em particular, no confronto deste princípio com o direito estrangeiro,
ver ALESSANDRO TOMASI DI VIGNANO, in Lex fori e diritto straniero, Padova, 1964,
pp. 51 e segs.
134 Cfr. GIOVANNI VERDE, in Prova (dir.proc.civ), Enciclopedia del Diritto, vol. XXXVII,
pp. 623, segundo o qual neste ponto o processo é dominado pelo principio do
inquisitório.
135 Segundo VERDE há a necessidade de excluir o texto da lei do âmbito da disponibilidade
das partes a fim de conservar a actividade jurisdicional o carácter de função pública e
de assegurar o prosseguimento do objectivo de certeza e igualdade de tratamento (ob.
cit. pp. 623).
e outros escritos jurídicos 79

tiva prova136, sem prejuízo de o tribunal procurar obter oficiosamente o


respectivo conhecimento. Desta posição resulta que, se o juiz tem o dever
absoluto de conhecer o direito nacional – iura novit curia – este dever se
atenua, embora subsista igualmente no que respeita ao conhecimento e
aplicação do direito estrangeiro. Mas de um dever absoluto passa a cons-
tituir um dever relativo em resultado da convergência de consequências
decorrentes do não conhecimento de um e outro direito137. O legislador
não admite sequer a hipótese de o juiz desconhecer o seu próprio direi-
to138. A consequência desse não conhecimento, pensável apenas em mo-
mento anterior à aplicação da norma, deverá ser o esforço absoluto desse
conhecimento. Porém, no que respeita ao conhecimento e aplicação do
direito estrangeiro, embora este esforço se imponha, ele não é absoluto,
pois atingido um certo estádio de indagação, ou, para usar a expressão
legal, na impossibilidade de determinar o conteúdo do direito estrangeiro
aplicável, recorre-se-á à aplicação do direito comum português (art. 348º,
nº 3, CC)139.

136 É o critério dominante, mas apresenta algumas excepções (cfr. sobre este ponto MIAJA
DE LA MUELA, ob. cit. 1º vol. 2ª edição, Madrid, 1954, pp. 372). Esta proeminência
das partes resulta, como explica MORELLI, do facto de muito frequentemente elas
terem melhor conhecimento desse direito que o tribunal (cit. por MIAJA, ob. cit. pp.
371), afirmação que se nos afigura prenhe de significado já que normalmente as partes
têm em conta, na regulação dos seus interesses, o direito aplicável à situação concreta,
quando não são elas próprias a fazer a escolha da lei aplicável (cfr. art. 41º do CC).
Todavia, não cremos que seja válida para o ordenamento jurídico português a opinião
de MORELLI, segundo a qual a actividade das partes no conhecimento do direito
estrangeiro teria carácter subsidiário (cit. por MIAJA ob. loc. cit). Neste ordenamento,
a posição de subsidiariedade caberia eventualmente ao juiz (cfr. art. 348º, nº 1, in
fine), mas apesar disso estamos em crer que devem ser consideradas actividades
concorrenciais de mesmo sinal, destinadas a esclarecer o tribunal sobre a lei aplicável
ao caso sub judice.
137 Neste sentido, o legislador português não acolheu a posição doutrinária que defende
uma postura absolutamente passiva por parte do juiz, quanto ao conhecimento e prova
do direito estrangeiro (cfr. sobre este ponto MIAJA, ob. cit. 370). Sobre a questão nos
países socialistas cfr. FRANCO FLORIO, in La codificazione del diritto internazionale
privato e processuale in Cecoslovacchia, Milão, 1967, pp. 169 e segs.
138 Cfr. CYRILLE DAVID, ob. cit. pp. 156 e 202. As únicas excepções consentidas dizem
respeito ao direito consuetudinário ou local que seguem o mesmo regime da lei
estrangeira (art. 348º, CC)
139 Com esta solução o legislador português resolveu uma questão assaz controvertida na
doutrina, em particular entre aqueles que defendem que o direito estrangeiro deve ser
tratado como uma questão de direito e aqueles que pretendem tratá-lo como uma questão
de facto. Os defensores da primeira tese advogam com fundamento, uns na presunção de
identidade do conteúdo da lei estrangeira, outros no seu eventual carácter excepcional,
80 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Por isso, não podemos afirmar com MIAJA que o direito estran-
geiro não está compreendido no princípio iura novit curia140. Esta relação
de pertença existe141, porém com a diferença de que, admite o legislador,
que, não obstante o esforço de investigação, o tribunal conclua no sentido
da impossibilidade de determinar o conteúdo da lei aplicável. Neste caso,
atenua-se o comando em que o princípio se traduz e, em virtude da im-
possibilidade de pronúncia de um non liquet, possibilita-se a aplicação das
regras do direito comum.

a) O REGIME NAS ORDENAÇÕES

O princípio de que o direito não carece de prova vem das Orde-


nações do Reino. O § 11º do Tit. 58, Liv. III das Ordenações Afonsinas
obrigava que os artigos de fundassem em “cousa de feito e nam em cousa
de direito”, porque o depoimento sobre direito “nam valera nada”, preceito
que transitou seja para as Ordenações Manuelinas (§ 8º do Tit. 40, Liv.
III), seja para as Ordenações Filipinas (§ 7º do Tit. 53, Liv. III), apenas com
algumas alterações de forma142.
Ao princípio exposto estabeleciam os textos três ordens de limita-
ções. Tratando-se de direito não escrito, costume ou direito “de outro Reino
ou Cidade onde a demanda se não trata”, ou seja, direito estrangeiro, a parte
que o invocava era obrigada a fazer a respectiva prova143.
Destes textos resulta o acolhimento do princípio iura novit curia no

a aplicação da lex fori, contrariamente aos partidários da tese contrária que defendem,
neste caso, a absolvição do réu, por falta de determinação do conteúdo da lei aplicável.
Sobre este ponto, e para maiores desenvolvimentos, cfr. MIAJA, ob. cit. pp. 372 a 374;
CYRILLE DAVID, ob. cit. pp. 158 e segs.
140 Ob. cit. pp. 369. A posição da doutrina sobre esta matéria pode sintetizar-se na fórmula
de que admitem a aplicação do princípio iura novit curia ao direito estrangeiro aqueles
que o consideram como questão de direito e recusam essa mesma aplicação aqueles
que o interpretam como questão de facto.
141 Ver neste sentido ALESSANDRO TOMMASI DI VIGNANO, ob. cit. pp. 64.
142 As Ord. Afon. falavam em cousa de feito, que as Ord. Man. e Fil. substituíram pela
expressão “cousa que consista em feito”. Mas a alteração mais significativa parece ter
sido feita na última parte do preceito, pois quando as Ord. Afon. pareciam estabelecer
a sanção da invalidade por alegações de direito – “seu depoimento nam valerá nada” – as
ordenações subsequentes substituíram esta sanção pela da ineficácia – tal depoimento
nam terá effeito algum”.
143 Cfr. Ord. Afon. Liv. III, Tit. 58, 11 e 12. Salvas algumas alterações formais, este texto
não sofreu alterações nas ordenações subsequentes. Cfr. Ord. Man. Liv. III, Tit. 40, 9 e
10, e Ord. Fil. Liv. III, Tit. 53, 8 e 9.
e outros escritos jurídicos 81

que respeita ao direito comum escrito, pois se a parte não estava obrigada
a fazer a respectiva prova, tal significa que sobre o tribunal impendia a
obrigação do seu conhecimento. Mas, dos mesmos textos parece resultar
igualmente que o princípio não era extensivo ao direito estrangeiro e ao
que hoje se chamaria direito local ou consuetudinário, que eram tratados
como as demais questões de facto, pelo que deveriam ser alegados e pro-
vados pelas partes. É esta, aliás, a nota que nos dá o Prof. ALBERTO DOS
REIS, segundo a qual a solução antiga era a de tratar o direito estrangeiro
como puro facto144.

b) O CÓDIGO CIVIL DE 1867

A regra das Ordenações transitou para o Código Civil de 1867, cujo


art. 2406º obrigava àquele que tivesse invocado algum estatuto ou pos-
tura municipal do país, ou alguma lei estrangeira, cuja existência fosse
contestada, a fazer a respectiva prova. Nesta disposição a doutrina e a ju-
risprudência portuguesas viram retratados os três sistemas então vigentes
quanto à recepção do direito estrangeiro. O sistema da lei-facto, segundo o
qual a lei estrangeira é um simples facto que, como qualquer outro facto,
deve ser alegado e provado pelas partes145; o sistema do arbítrio judicial, de-
fendido por KORI, que fazia depender a aplicação do direito estrangeiro
do arbítrio do juiz; e o sistema da lei-direito, nos termos do qual a lei estran-
geira é aplicada como direito.
O sistema da lei-facto era o entendimento perfilhado pelo Supremo
Tribunal de Justiça, com o fundamento de que não basta a invocação do
direito estrangeiro, sendo igualmente necessária a sua prova, sem a qual
não é possível a sua aplicação pelos magistrados146.
A tese de KORI ou o sistema do arbítrio judicial teve, em Portugal,
um adepto em GUILHERME MOREIRA, mas parecia ser dominante na
doutrina a tese da lei-direito defendida pela RLJ, pelos Drs. MARNOCO
E SOUSA, EDUARDO DE CARVALHO, LUIS GONÇALVES FORTES147
e pelo próprio Prof. MACHADO VILELLA, que via na remissão para o

144 Código…, vol. III, pp. 305 e 306.


145 Cit. por MACHADO VILELLA, Tratado elementar (teórico e prático) de Direito Internacional
Privado, Livro II, aplicações, pp. 257, segundo o qual esta doutrina era igualmente
seguida por DIAS FERREIRA. Cfr. igualmente ALBERTO DOS REIS, Código…, vol. III,
pp. 308.
146 Cit. por VILELLA, ob. cit. pp. 257.
147 Todos citados por VILELLA, ob. loc. cit.. Para maiores desenvolvimentos ver este
autor ob. cit. pp. 258 a 261.
82 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

direito estrangeiro a sua incorporação no direito nacional, daí a sua consi-


deração como direito e não como facto148.
Para os defensores da tese da lei-facto ou do arbítrio judicial a apli-
cação do direito estrangeiro é dominada pelo princípio do dispositivo,
diferentemente da tese da lei-direito que advoga uma posição activa por
parte do tribunal, ou seja, iura novit curia. Esta parece ser, na verdade, a
doutrina que resultava do art. 2406º, já citado.

c) O CPC DE 1939

O art. 2406º do CC de 1867 coexistiu até 1961, data em que foi apro-
vado o novo CPC, com o art. 521º do CPC de 1939, que introduziu no orde-
namento jurídico português uma nova filosofia relativamente à recepção
e prova do direito estrangeiro, estabelecendo a obrigatoriedade da prova
da sua existência e conteúdo, apenas quando o tribunal o desconheça, mas
impondo ao mesmo tempo ao juiz o dever de, oficiosamente, procurar
obter, por todos os meios ao seu alcance, o respectivo conhecimento.
Esta disposição transitou para o CPC de 1961 (art. 517º), mas o DL
47 690, de 19 de Julho de 1967, que visou a adaptação do CPC ao novo
CC, entretanto entrado em vigor, procedeu à sua eliminação149, certamen-
te pela consideração da natureza substancial e não processual destas re-
gras150. Não analisaremos esta disposição legal por corresponder no seu
essencial ao regime previsto no CC de 1966, a cuja análise procederemos
de seguida.

d) O CÓDIGO CIVIL DE 1966

Este diploma contém fundamentalmente duas normas sobre a re-


cepção do direito estrangeiro. O art. 348º, que regula o conhecimento e
a prova do direito estrangeiro, e o art. 23º, que estabelece as regras da
sua interpretação e averiguação. O primeiro fixa como principio geral que
aquele que invocar direito estrangeiro deve fazer prova da sua existência,
mas o tribunal deve, oficiosamente, procurar obter o respectivo conhe-
cimento. Este artigo levanta dois problemas fundamentais, quais sejam
o de saber se o direito estrangeiro é tratado pelo ordenamento jurídico
português como questão de facto ou como questão de direito e bem assim o

148 Ob. lo c. cit.


149 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, vol. I, Coimbra, 1979, pp.
288.
150 Cfr. sobre este ponto VAZ SERRA, in Provas (Direito Probatório Material), cit. pp. 61 e segs.
e outros escritos jurídicos 83

de saber se dele resulta para a parte que o invoca um verdadeiro e próprio


ónus da prova.
Da consideração do direito estrangeiro como questão de facto ou
como questão de direito ressaltam, como temos vindo a referir, consequên-
cias importantes. Sendo o direito estrangeiro um puro facto deve como tal
ser alegado e provado, sob pena de não ser atendida a sua invocação em
juízo; rege-se pelo princípio do dispositivo; vigora quanto a ele o princípio
da proeminência das partes; o juiz não pode conhecer dele de ofício nem
pode socorrer-se da sua ciência privada para proceder à sua aplicação.
Pelo contrário, da consideração do direito estrangeiro como norma jurídi-
ca resulta a sua aplicação ex oficio; rege-se pelo princípio da inquisitorieda-
de e não necessita de ser alegado nem provado pelas partes151. Duvidoso
é qual será a tese dominante nesta matéria. DI VIGNANI152 admite que é
aquela que considera o direito estrangeiro como uma res facti, mas outros
autores como SALCEDO153 e JOSÉ MESSIAS154 consideram que é aquela
que proclama o carácter jurídico da norma estrangeira.
Cremos que só em face de um determinado ordenamento jurídico
é legitimo questionar a natureza jurídica de um certo instituto, pois essa
natureza deve decorrer necessariamente da conformação legal que lhe é
dada nesse mesmo ordenamento155. Assim, no que concerne aos países
anglo-saxónicos é unânime o ponto de vista da doutrina de que a Common
Law sempre tratou o direito estrangeiro como uma res facti156. O mesmo se

151 Sobre este ponto ver ALBERTO DOS REIS, Código…, vol. III, pp. 305; WERNER
GOLDSCHMIDT, Derecho Internacional Privado, Alberti, 1970, pp. 502.
152 Ob. cit. pp. 47 e segs. Este autor apresenta uma lista considerável de nomes como
MAURY, WOLFF, CHESHIRE, ROMANO, UDINA, MORELLI, MONACO, AGO,
ARANGIO RUIZ, CARNELUTTI, ANDRIOLI, RAAPE e BROGGINNI, todos
defensores da natureza fáctica do direito estrangeiro.
153 Derecho Internacional Privado, 2ª edição, Madrid, 1976, pp. 264.
154 In Derecho Internacional Privado, Parte geral, 3ª edição, pp. 396.
155 Valem aqui os ensinamentos do Prof. OLIVEIRA ASCENSÃO, in Direito Autoral,
Lisboa, 1989, pp. 70.
156 Ver neste sentido, Dicey and Morris in Conflict of Law 1980, pp. 1206; GOODRICH,
Handbook… pp. 238 e segs.; A. E. ANTON, Private International Law, Edinburg, 1967,
pp. 565, entre outros. Cf. igualmente LEONEL PEREZNIETO CASTRO, in Derecho
Internacional Privado, México, 1981, pp. 234, segundo o qual desde a famosa decisão
Mostyn vs. Fabrigas, de 1774, é esta a teoria que vem sendo seguida pela doutrina
inglesa. Ver ainda BAPTISTA MACHADO, Lições…, pp. 246. CYRILLE DAVID
admite, contudo, que esta afirmação deve ser recebida com alguns ajustamentos, na
medida em que, quando da consideração do direito estrangeiro como facto resultam
mais inconvenientes do que vantagens, a Common Law deixa de o tratar como facto
84 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

dirá de outras ordens jurídicas, como a argentina157 e a mexicana158, cujos


textos legais adoptaram disposições claramente no sentido do direito es-
trangeiro como questão de facto.
Em outras ordens jurídicas como a francesa159 e a italiana160 ainda
se discute a matéria, encontrando-se dividida doutrina e a jurisprudência

para passar a considerá-lo como direito. Só assim se explica a circunstância de as


questões de facto serem tratadas pelo júri e a prova do direito estrangeiro pelo juiz.
Além disso, existem determinadas situações em que os tribunais da Common Law
têm a obrigação de conhecer o direito estrangeiro. Tal acontece quando esse direito
é notório ou quando se trata de um direito da Commonwealth. Nestes casos dispensa-
se a actividade da parte (in La Loi Etrangére devnt le Judge du Fond, Paris, 1965, pp.
29 e segs.). Parece-nos de aceitar a observação do autor, particularmente se tivermos
em consideração a situação actual da Grã-Bretanha como membro da Comunidade
Europeia, donde lhe advém a obrigatoriedade de conhecer o direito desta organização.
É claro que se poderá argumentar que o direito comunitário faz parte integrante das
ordens jurídicas dos estados (sobre este ponto ver ETIENNE CEREXHE, in O Direito
Europeu, vol. I, As Instituições, Lisboa, 1985, tradução de António Mota Salgado, pp. 219
e 220); GRAVESON Conflict… pp. 605.
157 Ver WERNER GOLDSCHMIDT, Derecho… pp. 502 e 503. Dispõe o art. 13º do Código
Civil argentino: a aplicação das leis estrangeiras nos casos em que este código autoriza,
nunca terá lugar senão a pedido da parte interessada, sob cuja responsabilidade estiver
a prova das referidas leis – cit. por GOLDSCHMIDT, ob. loc. cit.. Alguns autores têm
procurado temperar a severidade desta disposição legal, por recurso à autonomia
da vontade como elemento de conexão, considerando que nas situações em que o
código impõe o recurso à lei estrangeira esta seria aplicada de ofício. GOLDSCHMIDT
contorna o problema por outra via, admitindo que o direito estrangeiro é um facto
notório, não no sentido de um facto conhecido de todos, mas sobre o qual todos podem
informar-se, donde retira o dever de ofício do juiz na busca do conhecimento do direito
estrangeiro. Sobre estes aspectos ver este autor, ob. cit., pp. 506-507.
158 Ver LEONEL PEREZNIETO, ob. cit., pp. 234, segundo o qual o art. 234º do Código
de Procedimentos Civiles para el Distrito Federal e o art. 86º do Código federal de
Procedimentos Civiles admitem que o direito só é objecto de prova quando se funda
em leis estrangeiras, em usos e costumes ou em jurisprudência.
159 Ver quanto a este ponto BAPTISTA MACHADO, Lições… pp.247. Sobre a questão nos
países socialistas ver FRANCO FLORIO, ob. cit. pp. 167 e 168, segundo o qual a doutrina
socialista é concorde em afirmar que o direito estrangeiro deve ser considerado como
direito e não como facto, com todas as consequências que daí decorrem: aplicação ex
oficio, possibilidade de recurso pela sua violação.
160 DE VITTA noticia uma diferente posição da doutrina e da jurisprudência quanto a
este ponto. Enquanto a jurisprudência se mostrou inclinada durante muito tempo a
considerar o direito estrangeiro como questão de facto, outra era a posição da doutrina
que propugnava pela sua consideração como direito (in Diritto Internazionale Privato,
vol. I, Parte Geral, Torino, 1972, pp. 226 e segs.). Diversa é, porém, a opinião de DI
VIGNANO, que, embora admita essa diferente postura da doutrina e da jurisprudência,
considera que a tese da lei-direito era a defendida pela jurisprudência e a da lei-facto
pela doutrina (ob. cit. 45).
e outros escritos jurídicos 85

entre os dois pontos de vista expressos.


No que concerne ao direito português cremos que importa fazer
uma distinção. Há dois momentos na aplicação do direito estrangeiro: a)
o momento do seu conhecimento; e b) o momento da sua aplicação.
No que respeita ao primeiro momento o direito estrangeiro deve
ser tratado como questão de facto. Se o direito é em regra insusceptível
de prova, exigindo a lei que o direito estrangeiro deva ser provado, sem
prejuízo das diligências oficiosas desenvolvidas pelo tribunal, então neste
primeiro momento o direito estrangeiro é tratado como questão de facto.
E não invalida esta afirmação a circunstância de o juiz poder investigar
oficiosamente a existência desse direito, na medida em que esta activida-
de é igualmente desenvolvida relativamente aos demais factos. Só que, no
que respeita ao conhecimento e prova do direito estrangeiro a lei aumenta
os poderes de investigação do juiz. Conhecido o direito estrangeiro – e
este é o segundo momento – ele adquire a sua afirmação como direito161,
afirmação que é integralmente respeitada, salvo quando, pelo seu conteú-
do ofenda os princípios de ordem pública do Estado português. Esta solu-
ção decorre, seja do art. 23º do CC, que manda interpretar a lei estrangeira
dentro do sistema a que pertence, seja do art. 721º do CPC que permite o
recurso de revista por violação de lei estrangeira162.

161 Cf. neste sentido MAGALHÃES COLLAÇO, in Lições de Direito Internacional Privado,
policopiadas, sem data, pp. 581; BAPTISTA MACHADO, Lições…, pp. 248.
162 Esta solução terá sido adoptada na sequência de uma dúvida que se pode considerar
universal nos ordenamentos romano-germânicos, qual seja o da possibilidade de
recurso por violação da lei estrangeira. Ver sobre este ponto MACHADO VILELLA,
ob. cit. 264 e segs. A solução é controversa em Itália (cfr. DI VIGNANI, ob. cit. pp. 45
e segs.) e também na Alemanha, pronunciando-se favorável ao recurso VON BAR,
(cit. por VIGNANI, ob. loc. cit.). O legislador português refutou, por conseguinte, uma
ideia defendida por muitos autores (cfr. CARRILO SALCEDO, ob. cit. pp. 260 a 263)
segundo a qual o direito estrangeiro se encontraria numa posição de inferioridade
relativamente ao direito do foro (norma indígena – como se exprime SALCEDO).
Esta ideia que, como reconhece este autor, não tem sido aceite pela generalidade da
doutrina, encontra forte oposição em autores como FERRER CORREIA que defendem
o princípio da paridade de tratamento entre o direito nacional e o direito estrangeiro (in
Direito Internacional Privado – alguns problemas, Coimbra, 1989, pp. 163). Na verdade,
não deixa de ser notável mesmo em autores como SALCEDO e BATIFFOL a fragilidade
da ideia de superioridade do direito do foro, que parece constituir um remanescente
da teoria da cortesia (cf. J. PINTO RUIZ, in Derecho Internacional Privado, Nueva Enc.
Jur., Barcelona, 1950, pp. 50 e segs.). Se dentro do seu âmbito de competência o direito
estrangeiro tem os mesmos atributos que a lei do foro (SALCEDO, ob. cit. pp. 261) e
se a sua aplicação resulta da escolha da própria norma de conflito do foro, tal significa
que é a própria lei do foro a considerar a norma estrangeira como melhor colocada para
resolver a questão sub judice. E nem se pode dizer que, neste particular, a lei do foro
se abdica do seu “direito” de aplicação ao caso concreto – no que se traduziria a ideia
86 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Uma outra questão que resulta do art. 348º refere-se ao problema


de saber se dele resulta um verdadeiro ónus da prova163 para a parte que
invoca o direito estrangeiro. Autores como MICHELI164 e CASTRO MEN-
DES165opinaram no sentido da descaracterização neste caso da figura do
ónus, ou mesmo em sentido negativo, pela compensação do encargo que
resulta do princípio de aquisição processual e do princípio da oficiosidade166.
MICHELI fala neste caso em ónus atenuado ou incompleto, e o Prof. CAS-
TRO MENDES considera que, em virtude da operância daqueles princí-
pios, da figura do ónus só resta o nome167.
Temos dúvidas quanto a este ponto de vista. Se considerarmos os
dois elementos fundamentais da figura do ónus – encargo e consequência
– resulta que a operância do princípio da oficiosidade nem sempre esbate
ou elimina qualquer daqueles elementos. Assim, no que respeita ao pri-
meiro, existe uma operância concorrencial entre este elemento – encargo
imposto sobre a parte de fazer prova do direito estrangeiro invocado – e o
princípio da oficiosidade – dever imposto ao juiz de investigar pelos pró-
prios meios a existência do direito estrangeiro invocado. Até à exaustão
da investigação o encargo e o dever continuam a impender em igualdade

de superioridade – na medida em que a generalidade dos autores parece concordar


que a definição da norma de conflitos não é uma questão puramente doméstica, mas
deverá ter em atenção as soluções vigentes no mundo civilizado. Além disso, a lógica
do sistema obsta a tal entendimento. Se a norma de conflitos X exclui a norma material
do foro Y em favor da norma material do foro Z de um direito estrangeiro, a norma
Y não pode ser superior à norma Z, por ter sido excluída à partida nas soluções de
politica legislativa, portanto ainda em estádio anterior à positivação da norma. No
sentido acabado de expor, cfr. EDOARDO VITTA, ob. cit., pp. 207 e segs., segundo
o qual as normas de conflitos do DIP italiano conferem uma perfeita igualdade entre
o direito estrangeiro e a lex fori, dando poucos tratamentos preferenciais a esta lei;
MAGALHÃES COLLAÇO, in Da Qualificação…, cit. pp. 27.
163 Sobre o ónus da prova do direito estrangeiro, cfr. CYRILLE DAVID, ob. cit. pp. 143 e
segs.
164 GIAN ANTONIO MICHELI, in L’onere della prova, Padova, 1942, pp. 125 e segs. Cfr.
igualmente ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil anotado, vol. III, 4ª edição,
Coimbra, 1985, pp. 307; RICARDO MONACO, in Efficacia della legge nello spazio, Torino,
1954, pp. 93. Segundo este autor as partes não estão sujeitas a um ónus da prova em
sentido técnico, mas têm apenas um interesse a provar, enquanto se prestam a ajudar
o juiz na procura das disposições do direito estrangeiro. Ver igualmente neste sentido
DI VIGNANO, ob. cit. pp. 55.
165 In Do Conceito de Prova em Processo Civil, Lisboa, 1961, pp. 437 e segs.
166 O Prof. CASTRO MENDES não se ocupa desta temática a nível de investigação do
direito estrangeiro, mas do ponto de vista do chamado ónus processual, ob. loc. cit.
167 Do Conceito… cit. pp. 440.
e outros escritos jurídicos 87

de circunstâncias sobre a parte e sobre o juiz, e a actividade deste não


diminui nem neutraliza o papel daquela. Até porque, sendo actividades
concorrenciais, de mesmo sinal, uma não pode anular a outra, donde não
resulta qualquer compensação do encargo ou atenuação do ónus em que
o encargo se traduz. Apesar da sua concorrencialidade, estas actividades
paralelas não se imiscuem uma na outra, mas têm por elemento comum
prosseguir o escopo de fornecer ao tribunal a lei reguladora do caso sub ju-
dice. Alcançado esse escopo, seja pela actividade da parte, seja por esforço
do tribunal, prosseguiu-se a finalidade pretendida pela norma. Mas se o
tribunal, em virtude da facilidade de meios, se adiantar à acção da parte e
obtiver o conhecimento da norma em primeiro lugar, opera-se a ineficácia
do encargo, em virtude da sua inutilidade, mas nunca a sua compensação
ou atenuação. Neste caso, quase daríamos razão ao Prof. CASTRO MEN-
DES, mas ineficácia não é inexistência. Todavia, se o tribunal, apesar de
todo o esforço desenvolvido, não chegar, nem ele nem a parte, a obter o co-
nhecimento da norma, esta sofre necessariamente as consequências desse
desconhecimento. O ónus da prova opera-se em absoluto, não obstante a
acção do tribunal. Ora, não parece razoável que na construção dogmática
do ónus da prova, na perspectiva do direito estrangeiro, se chegue umas
vezes à conclusão da sua existência, outras vezes à conclusão da sua ine-
xistência, consoante o tribunal logre ou não o respectivo conhecimento.
Em nosso ponto de vista o ónus existe sempre. Pode é acontecer
que a actividade oficiosa do tribunal o torne inoperante e, em consequên-
cia, ineficaz168.
Esta solução parece ser a que resulta do art. 348º do CC.

4. O PRINCIPIO DA LEX FORI

Feita a remissão para o direito estrangeiro, devemos estabelecer li-


mitações. Nem todo o direito estrangeiro é susceptível de aplicação, maxi-
me as regras do processo. É unânime a tese segundo a qual a norma pro-
cessual169 se rege pelo princípio da lex fori. É um princípio antigo que tem

168 Em apoio deste ponto de vista cremos poder invocar a opinião de GIOVANNI VERDE,
segundo a qual a actividade probatória da parte não condiciona a do juiz, nem em
sentido negativo (quando as partes não fornecem as provas, nem procuram fornecê-
las, o juiz pode providenciá-las ex oficio), nem em sentido positivo (a prova oferecida
pela parte e o seu acordo sobre o conteúdo da norma não exime o juiz do dever de
controlá-la) (ob. cit. pp. 623).
169 Alguns autores falam em “competência dos tribunais e a forma do processo” –
ALBERTO DOS REIS, Processo Ordinário e Sumário, vol. 1º, 2ª edição, Coimbra, 1928,
pp. 41; outros apenas em “forma do processo – MACHADO VILELLA, Tratado… pp.
88 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

a sua sede nas doutrinas estatutárias da idade Média170 que nos legaram
a conhecida distinção entre a litis ordinatio e a litis decisio. Como obser-
vam alguns autores171, o princípio foi objecto de acolhimento em algumas
legislações nacionais, nomeadamente no Código Civil italiano de 1865 (Tit.
Prel. Art. 10º), no Código Civil brasileiro de 1916 (intr. art. 15º), no Código
Bustamante de 1928 (art. 314º), no Código Civil italiano de 1942, (art. 27º) e
bem assim em alguns tratados internacionais, nomeadamente o Tratado de
Montevideo, de 11 de Janeiro de 1889, sobre processo civil, a Convenção de
Haia relativa ao processo civil, assinada a 17 de Junho de 1905 e a Conven-
ção Relativa ao Processo civil, concluída em Haia a 01.03.1954172, que visou

209; e outros ainda simplesmente em “lei processual” – ANSELMO DE CASTRO,


in Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, Coimbra, 1981, pp. 74, ou no plural, “
leis processuais” – MANUEL DE ANDRADE, in Noções…, pp. 52; e outros ainda em
“Direito Processual” – WERNER GOLDSCHMIDT, in Derecho Internacional Privado,
Alberti, 1970, pp. 441. Preferimos utilizar a expressão norma processual por nos
parecer mais adequada ao tema em análise.
170 Segundo AMILCAR DE CASTRO (in Direito Internacional privado, 3ª edição, Rio de
Janeiro, 1977, pp. 587), citando GUTZWILIER, a enunciação do princípio parece ter
sido feita desde o sec. XIII por BALDUINI (JACOBUS BALDUINUS) que advogou a
aplicação da lex fori a todas as normas processuais, sem distinção das partes litigantes,
podendo as questões de fundo ser regidas por outro direito. Ver igualmente e no
mesmo sentido GOLDSCHMIDT, Sistema…, pp. 51. O princípio pode considerar-se
universal. Cfr. relativamente a Portugal: ALBERTO DOS REIS, Processo Ordinário e
Sumário…, pp. 41 e 42; Inglaterra: J.H.C.MORRIS, Dicey and Morris in Conflict of Law,
2º Vol., Londres, 1980, pp. 1175; Escócia: E.A.ANTON, ob. cit. pp. 541 e 542; Itália:
GIULIO DIENA, Principi di Diritto Internazionale, parte segundo, 2ª edição, Milão-
Roma-Napoli, pp. 391; Argentina: WERNER GOLDSCHMIDT, in Derecho Internacional
Privado, Alberti, Setembro de 1970, pp. 441; Espanha: JULIAN G. VERPLAETSE,
in Derecho Internacional Privado, Madrid, 1954, pp. 633; Canadá: JONH DELATRE
FALCONBRIDGE, in Essays on the Conflict of Law, 2ª edição., Canadá, 1954, pp. 302;
Estados Unidos da América: HERBERT F. GOODRICH, in Handsbook of the Conflict of
Law, 3ª edição., pp. 227; França: F. SURVILLE in Cour elementaire de Droit International
Privé, Paris, 1925, pp. 660; Países Socialistas: FRANCO FLORIO, ob. cit. pp. 161; Países
Escandinavos: LARS WELAMSON, in Conflicto of law in the field of evidence according
to scandinavian law, in Atti del III Congresso Internazionale di Diritto Processuale Civile
(Veneza, 12 a 15 de Abril de 1962), Milano, 1969, pp. 89.
171 Entre os quais MACHADO VILELLA, ob. cit. pp. 210; ALBERTO DOS REIS, Processo
Ordinário…, pp. 41, nota 3; GOLDSCHMIDT, Derecho… pp. 441; Sistema …, pp. 5 e segs.;
AMILCAR DE CASTRO, ob.cit. pp. 587; ISTVAN SZASZY, in Private International Law
in the European People’s democracies, Budapeste, 1964, pp. 156.
172 Sobre a situação jurídica desses tratados, cfr. FERRER CORREIA e F.A.PINTO, in
Direito Internacional Privado, Leis e Projectos de Leis, Convenções Internacionais, Coimbra,
1988, pp. 586, nota 4. Segundo estes autores, a Convenção de Haia só vigora actualmente
em relação à Islândia que não se tornou parte na Convenção de Haia de 01.03.1954.
Sobre a situação jurídica desta última convenção ver os autores citados, pp. 595. A
18 de Março de 1970 foi celebrada, por iniciativa dos EUA uma nova Convenção em
e outros escritos jurídicos 89

substituir a Convenção de 190 para os estados que a ratificaram.


Segundo ANSELMO DE CASTRO, o princípio da lex fori não se en-
contra formulado em termos gerais no CPC português, mas decorre com
segurança dos arts. 49º, 65º, 1094º, 1096º e 187, nº 2, todos do CPC173.
A justificação do princípio está no carácter público das normas pro-
cessuais174, mas invoca-se igualmente a natureza instrumental do proces-
so175 e o princípio da igualdade das partes, nacionais ou estrangeiras, pe-
rante o tribunal176. CHESHIRE adiciona ainda um argumento de natureza
prática, considerando que o processo é a parte mais técnica de todos os
sistemas legais, cujas regras seriam ininteligíveis para um juiz estrangeiro

Haia que visou actualizar e alargar o âmbito subjectivo da Convenção de 1954. Esta
Convenção encontra-se em vigor na ordem jurídica portuguesa. Cfr. a este respeito
FERRER CORREIA e A. PINTO, ob. cit, pp. 616. Para uma análise desta Convenção ver
LUIGI FUMAGALLI in Problemi di Conflito tra Convenzione dell’Aja del 18 de Marzo 1970
e leggo locale: il caso aerospatiale” – Riv. dir. int.priv. e proc. ano XXIII, nº 4, Out.-Dez.,
1987, pp. 709 e segs.
173 Ob. cit. vol. i, Pp. 75.
174 Neste sentido, GOLDSCHMIDT, Derecho…, pp. 441; CHESHIRE, in Private International
Law, Oxford, 1958, pp. 649; MANUEL DE ANDRADE, segundo o qual o interesse
público é o interesse dominante no processo (Noções… pp. 52) e ainda CHIOVENDA,
para quem a lei processual pertence ao direito público porque regula mais ou menos
imediatamente uma actividade pública, mas tem uma posição especial que deriva da
intercomunicação contínua entre o interesse público e o interesse privado (Instituzioni
di Diritto Processuale Civile, vol. I, Napoli, 1933, pp. 66). Embora os conceitos de
interesse público e ordem pública não sejam sinónimos, atente-se na observação
do Prof. ALBERTO DOS REIS (in Processo Ordinário… pp. 42), segundo a qual, se a
aplicação da lex fori se fazia a princípio a titulo de lei de ordem pública, a tendência
actual (1928) – o parêntese é nosso – é para considerar a lex fori como a lei normalmente
competente para estabelecer o regime internacional da acção judiciária. Cfr. igualmente
GOLDSCHMIDT, Sistema… pp. 8 e segs., que apesar de aceitar como válidos todos
estes fundamentos e bem assim o argumento de BUSTAMANTE, segundo o qual o
verdadeiro motivo da territorialidade está na ordem pública internacional, admite que
o fundamento essencial da aplicação da lex fori está no carácter fungível das formas
processuais. É a fungibilidade do processo que explica que cada tribunal aplique a
sua própria tramitação. Ver ainda WOLFF, Private International Law, 2ª edição, Oxford,
1950, pp. 226; E.A.ANTON, in Private International Law, Edinburgh, 1967, pp. 541.
175 MANUEL DE ANDRADE, Noções…, pp. 52.
176 Neste sentido CHESHIRE, Private…, 5ª edição, pp. 649 e 650, e ainda 6ª edição, pp.
581. Segundo este autor os litigantes estrangeiros não podem esperar ocupar perante
um tribunal inglês lugar diferente do dos litigantes nacionais. Cfr. igualmente SATTA,
in Diritto Processuale Civile, Padova, 1981, pp. 258; ELIO FAZZALARI (in Efficacia della
legge processuale nel tempo, Riv. Trim. Dir. e proc. civ. Dez. 1989, ano XLIII, nº 4, pp. 893)
que também invoca o principio em defesa da aplicação imediata da lei nova.
90 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

e certamente impraticáveis pela máquina judicial177.

5. EXCEPÇÕES E LIMITAÇÕES

Todavia, nem todos os autores estão de acordo com o carácter ab-


soluto do princípio da territorialidade das normas processuais, por isso
lhe apontam importantes excepções, sendo as mais relevantes as que de-
correm do art. 187º, nº 2 do CPC e a que diz respeito às normas sobre
a prova178. Segundo o Prof. ANSELMO DE CASTRO ao permitir que na
carta rogatória possam ser observadas determinadas formalidades que
não repugnem à lei portuguesa, o art. 187º, nº 2 abre uma clara excepção
ao princípio da territorialidade das normas processuais179, ponto de vista,
todavia, contestado pelo Prof. CASTRO MENDES no sentido de que o art.
187º, nº 2 apenas vem consentir que o tribunal aceda a praticar determina-
das formalidades180.
Importa questionar a validade destes pontos de vista, dado o seu
carácter contraditório, o que passa pela questão de saber qual a posição
relativa da norma processual do foro e da norma processual estrangei-

177 Ob. cit. pp. 550.


178 O Prof. CASTRO MENDES indica outras situações que poderiam constituir excepção
ao princípio da territorialidade das normas processuais, porém, para as combater,
pois, no seu ponto de vista, não há qualquer excepção decorrente da lei. Estas situações
seriam as resultantes do art. 36º do CC, que manda regular a forma da declaração
negocial pela lei aplicável à substância do negócio, dos arts. 25º e 1625º do mesmo
código e ainda do art. 225º da Concordata celebrada entre o Estado Português e a
Santa Sé. Se o Direito Canónico poderá ser entendido como uma excepção, caso seja
considerado direito estrangeiro, outro tanto não se poderá dizer dos demais casos.
No que respeita ao art. 36º, se à primeira vista parece preterir as normas processuais
portuguesas em favor das normas processuais estrangeiras, é de notar que se refere a
matéria de direito substantivo (formalidade ad substantiam). No sentido exposto ver
TITO BALARINO in Diritto Internazionale Privato, Padova, 1982, pp. 676 e 677. Trata-
se de direito probatório material a regular, em consequência, pela lex causae. Situação
semelhante se passa com o art. 25º do CC. Ao abrigo desta disposição a lei competente
para regular a capacidade é a lei pessoal, mas daqui não se pode concluir ser esta
mesma lei que regula a capacidade judiciária. Uma vez fixada a capacidade civil é
sempre a lei processual portuguesa (art. 9º do CPC) que se aplica (in Direito Processual
Civil, vol. I, pp. 196 a 201)
179 Ob. cit. vol. I, pp. 75 e segs. Esta opinião foi igualmente defendida por MANUEL DE
ANDRADE, Noções…, pp. 53, ideia que já vem de A.PILLET, que também defendeu a
opinião de que as cartas rogatórias constituem uma excepção ao princípio da lex fori,
(in Princípios de Derecho Internacional Privado (tradução espanhola), Tomo II, Madrid,
1923, pp. 321).
180 Direito Processual Civil, vol. I, pp. 204 e 205
e outros escritos jurídicos 91

ra na regulamentação das referidas formalidades. Se a formalidade cuja


observância é consentida acarreta a observância da norma processual es-
trangeira, traz como consequência o afastamento da norma processual do
foro que seria a normalmente competente. Esta afirmação só não será ver-
dadeira se a formalidade cuja observância é consentida ainda se realiza no
quadro do ordenamento jurídico português, mas não nos parece que seja
este o sentido da norma ao precaver-se contra as formalidades que repug-
nem a princípios de ordem pública do Estado Português. Daqui parece
resultar que a observância das referidas formalidades se realiza ainda no
quadro da norma processual estrangeira e não no da norma processual do
foro, pois de outro modo não se colocariam problemas de ordem pública.
Propendemo-nos pois pela opinião do Prof. ANSELMO DE CASTRO por
se nos afigurar mais de harmonia com a doutrina contida no art. 187º.

6. PRESUNÇÕES. SUA NATUREZA

Todavia, não partilhamos o ponto de vista deste autor no sentido


de considerar excepção ao princípio da territorialidade das normas pro-
cessuais as normas sobre prova, nomeadamente o ónus da prova e as
presunções181. Esta consideração aproxima-nos do ponto central do nosso
tema, a que dedicaremos nas páginas seguintes a atenção necessária. Mas
adiante-se desde já que esse ponto de vista contém uma petição de princí-
pio, qual seja a de que as normas sobre a prova são em regra de natureza
processual, com excepção das normas que regulam a admissibilidade e
o valor das provas, o ónus da prova e as presunções, sobre as quais in-
cide um certo reflexo material. Colocar, porém, o problema sob o ponto
de vista da natureza da norma sobre a prova, se material ou processual,
equivale a matar à partida qualquer hipótese de ela constituir excepção ao
princípio da territorialidade, pois, consoante a opção que se fizer por uma
ou por outra natureza, será esta ou aquela a lei aplicável, sem que se possa
falar de qualquer excepção.
É esta, aliás, a questão que nos ocupará de futuro – o da natureza
das normas sobre o ónus da prova.
Alguns autores afirmam a natureza material das normas relativas
às presunções, sem qualquer distinção182, mas não é liquido que todas as

181 Ob. cit. vol. I, pp. 76 e 77.


182 Este parece ser o ponto de vista de ANSELMO DE CASTRO, (ob. cit. vol. I, pp. 77).
Todavia, a pp. 72 deste manual o autor fala em presunções legais, donde se poderá
inferir que desenvolve todo o raciocínio sobre as presunções desta natureza. Mas
ainda que assim seja, e como veremos adiante, mesmo dentro das presunções legais a
doutrina estabelece distinções.
92 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

presunções revistam esta natureza. Tomaremos aqui como ponto de par-


tida a noção de presunções que nos é dada pelo art. 349º, do CC – ilações
que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto
desconhecido – e a sua classificação tradicional, aliás, resultante do texto
citado, presunções legais (juris et de jure e juris tantum) e presunções judi-
ciais – naturais ou de facto, também chamados praesuntiones hominis183, que
na doutrina anglo-saxónica têm os equivalentes presumptions of law (irre-
buttable presumptions of law e rebuttable presumptions of law) e presumptions
of fact. Quanto a estas últimas184, portanto as equivalentes às praesuntiones
hominis ou presunções naturais, entende SCOTT que devem ser reguladas
pela lex fori, dada a sua natureza processual185. Já no que concerne as ir-
rebuttable presumptions of law, as equivalentes às presunções juris et de jure
e as rebuttable presumptions of law, equivalentes às presunções juris tantum,
seriam reguladas pela lex causae, por integrarem o right e não o remedy186.
Diversa é a opinião de GOODRICH para quem a ordinary presumption, a
equivalente a rebuttable presumption de SCOTT, não tem natureza material
(is not a rule of substance), mas sim processual, por isso se regularia pela
lex fori187. Mas GOODRICH já concorda com SCOTT no sentido de que as
conclusive presumptions, as equivalentes às irrebuttable presumptions of law,
devem ser reguladas pela lex causae por se tratar de matter of substance e
não de matter of remedy.

183 Sobre a distinção entre preasumptio juris e a preasumptio hominis cfr. ROBERTO
REGGI, in Presunzioni (dir. rom.), Enc. Del Dir. vol. XXXV, pp. 257, para quem as
preasumptiones hominis são “mere argumentazioni vinculative soltanto per la loro forza
di virosimiglanza”, contrariamente às preasumptiones juris em que a autoridade para a
determinação do facto incerto decorre das normas jurídicas. Ver igualmente FRANCO
CORDOPATRI, in Presunzioni (dir. proc. civ.), Enc. Del Dir. vol. XXXV, pp. 296. Sobre a
distinção entre preasumptiones júris et de jure e preasumptiones juris tantum ver por todos
REGGI, ob. cit. pp. 256 e 260, que a faz nos termos tradicionais de admissão ou não de
prova em contrário. Para um desenho das principais construções doutrinárias sobre
presunções, ver JORGE FONSECA, in Prova por Presunções, Revista do Ministério da
justiça (caboverdiana), ano 9º, jan./jun., 1984, nº 22, pp. 122 e segs.
184 “That a man intends the natural consequences of his act”, conforme a definição de
SCOTT, Private International law, London, 1972, 327.
185 A esta conclusão poderia igualmente ter chegado ANSELMO DE CASTRO ao discorrer
sobre a aplicação no tempo das normas que respeitam ao direito probatório material,
onde estabeleceu a distinção entre as provas que se formam no próprio processo e as
demais provas, considerando que, quanto àquelas se aplica imediatamente a lei nova
(ob. cit. vol. I, pp. 65). Esta lógica deveria levar o autor a aplicar a lei nova às presunções
naturais e, do ponto de vista da aplicação da lei no espaço, a lex fori.
186 Ob. cit. pp. 327.
187 Handbook of the Conflict of Law, 4ª edição, pp. 150.
e outros escritos jurídicos 93

O ponto de divergência entre estes dois autores reside na natureza


da rebuttable presumption of law ou ordinary presumption (presunção sim-
ples), que na tese de SCOTT seria processual e na tese de GOODRICH
material.
A controvérsia sobre a natureza jurídica das presunções é bastante
antiga. Autores como STORY e ROLIN também se ocuparam desta maté-
ria, pronunciando-se STORY no sentido de que as presunções de facto de-
vem ser reguladas pela lex fori e remetendo as demais presunções para a
lex causae188. ROLLIN soluciona o problema por via indirecta: há-de ser a
lei que rege a relação sub judice que deverá regular igualmente a presun-
ção, mas admitia que a interpretação da presunção (saber por exemplo
se se trata de uma presunção juris et de jure ou juris tantum) cabe à lei em
virtude da qual a presunção é aplicada189.
Em Portugal ocupou-se desta questão MACHADO VILELLA que
emitiu o ponto de vista de que a presunção, seja legal (juris et de jure ou
juris tantum) ou judicial deve ser regulada pela lei que rege a obrigação a
provar – entenda-se lex causae – na medida em que a presunção envolve
uma dispensa de prova. Mas quanto às praesuntiones hominis admite que a
sua força probatória depende do prudente arbítrio do julgador190.
Não obstante esta divergência de opiniões sobre a natureza jurídica
das diversas classes de presunções, cremos ser dominante a doutrina no
sentido de que as presunções legais, sejam juris et de jure sejam juris tan-
tum, são de natureza material, pertencem, no dizer dos anglo-saxónicos ao
substantive law, e as presunções judiciais são de natureza processual, isto é,
constituem matters of procedure. Na verdade, mal se compreende que estas
presunções sejam separadas dos direitos subjectivos que visam acautelar,
afirmação que se nos afigura verdadeira, seja quanto às presunções juris
et de jure, seja quanto ás presunções juris tantum, que ao fundarem-se em
ilações da lei, realizam a mesma função que as presunções juris et de jure,
porém, com a diferença de que, neste caso, o legislador conhece a base da
presunção e fixa de forma irrefutável a ilação a seguir, e no segundo caso

188 JOSEPH STORY, LL.D., in Commentaries on the Conflict of Law,cit. 1883, pp. 851.
189 ALBERIC ROLIN, in Principies du Droit International Privé, Tomo III, Paris, 1897, pp. 50 e segs.
190 Ob. cit. Livro II, pp. 230 e 231. No mesmo sentido JULES VALERY (in Manuel de
Droit International Privé, Paris, 1914, pp. 753 e 754) que, sem operar qualquer distinção
entre presunções juris e presunções hominis, opina igualmente no sentido de que as
presunções devem reger-se pela lei que regula a substância da relação sub judice,
pois seria ilógico separar um direito das presunções instituídas a seu favor, ou pelo
contrário aplicar a um direito criado por uma lei estrangeira as presunções admitidas
pela lei francesa.
94 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

admite a verificação da base da presunção e fixa do mesmo modo a ilação


a seguir que poderá ser num sentido ou noutro, consoante se verifique ou
não a base da presunção. No primeiro caso o legislador toma como certa
e incontestável a verificação do facto conhecido, e no segundo caso adqui-
re como contingente essa mesma verificação, que poderá, apesar disso,
tornar-se incontestável mediante prova. Se tal acontecer a presunção juris
tantum realiza a mesma função que a presunção juris et de jure, pelo que-
devem partilhar da mesma natureza191.
Quanto às presunções hominis parece igualmente dominante a dou-
trina no sentido de que, por se fundarem em argumentos pessoais do juiz,
são de natureza processual, regendo-se por isso pela lex fori192.

191 Esta é igualmente a opinião de GOLDSCHMIDT, in Sistema…, pp. 19 e 20. Este ponto
de vista é igualmente defendido pelo autor em Derecho Internacional Privado, cit. pp.
442. A tese é partilhada por FOELIX, BROCHER, LAURENT, WEIS E VON BAR,
todos citados por GOLDSCHMIDT, in Sistema…, pp. 20. Cfr. também neste mesmo
sentido J. H. C. MORRIS in Dicey and Morris in Conflict of Law, que, seja na edição
de Londres de 1967, pp. 1100 a 1102, seja na edição de Londres, 1980, vol. 2º, pp.
1189 e 1190, defende o ponto de vista expresso, mas admite que é duvidoso que as
rebuttable presumptions tenham natureza material ou substancial. Concorda, contudo,
que, por estarem estritamente ligadas à existência de direitos substantivos devem ser
caracterizadas como rules of substance. Neste mesmo sentido, ver ainda ROBERT A
LEFLAR in American Conflicts Law, 1959, pp. 296 a 299; ANDRE HUET, ob. cit. pp. 82
e 83 e, sobretudo, 154 e segs. Neste sentido, se pronuncia também ROGER PERROT,
que advoga a aplicação da lex causae às presunções legais seja qual for a sua natureza,
pela razão de que ambas repousam em ilações da lei, ambas realizam uma deslocação
do objecto da prova e são postas por razões de natureza substantiva. A estas razões
teóricas acresce uma razão prática resultante do facto de a distinção entre as duas
modalidades de presunções legais ser bastante ténue na medida em que existe entre
elas as chamadas presunções relativa que, embora admitindo prova contrária, não
podem ser abaladas senão em determinados casos e mediante certos meios de prova
(in Le regime des Preuves en Droit International Preive Français, Atti del III Congresso
Internazionale di Diritto Processuale Civile (Veneza, 12 a 15 de Abril, 1962), Milão, 1969, 19
e 20 a 22). Ver igualmente BAPTISTA MACHADO, in Sobre a aplicação no tempo do novo
Código Civil, Coimbra, 1968, pp. 274, que, raciocinando sobre a aplicação no tempo das
normas sobre a prova admite, com RUBIER e LEVEL, que as presunções legais, sejam
juris et de júris, sejam juris tantum, se regulam pela lei vigente ao tempo da verificação
dos actos ou factos aos quais vão ligadas, estabelecendo, contudo, relativamente às
presunções legais (simples) uma ressalva quando se refiram a pressupostos de uma
situação jurídica inteiramente nova, que – deixa implícito – se regem pela lei nova. Na
lógica deste entendimento cremos poder admitir ser o ponto de vista do autor a tese da
natureza material das presunções legais e, em consequência, no plano da eficácia das
leis no espaço, a da aplicação da lex causae.
192 Em sentido contrário, cfr. GUILIO DIENA que se insurge contra a distinção entre
praesuntiones juris e praesuntiones hominis para efeitos de determinação da lei que
rege intrinsecamente a relação jurídica a que a prova se refere (in Principi di Dirito
Internazionale, 2ª edição, Milão-Roma-Napoli, pp. 403.) e também BROCHER, citado
por ANDRE HUET, ob. cit. pp. 82, nota 28. Este autor pode ter alterado o seu ponto de
e outros escritos jurídicos 95

7. O ÓNUS DA PROVA

Uma outra excepção ao princípio da aplicação territorial das nor-


mas processuais encontraria a sua expressão nas regras sobre o ónus da
prova, mas quanto a este ponto – o seu carácter excepcional – valem as
considerações feitas sobre a eventual excepcionalidade das normas sobre
as presunções, ou seja e em síntese, só seria legitimo questionar sobre o
seu carácter excepcional, se fosse definitivamente incontestável a nature-
za processual das normas sobre a prova, como não parece fazer sentido
admitir ou questionar sequer a sua excepcionalidade uma vez decidida
pela sua natureza material. Como já se referiu não é nem liquida nem
fácil, como demonstraremos, a decisão num ou noutro sentido. Daí que a
questão que nos ocupará daqui em diante será exactamente o problema
da natureza jurídica das normas sobre o ónus da prova, exaustivamente
debatida pela doutrina no quadro da problemática da natureza jurídica
das normas sobre a prova ou – se quisermos recuar um pouco mais – no
quadro da distinção entre normas processuais e normas substantivas, que,
em direito internacional privado, se traduz no problema da qualificação.
Indagar, pois, sobre a natureza jurídica das normas sobre o ónus da
prova pressupõe duas ordens de recuo: distinção entre normas substanti-
vas e normas processuais; conhecimento da natureza jurídica das normas
sobre a prova.

8. DISTINÇÃO ENTRE NORMAS SUBSTANTIVAS E NORMAS


PROCESSUAIS

Uma matéria normalmente omissa nos manuais de introdução ao


estudo do direito é a classificação que distingue as normas jurídicas em
substantivas e processuais193. É particularmente no domínio do Direito In-

vista, na medida em que é apontado por GOLDSCHMIDT como um dos defensores


da tese dominante. Cfr. igualmente R.H.GRAVERSON, in Conflict of Law, Private
International Law, 6ª edição, Londres, 1974, pp. 602, no sentido de que as presunções,
sejam legais, sejam judiciais, são geralmente reguladas pela lex fori.
193 O Prof. MENEZES CORDEIRO, in Norma Jurídica, Enc. Polis, vol. IV, cols. 669 e segs,
adopta a classificação de normas primárias e secundárias (cols. 673 e 674), distinguindo
estas entre normas de reconhecimento, as que permitem identificar certas regras
primárias como pertencentes a um dado ordenamento jurídico; de modificação, as que
atribuem competência para alterar normas primárias; e de decisão, as que atribuem
competência para aplicar normas primárias. Esta classificação parece corresponder à
distinção de BEALE entre primary e secondary right, sob a qual este autor analisa toda a
problemática da separação entre normas substantivas e processuais (cfr. GOODRICH,
ob. cit. pp. 143, nota 3). Com efeito, o processo é dominado essencialmente por
96 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

ternacional Privado que a matéria tem sido estudada, mas não tem faltado
quem se interrogue sobre as razões deste proceder194, pois a questão inte-
ressa, como ficou demonstrado, não apenas ao DIP, mas também a toda
a problemática da aplicação das leis no tempo. Daí que também é usual
cuidarem os processualistas desta matéria, como teremos oportunidade
de verificar nas páginas que se seguem.
Uma doutrina de relevante importância sobre a distinção entre
normas substantivas e normas processuais tem sido desenvolvida pelos
anglo-saxónicos, dentro da qual cremos poder operar a separação entre
aqueles autores que defendem um critério prático de distinção entre as
duas classes de normas – estes são em maioria; aqueles que optam por
um critério teórico a partir do qual estabelecem a distinção em causa; e
por fim aqueles que opinam por uma posição negativa, considerando des-
necessária a distinção. Esta classificação que acabámos de propor pode
ser mesmo considerada a postura da doutrina em geral relativamente à
problemática da distinção entre normas substantivas e normas processu-
ais, a que cabe acrescentar uma outra que poderíamos chamar eclética ou
híbrida, que partindo de um critério teórico, admite todavia a existência
de uma zona cinzenta onde seria difícil ou até impossível a distinção.
Vamos passar em revista estas diversas posições doutrinárias que
para facilidade de compreensão chamaremos a) critério negativista; b) cri-
tério prático; c) critério teórico.

a) Critério negativista.

São hoje em número considerável aqueles que propõem o aban-


dono da distinção entre normas substantivas e processuais não só pela
dificuldade que suscita, mas também porque se admite que as normas
ditas substantivas adquirem natureza processual, quando encaradas sob

normas secundárias, também chamadas normas de estrutura, de organização ou de


competência (cfr. NORBERTO BOBIO, in norma giuridica, Novíssimo Digesto Italiano,
vol. XI, pp. 336), ou normas sobre normas, na construção de GIERKER ZELLER
(retchsanwendungbarkeitsretch), cit. por MICHELI, ob. cit. pp. 181, nota 2.
194 Cfr. ANDRE HUET, ob. cit. pp. 14, que coloca a questão no plano das chamadas
qualificações primárias. Alguns autores como CHESHIRE questionam por que razão a
distinção entre normas substantivas e normas processuais deve ser feita no âmbito do
DIP, questão que é pertinente, na medida em que, como já vimos, a sua importância
não se coloca só no plano do DIP, mas também no domínio da aplicação das normas no
tempo (cfr. a este respeito BAPTISTA MACHADO, in Sobre a aplicação no tempo…, pp.
20 e 21, 273 e segs. e 312. Sobre as qualificações primárias e numa perspectiva critica
cfr. FERRER CORRIA, in Direito Internacional privado – Alguns Problemas, cit. pp. 160 e
segs.
e outros escritos jurídicos 97

o ponto de vista judicial195.


Na linha deste entendimento parecem situarem-se autores como
TABORDA FERREIRA e F.RIGAUX196 que opinam no sentido da desne-
cessidade de se questionar a natureza jurídica das regras sobre a prova
com o argumento de que tal indagação releva mais do gosto pelos con-
ceitos, impede medir a exacta delimitação dos interesses em presença e
descamba em conflitos doutrinários destituídos de interesse197.
A tese é, porém, combatida por HUET que considera a qualificação
de importância capital, na medida em que da sua natureza substantiva
ou processual resulta a sua adstrição a esta ou aquela norma jurídica198.
Parece-nos procedente a crítica de HUET. Não questionar a natureza jurí-
dica das normas sobre a prova equivale a não ter posição relativamente a
problemas fundamentais não só respeitantes à aplicação da lei no espaço,
como aquele que de momento nos ocupa, mas também relativamente à
aplicação da lei no tempo.

b) Critério prático.

Na doutrina anglo-saxónica é dominante a tese que defende a dis-


tinção entre matters of substance e matters of procedure conforme as conveni-
ências do tribunal – “according the convinience of the court”199. Por isso,
a quase generalidade dos autores anglo-saxónicos não se mostra preocu-
pada com a enunciação de um critério teórico que permita distinguir as
duas classes de normas. Dado o carácter essencialmente prático do crité-
rio estes autores apresentam uma lista das matters of procedure – entre as
quais enumeram as de natureza controversa: burden of proof; presuntions
– ficando determinadas as matters of substance por exclusão de partes200.
Todavia, esta solução implica nas situações de fronteira, como são
os casos do burden of proof e das presuntions, o recurso a um critério teórico

195 Ver neste sentido FRANK, cit. por DENTI, ob. cit. pp. 168; CHAMBERLAYN e
MORGAN, cits. por GOODRICH, ob. cit. pp. 142, nota 1, e 143, nota 5; Cook, cit. por
GOLDSCHMIDT, sistema…, pp. 51, além do próprio DENTI, ob. loc. cit.
196 In Vers la solution du probléme de qualifications, e tb F.RIGAUX, ambos citados por
ANDRÉ HUET in Conflits de lois em matiére de preuve, cit. pp. 13.
197 F.RIGAUX, cit. por HUET, ob. loc. cit. pp. 13.
198 Ob.loc.cit.
199 Neste sentido, GOODRICH, Handbook…, pp. 142.
200 Cfr. a este propósito, CHESHIRE, ob. cit. pp. 585 e segs; GRAVESON, Private…, pp.
594 e segs; ROBERT A.LEFLAR, ob. cit. pp. 109 e segs; MORRIS, ob. cit. pp. 1089 e
segs.
98 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

(ainda que subjacente) para determinar a natureza jurídica destes institu-


tos.
Um pequeno recuo até às presunções permite-nos determinar qual
tem sido esse critério.
Como ficou demonstrado, há três posições na doutrina anglo-saxó-
nica sobre o tratamento doutrinário da natureza jurídica das presunções.
Alguns autores defendem, sem distinção, a sua natureza material, por
isso consideram-nas regidas pela lex causae. Outros admitem que só as
presunções legais têm essa natureza e não já as presunções judiciais (prae-
suntiones hominis). Outros ainda entendem que só as legais iuris et de iuris
têm natureza material, e as iuris tantum e as presunções judiciais natureza
processual. Porque a segunda tese é dominante, vamos partir dela para
determinar o critério subjacente. Quanto às presunções legais admite-se
que estão estreitamente ligadas aos direitos subjectivos que visam acaute-
lar, por isso partilham da natureza destes. Quanto às presunções hominis,
por se tratarem de ilações do julgador, revestem natureza processual.
O critério subjacente é, portanto, misto - atribuição de direitos sub-
jectivos; formação de prova no processo – mas que poderá reconduzir-se
ao critério único de atribuição ou não de direitos subjectivos. Substantive
Law é, portanto, matéria adstrita ao right e procedure ao remedy. É este o
critério subjacente que afinal de contas preside a toda a distinção entre
normas substantivas e normas processuais, solução que não difere em
muito menor grau daquela que procura partir de um critério previamente
enunciado, como estudaremos na alínea seguinte.
Dentro desta orientação se situa ainda um critério formulado pela
jurisprudência americana caracterizada de outcome test, o qual resultou
da necessidade de impedir o forum shopping por parte dos litigantes, ten-
do em conta o principio já referido de que, nas situações inter locais, são
aplicadas as normas substantivas dos estados membros e as normas pro-
cessuais da federação. Segundo este critério, formulado numa decisão do
Supremo Tribunal dos Estados Unidos em 1945, à norma deve ser atribuí-
da natureza substantiva ou processual consoante o seu grau de influência
no resultado da decisão201.
Um critério prático – que corresponde a uma situação de verdadeira
ausência de critério – é igualmente seguido pela generalidade dos países
ditos socialistas, em que a distinção entre normas substantivas e normas
processuais é absolutamente irrelevante. Nestes países a remissão para o
direito estrangeiro recebe igualmente as normas de natureza processual
a que é dado o mesmo tratamento das normas substantivas, em virtude

201 Cit. por DENTI, ob. loc. cit.


e outros escritos jurídicos 99

da dificuldade em se distinguir estes dois aspectos em matérias como a


capacidade, tutela, prescrição202.
Um critério prático corresponde ainda a uma técnica unanimemente
condenada que consiste em caracterizar como normas processuais aque-
las constantes do CPC e normas materiais ou substantivas aquelas que
figuram no CC203. Este critério sistemático é combatido pela doutrina204,
por levar a soluções inextrincáveis e ilógicas205 e por ser comum a presen-
ça de normas processuais contidas em fontes de natureza material206. Daí
a necessidade de indagar para cada norma o seu verdadeiro significado,
independentemente da sua colocação em um ou outro código207.

c) Critério teórico.

Um considerável número de autores fundamenta num critério


teórico a distinção entre normas substantivas e normas processuais. As-
sim procede SCOTT que não obstante considerar que a substantive law se
esconde (is secreted) nos interstícios do processo, admite que as normas
substantiva regulam a existência e a natureza dos direitos subjectivos e as
normas processuais os actos necessários à sua realização208. Esta é igual-
mente a posição de GOLDSCHMIDT que, partindo da divisão estatutária
entre normas da ordinatoriae litis e normas da decisoriae litis, admite que
processo é apenas o procedimental, ou seja, o que na Idade Média se cha-
mava ordinatoriae litis. Tudo o mais pertence ao direito material (direito

202 Para maiores desenvolvimentos, cfr. FRANCO FIORO in La Codificazione del Diritto
Internazionale Privato e Processuale in Cecoslocacchia, Milão, 1967, pp. 160 e segs.
203 Neste sentido FRAGISTAS e ESPERSON, ambos citados por HUET, ob. cit. pp. 15,
nota 11. Esta parece ser igualmente a posição de JULIAN VERPLAETSE, que opina
pela impossibilidade de se traçar uma linha entre substância e processo, apenas factível
de um modo arbitrário, com referência ao propósito da norma (in Derecho Internacional
Privado, Madrid, 1954, pp. 632).
204 Assim, TULIO LIBEMAN, in Dir. Proc. Civ. Novíssimo Digesto Italiano, vol. V, pp.
1009; ANDRE HUET, ob. cit. pp. 16; LA CHINA, ob. cit. pp. 412; VAZ SERRA in Provas
(direito probatório material), BMJ, nº 110, pp. 66.
205 HUET, ob. cit. pp. 16
206 Neste sentido, LA CHINA, ob. cit. pp. 412. Cfr. igualmente VAZ SERRA ob. cit., pp.
66, que observa que em Portugal o regime material das provas se encontra parte no
Código Civil, parte no Código de Processo Civil e parte no Código de Notariado, sem
contar – acrescentamos nós – com a imensidão de leis avulsas que amiúde contêm
normas disciplinadoras da matéria relativa à prova.
207 TULIO, ob. loc. cit.
208 Private International law, Londres, 1972, pp. 325.
100 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

judicial material)209.
O critério de GOLDSCHMIDT reconduz-se, pois, funcionalmente,
à noção tradicional de processo como sequência de actos210 ou como con-
junto de actos que hão-de praticar-se em juízo na propositura e desenvol-
vimento da acção211. Com efeito, se o processo é uma sequência de actos,
por extrapolação deve concluir-se que a norma processual é aquela que se
destina a regular os actos processuais, mas esta solução, se é parcialmen-
te válida, revela-se em contrapartida insuficiente para caracterizar todas
as normas de natureza processual. Certamente por isso GOLDSCHMIDT
tem necessidade de introduzir uma correcção no seu critério, consideran-
do de natureza material as normas dirigidas ao juiz sobre o conteúdo e
administração da sentença.
Em critica não especificamente dirigida a GOLDSCHMIDT, LA
CHINA pronuncia-se desfavorável a este entendimento, por inexacto e re-
dutível do processo a uma sequência de actos. Para este autor não apenas
as normas que regulam uma sequência de actos têm natureza processual,
mas também todas aquelas que disciplinam a capacidade, a representa-
ção, a legitimidade processual, o litisconsórcio, a competência, o titulo
executivo, as intervenções processuais212, enfim, normas que regulam não
apenas os actos das partes mas também os pressupostos da sua presença
em juízo, a competência e os actos dos tribunais.
Mas se é verdade que o processo não se traduz apenas numa se-
quência de actos, questionamos se para o efeito que temos em vista, ou
seja, a aplicação da norma processual no espaço, não devemos partir do
critério goldschmidtiano, na linha, aliás, do que aconselha o próprio LA
CHINA, como forma de não se perder na análise.
Uma outra proposta da doutrina sobre a distinção entre normas
substantivas e normas processuais é a que nos é apresentada por ALO-
RIO213 que define as normas de direito substancial como aquelas “che se

209 In Derecho…, pp. 441 e 442. Na linha deste entendimento cfr. igualmente BAPTISTA
MACHADO, Sobre a aplicação no tempo…, pp. 273.
210 C. MENDES, Direito processual…, pp. 39.
211 MANUEL DE ANDRADE, ob. cit. pp. 13.
212 Ob. cit. pp. 412. Infrutuoso è poi – explica – ragionare sulla processualitá in se, quasi
metafísica natura della norma, isolabile e perceptibile per assenza di riferimenti e colegamenti
concreti e normativi.
213 Não tivemos acesso directo à doutrina deste autor exposta na sua obra Per una teoria
dell’oggetto dell’acertamento judiciale in Jus, 1955. A sua tese é-nos apresentada em
segunda mão por VITTORIO DENTI, ob. cit. pp. 165 e segs.
e outros escritos jurídicos 101

referiscono a situazione giuridiche idonee a formare oggetto autónomo di un autó-


nomo processo de accertamento” e normas de direito processual como “quelle
che governano situazioni relevanti nel corso del processo”214.
A importância e o interesse da proposta de ALORIO é a de que a
posição jurídica subjectiva que decorre da norma substantiva pode apare-
cer filtrada no processo, daí a afirmação deste autor no sentido de que na
distinção entre estes dois tipos de normas o ângulo visual do juiz é deci-
sivo215. A proposta tem ainda interesse pela circunstância de deixar claro
que normas aparentemente processuais escondem disposições de nature-
za substantiva. Por isso, questionamos, desde já, se a separação entre estes
dois tipos de normas não escapa à utilização de um critério teórico, se não
se justificará uma análise caso a caso.
Porém, a proposta de ALORIO quando submetida a verificação não
escapa à generalidade das criticas com que se confrontam os demais cri-
térios. Nomeadamente, não nos resolve a questão de saber se as normas
sobre prova são de natureza substantiva ou processual, ou, na formula-
ção deste autor, se constituem ou não objecto autónomo de um autónomo
processo judicial. A mesma dúvida é-lhe colocada por DENTI relativa-
mente ao poder de deduzir a extinção de um crédito por compensação ou
a excepção de prescrição216.

d) O caso particular das normas sobre prova.

As normas sobre prova constituem o banco de ensaio de toda a


problemática da distinção entre as normas substantivas e processuais. É
na verdade sobre esta classe de normas que se suscitam as maiores dú-
vidas quanto à sua inclusão em uma ou outra categoria. As dificuldades
resultantes desta indagação são de tal modo grandes que não tem faltado
quem proponha seriamente o seu abandono, ou opine em sentido negati-
vo, considerando a indagação como um exercício puramente intelectual,
desprovido de interesse prático.
Um certo sector da doutrina anglo americana julgou poder solucio-
nar o problema afirmando peremptoriamente que tudo o que respeita à
prova (evidence) tem natureza processual217, por isso, do ponto de vista da

214 Cit. por DENTI, ob. cit. pp. 160.


215 Cit. por DENTI, ob. cit. pp. 161.
216 DENTI, ob. loc. cit.
217 Esta é, aliás, a tese dominante na doutrina anglo – saxónica, o que, no dizer de CLAUDIA
MORVIDUCCI, é compreensível se se tiver presente o papel activo historicamente
102 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

sua aplicação no espaço, seria regulado pela lex fori, mas a jurisprudência
veio demonstrar que o problema não podia ser assim simplificado, como
viria a revelar-se a aplicação das normas sobre o ónus da prova, as pre-
sunções legais juris tantum e as presunções hominis.
Cremos todavia que a maior parte da doutrina faz hoje a distin-
ção entre um direito probatório formal e um direito probatório material, sendo
direito probatório formal o que corresponde a ordinatiriae litis e direito
probatório material o que corresponde a decisoriae litis218. Quanto ao di-
reito probatório formal os autores são concordes em afirmar a sua natu-
reza processual e vice-versa no que respeita ao direito probatório mate-
rial. Deve, porém, notar-se que estes conceitos não são mais do que um
modo diferente de exprimir a separação entre normas substantivas e normas
processuais, pelo que falar-se em normas da ordinatoriae litis e normas da
decisoriae litis, ou em normas substantivas e normas processuais, em right
e remedy, ou ainda em direito probatório material e direito probatório formal,
não altera os dados do problema, na medida em que sempre se colocará
a questão de saber se determinados institutos como o ónus da prova se
integram em um ou outro dos termos da dicotomia.
Como já foi referido, em Inglaterra as provas pertencem a um ramo
do direito que não é nem substantivo nem processual, solução que, con-
tudo, não dispensou a busca de um critério de separação entre o right e o
remedy, nem matou a controvérsia sobre a natureza jurídica das normas
sobre a prova. O mesmo se dirá da construção goldschmidtiana – direito
judicial material (materielles justizrecht)219 – que, se levantou a questão da
autonomia sistemática do direito probatório relativamente a outros ramos
de direito, aliás, aplaudida por alguns autores220, nenhuma contribuição
trouxe para a solução do problema da natureza jurídica das normas sobre
prova, tanto assim que aqueles autores que reconhecem em GOLDSCH-

desempenhado pelo juiz e pelo júri na procura da verdade, contrariamente ao que


acontece no direito continental que privilegia o sistema legal de provas ( in Provas (dir.
int. priv.), Enc. Del Dir., vol. XXXVII, pp. 697, nota 10.).
218 Cfr. BAPTISTA MACHADO, Sobre a aplicação no tempo…, ps 273. Segundo este autor
pertencem ao direito probatório formal as leis que regulam a forma de peritagem, do
inquérito judicial, do interrogatório sobre os factos ou de qualquer procedimento deste
género. Ver ainda MANUEL DE ANDRADE, ob. cit. pp. 47; ANSELMO DE CASTRO,
ob. cit. vol. I, pp. 65.
219 JAMMES GOLDSCHMIDT, citado por MICHELI, ob. cit. pp. 186. ANSELMO DE
CASTRO traduz a expressão por “direito material de justiça” (ob. cit. vol. I, pp. 70)
e WERNER GOLDSCHMIDT por “derecho justicial material” (Sistema… pp. 9; e
Derecho… pp. 441).
220 Cfr. neste sentido ANSELMO DE CASTRO, ob. cit. vol. I, pp. 69; e WERNER, Derecho…
pp. 441.
e outros escritos jurídicos 103

MIDT a virtude de ter colocado o direito probatório no seu devido lugar,


não deixam de recorrer a critérios tradicionais para resolver o problema
da natureza jurídica da prova. Aliás, ao estabelecer GOLDSCHMIDT a
distinção entre um direito judicial material e um direito judicial formal eterni-
zou o problema da natureza jurídica das normas sobre prova.

e) Posição adoptada.

A primeira posição a adoptar nesta matéria deve consistir em as-


sumir a dificuldade unanimemente reconhecida quanto à distinção entre
normas substantivas e processuais. Com efeito, se em algumas situações a
distinção é clara, noutras ela afigura-se-nos nebulosa ou mesmo conflitu-
al, retratando o carácter híbrido do fim do processo civil que visa não ape-
nas a satisfação do interesse público à paz social, mas também a satisfação
de interesses particulares. Variadas situações foram referidas ao longo do
texto em que esse carácter híbrido se manifestou, como é a prescrição, a
citação, a capacidade, o ónus da prova que estudaremos a seguir. Mas
outras situações, como será o caso do próprio direito à acção, nos ajudam
a compreender o alcance da dificuldade. Se questionarmos quanto a este
direito a sua natureza, se substancial ou processual, temos que optar ne-
cessariamente pelo seu carácter híbrido, pois será substancial na medida
em que confere àquele que pretende fazer valer um seu direito em juízo,
um verdadeiro direito subjectivo a agir, mas será também processual, na
medida em que estabelece se quisermos o primeiro acto de toda uma sé-
rie de actos destinados a fazer valer um certo direito em juízo. O direito
à acção é assim não apenas um direito subjectivo a intentar a acção, mas
também o direito a praticar o primeiro acto destinado a fazer valer o di-
reito primário em juízo221. Concilia, portanto, uma norma da ordinatoriae
litis e uma norma da decisoriae litis, suscitando relevantes problemas de
aplicação no espaço.
Assim, pode acontecer que um certo ordenamento jurídico reco-
nheça o direito à acção em determinadas situações e este mesmo direito

221 No mesmo sentido SATTA, ob. cit. pp. 258 e 259, para quem a acção tem um carácter
substancial por isso se rege pela lei reguladora da relação sub judice, mas admite que
a questão de fazer valer a acção em juízo tem sempre um conteúdo processual, por
isso deve ser regulada pela lei do processo, isto é, as condições de exercício da acção
regulam-se pela lei do processo. Uma similitude deste entendimento poderá encontrar-
se em CASTRO MENDES, Direito Processual…, pp. 197. Cf. igualmente CHIOVENDA,
Institutioni…pp. 65. LA CHINA também se interroga sobre se a norma que limita a
acção do Ministério Público só aos casos previstos na lei é de natureza processual ou
substancial, para demonstrar como “il giuoco delle sfumature e degli entrecci e abbastanza
complesso” (ob. cit. pp. 412).
104 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

não ser reconhecido pelo ordenamento jurídico onde a questão é posta ou


vice-versa. O problema tem-se colocado em ordens jurídicas como a ale-
mã que não reconhece à mulher casada o direito de litigar contra o marido
em assuntos patrimoniais222 e bem assim a respeito da acção por quebra
da promessa de casamento223, incumprimento de obrigações por jogos de
fortuna ou azar224 e ainda algumas situações em que certos ordenamentos
só admitem a acção se a relação material controvertida preencher deter-
minados requisitos225.
Raciocínio idêntico poderá ser feito relativamente a outros institu-
tos, como o ónus da prova ou a própria prescrição, sobre a qual não é
igualmente unânime a sua natureza.
Por estas razões tememos afirmar que a nossa posição será a de uti-
lizar a generalidade dos critérios propostos, pois se como afirma HUET a
matéria da prova e tópica há-de ser por este método que encontraremos o
caminho mais seguro para resolver as situações em que se mostra neces-
sário distinguir as normas substantivas das processuais.

9. NATUREZA JURÍDICA DO ÓNUS DA PROVA

Se as regras sobre a prova constituem o banco de ensaio de distinção


entre as normas substantivas e processuais, esta afirmação ganha particu-
lar significado quando somos confrontados com o problema da natureza
jurídica do ónus da prova. Como vimos, são hoje poucos os autores que
defendem que todas as normas sobre a prova têm natureza processual. O
caso mais controverso é precisamente representado pelas normas sobre as
presunções que estudamos no ponto 6. deste estudo e pelas normas sobre
o ónus da prova. Quanto à natureza destas normas têm sido apresentadas
três teses fundamentais que temos vindo a chamar tese da natureza pro-
cessual das normas sobre o ónus da prova; tese da natureza substantiva;
e uma terceira a que chamaríamos eclética, mas quanto a esta afastámo-la
desde já, na medida em que ao procurar conciliar num mesmo instituto
aspectos substantivos e processuais, inviabiliza todo o sentido pelo qual

222 Cfr. a este respeito GOLDSCHMIDT, Sistema… pp. 52. Segundo este autor também
o Estado de New Hampshire não permite à mulher accionar o marido. Para maiores
desenvolvimentos cfr. Restatement…, edição de 1934, pp. 724 e segs.
223 Ver o caso Hanse v. Dixon citado por GOLDSCHMIDT Sistema… pp. 53; e WOLF,
Private…, pp. 236 e 237; GRAVESON, ob. cit. pp. 594;
224 Cfr. GOLDSCHMIDT, ob. loc. cit..
225 O caso Leroux v. Brown (1852) é disso um exemplo (cf. entre outros Dicey and Morris
The Conflict…, pp. 1185).
e outros escritos jurídicos 105

se discute a natureza jurídica do ónus da prova. Vamos pois estudar as


duas teses principais.

a) Tese Processual.

De entre os autores a que tivemos acesso MICHELI é quanto a nós


aquele que maior esforço desenvolveu para sustentar a tese da natureza
processual das regras sobre o ónus da prova. O seu empenho é de tal
modo que ele se preocupa em contestar os argumentos de outros autores
(CHIOVENDA, CARNELUTTI) que, como ele, sustentam a mesma tese
naqueles pontos que poderiam eventualmente ser utilizados pelos defen-
sores de tese contrária. Por isso, tomaremos aqui, por todos os partidários
desta tese os pontos de vista apresentados por MICHELI, sem deixar de
considerar que antes e depois dele esta tese foi defendida por um conside-
rável numero de autores, seja entre processualistas ou cultores de Direito
Internacional Privado, tanto em Portugal como no estrangeiro.
Em Portugal a questão da natureza jurídica das normas sobre a
prova foi objecto de aturado estudo por parte da Comissão Revisora do
Código Civil, em vista da tomada de posição quanto à inclusão destas
matérias no Código Civil ou no Código do Processo Civil. Antes de 1966
vigorou uma solução eclética, na medida em que as normas sobre a prova
constavam não apenas do Código Civil de 1867 (art. 2404º e segs.), mas
também do Código de Processo Civil de 1939 (art. 518º e segs.). Todavia,
dos estudos da Comissão Revisora a solução que veio a prevalecer parece
ser aquela sustentada pelo Prof. Vaz Serra, no sentido de se distinguir en-
tre normas do direito probatório material e normas do direito probatório
formal, devendo as normas do direito probatório material (o quadro geral
das provas, o ónus da prova e a admissibilidade e a força probatória das
diferentes espécies de prova), pela sua natureza substantiva, ser acolhidas
no Código Civil e normas do direito probatório formal, pela sua natureza
processual, no Código de Processo Civil.
Esta tese pode considerar-se hoje dominante em Portugal, embora
haja algumas variantes em autores como ANSELMO DE CASTRO, MA-
NUEL DE ANDRADE. O problema foi igualmente colocado a propósito
da interpretação do art. 721º, nº 2 do CPC que permite o recurso de re-
vista por violação de lei substantiva, pois, sendo as regras sobre o ónus
da prova de natureza processual não podem constituir fundamento do
recurso. É claro que o art. 722º, nº 1 permite ao recorrente alegar além da
violação de lei substantiva, a violação de lei processual, mas o que não
parece ser permitido é fundar-se o recurso unicamente em violação de lei
do processo.
106 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Dois acórdãos do STJ ocuparam-se desta questão, o acórdão de 24


de Março de 1950, e o acórdão de 4 de Fevereiro de 1958226, pronuncian-
do-se ambos no sentido de que as normas sobre o ónus da prova são de
natureza substantiva, sendo, portanto, lícito o recurso de revista fundado
em sua violação227.
Vejamos agora quais os principais argumentos em que se funda a
tese processualista.
A pedra angular desta tese parece encontrar a sua sede histórica
na retórica aristotélica que concebe a actividade probatória como argu-
mentum válido, no dizer de GUILIANO228, no domínio do contingente, da
opinião, da verdade prática. Daí a afirmação comum entre os defensores
de que a prova é um fenómeno essencialmente psicológico, pelo que as
partes devem criar no espírito do juiz a convicção da veracidade das suas
pretensões. Neste sentido, a prova seria o resultado de um trabalho pura-
mente intelectual, interno e individual229.
Estes argumentos não resistem à crítica. É verdade que sob um
certo ponto de vista as provas destinam-se a formar a convicção do juiz,
mas este é apenas o ponto de vista do juiz e do tribunal. Se nos colocar-
mos na perspectiva das partes ou numa perspectiva puramente objectiva,
as provas destinam-se igualmente a demonstrar a veracidade das suas
pretensões230. Cremos que se deve estabelecer uma clara distinção entre

226 Ambos citados por VAZ SERRA, ob. cit. pp. 151.
227 No mesmo sentido se pronunciaram os Profs. PAULO CUNHA e MANUEL DE
ANDRADE, ambos citados por VAZ SERRA, ob. cit. pp. 152, notas 162 e 165. Confirma-
se o ponto de vista de Prof. M. DE ANDRADE (ob. cit. pp. 193), embora seja peremptório
em afirmar que as provas pertencem ao direito processual porque se destinam a formar
a convicção do juiz. Teremos oportunidade de apreciar este ponto de vista, na medida
em que nem todos os autores estão de acordo com a afirmação apresentada em termos
tão absolutos. Ver desde já e em sentido contrário VAZ SERRA, ob. cit. pp. 65.
228 In Prova (filosofia), Enc. Dir. Vol. XXXVII, pp. 525.
229 Neste sentido ver MICHELI, ob. cit. pp. 184 e segs.; MANUEL DE ANDRADE, que,
todavia, no que respeita ao ónus da prova, admite a sua natureza substantiva por se
encontrar mais próximo da relação jurídica material (ob. cit. pp. 193).
230 Neste sentido VAZ SERRA, segundo o qual a prova não se destina só a formar a
convicção do juiz: a prova destina-se também a formar a convicção de outras pessoas
ou entidades, pois os direitos são susceptíveis de exercício extra judicial, além de que a
prova pode servir igualmente para dar aos interessados uma segurança mais ou menos
completa nos seus direitos (ob. cit. pp. 65). É que – considera este autor – certos meios
de prova como a confissão têm grande atinência com o direito substantivo. Saber por
exemplo se a confissão é um negócio jurídico, se deve ser impugnado por vícios do
consentimento, que capacidade deve ter o confitente, etc. são problemas cuja resolução
e outros escritos jurídicos 107

a prova propriamente dita e o juízo de valoração que o juiz emite sobre


essa mesma prova. De um ponto de vista objectivo a prova destina-se a
demonstrar a veracidade de um acto ou facto. É este sentido que resulta
do disposto no art. 341º do CC, segundo o qual as provas têm por fun-
ção a demonstração da realidade de um facto. Quando a parte apresenta
um documento (v. gr. escritura pública, escrito particular) ou outro meio
de prova, ele faz prova por si. Salvo em certas situações, como na prova
testemunhal em que há uma grande dose de liberdade de apreciação das
provas, na maioria dos casos o juízo de valor que o juiz há-de emitir so-
bre um determinado meio de prova ou sobre uma certa prova produzida,
não é um juízo subjectivo e arbitrário, mas sim objectivo e vinculado, ou
seja, o valor probatório de um documento autêntico ou autenticado não
depende do arbítrio do juiz. O juízo de valor que este há-de emitir sobre a
suficiência da prova é um juízo legal231.
Por isso os autores são concordes em afirmar que o princípio da livre
apreciação da prova, como princípio de natureza processual, não pode de
forma alguma retirar o valor probatório atribuído por lei a determinado
meio de prova. Se a lei afirma que a escritura pública faz prova bastante o
princípio da livre apreciação ou não prevalece quanto a este meio de pro-
va ou apenas autoriza o juiz a verificar a existência de escritura pública e
a aplicar a estatuição legal segundo a qual esta faz prova bastante232.
É claro que esta vinculação é mais ou menos intensa consoante o
meio de prova de que se trata, pelo que pode, em determinados casos,
como no da prova testemunhal, roçar a fronteira da discricionariedade.
Na apreciação da prova a primeira atitude do juiz há-de consistir em ex-

poderá ser feita no campo do direito substantivo com maior adequação que no direito
processual (ob. cit. pp. 67).
231 Neste sentido SATTA, cuja posição teremos oportunidade de apreciar quando
tratarmos da tese da natureza substancial das regras sobre o ónus da prova sob. cit. pp.
186).
232 Neste sentido afigura-se-nos pertinente à aplicação das leis nos espaço a observação de
M. BACH feita em sede da aplicação das leis no tempo, segundo a qual o problema da
aplicação das leis deve repostar-se à conduta e aos actos das partes a quem as normas
são aplicadas e não à actividade das autoridades que aplicam as mesmas normas (cit.
por JACQUES HERON, in Étude struturale de l’application dela loi dans le temps (a partir
du droit civil), Rev. Trim. Droit Civ., nº 2 Abr-jun. 1986, ano 84, pp. 315). O risco da
confusão – explica HERON – resulta do facto de certas regras requererem a intervenção
do juiz: assim uma sanção penal ou um divórcio não podem ser pronunciados senão
pelo tribunal. Todavia, o juiz não é o destinatário da norma; o seu papel é apenas o de
a aplicar; estritamente falando não é senão o destinatário da regra de direito público
que o ordena a aplicar a norma de direito material (ob. loc. cit.).
108 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

trair todas as consequências atribuídas por lei a determinado meio de


prova e só depois emitir juízos de valor sobre a prova produzida. É neste
ponto que se esbate a vinculação legal e se produz a aproximação da dis-
cricionariedade.
Portanto, podemos considerar que há um juízo de valor legal que
vincula o juiz inerente a determinados meios de prova e um juízo de valor
pessoal (do juiz), porém, autorizado e orientado por lei, relativamente a
outros meios de prova. No primeiro caso não se pode dizer que o efeito
imediato da prova é o de formar a convicção do juiz. O seu valor imediato
é objectivo: demonstrar a veracidade dos factos alegados.
É claro que toda esta operação não é isenta de uma atitude espiritu-
al da parte do juiz. Mas esta atitude resume-se a uma actividade subsunti-
va: verificação da conformação entre o tatbestand da norma e os elementos
de facto fornecidos pelas partes. Dessa actividade subsuntiva resulta a
confirmação ou a infirmação da prova produzida consoante se verifica a
harmonização ou a desarmonização entre o tatbestand da norma e os ele-
mentos de facto fornecidos pelas partes. Se dessa actividade subsuntiva
resulta a convicção do juiz trata-se de uma convicção legal233. O elemento
intelectual posto pelo juiz nesta subsunção não se nos afigura decisivo, na
medida em que o juiz não pode de modo nenhum prescindir ou postergar
os elementos do tatbestand da norma em benefício de um hipotético juízo
de valor pessoal sobre a prova produzida.
Se é neste sentido que se afirma que as provas se destinam a produ-
zir a convicção do juiz, então devemos extrair duas conclusões: a primeira
é a de que essa convicção não é algo privativo da actividade probatória,
ou mais restritamente da actividade probatória judicial, mas sim de qual-
quer actividade subsuntiva; a segunda, intimamente relacionada com a
primeira, é a de que essa convicção é susceptível de se produzir não ape-
nas no espírito do juiz mas também no de qualquer intérprete.
Em suma, de tudo quanto temos vindo a dizer, reafirmamos, pois,
o nosso ponto de vista de que não obstante a prova se destinar, sob um
certo prisma, a formar a convicção do juiz, trata-se em muitos casos de
uma convicção vinculada e não arbitrária, como predomina em todos os
sistemas de prova legal ou mistos de prova legal e moral234, como parece

233 Cfr. ANDRE HUET, Les Conflits… cit. pp. 17 e segs.


234 Cfr. neste sentido ANDRE HUET, segundo o qual a afirmação de que a prova
é o produto da psicologia e da intima convicção do juiz equivale a esquecer que o
legislador impôs soluções lá onde se pretende que tudo releva da lógica e do juiz (ob.
cit. pp. 18 e 19). Raciocinando sobre o sistema francês de provas admite este autor que
na sua evolução passou de um estatuto de legalidade (sistema de prova legal) para um
estatuto de liberdade (sistema de prova moral), porém de novo abandonado em favor
e outros escritos jurídicos 109

ser o caso do direito português. Além disso, como observa o Prof. VAZ
SERRA a prova destina-se a formar a convicção de outras pessoas, que
não apenas a do juiz.
Um outro argumento trazido pela tese da natureza processual do
ónus da prova é de que as regras sobre a prova estão intimamente ligadas
ao processo, na medida em que é no âmbito e na decorrência do processo
que as partes produzem as suas provas. A necessidade de prova pôr-se-ia
em face da existência de contestação que conduz necessariamente a uma
instância judicial. Neste sentido as provas apareceriam como incidentes
do processo235.
Também este argumento não é consistente, razão por que tem sido
facilmente rebatido pela doutrina. Como observa o mesmo HUET, não
é exacto, tal como no argumento anterior, dizer-se que o problema das
provas se põe principalmente num processo em tribunal. Põe-se igual-
mente fora do tribunal longe de toda a contestação236. Basta pensar nas
inúmeras situações em que os cidadãos são chamados a fazer prova das
suas pretensões, independentemente de processo ou de contestação237. Se
A é pai de uma criança e pretende fazer o respectivo registo, a necessi-
dade de preservar a fé pública obriga a que o conservador dos registos
lhe exija a apresentação de testemunhas, para confirmar essa paternidade,
sob pena de ser recusado o registo. Do mesmo modo, se A se reclama her-
deiro de B e pretende fazer uma habilitação notarial, não há contestação,
não há processo, mas apesar disso, deve demonstrar através das certidões
de nascimento e de óbito, acompanhado de quatro testemunhas de que é
sucessível de A. O mesmo se passa com as justificações notariais, e, como
refere HUET, nas variadas situações em que se é chamado a fazer prova
do estado civil.
Outros argumentos apresentados pelos partidários da tese proces-
sual gravitam à volta destes dois que julgamos fundamentais238.

de um sistema de prova legal. Mas admite este autor que o sistema francês de provas é
um sistema misto, que conjuga elementos dos dois sistemas referidos (ob. cit. pp. 19 e
20).
235 Neste sentido MICHELI, ob. cit. pp. 183; BEAUCHET, cit por HUET, ob. cit. pp. 22.
236 Ob. cit. pp. 23.
237 Ob. cit. pp. 23. Este ponto de vista é vigorosamente criticado por MICHELI, com o
argumento de que o ónus da prova não tem fora do processo um significado técnico-
jurídico. Destinando-se a convencer o juiz, a regra do ónus da prova teria como
principal função evitar a arbitrariedade nas decisões. Fora do processo a regra do ónus
da prova não teria este alcance (ob. cit. pp. 189 e 190).
238 ZITELMAN admite que a regra sobre o ónus da prova teria natureza processual na
110 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

b) Tese substantiva239.

É também em Itália que vamos encontrar um dos mais acérrimos


defensores da tese da natureza substantiva das normas sobre o ónus da
prova. Trata-se de SATTA, e os seus argumentos podem resumir—se no
seguinte: mais do que o juiz as partes conhecem melhor a existência e a
conveniência da prova; daí resulta que são as partes e não o juiz que têm a
disponibilidade da prova240, a qual é igualmente a lógica consequência do
carácter contraditório do processo e do princípio dispositivo; em virtude
do princípio do contraditório o juiz não pode de oficio investigar a verda-
de dos factos, tanto o thema decidendum como o thema probandum; destas
circunstâncias resulta o princípio da estraneidade do juiz à prova, princípio
que na tese do autor encontra acolhimento no art. 115º do CPC italiano241.
Por isso, as regras sobre a prova não têm carácter processual mas sim
substantivo.
Não cremos que a tese do autor deva ser acolhida em termos tão
amplos. Duvidamos, nomeadamente, que àquilo que o autor chama dinâ-
mica da prova possa ser atribuída natureza substantiva, critica que apa-
rece implícita em autores como BAPTISTA MACHADO242 e MANUEL
DE ANDRADE243 que estabelecem a distinção entre um direito probatório

medida em que a sua aplicação ocorre ope judicis (cit. por MICHELI, ob. cit. pp. 182).
MAYER por sua vez deduz a natureza processual da norma sobre o ónus da prova
pelo facto de que a repartição se adapta somente a processos de tipo dispositivo e não
a procedimentos inquisitórios (cit. por MICHELI, ps 187, nota 1), ponto de vista que
é contestado pelo próprio MICHELI, na medida em que o critério de repartição não é
logicamente incompatível com maiores poderes de indagação do juiz.
239 Fala-se igualmente em tese de natureza material ou tese civilista (ANSELMO DE
CASTRO, ob. cit. vol. I, pp. 67), mas esta última terminologia afigura-se-nos duvidosa,
pois envolve a opção no sentido de que o direito processual civil não é direito civil,
opção sobre a qual não há unanimidade na doutrina (cf. CASTRO MENDES, Direito
Processual…, vol. I, pp. 142, nota 2).
240 Donde resultaria a possibilidade de celebração de convenções sobre a prova, maxime
sobre o ónus da prova (cfr. VAZ SERRA, ob. cit. pp. 102 e segs.). Neste particular
tem interesse referir a posição de NIKISCH que admite as convenções sobre a prova
na medida em que as partes se encontram na situação de criar ou influenciar os
pressupostos para a aplicação de uma norma jurídica material – cit. por VAZ SERRA,
ob. cit. pp. 103, nota 54.
241 In Diritto Processuale Civile, Padova, 1981,pp. 186 e segs.
242 Sobre a aplicação no tempo…, pp. 273 e segs.
243 Ob. cit. pp. 193. Ver no mesmo sentido CLAUDIA, segundo a qual aqueles autores que
aderem à qualificação substancial devem fazer uma evidente excepção para as normas
relativas à assunção e à gestão processual das provas (ob. cit. pp. 696).
e outros escritos jurídicos 111

formal, o equivalente ao aspecto dinâmico da prova de SATTA, e um di-


reito probatório material, o equivalente ao aspecto estático, e igualmente
em outros autores como GOLDSCHMIDT que partem da distinção entre
normas da ordinatoriae e normas da decisoriae litis. Estes autores integram
as normas sobre o ónus da prova no direito probatório material, ou, o que
é equivalente, na decisoriae litis.

c) Posição adoptada.

Cremos que não é possível adoptar uma posição definida nesta


matéria sem conhecer o que é o ónus da prova e qual a sua estrutura.
Mas aqui já deparamos com um problema, na medida em que os autores
não estão de acordo quanto ao próprio conceito de ónus, havendo aqueles
que identificam o ónus com a obrigação e a obrigação com o ónus, como
assegura o Prof. CASTRO MENDES244. De entre o leque de opções que
nos faculta a doutrina245, vamos adoptar neste trabalho o conceito de ónus
ministrado pelo Prof. ANTUNES VARELA, ou seja, a necessidade de
observância de um certo comportamento, não por imposição da lei, mas
como meio de obtenção ou manutenção de uma vantagem para o próprio
onerado246. Para este autor existem duas notas típicas na figura do ónus:
o acto em que ele se traduz não é imposto como um dever; e dirige-se à
satisfação de um interesse exclusivo do onerado247. Por isso, na construção
conceptual do ónus, autores há, como o Prof. CASTRO MENDES, que
aproximam esta figura do direito (direito a agir de certo modo; direito a
não agir de certo modo)248, posição que se harmoniza com uma doutrina
recente no âmbito do processo civil249, desenvolvida particularmente em
Itália, que reconhece às partes um verdadeiro direito a provar os factos
em que apoiam as suas pretensões. Desta teoria parece resultar esbatida a
ideia de encargo (obliegenheiten) que habitualmente se liga à prova, agora
concebida como um verdadeiro direito subjectivo.

244 In Do conceito de prova…pp. 438. Cfr. igualmente J. SALDANHA SANCHES, in O


ónus da prova no processo fiscal, Lisboa, 1987, pp. 95 e segs.
245 Cfr. OBERDAN TOMMASO SCOZZAFAVA, in onere (nozione), Enc. Del Dir. Vol.
XXX, pp. 100 e segs; NIKISCH, cit. por A. DE CASTRO, ob. cit. pp. 70; entre outros.
246 In Das Obrigações em geral, vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, pp. 57.
247 Ibidem, pp. 57 e 58.
248 Ibidem.
249 Cfr. MICHELLE TARUFFO, in Diritto alla prova nel processo civile, in Riv. Dir. Proc. ano
XXXIX (segunda série) nº 1, jan-maio 1984, pp. 74 e segs.
112 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Todavia, se a ideia de encargo se mostra hoje esbatida, não pode-


mos prescindir-nos dela na definição da estrutura do ónus da prova, que
se nos afigura bicéfala. Por um lado, do direito subjectivo à prova resulta
também um direito subjectivo ao ónus da prova, com o correlativo dever
imposto ao juiz de facultar às partes a prova dos factos em que apoiam as
suas pretensões. Mas o ónus tem igualmente uma outra faceta que consis-
te na obrigação potestativa, como lhe chama PERLINGIERI250, que incum-
be à parte provar esses mesmos factos, se não quer ver decidido o pleito
contra si. Mas não há dúvida que a ideia de direito é a nota dominante na
estrutura do ónus, pois tendo a obrigação natureza potestativa, a parte é
livre de a realizar ou não, assumindo as consequências daí resultantes.
O ónus da prova é, portanto, algo que se dirige às partes e não pro-
priamente ao juiz, cujo papel se nos afigura instrumental e se manifesta
em dois momentos fundamentais: no momento da repartição do ónus da
prova e no momento da avaliação da prova. Cremos assim poder admitir
que a regra do ónus da prova tem pressuposta uma outra norma dirigida
ao juiz segundo a qual em todas as situações de non liquet de facto o juiz
deve facultar à parte a quem o facto aproveita fazer a respectiva prova.
Cumprida esta obrigação o juiz retira-se para vir a intervir de novo no
momento da avaliação da prova. Esta regra pressuposta na norma que
estabelece o ónus da prova, não é ela própria o ónus, que, como vimos se
dirige às partes. É uma norma da ordinatoriae litis, ou uma norma de com-
petência no sentido que atrás referimos.
O art. 345º do CC parece levar igualmente ao entendimento expos-
to. Se dentro de certos parâmetros as partes podem celebrar convenções
sobre a prova251, daí resultam duas consequências: a primeira é a de que,
em certo limite, as provas estão na disponibilidade das partes; a segunda
a de que destas convenções resulta a constituição de direitos subjectivos,
donde se pode inferir a confirmação do ponto de vista que defende um
direito subjectivo à prova.
Concluímos, pois, pela consideração da natureza substantiva das nor-
mas sobre o ónus da prova, fazendo notar, contudo, que um autor como
FAZZALARI admite que a natureza processual da norma sobre a prova
ficou definitivamente ultrapassada desde o VIII Convénio Nacional de
Pavia, realizado de 23 a 26 de Maio de 1968252.

250 Cit. por ANTUNES VARELA, ob. loc. cit.


251 Cfr. sobre este ponto VAZ SERRA, ob. cit. pp. 102 e segs; MANUEL DE ANDRADE,
ob. cit. pp. 212.
252 In Efficacia della legge processual nel tempo, Riv. Trim. Dir. Proc. Civ., Dezembro de 1989,
ano LXIII, nº 4, pp. 893, nota 12.
e outros escritos jurídicos 113

10. QUALIFICAÇÕES

A opção pela natureza substantiva das normas sobre o ónus da pro-


va apenas nos resolve parte do problema da aplicação no espaço deste
tipo de normas, na medida em que pode acontecer que a lei do foro as
qualifique como processuais e a lex causae como substantivas, ou vice ver-
sa, daí resultando uma diferente de qualificações que importa dirimir.
Aparentemente já resolvemos este problema quando optámos pela
natureza substantiva das normas sobre o ónus da prova, donde resulta
necessariamente que este deva regular-se pela lex causae. Mas suscitam-se
dúvidas sobre se a qualificação deve ser feita nesta perspectiva.
Existem na verdade três teses fundamentais sobre o sentido da
qualificação. Para se evitar o círculo vicioso a que se refere BATIFFOL,
a qualificação operar-se-ia necessariamente segundo a lex fori, pois neste
momento a questão sub judice apenas se encontra em contacto com a lei do
foro, sendo, portanto, impossível determinar qual a lei ou leis que eventu-
almente possam estar igualmente em contacto com essa mesma situação.
Não obstante garantir o maior número de adeptos253, esta tese tem
sido objecto de severas critica por parte dos partidários das teses opostas:
lex causae e recurso ao direito comparado254. FERRER CORREIA, nomea-
damente, insurge-se com veemência contra a ideia da qualificação lege fori,
considerando que a chamada qualificação primária necessária para de-
terminar a lei aplicável é destituída de utilidade, já que não existe a priori
razão válida para excluir qualquer lei potencialmente aplicável à situação
sub judice. Todas as leis potencialmente aplicáveis estariam numa posição
de igualdade, sem o que se violaria o princípio da paridade de tratamento,
por força do qual os factores determinantes da aplicabilidade das leis do
foro hão-se der também – tanto em abstracto como em concreto – aqueles
que desencadeiam a aplicação das leis dos demais países255.
Apesar de ser dominante a tese da qualificação lege fori, é incontes-
tável a importância doutrinária dos argumentos trazidos pelo Prof. FER-
RER CORREIA. A tese da qualificação lege fori parece ter a sua sede na
ideia de superioridade do direito do foro, ainda defendida por muitos
autores, cuja raiz histórica poderá ser encontrada na capitis deminutio ro-

253 Ver neste sentido JULIAN VERPLEATSE, in Derecho Internacional Privado, Madrid,
1954, pp. 633, segundo o qual a decisão sobre o que seja adjectivo ou material será
tomada sempre em conformidade com a lei espanhola; GOODRICH, ob. cit. pp. 143;
DI VIGNANO, ob. cit. pp. 203 e segs..
254 Para uma síntese destas teses cf. DI VIGNANO, ob. cit. pp. 200 e segs..
255 In Direito Internacional privado – alguns problemas, cit. pp. 160 e segs.
114 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

mana que afectava tudo quanto tinha a natureza de estrangeiro. Todavia,


no estádio actual das relações privadas internacionais, não nos parece que
este ponto de vista seja sustentável em absoluto, particularmente se ti-
vermos em consideração que a generalidade dos autores estão de acordo
que na definição das normas de conflito, e particularmente na definição
dos conceitos – quadro nelas contidos, o legislador toma em consideração
não os conceitos do ordenamento material do foro, mas sim os vigentes
no mundo civilizado.
Resta saber qual a importância da doutrina exposta para o nosso
tema.
Se nos situarmos na perspectiva de um certo ordenamento jurídico,
como o português, v.gr., verificamos que a importância da qualificação
que corresponde à natureza jurídica de determinada norma se revela não
apenas no domínio do direito internacional privado, mas igualmente no
campo do direito interno. O que se poderá questionar é se será possível
adoptar uma certa qualificação para servir no direito interno e outra qua-
lificação para servir no domínio do direito internacional privado. Isto é,
será possível qualificar as normas sobre a prova como normas de direito
material, para servir no direito interno, e como normas de direito proces-
sual para servir no plano internacional? Ou não será que, feita a opção,
esta servirá tanto no campo do direito interno como no plano interna-
cional? Se questionamos a natureza jurídica das normas sobre a prova
vigentes no direito português, optando pela sua natureza substantiva ou
processual, valerá esta opção tanto no plano interno como no plano in-
ternacional? Ou não será que na remissão para o direito estrangeiro deve
ter-se em conta a qualificação que esse mesmo direito faz relativamente a
essas mesmas normas?
Tememos não poder seguir aqui a tese dominante, pelas seguintes
razões: o problema da aplicação das normas jurídicas, maxime as normas
sobre o ónus da prova, apenas surge quando já se mostra determinada a
lei aplicável à situação sub judice. Ora se esta é uma lei estrangeira parece
curial que se deva partir da qualificação feita nesse ordenamento jurídico,
sob pena de se desvirtuar a harmonia do sistema em aplicação. Outra ati-
tude poria em risco as expectativas das partes legitimamente constituídas
à luz da lei aplicável à situação sub judice256.
Este parece ser, aliás, o ponto de vista que decorre do art. 23º do
CC que, ao mandar interpretar o direito estrangeiro dentro do sistema a

256 Neste sentido também se pronuncia SCOTT, segundo o qual o problema da


qualificação é decidido pela lex fori, mas quando se trata de decidir se uma regra de
direito estrangeiro é processual ou substantiva, deve considerar-se essa regra no seu
contexto (ob. cit. pp. 325 e 326).
e outros escritos jurídicos 115

que pertence, faz uma clara opção pela qualificação das normas jurídicas
segundo a tese lege causae. Aliás, a qualificação lege causae parece ser a que
resulta do comando contido no artº 15º do C.C.

11. ORDEM PÚBLICA

Da consideração da natureza material das regras relativas ao ónus


da prova resultam, quer no plano interno quer no plano internacional,
importantes consequências de que já temos vindo a fazer eco ao longo
desta exposição257. As referências incidentais à aplicação das regras sobre
o ónus da prova e bem assim das presunções, sejam legais ou judiciais, no
tempo e no espaço; todo o estudo que fizemos relativamente à distinção
anglo-americana entre o right e o remedy, importante não apenas no plano
interno, mas também no plano internacional, e mesmo a solução de qua-
lificação a que acabámos de fazer referência, têm todos o tributo da opção
que fizemos quanto à natureza das regras sobre o ónus da prova. E, se
como foi considerado no inicio deste estudo, a distinção entre as normas
da ordinatoriae litis e as normas da decisoriae litis constitui a espinha dor-
sal de todo o Direito Internacional Privado, então podemos igualmente
considerar que a opção que fizemos tem repercussões em todos os do-
mínios deste ramo do saber, nomeadamente da fraude à lei258 e da ordem
pública259. É, todavia, sobre este último ponto que mais se tem debruçado
a doutrina, que parece unânime em considerar que a recepção da norma
material estrangeira sobre o ónus da prova deve fazer-se com as precau-
ções habituais com que são recebidas todas as normas materiais de direi-
to estrangeiro. Nomeadamente, não é por demais repisar o ensinamento
de RAAPE no sentido de que toda a remissão para o direito estrangeiro
constitui um salto no desconhecido (Spung ins Dunkle), pelo que o tribunal
do foro, na aplicação da norma material estrangeira, deverá prevenir-se
contra eventuais gravames aos princípios de ordem pública do Estado do
foro. Um exemplo habitualmente citado é o da norma material prever a

257 Para uma síntese desta problemática cfr. MICHELI, ob. cit. pp. 196 e segs..
258 Ver neste sentido PERROT, segundo o qual o ónus da prova não pode depender do
lugar onde o processo se desenvolve, porquanto um devedor de má fé poderia deslocar
intencionalmente o seu domicilio com a única intenção de se furtar às regras que lhe
são desfavoráveis (ob. cit. pp. 18).
259 Cfr. GIOVANNI MARIA UBERTAZZI, in Limiti all’ execuzione in Itália di provedimenti
stranieri concernenti mezzi di prova, Riv. Dir. Int. Priv. E Proc., ano IX, 1973, pp. 395 e
segs..
116 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

prova por ordálio260, cuja aplicação seria arredada em favor de outros ins-
trumentos de solução. Mas o problema poderá eventualmente colocar-se
relativamente a outros ordenamentos jurídicos em que a decisão sobre o
facto incerto não assenta no sistema de repartição do ónus da prova, mas
partindo do grau de verosimilhança ou de probabilidade que permita ao
juiz considerar o facto como provado ou não261.
Uma experiência deste tipo poderá ser encontrada nos países escan-
dinavos e sobretudo na Suécia, por mérito de PER OLOF EKELOF e PER
OLOF BOLDING262 que fazem recurso a fórmulas matemáticas e a métodos
estatísticos para determinar o grau de probabilidade da existência ou ine-
xistência de determinado facto263. Na fórmula de EKELOF, o facto é presu-
mível, verosímil, provável, ou certo, ou inverosímil ou impossível, conso-
ante o grau de probabilidade, que poderá ir de até 75% ou mais de 50%, até
100%, conforme o ponto de vista264. Questão que se poderá colocar é até que
ponto a ordem jurídica portuguesa, em contacto com aqueles ordenamen-
tos, aceitará o recurso a métodos de decisão sobre o facto incerto, que lhe
são desconhecidos. A questão torna-se mais pertinente se se tiver em consi-
deração que estes esquemas de solução afastam um princípio fundamental
de avaliação das provas, que é o convencimento do juiz265, essencial para
ordens jurídicas como a portuguesa. Estamos em crer, contudo, que este
método de avaliação das provas não exprime um princípio de ordem públi-
ca internacional do Estado português, por forma a não poder ser afastado
pela norma de direito estrangeiro que seria a normalmente competente266.

260 Cfr. HUET, ob. cit. pp. 27 e 28. No mesmo sentido COOK, citado por GOODRICH, ob.
cit. pp. 143, nota 5.
261 Cfr. SALVATORE PATTI, in Libero convincimento e valutazione delle prove, Riv. Dir.
Proc. ano XL (segunda série) nº 3, Julho-Setembro, 1985, pp. 498.
262 Ambos citados por PATTI, ob. cit. pp. 500.
263 PATTI, ob. cit. pp. 499.
264 Para maiores desenvolvimentos cfr. PATTI, ob. cit. pp. 501 e segs.. Ver igualmente a
formula de BOLDING, mais simplificada que a de EKELOF em PATTI, (ob. cit. pp. 502).
Resta saber como conciliar os esquemas propostos com as situações de contraprova
do facto. Assim, se A prova 60% do facto e B em contraprova 40%, em compensação
recíproca, resulta que este mesmo facto só está provado em 20%, já que 40% foi anulado
em contraprova. Haverá ainda neste caso prova do facto, embora A tenha provado
60%, se em compensação recíproca A não atingiu o limite do provável?
265 PATTI, ob. cit. pp. 498.
266 O sentimento geral parece ser de facto o de que as normas sobre o ónus da prova não
são de ordem pública. Neste sentido, HUET, segundo o qual seria exagerado declarar
sistematicamente contrária à ordem pública uma lei estrangeira a pretexto de admitir
um meio de prova não regulado pelo direito francês (ob. cit. pp. 28). Mais adiante
e outros escritos jurídicos 117

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pública. Ainda que o sejam no plano interno não são de ordem pública internacional.
Este mesmo ponto de vista parece resultar do art. 345º, nº 2, in fine, CC, relativo às
convenções sobre provas, segundo o qual se as determinações legais quanto á prova
tiverem por fundamento razões de ordem pública a convenção é nula em quaisquer
circunstâncias. Estas razões parecem ser de ordem pública interna e não de ordem
pública internacional.
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e outros escritos jurídicos 121

3. SUBSÍDIOS PARA O ESTUDO DO DIREITO INTERNACIONAL


PRIVADO NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA267

Sumário

1. Introdução. 2. O Código de HAMMURABI. 3- Thora ou


Pentateuco. 4. Direito Grego. 5. Direito Romano. 6. Conclu-
são.

1. INTRODUÇÃO. Os povos antigos não adoptaram um sistema


de conflitos de leis. A razão de ser desta omissão prende-se com circuns-
tâncias ligadas a uma elevada dose de desconfiança relativamente ao es-
trangeiro. O estrangeiro é, com efeito, o hostil268, aquele que se acerca da
cidade, vila ou lugar para se assenhorear das terras, apropriar-se dos bens
ou latrocinar donzelas incautas. Por isso, quando se aproxima da cidade,
ou é repelido com violência ou é submetido à escravidão. Torna-se, então,
um ser destituído de personalidade jurídica. Não tem nem direitos, nem
obrigações. O seu estatuto jurídico é o mesmo de uma coisa. O seu dono
tem sobre ele direitos de vida ou de morte. Quanto a este – o dono – recai
sobre ele apenas o ónus de conservar a “coisa” escravizada, caso queira
tirar proveito do seu entendimento para executar com maior precisão as
tarefas que uma besta não executaria.
A causa que nos afigura cercear de forma determinante o apareci-
mento de um sistema de conflito de leis na antiguidade clássica está no
espírito universalista que é alimentado por quase todos os povos, porta-
dores de um exército capaz de partir à conquista de povos vizinhos. Ideias

267 As pessoas da minha geração, que se licenciaram pela Faculdade de Direito da


Universidade de Lisboa, tiveram a felicidade e a honra de ter, como Professora de
Direito Internacional Privado, Isabel Tello de Magalhães COLLAÇO. A ela dedico o
presente estudo em singela homenagem.
268 Hostil vem da palavra hostes que significa estrangeiro não abrangido por nenhum
tratado ou aliança política. Alguns autores sustentam a tese de que na antiguidade
o estado de guerra é o estado natural das relações internacionais. Sobre esta tese,
conhecida como a tese da hostilidade natural, ver Francesco SINI, in Dai Peregrina
sacra alle pravae et externae religiones dei baccanali: alcune riflessioni su “alieni” e sistema
giuridico-religioso romano, Studia et Documenta Historiae Iuris, LX, 1994, pp. 49 e segs.
Este ponto de vista poderá ser ainda recolhido em José Ferreira Marnoco e SOUSA,
Execução Extraterritorial das sentenças civis e commerciaes, Coimbra, F. França Amado
– Editor, 1898, pp. 99 e segs.
122 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

imperialistas foram alimentadas por assírios269, babilónios, egípcios, per-


sas, romanos, entre outros. Associada a estas ideias imperialistas está a
perda da soberania e a desumanidade com que, em geral, são tratados
os povos submetidos. Cometem-se as maiores atrocidades; destroem-se
culturas e instituições; impera a superioridade do forte sobre o fraco. A
condição básica para o aparecimento desta disciplina, que é o respeito
pela soberania alheia, estava longe de ser alcançada nesse período da his-
tória da humanidade. O DIP é, nesta medida, um direito profundamente
fruto do progresso humano, no sentido de que o seu aparecimento está
condicionado à evolução e maturidade das relações entre os povos, pois
só podia surgir de relações pacíficas entre os homens de diversa nação.
Por isso, só na Alta Idade Média começam a colocar-se questões ati-
nentes à repartição de competência e à busca da congruência entre as leis
que se cruzam no contacto entre povos de diferentes territórios e submeti-
dos a diversas leis. Todavia, a recusa hoje patente em todos os estudiosos
de DIP em circunscrever o âmbito desta disciplina ao estudo das normas
de conflitos, não só contribuiu para alargar o horizonte histórico desta
disciplina, como obrigou a aprofundar a investigação, quanto a sectores
considerados menores. Os direitos antigos, desde o Oriente Mediterrâneo
ao Extremo Oriente, passando pela Grécia e Roma, mostraram-se atentos
à condição jurídica do estrangeiro ou adoptaram, à luz das concepções
então vigentes, um modelo de tratamento das questiones mixtae.
Sem a pretensão de reconstituir, com pormenor, estes aspectos, ve-
jamos como a condição jurídica do estrangeiro e demais relações privadas
foram objecto de tratamento na antiguidade.

2. O CÓDIGO DE HAMMURABI

Este Código foi adoptado pelo Rei do mesmo nome, Hammura-


pi ou Chammurabi (1728-1686 a.C.). Pertence à categoria dos chamados
direitos cuneiformes, nome que se dá “ao conjunto dos direitos da maior
parte dos Povos do Próximo Oriente da antiguidade que se serviram de
um processo de escrita, parcialmente ideográfico, em forma de cunha ou
prego”270.

269 Assinala Truyol SERRA que a tendência para o domínio do universo conhecido,
levada à máxima violência, é talvez o traço mais saliente da política assíria. Por volta
de 1100 a.C. Teglat-Falasar (Tiglat Pileser) I auto-proclama-se poderoso Rei das Quatro
Regiões a quem Assur e os grandes deuses havia ordenado que dilatasse as fronteiras
do seu país - História da filosofia do Direito e do Estado - Das origens à Baixa Idade Média,
tradução portuguesa de Henrique Barrilaro RUAS, Lisboa, 1985, pp. 30.
270 John GILISSEN in Introdução Histórica ao Direito, tradução portuguesa de A.M.
e outros escritos jurídicos 123

Embora tivesse adoptado uma disciplina legal relativa a questões


como bruxaria, propriedade, família, adopção, contratos, arrendamento,
títulos de crédito, delitos em geral, não estava no espírito deste Código a
adopção de um regime legal atinente à condição jurídica dos estrangeiros.
HAMMURABI recebe os sinais (estatutos) por revelação divina. O seu po-
der é-lhe conferido pelos deuses Anum, Marduk e outros e realiza a justiça
“por ordem de Samas ou Schamasch, o deus-sol, grande juiz do céu e da
terra”. Declara-se senhor do universo, rei perfeito e dono da verdade: “eu
sou Hammurabi, o rei da justiça, a quem Samas deu a verdade”. “Possam os meus
estatutos não ter opositor, possa o meu Nome ser pronunciado para sempre...”; 271.
As suas leis são irrevogáveis272 e os seus sinais insubstituíveis.
Compreende-se, pois, que Hammurabi pretende legislar para o
mundo inteiro273. O seu Código é de aplicação universal e tem por âmbito
pessoal os cabeças-pretas, (salmat qaqqadim) que, segundo os autores, não
só significa “homem”, “povo sumério”, “habitante da Mesopotâmia”, mas tam-
bém “humanidade, em geral”.

HESPANHA, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1986, pp. 58. Este Código foi
descoberto nas escavações arqueológicas levadas a cabo pelo investigador egípcio
Jacques de MORGAN, em 1902, e está hoje depositado no Museu do Louvre, em Paris.
Não parece corresponder inteiramente à verdade a afirmação feita na Encarta (doc.
elec.) segundo a qual o Código teria sido descoberto por uma equipa de arqueólogos
franceses (in vb Hammurabi, Code of – Microsoft (R) Encarta). Tratou-se, sem dúvida, de
uma missão arqueológica francesa, mas J. de MORGAN tinha nacionalidade egípcia.
Sobre o Código de HAMMURABI e a sua importância para a história do direito, ver
Frederico Lara PEINADO, in Código de Hammurabi, Madrid, 1986; Emanuel BOUZON
in Código de Hammurabi, 4ª edição, Petrópolis, 1987; A. Truyol SERRA, in História da
Filosofia do Direito e do Estado, Tradução portuguesa de Henrique Barrilaro RUAS,
Lisboa, 1985, pp. 27 e segs; Edward McNall BURNS, in História da Civilização Ocidental,
Tradução portuguesa de Lorival Gomes MACHADO e outros, Portalegre, 1974, pp. 84-
85; M. Augusto RODRIGUES, in HAMURÁBI, Enc. VERBO, vol. 9, cols. 1531 a 1533.
271 Lê-se no epílogo do Código cf., por todos, BOUZON, ob. cit. pp. 222-223.
272 Atente-se nesta brilhante passagem do Epílogo do Código de HAMMURABI: depois
de afirmar o rigor das suas palavras “minhas palavras são escolhidas, minha obra não tem
igual; só para o tolo elas são vazias” assegura que quem as seguir será conduzido à glória
e será como ele, um rei de justiça. Mas “se esse homem não respeitar as minhas palavras que
escrevi em minha estela, desprezar minhas maldições, não temer as maldições dos deuses, anular
o direito que promulguei e revogar as minhas palavras, alterar os meus estatutos, apagar o meu
nome escrito e escrever o seu nome (ou) por causa destas maldições mandar um outro (fazer)
esse homem, seja ele rei, senhor, governador ou qualquer outra pessoa chamada com um nome,
que o grande Anum, o pai dos deuses, aquele que pronunciou o meu governo, tire-lhe o brilho da
realeza, quebre o seu ceptro, amaldiçoe o seu destino” - cf.. BOUZON, ob. cit. pp. 224.
273 No prólogo do Código a estela KALAN (Anv. I, 7) é traduzida, ora por país, ora por
universo. cf. Lara PEINADO, ob. cit. pp. 3, nota 4.
124 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Este espírito de universalismo absoluto não reconhece outras leis


que não sejam as ditadas pelo legislador supremo e inviabiliza, em conse-
quência, a possibilidade de existência de quaisquer conflitos de leis.
Há, todavia, dois momentos no Código de HAMMURABI que
pareceriam apontar, um, no sentido do reconhecimento de um direito a
estrangeiros, outro, no sentido da solução de um conflito de leis. Trata-
se, em primeiro lugar, da possibilidade reconhecida ao escravo de poder
contrair casamento com a filha de um awilum274. Esta faculdade é-lhe reco-
nhecida pelo parágrafo 175 do mesmo Código, nos termos seguintes: “se
um escravo do palácio ou um escravo de um muskenum tomou por esposa a filha
de um awilum e ela lhe gerou filhos, o dono da escrava não poderá reivindicar para
escravidão os filhos da filha de um awilum”. Ora, se pudermos admitir que o
escravo era, sobretudo, o prisioneiro de guerra275, ou seja, o estrangeiro,
então não seria despicienda a conclusão de que este parágrafo reconhece-
ria ao estrangeiro um direito civil de gozo, qual seja o direito de contrair
casamento, pois o Código não distingue quais os escravos que poderão
exercer o mesmo direito276. Todavia, poderá sempre argumentar-se que,
perdendo o estrangeiro capacidade jurídica, pela sua redução à escrava-
tura, perde, em consequência, a própria condição jurídica de estrangeiro,
condição esta que só poderia invocar caso lhe fosse conservada a persona-
lidade jurídica. Nesta conformidade, teríamos que concluir que a faculda-
de de contrair casamento com um awilum não lhe era atribuída enquanto
estrangeiro, mas sim enquanto escravo submetido às leis do soberano,
pois esse novo estatuto não implicava a sua libertação.
Os filhos resultantes deste casamento nasciam, todavia, livres277.
O Código de HAMMURABI fala amiúde em “mercador” sem fazer
a distinção entre o mercador natural e o mercador estrangeiro278. Sabe-se,

274 O termo não é traduzido por BOUZON que lhe empresta, contudo, o sentido de
“cidadão livre na estrutura social babilónica”. Lara PEINADO tradu-lo por “senhor” e
explica que o Código de HAMMURABI o utiliza em três acepções distintas: “–-pessoa
nobre pertencente a uma classe superior; b)-indivíduo livre e c)-homem de qualquer
classe, seja escravo ou rei”. Considera igualmente que a sociedade babilónica estava
dividida em três classes: os awilum; os muskenu (homens semi-livres e subalternos e os
wardu, os escravos)– ob. cit. pp. 6 nota 100.
275 Cf. Mcnall BURNS ob. cit. pp. 84.
276 PEINADO caracteriza estes casamentos como “matrimónios mistos” mas o autor
parece ter em mente a divisão social na Babilónia (ob. cit. pp. 29).
277 Cf. BOUZON, ob. cit. pp. 33.
278 Cf. parágrafo 32. O mercador referido neste artigo poderá ser estrangeiro.
e outros escritos jurídicos 125

todavia, que a sociedade babilónica praticou o comércio em larga escala279


com outros povos, mas nada neste Código aponta no sentido de ser apli-
cado aos contratos, entretanto celebrados, outra lei que não esta. Toda-
via, no parágrafo 51º do Código o legislador parece pretender regular um
conflito de leis no que respeita ao pagamento de empréstimos celebrados
com mercadores. Preceitua: “Se ele (o awilum) não tem prata para restituir,
dará ao mercador cevada ou sésamo, conforme o curso corrente da prata, que ele
tomou emprestada ao mercador, e de seus juros de acordo com a regulamentação
do rei”.
Este segundo momento, contido na expressão por nós sublinhada,
dá a entender que o legislador, admitindo a possibilidade de um merca-
dor (eventualmente estrangeiro) impor as suas próprias leis no que res-
peita ao pagamento de tais empréstimos e respectivos juros, afastou essa
possibilidade, mandando aplicar a lei do foro.
Os comentadores do Código não estabelecem uma relação entre o
parágrafo 51 in fine e a regulação de um conflito de leis. Para BOUZON
reportar-se-ia aos “decretos reais que regulamentavam os preços dos géneros de
primeira necessidade”, interpretação que não abona nem em sentido posi-
tivo, nem em sentido negativo, pois apenas confirma a aplicabilidade da
lei do foro: decretos reais. Lara PEINADO dá, contudo, uma interpretação
que se aproxima da extrapolação que fizemos: “...visto que os valores variam
segundo lugares e épocas, facilitando a especulação por parte dos mercadores e
banqueiros...”, o rei manda aplicar a sua própria lei às regras de proporção
entre a prata e o pagamento em género280. Segundo E. SZLECHTER “esta
cláusula é de interesse particular... porque indica o reconhecimento de um valor
obrigatório das leis nas relações entre credor e devedor, qualquer que seja o acordo
das partes”. Dela se extrai o reconhecimento implícito do princípio da au-
tonomia privada e o estabelecimento nos contratos de regras imperativas
inderrogáveis pela vontade das partes. Se esse “interesse particular” a que
se refere SZLECHTER puder ser entendido como interesse de um merca-
dor estrangeiro e de um awilum, então a última parte do parágrafo 51 é
uma regra de conflitos que hoje chamaríamos regra de conflitos unilateral,
dado que regula o problema mandando aplicar os decretos reais281, a lei
do foro. Todavia, na falta de mais elementos, afigura-se-nos mais pruden-
te deixar a questão em aberto.

279 Cf. Mcnall BURNS , ob. cit. pp. 85.


280 Ob. cit. pp. 14, nota 26.
281 A regra de conflitos unilateral é aquela que apenas preconiza a aplicação da lei do foro,
por oposição à regra de conflitos bilateral que preconiza, invariavelmente, a aplicação
da lei do foro ou da lei estrangeira, consoante o sentido da concretização do elemento
de conexão. Cf. artº. 3º. do Code Civil francês.
126 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Pode, pois, concluir-se que o Código de HAMMURABI não só re-


cusa, de forma completa, a eventual existência de conflitos de leis, como
não confere qualquer tratamento particular a indivíduos em atenção à sua
condição de estrangeiro. O estrangeiro submetido à escravidão poderá,
todavia, contrair casamento, mas esta faculdade não lhe confere o direito
à liberdade.

3. THORA OU PENTATEUCO

Chama-se Thora282, e os Judeus Pentateuco, às leis expedidas durante


o reinado de Moisés283. Estas leis, por isso mesmo conhecidas como leis
mosaicas, constam dos cinco primeiros livros do Velho Testamento: Géne-
sis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio284. Datam de 1513 a 1473 a.C..
No que à nossa disciplina diz respeito, estas leis, na sua formulação
teocrática, chamam a atenção pelo elevado nível de regulamentação da
condição jurídica do estrangeiro. Contrariamente ao Código de HAMMU-
RABI, nas leis mosaicas o estrangeiro é parte integrante da sociedade isra-
elita, com um estatuto próprio que lhe é definido em atenção à sua apro-
ximação de Yahveh. Trata-se, em princípio, de um estatuto de igualdade
perante a lei, todavia com algumas restrições estabelecidas de acordo com
as qualidades com que o estrangeiro é acolhido na sociedade israelita.
A legislação mosaica distingue duas categorias de estrangeiros285:
o residente forasteiro e o colono. O residente forasteiro é aquele que se agrega
a uma família hebraica em busca de protecção286 ao passo que o colono
(tohsháv) é um residente temporário. Qualquer destas duas categorias de

282 Thora significa “lei escrita”.


283 Estas leis são igualmente conhecidas como Pacto da Aliança ou Pacto da lei ou
Código da Aliança nome que está relacionado com o modo como foram reveladas.
Terão resultado de um Pacto ou Aliança estabelecida entre Yahveh e o Povo israelita,
através do medianeiro Moisés. Data de 1513 a.C.. Sobre o Pacto da Aliança, ver Ajuda ao
Entendimento da Bíblia,sem autor, Edição Brasileira, 1983 vol. III, pp. 1238-1239; Estudo
Perspicaz das Escrituras, vol. III, pp. 159; Truyol SERRA, História da Filosofia..., pp. 37
e segs; John GILISSEN, in Introdução Histórica... pp. 66 e segs; Lara PEINADO, Código
de Hammurabi, pp. LII e segs. Para um estudo comparativo entre o Pacto da Aliança e o
Código de Hammurabi ver o mesmo PEINADO, ob. cit. pp. CVII e segs.
284 Sobre este ponto ver: Truyol SERRA, ob. cit. pp. 39-40; John GILISSEN , ob. cit. pp.
66-72; J. MENDES DE CASTRO , in Pentateuco, Enc. VERBO, vol. 14, cols. 1694-1696.
285 “Consistiam em trabalhadores contratados, comerciantes, cativos de guerra, cananeus
não executados ou não expulsos da Terra da promessa, e diversos tipos de pessoas de
passagem” - Estudo perspicaz das escrituras, vol. II, pp. 52, vb. Estrangeiro.
286 cf.. Ajuda ao Entendimento da Bíblia..., vol. 4º. , pp. 1428.
e outros escritos jurídicos 127

estrangeiros podia receber um estatuto especial de prosélito287 circunciso ou


prosélito circuncidado288, que é praticamente um estatuto de igualdade289,
com leves restrições, como veremos a seguir.
No plano religioso, o prosélito circunciso podia celebrar a Páscoa290 e
participar doutras festividades, como a Festividade dos Pães não Fermen-
tados291, oferecer sacrifícios e obter o perdão dos seus pecados.
No plano civil, podia celebrar contratos, como sujeito activo e passi-
vo, e gozava da mesma protecção que o israelita natural. Se fosse abastado
podia ter os seus próprios escravos, como podia estar em juízo e gozar de
certas garantias, como a proibição de penhora das suas roupas e a de não
ser submetido a um julgamento pervertido292. Tinha direito à segurança

287 Prosélito do grego prosélytos é o pagão que se converte ao judaísmo – J. ALMEIDA


COSTA e A. SAMPAIO E MELO, in Dicionário da Língua portuguesa, 5ª. edição, vb.
prosélito.
288 As leis mosaicas deram muita importância à circuncisão que era condição de
participação em actividades religiosas: “No oitavo dia depois do nascimento de um varão,
circuncidar-se-á a carne do prepúcio dele” Lev. 12:2-3. A escolha do oitavo dia tinha,
segundo o Dr. S.I. McMILLEN, uma explicação científica: “Quantidades normais do
factor de coagulação do sangue chamado vitamina K não são encontradas no sangue
senão do quinto ao sétimo dia depois do nascimento. Outro factor de coagulação
conhecido por protrombina acha-se presente em doses apenas cerca de 30 por cento
das normais no terceiro dia, mas no oitavo dia apresenta-se mais elevado do que em
qualquer outra época da vida da criança...”: in None of these Diseases, 1963, cit. in Ajuda
ao Entendimento da Bíblia, vol. I, pp. 317, vb. circuncisão.
289 “Deve haver uma só lei para o natural e o residente forasteiro que resida no vosso meio” (Ex.
12:49).
290 “E caso um residente forasteiro resida contigo e realmente celebre a Páscoa para Jeová, seja
circuncidado cada macho dele; só então pode chegar-se para celebrá-la e ele tem de tornar-se
como o natural do país. Mas nenhum incircunciso pode comer dela” Ex. 12:48. A palavra
Páscoa tem a sua origem na palavra hebraica pésahh , mas aproxima-se mais na sua
musicalidade da palavra grega páskha que significa “salto ou passar por alto”. O dia da
Páscoa comemora a libertação do Povo de Israel do seu cativeiro no Egipto. Quando
Yahveh destruiu os primogénitos do Egipto “passou por cima” dos primogénitos
israelitas, daí a celebração da Páscoa. Cf. Ex. 12:12: “E nessa noite terei de passar pela terra
do Egipto e golpear todo o primogénito na terra do Egipto, desde o homem até o animal...”; cf..
Ajuda ao Entendimento da Bíblia...., vol. 3º. vb. Páscoa, pp 1256 e segs.
291 Ao dia da morte dos primogénitos do Egipto devem seguir sete dias de festividades:
“sete dias deveis comer pães não fermentados” Ex. 12:15.
292 “Só uma decisão judicial deve ser válida para vós. O residente forasteiro deve mostrar ser igual
ao natural” (Lev. 24:22). Em Deut. 27:49 não só é garantido ao residente forasteiro o
direito a uma justiça digna, como se estabelecem sanções para quantos violarem este
princípio: “maldito seja aquele que desvirtuar o julgamento de um residente forasteiro”.
128 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

social, caso fosse pobre293.


Uma restrição continha, todavia, este estatuto de igualdade: só o
israelita natural podia ser possuidor de terras294 e só ele podia ser proprie-
tário de escravos de forma vitalícia. Além disso, o escravo do prosélito cir-
cuncidado podia ser resgatado a todo o tempo e seria sempre libertado no
sétimo ano295 de escravidão ou no Ano do Jubileu296. Também o casamento
com estrangeiros era, em princípio, proibido, particularmente com os na-
turais das sete nações que os israelitas expulsaram da Terra Prometida:
hititas, girgaseus, amorreus, cananeus, perizeus, heveus e jebuseus297. O
objectivo é evitar a adoração de outros deuses que não seja Yahveh. Mas o
prosélito circunciso, exactamente por não oferecer este perigo, não parece
estar sujeito a esta restrição.
O colono ou residente temporário não circunciso estava igualmente
submetido ao Pacto da Lei, mas tinha direitos mais limitados. Podia ser
escravizado, sem direito a resgate, e não participava das festividades re-
ligiosas.
Não conhecemos das leis mosaicas nenhuma norma destinada a re-
gular conflitos de leis.

4. DIREITO GREGO

O antigo direito grego não nos legou igualmente um sistema de


solução de conflitos de leis, embora a Grécia antiga oferecesse terreno
propício para o efeito298. A Grécia encontrava-se, com efeito, dividida em

293 O Pacto da Lei reconhecia-lhe um direito a alimentos: “E o sábado da terra tem de servir-
vos de alimento, para ti e para teu escravo, e para tua escrava, e para teu trabalhador contratado
e para o colono e os que residem contigo como forasteiros”( Lev. 25:6). Para maiores
desenvolvimentos, ver Ajuda ao Entendimento da Bíblia..., vol. 4º. vb. Residente forasteiro,
pp 1428 e segs.
294 Note-se que nas leis mosaicas a propriedade da terra pertence a Jeová (Lev. 25:23).
295 Ex. 21:2 “Caso compres um escravo hebreu será escravo por seis anos, mas no sétimo sairá
como alguém liberto, sem custo”
296 Lev. 25:8 e segs “E tens de contar para ti sete sábados de anos, sete vezes sete anos e os dias
dos sete sábados de anos têm de somar para ti quarenta e nove anos. ... Nesse ano deveis tornar
cada um à sua propriedade”. (Lev. 25:13). Tratava-se de um ano de Festa à semelhança
do Ano Sabático em que a terra permanecia em poisio. No Ano do Jubileu “há perdão
geral e dá-se um reajuste da riqueza, no sentido de manter a maior igualdade possível”
Ver sobre este ponto: Lara PEINADO, ob. cit. pp. 40; Ajuda ao entendimento da Bíblia...
vb Jubileu.
297 Deut. 7:1.
298 Um importante estudo sobre os conflitos de leis no direito grego deve-se a Hans
e outros escritos jurídicos 129

cidades-estado, constituindo cada uma um território independente299,


com as suas próprias leis, apesar de se reconhecerem como pertencentes
à mesma comunidade religiosa, política, social e cultural - a comunidade
helénica300.
Os gregos distinguiam, por ordem de importância, três categorias
de estrangeiros: os isotelos, os metecos e os bárbaros301. Os isotelos são os
estrangeiros pertencentes à comunidade helénica. Encontram-se abrangi-
dos por um tratado que lhes dá o nome: tratado de isopolítica ou tratado
de isopoliteia. A isopoliteia constitui, ao lado da sympoliteia, uma das for-
mas mais antigas de dupla cidadania e distingue-se desta última pelos
seguintes traços característicos: em ambas as modalidades de tratados, as
cidades aliadas concordam em atribuir a respectiva cidadania aos cida-
dãos de outra cidade, mas, ao passo que na isopoliteia cada cidade-estado
conserva a sua soberania, na sympoliteia fundem-se as soberanias, dando
lugar a um ente jurídico-político diverso das cidades aliadas. Por isso, na
sympoliteia desaparece a figura do estrangeiro que, todavia, é conservada
na isopoliteia, daí a categoria dos isotelos. Os isotelos são assim uma catego-
ria de estrangeiros privilegiados, pois, os cidadãos de uma cidade-estado
abrangidos por um tratado de isopoliteia gozam no território da outra da
quase totalidade dos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres.
Diferentemente dos isotelos, os metecos constituem a categoria de es-

LEWALD: Conflits de lois dans le monde grec et romain, estudo inicialmente publicado
em Atenas (1946) e republicada após a morte do autor na Revue Critique de Droit
International Privé, 1968, pp. 419 e segs e 615 e segs. LEWALD reuniu diversos
documentos que vieram demonstrar que na Grécia e Roma antigas os legisladores e
magistrados não só foram muitas vezes colocados perante problemas de conflitos de
leis, como apontaram uma solução para tais conflitos, seja de ordem formal, como de
ordem material, mas, como refere este autor, a obra de referência sobre esta matéria
é devida a Ludwig MITTEIS, intitulada Reichsrecht und Volksrecht (1891). Todavia, a
importância do trabalho de LEWALD é reconhecida por um grande nomes do Direito
Romano Vicenzo ARANGIO-RUIZ que tece os maiores elogios à obra de quem ele
chama LEWALD DI BASILEA - Sul Problema della doppia citttadinanza nella Repubblica e
nell’impero romano, Scritti giuridici in onere di Francesco CARNELUTTI, vol. IV pp. 65
e segs.
299 Cfr. Truyol Y SERRA, Genèse et Fondements spirituels de l’idée d’une communauté univeselle
- De la civitas maxima stoïcienne à la civitas gentium moderne, Lisboa, 1958, pp. 23 e
segs.
300 Politicamente desunidos, mas espiritualmente ligados pelo “ mesmo sangue, a mesma
língua, templos dos deuses e sacrifícios comuns, bem como os hábitos e costumes” -
Heródoto (sec. VIII a.C.) - cit. por M. H. Rocha PEREIRA, VERBO - Enciclopédia Luso
- brasileira de cultura, vb. Grécia - Grécia Antiga, vol. 9, col. 976.
301 Cf.. Tito FULGENCIO, Synthesis de Direito Internacional Privado (Theoria-Jurisprudência-
Convenções) Rio de Janeiro, 1937, pp. 15.
130 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

trangeiros com direito de estabelecimento. No sentido moderno do termo,


são os estrangeiros a quem tenha sido concedida uma autorização de resi-
dência. Distinguem-se dos isotelos por não se encontrarem compreendidos
por um tratado de isopolítica, mas, à semelhança do residente forasteiro,
encontram-se abrangidos por um Pacto de Hospitalidade que os coloca
sob a protecção do proxena, cidadão influente da cidade de residência
escolhido pela cidade de origem e submetidos à jurisdição do polemarca,
magistrado com poderes de administração da guerra. Os seus direitos são
muito limitados: não podem possuir imóveis, nem contrair casamento302,
nem fazer testamento ou receber heranças303. Podiam, todavia, ser isentos
de impostos, usar de pastos e traficar no Ágora304.
Os bárbaros, por último, são estrangeiros completamente alheios
à comunidade helénica. Não gozam de quaisquer direitos e poderão ser
submetidos à escravidão305.
Assim, no direito grego afigura-se-nos de distinguir duas ordens de
conflitos de leis. Os conflitos a que hoje chamaríamos conflitos inter-locais
que se verificam no quadro pan-helénico306 e são decorrentes da diversi-
dade das leis das diferentes cidades-estado; e os conflitos internacionais que
se verificam entre uma cidade grega e uma cidade estrangeira ao mundo
helénico, como, por exemplo, uma cidade egípcia, romana ou hebraica.
Qualquer das duas ordens de conflitos recebeu tratamento, tanto a nível
legal como jurisprudencial.
Os conflitos verificados no quadro pan-helénico foram muitas ve-
zes resolvidos mediante a celebração dos chamados tratados processuais
ou tratados judiciais, que consistiam em convénios estabelecidos entre ci-
dades-estado, para a solução dos litígios decorrentes das relações esta-
belecidas entre cidadãos das mesmas cidades. O objectivo inicial destes
tratados foi o de regular a competência dos juízes e estabelecer normas

302 Segundo PHILLIPSON (The international law and custom of ancient Greece and Rome,
1911, I) o estrangeiro que casava com uma mulher ateniense era vendido como escravo,
confiscando-se-lhe todos os bens, um terço dos quais se destinava ao denunciante; se
um ateniense casava com uma estrangeira era castigado com multa de 1000 dracmas”
cit. por Federico de Castro y Bravo, La doble nacionalidad, pp. 92, nota 50.
303 Tito FULGENCIO, ob. loc. cit. .
304 Ágora “era o centro de reunião nas cidades gregas, servindo de mercado, de local de
encontro, de manifestações religiosas e cívicas e de assembleias políticas” – Enciclopédia
Fundamental VERBO, vb. Ágora.
305 O direito de submeter os bárbaros à escravidão tem os seus fundamentos na filosofia
aristotélica.
306 A expressão é de TRUYOL Y SERRA, Genèse et fondements... pp. 24.
e outros escritos jurídicos 131

processuais que deveriam ser observadas na composição dos referidos li-


tígios - daí o seu nome. Estes tratados adoptaram, porém, normas de uma
dupla natureza: umas vezes regularam directamente a situação pluriloca-
lizada, adoptando, para o efeito, uma norma material307. Mas outras vezes,
o tratado solucionava o conflito por recurso a uma via formal: de entre as
leis em concurso potencial o tratado estabelecia qual delas seria aplicável
em caso de conflito308.
Era usual igualmente o recurso a magistrados oriundos de outra
cidade (um pouco à semelhança dos chamados juizes-de-fora que vigora-
ram em Portugal) para fazer face à acumulação de pleitos. Na opinião de
LEWALD, retomada por Yanguas MESSÍA, os juízes solicitados aplica-
vam o direito da cidade onde habitualmente exerciam as suas funções e
não o daquela donde eram originários309.
No que respeita aos conflitos internacionais estes eram pouco signi-
ficativos, dado o carácter hermético da sociedade helénica. Sabe-se, toda-
via, que, os contratos, eram regulados pelo critério da língua. Um contrato
celebrado entre um grego e um egípcio seria regulado pela lei grega, caso
estivesse escrito em grego e vice-versa310. LEWALD aponta este critério
como um verdadeiro elemento de conexão e, sendo certo, que ao critério
da língua estava naturalmente associado a vontade das partes em esco-
lher esta ou aquela língua como língua do contrato, esta vontade “decidia,

307 Um exemplo de regulação dos conflitos de leis pela via material vem referido em Hans
LEWALD. Reporta-se à Carta concedida pelo Rei Antígona à cidade grega de Teos.
Segundo esta Carta os habitantes de Labedos, na Ásia Menor, deveriam abandonar
a sua Pátria e estabelecer-se em Teos. De entre as medidas programáticas fixadas
pelo Rei Antígona, as duas cidades passariam a reger-se pelas mesmas leis, no caso,
emprestadas à cidade vizinha de Kos, para uso provisório - In Conflits de lois dans le
monde grec et romain, cit., pp. 423-424.
308 Cf. LEWALD, Conflits de lois..., pp. 423-424 ; Yanguas MESSÍA, in Derecho Internacional
Privado..., pp. 58. Num desses tratados de reciprocidade ficou estabelecido que se
um cidadão de uma das cidades cometer um delito na outra deverá ser julgado na
sua pátria e segundo a lei desta. Embora este tratado visasse em particular acções
criminais, encontramos aqui, certamente, uma das mais antigas soluções em matéria da
lei reguladora da responsabilidade extracontratual: aplicação da lei da nacionalidade.
Além de resolver um conflito de leis em matéria de responsabilidade extra-contratual,
o tratado resolve igualmente um conflito de jurisdições, atribuindo a competência
ao tribunal da nacionalidade do réu. cf. Arangio-RUIZ, Sul problema della doppia
cittadinanza..., pp. 65, nota 2.
309 Cfr. Hans LEWALD, ob. cit. pp. 426; José de Yanguas MESSÍA, in Derecho Internacional
Privado, pp. 59.
310 Ver sobre este ponto Vicenzo ARANGIO RUIZ, Sul problema della doppia cittadinanza...,
pp. 67.
132 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

em última instância, a jurisdição competente e, ao mesmo tempo, o direito


material aplicável”311

5. DIREITO ROMANO

Os romanos foram incontestavelmente o povo que maior legado de


leis deixou à humanidade. Praticamente nenhuma área da ciência jurídica
passou despercebida a esses homens para quem o direito, mais do que
um conjunto de normas, é uma ciência e, mais do que uma ciência, é uma
arte. CÍCERO dizia, com orgulho, comparando o Direito Romano com os
direitos de outros povos: “Através do conhecimento do direito, colhereis ainda
o fruto da alegria e o prazer de compreenderdes com toda a facilidade quanto os
nossos maiores estiveram à frente dos outros povos em clarividência, se vos derdes
ao trabalho de comparar as nossas leis com as deles - de Licurgo, de Drácon, de Só-
lon. É inacreditável como todo o Direito Civil, para além do nosso, é rude e quase
ridículo. É assunto em que tenho por hábito espraiar-me nas minhas conversas
diárias, quando coloco a clarividência dos nossos homens à frente da de todos os
restantes, e especialmente dos Gregos312”.
Apesar desse esplendor, é comum o ponto de vista segundo o
qual o Direito Romano não adoptou um sistema de solução de conflito
de leis313. Esta afirmação deve, contudo, merecer-nos as devidas caute-
las. Se, por vício metodológico, buscarmos no Direito Romano antigo um
sistema de solução de conflitos de leis, tal como hoje o conhecemos, de
características predominantemente formais, debalde o faremos, pois não
encontraremos semelhante sistema no Direito Romano314. Todavia, peran-

311 Cfr. LEWALD, ob. cit. pp. 438-439.


312 In Orador, I.44.195.197: cit. por Maria Helena da Rocha PEREIRA, in Romana – antologia
da cultura latina, Universidade de Coimbra, 1987, pp. 26-27.
313 Neste sentido GUTZWILLER para quem “os pais do Direito Internacional Privado
moderno não são nem JULIANO, nem PAPINIANO, nem ULPIANO, nem
TRIBONIANO e os seus colaboradores, mas sim os jurisconsultos posteriores do século
XI” - cit. por D. José Pintó RUIZ, in Derecho Internacional Privado, Nueva Enciclopedia
Juridica, tomo I, Barcelona, 1950, pp. 545, ideia reafirmada nos mesmos termos por
A.FERRER CORREIA, in Lições de Direito Internacional Privado, Coimbra, 1973, pp. 141.
Este ponto de vista foi recentemente retomado por A. MARQUES DOS SANTOS, para
quem em consequência do não reconhecimento do princípio da personalidade jurídica
aos estrangeiros na antiguidade clássica - Grécia e Roma - ”a questão das relações
privadas internacionais não se chega sequer a colocar” - in Direito Internacional Privado,
Sumários, 1997, pp. 61.
314 Por isso, alguma doutrina tem preferido falar não num Direito Internacional Privado,
e outros escritos jurídicos 133

te a justiça de Roma colocaram-se questões privadas internacionais a que


os jurisconsultos romanos foram chamados a dar uma solução, que terá
passado, algumas vezes, por uma perspectiva conflitual, mas outras vezes
pela aplicação de um corpo de normas materiais destinadas a regular as
referidas questões privadas internacionais. Concordamos, pois, com PIN-
TÓ RUIZ quando chama a atenção para o “perigo” que envolve a referida
afirmação. E, como demonstraremos mais adiante, não é inteiramente cor-
recta a opinião, nomeadamente, de YANGUAS MESSÍA segundo a qual
“o Direito Internacional privado não podia surgir no Império Romano
onde nenhum direito estrangeiro era admitido, nem de modo algum se-
ria imaginável uma remissão para uma lei estrangeira”315. Os documentos
hoje conhecidos desmentem esta afirmação: não só os magistrados roma-
nos foram muitas vezes chamados a aplicar direito estrangeiro, como re-
conheceram efeitos de direito na ordem jurídica do foro a situações jurídi-
cas constituídas no Estado local, entendido como o lugar de constituição
das referidas relações privadas internacionais316.
Tal como procedemos com os três monumentos legislativos prece-
dentes - o Código de Hammurabi, as leis mosaicas (Tora ou Pentateuco) e
o Direito Grego - a compreensão do papel do Direito Romano na história
do DIP passa pelo conhecimento da condição jurídica do estrangeiro em
Roma, donde ressaltarão, certamente, as contribuições trazidas pela or-
dem jurídica romana para o nosso ramo de direito.
Ocupemo-nos, antes de mais, de um problema terminológico. O
estrangeiro é referido na ordem jurídica romana, pelo menos, sob uma
dupla menção. Na Lei das XII Tábuas o estrangeiro é o hostil (hostis), ter-
mo que parece ter o mesmo sentido que peregrinus. Segundo LUZZATTO,
hostis e peregrinus indicam “aquele que, não sendo cidadão romano, tenha
fixado a sua residência em Roma”. Entre as duas palavras parece haver,
contudo, uma diferença de graus: o peregrinus “na sua acepção originária

mas sim num direito privado intersocial romano, fórmula que teria um sentido mais
amplo que a expressão DIP. Neste sentido Carlos Sanchez del Río y Peguero, in Manual
de Derecho Romano (Zaragoza, 1940), apud José Antonio Pastor RIDRUEJO, in Sobre la
existência de un Derecho Internacional Privado en Roma, TEMIS, 1967, pp. 143.
315 Citado por RUIZ, ob. cit. pp. 545. O Professor José de Yanguas MESSÍA continuou a
sustentar este ponto de vista em Derecho Internacional Privado, Parte General, Madrid,
1971, pp. 59 e segs.
316 Para uma análise profunda deste problema são de particular importância trabalhos
desenvolvidos Edoardo VOLTERRA. Ver os seus estudos sobre o matrimonio (dir. rom.)
in Noviss. Dig. Ital. vol. X, e, com particular interesse, o estudo sobre o mesmo tema
na Enc. Diritto, vol. XXV e, com particularíssimo interesse, o capítulo sobre a união
conjugal de peregrinos.
134 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

é o súbdito de um Estado soberano ligado a Roma pela foedus ou de um


Estado com o qual Roma mantém relações de amizade (amicitia) ”. O pe-
regrinus é aquele que vem em missão de paz317. Trata-se de um cidadão
livre, porém, de nacionalidade estrangeira. O hostis parece indicar o cida-
dão estrangeiro, cujo país se encontra em estado de guerra com Roma318.
Há unanimidade entre os autores no sentido de que o estrangeiro
não peregrino, por conseguinte não abrangido por nenhum tratado de
amizade ou de foederatio, não gozava em Roma de quaisquer direitos319.
Relativamente a estes funcionava o instituto do hospitium que tal como
se verificou no direito mosaico com a categoria do residente forasteiro e no
direito grego, com o instituto do patronato, visava a protecção do estran-
geiro320.
No que respeita aos peregrini, estrangeiros abrangidos por um tra-
tado de foederatio ou de amicitia, a sua condição jurídica estava, antes de

317 “O peregrino é o homem livre que não é provido nem do direito de cidade, nem do
direito latino, sem ser inimigo público. Torna-se peregrino ou por nascimento, ou pela
perda do direito de cidade. Há duas grandes categorias de peregrinos: os provinciais
e os povos independentes, situados fora das fronteiras romanas. Estes povos são
também aliados a Roma por tratados que protegem os seus nacionais. [...] Resultavam
os peregrinos das anexações que, por conquista, ou por tratado de submissão, mais ou
menos disfarçada, faziam os Romanos, conseguindo submeter à autoridade do império
as populações de regiões sempre mais extensas, sem dar-lhes a qualidade de cidadãos,
nem obrigá-los à escravidão”: CÉSAR DA SILVEIRA, ob. cit. vol. II, vb. Peregrinus.
318 LOUZZATTO, ibidem.
319 Cf.. Truyol y SERRA, in História do Direito Internacional Público... pp. 28.
320 Os Pactos de Hospitalidade, esse instituto que, como temos vindo a verificar, vigorou
praticamente em todos os direitos da antiguidade clássica e se descaracterizou na sua
natureza inicialmente privada e familiar para passar a ser um instituto de carácter
público, encontraram igualmente expressão na Península Ibérica. J. A. NOGUEIRA dá
notícia de dois Pactos de Hospitalidade e Aliança celebrados entre povos indígenas do
Norte da Península, cujos termos são os seguintes:
“No dia [...] do ano em que foram cônsules M. L. Craso e L. Pisão, a gentilidade dos Desoncos,
pertence à gente dos Zoelas, e a gentilidade dos Trídiavos, pertence à mesma gente dos Zoelas,
renovaram o seu antigo pacto de hospitalidade e todos se receberam uns aos outros em
fidelidade e clientela, tanto na sua como na dos seus descendentes. Fizeram-no em Arausa, filho
de Bleceno, e Turaio, filho de Cloucio, e Docio, filho de Elesio, e Magilo, filho de Cloucio,
e Bodecio, filho de Burral, e Elesio, filho de Clutamo, através de Avieno, filho de Pentilo,
magistrado dos Zoelas. Feito em Curunda”.
“No dia [...], sendo cônsules Glabrio e Hómulo, a mesma gentilidade dos Desoncos e a
gentilidade dos Trídiavos receberam na mesma clientela e aliança Semprónio Perpétuo Orniaco,
pertencente à gente dos Avolgigoros, e António Arquio, da gente dos Cabruagenigos. Fizeram-
no Lucio Domicio Silo e Lúcio Fávio Severo em Astorga”. in As instituições e o Direito -
História de Portugal (origens - 1245) dirigida por José Hermano SARAIVA, publicações
ALFA, Lisboa, 1983, vol. I, pp. 402.
e outros escritos jurídicos 135

mais, definida pelo respectivo tratado321 que muitas vezes apontava para
uma solução formal. Sabe-se, por exemplo, que, o tratado celebrado entre
Roma e Cartago previa a regulação recíproca das controvérsias entre ro-
manos e cartagineses mediante a aplicação de suis legibus uti, respectiva-
mente, na Sicília e em Cartago, para os romanos, e em Roma, para os car-
tagineses322 . O critério acolhido neste tratado é, portanto, o da aplicação
da lei da nacionalidade (critério formal) independentemente do conteúdo
material desta lei.
Com o desenvolvimento do comércio tornou-se imperiosa a ne-
cessidade de um maior reconhecimento de direitos aos estrangeiros. Um
primeiro procedimento terá sido o recurso a uma actio ficticia, baseada
numa fictio civitatis, a favor dos peregrinos323. Mas em 241 a.C. foi criado
em Roma o praetor peregrinus, magistrado com poderes para regular as
relações dos peregrinos entre si e entre estes e os romanos. O praetor pe-
regrinus aplicava fundamentalmente dois corpos de normas: tratando-se
de peregrinos da mesma nacionalidade as relações entre estes podiam ser
reguladas suis legibus uti; tratando-se, porém, de peregrinos de diversa na-
cionalidade ou de relações entre peregrinos e cidadãos romanos, seriam
reguladas por um corpo de normas a que se convencionou chamar jus
gentium, por oposição ao jus civile324.
A natureza e origem do jus gentium são ainda uma questão em aber-
to entre os romanistas. LUZZATTO chama a atenção para a tautologia
que consiste em considerá-lo uma criação do praetor peregrinus325. Trata-

321 Chamavam-se recuperadores (reciperatio) o colégio de juizes encarregados de velar pela


observância e execução dos tratados. Cfr. FOELIX, Traité du Droit International Privé ou
Du Conflit des Lois de différentes nations en matière de Droit Privé, Paris, 1856, vol. I, pp.
6-7; LUZZATTO, in Peregrini ... pp. 932.
322 LUZZATTO, ob. loc. cit..
323 LUZZATTO, ob. loc. cit. Neste mesmo sentido se pronuncia MICHEL VILLEY, in
Direito Romano, Tradução portuguesa de Fernando COUTO, Porto, s/d, pp. 67.
Discorrendo sobre o valor da justiça da Roma clássica e o desenvolvimento do direito,
considera, a dado passo, que “os peregrinos que a cidade antiga não se preocupava
em proteger, gozavam agora, com a ajuda de fórmulas fictícias, dos mesmos direitos
privados dos romanos...”.
324 “A diferença entre o jus gentium e o jus civile é de essência internacional: o jus civile
é o direito nacional, autóctone, da comunidade romana; jus gentium, ao contrário é o
direito comum a Roma e outros povos da civilização mediterrânea”- SILVEIRA, vb.
Jus gentium.
325 Ideia defendida entre outros autores por TRIAS DE BES, citado por José J. Pintó RUIZ,
in Derecho Internacional Privado, Nueva enciclopedia Juridica, Tomo I, Barcelona 1950,
136 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

se, é certo, de um dos corpos de normas a que este magistrado recorria


para regular as controvérsias inter peregrinos et inter cives et peregrinos, cuja
origem, segundo uns, se encontra na recepção pelo Direito Romano de
“institutos do comércio mediterrâneo” e, segundo outros, na iuris dictio
dos pretores romanos326.
Ambos os pontos de vista têm sido rejeitados. O primeiro parece
estar desmentido pela circunstância de o jus gentium prever institutos des-
conhecidos de quaisquer dos direitos do mundo mediterrânico, como, por
exemplo, os contratos consensuais327. O segundo é criticado por envolver
uma concepção demasiado estatista do direito. “Dado que o direito é sem-
pre pensado em relação com um órgão do Estado que o produz quer-se
caracterizar este órgão no pretor peregrino”. Mas o papel deste órgão terá
sido mais o de sancionar as estipulações das partes, do que propriamente
um papel de criação do direito328.
Um ponto de vista que parece dominar entre os jurisconsultos ro-
manos é o de que o jus gentium tem o seu fundamento na razão humana.

ps 545, que não contesta esta opinião. António TRUYOL Y SERRA, Genèse et fondements
spirituels de l’idée d’une communauté universelle - De la civitas maxima stoïcienne à la civitas
gentium moderne, pp. 34. cf.. ainda A. MARQUES DOS SANTOS, Direito Internacional
Privado Lisboa, (1997), pp. 62.
326 Neste sentido BETTI, cit. por Mário BRETONE, in História do Direito Romano... pp.. 105.
327 Cf.. LUZZATTO, ob. cit. pp. 933: “os contratos consensuais que constituem de longe
o núcleo mais importante e, do ponto de vista da elaboração jurisprudencial, um dos
mais desenvolvidos institutos do jus gentium, não encontram paralelo em nenhum dos
direitos do mundo mediterrânico”.
328 “Na realidade tudo deixa supor que os mercadores romanos e estrangeiros que
estipulavam uma compra e venda em Éfeso ou em Rodes, em Roma ou em Alexandria,
considerassem o vínculo independentemente da tutela magistratural. As coisas não se
passavam diferentemente com os contratos do jus gentium. O próprio pretor, quando
insere no seu édito os juizos de boa-fé que lhe dizem respeito, sabe que se refere a
uma experiência que é já entendida, pelo menos numa certa medida, como jurídica; a
confirmação e não a criação. Por outro lado, naquela experiência agiam valores que
eram largamente difundidos. [ ...] A sua dimensão é mediterrânica, não citadina ou
local e a cultura dentro da qual se desenvolve é a helénica” - BRETONE, História...
pp. 105. No mesmo sentido se pronuncia Giovanni PUGLIESE, in Istituzioni di Diritto
Romano, Torino, 1994, pp. 52-53, reconhecendo que, embora o jus gentium seja direito
romano, aplicado pelos magistrados romanos, nos tribunais romanos, “encontra o
seu alimento nos institutos considerados comuns a todos os povos ou em institutos
seguramente de origem estrangeira”.
e outros escritos jurídicos 137

Trata-se de uma ideia presente em ULPIANO329 e também em GAIO330 que


a este propósito discorre deste modo: “Todos os povos que se governam por
leis e costumes usam em parte o seu direito peculiar, em parte o comum a todos
os homens. Pois o direito que cada povo estabeleceu para si é próprio da cidade e
chama-se direito civil (jus civile) como direito próprio que é da mesma cidade; em
contrapartida o que a razão natural estabelece entre todos os homens é observado
por todos os povos e denomina-se direito das gentes (jus gentium) como direito
que usam todas as gentes”331. O procedimento no sentido de saber se um
certo instituto pertence ou não ao jus gentium parece ser o de averiguar se,
de acordo com a naturalis ratio, o mesmo é reconhecido pelo comum das
nações332. Assim, têm-se como pertencente ao direito das gentes a potestas

329 “Jus gentium est, quo gentes humanae utúntur ( Dig. 1,1,1,4) cit. por SILVEIRA, vb. Jus
gentium.
330 “Jus gentium est quod naturalis ratio inter omnes homines constituit” ( Dig.. 1,1,,9) : direito
das gentes é o que a razão natural estabeleceu entre todos os homens: cit. por SILVEIRA,
vb. Jus gentium.
331 “Omnes popoli, qui legibus et moribus reguntur, partim suo proprio, partim comuni omnium,
hominum iure utuntur: nam quod quisque populus ipse sibi ius constituit, id ipsus proprium
est vocaturque ius civile, quasi ius proprium civitatis; quod vero naturalis ratio inter omnes
homines constituit, id apud omnes populus peraeque custoditur vocaturque ius gentium, quasi
quo iure omnes gentes utuntur. Populus itaque romanus partim suo proprio, partim comuni
omnium hominum iure ititur – Dig. I.I.9 – passagem citada por Gabrio LOMBARDI in vb
Jus gentium, Noviss. Dig. Italiano.
332 Os romanos terão recolhido esta ideia em ARISTÓTELES que defendia a existência
de um direito comum aos vários povos ou à socidade dos homens, direito este mais
justo, eticamente melhor, porque fundado na natureza (PUGLIESE, Istituzioni... 53).
No mesmo sentido, SILVEIRA: “a concepção de um direito universal foi pressentida
pelos gregos (Sófocles, Demóstenes, Aristóteles). Xenofonte fala a este respeito de um
direito não escrito comum a todos os homens” (in Dicionário... vb. Jus gentium). A ideia
de comunidade no mundo grego é ainda admitida por LEWALD. Ao discorrer sobre
o sentido da referência contida nalguns tratados celebrados entre as cidades gregas,
conforme à qual as controvérsias entre cidadãos gregos oriundos de diversa cidade
deveriam ser reguladas “segundo as leis”, sem indicar qual fosse o direito aplicável,
LEWALD admite que esse direito resulta da semelhança entre os diversos direitos
das numerosas comunidades helénicas, donde resultam vários princípios como
pertencentes não ao ordenamento desta ou daquela cidade, mas de uma espécie de
direito comum grego in Conflits de lois dans le monde grec et romain, pp. 421. Cf. ainda
Vicenzo ARRANGIO-RUIZ, in Sul problema della doppia cittadinanza nella Repubblica e
nell’imppero romano, pp. 65. SILVEIRA considera que CÍCERO se tornou o eco dessas
doutrinas: est enim vera lex recta ratio naturae congruens. Nec erit alia lex Romae, alia
Athenis, alia nunc alia posthac, sed et omnibus gentibus et omni tempore uma lex et sempiterna
et immutabilis (De Rep. III, 22)”: in Dicionário... vb. Jus gentium.
138 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

sobre os escravos; a tutela sobre os impúberes; o alluvio333; a traditio334; a


numeratio pecunia335; a societas; a concessão de um bem em precário; o uso
da orla marítima; a proibição do incesto; a stipulatio336; o sponsio-stipula-
tio337; a acceptilatio338; o depositum; o commodatum e outras conventiones iures

333 “Aluvião. “Chama-se aluvião ao acréscimo paulatino feito nas propriedades ribeirinhas,
seja de lôdo terroso, que as águas dos rios depositam ao longo das suas margens, seja
de parte do leito, quando a corrente das águas muda de uma margem para outra”
- César DA SILVEIRA, in Dicionário ..., vol. I, vb. alluvio. GAIO confirma que se trata
de um instituto do direito das gentes: “quod per alluvionem agro nostro flumen adicit, id
iure gentium nobis adquíritur (GAIO Dig. 41, 1, 7, 1) - cit. por SILVEIRA, ob. loc. cit.. Cfr.
igualmente Faustino Gutiérrez-Alviz y ARMARIO, in Diccionario de Derecho Romano,
tercera edición, Madrid, 1982, vb. alluvio. Este direito tem ainda hoje acolhimento nas
ordens jurídicas modernas. Sobre o regime do aluvião no actual direito português, ver
artºs. 1327º e segs do CC.
334 A traditio consiste numa forma não solene de transferir a propriedade em virtude da
entrega da coisa com intenção de transferi-la - ARMARIO, ob. cit. pp. 671, vb. traditio.
Assumiu várias modalidades: traditio corporális; traditio cartea; traditio ficta; traditio
brevi manu; traditio ad incerta personam; traditio ex justa causa. Sobre estas diferentes
modalidades da traditio, ver SILVEIRA, ob. loc. cit. e ARMARIO, ob. loc. cit.
335 Consiste no preço, no contrato de compra e venda romano. Ver SILVEIRA, ob. cit. vb.
Numerata pecunia.
336 “Estipulação é uma fórmula verbal, com a qual o que é interrogado responde que há de
dar ou há de fazer o que se lhe interrogou” [...] “Modo solene e formalizado de contrair
uma obrigação” - SILVEIRA, ob. cit. vb. stipulatio. Para maiores desenvolvimentos
sobre esta figura, ver este autor e ainda ARMARIO, ob. cit. vb. stipulatio e as respectivas
variantes.
337 Instituto pelo qual um cidadão podia prometer a outro cidadão dar, fazer ou não fazer
alguma coisa - PUGLIESE, Instituzioni ... pp. 53. O instituto da sponsio-stipulatio revela,
ao lado do foenus nauticum, a interpenetração recíproca de institutos especificamente
romanos com institutos estrangeiros. A sponsio-stipulatio é um instituto do jus civile
tornado acessível aos estrangeiros, passando, portanto, a integrar o jus gentium. A
foenus nauticum é um instituto do direito grego. Mas o jus gentium não integrava apenas
institutos do direito privado, mas também institutos do direito público, como por
exemplo, “as regras consuetudinárias sobre relações de guerra e paz” - PUGLIESE,
ob. loc. cit - donde se pode partir para concluir que o actual Direito das gentes, Direito
Internacional Público, encontrou também alí a sua génese, sofrendo o jus gentium
uma espécie de bifurcação: jus gentium privatum e jus gentium publicum. Utiliza esta
terminologia referindo-se ao jus gentium publicum, como Direito Internacional Público
e ao jus gentium privatum como Direito Internacional Privado, FOELIX, in Traité de Droit
International Privé ou du conflit des lois des differentes nations, cit., vol. I, pp. 1-2.
338 Contrariamente à stipulatio, a acceptilatio consiste num modo de extinção ipso jure
das obrigações contraídas por via da stipulatio. Trata-se de uma pergunta feita ao
credor no sentido de saber se o devedor cumpriu a obrigação a que o credor responde
afirmativamente: assim, ARMARIO, ob. cit., vb Acceptilatio.
e outros escritos jurídicos 139

gentium339 além de princípios como o do “respeito pela palavra dada, da


lealdade e da boa fé”.
No que concerne ao estatuto pessoal do estrangeiro, não sendo es-
cravo, era-lhe reconhecida capacidade para contrair matrimónio, válido
secundum leges moresque peregrinorum340. Embora este casamento não pu-
desse ser considerado umas iustae nuptiae, no sentido romano do termo,
a verdade é que os casamentos inter peregrinus da mesma nacionalidade
eram considerados casamentos legítimos, desde que, de acordo com a res-
pectiva lei nacional, fossem como tal considerados. A tais casamentos os
magistrados romanos não aplicavam o direito romano, mas sim o direito
nacional dos peregrinos, com todas as consequências daí decorrentes, no-
meadamente, no que respeita à filiação, pois, neste caso, o filho seguia a
condição do pai341. VOLTERRA refere-se a um processo julgado a 13 de
Abril de 124 d.C., perante um magistrado romano, que tinha por objecto
resolver uma questão da sucessão de um pai no património hereditário
do filho pré-morto. Este havia feito testamento pelo qual deixava todos os
seus bens a uma terceira pessoa. No caso de espécie o juiz romano aplicou
uma norma de direito local que distinguia consoante o matrimónio não
fosse escrito (αγραφος) ou fosse registado (εγγραφος). Esta situação - a de
saber se o matrimónio era ou não registado - que, segundo a doutrina ho-
dierna, envolveria o tratamento de uma questão prévia -, não foi solucio-
nada pelo magistrado romano, que proferiu uma sentença interlocutória,
ordenando à parte interessada a prova da sua asserção segundo a qual o
de cujus tinha nascido de um matrimónio registado. Segundo VOLTER-
RA, na solução do caso “não se coloca, ainda que remotamente, a dúvida
de que aquela união, celebrada por um modo de todo diverso da união

339 Sobre todos estes aspectos, ver BRETONE, História... pp. 99-100.
340 Este ponto de vista não parece oferecer objecção entre os autores. Segundo Edoardo
VOLTERRA a pratica de celebração de casamentos em Roma iure peregrinorum foi
adoptada pelos gregos, egípcios, hebreus, fornecendo os papiros greco-egípcios ampla
documentação a este respeito, particularmente a partir dos estudos efectuados por
MONTEVECCHI Ricerche di sociologia nei documenti dell’Egitto greco-romano (1936).
Para maiores desenvolvimentos sobre este ponto, ver o mesmo Edoardo VOLTERRA,
in Matrimónio (diritto romano), Enc. Dir., vol. XXV, pp. 774 e segs.
341 Ver, por todos, VOLTERRA, in Matrimonio (diritto romano) Enc. Dir., vol. XXV, pp. 774.
O reconhecimento de Pilos como civitas libera et immunis permitiu a LEWALD admitir
que os cidadãos romanos ficariam submetidos nessa cidade, em todas as suas relações
às leis da mesma. Mas Arangio-Ruiz considera que em questões como legitimidade dos
filhos, extensão da patria potestas, forma interna e externa dos testamentos deveriam ser
disciplinadas pelas leis romanas - Sul problema della doppia cittadinanza... pp. 66. “Parece
absurdo - assegura - que numa cidade submetida à hegemonia romana um cidadão
romano pudesse ser condenado à morte por um juiz local.” - Ibidem.
140 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

romana, não deva considerar-se como um matrimónio legítimo, à qual


são aplicáveis leis matrimoniais e sucessórias nacionais dos cônjuges e
dos filhos nascidos dessa relação”342.
Aos matrimónios entre peregrinos foi aplicado, algumas vezes, o
direito local, sendo o casamento assim celebrado igualmente legítimo343.
Ficou conhecida a este propósito a petição de Dionísia (186 a. C.), na se-
quência da qual os magistrados romanos terão reconhecido efeitos de di-
reito a vários matrimónios celebrados de acordo com o direito egípcio. O
mesmo se terá passado relativamente a casamentos celebrados, durante a
dominação romana, na Palestina, de acordo com o rito mosaico, os quais
foram igualmente reconhecidos pelas autoridades romanas como matri-
mónios legítimos344.
Os magistrados romanos foram também chamados a pronunciar-se
sobre questões que, de acordo com a terminologia hodierna, designaría-
mos como conflito móvel. Tratou-se do problema de saber se estando duas
pessoas validamente casadas iure peregrinorum e como tal reconhecidas
pelo direito e pelas autoridades romanas, e tendo uma ou ambas adquiri-
do a cidadania romana, qual o valor jurídico desse casamento face ao di-
reito romano. Configura-se aqui um verdadeiro conflito móvel que os ma-
gistrados romanos terão solucionado por uma de duas vias: tratando-se
da aquisição de cidadania romana por ambos os cônjuges, o matrimónio
iure peregrinorum transformar-se-ia em iustae nuptiae desde que preenches-
se os três requisitos necessários para a celebração de um casamento válido
de acordo com as leis romanas, ou seja, a presença de conubium, a idade
núbil e a vontade contínua, recíproca e efectiva de se encontrar vincula-
do a um matrimónio. Tratando-se, porém, da aquisição da cidadania por
apenas um dos cônjuges, poder-se-ia pensar, à primeira vista, que não

342 In Matrimonio (diritto romano) Enc. Jur., vol. XXV, pp. 775. O autor não nos informa
sobre o desfecho deste caso. Podemos, todavia, concluir que ao deferir para uma das
partes a demonstração do carácter legítimo ou ilegítimo do casamento, o juiz se recusa
a resolver a questão prévia, que consiste em saber quem é pai, para efeitos de suceder
ao filho, pelo direito romano, resolvendo-a de acordo com o direito nacional (mais
provável, em atenção à última parte do texto transcrito) ou o direito local. Também não
nos esclarece sobre a nacionalidade dos interessados. Mas a circunstância de utilizar
duas palavras gregas, αγραφος e εγγραφος faz crer que se trataria de cidadãos gregos
ou, pelo menos, de um matrimónio celebrado segundo o direito grego. Cf.. ainda M.
FOELIX , Traité..., pp. 8.
343 VOLTERRA refere-se ainda a um édito do Prefeito Servus Sulpicius Similis que
reconhece a aplicabilidade de normas locais respeitantes ao matrimónio e ao regime
patrimonial dos cônjuges no Egipto, por parte dos magistrados romanos (cf. pp. 774,
nota 114).
344 Para maiores desenvolvimentos sobre este ponto ver VOLVERRA, Matrimonio Enc.
Dir., pp. 775-776.
e outros escritos jurídicos 141

poderia haver iustae nuptiae, por ausência de conubium, dissolvendo-se,


em consequência, o matrimónio, visto que o cidadão romano não poderia
encontrar-se validamente casado iure peregrinorum345. Como veremos mais
adiante, o valor jurídico deste matrimónio dependia essencialmente do
conubium. Se, apesar de peregrino, o cônjuge em questão tinha conubium,
seja por atribuição individual, seja por reconhecimento colectivo à res-
pectiva comunidade, este matrimónio misto era reconhecido como iustae
nuptiae, desde que se verificassem os demais requisitos. Pelo contrário, se
ao cônjuge peregrino não era reconhecido o jus conubium, por qualquer
das vias referidas, o matrimónio celebrado iure peregrinorum não podia ser
transformado em iustae nuptiae, sendo para todos os efeitos inexistente no
plano jurídico346.
É oportuno introduzir algumas notas precisamente sobre o jus co-
nubium, outro instituto, ao lado do jus gentium, de relevante importância
para a história do DIP. Ele consiste essencialmente no direito de contrair
casamento, mas apresenta uma estrutura complexa. Prende-se não apenas
com a capacidade para contrair casamento, mas também com aspectos
ligados à cidadania, com a qual se encontra em íntima relação. Em tese ge-
ral, só têm conubium os cidadão romanos, na sua relação entre si, consoante
a clara formulação de ULPIANO: conubium habent cives Romani cum civibus
Romanis347. Mas também só têm conubium os nascidos das iustae nuptiae,
sendo certo que só podem celebrar iustae nuptiae, iustum matrimonium, os
cidadãos romanos348. O conubium era, portanto, uma condição dependente
da personalidade jurídica dos cônjuges, na sua relação entre si, condição
sem a qual o matrimónio não tinha valor jurídico349. Apresentava-se, po-
rém, como uma espada de dois gumes. Com efeito, se só tinham conubium
os cidadãos romanos, do mesmo modo não podiam ser cidadãos romanos
os descendentes de pessoas que entre si não tinham conubium.
Nem todos os cidadãos romanos tinham conubium e cidadãos de
uma determinada classe social tinham conubium relativamente a cidadãos

345 Neste sentido, WILLMAN, cit. por VOLTERRA, Matrimonio (dir. rom.) Enc. Dir., pp.
776, nota 121.
346 Para maiores desenvolvimentos, cf. VOLTERRA, ob. cit. na nota anterior.
347 Fragmenta V,4, cit. por D’ANGELI, La famiglia di fatto, pp. 36, nota 47.
348 Cf.. EDOARDO VOLTERRA in vb Concubinato, Novss. Dig. Ital. pp. 1052. O conubium
era um importante instrumento de política social que visava garantir a estratificaçäo
da sociedade romana. Sobre este ponto cf. Gaetaneo SCIASCIA in A prova da causa do
erro no matrimónio Romano e o casamento putativo, in RFDSP, 1950,vol. XLV, pp. 370 e
segs..(SCIASCIA, ob. cit. pp. 370).
349 Neste sentido, Edoardo VOLTERRA, in Concubinato (dir. rom.) Novss. Dig. Ital., e
ainda Conubium, Novss. Dig. Ital.
142 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

da mesma classe, mas não tinham conubium relativamente a cidadão de


outra classe. Assim, a Lex Duodecim Tabularum não reconhecia o conubium
entre patrícios e plebeus: conubium patribus cum plebo non esto (Tav. XI, 4),
proibição que veio a ser revogada pela Lex Canuleia de 445 a.C. No Baixo-
Império, com a vitória das ideias cristãs de igualdade entre os homens a
noção de conubium começou a ser usada como sinónimo de matrimónio
até que desapareceu como requisito do casamento na época justiniana.
No que respeita aos estrangeiros, o jus conubium foi muitas vezes
concedido tanto a peregrinos, individualmente considerados350, como a
uma certa comunidade. É o mesmo ULPIANO que a este propósito, depois
de afirmar “conubium habent cives romani cum civibus romanis...”: sentencia:
“...cum Latinis autem et peregrinis ita si concessum”. A atribuição do jus co-
nubium aos peregrinos foi muitas vezes utilizado para celebrar tratados de
paz e conferir valor jurídico a casamentos celebrados, nomeadamente, por
militares com peregrinos a que não tinha sido atribuído o jus conubium.
Como assinala PAULO MERÊA, a atribuição desta prerrogativa
configura-se, assim, como uma semi-cidadania351. Ela não só tornava lícito
o matrimónio entre um romano e uma peregrina e entre um peregrino e
uma romana, mas também facultava o acesso a outros direitos, nomea-
damente, o direito de cidade, que viria a ser reconhecido a todos os habi-
tantes do império pelo famoso Édicto de Caracala, publicado no ano 212
d.C.. Embora tivesse na sua base objectivos de ordem puramente fiscal,
pois o que se visava, em primeira linha, era obrigar os habitantes de uma
determinada zona a pagar impostos, o direito de cidade, que, nessa medida,
se configurava mais como um dever, foi ganhando contornos de direito
de participação política. O direito de cidade foi algumas vezes atribuído
sem ter como consequência a perda da própria cidadania, criando uma
situação de dupla cidadania, como se verificou com o Foedus Latinum que
estendeu aos latinos a cidadania romana, sem perda da sua própria cida-
dania352.
Além destes aspectos ligados ao estatuto pessoal dos indivíduos,
dois outros aspectos de relevante importância para a história do DIP ape-
lam, no Direito romano, para a nossa atenção. Trata-se da questão de sa-
ber se os magistrados romanos se terão ou não ocupado da lei reguladora

350 Cf.. LUZZATTO, ob. cit. pp. 933. Segundo este autor a concessão do conubium dumtaxat
cum singulis singulos é geralmente contido nos diplomata militaria com o fim de ratificar
o matrimónio celebrado entre militares e peregrinos.
351 In Estudos de Direito Visigótico, Coimbra, 1948, pp. 234.
352 Cf. Giorgio LURASCHI, in La questione della cittadinanza nell’ultimo secolo della repubblica,
Studia et Documenta Historiae et Juris, vol. LXI, 1995, pp. 17 e segs.
e outros escritos jurídicos 143

das coisas ou da lei reguladora dos contratos, em caso de pluriconexão.


A resposta de ARANGIO-RUIZ, sobre estas matérias, é, em qualquer dos
casos, afirmativa353. Não só está presente no Direito Romano a ideia de
autonomia privada, no sentido em que hoje a conhecemos no Direito In-
ternacional Privado moderno, seja na forma expressa, seja na forma táci-
ta, como se aplicavam aos imóveis a lei territorial. Segundo este autor as
partes podiam escolher a lei aplicável aos contratos, mas a elaboração dos
contratos numa determinada língua fazia presumir que as partes preten-
deram submetê-los a um determinado direito. Assim, os contratos cele-
brados entre indivíduos de diversa nacionalidade e redigidos na língua
grega, indiciavam que as partes tinham pretendido submeter o mesmo
contrato ao tribunal grego dos crematistas e, consequentemente, ao direi-
to grego. Inversamente, o facto de os contratos serem celebrados noutra
língua apontavam em sentido diverso354. O autor é peremptório em afir-
mar, e fá-lo de forma categórica, que as leis reconheciam às partes o poder
de escolherem a lei aplicável aos contratos, direito que parece ter sido não
poucas vezes usado. O critério da língua serve não apenas para resolver
os conflitos de leis, mas também para dirimir os conflitos de jurisdições,
pois, da língua usada nos contratos, se concluía que as partes terão preten-
dido submeter os litígios deles decorrentes a um determinado tribunal.
No que respeita à lei reguladora das coisas, a aplicação da regra
locus rei sitae é de preceito. “ Não se podia pensar [...] - assinala ARAN-
GIO-RUIZ - que a normal publicidade das transacções imobiliárias fosse
transgredida ou que se tentasse regulá-la segundo regras diversas da do
locus rei sitae”355.

353 O autor segue neste ponto LEWALD, in Sul problema della doppia citadinanza.., pp. 67.
354 O Édito de Tolemeo Evergete II, reproduzido num papiro da Vila de Tebtynis, de
118 a.C. regulou expressamente a convenção entre pessoas de diversa nacionalidade:
se um contrato entre um grego e um egípcio estiver escrito na língua grega, compete
ao tribunal grego julgar as questões que se colocarem em torno do mesmo contrato;
se estiver escrito na língua do país (demótica) a competência é do tribunal indígena
- cit. por Arangio-Ruiz, Sul problema della doppia citadinanza... ob. cit. pp. 67. Segundo
este autor, o mesmo critério se seguiu na idade imperial: “como são escritos em latim
todos os negócios de direito da família e de herança pertencentes aos romanos e
porquanto nos poucos contratos cujas partes sejam romanas ou uma parte seja romana
se tenha pretendido aplicar o direito imperial, o uso do grego é sintoma de que a parte
eventualmente romana tenha pretendido ater-se na convenção ao costume local”. ob.
cit. pp. 67.
355 Ob. cit. pp. 66. O autor admite a aplicação em Roma de três categorias de normas: “um
regime do estado e capacidade das pessoas, ditado por uma lei que podemos chamar
lei nacional; um regime de propriedade imobiliária, regulado pela lei territorial e um
regime para os contratos”: ob. cit. pp. 67.
144 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

No plano processual os peregrinos não gozavam inicialmente do


direito de acção. Nos processos em que deveriam intervir só podiam fazê-
lo através do patrono (patronus) que era em última instância o titular da
acção. Com a Lei Sempronia foi reconhecido aos estrangeiros o direito à
accusatio, passando o patronus para a posição processual de representante
ou assistente judiciário356.
Todavia, a condição jurídica dos peregrinii estava sujeita a algumas
limitações. Estes não gozavam de direitos políticos, não podiam ser ma-
gistrado, membros do senado, nem tão pouco participar nos comícios ou
ser membro das forças armadas357. Os estrangeiros não podiam igualmen-
te ser testemunhas358.

6. CONCLUSÃO

De todo o exposto parece poder concluir-se que, se é certo que o


Direito Romano não adoptou um sistema de conflito de leis, tal como hoje
o conhecemos, a verdade é que não deixou de resolver, de acordo com
os recursos doutrinários, legais e jurisprudenciais da época, as questões
privadas internacionais que se colocaram perante a ordem jurídica roma-
na. O verdadeiro conteúdo normativo do jus gentium parece ser o de um
direito de cariz universal, apoiado na razão humana, e não de um direito
autóctone, de carácter interno. Como sustenta BRETONE, a visão que se
fica deste direito não é citadina, mas sim mediterrânica, visão presente,
nomeadamente, em GAIO que fala, a este propósito, em communi om-
nium, hominum iure utuntur, pondo a tónica num direito comum das na-
ções. O jus gentium contém em si esta perspectiva internacionalista, não
no sentido com que hoje reconhecemos esta expressão no actual Direito
Internacional Privado - direito internacional sem deixar de ser direito in-
terno - mas num sentido bem mais profundo que aponta para uma visão
comparatista e que, no plano filosófico tem a sua fonte, não no legislador
interno, (daí a rejeição do ponto de vista de que se trataria de uma cria-
ção do praetor peregrinus), mas sim na razão humana, realidade externa e
superior ao próprio legislador nacional. Neste sentido, o papel do praetor
peregrinus não será o de criar e ditar as normas que integram o jus gentium,
mas sim o de as descobrir e revelar (jus cognoscendi), mediante o uso da

356 Para maiores desenvolvimentos sobre este ponto, ver Jean-Louis FERRARY, in
Patroni et accusateur, pp. 18 e segs.
357 LUZZATTO, ob. cit. pp. 933.
358 Neste sentido, BONFANTE apud V. CÉSAR DE SILVEIRA, in Dicionário de Direito
Romano, S. Paulo 1957, vol. I, vb. Alógrafo.
e outros escritos jurídicos 145

razão, normas estas que se diferem das do jus civile, direito da cidade,
privativo dos cidadãos romanos.
Os magistrados romanos aplicaram direito estrangeiro e reconhe-
ceram efeitos daí decorrentes, tais como direitos matrimoniais, de filiação,
direitos sucessórios, nomeadamente em matéria de validade de testamen-
tos, e outros efeitos decorrentes seja de direitos locais, seja de direitos
nacionais. Esses jurisconsultos recorreram igualmente a ficções jurídicas
(fictio civitatis) para reconhecer certos direitos a estrangeiros, celebraram
tratados que adoptaram soluções formais (por exemplo, aplicação da lei
da nacionalidade) e ocuparam-se de questões complexas com afinidades
com institutos hoje conhecidos, tais como a questão prévia ou o conflito mó-
vel.
Foi igualmente a partir dos textos do Direito Romano que os ju-
risconsultos dos séculos XII e XIII se inspiraram para construir o Direito
Internacional Privado moderno e terá sido, certamente, a partir dos mes-
mos textos, em particular do jus gentium que SAVIGNY retomou a ideia
de comunidade de direito359, donde partiria para construir as suas teses sobre
a regulação das relações privadas internacionais. Dos Romanos há ainda
uma outra conclusão que se nos afigura importante retirar em benefício
do DIP: a flexibilidade com que foram tratadas as questões privadas inter-
nacionais. Como se sabe, em Roma os processos judiciais caracterizavam-
se por um formalismo apertado, formalismo esse que não era observado
na aplicação do jus gentium360.
Parece, assim, poder afirmar-se, com justiça, que, se é certo que os
jurisconsultos romanos não adoptaram um sistema de solução dos confli-
tos de leis, tal como hoje o conhecemos, a verdade é que foi em Roma que
se lançaram as sementes que séculos mais tarde germinariam e viriam a
dar lugar ao aparecimento da primeira escola de DIP - a conhecida Escola
Estatutária de Direito Internacional Privado.

359 Este ponto de vista é sustentado por ARMARIO: “ Por detrás do jus gentium - explica
- parece estar uma ideia de comunidade de direitos. Segundo LOMBARDI trata-se
do direito que a razão natural estabelece entre todos os homens ou o direito que
usam todas as nações . (G.1,1.I.1,2,1. D.1,1,1,4. 2-5, 9.D.25,2,25. D.19,2,1.).” - Faustino
GUTIÉRREZ-ALVIZ Y ARMARIO , in Diccionario de Derecho romano, Tercera edictión,
Madrid, 1982, vb. jus gentium.
360 “O jus gentium tem sobre o jus civile uma vantagem técnica inegável dado que está
livre do rigorismo formal da Lei das XII Tábuas. [...] o praetor peregrinus está dotado
de uma ampla liberdade de interpretação...” Truyol y SERRA, Genése..., pp. 34. cf..
ainda ª MENEZES CORDEIRO Da Boa fé no Direito Civil, Coimbra, 1984, vol. I, pp. 95
e segs.
146 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO
e outros escritos jurídicos 147

4. A TIPOLOGIA DOS ACTOS LEGISLATIVOS NO DIREITO


CONSTITUCIONAL CABO-VERDIANO

Sumário:

1. A dimensão cultural. 2. A dimensão histórica. A Carta


Régia. O Alvará. A Portaria Régia. A Portaria Ministerial.
O diploma legislativo. 3. Regime actual. Generalidades. 3.1.
Actos normativos do Presidente da República. Os decretos pre-
sidenciais. Outros Actos do Presidente da República. 3.2. Ac-
tos normativos da Assembleia Nacional. A Lei. O Regimento
(omissis). A Resolução da Assembleia Nacional. 3.3. Actos
normativos do Governo: O decreto. O decreto legislativo. O
Decreto-Lei. O Decreto Regulamentar. A Portaria. O Despa-
cho Normativo. A Resolução do Governo. 3.4. Actos normati-
vos das demais entidades públicas. Regimento.

1. A DIMENSÃO CULTURAL

Por tipologia dos actos legislativos entendemos as formas de que


poderá revestir-se a revelação de normas jurídicas. À ideia de tipologia
estão assim associadas duas outras: a do nomen juris escolhido pelo le-
gislador para designar os actos legislativos; e a de fonte de direito que
consubstancia o modo de revelação de normas jurídicas. A tipologia dos
actos legislativos representa assim o catálogo de formas ou de nomes ju-
rídicos do que em cada ordem jurídica se pode atribuir ou se reconhece
as características de acto legislativo. Apesar da recondução que fizemos
entre acto legislativo e fonte de direito, não se pode confundir as duas ca-
tegorias. Além das leis, a categoria fonte de direito inclui ainda o costume,
reputado por uma doutrina autorizada como a fonte por excelência de
normas jurídicas361.
Cada ordem jurídica tem a sua tipologia de actos legislativos e,
em cada ordem jurídica, pode variar no tempo e, por vezes, no espaço362,

361 . Para uma perspectiva histórica sobre este ponto de vista, cf. Ruy de ALBUQUERQUE
e Martim de ALBUQUERQUE, in História do Direito Português, Lisboa, 1999, Pedro
Ferreira, pp. 215 e segs.
362 Veja-se no caso português a especialidade fixada relativamente às regiões autónomas.
Estas podem expedir decretos legislativos regionais em matéria de interesse específico
148 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

a tipologia seleccionada de actos legislativos. Intervêm neste particular


factores de ordem histórica, política, social e cultural. Sendo o direito um
fenómeno essencialmente cultural, compreende-se a importância desta di-
mensão na definição do catálogo de formas seleccionadas pelo legislador.
Esta dimensão histórico-cultural da tipologia dos 363
actos legislativos
não tem sido, entre nós, conscienciosamente respeitada o que tem conse-
quências ao nível do sistema jurídico, a primeira e a mais importante das
quais é o desfasamento entre as representações sócio-jurídicas cultivadas
pelas comunidades e cimentadas ao longo dos tempos e as formalizações
feitas pelo legislador, mercê de condicionantes circunstanciais de ordem
política. Este é, aliás, um erro de que tem padecido o processo de substi-
tuição de todo o direito recebido da época colonial. Não se soube respeitar
nesse processo elementos que constituem representações sócio-jurídicas
das comunidades, sem excluir a comunidade jurídica, que lhes permitiria
uma maior aderência ao direito e às instituições. No afã de criação de um
direito novo, esqueceu-se que nenhum direito é verdadeiramente novo,
mesmo aqueles que são fruto de uma revolução. A história tem, aliás, assi-
nalado recuos sempre que se tentou um processo de ruptura com o direito
que vive na consciência das populações e as suas representações jurídico-
sociais. A revolução socialista de 1917 foi disso um exemplo quando teve
que recuar, vinte anos mais tarde, no processo legislativo iniciado nos
anos vinte que representou, em certa medida, uma ruptura com o modelo
então vigente364. A Constituição da República portuguesa é igualmente
exemplo desta ordem de problemas quando teve que recuar no seu pro-
pósito de impor aos portugueses uma visão socialista do mundo365.
No que ao nosso caso respeita, par além da crítica geral de que o
processo de atribuição de título de vigência ao direito anterior à Inde-
pendência Nacional nunca foi suficiente e completo366, e ele passaria, cer-

das regiões (artº. 229º da Constituição da República portuguesa, doravante CRP).


Era igualmente o caso português antes da independência das ex-colónias e será,
certamente, a situação dos chamados ordenamentos jurídicos plurilegislativos ou
complexos, aqueles onde persistem diversos sistemas legislativos locais, como sejam
as federações ou confederações.
363 A chamada de atenção está implícita num estudo do Professor Wladimir BRITO - In A
feitura das leis em Cabo Verde, Revista Direito e Cidadania (de ora em diante DeC), ano
IV, nºs. 12/13, Março de 2001-Dezembro de 2001, pp. 15 e segs.
364 Sobre este ponto, cf. o nosso estudo Da união de facto – convivência more uxorio em Direito
Internacional Privado, Lisboa, 1999, pp. 225 e segs.
365 Na verdade, a primeira versão da CRP apontava para a construção do socialismo,
propósito que veio a ser abandonado.
366 Cf. o nosso Código da Terra (elementos para um debate em torno do regime jurídico das terras
e outros escritos jurídicos 149

tamente, por um processo de absorção ou rejeição dos tipos conceptuais


herdados do regime anterior, se, especialmente no que respeita à tipolo-
gia dos actos legislativos seria, em certa medida, impraticável a recepção
total do modelo anterior, a verdade é que existem aspectos desse modelo
recentemente rejeitados em termos que se nos afigura incompreensíveis.
Referimo-nos, com Wladimir BRITO, ao abandono dos tipos legis-
lativos lei orgânica e lei das bases que fazem parte das aquisições do nosso
sistema jurídico, os quais só deveriam ser rejeitados quando se revelassem
em dessintonia com o quadro constitucional vigente. Essa supressão veio
suscitar três ordens de problemas que não abordaremos aqui: o valor das
actuais leis das bases que ainda não foram objecto de desenvolvimento367;
a posição hierárquica face à lei ordinária simples e, em correlação com
esta, a existência de leis para as quais se exige um processo reforçado,
sem que se lhes tenha feito corresponder um nomem juris específico ou
particular368.
Insistimos, pois, numa ideia já várias vezes repisada em encontros
desta natureza, de os processos de legiferação se fundarem em estudos de
sociologia pro-legislativa, na terminologia do Professor Jean CARBON-
NIER369 que, para além de contribuírem para afastar aquisições infunda-
das, permitem a confirmação, verificação e testagem de cada opção de
política legislativa, como, do mesmo modo, permitem relevar procedi-
mentos que numa abordagem superficial passariam despercebidos. É, as-
sim, de lamentar que as nossas reformas legislativas de fundo não tenham
sido precedidas, na maioria dos casos, de estudos sociológicos, antropo-
lógicos, filosóficos, sociais, históricos e culturais que permitiriam uma
maior aderência à realidade e, consequentemente, uma maior aproxima-
ção da verdadeira idiossincrassia e mentalidade do povo cabo-verdiano,
pois, como diria Narana COISSORÓ, o que é preciso é que as formulações
jurídicas sejam compatíveis com a cultura e a mentalidade dos povos, de
acordo com a sua ilustração e as suas necessidade370 .

de Cabo Verde), Livraria Saber, Praia, 2002, pp. 17.


367 Tal é o caso da Lei das Bases de Ordenamento do Território e Planeamento Urbanístico,
aprovado pela Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho que ainda aguarda regulamentação.
Sobre os problemas desta lei, ver o nosso Código da Terra..., pp. 40 e segs.
368 Cf. Wladimir BRITO, A feitura das leis.... cit. pp. 20.
369 Cf. o seu Sociologia Jurídica, Coimbra, Almedina, 1979, tradução de Diogo Leite de
CAMPOS, pp. 423 e segs.
370 Cf. in Cabo Verde, Guiné e S. Tomé e Príncipe - Curso de extensão Universitária (O julgamento
de questões gentílicas) 1965-1966, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas
Ultramarinas, pp. 649 e segs e, em particular, 675.
150 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

2. A DIMENSÃO HISTÓRICA

Uma passagem breve pela história do direito cabo-verdiano dá-nos


conta de formas ou tipos legislativos hoje abandonados.

A Carta Régia

A modalidade mais antiga de acto legislativo aplicado em território


cabo-verdiano foi a Carta, Carta Régia ou Carta de Lei. Esta modalidade
tem o mesmo sentido jurídico que o conceito actual de carta. Trata-se de
uma comunicação escrita por quem tem um poder soberano, dirigida aos
seus súbditos, impondo-lhes uma certa conduta que poderá consistir num
dever de actuação, omissão ou abstenção371. A Carta Régia distingue-se
das cartas particulares por serem públicas e a sua observância competir
a todos quantos a carta virem. Vincula-a, pois, o conhecimento pelos seus
destinatários. Por isso, em regra as Cartas Régias sujeitam a sua observân-
cia à condição do seu conhecimento por quantos a virem.
Disso dão conta os preâmbulos das diversas Cartas adoptadas no
momento da ocupação do território de Cabo Verde. As sucessivas doa-
ções das ilhas de Cabo Verde feitas pelo Infante D. Henrique a D. Afonso
V372 e deste a seu irmão D. Fernando foram realizadas através das Carta
Régia de 18 de Setembro de 1460 e de 3 de Dezembro de 1460373.
O instrumento das cartas públicas não servia, todavia, unicamen-
te para dar publicidade às leis. Era igualmente a via adequada para dar
autorizações374, conceder privilégios375, conceder perdão376 ou comutação

371 A modalidade terá tido uma origem religiosa onde se regista uma identidade de
objectivos, diferenciando-se apenas quanto ao grau de vinculação e à natureza das
normas transmitidas. Veja-se as Cartas de S. Paulo aos Coríntios, aos Romanos, aos
hebreus...
372 Cf. Carta do Infante D. Henrique doando a D. Afonso V a temporalidade das Ilhas de Cabo
Verde e dos Açores, e à ordem de Cristo a sua espiritualidade, in História Geral de Cabo Verde,
corpo documental, vol. I, Lisboa, Cabo Verde, 1988, pp. 13 e segs.
373 Cf. História Geral de Cabo Verde... cit. (corpo documental), pp. 15 e segs.
374 Cf. Carta Régia de 12 de Junho de 1466 que concedeu aos moradores da Ilha de
Santiago autorização para comerciarem na costa da Guiné, História Geral de Cabo Verde,
cit, pp. 19 e segs.
375 Veja-se a Carta Régia de 30 de Setembro de 1469 que concedeu privilégio a dois
castelhanos, Joham de Lugo e Pero de Lugo, mercadores para o comércio de urzela nas
ilhas de Cabo Verde (História Geral de Cabo Verde, cit. pp. 23 e segs). Como ensinam Ruy
de ALBUQUERQUE e Martim de ALBUQUERQUE, in História do Direito Português,
Lisboa, 1999, Pedro Ferreira, pp. 201, a Carta de Privilégios assumiu várias modalidades,
tais como, carta de liberdade de uma população (Charta libertatis ou liberationis), Carta
de Doação (charta donationis) e Carta de Franquia (Charta franquitatis).
376 Cf. Carta Régia de 6 de Agosto de 1472, concedendo perdão a Joham Rodriguez que
e outros escritos jurídicos 151

de penas377, fazer nomeações378, conceder mercês379, fazer legitimações380 e,


de um modo geral, praticar actos do Rei carecidos de publicidade e cuja
observância competia aos súbditos.
A modalidade foi igualmente utilizada para outorgar constituições.
Chamou-se então Carta Constitucional às constituições dadas por gover-
nantes e não votadas por assembleias representativas381. Está estreitamen-
te ligada à ideia de fonte do poder. Neste caso, o poder é absoluto382.

O Alvará

Trata-se de uma outra modalidade de acto legislativo caída em de-


suso, mas que também teve vigência em Cabo Verde. Igualmente chama-
do alvará de lei, em aproximação à categoria Carta de Lei, ela distinguia-se
desta em razão do período de vigência da medida legislativa tomada. As-
sim, se a medida legislativa tivesse um período de vigência inferior a um
ano, utilizava-se a fórmula de Alvará ou Alvará de Lei. Se a medida tivesse
um período de vigência superior a um ano era utilizada a categoria de
Carta de lei383. Diziam a este respeito as Ordenações Manuelinas Livro II,

fora degredado para as ilhas de Cabo Verde (História Geral, cit., pp. 29 e segs.)
377 Foi por Carta Régia de 20 de Outubro de 1620 que se procedeu à comutação do degredo
das mulheres para o Brasil, ordenando que o mesmo degredo se fizesse para as ilhas de
Cabo Verde e para S. Tomé.
378 Cf. Carta Régia de 28 de Novembro de 1472 que nomeou escudeiro Sebastiam
Gonçalluez (História Geral... cit. pp. 35 e segs).
379 Cf. Carta Régia de 9 de Abril de 1473, fazendo mercê a Rodrigo Afonso da capitania de
metade da Ilha de Santiago (in História Geral.... cit. , pp. 37 e segs).
380 Cf. Carta de legitimação de Isabel, filha de João Vidal, datada de 15 de Setembro de
1501 – in História Geral de Cabo Verde... cit., pp. 127.
381 Cf. Marcelo CAETANO, in Carta Constitucional, Enciclopédia VERBO, vol. 4, cols.
1191-1193.
382 O termo Carta continua a apresentar interesse jurídico. Em direito internacional muitos
instrumentos receberam o qualificativo de cartas. A título exemplificativo chamou-se
Carta Social Europeia, adoptada em Estrasburgo, a 3 de Maio de 1996, entrada em vigor
a 1 de Julho de 1999, que inclui o catálogo dos direitos dos trabalhadores, das crianças
e das famílias ou a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Cf. http://www.
cartadeidiritti.net/light/carta/files/chartePT.pdf. São ainda utilizadas as fórmulas
carta rogatória e carta precatória.
383 Cf. Ruy de ALBUQUERQUE, in Alvará, Enc. VERBO, vol I, cols. 1537 e segs. Para
a compreensão histórica da figura, cf. ainda Henrique Martins GOMES, in Alvará,
Dicionário Jurídico da Administração, Coimbra, 1965, pp. 373 e segs e bibliografia ali
citada.
152 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Tit. XX, § 5: “... Mandamos que aquelas cuosas que por nós ouverem de passar,
cujo efecto aja de durar huu anno, nom se faça por Aluaraes, mas todas se façam
por Cartas Patentes, que comecem por D. Manuel...” A norma foi retomada
pelas Ordenações Filipinas Livro II, Tit. XL que apenas substituiu “que co-
mecem por D. Manuel” por “que comecem por Dom Filippe”. Em qualquer
dos casos a sanção pela inobservância era a da nulidade dos Alvarás - “se-
jam nenhuns” - responsabilizando-se o escrivão pelos prejuízos causados.
Como observa o Professor Ruy de ALBUQUERQUE, a separação
entre as duas modalidades não foi muito respeitada, verificando-se situa-
ções em que a Alvarás se aditou a referência “para valer como Carta de Lei”.
Veja-se, a este propósito, o Alvará de 15 de Junho de 1714 que ampliou a
Lei de 23 de Agosto de 1672, fixando o prazo do protesto das letras em 15
dias, a contar do seu vencimento384. Esta é, certamente, uma medida que
não se destina a durar um ano.
O Alvará mais antigo de que dá notícia o Corpo Documental da
História Geral de Cabo Verde data de 15 de Outubro de 1473 e foi subs-
crito pela Infanta D. Beatriz (Briatiz). Nele se ordenava aos moradores da
Ilha de Santiago para que obedecessem ao Frei João, frade da Ordem de
S. Domingos, que tinha sido nomeado vigário da parte da Ilha de que era
capitão Rodrigo Afonso385. Foi também por Alvará de 10 de Dezembro de
1643 que se ordenou que os escravos idos da Guiné para as ilhas de Cabo
Verde pagassem nestas ilhas os seus direitos386.
O alvará podia, pois, conter uma ordem387, conceder uma autoriza-
ção ou licença388, impor uma obrigação389 ou uma proibição390 conceder um

384 Cf. Boletim do Conselho Ultramarino, 1º volume da legislação antiga (1446-1754), pp. 392.
385 In História Geral de Cabo Verde ..., cit. pp. 43.
386 Cf. Boletim do Conselho Ultramarino, 1º volume da legislação antiga (1446-1754), pp.
262.
387 Como seja o Alvará de 22 de Dezembro de 1643 que ordenou que todos os papéis
oficiais do Ultramar fossem remetidos para o Conselho Ultramarino. Cf. Boletim do
Conselho Ultramarino, 1º volume da legislação antiga (1446-1754), pp. 259.
388 Foi por Alvará de 8 de Agosto de 1618 que se autorizou a lavra das minas de S. Paulo e
S. Vicente, no Brasil. Cf. Boletim do Conselho Ultramarino, 1º volume da legislação antiga
(1446-1754), pp. 213.
389 O Alvará de 20 de Dezembro de 1647, já referido, que impôs aos escravos o pagamento
de direitos em Cabo Verde, constituía uma excepção do Alvará de 10 de Dezembro do
mesmo ano, que estabelecia a regra de que os direitos dos escravos se pagassem no
lugar donde saiam. Cf. Boletim do Conselho Ultramarino, 1º volume da legislação antiga
(1446-1754), pp. 261.
390 Por Alvará de 8 de Fevereiro de 1711 foi proibida a entrada de navios estrangeiros
nos portos Ultramarinos e foi igualmente por Alvará de 27 de Março de 1721 que se
e outros escritos jurídicos 153

privilégio ou reconhecer um direito391 ou uma liberdade392, fixar um regime


processual393 e até uma medida compulsória, preventiva ou inspectora394.
Hoje o Alvará tem um sentido jurídico diverso do de acto legisla-
tivo. Trata-se de um documento que consubstancia, em regra, um acto
administrativo, seja dos órgãos do poder central, seja dos órgãos do po-
der local. Assim, as actuais licenças de construção e licença de utilização
dos edifícios são tituladas por alvará emitido pelo presidente da câmara
municipal395.

A Portaria Régia

Vem igualmente das Ordenações do Reino a referência às Portarias.


Tem o sentido de ordem dada pelo Rei a seus Ministros ou Oficiais ou de
ordem dada por Ministros ou Oficiais em nome do Rei. No Tit. XIX do Liv.
II das Ordenações Manuelinas citam-se inconvenientes verificados por se
cumprirem portarias “dadas da nossa parte por algumas pessoas” sem que
tenham sido para tanto autorizadas. Estabeleceu-se então que ninguém
fizesse executar portarias em nome do Rei, salvo aquelas pessoas a quem
o mesmo tivesse expressamente concedido tais poderes.
Ainda hoje a portaria tem este sentido de actuação em nome de ou-
trem. A fórmula utilizada “Manda o Governo de Cabo Verde pelo Ministro....”
exprime esta ideia de interposição pessoal.
Até 1760 o Boletim do Conselho Ultramarino não contém referên-

proibiu o comércio às autoridades ultramarinas, entre outros. Cf. Boletim do Conselho


Ultramarino, 1º volume da legislação antiga (1446-1754), pp. 374 e pp. 403-404 e outras
situações citadas neste Boletim.
391 Cf. Alvará de 11 de Maio de 1655 que permitiu aos homens do mar “dar e tomar
dinheiro a risco”. Cf. Boletim do Conselho Ultramarino, 1º volume da legislação antiga
(1446-1754), pp. 282.
392 Foi por Alvará de 18 de Maio de 1798 que se declarou livre a pesca da baleia e preparo
do azeite no alto mar e também as pescarias sedentárias nas ilhas de Cabo Verde.
Cf. Boletim do Conselho Ultramarino, 2º volume da legislação antiga (1755-1834), pp.
255.
393 Foi por Alvará de 20 de Outubro de 1665 que se estabeleceu o processo sobre a
arrecadação das dízimas. Cf. Boletim do Conselho Ultramarino, 1º volume da legislação
antiga (1446-1754), pp. 288.
394 Um Alvará de 12 de Agosto de 1717 determinou que o ajuntamento de 15 pessoas nas
ilhas de Cabo Verde fosse caso de devassa.
395 Cf. artº. 96º e 101º da Lei das bases do ordenamento do território e do planeamento
urbanístico, aprovado pela Lei 85/IV/93, de 16 de Junho. Cf. ainda artºs. 4º e segs do
Regulamento Geral de Construção e Habitação Urbana, aprovado pelo Decreto nº. 130/88,
de 31 de Dezembro. Ver o nosso Código da Terra..., cit., pp. 472.
154 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

cias a Portarias mandadas vigorar no Ultramar português. As formas do-


minantes são a de Lei, Regimento, Alvará, Carta Régia, Decreto, Despacho.
Falava-se, por vezes em Provisão, Resolução e até em Aviso e Ordem. Facto
curioso, foi por Aviso de 2 de Janeiro de 1767 que se estabeleceu sobre a
liberdade dos mulatos e mulatas396.
A partir de 1857 a Portaria torna-se o meio legal privilegiado para
a tomada de medidas aplicáveis nos territórios ultramarinos. O terceiro
volume do Boletim do Conselho Ultramarino que reuniu a Legislação No-
víssima aplicada ao Ultramar entre os anos de 1857 e 1862 tem um domí-
nio de mais de 90% de Portarias. A Portaria passa a servir praticamente
para tudo: aprovar verbas, interpretar leis, conceder autorizações, decidir
proibições, isentar do pagamento de direitos, fazer ou proibir concessões,
fixar jurisdição... O domínio da portaria foi de tal sorte que, no período
referido, poucas foram as medidas tomadas por Decreto ou por Carta.
As medidas tomadas por Carta situaram-se mais no âmbito das relações
internacionais, tais como confirmação e ratificação de convenções internacio-
nais397, aprovação e ratificação de tratados de Paz e amizade398, entre outras.
Em maior número foram as medidas tomadas nesse período por Decreto,
mas mesmo assim em número pouco expressivo relativamente às Porta-
rias. No que respeita a medidas mandadas aplicar a Cabo Verde, cite-se
o Decreto de 21 de Julho de 1857 que fixou o ordenado do Procurador da
Coroa e Fazenda do Julgado da Ilha de S. Vicente, o Decreto de 29 de Abril
de 1858 que elevou a Vila da Praia da Ilha de Santiago à categoria de Cidade
ou o Decreto da mesma data que elevou à categoria de Vila a povoação do
Mindelo, com a denominação de Villa do Mindelo.
Entendemos que esta inflação das Portarias tem uma explicação. O
século XIX foi um dos mais conturbados e complexos do ponto de vista
das relações entre Portugal e as suas colónias do ultramar. Outras po-

396 Cf. Boletim do Conselho Ultramarino, 2º volume da legislação antiga (1755-1834), pp.
62.
397 Cf. Carta de 15 de Julho de 1857 confirmando e ratificando a Convenção celebrada em
3 de Junho de 1836 com o Governo dos Países Baixos, sobre a recíproca admissão de
Cônsules nas respectivas colónias ou a Carta de 6 de Fevereiro de 1860 de ratificação
e confirmação do Tratado de 21 de Fevereiro de 1857 sobre a continuação do exercício
do Real Padroado no Oriente ou ainda a Carta de 18 de Agosto de 1860 de confirmação
e ratificação do Tratado de demarcação e troca de algumas possessões portuguesas e
neerlandesas no Arquipélago de Solor e Timor, concluído em 20 de Abril de 1859 entre
Portugal e os Países Baixos.
398 Cf. Carta de Lei de 4 de Fevereiro de que aprovou o Tratado de Paz, Amizade e
Comércio celebrado entre Portugal e Japão, de 3 de Agosto de 1860.
e outros escritos jurídicos 155

tências mundiais como a Alemanha, a França e, sobretudo, a Inglaterra


vinham manifestando interesse nas possessões ultramarinas e acusando
Portugal de não ocupar efectivamente as suas colónias. Pelo menos em dois
casos Portugal teve necessidade de recorrer à arbitragem internacional
para fazer valer os seus direitos, por um lado, sobre a Baía de Lourenço
Marques, que, em 1823, os régulos locais haviam cedido à Inglaterra, e
sobre Bolama que, em finais do século XVIII, tinha sido vendida também
pelos régulos locais à mesma Inglaterra que, por conseguinte, reclamava
direitos sobre essas possessões ultramarinas. Ambos os conflitos foram
decididos a favor de Portugal399, mas culminaram, como se sabe, no Ulti-
matum de 11 de Janeiro de 1890400.
Ora, a Portaria era, certamente, o meio privilegiado não só para
contrariar a crítica de que Portugal não ocupava efectivamente as suas co-
lónias, mas também para estender os braços do Rei para esses territórios
de além mar até então considerados abandonados.

399 Para maiores desenvolvimentos, ver, sobre este ponto, Pedro Soares MARTINEZ, in
História Diplomática de Portugal, 2ª. Edição, Verbo, Lisboa, 1992, pp. 498-499.
400 Sobre este Ultimatum, Cfr. Soares MARTINEZ, ob. cit. pp. 507-510; A. H. De OLIVEIRA
MARQUES, in Nova História da Expansão Portuguesa (o império africano- Introdução) vol.
XI (1890-1930), coordenação de A. H. DE OLIVEIRA MARQUES, pp. 62-67. Para uma
Leitura do texto do Ultimatum, cfr.na mesma obra Olga Iglésia NEVES, in O império
Africano – Moçambique, pp. 471-472 bem como a resposta portuguesa. Cf. ainda, Mário
MOUTINHO, in O indígena no pensamento colonial Português, Edições Universitárias
Lusófonas, Lisboa 2000. Este Ultimatum veio, como se sabe, na sequência das
pretensões de Portugal em ligar a costa ocidental de Angola à costa oriental de
Moçambique, conforme o chamado Mapa Cor-de-Rosa (cfr. Soares MARTINEZ, ob. cit.
pp. 505-507) o que implicaria uma expansão das possessões ultramarinas portuguesas.
Estas pretensões desagradaram profundamente a Inglaterra que tinha igualmente
interesse nesses domínios cobiçados por Portugal. Assim, logo que teve conhecimento
de que a Coroa Portuguesa havia iniciado expedições com vista à ocupação, a Coroa
inglesa deu a Portugal menos de 24 horas para mandar retirar as suas tropas das
possessões ocupadas. Na reunião do Conselho de Estado português que se seguiu
achou-se mais prudente acatar as pretensões da Inglaterra para evitar um confronto
armado. Sobre as repercussões do Ultimatum inglês em Cabo Verde, cfr. João Nobre de
OLIVEIRA, in A Imprensa Cabo-verdiana, Macau, 1998, pp. 84-85 e, em particular, 139-
140. Estas repercussões terão sido, fundamentalmente, de duas ordens: por um lado,
o desenvolvimento de um sentimento anti-britânico que, no dizer do autor “levará os
cabo-verdianos a apoiarem, sem reservas, todos os inimigos da Inglaterra e sentirem-se felizes
com os golpes que estes desferirem ao leão britânico” e, por outro, a diminuição do respeito
devido à Coroa portuguesa, certamente, pelo facto de ter cedido nas pretensões da
Inglaterra. Esse desrespeito contribuiu para o reforço do ideal republicano em Cabo
Verde, logo, anti-monárquico e teve igualmente repercussões nacionalistas. Terá sido
nessa altura que surgiram as primeiras vozes a reclamar a independência de Cabo
Verde. Para maiores desenvolvimentos, cfr. o mesmo João Nobre de OLIVEIRA, ob.
loc. cit. .
156 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

A Portaria não é hoje um acto legislativo, mas sim regulamentar.


Trata-se de um acto do Governo, porém, referendado por um Ministro
com competência específica na matéria a que a portaria respeita.

A Portaria Ministerial

Como é sabido, as províncias ultramarinas portuguesas gozavam


de relativa autonomia quanto à elaboração de leis aplicáveis nos respec-
tivos territórios. Nos termos da Constituição Política da República portu-
guesa de 1933, aprovada pelo Plebiscito de 19 de Março do mesmo ano,
o Império Colonial Português era regido pelo Acto Colonial, considerado
matéria constitucional401.
Do Acto Colonial que fazia, portanto, parte integrante da Consti-
tuição Política, resultava o seguinte em matéria de competência legisla-
tiva: as Colónias regiam-se por diplomas especiais (artº. 25º) e gozavam
de autonomia administrativa e financeira (artº. 26º). Em matéria legislati-
va distinguiam-se as da exclusiva competência da Assembleia Nacional,
tais como a definição da forma de governo das colónias; celebração de
tratados, convenções e outros acordos com nações estrangeiras; ajusto de
empréstimos ou outros contratos que exigissem caução; competências dos
Governos da Metrópole dos Governos Coloniais quanto à área e ao tempo
das concessões de terrenos (artº. 27º). Todos os diplomas não compreendi-
dos nas disposições anteriormente referidas eram da competência do Mi-
nistro das Colónias ou do Governo das Colónias, conforme o estabelecido
em diploma regulador da forma do Governo das Colónias (artº. 28º).
A Portaria Ministerial era, pois, o acto legislativo expedido pelo Mi-
nistro das Colónias que podia revogar por ilegalidade ou mera oportu-
nidade o acto adoptado pelo Governador (cf. artº. 12º da Carta Orgâni-
ca)402.

O Diploma legislativo

Todavia, o Acto Colonial fixava às Colónias competências próprias,


tais como, celebrar acordos e convenções com outras Colónias, portugue-
sas ou estrangeiras, desde que autorizadas pelo Ministro das Colónias e
exercer funções legislativas e executivas. Estas funções eram desempe-
nhadas pelo Governador das Colónias sob a supervisão do Ministro das

401 Cf artº. 133º da CP de 1933.


402 Sobre a fórmula da Portaria, cfr. artº. 8º do Decreto-Lei nº. 23.228, de 15 de Novembro
de 1933.
e outros escritos jurídicos 157

Colónias, por via de regra, com o voto do Conselho do Governo (artº. 30º,
31º).
De acordo com a Carta Orgânica do Império Colonial português, apro-
vada pelo Decreto-Lei nº. 23:228, de 15 de Novembro de 1933, que entrou
em vigor no dia 1 de Janeiro de 1934, os actos legislativos do Governador
assumiam a forma de diploma legislativo ou portaria e estavam sujeitos à pu-
blicação no Boletim Oficial da Colónia (cfr. Artº. 31º). O diploma legislativo
era a forma adequada para todos os actos legislativos do Governador re-
lativos a matérias exclusivamente respeitantes à Colónia e não atribuídas
especialmente nem à Assembleia Nacional, nem ao Ministro das Colónias
(artºs. 42º a 44º e 49º da Carta Orgânica)403. A portaria ou portaria provincial
era o acto legislativo regulamentar.

*
* *

É esta em traços muito gerais a tipologia de actos legislativos rece-


bida do regime anterior. A esta tipologia estava, naturalmente, empresta-
da uma determinada posição hierárquica, fazendo hoje suscitar, legitima-
mente, a dúvida sobre qual a posição hierárquica relativa entre os tipos
legislativos herdados, porém, abandonados e os tipos legislativos actual-
mente adoptados. Como é sabido, alguns desses diplomas poderão estar
em vigor e, ainda que tenham sido revogados, as suas normas podem ser
aplicadas a factos que ocorreram durante o período da sua vigência404.
Assim, ocorre perguntar, que valor relativo tem hoje, por exemplo, uma
Portaria Régia, uma Portaria Ministerial, uma Lei da Assembleia Legisla-
tiva ou um Decreto do Governo Colonial? Que valor hierárquico tem o di-
ploma legislativo? Será o mesmo que Lei, Decreto Legislativo, Decreto-Lei
ou Decreto regulamentar? Que valor tem hoje a Portaria do Governador,
Portaria Provincial? Será o mesmo que entendemos hoje por Portaria?

403 A fórmula dos diplomas legislativos vinha regulada na Carta Orgânica do Império
Colonial Português. Cf. Artº. 9º do Decreto-Lei nº. 23.228, de 15 de Novembro de
1933.
404 Como é sabido, uma lei revogada não é, necessariamente, uma lei ineficaz, pois, continua
a fazer sentir os seus efeitos relativamente aos factos e situações que ocorreram durante
o período da sua vigência - Cf., por todos, José de Oliveira ASCENSÃO, Introdução ao
Estudo do Direito, 10ª edição, Almedina, 1997, pp. 452.
158 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

3. REGIME ACTUAL

Generalidades

Inspirando-se na Constituição da República portuguesa que lhe


serviu de fonte405, a Constituição de 1992, na revisão que lhe foi introdu-
zida em 1999, adoptou nos artº.s 283º a 288º um catálogo de formas a que
chamou de Actos legislativos e Normativos406. No sentido deste diploma, são
actos legislativos da Assembleia Nacional a Lei Constitucional, a Lei e o
Regimento (artigo 256º) e actos legislativos do Governo o Decreto, o Decreto
legislativo e o Decreto-lei (artº. 257º). Do mesmo modo são actos normativos
os Decretos do Presidente da República (artº 255º) e os Regulamentos do
Governo e das demais entidades públicas adoptados no exercício de fun-
ções administrativas (artº. 259º).
O regime legal suscita três ordens de problemas: o primeiro pren-
de-se com a classificação; o segundo com os critérios de distinção entre
actos legislativos e actos normativos e o terceiro com a inclusão em uma

405 Na Constituição Portuguesa a disposição fundamental sobre esta matéria é o artº. 169º
que tem por epígrafe “forma dos actos”, adoptando as formas Lei constitucional, Lei
orgânica, Lei, Moção e Resolução. Note-se, porém, que este artigo só se ocupa da forma
dos actos da Assembleia da República. No que respeita aos actos do Presidente da
República e do Governo ocorre referir com GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA
que a Constituição portuguesa não define a forma dos actos do Presidente da República.
Mas tendo em conta o artº. 122º-2/d) devem revestir a forma de decreto todos os actos
do Presidente da República com eficácia externa (in Constituição da República portuguesa
anotada, 3ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, pp. 583, anotação V ao artº. 136º).
No que respeita à forma dos actos do Governo na CRP, atente-se ao artº 201º que lhe
atribui competência para fazer decretos-leis em matéria não reservada à Assembleia
da República e em matéria de reserva relativa da Assembleia da República, mediante
autorização desta e, bem assim, para desenvolvimento dos princípios das bases gerais
dos regimes jurídicos contidos em leis. Atente-se, igualmente, no artº. 115º da CRP, cujo
nº. 6 estabelece a forma de decreto regulamentar para os regulamentos do Governo.
406 Cf. artº. 203º que confere ao Governo competência para aprovar actos normativos
sobre a sua própria organização e funcionamento; artº. 255º nos termos do qual “revestem
a forma de decretos presidenciais os actos normativos do Presidente da República, que nos termos
da Constituição não devam revestir outra forma”; artº. 259º que define os regulamentos como
“actos normativos praticados pelo Governo e demais entidades públicas no exercício de funções
administrativas”; artº 259º/5, nos termos do qual “revestem a forma de regimento os actos
normativos reguladores da organização e funcionamento dos órgãos colegiais...”. No artº.
258º a CR parece identificar acto legislativo com acto normativo. Diz, com efeito, “nenhuma
lei pode criar outras categorias de actos legislativos, nem atribuir a actos normativos de
outra natureza poder para interpretação autêntica ou integração das leis, bem como para
modificar, suspender ou revogar qualquer acto legislativo”. A expressão sublinhada
– actos normativos de outra natureza – parece estar referenciada a categoria de actos
legislativos, o que permitiria identificar acto legislativo e acto normativo.
e outros escritos jurídicos 159

das categorias de certos tipos de actos, tais como o Regimento da Assem-


bleia e as Resoluções.
Como admite a doutrina, a classificação não deve constituir tarefa
do legislador. Ainda que se trate de uma classificação aceite e consolidada
pela doutrina e pela jurisprudência, o legislador deve evitar adoptá-la,
pois, pode mais tarde revelar-se inadequada. Não raro, quando isto acon-
tece, tanto a doutrina como a jurisprudência não hesitam em desprezar a
classificação feita pelo legislador se a reputar inadequada.
Desconhecemos quais os critérios que se encontram por detrás da
classificação adoptada entre acto legislativo e acto normativo407. Não tive-
mos acesso aos trabalhos preparatórios, por isso, não pudemos desvendar
qual o juízo que motivou o legislador constitucional. Todavia, a doutrina
dominante rejeita a separação entre actos legislativos e actos normativos.
Jorge MIRANDA diz a este propósito que lei e norma são uma e a mesma
coisa. Afirma, taxativamente: “lei é norma”408. Por isso, considera que o
Presidente da República não pratica actos normativos, contrariamente ao
que a nossa Constituição admite409.
Na verdade, a Constituição da República portuguesa não adopta
esta distinção. O Artº. 115º que tem por epígrafe “actos normativos” inclui
no seu âmbito actos que para o legislador cabo-verdiano são actos legis-
lativos, como sejam as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos e inclui
igualmente nessa categoria genérica de actos normativos os regulamentos
do Governo que, para o legislador cabo-verdiano são actos normativos.
O problema interessou a Wladimir BRITO que preconiza a adopção
de dois critérios para a distinção entre acto legislativo e acto normativo. O
primeiro seria o critério da competência do órgão. De acordo com este critério
seriam legislativos os actos produzidos no uso de competência legislativa,
como sejam as leis, o Regimento da Assembleia Nacional, os Decretos,
os Decretos-leis e os Decretos legislativos do Governo. Do mesmo modo,
seriam normativos os actos praticados no exercício de competências ad-
ministrativas, como sejam os regulamentos, sob qualquer forma410.
A dificuldade suscitada por este critério foi sentida pelo próprio
Wladimir BRITO quando tentou o enquadramento dos actos do Presiden-
te da República que, do seu ponto de vista, seriam actos “jurídico-consti-

407 Adiante tomaremos em consideração o critério proposto por WLADIMIR BRITO, in A


feitura das leis..., cit., pp. 17 e segs.
408 In Funções, órgãos e actos do Estado, Lisboa, 1990, pp. 173.
409 In Estudos sobre a Constituição (actos e funções do Presidente da República) 1º. Vol. Lisboa,
Petrony, 1977, pp. 261 e segs e, em particular, 274. Este ponto de vista foi retomado
pelo insigne constitucionalista lusófono em Funções, órgãos e actos..., pp.
410 In A feitura das leis... cit, , pp. 17-18.
160 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

tucionais que tanto podem ter uma natureza política, como uma nature-
za administrativa” e que, por isso, se enquadrariam na categoria de actos
normativos411. Este critério permitiria validar a opção feita pelo legislador
constitucional entre actos legislativos, por um lado, e actos normativos,
por outro.
O critério merece, todavia, reparos. Ao fundar-se na competência
administrativa para caracterizar os actos normativos e ao enquadrar neles
os decretos presidenciais, parece atribuir maior valor à vertente administra-
tiva dos actos do PR em detrimento da função política. Todavia, as fun-
ções constitucionais do Presidente da República são predominantemente
de natureza política o que torna refractária a inclusão dos decretos presi-
denciais, através dos quais os referidos actos são praticados, na categoria
actos normativos na acepção administrativa que lhe foi emprestada.
A doutrina constitucionalista inclui os decretos presidenciais entre os
actos com força afim da força de lei. Como ensina Jorge MIRANDA, para
além dos actos com forma e força de lei, há actos que recebem eficácia de
lei-formal412. Entre eles estariam os decretos do Presidente da Repúbli-
ca, particularmente, os de declaração do estado de sítio ou do estado de
emergência (artº. 134º/2/h)) e os de nomeação dos membros do Governo
(artº. 134º/2/al. e))413, embora reconheça a tais actos um sentido legisla-
tivo menor414.
Um outro critério proposto por Wladimir BRITO para a distinção
entre actos legislativos e actos normativos é o critério da promulgação. No
dizer do autor a promulgação “acentua a ideia de que todos os actos le-
gislativos são actos cuja regularidade constitucional da sua feitura, legiti-
midade e competência constitucional do órgão que os emitiu tem de ser
certificada pela via da promulgação e só ficam perfeitos depois desta pre-
sidencial intervenção e permite afirmar que nenhum acto pode ser qualifi-
cado como acto legislativo se não for obrigatória a sua promulgação pelo
Presidente da República”415.
Todavia, é o próprio autor que, mais uma vez, assaca uma dificul-
dade a este critério. Ele não explica, na verdade, porque é que tendo sido
catalogado o Decreto Regulamentar como acto normativo, a Constituição
imponha, do mesmo passo, que este tipo normativo esteja sujeito a pro-

411 Ob.loc.cit.
412 In Funções, Órgãos e Actos do Estado..., cit. pp. 339 e segs.
413 In Funções..., cit., pp. 340.
414 In Funções..., cit. pp. 344.
415 In Da Feitura das Leis..., cit. pp. 18-19.
e outros escritos jurídicos 161

mulgação pelo Presidente da República (artº. 134º nº. al. b)). O decreto re-
gulamentar retira, pois, cientificidade ao critério.
Não podemos, porém, censurar Wladimir BRITO. O objectivo do
autor é o de salvar a dicotomia constitucional entre actos legislativo, por
um lado, e acto normativo, por outro, que, como bem observa, vem da
primeira versão da Constituição de 1992.
Pela nossa parte, propomos uma abordagem mais radical. Sabemos
que a distinção entre lei e norma é feita por uma certa doutrina416, mas
não tem o sentido que pretendeu emprestar-lhe o legislador constitucio-
nal. Uma das vias desta distinção é a interpretativa ou exegética. Ou seja,
através da interpretação da lei, descobre-se a norma nela contida. Por isso,
se diz que a interpretação é um processo de descoberta da norma jurídica.
Oliveira ASCENSÃO diz a este propósito: “A actividade que nos permite, a
partir da fonte, chegar à regra que ela alberga é a interpretação”. E mais adiante:
“há de característico a exteriorização de que se parte ser uma fonte e o resultado
que se procura atingir ser uma norma”417. Ora, se a lei é a fonte de direito, a
norma contida na mesma lei e que se revela através de um processo inter-
pretativo não pode ser diversa da lei que lhe dá origem.
Esta circunstância identifica as categorias lei e norma e, consequen-
temente, as categorias acto legislativo e acto normativo.
Assim, entendemos que a classificação constitucional deve ser des-
prezada, seguindo o ponto de vista tradicional no sentido de que não com-
pete ao legislador (maxime ao legislador constitucional) fazer qualificações
jurídicas. Somos da opinião de que o legislador deve ter uma posição neu-
tral face a construções que apenas compete à ciência jurídica desenvolver
e consolidar. Quando a posição do legislador comprometer esta possibili-
dade deve ser rejeitada, em nome do interesse da ciência jurídica418.
Outra dificuldade que a classificação coloca diz respeito ao regimen-
to. Dentro da sua competência organizativa interna compete aos órgãos
colegiais aprovar regimentos. A Constituição refere-se a regimentos de

416 Para um estudo histórico-etimológico do conceito de norma e para uma compreensão


do conceito de lei através do conceito de norma, cf. Paul AMSELEK, in Norme et loi,
Archives de Philosophie du Droit, Tome 25, Paris, 1980, pp. 4 e segs.
417 In O Direito – Introdução e Teoria Geral- uma perspectiva luso-brasileira, Coimbra, 1997,
Almedina, 10ª edição, pp. 376.
418 Note-se, aliás, que a própria Constituição parece não respeitar essa dicotomia. No que
respeita à competência legislativa do Governo dispõe, no artº. 203/1 que compete ao
Governo no exercício de funções legislativas fazer e aprovar decretos-lei “e outros
actos normativos” sobre a sua própria organização e funcionamento. Dado que encima
este artigo com o título “competência legislativa” deve seguir-se que identifica acto
legislativo com acto normativo.
162 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

três órgãos colegiais: da Assembleia Nacional; do Governo e do Conse-


lho da República419. Nos termos do artº 256º nº- 1 o Regimento é um acto
legislativo. Dado, porém, que este artigo quer apenas referir-se aos actos
legislativos da Assembleia da República, não se pode daí concluir que os
Regimentos dos demais órgãos colegiais sejam actos legislativos. Mas se é
assim, a Constituição cai numa redundância, pois, bastaria que enuncias-
se que são actos legislativos da Assembleia Nacional, a Lei Constitucional
e a Lei, pois, o Regimento é aprovado por lei. Na verdade, diz o nº. 3 do
artº. 256º que assumem a forma de Lei os actos previstos no artº. 171º/a).
Ora, o artº. 171º a) é precisamente a norma que confere competência à
Assembleia Nacional para elaborar e aprovar o seu Regimento. Todavia,
a Constituição cai numa contradição algo pueril. No nº. 4 do artº. do artº.
256º vem dizer, afinal, que assume a forma de regimento o acto regulador
da organização e funcionamento da Assembleia Nacional, o qual não ca-
rece de promulgação. Ou seja, diz, por outras palavras, o regimento assu-
me a forma de regimento. Afinal, em que ficamos, o Regimento assume
a forma de lei, tal como estabelece o artº. 256º/3, ex vi artº. 171º/a) ou o
Regimento assume a forma de Regimento?
Wladimir BRITO diz que pode assumir uma das duas formas: lei ou
regimento420, mais uma vez tentando salvar a letra da Constituição.
Inclinar-me-ia para uma solução que eliminaria a contradição. Há
elementos que parecem apontar para uma interpretação restritiva do nº. 3
do artº. 253º. Porque temos que presumir que o legislador constitucional
soube exprimir com fidelidade o seu pensamento, então de duas uma:
- ou partimos do nº. 3 do artº. 253º e chegamos à conclusão de que
só há duas formas legislativas - Lei Constitucional e Lei - pois o Regimen-
to nos termos desse nº. 3 do artº. 253º também é lei;
- ou partimos do nº. 4 do mesmo artigo 253º e concluimos que,
afinal, o Regimento é também uma forma legislativa autónoma ao lado
das demais formas legislativas previstas no nº. 1.
Este último ponto de vista parece ser aquele que recolhe maior
sufrágio, quer do nº. 1, quer do nº. 4 do artº. 253º. Mas há outros elemen-
tos que concorrem para o sustentar. As leis, na verdade, estão sujeitas a
promulgação pelo Presidente da República (artº. 134/2/b)). Dado que o
artº. 256º/4 dispõe que o Regimento não carece de promulgação, então
o Regimento não é lei, no sentido do artº. 256º/1 e, portanto, do nº. 3 do
mesmo artigo. Parece que o pensamento foi no sentido de criar três tipos

419 Cf. artº. 171º/a) e 256º/4 para a AN e artº. 203º/1 para o Governo. A Constituição
prevê o Regimento do Conselho da República elaborado e aprovado por este (artº.
250º/2).
420 In Da Feitura..., pp. 16.
e outros escritos jurídicos 163

de actos legislativos da Assembleia Nacional - a Lei Constitucional, a Lei


e o Regimento. Isto significa que o nº. 3 do artº. 256º tem que ceder. O
legislador disse mais do que pretendia dizer. Há, pois, que restringir este
artigo, suprimindo-lhe o artº. 171º al. a), e restabelecendo a harmonia do
sistema. O Regimento é, assim, na economia da Constituição uma forma
de acto legislativo regulador da organização e funcionamento da Assem-
bleia Nacional.
Vejamos agora os tipos actuais de actos legislativo previsto na
Constituição de 1992.

3.1 Actos normativos do Presidente da República

Os decretos Presidenciais

É a primeira forma de acto normativo referido pela Constituição da


República. Neste particular, a revisão constitucional de 1999 não trouxe
nenhuma alteração. O actual artº 255º manteve a mesma fórmula da ve-
são primitiva da Constituição de 1992421. Os decretos presidenciais consti-
tuem, pois, a forma de que se revestem os actos normativos do Presidente
da República. A Constituição estabelece, todavia, uma ressalva: quando
não possam revestir outra forma, nos termos da Constituição. A própria
Constituição da República admite, pois, que os actos normativos do Pre-

421 Cf. artigo 255º (Decretos presidenciais) “Revestem a forma de decretos presidenciais
os actos normativos do Presidente da República, que nos termos da Constituição não
devam revestir outra forma”. A revisão constitucional de 1999 introduz, todavia, duas
alterações nesta matéria, uma formal, outra de fundo. No plano formal, enquanto
na versão de 1992, os Decretos presidenciais constavam da alínea c) do artº. 292º,
quanto ao regime de publicação, na versão de 1999, estes decretos passaram para a
alínea a) do artº. 264º, criando a ilusão de conferir maior importância aos actos do
Presidente da República. No plano substancial, tal como os demais actos legislativos,
a falta de publicação dos decretos do Presidente da República, passou a ser cominada
com o vício da ineficácia jurídica, em vez do vício da inexistência jurídica que afectava
os actos legislativos. Regista-se, assim, um considerável enfraquecimento da sanção
jurídica aplicada, alteração esta criticável. Atente-se ainda no disposto no artº. 137º
da Constituição relativo à promulgação e referenda. Este artigo comina com a pena de
inexistência jurídica a não promulgação pelo Presidente da República das leis, decretos
legislativos, decretos-lei e decretos regulamentares (artº. 134/2/al.b)). O vício da
inexistência jurídica afecta ainda os actos do Presidente da República que devam ser
praticados sob proposta ou depois de ouvido o Governo, quando não tenham sido
referendados pelo Primeiro Ministro. A CR comina ainda de inexistência jurídica,
os seguintes actos do Presidente da República: marcação de eleições (artº. 97º/2;
dissolução da Assembleia da República sem o parecer favorável do Conselho da
República (artº. 142º/2). Note-se, aliás, que apenas os actos do Presidente da República
são cominados pela Constituição pelo vício da inexistência que é o mais grave dos
vícios do acto jurídico, pois, afecta-o enquanto realidade ontológica.
164 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

sidente da República podem assumir outra forma que não a de Decreto


Presidencial.
Vejamos em que casos.
A Constituição da República só menciona os Decretos Presidenciais
a dois propósitos: para referir a circunstância de constituir o modo normal
de formalização dos actos do Presidente da República (artº. 255º) e para se
referir à obrigatoriedade da sua publicação (artº. 264º al. a)). Já era assim
no domínio da versão de 1992422. Em nenhum outro momento se faz refe-
rência aos decretos presidenciais. Assim, a determinação de quais os actos
do Presidente da República que devem assumir a forma de Decreto Pre-
sidencial e quais os que devem revestir outra forma tem que passar pela
determinação do catálogo de competências deste órgão de soberania.
Retenha-se, desde já, o carácter residual desta forma de acto. Quan-
do nenhuma norma constitucional disponha em sentido contrário, o acto
do Presidente da República assume a forma de Decreto Presidencial.
Retenha-se, igualmente, a limitação estabelecida pela Constituição:
a outra forma de que possa revestir o acto do Presidente da República
há-de estar fixada no texto constitucional. Está vedada, por exemplo, à lei
fixar outra forma para os actos do Presidente da República.
Poder-se-ia, pensar que o carácter taxativo dos actos legislativos, tal
como se encontra delineado no artigo 258º da Constituição já contém essa
ressalva. Note-se, todavia, que nada impede que a lei, sem violar o prin-
cípio da tipicidade dos actos normativos estabelecido neste artigo, possa
impor determinada forma legal para actos legislativos complementares423.
A referência não é, pois, destituída de sentido.
O Presidente da República pratica actos que interferem em vários
domínios da Constituição424. Não analisaremos a dimensão constitucio-
nal da competência deste órgão de soberania, pois, cai fora do âmbito do
estudo a que nos propusemos425. A Constituição da República faz duas
grandes divisões na competência do Presidente da República: compe-
tência interna e competência internacional. As actuações do Presidente

422 Cf. artºs. 283º e 292º al. c).


423 Ver, neste sentido, Parecer da Procuradoria-geral da República (Portugal) de 16 de
Junho de 1996 in http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/.
424 Para um catálogo desses actos à luz da Constituição da República portuguesa, cf. Jorge
MIRANDA, in Estudos sobre a Constituição (actos e funções do Presidente da República), cit.,
pp. 261 e segs.
425 Sobre esta matéra na Constituição portuguesa, cf. Jorge MIRANDA, in Estudos sobre a
Constituição (Actos e Funções do Presidente da República), vol. 1, Lisboa, Petrony, 1977, pp.
261 e segs, que reputa complexa esta matéria.
e outros escritos jurídicos 165

da República em matéria de competência interna estão basicamente ca-


talogadas no artª. 134º da Constituição. A competência do Presidente da
República no domínio das relações externas encontram-se previstas no
artº. 135º do mesmo Texto Fundamental426.
Assim, no domínio da actuação interna, o Presidente da República
pratica os seguintes actos por Decreto Presidencial: dissolução da Assem-
bleia Nacional (artº 134º/1/e); marcação do dia das eleições do Presiden-
te da República e dos deputados à Assembleia Nacional (artº. 134º/1/g);
convocação de referendo a nível nacional (134º/1/i); nomeação do Pri-
meiro Ministro (134º/1/i); nomeação dos membros do Conselho da Re-
pública (134º/1/j)); nomeação de um juiz do Supremo Tribunal da Justiça
(134º/1/l)); nomeação de dois membros do Conselho Superior da Magis-
tratura (134º/1/m); indulto e comutação de penas (134º/1/n)); demissão
do Governo (134º/2/c)); nomeação e exoneração dos membros do Gover-
no (134º/2/d)); nomeação do Presidente do Tribunal de Contas (134º/2/
e)); nomeação do Procurador-Geral da República (134º/2/f)); nomeação e
exoneração do Chefe e do Vice-chefe de Estado Maior das Forças Arma-
das (134º/2/g)); declaração do estado de sítio e do estado de emergência
(134º/2/h)).
No domínio da actuação externa do Presidente da República, os
seguintes actos são praticados por Decreto Presidencial: ratificação de
tratados e acordos internacionais (artº. 135º/a)); declaração de guerra e
feitura da paz (artº. 135º/b)) e nomeação de embaixadores, representantes
permanentes e enviados extraordinários (artº. 135º/c)).

Outros actos do Presidente da República

Os demais actos correspondem, no dizer de Jorge MIRANDA, a


tipos formais de actos a se427. Eles exprimem-se em actuações de facere do
Presidente da República: presidir; promulgar; dirigir mensagens; requerer; ve-
tar; receber cartas, etc etc..
Os Decretos do Presidente da República não estão sujeitos a promul-
gação, mas dependem de publicação no Boletim Oficial (artº. 254º/1a)),
sob pena de ineficácia jurídica.

426 Para uma crítica dos poderes do Presidente da República na Constituição cabo-verdiana, cf.
David Hopffer ALMADA, in A questão presidencial em Cabo Verde - uma questão de regime, Praia,
2002. A tese dominante do autor reside no desequilíbrio entre o regime de eleição directa do
presidente da República face à exiguidade dos poderes de que dispõe este órgão de soberania.
427 In Estudos sobre a Constituição (actos e funções...) ... cit., pp. 274-275.
166 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

3.2. Actos normativos da Assembleia Nacional

A Lei Constitucional

De acordo com o nº. 2 do artº. 256º “assume a forma de Lei Consti-


tucional os actos que aprovem ou alterem a Constituição”. Os projectos
de lei constitucional são aprovados por maioria de 2/3 dos deputados em
efecitividade de funções (artº. 160º).

A Lei

A Constituição da República indica taxativamente quais os actos da


AN que assumem a forma de lei. São os previstos nos artigos 174º/b)/c)/
f)/m) e nos artigos 175º, 176º e 177º b) da CR428. Também não abordaremos
a competência legislativa da Assembleia Nacional por que cai fora do âm-
bito da tarefa a que nos propusemos. A matéria do processo de feitura da
lei não se situa no âmbito do nosso trabalho.
Atenderemos, todavia, à tramitação de algumas leis para nos re-
ferirmos ao seu carácter reforçado429. Trata-se de leis que se enquadram
no âmbito da reserva absoluta da Assembleia Nacional e que, portanto,
não poderão ser objecto de autorização legislativa e de leis para as quais
a Constituição exige maiorias especiais. As leis desta natureza fixam as
balizas dentro das quais podem mover-se outras leis, constituindo, por
isso, leis das bases ou leis-quadro. São obrigatoriamente votadas na espe-
cialidade. Encontram-se nestas circunstâncias algumas das leis relativas a
matérias da competência legislativa exclusivamente reservada da Assem-
bleia Nacional, previstas no artº. 175º da CR, tais como as leis relativas à a)
aquisição e perda da cidadania; b) regime dos referendos nacional e local; c) pro-
cesso de fiscalização da constitucionalidade das leis; d) Organização e competên-
cia dos Tribunais e do Ministério Público; e) Estatuto dos Magistrados Judiciais
e do Ministério Público; f) Organização da defesa nacional; g) Regimes do estado
de sítio e do estado de emergência; h) Partidos políticos e estatuto da oposição; i)
Eleições e estatuto dos titulares dos órgãos de soberania e das autarquias locais,
bem como dos restantes órgãos constitucionais ou eleitos por sufrágio directo e
universal; j) Criação, modificação e extinção de autarquias locais; k) Restrições ao
exercício de direitos; n) Bases dos orçamentos do Estado e das autarquias locais; o)
Regime do indulto e comutação de penas; p) Definição dos limites das águas terri-

428 Excluímos, portanto, o artº. 171º/a) pelas razões que atrás referimos.
429 Sobre as leis reforçadas o estudo mais completo corresponde à tese de Carlos Branco
de MORAIS, As leis Reforçadas, Lisboa, 1998.
e outros escritos jurídicos 167

toriais, da zona económica exclusiva e dos leitos e subsolos marinhos; e q) Bases


do sistema fiscal bem como criação, incidência e taxas de impostos e o regime das
garantias dos contribuintes.
Estranhamente a Constituição deixa de fora duas matérias impor-
tantes: o sistema de informações da República e do segredo de Estado
(artº. 175º/l)) e o regime de protecção de dados pessoais (artº. 175/m)).
Se o regime das leis reforçadas tem subjacente a importância das matérias
visadas, não se compreende, por exemplo, que a matéria relativa ao indul-
to e comutação de penas tenha sido considerada mais importante que o
segredo do Estado ou o regime de protecção dos dados pessoais.
Também julgamos ser conhecida desta Assembleia a nossa posi-
ção contrária à inclusão da al. q) do artº. 175º entre as leis reforçadas. Os
nossos argumentos contra essa inclusão, várias vezes repisados, são os
seguintes: o nosso sistema de governo está assente na maioria absoluta.
Esta base material – maioria de votos expressos nas urnas – faz desenca-
dear um conjunto significativo de consequências no plano jurídico, como
seja, a nomeação do Primeiro-Ministro e a constituição do Governo no
seio da maioria parlamentar. Estas consequências formam no seu todo
o sistema de governo constitucional. No nosso sistema de governo só os
partidos que não tenham alcançado a maioria absoluta e mesmo assim
tenham sido convidados a formar Governo necessitam do concurso de ou-
tras forças políticas para governar. Por isso, formam coligações ou alianças
quando não tenham maioria absoluta (cf. artº. 193º da Constituição), para
que possam governar com tranquilidade, como aconteceu recentemente em
Portugal. O orçamento é o elemento chave de qualquer país e de qualquer
sistema de Governo, tanto assim que a não aprovação do Orçamento leva,
e tem levado, em muitos casos, à queda de governos. O artigo 175º al. q)
altera um elemento chave do sistema, sem reconverter todo o sistema, ao
condicionar a aprovação de elementos dos Orçamento por uma maioria de
2/3. Esta reconversão implicaria elevar igualmente para 2/3 a maioria ne-
cessária para formar Governo. Como isto não foi feito, a alínea ficou, pois,
em antinomia com os demais elementos do sistema, nomeadamente, aquele
que diz que quem tem maioria absoluta pode governar com tranquilidade.
Para resolvermos a antinomia preconizamos o recurso ao mecanismo da
adaptação, instrumento técnico importante para realizar a congruência entre
normas e entre normas e princípios jurídicos desavindos. A busca dessa
congruência passa pela cedência da norma da alínea q) do artº. 175º da CR,
pois, contradiz um princípio fundamental..
168 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

O Regimento (omissis)

Já vimos os problemas que se colocam em torno do Regimento por


isso não daremos a esta forma de acto nenhum desenvolvimento particu-
lar.

Resolução da AN

Além dos actos que a Constituição qualifica de legislativos e norma-


tivos, o artº. 260º da CR prevê ainda a forma de Resolução da Assembleia
Nacional para alguns dos seus actos. Assim, os tratados e os acordos in-
ternacionais são aprovados por Resolução (artº. 174º/h) ex vi 260º e 178º).
Do mesmo modo, a tomada das Contas do Estado e das demais entidades
públicas (cf. artº. 177º a)); a proposta ao Presidente da República de su-
jeição a referendo nacional de questões de relevante interesse nacional; a
autorização ou ratificação do estado de sítio e a autorização ao Presidente
da República para declarar a guerra e fazer a paz são todas matérias para
as quais a CR prevê a forma de Resolução (artº. 174º/h) ex vi 260º). Além
destas matérias, a CR prevê que o estabelecimento dos limites máximos
dos avales do Estado a conceder pelo Governo para cada ano económico-
fiscal (artº: 177º al. c), a apreciação dos decretos legislativos para efeitos
de ratificação (artº. 179º f)) e a própria ratificação do decreto legislativo
(artº. 182º) e todos os poderes da AN previstos no artº. 180º/1 da CR são
praticados através da Resolução.
A Resolução é, com efeito, o acto residual da Assembleia Nacional,
pois, todos os demais actos para os quais a Constituição não prevê forma
especial são adoptados por Resolução.
Atente-se que a Resolução não carece de promulgação (artº.
260º/3).

3.3. Actos normativos do Governo

Os actos normativos do Governo são o Decreto, o Decreto legisla-


tivo e o decreto lei (artº. 257º/2), o Decreto regulamentar; a Portaria e o
Despacho normativo (artº. 259).

O Decreto

O Decreto parece estar reservado pela Constituição apenas para a


aprovação de tratados e acordos internacionais. Assim, nos termos do artº.
257º/2/a) assumem a forma de Decreto os actos legislativos do Governo
que aprovem tratados e acordos internacionais. Todavia, esta competên-
e outros escritos jurídicos 169

cia só é exercida relativamente aos tratados e acordos cuja aprovação não


seja da competência da Assembleia Nacional nem a esta tenha sido sub-
metida (artº. 202º/1/k)).

O Decreto Legislativo

O decreto legislativo é a forma dos actos do Governo praticados no


uso de autorização legislativa (artº. 257º/2/b)). Trata-se de uma novidade
trazida pela Constituição de 1992. Tem o sentido de decreto com valor de
lei formal, ou seja, lei emanada da Assembleia Nacional. No plano lin-
guístico apresenta similitudes com o extinto diploma legislativo já referido
nesta exposição.
A determinação de quais as matérias que à luz da Constituição po-
dem assumir a forma de decreto legislativo passa assim pela determinação
de quais as matérias que podem ser objecto de autorização legislativa. São
todas as previstas no artº. 176º da CR430.
Os decretos legislativos podem ser sujeitos a ratificação parlamen-
tar, requerida por, pelo menos, cinco deputados ou por qualquer Grupo
Parlamentar, para efeitos de cessação de vigência ou de alteração (artº.
182º).

O Decreto-Lei

Tal como a Resolução da Assembleia Nacional, o decreto-lei cons-


titui a forma residual dos actos legislativos do Governo. Todos os actos
legislativos do Governo, para os quais a Constituição não prevê forma
especial, assumem a forma de Decreto-lei (artº. 257º/3). Apesar do seu ca-
rácter residual, em algumas situações a CR impõe expressamente a adop-
ção da forma decreto-lei. Assim, a orgânica do Governo (artºs. 186º e 203º);
o desenvolvimento das bases dos regimes gerais contidos em leis (artº.
203º/2/c)); o exercício da função legislativa em matéria não reservada à
Assembleia Nacional (artº. 203º/2/a) são matérias para as quais a Consti-
tuição da República prevê a forma decreto-lei.

O Decreto regulamentar

Como observam GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA431,


não existe reserva de regulamento. Esta circunstância repercute-se no re-

430 Sobre o regime das autorizações legislativas, cf. Artº. 181º da Constituição.
431 In Constituição da República portuguesa anotada..., pp. 50~, anotação III ao artº. 115º.
170 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

gime das formas que o regulamento pode assumir. O Decreto regulamen-


tar é, na economia da Constituição, o acto normativo do Governo para as
matérias da competência do Conselho de Ministros (artº. 259º/2/a)). Esta
circunstância obriga-nos a descer um patamar de indagação. Assim, a reu-
nião das matérias da competência do Conselho de Ministros que devam
assumir a forma de decreto regulamentar há-de estar fixada na lei. Isto pa-
rece retirar sentido útil ao artº. 259º/2/a) bastando apenas a afirmação de
que a forma decreto regulamentar deverá decorrer igualmente de lei expres-
sa. Esta ideia parece estar conforme com o nº. 6 deste artº, nos termos do
qual os regulamentos (sem excluir o decreto regulamentar) devem indicar
expressamente a lei que visam regulamentar. Afasta, portanto, a categoria
dos regulamentos autónomos.

A Portaria

A Portaria é a forma que assume o acto normativo do Governo a


que a lei não imponha a forma Decreto Regulamentar (artº. 259º/3) e seja da
competência isolada de um membro do Governo.

O Despacho normativo

O Despacho Normativo é a forma que assume o acto normativo


do Governo a que a lei não imponha a forma Decreto Regulamentar (artº.
259º/3) e seja da competência conjunta de dois ou mais membros do Go-
verno.

A Resolução do Governo

Nos termos do artº. 260º/2 assumem a forma de resolução os actos


do Governo que não sejam nem actos legislativos, nem actos regulamen-
tares, quando a lei não determine outra forma. A resolução do Conselho de
Ministros tem assim um domínio definido pela Constituição e pela lei.

3.4. Actos normativos das demais entidades públicas

No exercício das suas funções administrativas outras entidades pú-


blicas, que não o Governo, adoptam regulamentos (artº. 259/1). A Consti-
tuição da República tem um nomem juris para os regulamentos do Gover-
no, mas não adoptou um nomem juris para os regulamentos das demais
e outros escritos jurídicos 171

entidades públicas. O princípio da tipicidade dos actos legislativos não


impede que a lei adopte outros nomes além dos previstos na Constitui-
ção, desde que seja respeitada a posição hierárquica dos regulamentos.
Ganha relevo, neste particular, a Postura Municipal.
Além das autarquias locais (artº. 231º), a Constituição não indica
quais as entidades públicas que, no exercício das funções administrativas,
podem adoptar regulamentos. Esta definição compete à lei.

Regimento

Revestem a forma de regimento os actos normativos reguladores


da organização e funcionamento dos órgãos colegiais aprovados por es-
tes, nos termos da lei. Esta disposição tem por epígrafe “regulamentos”,
donde resulta que o regimento pode assumir a forma de lei ou Regulamen-
to (259º/5.).
172 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO
e outros escritos jurídicos 173

5. DO EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS


- Anotação aos artigos 334º e seguintes do Código Civil.

Sistemática

I - O Livro I do Código Civil de 1966 termina com um Subtítulo


IV que tem por epígrafe DO EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS, o
qual, por sua vez inclui dois capítulos: um Capítulo I relativo às Disposi-
ções Gerais e um Capítulo II relativo às Provas. Cabe a análise do Capítu-
lo relativo às Disposições Gerais.
Começaremos esta análise por um trocadilho habitual que, ao que
julgamos, se aplica neste momento concreto: a epígrafe do Subtítulo – DO
EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS - promete mais do que dá e dá
mais do que promete. Na verdade, não se trata do único momento em
que o Código Civil se ocupa nem do exercício dos direitos, nem tão pouco
da sua tutela. Se entendermos por exercício dos direitos toda a actividade
tendente à concretização de um poder jurídico, vemos que a grande mul-
tiplicidade das normas jurídicas que se reportam ao exercício de direitos
não está incluída neste subtítulo. Também exerce um direito quem prome-
te; quem cumpre; quem retém uma coisa; quem cede; quem gere negócios;
quem vende; quem doa; quem apropria, quem casa; quem sucede... todas si-
tuações jurídicas contempladas no Código Civil, mas que, naturalmente,
não fazem, nem podiam fazer parte deste Subtítulo relativo ao EXERCÍ-
CIO DOS DIREITOS. À mesma conclusão chegaríamos se a questão fos-
se colocada em torno do termo TUTELA. Se entendermos por Tutela dos
direitos a efectivação de medidas destinadas a prevenir ou a reprimir a
violação de direitos, apercebemo-nos de que nem todos os meios de tutela
que a ordem jurídica coloca à disposição dos sujeitos para efectivarem os
seus direitos se encontram previstos neste Subtítulo, seja na modalidade
de tutela pública, seja do ponto de vista da tutela privada. Basta pensarmos,
por exemplo, nas diversas possibilidades que a ordem jurídica coloca à
disposição dos sujeitos de tutela privada dos seus direitos, como seja, o
direito de retenção; o corte de ramos; a execução de créditos pignoratícios, entre
outros.

II - Entendemos, igualmente, que a epígrafe deste subtítulo dá mais


do que promete, pois, as disposições relativas à prova não respeitam ape-
nas ao Exercício e Tutela dos Direitos, mas também à existência do próprio
174 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

direito, situação cronologicamente anterior aos momentos exercício e tu-


tela dos direitos. Basta pensarmos, igualmente, nas diversas situações em
que à existência de um direito, portanto, devidamente provado, não se
segue, necessariamente, nem o seu exercício, nem a sua tutela.

III - A esta observação acresce o seguinte: a epígrafe do Capítulo I


disposições gerais não permite perceber com clareza o que é que confere
ao conjunto destas disposições essa generalidade, nem tão pouco qual o
critério que justificou esta qualificação. Para responder a esta interroga-
ção, duas possibilidades se nos colocam: a de julgar que as disposições do
capítulo I são gerais com relação às disposições que o Capítulo II adopta
sobre as provas – as do Capítulo I seriam gerais e as do Capítulo II seriam
particulares sobre as provas -; ou partirmos de um critério absoluto: tais
disposições são gerais por respeitarem a normas que constituem o pano
de fundo da disciplina do exercício e tutela da generalidade dos direitos.
Cremos ser este o ponto de vista que teve presente o legislador ao
atribuir ao Capítulo I do Subtítulo a epígrafe Disposições Gerais. Mas se é
assim então levanta-se um problema de sistematização, pois, o legislador
noutros momentos utilizou a expressão Disposições Gerais no interior de
um determinado capítulo com um sentido relativo: ou seja, com o sentido
do conjunto das disposições que constituem o pano de fundo das normas
particulares adoptadas nos capítulos subsequentes. Foi o que se verificou,
por exemplo, no Capítulo II do Subtítulo I relativo às Pessoas, a propósito
das pessoas colectivas. As disposições gerais contidas na Secção I deste Ca-
pítulo II são na verdade disposições que constituem o pano de fundo, com
todas as consequências que esta opção acarreta, no plano da interpretação
e integração das normas, das Subsecções II e III relativas às associações e
fundações. São, pois, normas gerais relativas a todas as pessoas colectivas.
O mesmo se verificou no Capítulo III do Subtítulo III relativo aos FACTOS
JURÍDICOS, cuja Secção I – disposições gerais inclui normas que constituem
o pano de fundo das subsecções subsequentes.
Ora, dado que não podemos dizer que as normas sobre abuso do
direito, colisão de direitos, acção directa, legitima defesa, estado de necessidade e
consentimento do lesado, sejam normas que constituem o pano de fundo das
disposições sobre provas, temos que concluir que o legislador utilizou a
expressão Disposições Gerais, neste Capítulo I sobre o Exercício e Tutela dos
Direitos, não em sentido relativo, como nos demais lugares mencionados,
mas em sentido absoluto, ou seja, com o sentido de normas que discipli-
nam condutas gerais que devem ser observadas pelos sujeitos de direitos,
em atenção aos seus limites, em atenção aos direitos de outrem, à oportu-
nidade do seu exercício em tempo útil e à sua tutela.
e outros escritos jurídicos 175

2. Princípios subjacentes

I - As disposições do Capítulo que nos cumpre agora comentar dei-


xam-se atravessar por praticamente todos os princípios que orientam o
direito civil português. Não aprofundaremos esta análise. Refira-se, ape-
nas, que nelas estão presentes:
- o princípio do personalismo ético de raiz estóica, cristã e kantiana,
que coloca a pessoa humana, enquanto ser dotado de inteligência e vonta-
de, em lugar primeiro e central;
- o princípio da racionalidade do direito que tem como consequência
necessária a ideia de vinculação imanente e da impenetrabilidade recí-
proca dos direitos subjectivos que obrigam à busca de equilíbrios e a uma
actuação conforme à boa fé;
- o princípio da autonomia da vontade que confere aos sujeitos o con-
trolo do exercício dos direitos subjectivos e lhes permite consentir limi-
tações e até lesões nos seus direitos subjectivos, como lhes reconhece o
direito de auto-tutela;
- o princípio da ordem pública que impõe limites aos direitos subjecti-
vos, mesmo contra a vontade dos sujeitos, quando estejam em causa direi-
tos indisponíveis, os bons costumes e os fins sociais do próprio direito.

II - Estes princípios, na sua formulação indeterminada, não cingem


a sua operatividade ao direito civil. Tratando-se de disposições genéricas
relativas ao exercício e tutela dos direitos, deve seguir-se que são aptas a
intervir em todas as situações, tanto as reguladas pelo direito público432,
como as reguladas pelo direito privado. Desta forma as normas dos ar-
tigos 334º e segs. que a seguir comentaremos funcionam para os demais
ramos do direito com o mesmo valor que as disposições da Parte Geral
do Código Civil relativas à aplicação da lei no tempo ou à interpretação e

432 No que respeita ao abuso do direito esta ideia já encontrou relevância jurisprudencial.
Cf. sobre este ponto Ac. do STJ de 11 de Novembro de 1999, Bol. do Min. da Just., 491,
214. Este acórdão fez aplicação do artº. 334º do CC numa situação de dívida fiscal em
que o Estado havia aceitado o pagamento a prestações, ao abrigo do chamado Plano
Mateus, mas veio posteriormente exigir o pagamento integral do crédito em acção
executiva. O Tribunal considerou que o Estado violou as regras da boa fé. Cf. ainda
Ac. da RP de 1 de Outubro de 1999, BMJ 480, 546; Ac. da RP de 9 de Novembro de 1999,
Col. de Jur., 1999, 5, 184; Ac. do STJ de 27 de Março de 2001, Col. de Jur., 2001, 1, 184. A
RL tomou sobre esta matéria posições divergentes. Em sentido contrário, cf. Ac. da RL
de 22 de Junho de 1999, Col Jur. 1999, III, 118; Ac. da RL de 22 de Fevereiro de 2000, in
Col. Jur. 2000, I, 123, tendo-se pronunciado no sentido favorável à inadmissibilidade
da reclamação o Ac. da RL de 14 de Abril de 1999, Col. Jur. 1999, II, 163. Alguns dos
acórdãos mencionados não fazem referência expressa à figura do abuso do direito.
176 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

integração das normas jurídicas, sem prejuízo, claro está, das disposições
específicas.

ARTIGO 334º
(Abuso do direito)

É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda ma-


nifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou
pelo fim social ou económico desse direito.

Anotação:
I - O direito atribui relevância aos actos abusivos. Esta relevância
pode ser civil, administrativa, fiscal433, criminal, substantiva ou proces-
sual434. Todos os ramos do direito dão relevância ao abuso, não apenas
enquanto conduta eticamente reprovável do titular de um direito, mas
também como actuação objectiva do sujeito que ponha em causa os fun-
damentos de atribuição do próprio direito. Fala-se, assim em abuso da
posição dominante; abuso de autoridade; abuso de confiança; abuso de
confiança fiscal; abuso do direito... Parece ser neste sentido que António
Lopes da SILVA definia o Abuso como “todo o acto exagerado por culpa, ma-
lícia ou erro, e que excede os limites do gozo dos direitos originários ou civis, ou
de autoridade pública, doméstica, ou administrativa, contra as disposições da Lei,
ditames da justiça ou da Boa razão”435.
O Código Civil de 1867 parecia não dar relevância aos actos abu-

433 Sobre este ponto, cf. José Luis Saldanha SANCHES, in Abuso de Direito em Matéria
Fiscal: alcance e limites, Ciência e Técnica Fiscal, nº. 398, pp. 13 e segs. O Ac. do STJ
de 11 de Novembro de 1999 ocupou-se da questão seguinte ilustrativa do abuso de
direito em matéria fiscal: um contribuinte celebrou com o Estado um acordo sobre o
pagamento em prestações de dívidas fiscais em atraso. Posteriormente veio o Estado
reclamar o pagamento integral do crédito, encontrando-se o contribuinte a cumprir
o acordado sobre o pagamento a prestações. O tribunal considerou que o Estado
excedera de modo excessivo os limites impostos pela boa fé e condenou-o por abuso
de direito. Cf. BMJ nº. 491, pp. 214 e segs.
434 Para uma relevância processual do abuso do direito, cf. Ac. do STJ de 11 de Abril 2000,
Ac. Dout. do STA, 471, 478.
435 In Repertório Jurídico, vol I, Coimbra 1886, pp. 7. Embora o autor use o vocábulo com
este conteúdo amplo, a verdade é que as decisões que utiliza no seu Repertório para
ilustrar situações de abuso, são fundamentalmente do foro criminal. Estas situações
são: abuso de autoridade, com relevância para um acórdão da Relação do Porto, de
11 de Agosto de 1876, relativo a abuso de poder cometido por um juiz; abuso de
confiança; abuso de funções religiosas e abuso de liberdade de imprensa.
De relevar, igualmente, uma posição da Revista de Legislação atinente às relações entre
e outros escritos jurídicos 177

sivos. A disposição do artº. 13º deste Código segundo a qual “quem, em


conformidade com a lei, exerce o próprio direito não responde pelos pre-
juízos que possam resultar desse mesmo exercício”, fazia lembrar a fór-
mula romana qui suo iure uti neminem laedere436. Apesar disso, mesmo na
vigência deste Código um certo sector da doutrina e da jurisprudência
opinou no sentido de que tal fórmula não era impeditiva da atribuição de
relevância jurídica aos actos abusivos437.
Hoje a matéria encontra-se disciplinada neste artº. 334º que teve
por fonte o Código Civil grego, de 23 de Fevereiro de 1940, cujo artº. 281º
apresenta a mesma formulação. Dispõe, na verdade, o artº. 281º do Có-
digo Civil helénico “o exercício do direito é proibido se excede manifestamente
os limites prescritos quer pela boa fé e pelos bons costumes, quer pelo fim social
e económico desse direito“438. Este artigo ter-se-á inspirado, por sua vez, no
artº. 2º do Código Civil suiço nos termos do qual “cada um deve exercer os
seus direitos e cumprir as suas obrigações segundo as regras da boa fé. O abuso
manifesto de um direito não é protegido por lei”. Nesta rede de influências a
solução portuguesa tem, por sua vez, influenciado medidas legislativas
noutros países de que é paradigmático o caso do Brasil. O novo Código
Civil que entrou em vigor no dia 11 de Janeiro de 2003, dispõe no seu
artigo 187 que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao
exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econô-
mico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”, numa clara alusão
ao artº. 334º do CC português, como, aliás, é reconhecido pela doutrina
jurídica brasileira.

o abuso de autoridade e o direito de desobediência legítima. Sustenta-se que qualquer


cidadão pode deixar de cumprir as ordens ilegais das autoridades, as quais cometem o
crime de abuso de autoridade, prendendo quem se recusa a cumprir aquelas ordens”.
Mesmo nas situações hoje com relevância civil, como seja a situação de um páraco que
recusa a um fiel os sacramentos da Igreja, sob pretexto de haver arrematado bens das
corporações religiosas ou do páraco que não admite um hereje para padrinho de um
baptizado, ou de o autor de um artigo que utiliza frases “allusivas ou equívocas” , o
que se procura nestes casos é a relevância criminal da actuação ou comportamento
abusivo.
436 GAIO formula a mesma opinião dizendo: nullus videtur dolo facere qui suo iure utitur
(Dig. 50,17,55). PAULO (nemo damnum facit nisi qui id fecit quod facere ius non habet - Dig.
50,17,151) ou ULPIANO (is qui iure publico utitur non videtur iniuriae faciendae causa hoc
facere: iuris enim executio non habet iniuriam - Dig. 47,10,13,I).
437 Cf., por todos, MENEZES CORDEIRO, Tratado..., pp. 194.
438 Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, com a colaboração de Henrique
Mesquita in Código Civil anotado, vol. I, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra
Editora, 1987, pp. 298; A. Menezes CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil Português,
vol. II, Coimbra, Almedina, pp. 661 e segs;
178 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

II - A redução dogmática da figura do abuso do direito conhe-


ceu, nos últimos tempos, na doutrina jurídica portuguesa, um desenvol-
vimento notável. Cite-se, exemplificativamente, os trabalhos de Fernando
Augusto Cunha de SÁ439 e António Menezes CORDEIRO este, recondu-
zindo a figura à bona fides romana, lhe assaca as seguintes manifestações
tipológicas: exceptio doli; venire contra factum proprium; as inalegalibilidades
formais; a supressio-surrectio; o tu quoque e o desequilíbrio no exercício de posi-
ções jurídicas440. Seguiremos de perto este último autor.
Na jurisprudência, se, por um lado, existe, uma verdadeira inflação
do recurso à figura do abuso do direito, nem sempre bem conseguida441,
não faltam situações em que esse recurso estaria justificado, apesar de o
tribunal ter enjeitado a sua aplicação. Assim, numa sentença do Tribunal
Judicial de Loures, de 6 de Maio de 2003442, apesar de o tribunal estar de
posse de elementos que lhe permitiam reconhecer que uma advogada,
que aceitara patrocinar gratuitamente a causa de um colega, veio poste-
riormente, por virtude de desentendimentos havidos entre ambos, quan-
do à condução do processo, exigir-lhe honorários pelo trabalho realizado,
não fez, como parecia justificado no caso, a aplicação da teoria do abu-
so do direito, por violação das regras da boa fé contratual. Esta situação
apresenta, aliás, similitude com um outro caso julgado pelo STJ no qual
um advogado que cedera parte do seu escritório a um colega, veio poste-
riormente exigir-lhe o pagamento da renda. Neste caso o comportamento
foi reprimido por abuso. Sendo o abuso do direito do conhecimento ofi-
cioso443, a decisão do Tribunal de Loures merece censura.

439 Cf. deste autor a tese Abuso do Direito (reimpressão da edição de 1973), Coimbra,
Almedina, 1997.
440 #
Para um amplo desenvolvimento destas figuras, seja na sua génese, seja na sua aplica-
ção, cf. a tese do autor Da Boa fé no direito civil, vol II, Coimbra 1984, pp. 719 e segs,
retomado no seu Tratado de Direito Civil português, I Parte Geral, Tomo I - Introdução,
Doutrina Geral, Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 1999, pp. 191 e segs e, em parti-
cular, 198 e segs.
441 Cf. Menezes CORDEIRO, Tratado..., pp 196.
442 6º Juízo Cível.
443 O carácter oficioso do conhecimento do abuso do direito é reconhecido, tanto pela
doutrina, como pela jurisprudência. Cf. Ac. do STJ de 25 de Novembro de 1999, Col. Jur.
1999, III, 124. Nesta situação o adquirente de um automóvel não havia cumprido uma
cláusula acessória do contrato, e o vendedor usou do direito de rescindir do contrato,
não obstante ter logrado a satisfação dos demais interesses decorrentes do contrato. O
tribunal considerou a rescisão abusiva e conheceu oficiosamente do abuso.
e outros escritos jurídicos 179

III - O venire contra factum proprium parece ser a modalidade de abu-


so de direito que tem recebido a mais ampla atenção da jurisprudência.
Nesta situação o titular do direito assume comportamentos contraditó-
rios, quando ao exercício ou tutela do mesmo direito. Traduz-se em dar
o dito por não dito, desrespeitando a palavra dada. A sua repressão pelo
direito tem o seu fundamento no facto de o comportamento contraditório
minar o estado de confiança que deve subsistir nas relações jurídicas, mas
também porque põe em causa a própria credibilidade da ordem jurídica,
organizada, entre outras, com base na ideia de tutela da confiança444. Não
se reconduz apenas a uma dimensão privada. Tem uma forte componen-
te pública. Parafraseando um Parecer da PGR diríamos que a vítima da
actuação abusiva “não é uma pessoa determinada, mas a própria ordem
jurídica445. Por isso, permitimo-nos discordar da posição tomada pelo STJ
no seu acórdão de 20 de Outubro de 1983, nos termos do qual traduzindo-
se o abuso do direito excepção peremptória deve ser deduzida como meio
de defesa na contestação, sob pena de o tribunal não poder conhecer dele.
Esta decisão afigura-se-nos contrária à posição dominante no sentido de
que o abuso do direito é do conhecimento oficioso.

IV- Algumas situações caracterizadas pela jurisprudência como


sendo de venire contra factum proprium são passíveis de uma diferente qua-
lificação. Assim, a situação em que o arrendatário comercial invoca a nu-
lidade do contrato de arrendamento, por falta de forma, para se eximir ao
pagamento de rendas, não caracteriza um verdadeiro venire contra factum
próprium, como qualificou um Acórdão da Relação de Évora446, mas sim de
uma situação de inalegabilidade formal, na caracterização feita por Menezes
CORDEIRO. Nesta situação o titular do direito adopta um comportamen-
to que permite concluir que aceita como válida uma forma adoptada para
a celebração de um negócio jurídico, mas vem mais tarde invocar a inob-
servância da forma legalmente exigida para exigir um direito ou se eximir
de uma obrigação. Neste caso o que permite reprimir o comportamento
como abusivo é a conjugação de dois elementos: a repercussão do tempo
nas relações jurídicas e a boa fé.

V - São, aliás, estes dois elementos que possibilitam ainda duas ma-
nifestações do abuso do direito, assentes no binómio supressio-surrectio.

444 Cf. neste sentido, Ac. do STJ, de 25 de Maio de 1999 (col. Jur. 1999, II, 116). Cf. ainda
Ac. da RL de 25 de Maio de 1999,
445 Cf. Parecer da PGR de 21 de Março de 1998.
446 Ac. da Relação de Évora, de 11 de Novembro de 1993 (col. Jur. V, 283).
180 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Na supressio dá-se a supressão de uma faculdade jurídica pela conjugação


do tempo com a boa fé. Na surrectio ocorre o fenómeno inverso: dá-se
o nascimento de uma situação jurídica pela associação do tempo com a
boa fé447. Ambas as categorias têm recebido acolhimento na jurisprudên-
cia portuguesa448. Um caso julgado pelo Tribunal da Relação do Porto e
caracterizado como venire contra factum proprim afigura-se-nos tratar de
uma situação de surrectio. Neste caso o proprietário de um prédio urba-
no arrendou para a actividade de oficina um rés-do-chão, tendo o arren-
datário passado a utilizar igualmente um terreno anexo pertencente ao
mesmo proprietário. Quando o proprietário veio pretender a restituição
da parcela de terreno, o tribunal considerou a conduta abusiva449. Nesta
situação parece que o decurso do tempo associado à boa fé conduziu ao
surgimento de uma faculdade jurídica, qual seja o direito à utilização do
terreno anexo à oficina.

VI - A fórmula tu quoque parece ter uma dupla manifestação: aquele


que viola uma norma jurídica vem exigir o seu cumprimento; aquele que
viola uma norma jurídica vem exigir o acatamento das consequências re-
sultantes da violação450. Como ensina MENEZES CORDEIRO, a repressão
do abuso do direito com fundamento em tu quoque requer fundadas cau-
telas. Mostra-se necessário a existência de um nexo de incompatibilidade
entre a situação violada e a situação de que se pretende prevalecer. Cre-
mos, igualmente, que o recurso à categoria tu quoque pode ser detido se
a inobservância da norma por quem pretenda prevalecer-se do tu quoque
envolver violação de interesses superiores. Nomeadamente, duvidamos
se o recurso ao tu quoque está viabilizado perante as chamadas normas
auto-limitadas que, embora conformando situações mesmo contratuais, a
materialidade subjacente apresenta forte componente de ordem pública.
A inobservância destas normas perante a alegação do tu quoque envol-
veria, por efeito colateral, ataques à ordem pública. Não cremos que o be-
neficiário do tu quoque tenha legitimidade para se prevalecer da alteração
operada pela violação da norma.

VI - Tanto a doutrina como a jurisprudência reconhecem, unani-


memente, que para haver abuso do direito basta um exercício objectivo.

447 Para maiores desenvolvimentos cf. MENEZES CORDEIRO, Tratado..., pp. 206.
448 Cf. MENEZES CORDEIRO, Tratado..., pp 205-206.
449 Proc.690/99 -3ªSecção, Ac. de 8/7/99 -2ª secção Cível (João Vaz) www.trp.pt.
450 MENEZES CORDEIRO parece referir incidentalmente a estas duas manifestações,
Tratado..., pp. 209 e 211.
e outros escritos jurídicos 181

Não é necessário que o abusador actue com dolo. Não necessita sequer de
ter consciência do carácter abusivo do seu acto. Basta que o seu acto seja
objectivamente abusivo. Cite-se, exemplificativamente, o Ac. do STJ de 8 de
Março 2000, segundo o qual para haver abuso de direito “não é necessária
a consciência de se atingir, com o exercício do direito, a boa fé, os bons
costumes ou o fim social e económico do direito exercido: basta que os
atinja451“.

VII - A relevância processual do abuso do direito não requer a ale-


gação pelas partes, mas estas devem trazer para o processo os elementos
que permitam ao juiz concluir que se encontra perante uma situação de
abuso. Constitui, pois, matéria do conhecimento oficioso.
O recurso à figura do abuso do direito impõe ao juiz uma actua-
ção que não se esgota na actividade subsuntiva. Note-se que neste parti-
cular o legislador privilegiou o recurso a conceitos indeterminados452 - boa
fé, bons costumes, fim económico e social do direito. Podemos falar, nes-
te particular, de impressionismo jurídico, que permite ao juiz uma decisão
mais aderente à realidade, assim como requer da parte dele uma elevada
cultura jurídica. A atitude deste perante o direito é posta à prova: se de
escravo da regra formal ou de jurista preocupado com os fundamentos
jusculturais do direito. As concepções dominantes numa determinada
comunidade ou sociedade, a que o direito atribua relevância jurídica; a
repulsa social que a inobservância dessas concepções é susceptível de sus-
citar; os ditames da boa fé e da boa razão são elementos que deverão con-
duzi-lo numa decisão criteriosa.

VIII - O artº. 334º do CC considera ilegítimo o comportamento abu-


sivo. Aqui também foi feliz a opção do legislador. Na verdade, esta sanção
genérica é não só compatível com o carácter transversal do fenómeno, mas
também com o seu modo de apreensão pela via da concretização de con-
ceitos indeterminados. Possibilita, pois, reacções diferenciadas da ordem
jurídica em que o poder do julgador desempenha um papel importante.
Estas reacções poderão passar pelo dever de reparar prejuízos na situação
de exceptio doli; na supressão ou mera desconsideração do comportamento
abusivo e na reposição da ordem jurídica no estado anterior ao compor-
tamento abusivo, nas situações de venire contra factum proprium, inalegabi-
lidades formais e tu quoque; na declaração ou justificação da existência ou
inexistência de uma situação jurídica nas situações de supressio-surrectio.

451 Cf. Acs. Dout. do STA, 470, 286.


452 Cf. MENEZES CORDEIRO, Tratado..., pp. 198.
182 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Estas reacções poderão ser combinadas com a invalidade dos negócios


jurídicos, a inoponibilidade de situações jurídicas, donde resulta que um
comportamento abusivo pode desencadear mais do que uma reacção da
ordem jurídica. Estas reacções dependem da natureza dos bens jurídicos
em presença e, em algumas circunstâncias, do pedido do interessado.

ARTIGO 335º
(Colisão de direitos)

1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, de-


vem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produ-
zam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das
partes.
2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevale-
ce o que deva considerar-se superior.

Anotação:
I - Dá-se a colisão de direitos quando o seu exercício provoca a
intersecção mais ou menos sobreposta de espaços de actuação de cada
direito. Abstractamente os direitos não se colidem453. A colisão dá-se no
momento do seu exercício. Verifica-se que a actuação do titular de um
direito invade, de modo lícito, o espaço lícito de actuação do titular de um
direito de igual ou diferente natureza. Coloca-se um problema de impe-
netrablidade.

II - A solução encontrada pelo legislador português para fazer face


às situações de colisão de direitos não poderia ser a mais feliz.
Abstractamente considerado, quatro soluções apresentam-se, neste
particular, como possíveis: a) admitir-se a regra da prioridade temporal,
nos termos da qual é tutelado o direito que concretizou a sua actuação em
primeiro lugar; b) concordar que a actuação simultânea implica a anu-
lação recíproca, total ou parcial, dos direitos em jogo; c) considerar que
cada direito deve recuar até ao limite da supressão da sobreposição; d) ou
aceitar a regra da prioridade valorativa, nos termos da qual prevalece o
direito de natureza superior.

453 A ordem jurídica é dotada de coerência interna, o que não significa que algumas
normas não poderão encontrar-se em situação de antinomia. Todavia, a ciência jurídica
foi elaborando ao longo dos tempos diversos mecanismos para superar tais situações,
restabelecendo a congruência. As fórmulas lei especial derroga a lei geral; a lei superior
derroga a lei inferior; a lei posterior derroga a lei anterior e a própria adaptação são algumas
das vias encontradas pela ciência jurídica para restabelecer a coerência interna entre
normas ou princípios em antinomia.
e outros escritos jurídicos 183

A primeira resposta prestar-se-ia a soluções oportunistas, incom-


patíveis com os princípios ético-jurídicos fundamentais. Não foi, pois,
considerada pelo legislador. A segunda equilibra os direitos desavindos,
mas deixa um espaço livre de actuação jurídica. A sua consagração limi-
taria desnecessariamente os direitos colidentes. A terceira resposta, esta
adoptada pelo legislador, preconiza apartar os direitos em colisão até ao
limite da zona de sobreposição. Trata-se de uma solução feliz. Promove
o equilíbrio dos direitos em colisão e permite a cada um a realização do
próprio direito até ao limite dos direitos de outrem. Todavia, porque nem
todos os direitos são da mesma natureza, os de hierarquia superior preva-
lecem sobre os direitos de hierarquia inferior.

III - A relevância jurisprudencial da figura da colisão de direitos


tem sido suscitada com particular interesse no domínio dos chamados
direitos da personalidade. A sede por excelência do conflito situa-se ao ní-
vel da liberdade de informar e da protecção do bom nome, da honra e
da reserva da vida pessoal e familiar. A circunstância de tais direitos se
encontrarem ambos protegidos constitucionalmente tem levado alguma
jurisprudência a admitir que seriam direitos da mesma natureza, justifi-
cando-se a sua harmonização à luz do artº. 335º do CC454.
O critério da fonte não se nos afigura adequado para responder à
questão de saber se certos direitos são iguais ou da mesma espécie. A mes-
ma fonte - no caso a Constituição da República - pode acolher direitos de
diversa natureza e hierarquia. Na esteira de HUBMANN e CAPELO DE
SOUSA parece ser de seguir o critério do bem jurídico tutelado para veri-
ficar se os direitos são ou não da mesma natureza e hierarquia455. O direito
de informar não é um direito da mesma natureza que o direito à reserva da
vida privada e familiar. Este é claramente superior pelo que aquele direito
deve ceder sempre face a este. A jurisprudência dominante tem, aliás, feito
eco deste ponto de vista, colocando quase sempre os direitos da personali-
dade em posição superior456.

454 Cf. Ac. do STJ de 26 de Setembro de 2000, Col. de Jur., 2000, 3, 42.
455 Para maiores desenvolvimentos sobre este ponto, cf. CAPELO DE SOUSA, O Direito
Geral..., pp. 533 e segs.
456 Cf. Ac. do STJ de 22 de Outubro de 1998 que considerou o direito à integridade física
de natureza superior ao direito ao lazer e aos tempos livres (BMJ 480, 413); Ac. da RC
de 15 de Fevereiro 2000, que reconheceu a superioridade dos direitos da personalidade
sobre o direito da propriedade (Col. Jur. 2000, I, 23).
184 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

ARTIGO 336º
(Acção directa)

1. É lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o


próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impos-
sibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para
evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não ex-
ceda o que for necessário para evitar o prejuízo.
2. A acção directa pode consistir na apropriação, destruição ou
deterioração de uma coisa, na eliminação da resistência irregularmente
oposta ao exercício do direito, ou noutro acto análogo.
3. A acção directa não é lícita, quando sacrifique interesses supe-
riores aos que o agente visa realizar ou assegurar.

Anotação:
I - No princípio era a vindicta privada. Cada clã, tribo ou família
realizava a justiça pelas próprias mãos. A regra do talião olho por olho, den-
te por dente, era o único critério com base no qual este modelo de justiça se
realizava. Não atendia nem a critérios de culpa, nem a causas de justifica-
ção ou de exclusão, nem a nenhum outro critério atenuador da responsa-
bilidade que hoje caracteriza a justiça pública. Compreende-se, pois, que
tenha dado lugar a muitas situações de excesso. Por isso, o Estado tomou
sobre si o poder de realizar o direito, com a credibilidade garantida pela
ciência jurídica. Essa transferência não foi, todavia, total, pois há situações
em que a acção do Estado não é adequada para garantir uma tutela em
tempo útil.

II - O legislador reconheceu-o em diversas situações em que auto-


riza o titular do direito a recorrer à força para o realizar ou assegurar. As-
sim, “o possuidor que for perturbado ou esbulhado pode manter-se ou restituir-se
por sua própria força e autoridade, nos termos do artigo 336º, ou recorrer ao
tribunal para que este lhe mantenha ou restitua a posse“ - artº. 1277º do CC. Do
mesmo passo, “é admitida a defesa da propriedade por meio de acção directa, nos
termos do artigo 336º - artº. 1314º do CC. Estas situações correspondem, no
fundo, a uma autorização conferida por lei ao titular do direito para que
este recorra à justiça privada em situações específicas, verificadas certas
condições.

III - o artº. 336º é, todavia, a norma genérica sobre esta matéria.


Reconhece ao titular do direito, seja qual for a natureza deste, um direito
instrumental de recurso à força para o realizar ou assegurar. A lei fixa
alguns pressupostos para a acção directa, sem os quais ela deve reputar-se
e outros escritos jurídicos 185

ilícita. A acção directa pressupõe: a) a existência de um direito próprio; b)


o perigo de inutilização prática do direito; c) a impossibilidade de recurso
aos meios coercivos normais para evitar essa inutilização; d) o recurso à
força; e) a adequação da acção directa para evitar a inutilização prática
do próprio direito.

IV - Por direito próprio deve entender-se um poder conferido pela


ordem jurídica àquele que actua em acção directa. Não pode tratar-se de
uma mera expectativa jurídica ou de um mero interesse legalmente pro-
tegido. Deve igualmente tratar-se de um direito válido no momento da
actuação. A convicção falsa da existência de um direito, porque este nunca
existiu ou se perdeu, torna a acção directa ilícita por falta de um pressu-
posto essencial, e envolve responsabilidade, tanto civil como criminal457.
De igual modo, não pode tratar-se de um direito de terceiro, o que permite
distinguir a acção directa da legítima defesa ou do estado de necessidade458.

V - O perigo de inutilização prática do direito pode traduzir-se na


diminuição ou privação do aproveitamento económico e social do direito
em causa. As situações de que se tem ocupado a jurisprudência dão nota
deste requisito. Assim, considerou-se lícita a acção directa em situações
de ocupação indevida de um imóvel; dificuldades de exercício do direito
de servidão; danos em árvores e videiras; oposição ao exercício do direito
de propriedade; plantar flores em terreno alheio; danos nas culturas agrí-
colas, etc..

VI - Há impossibilidade do recurso aos meios (órgãos ou agentes)


coercivos normais não só quando se verifica um distanciamento geográfi-
co, ausência ou insuficiência de meios de comunicação, mas também na-
quelas situações em que o recurso a esses meios não seja adequado para
evitar a inutilização prática do direito459. Estes meios poderão ser admi-

457 Cf. a este propósito o Ac. da RL de 23 de Outubro de 1991 que considerou desculpável
o erro de um presumível proprietário que, em acção directa, removeu postes que foram
colocados em terreno contínuo à sua propriedade. O proprietário agiu na convicção
(errada) de que os referidos postos tinham sido instalados na sua propriedade. In
www.dgsi.pt/jtrl. Duvidámos da bondade destas decisão. O proprietário tem o dever
de diligenciar no sentido de conhecer os justos limites do seu direito de propriedade.
Desculpabilizar o erro nesta situação pode significar ofender o direito de propriedade
de outrem. Cf., sobre este ponto, CAPELO DE SOUSA, O Direito geral ..., pp. 439, nota
1185.
458 Cf., por todos, CAPELO DE SOUSA, O Direito geral..., pp. 438, nota 1175.
459 Cf. Pires de LIMA e Antunes VARELA, Código Civil anotado, vol. I, Coimbra Editora,
186 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

nistrativos ou judiciais. A ausência deste fundamento tem justificado o


não reconhecimento do direito de acção directa por várias decisões juris-
prudenciais460.

VII - A acção directa pode ter por conteúdo qualquer acto do titular do
direito que seja adequado para evitar a inutilização prática do direito. Pode
consistir na apropriação de uma coisa, sua destruição ou deterioração, assim
como pode traduzir-se na eliminação de resistência irregularmente oposta ao
exercício do direito (nº. 2 do artº. 336º). Abstractamente considerado, a acção
directa pode concretizar todas as actuações do titular do direito que, na falta
dos pressupostos da acção directa, só obteria com a intervenção dos meios
coercivos normais. Essas actuações correspondem, no plano processual, a
pretensões, tuteladas, neste particular, por acção própria.
Por recurso à força não se deve entender apenas o recurso à própria
força. Parece não estar afastada a possibilidade de o titular do direito poder
obter a cooperação de outras pessoas de modo a alcançar um nível óptimo
de força para assegurar ou realizar o próprio direito. Assim, um proprie-
tário que encontrar resistência ao exercício do seu direito de propriedade
por parte de um grupo de indivíduos parece não estar impossibilitado
de obter a cooperação de outro grupo de indivíduos, se se verificarem os
demais pressupostos de acção directa, para se manter ou restituir, desde
que a acção seja coordenada e dirigida pelo próprio proprietário461. Não
parece que a uma resistência colectiva irregularmente oposta ao exercício
de um direito, seja legalmente exigível uma acção individual.

VIII - A adequação da actuação do titular do direito apresenta uma


dupla valência: como meio e como medida. A acção directa é adequa-

1987, nota 1 ao artº. 336º.


460 Cf. Ac. do STJ de 9 de Março de 1998 e ainda ac. do STJ de 26 de Março de 1998 que
considerou ilícita a acção de um senhorio que, com a ajuda de outras pessoas, procedeu
ele próprio ao despejo de um inquilino, entre outros, in http://www.dgsi.pt/jstj.
Todavia, estranhamente, considerou o Ac. da RP de 12 de Janeiro de 1999 que pode
actuar em acção directa aquele que, passando a ser locatário de uma fracção de um
prédio se vê impedido de ocupar o locado por o ocupante não proceder à sua entrega
- http://www.dgsi.pt/jtrp.. Não parece haver, neste caso, impossibilidade de recurso
aos meios coercivos normais.
461 A doutrina dominante opina diferentemente sobre este ponto. Cf. Rabindranath A
CAPELO DE SOUSA, in O Direito Geral de personalidade, Coimbra Editora, 1995, pp.
438, nota 1175. Considera que só o próprio titular do direito ou seu representante
legal podem exercer acção directa. Salvo melhor opinião, este ponto de vista não se
harmoniza com os sinais dos tempos em que a resistência ao exercício de direitos
provém cada vez mais de grupos, pelo que justifica que seja igualmente contrariada
por uma acção de grupos.
e outros escritos jurídicos 187

da quando, avaliadas as circunstâncias que rodeiam a situação concreta,


constitua o único meio de realização ou conservação do próprio direito.
O meio utilizado deve apresentar, pois, aptidão bastante para realizar ou
assegurar o direito ameaçado. Não pode ser desajustado. Enquanto me-
dida, não pode ser desproporcional ao prejuízo que pretende evitar, nem
tão pouco sacrificar interesses superiores aos que o agente visa realizar ou
assegurar (nº. 3).

IX – A acção directa exclui a ilicitude.

ARTIGO 337º
(Legítima defesa)

1. Considera-se justificado o acto destinado a afastar qualquer


agressão actual e contrária à lei contra a pessoa ou património do agente
ou de terceiro, desde que não seja possível fazê-lo pelos meios normais
e o prejuízo causado pelo acto não seja manifestamente superior ao que
pode resultar da agressão.
2. O acto considera-se igualmente justificado, ainda que haja ex-
cesso de legítima defesa, se o excesso for devido a perturbação ou medo
não culposo do agente.

Anotação:
I - A legitima defesa representa, ao lado da acção directa, o reco-
nhecimento de que o Estado não é uma entidade omnipresente. Em al-
gumas situações sem uma actuação do próprio titular do direito ou de
terceiros para a defesa da própria pessoa ou do seu património poderiam
ficar goradas as possibilidades de tutela dos direitos inerentes se a ordem
jurídica não reconhecesse ao seu titular ou a terceiros poderes de defesa
ou conservação perante agressão actual de outrem. Trata-se de uma for-
ma de auto-tutela perante situações de agressão.

II - Os pressupostos da legítima defesa são: a agressão actual; a


agressão contrária à lei contra pessoa ou património; a impossibilidade
de recurso aos meios normais de tutela; a proporcionalidade da resposta
à agressão.

III - Existe agressão quando se verifica uma actuação de alguém sus-


ceptível de causar um dano físico ou moral sobre uma pessoa ou a des-
truição, inutilização ou redução da utilidade de um bem. A agressão não
necessita de recair sobre o sujeito ou sobre o património do sujeito que pre-
ordena e concretiza a resposta à agressão. Pode tratar-se de uma agressão
sobre pessoa diversa ou património de pessoa diversa daquela que actua
188 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

em legitima defesa. A legitima defesa pode ser, pois, própria ou alheia. Es-
tão subjacentes a esta faculdade razões de ordem pública e de cooperação
de todos na prossecução da paz social.
A agressão é contrária à lei quando é proibida ou não autorizada
por uma norma jurídica. Daí decorre que a actuação da vítima que pro-
voque ou de algum modo incite à agressão torna esta justificada e, conse-
quentemente, lícita. Em tal caso, a defesa torna-se ilegítima.

IV - O termo pessoa parece estar utilizado no artº. 337º enquanto


pessoa individual. Todavia, do mesmo passo que se reconhece a respon-
sabilidade civil e penal de pessoas colectivas, parece dever reconhecer-se
a possibilidade de as pessoas colectivas puderem actuar em legitima de-
fesa para a conservação da sua integridade moral e de seus bens (cf. artº
12º da CR). Fora de dúvidas é a possibilidade que deve ser reconhecida
ao agente de actuar em defesa do património de pessoa colectiva, entes
personalizados e mesmo patrimónios autónomos, herança jacente, asso-
ciações sem personalidade jurídica e as comissões especiais, as sociedades
civis, as sociedades comerciais enquanto não forem registadas, o condo-
mínio resultante da propriedade horizontal, os navios. Esta extrapolação
parece estar autorizada pela extensão que o artº. 6º do CPC faz da perso-
nalidade judiciária. Na verdade, se a lei estende a personalidade judiciária
a estes entes, por identidade de razão deve permitir-lhes actuações em
defesa própria ou do seu património, assim como permitirá actuações de
quem presencia uma agressão em defesa do património de tais entes. A
mesma extrapolação está legitimada, tratando-se de sucursais, agências,
filiais, delegações ou representações, por força do artº. 7º do CPC. Uma
actuação em legitima defesa está igualmente justificada para a protecção
de bens do domínio público, seja do Estado, como das autarquias locais.

V - O instrumento da agressão pode ser qualquer meio susceptível


de a concretizar. Poderão ser meios do próprio agente (murro, pontapés,
palavras ou gestos) como exteriores ao próprio agente dele ou de tercei-
ros (facas, paus, chicote, armas). Estes meios podem ser animados (cães,
v.gr.) ou inanimados (pedras). Os instrumentos de defesa poderão ser os
utilizados pelo agressor ou de diferente natureza, mas têm como limite a
proporcionalidade da reacção. Não poderão ser utilizadas pelo defenden-
te instrumentos de defesa que não sejam os necessários para remover ou
fazer cessar a agressão.

VI – A impossibilidade de recurso aos meios coercivos normais


analisa-se nos mesmos termos referidos a propósito da acção directa462,

462 V. Anotação ao artº. 336º.


e outros escritos jurídicos 189

mas, diferentemente desta, a lei não exige que na legítima defesa haja
uma proporcionalidade entre os meios empregues em legítima defesa e a
agressão. A ordem jurídica só reage negativamente face aos meios empre-
gues se forem manifestamente superiores aos meios utilizados na agressão
(v.gr. responder com um tiro de pistola a uma bofetada ou um soco). Co-
lhe, neste particular, a consideração de elementos psicológicos. É, aliás, a
consideração destes elementos psicológicos que justifica a legítima defesa
mesmo em situações de excesso (nº. 2), se esta for devido a perturbação
ou medo não culposo do agente. Note-se, todavia, que só se pode falar em
excesso de legítima defesa quando estejam preenchidos todos os pressu-
postos de legítima defesa, como acertadamente se decidiu no Ac. do STJ
de 19 de Novembro de 1998463

VII - Este artigo configura a legítima defesa como causa de justifica-


ção do acto.

ARTIGO 338º
(Erro acerca dos pressupostos da acção directa
ou da legítima defesa)

Se o titular do direito agir na suposição errónea de se verificarem


os pressupostos que justificam a acção directa ou a legítima defesa, é
obrigado a indemnizar o prejuízo causado, salvo se o erro for descul-
pável.

Anotação.
I - Esta disposição regula a chamada legitima defesa ou acção direc-
ta putativa. Neste caso, quem actua em acção directa ou legítima defesa
age na suposição errónea de que a sua actuação está autorizada por lei.
Não é necessário que o erro respeite à totalidade dos pressupostos, quer
da acção directa, quer da legítima defesa. Basta que o agente actue em erro
quanto a um desses pressupostos. Esta consideração conforma-se com o
carácter cumulativo dos pressupostos quer da acção directa, quer da legí-
tima defesa.

II – O erro sobre os pressupostos da acção directa ou da legítima


defesa justifica o acto, mas o titular do direito fica obrigado a indemnizar
o lesado. Este dever de indemnizar cessa se o erro for considerado des-
culpável.

463 Col. Jur. (1998) III, 221.


190 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

O erro é desculpável se o titular do direito actuou como actuaria


um homem médio colocado na sua posição. Assim, se o agente “actua na
convicção de que o ofendido tinha uma arma no bolso e se ia servir dela
para o atingir, já que acabara de dizer que lhe dava um tiro..., fá-lo numa
situação de erro sobre um ataque iminente a tiro por parte do ofendido”.
Há erro desculpável sobre um dos pressupostos da legítima defesa (a
agressão) como decidiu o Ac. do STJ de 1 de Fevereiro de 1996464.

ARTIGO 339º
(Estado de necessidade)

1. É lícita a acção daquele que destruir ou danificar coisa alheia


com o fim de remover o perigo actual de um dano manifestamente su-
perior, quer do agente, quer de terceiro.
2. O autor da destruição ou do dano é, todavia, obrigado a in-
demnizar o lesado pelo prejuízo sofrido, se o perigo for provocado por
sua culpa exclusiva; em qualquer outro caso, o tribunal pode fixar uma
indemnização equitativa e condenar nela não só o agente, como aqueles
que tiraram proveito do acto ou contribuíram para o estado de necessi-
dade.

Anotação
I - O estado de necessidade tem relevância civil, criminal465, admi-
nistrativa466. O bem jurídico em perigo poderá pertencer a uma pessoa
pública ou privada. A lei tipifica algumas situações em que determinadas
pessoas ou entidades são autorizadas a actuarem em estado de necessidade.
Assim, em caso de incêndio o artº. 162º do Código Administrativo de 1940
autoriza as autoridades policiais e os comandantes dos corpos de bombei-

464 http://www.dgsi.pt/jstj. Quanto ao erro sobre os pressupostos da acção directa, cf.


Ac. do STJ de 4 de Outubro de 1994;
465 A relevância penal do estado de necessidade encontra-se prevista no artº. 35º do CP
que distingue consoante o bem jurídico atingido diz respeito a pessoas ou a outros bens.
Assim, se o perigo ameaçar os bens vida, integridade física, a honra ou a liberdade do
agente ou de terceiro e se verificarem outros requisitos, tais como, a adequação do
facto ilícito para afastar o perigo; a impossibilidade de o perigo ser removido de outro
modo; a razoabilidade do comportamento, não se verifica a exclusão da ilicitude, mas
sim da culpa do agente (nº. 1). Se, porém, o perigo ameaçar bens jurídicos diferentes
dos referidos pode haver uma especial atenuação da pena ou a sua exclusão.
466 Sobre a relevância administrativa do estado de necessidade, cf. Diogo Freitas do
AMARAL/Maria da Glória GARCIA, O Estado de Necessidade e a Urgência em Direito
Administrativo, in Revista da Ordem dos Advogados, (1999) nº. 59, 447.
e outros escritos jurídicos 191

ros a “ordenar as destruições, demolições, remoções e cortes nos prédios


contíguos ao sinistrado quando sejam necessários ao desenvolvimen-
to das manobras da extinção ou para impedir o alastramento do fogo“.
Pode-se igualmente considerar que é a situação de necessidade pública
que justifica a requisição civil, seja dos serviços de pessoas ou de materiais
para debelar situações de perigo que envolveriam maiores danos. Esta é,
aliás, a única situação em que os instrumentos internacionais autorizam
o recurso ao trabalho forçado. Nas situações de guerra, desastres, inunda-
ções, incêndios, fome, tremor de terra, epidemias, epizootias e em todas
as situações que ponham em perigo ou ameacem por em perigo a vida ou
as condições normais de uma população, as Convenções da Organização
Internacional do Trabalho nºs. 29 e 105 autorizam o recurso excepcional
ao trabalho forçado para fazer face àquelas situações.

II - O estado de necessidade consiste, pois, na faculdade reconheci-


da pela ordem jurídica a quem se encontre numa situação de perigo para
ele ou para terceiro de destruir ou danificar coisa alheia para remover o
perigo. Supõe dois requisitos: a actualidade do perigo; a susceptibilidade
de esse perigo causar um dano manifestamente superior ao que resultaria
se o agente não actuasse em estado de necessidade.
Poderão actuar em estado de necessidade pessoas singulares ou
colectiva, públicas ou privadas. O Ac. do STJ de 8 de Fevereiro de 2000
reconheceu às Juntas de Freguesias o direito de actuarem em estado de ne-
cessidade administrativo perante uma situação de perigo iminente e actual
susceptível de causar sério risco a um baldio467.

III - Diz-se actual o perigo que está iminente ou em curso de realiza-


ção. O mero perigo hipotético não é relevante para fundar o direito de ne-
cessidade. Também não é necessário que a situação de perigo tenha sido
criada com dolo ou culpa de outrem. A situação de perigo pode resultar
de uma causa humana ou natural.

IV - A actuação em estado de necessidade só é lícita se, da não des-


truição ou danificação de coisa alheia, resultar um dano manifestamente
superior. A acção em estado de necessidade impõe, por isso, uma ponde-
ração por parte do agente que responde por erro de avaliação. Este erro
pode conduzir à ausência de pressupostos do direito de necessidade e,
consequentemente, à ilicitude da pressuposta actuação em estado de ne-
cessidade.

467 BMJ 494, 255.


192 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

A lei atribui igualmente relevância à actuação do agente autor da


destruição ou do dano quando tenha agido com culpa. Em tal caso, fica
obrigado a indemnizar o lesado pelo prejuízo sofrido. Todavia, indepen-
dentemente de culpa do agente, o tribunal pode fixar uma indemnização
equitativa a cargo não só do agente, como das demais pessoas que contri-
buíram para o estado de necessidade ou dele tiraram proveito.

ARTIGO 340º
(Consentimento do lesado)

1. O acto lesivo dos direitos de outrem é lícito, desde que este


tenha consentido na lesão.
2. O consentimento do lesado não exclui, porém, a ilicitude do
acto, quando este for contrário a uma proibição legal ou aos bons cos-
tumes.
3. Tem-se por consentida a lesão, quando esta se deu no interesse
do lesado e de acordo com a sua vontade presumível.

Anotação:
I - Na responsabilidade civil objectiva a culpa do lesado exclui a
responsabilidade468. Diferente da culpa do lesado é a situação em que o
mesmo consente, voluntária e conscientemente, na prática da lesão. Pode-
se, neste particular, falar de um consentimento informado, no sentido de
que o titular do direito conhece os perigos a que, pela sua actividade ou
actividade de outrem expõe o próprio direito, mas mesmo assim aceita o
risco inerente a essa actividade, ainda que envolva lesão.

II - Em regra, todos os direitos podem ser lesados, desde que o seu


titular tenha consentido na lesão. Por vezes esse consentimento tem a
natureza jurídica de um ónus que recai sobre o titular do direito para a
protecção de outros bens e interesses jurídicos. Tal é o caso das interven-
ções cirúrgicas que poderão causar danos à integridade física mas o titular
do direito consente nelas para defesa da própria vida. A prática de deter-
minados desportos, como seja o futebol, o boxe, a esgrima, podem causar
danos físicos ou psíquicos na pessoa dos participantes.
A vida quotidiana está prenhe de situações que envolvem a lesão
de direitos. Pode-se considerar que a lesão de direitos constitui hoje uma
variável importante do comércio jurídico.

468 Cfr. Ac. do STJ de 18 de Janeiro de 2001, Supremo Tribunal de Justiça, Col. de Jur.,
2001, 1, 70.
e outros escritos jurídicos 193

III - Elemento essencial em matéria do consentimento do lesado é o


próprio consentimento. Deve ser prestado pelo próprio sujeito titular do
direito e este só pode prestá-lo relativamente a direitos de que possa dis-
por. Está, portanto, vedado ao titular do direito consentir na lesão de di-
reitos indisponíveis. De igual modo, o sujeito tem que ser juridicamente
capaz de prestar o seu consentimento, que deve subsistir no momento da
prática do acto lesivo. Sendo o consentimento uma declaração de vontade,
esta pode ser expressa ou tácita, mas a lei pode nalgumas circunstâncias
exigir o consentimento expresso.
Quem age na suposição errónea da existência de um consentimento
(consentimento putativo) não deixa de praticar um acto ilícito, mas pode ha-
ver exclusão de culpa. Quem age com o conhecimento da inexistência de
consentimento do lesado, mas presume que as circunstâncias em que se
deu a lesão contariam com esse consentimento (consentimento presumido)
pratica um acto ilícito e actua com culpa, a não ser que a lesão se tenha
dado no interesse do lesado (nº. 3). Na verdade, este nº. 3 requer não só
vontade presumida, mas também uma actuação no interesse do lesado.

IV - Uma referência particular deve ser feita a respeito dos direitos da


personalidade. Nos últimos tempos tem-se assistido a fenómenos chama-
dos de realities shows, que envolvem situações de exposição física e moral
claramente lesivas dos direitos da personalidade. O fenómeno do chamado
big brother é disso um exemplo. Tais situações são lícitas porque contam
com o consentimento do titular do direito da personalidade, mas colocam,
de forma preocupante, o problema dos limites desse consentimento.
Estes limites são de duas ordens: quanto o consentimento seja con-
trário a uma proibição legal e quando seja contrário aos bons costumes.
Diz-se contrário a uma proibição legal o consentimento reprimido
ou não autorizado por uma norma legal. Por bons costumes deve-se en-
tender as concepções éticas, sociais, morais e sexuais vigentes numa deter-
minada comunidade. Reporta-se, pois, a um conceito indeterminado que
requer concretizações específicas por parte do julgador. Impõe prescrutar
o grau de repulsa social que o consentimento dado provoca no seio de
determinada comunidade. Esta avaliação do julgador deve igualmente
atender aos sinais dos tempos. Os bons costumes gozam da característica
da actualidade.

V – A aplicação do artº. 340º do CC tem que ser cotejada com o


artº. 81º do CC. Na verdade, sendo os direitos de personalidade direitos
irrenunciáveis e indisponíveis, o consentimento na lesão de tais direitos
só pode ter a característica de limitação voluntária de tais direitos, o que
194 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

importa uma restrição mais ampla, qual seja a de tal limitação voluntária,
desta feita, traduzida no consentimento na lesão, não poder ser contrária
aos princípios da ordem pública, sob pena de nulidade (artº. 81º/1). Isto
significa que o titular do direito da personalidade pode, a todo o tempo,
revogar o consentimento, sem prejuízo de ser obrigado a indemnizar os
danos causados às legítimas expectativas da outra parte (81º/2).
A aplicação desta disposição requer fundadas cautelas. Sendo o
direito da personalidade um direito superior, não poderá ser arbitrada
nenhuma indemnização que leve o titular do direito a optar por sujeitar-
se à limitação do seu direito da personalidade. Também parece não ser de
arbitrar qualquer indemnização quando a revogação seja devida a medo,
pânico ou outra forma de descontrolo psíquico do titular do direito de-
corrente do estado de sujeição a que se colocou. Assim, se as condições da
casa do Big Brother se revelarem insuportáveis para um dos concorrentes,
este poderá cessar a todo o tempo a sua presença nessa casa, sem que
nenhuma indemnização seja devida à empresa exploradora do evento.
Todavia, parece já ser devida indemnização se a revogação se dever a
capricho ou mera leviandade de um dos concorrentes.
e outros escritos jurídicos 195

6. SUBSÍDIOS EM TORNO DOS DIREITOS DE CIDADANIA NA


SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO

Sumário:

§1º Introdução:
1. O Tema. 2. A sua amplitude. §2º Pessoa e cida-
dania: 1. Os direitos da personalidade. 3. O direito
à identidade pessoal. 4. A clonagem. 5. A reserva
da vida privada. 6. A videovigilância. 7. O correio
electrónico. §3º Cidadania e trabalho: 1. O teletra-
balho. 2. A experiência portuguesa. Conclusão

§1º INTRODUÇÃO

1. O Tema

I - O tema que me foi proposto prima por dificuldades de delimi-


tação. Aliás, todos os temas deste Fórum padecem deste problema, que
é revelador do estádio do tratamento do assunto entre nós. Mostra que
estamos ainda no plano de generalidades, quando noutras paragens já se
aposta no tratamento de temas particulares.
O confronto entre cidadania e a sociedade de informação469 coloca
questões de conceptualização. Que devemos, pois, entender, por cidadania
e que expressão esse conceito pode ter no quadro da chamada sociedade
de informação470?

469 O termo sociedade de informação generalizou-se, mas contesta-se a sua utilização. Oliveira
ASCENSÃO, prefere sociedade de comunicação, mas não cremos que seja feliz a proposta.
Na verdade, todas as sociedades são sociedades de comunicação. O que as distingue da
sociedade actual que justifica o tema que nos propomos tratar é o aumento exponencial
do nível de comunicação que as novas tecnologias de informação e comunicação hoje
permitem.
470 Sobre as relações entre o Direito e a Sociedade de Informação apresentam real interesse,
entre outros, os estudos produzidos no quadro da Associação portuguesa do Direito
Intelectual, sob o título Direito da Sociedade da Informação, Coimbra Editora, Coimbra,
vols. I (1999), II (2001) e III (2002). Para uma síntese dos documentos produzidos no
quadro da União Europeia entre os anos de 1993 e o ano de 2000 relativos à importância
das tecnologias de informação, nomeadamente, para o mundo laboral, cf. Guilherme
Machado DRAY, in Estudos do Instituto do Direito do Trabalho (teletrabalho, sociedade
da informação e direito), vol. III, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 262 a 265. Cf. ainda
196 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

II - Avancemos já para questões de terminologia.


Para se referir ao exercício dos direitos de cidadania na sociedade

Manuel Lopes ROCHA/Pedro AMORIM, Anteprojecto de Diploma Legal que transpõe


para o Direito Nacional a Directiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8
de Junho de 2000, in Revista da ordem dos Advogados - ROA, ano 62, Lisboa, 2002, pp.
533 e segs. O estudo mais recente sobre esta matéria corresponde ao relatório de Maria
Eduarda GONÇALVES, in Direito da Informação - novos desafios e formas de regulação
na sociedade de informação, Almedina, Coimbra, apresentado nas provas de agregação
no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. O estudo apresenta
particular interesse em matéria de protecção de dados pessoais.
Das experiências estrangeiras em matéria da Sociedade de Informação ocorre fazer
referência ao caso português. Sob a presidência do Conselho de Ministros foi criada
uma Unidade de Missão Inovação e Conhecimento que já adoptou três planos de acção:
Plano de Acção para a Sociedade da Informação que tem como objectivo o aumento das
habilitações, competências e conhecimento dos portugueses, considerados o principal
substrato da capacidade de desenvolvimento sustentado do país; Contribuição para
a modernização, racionalização, responsabilização e revitalização da Administração
Pública e do aparelho do Estado; Aumento da eficácia e eficiência do sistema económico,
promovendo a competitividade e a produtividade das empresas e do tecido económico
e empresarial; Dinamização da sociedade civil, promovendo o bem-estar e a qualidade
de vida dos cidadãos. O Plano de Acção “Governo Electrónico”, expressão que nos merece
algumas reservas pois dá uma ideia (errada!) de distanciamento entre a Administração
e o Cidadão. Os objectivos deste plano são: Conveniência e satisfação dos cidadãos;
Eficiência com menores de custos; Transparência do aparelho do Estado; Participação
democrática por parte dos cidadãos; Liderança do Sector Público; Reconhecimento de
Portugal na comunidade internacional. E, por último, o Plano de Acção Inovação cujos
objectivos são a qualificação avançada de recursos humanos; o acesso e difusão do
conhecimento; a dinamização de redes de inovação e a promoção de novos produtos
e serviços para o mercado. De entre os trabalhos da Unidade de Missão Inovação e
Conhecimento importa ressaltar o Inquérito realizado no ano de 2002 sobre a Utilização das
Tecnologias da Informação e da Comunicação nas Empresas - 2002, publicado em Maio deste
ano (2003) Foram inquiridas um total de 1 547, extrapolado para um total de 24381,
todas com mais de 10 trabalhadores, desde indústrias transformadoras, comércio por
grosso e a retalho, alojamento, transportes, armazenagem, comunicações, actividades
financeiras, donde resultaram as seguintes conclusões: 72% das empresas estão
ligadas à Internet; 20% das empresas dispõem de ligação à Internet através do sistema
de banda larga, registando-se uma taxa de crescimento anual de 43%; 1 em cada 5
trabalhadores utiliza regularmente a Internet na sua actividade profissional (21%). Este
relatório poderá ser recolhido em PDF mediante dowonload no sítio http://www.
umic.pcm.gov.pt/NR/rdonlyres/A493A90B-A73E-4D18-BBA1-18C568757960/45/
Relatório_IUTICE_2002_para_CIIC228_Maio.pdf. Desse inquérito resultou ainda que
mais de um terço das empresas tem presença na Internet (38%), observando-se um
crescimento anual de 41%; 20% das empresas desenvolvem actividades de comércio
electrónico, verificando-se uma taxa de crescimento anual de aproximadamente 55%.
No plano financeiro, o Governo português em colaboração com a União Europeia
mantém um programa de apoio à realização de estudos e à implementação de projectos
no domínio das novas tecnologias, com particular interesse, nomeadamente, para as
universidades. Sobre este programa denominado Programa Operacional Sociedade da
Informação cf. http://mail.posi.pcm.gov.pt/programa/index.jsp.
e outros escritos jurídicos 197

de informação tem-se utilizado expressões tais como cidadania electrónica,


cultura digital, democracia electrónica, participação electrónica, activismo digital,
ciberactivismo digital ... e outras expressões semelhantes.
Entendo que estas expressões devem ser evitadas. Na verdade, esta
necessidade de adjectivação em nada contribui para clarificar a substância
da questão. Em matéria do exercício de direitos não traz nada de novo.
De facto, o exercício dos direitos de cidadania, seja com recurso à viva
voz, à escrita, à imagem, ao telefone, ou à informática ou a outras tecnolo-
gias de informação e comunicação é sempre o mesmo, seja qual for o meio
utilizado. Se um cidadão solicita uma licença para abrir uma indústria,
um comércio, seja porque compareceu no serviço competente e apresen-
tou verbalmente o seu requerimento, seja porque o apresentou por escrito
ou pelos meios electrónicos postos pelo serviço à sua disposição, exerce
sempre o mesmo direito, independente do meio utilizado. Não há, pois,
razão para qualificar o exercício deste direito de cidadania como cidada-
nia electrónica, participação electrónica ou outra expressão semelhante,
dado que o meio utilizado não altera a substância do direito.
Esta necessidade de adjectivação só se justifica em virtude da novida-
de do meio utilizado. Mas estas fórmulas devem ser evitadas, pois, trata-se de
qualificativos que não respondem a nenhum aspecto substancial do proble-
ma. De referir, aliás, que em determinados sectores científicos a adjectivação
é pouco utilizada ou não é simplesmente utilizada471.

2. Sua amplitude

I - A cidadania é o pano de fundo sobre o qual assenta a positivação


dos direitos. Se não podemos rejeitar a ideia de que o cidadão é pessoa e
que todo o direito tem por núcleo central a pessoa humana, então pode-
mos afirmar que o tema dos direitos de cidadania na sociedade de informação
não tem fronteiras definíveis, pois, todos os temas lhe são reconduzíveis.
A sua amplitude é, assim, por demais evidente.
Mas também a própria sociedade de informação surge como pano
de fundo no contexto do exercício dos direitos. Na verdade, as tecnolo-
gias de informação e comunicação não são mais do que instrumentos que
hodiernamente agilizam o exercício de direitos, condenando os direitos
de cidadania e a sociedade de informação a uma convivência e desenvol-
vimento paralelos.

471 Cf. os estudos produzidos pela Associação Portuguesa de Direito Intelectual


subordinados ao tema Direito da Sociedade da Informação, vols. I, II e III, (vários autores),
citados.
198 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

As TIC massificaram a informação, tornando-a acessível a cida-


dãos de reduzidos recursos e criaram possibilidades de comunicação e de
relacionamento entre indivíduos, empresas, grupos sociais até então nun-
ca vistos. Por recurso às TIC os indivíduos, nacionais dos mais diversos
países, residentes, domiciliados ou simplesmente de passagem pelas mais
diversas partes do mundo, podem estabelecer comunicações entre si, tro-
car informação, celebrar negócios. Esta troca poderá ser feita a bordo de
um avião, de um navio ou circulando num carro ou num caminho de
ferro. Os indivíduos das mais diversas nacionalidades poderão publicar
nas páginas da Web472 os seus trabalhos literários, científicos a que outros
indivíduos poderão ter acesso, podendo utilizá-los, copiá-los, alterá-los,
modificá-los, plagiá-los e reintroduzí-los na internet com uma nova pa-
ternidade ou com a mesma paternidade, com o objectivo de denegrir a
imagem do verdadeiro autor.
Nunca a expressão popular “o mundo é pequeno” ganhou tão expres-
sivo significado. Problemas novos se suscitam em matérias como protec-
ção de dados pessoais; devassa da vida privada e familiar; protecção dos
consumidores; segurança de pagamentos... colocando sérios desafios ao
direito.
A sistematização dos direitos de cidadania na Sociedade de Infor-
mação não está, pois, facilitada nesta fase de generalidades. Temos neces-
sariamente que recorrer a critérios antigos, tais como direito público e di-
reito privado e, no quadro do direito privado, distinguir domínios, como
seja o das pessoas, dos contratos, das obrigações em geral, das coisas e,
no quadro internacional, o Direito Internacional Público e o Direito In-
ternacional Privado. Todos estes ramos de direito têm uma interferência
mais ou menos intensa com o exercício dos direitos de cidadania, umas
vezes de forma cruzada ou paralela, outras vezes de forma instrumental,
ocupando, recíproca e alternadamente, posições de domínio ou de subor-
dinação.
No plano do Direito Público, cobram particular interesse o das presta-
ções do Estado a favor dos administrados, tema que será desenvolvido por
outro conferencista e os chamados crimes informáticos, objecto do Direito
Penal, que ao que cremos não serão tratado neste fórum.

II - Situar-me-ei no plano estritamente civil e darei relevância a dois


aspectos fundamentais: o domínio das pessoas e o dos contratos, com par-

472 Abreviatura de WWW - World Wide Web: “subconjunto de computadores da Internet


que correm software para apoiar a transferência de ficheiros multimédia...” - cfr. Bill BRUCK
in Manual do Office 1997, tradução portuguesa de Paulo FURTADO e outros, Lisboa,
1997, pp. 411.
e outros escritos jurídicos 199

ticular importância para o domínio do contrato de trabalho, assegurando


desde já que apesar desta violenta machadada, ainda assim o tratamento
do tema será insuficiente.

§ 2º
PESSOA E CIDADANIA

1. Os direitos da personalidade

A escolha dos direitos da personalidade prende-se como o facto de


eles constituírem o pressuposto básico do exercício de qualquer direito de
cidadania. Antes de ser cidadão é-se pessoa. Os direitos da pessoa consti-
tuem, pois, a antecâmara de quaisquer outros direitos.
Quem fala dos direitos da personalidade reporta-se àqueles ele-
mentos estruturantes que são constitutivos da nossa condição de pessoa,
dos quais não podemos apartar-nos e sem os quais não se é verdadeira-
mente pessoa.
A doutrina jurídica tem distinguido um direito geral de personalidade,
isto é, um direito a valer sempre e em cada momento como pessoa huma-
na, e direitos particulares de personalidade, como seja o direito à identidade
pessoal, o direito ao nome, o direito à imagem, o direito à honra e consideração, o
direito à reserva da vida privada familiar....
Quer o direito geral de personalidade, quer estes direitos particula-
res em que se analisam os direitos da personalidade são direitos de cida-
dania e suscitam problemas novos no seu confronto com as TIC.

2. O direito geral de personalidade

I - O primeiro e o mais importante direito de cidadania é o direito a


valer sempre e em cada momento como pessoa humana. No plano filosó-
fico, esta referência faz apelo ao contrato social que afirma a anterioridade
da pessoa relativamente a organizações comunitárias como a tribo, a fa-
mília, a sociedade ou o Estado. No momento em que celebra o contrato so-
cial e entra para uma comunidade, a pessoa reserva para si certos direitos,
maxime, os direitos que são constitutivos da sua qualidade e condição de
pessoa. Não se pode negar-lhe, validamente, esse direito sobre si mesma,
pois, sem ele perde a condição essencial que lhe permite fazer parte dessa
comunidade de homens.
Trata-se de uma ideia rica de conteúdo, pois, rejeita o ponto de vista
de que tudo advém do Estado e permite uma correcção do princípio segun-
do o qual aos particulares tudo o que não é proibido é permitido, juntando-se-lhe
200 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

o preceito de que nem tudo pode ser proibido, particularmente, quando a


proibição afecta ou tenha potencialidades para afectar os direitos da per-
sonalidade. Aponta, pois, para uma reserva infrangível, da qual resulta
uma multiplicidade de deveres do Estado e outras entidades públicas e
particulares para com a pessoa, deveres que se prendem com a protecção
da sua personalidade.

II - A utilização das tecnologias de informação e comunicação obri-


ga a ter presente este ponto fundamental. Na conformação jurídica dos
mais variados direitos de cidadania, cujo exercício passa pela utilização
das TIC, não se pode, em nenhum momento, perder de vista a centralida-
de da pessoa humana com as características que a seguir enunciaremos.
O Direito geral de personalidade, assim como os demais direitos
particulares de personalidade, são inalienáveis, irrenunciáveis e imprescrití-
veis. Enquanto direitos reservados são direitos naturais ou originários. Como
tal, não compete aos Estado atribuí-los, mas sim reconhecê-los. São direitos
de valor superior, contrastando, muitas vezes, com a debilidade social do
seu titular. Expostos a agressões externas, compete ao Estado protegê-los,
pois, protegendo-os está em última análise a proteger o seu próprio subs-
trato. Fazem, assim, recair sobre o Estado um duplo dever: um dever de
reconhecimento do seu carácter natural e originário, contraponto do direito
de reserva geral da personalidade na esfera do respectivo titular; e o dever de
protecção adequada à superioridade destes bens jurídicos.

3. Direito à identidade pessoal

I - A concepção de base cristã-humanista é aquela que melhor ca-


racteriza a identidade pessoal. Exprime-a através da ideia de singularidade
substancial: todo o indivíduo apresenta particularidades que o singulari-
zam relativamente aos demais, não apenas em aspectos acidentais, mas
naquilo que substancialmente o identifica como representação e actuação
de si.
À ideia de singularidade substancial a doutrina da Igreja associou a
da irrepetibilidade: cada pessoa constitui um ser único e irrepetível no que
tem de essencial e característico que é o seu património individual.
O direito toma em consideração estas características individuais
para assegurar a sua não adulteração.

II - Este é um ponto em que a evolução tecnológica levantou pro-


blemas complicados para a ciência jurídica, pois, suscitou a necessidade
do confronto entre as TIC e as tecnologias biológicas. No rescaldo da sua
e outros escritos jurídicos 201

actuação, a biotecnologia interfere necessariamente com as TIC em termos


que não posso deixar de lhes fazer ainda que uma breve referência.
Alguns aspectos interferem com os direitos da pessoa, como seja, o
diagnóstico pré-natal; as técnicas da reprodução assistida e o projecto genoma
humano.
No que concerne ao tratamento e diagnóstico pré-natal cobram inte-
resse as intervenções a nível do embrião. Os avanços da medicina vieram
possibilitar a realização de tratamentos directamente sobre os embriões,
considerados “pacientes especiais”473, particularmente ao nível da preven-
ção de certas doenças, tais como a diabetes, o enfarte, a cirrose do fígado
e a doença de Parkinson474.
As técnicas de reprodução assistida como a inseminação artificial, a
fecundação in vitro e a transferência intratubária de gâmetas colocaram
problemas jurídicos ligados à historicidade pessoal, componente essencial
do direito à identidade pessoal. Se a inseminação artificial homóloga, parti-
cularmente aconselhada nas situações infertilidade masculina, caracteri-
zada pela insuficiência de espermatozóides (oligospermia), não apresen-
ta relevância particular, já a inseminação artificial heteróloga, fundada em
azoospermia (ausência de espermatozóides) ou no perigo de transmissão
de doenças genéticas graves por parte do marido475, ao implicar o recurso
a esperma de um dador, suscita não só problemas éticos mas também
jurídicos, particularmente no domínio da identidade pessoal e do direito à
historicidade pessoal.

III - Devem ser reconhecidos dois aspectos, um de ordem social,


outro de ordem científico-metodológica.
Do ponto de vista social tem sido incomensurável o benefício que
a biotecnologia trouxe para muitas famílias até então impossibilitadas de
procriar476 e um aumento significativo da qualidade de vida de certos pa-
cientes, apesar de problemas novos com que confrontou o direito, como
as chamadas barrigas de aluguer.

473 Cf. Francisco Javier ELIZARI, in Questões de Bioética... pp. 53 e segs.


474 A matéria opõe a Igreja à comunidade científica. Aquela defendem que o embrião
é um ser humano, pelo que devem ser proibidas tais intervenções, em nome da
dignidade da pessoa humana: esta representada, nomeadamente, por Ian WILMUT,
pai da ovelha Dolly, admite que o embrião é apenas um ser humano em potência, por
lhe faltar o sistema neurológico, o que justificaria as referidas intervenções.
475 Francisco ELIZARI,, Questões de Bioética... pp. 61.
476 Cf. António Carvalho MARTINS, Bioética e Diagnóstico Pré-Natal, Coimbra, 1996, pp.
35 e segs.
202 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

No plano científico, reconheça-se que o eixo metodológico que for-


ma a espinal-medula das ordens jurídicas, particularmente, da família ro-
mano-germânica, tem favorecido largamente a busca de soluções, orien-
tadas por princípios ético—jurídicos fundamentais. Alguns adquiriram
dignidade constitucional.

4. A clonagem

I - A clonagem de seres humanos representa o maior perigo trazido


pela biotecnologia para o direito à identidade pessoal. Apesar do con-
senso registado quanto à sua proibição e até repressão, a verdade é que
muitos cientistas já declararam ter clonado seres humanos.
A Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos,
aprovada unanimemente pela Resolução das Nações Unidas 29C de 11 de
Novembro de 1997, se não exclui a possibilidade de utilização dessa tec-
nologia para o progresso humano (cf. artº. 11), considera do mesmo passo
que “as práticas contrárias à dignidade do homem, tal como a clonagem
de seres humanos, não serão permitidas”. Da mesma declaração resulta
um convite aos Estados no sentido de cooperarem “para identificar tais
práticas e tomarem, tanto a nível nacional quanto a nível internacional, as
medidas necessárias para assegurar que os princípios da declaração sejam
respeitados”.
Esta Declaração adoptou vários princípios sobre a utilização da
biotecnologia, sendo o mais importante de todos o princípio da unidade
da família humana, sem prejuízo da sua diversidade. Dela decorrem ainda
princípios tais como o do respeito pela diversidade das características gené-
ticas; a proibição da exploração económica do genoma humano; o princípio do
consentimento livre, prévio e informado na investigação, tratamento e diagnós-
tico do genoma humano; o princípio da liberdade de conhecer os resultados do
exame genético; o princípio da confidencialidade da informação; o princípio da
indemnização pelos prejuízos; o princípio da universalidade dos benefícios com
vista ao progresso humano e ainda o já referido princípio da proibição da
clonagem de seres humanos.
Os demais aspectos regulados pela Declaração são as condições de
exercício da actividade científica; a solidariedade e cooperação internacio-
nal e a promoção dos princípios constantes da Declaração477.

477 Sobre esta Declaração e a documentação a ela inerente, cfr. http://firewall.unesco.


org/ibc/uk/genome/projet/index.html. Os relatórios da Legal Commission of the
International Bioethics Commitee (IBC) poderão ser consultados em http://firewall.
unesco.org/ibc/uk/genome/juridique/rl.html.
e outros escritos jurídicos 203

Em Agosto do ano 2000 a Grã-Bretanha deu o primeiro passo auto-


rizando a clonagem de células humanas para fins terapêuticos de combate
a doenças, tais como a doença de Parkinson e certas doenças coronárias,
mas exclui, em absoluto, a clonagem de seres humanos.

II - O projecto Genoma Humana já começou por trazer alguns bene-


fícios. O primeiro grande benefício é de ordem social. O conceito de raça
que já tinha sido posta em causa por estudos da UNESCO, na sequência
da Segunda Guerra Mundial, foi reforçado pelos resultados do Projecto
Genoma Humano que veio eliminar todas as dúvidas: não existem dife-
renças substanciais entre seres humanos. Existe sim a família humana.
Outras conclusões revelaram-se algo desconcertantes, como seja o facto
de predominarem entre certos povos brancos genes dominantes nos in-
divíduos negros e que afinal o animal com que mais o homem apresenta
afinidades genéticas é a barata.
Todavia, face à possibilidade trazida por estudos genéticos de pre-
dizer o futuro, já se suscitam questões em torno da necessidade de realizar
testes genéticos para a celebração de um contrato de seguro, ou um contrato
de mútuo junto de uma instituição financeira ou mesmo um contrato de
trabalho. Assim, face às conclusões do teste, discute-se sobre se poderão
ser agravados o prémio do seguro e os juros bancários ou simplesmente
não se celebrar contrato nenhum face à predição de que o interessado será
acometido em data determinada de uma doença do foro genético.
Entendo que os princípios constitucionais rejeitam esta lógica do
lucro. A vida tem que ser vivida de acordo com a dimensão individual
de cada um e o gozo da vida não pode ser adiado e muito menos o seu
fim antecipado. Permitir a realização de testes genéticos para efeitos de
contratação equivale a adiar a realização da vida ou a antecipar o seu fim.
Equivale a aceitar o transpersonalismo. Uma norma que dispusesse neste
sentido seria no nosso direito manifestamente inconstitucional.
Recorde-se, a propósito da contratação laboral, os termos como
o direito ao trabalho foi enunciado na Carta Social Europeia, adoptada em
Turim a 18 de Outubro de 1961: “toda a pessoa terá a oportunidade de ganhar
a vida mediante um trabalho livremente escolhido” – Parte I.
Entendo, pois, que os resultados do projecto genoma humano só
poderão servir para melhorar o exercício da vida e para fortalecer a sua
dignidade. Ideias em sentido contrário devem merecer a maior vigilância
e repressão por parte do Estado478.

478 O recurso aos testes genéticos em matéria de contrato de trabalho oferece a maior
complexidade comprovada na monografia dedicada ao tema por João Nuno Zenha
204 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

5. A reserva da vida privada

I - No que respeita à vida pessoal, a doutrina jurídica adopta


a chamada teoria das três esferas. Partindo do núcleo para a periferia,
distingue na pessoa humana a esfera íntima, caracterizada por aspectos
da individualidade pessoal que não são partilhados com ninguém; a
esfera privada, caracterizada por aspectos compartilhados com um círculo
restrito de pessoas e a esfera pública que, como decorre da própria palavra,
se traduz naquele conjunto de informações sobre a pessoa que poderão
ser utilizados ou divulgados pelo público.

II - A partir do século XIX a protecção da reserva da vida privada


foi ganhando cada vez maior importância. As novas tecnologias vieram
justificar a adopção de leis específicas para a protecção de dados pessoais.
Não foram individualizados domínios de protecção. Todos os sectores da
vida social são visados desde que, na sua actuação, interfiram com dados
pessoais.
Elegeu-se uma categoria de dados a que se chamou dados sensíveis
ou pessoalíssimos que, na doutrina jurídica portuguesa, sofreu recentemente
alterações que nos suscitam algumas reservas.
Creio ter sido na sequência do estudo produzido por Jorge
Barcelar GOUVEIA479, que se operou um alargamento do conceito de
direitos personalíssimos. O autor identifica como tais os relativos a dados
sensíveis referenciados pelo artº. 7º da Lei portuguesa de protecção de
Dados Pessoais, que são a convicções filosóficas ou políticas; filiação partidária
ou sindical; fé religiosa; vida privada; origem racial ou étnica; saúde, vida sexual
e dados genéticos.
Entendo, porém, que se justifica manter a distinção entre dados
sensíveis e dados pessoalíssimos ou personalíssimos que dão lugar a uma
categoria de direitos personalíssimos ou pessoalíssimos.

III - O conceito de direitos personalíssimos é de construção antiga.


Com Castro MENDES480, esta categoria de direitos distingue-se pela
impossibilidade da sua transmissão. Trata-se de direitos intrínseca e

MARTINS - O Genoma Humano e a contratação laboral, Celta Editora, Oeiras, 2002.


479 Os Direitos fundamentais à protecção dos Dados pessoais Informatizados, Revista da Ordem
dos Advogados, nº. 51 (1991) III, pp 699 e segs
480 - in Estudos sobre a Constituição (direitos, liberdades e garantias – alguns aspectos gerais),
vol. I, pp. 117. A ideia é retomada pelo autor in Teoria Geral do Direito Civil, I, Lisboa, 1995,
pp. 458.
e outros escritos jurídicos 205

indissoluvelmente ligados ao seu titular. Têm natureza constitutiva da


condição jurídica de pessoa. São direitos relativos ao corpo, à liberdade
física, à honra, ao direito moral de autor481. Por isso, estranhamos esta
recondução que se vem fazendo dos direitos pessoalíssimos aos direitos
relativos a dados sensíveis, também presente em trabalhos do Conselho
Consultivo da Procuradoria-Geral da República portuguesa482.
A minha dúvida decorre da inclusão de dados tais como convicções
filosóficas ou políticas; origem racial ou étnica; fé religiosa; filiação sindical
ou partidária, entre os chamados dados pessoalíssimos e reconduzidos
à categoria de direitos pessoalíssimos. Se, tal como entendo, os direitos
pessoalíssimos não podem apartar-se do seu titular, ainda que por
vontade própria, não se pode considerar pessoalíssimos aqueles dados
dependentes de um poder de vontade do seu titular.
Do meu ponto de vista, não são pessoalíssimos os dados relativos
a convicções filosóficas ou políticas; fé religiosa; filiação sindical ou
partidária, pois a sua inerência à pessoa do seu titular depende da sua
vontade. Um positivista pode tornar-se racionalista; um social-democrata
pode converter-se ao socialismo; um cristão pode passar a ser ateu; um
membro de um sindicato pode mudar-se para outro sindicato.
No que respeita à origem racial ou étnica este é um dado que
tem tanto de pessoal que os demais inventariados, mas o seu valor está
intimamente dependente da evolução das mentalidades. No dia em que
todos os homens passarem a olhar para o seu semelhante simplesmente
como homem, o dado sobre a origem racial ou étnica perde qualquer
utilidade. É, pois, um dado apenas dependente da vontade colectiva. Nada
tem, pois, de constitutivo da personalidade humana. Não pode, pois, ser
tido, como os demais inventariados, como dados personalíssimos.
Isso não significa que não devam ser tratados como dados sensíveis,
tal como a Lei portuguesa de Protecção de Dados Pessoais os qualifica (artº.
7º). No actual estádio das relações humanas em que grupos de homens
podem sentir-se no direito de discriminar, julgar, seleccionar, conferir
direitos ou impor deveres a outros homens em razão das suas convicções
filosóficas, políticas, etc., o direito tem que desempenhar uma função

481 Cf. Radindranath V. A. CAPELO DE SOUSA, in O Direito Geral de Personalidade..., pp.


403 e ainda A. MENEZES CORDEIRO, In Tratado de Direito Civil, I Parte Geral, Tomo
I, 1999, pp. 158. Sobre o direito pessoal de autor e a impossibilidade de transmissão
desta categoria de direitos, cfr. Geraldo ALMEIDA, Estudos em Homenagem ao
Professor Doutor Manuel Gomes da SILVA (o Direito pessoal de autor...), pp. 1081 e
segs.
482 Cf. Parecer nº. 23/95, de 8 de Junho de 1995, publicado em http://www.dgsi.pt/pgrp.
nsf/ e retomado no Parecer de 20/11/96, publicado no mesmo lugar.
206 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

pedagógica em nome do progresso social e da liberdade individual. Bem


andou, pois, o legislador ao caracterizar tais dados como dados sensíveis,
o que não quer dizer que sejam personalíssimos.

IV - De entre os domínios em que tais dados poderão ser utiliza-


dos de forma desviada refira-se o laboral. Neste domínio, a necessidade
de protecção pode colocar-se já no momento da contratação ao nível dos
métodos de selecção (entrevistas; exames médicos; testes psicológicos) e ao
nível dos requisitos exigidos (v. gr. pertença a um determinado grupo ét-
nico).
A Lei portuguesa n.º 134/99, de 28 de Agosto que proíbe as discri-
minações no exercício de direitos por motivos baseados na raça, cor, nacionalidade
ou origem étnica, considera prática discriminatória a adopção de procedi-
mento, medida ou critério, directamente pela entidade empregadora ou
através de instruções dadas aos seus trabalhadores ou a agência de em-
prego, que subordine a factores de natureza racial a oferta de emprego, a
cessação de contrato de trabalho ou a recusa de contratação e bem assim a
produção ou difusão de anúncios de ofertas de emprego, ou outras formas
de publicidade ligada à pré-selecção ou ao recrutamento, que contenham,
directa ou indirectamente, qualquer especificação ou preferência baseada
em factores de discriminação racial e a adopção por entidade empregado-
ra de prática que no âmbito da relação laboral discrimine um trabalhador
ao seu serviço. Esta mesma lei proíbe despedir, aplicar sanções ou preju-
dicar por qualquer outro meio o trabalhador por motivo do exercício de
direito ou de acção judicial contra prática discriminatória.
O Code du Travail francês tem uma disposição clara a este respeito:
“as informações solicitadas sob qualquer forma que seja a um candidato
a um emprego ou a um assalariado não podem ter como finalidade
senão apreciar a sua capacidade de ocupar o emprego proposto ou as
suas aptidões profissionais. Estas informações devem apresentar uma
ligação directa e necessária com o emprego proposto ou com a avaliação
das aptidões profissionais” – Artº. L.120-2 e L. 121-6. Segundo KAYSER,
“os questionários para efeitos de contratação não podem incluir questões
sobre a situação familiar do candidato a emprego, como seja a questão de
saber se é solteiro ou casado, se vive em união livre ou se tem filhos”483
o que não quer dizer que a situação familiar do trabalhador não deva
ser tomada em consideração para efeitos de fixação das condições de
execução do trabalho.

483 La protection de la vie privé..., pp. 267.


e outros escritos jurídicos 207

Em França, discutiu-se a este respeito se a omissão por um


trabalhador, no momento da sua contratação, da sua condição de padre
podia constituir motivo de despedimento. O tribunal pronunciou-se em
sentido negativo, considerando que, tratando-se de um aspecto da vida
privada do trabalhador, não tinha nenhum dever jurídico de o revelar
ao empregador. Revogou, portanto, a decisão. Os tribunais franceses
revogaram igualmente a decisão de um empregador de despedir um
trabalhador que no momento da contratação omitiu o facto de ter sido
objecto de uma condenação penal, entendendo que o assalariado não tem
a obrigação de dar conhecimento ao empregador dos seus antecedentes
criminais e que o despedimento baseado neste facto está ferido de
ilicitude484.
Neste particular, cobram real interesse três situações com
alguma gravidade: a situação dos toxicodependentes; dos seropositivos e
o conhecimento que resulta do projecto genoma humano. As questões
que se colocam em torno destes casos são as seguintes: a) pode uma
empresa questionar um candidato a emprego sobre o uso de substâncias
psicotrópicas ou a sua seropositividade? b) pode uma empresa realizar
testes genéticos com vista a averiguar se o candidato a emprego poderá
vir a sofrer posteriormente de alguma doença que o incapacite de prestar
cabalmente as suas funções ou envolver a empresa em responsabilidade?
No que respeita à seropositividade e à toxicodependência a
doutrina francesa distingue dois momentos fundamentais: o momento
da contratação e o momento da execução do contrato. No momento da
contratação não pode o empregador questionar o candidato a emprego
sobre a sua eventual toxicomania ou seropositividade. Isso violaria o seu
direito à intimidade e à reserva da vida privada. Diferentemente, durante
a execução do contrato pode o empregador submeter a generalidade dos
trabalhadores a exames médicos para avaliar da sua robustez física para o
exercício do cargo, devendo o médico opinar unicamente se o trabalhador
se encontra apto ou inapto para o exercício do cargo485.
Em Portugal um Parecer da Procuradoria-geral da República nº.
25/95, de 25 de Maio opinou, bem a nosso ver, no sentido de que os
indivíduos portadores de HIV podem obter atestado de robustez física
para efeitos de ingresso na função pública, considerando que “releva da
apreciação médica, através do respectivo atestado, avaliar se os indivíduos

484 Sobre os casos relatados, cf. Code du Travail Dalloz, 1999, edição CD-Rom, consulte vie
privée. Cf. ainda Pierre KAYSER, in La protection de la vie privée par le droit..., pp. 265-266
com o relato de outras situações.
485 Cf. Pierre KAYSER, La protection..., pp. 266-267.
208 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

portadores do HIV dispõem ou não de robustez físico-psíquica necessária


ao exercício das funções a que se candidatam”486.

6. A videovigilância

I - A jurisprudência de alguns países já se defrontou com a


problemática da utilização da video-vigilância no âmbito das relações de
trabalho. O Supremo Tribunal de Justiça de Madrid ocupou-se da questão
seguinte:
Uma empresa instalou um sistema de vigilância de trabalhadores
numa área reservada a descanso, através do qual teve conhecimento de
factos imputáveis a um trabalhador e pelos quais este foi despedido.
O trabalhador recorreu da decisão alegando violação do seu direito à
intimidade pessoal, protegido pelo artigo 18 da Constituição espanhola.
Embora a empresa contestasse, alegando que a medida se inscrevia no
seu direito reconhecido pelo art.. 20.3 do Estatuto dos Trabalhadores de
“adoptar as medidas que considere mais oportunas de vigilância e controlo
para verificar o cumprimento pelos trabalhadores das suas obrigações
contratuais”, na sua sentença de 14 de Setembro de 2000, o tribunal
desatendeu a argumentação da empresa, revogou o despedimento e
mandou reintegrar o trabalhador, considerando ter havido violação por
parte da empresa do direito à intimidade pessoal do trabalhador.
A decisão afigura-se-nos acertada. Ela inscreve-se na filosofia
assente em matéria de protecção da intimidade e das relações deste
direito com a prova ilícita. Nos termos do artigo 34º/6 da nossa CR
“são nulas todas as provas obtidas por meio de (...) ofensa à integridade física
ou moral, abusiva intromissão na correspondência, nas telecomunicações, no
domicílio, na vida privada ou por outros meios ilícitos”. A vídeo-vigilância
utilizada para fins que não se inscrevem nos objectivos da organização
empresarial é ilegal assim como é ilícita a prova obtida por este meio.

II - O foro íntimo e a vida privada constituem a reserva infrangível


de todo o ser humano. Esta reserva permite-lhe ter o domínio de si
próprio, sem o qual perde a condição de pessoa, como temos salientado.
O direito à reserva não é concedido, mas apenas reconhecido. Por este
reconhecimento o direito extrai as consequências necessárias, como seja
a protecção da intimidade a qualquer preço, ainda que essa protecção
redunde em prejuízo ou violação de direitos de outrem, particularmente
quanto se trata de direitos de diferente valor e natureza. Esta ideia hoje
presente em várias constituições (v. gr., CRP art.. 26º) representa uma

486 - DR de 24-4-1997.
e outros escritos jurídicos 209

evolução significativa do ponto de vista da protecção da pessoa humana,


que tem nesta matéria lugar primeiro e central. Assim, o direito atribui
maior valor negativo ao facto intromissão no foro íntimo e na vida privada
de uma pessoa para perscrutar as suas paixões da alma, do que o eventual
prejuízo que o metediço possa ter pelo conhecimento dessas paixões.
A ilicitude da prova assim obtida é de preceito, e justifica, igualmente,
as limitações, nomeadamente, em matéria de audiências em processo
criminal, cuja publicidade poderá ser restringida, senão mesmo excluída,
em nome da defesa da intimidade pessoal, familiar ou social das pessoas
envolvidas (cf. art.. 34º/7 da CR).
Os interesses do empregador cedem, pois, perante o bem jurídico
da pessoa humana, o que não quer dizer que ao empregador esteja vedada
a utilização de quaisquer sistemas de vídeo-vigilância que, em alguns
casos, podem até constituir-se em factor de segurança dos trabalhadores,
tendo sempre como limite o dever de reserva da intimidade e da dignidade
pessoal destes487.

7. O correio electrónico do trabalhador

I - Problemas jurídicos se levantaram igualmente em torno do cor-


reio electrónico do trabalhador. A análise deste ponto particular foi feita
em jeito de comentário à sentenção do Tribunal de Primeira Instância das
Comunidades de 18 de Outubro de 2001. A análise então feita foi aprovei-
tada neste estudo. Por isso, para ali remetemos. (487a)

§ 3º
CIDADANIA E TRABALHO

1. O tele-trabalho

487 De um modo geral a doutrina ainda não se debruçou aprofundadamente sobre


este tema que oferece um campo interessante de investigação. Todavia, em França
o assunto já interessou a V. M. DESPAX, in La vie extraprofessionelle du salarié, Lyon-
CAEN, in Les libertes Publiques et l’emplois.. e ainda J. SAVATIER, la protection de la vie
privé des salariés, todos referenciados por Pierre KAYSER, in La protection de la vie prive
– protection du secret de la vie privé, Presses Universitaires d’Aix-Marseille, Economica,
Paris, 1995, que a pp. 264 e segs desta obra se ocupa deste tema. Sobre a vigilância
electrónica para efeitos do disposto no art.. 201º do CPP, ver Lei portuguesa nº. 122/99,
de 20 de Agosto que a regula. Ver ainda a Convenção para a Vigilância de Pessoas
Condenadas ou Libertadas Condicionalmente, aberta à assinatura em Estrasburgo
em 30 de Novembro de 1964. Portugal aprovou esta Convenção para ratificação pela
Resolução da Assembleia da República nº 50/94, D.R. de 12 de Agosto.
487a Ver pp. 390 e segs.
210 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

I - Tenho-me referido amiúde ao impacto das novas tecnologias no


regime jurídico das relações de trabalho. Este impacto está ainda em curso
de actuação, pois, na verdade, nem a sociedade de informação completou
a sua génese e constituição, nem os efeitos dela decorrentes se fizeram
sentir em todos os domínios, particularmente, neste domínio das relações
de trabalho. Diria que já é conhecido o epicentro do fenómeno, mas ainda
não se sabe até onde as consequências desse abalo se farão sentir488.
Em algumas ordens jurídicas já se notam, nomeadamente, preocu-
pações com vista à adopção de uma disciplina do tele-trabalho489.
Mas dois aspectos aconselhariam alguma prudência nesta matéria
e foi esta a opção que fizemos no anteprojecto do Código Laboral ainda
pendente de discussão: na verdade, não só a doutrina jurídica ainda não
realizou o trabalho de base tão necessário aos órgãos legislativos de des-
bravar o terreno, de modo a fundamentar uma actuação legislativa funda-
da em bases sólidas490, nem a jurisprudência foi suficientemente acossada
com pretensões viabilizadoras de construções jurídicas que reclamem in-
tervenções legislativas.
No caso particular do tele-trabalho, telelavoro, telearbeit, telework, te-
letravail, teletrabajo mesmo ao nível internacional as intervenções jurispru-
denciais são escassas491. Não pudemos recensear mais do que uma sen-

488 Maria Regina Gomes Redinha fala a este propósito de uma questão irresolvida,
a das relações entre o mercado de trabalho e as novas tecnologias de informação e
comunicação. Cf. o seu estudo Teletrabalho, in http://www.unicz.it/lavoro/REDINHA.
htm.
489 O termo não é ainda reconhecido por alguns dicionários electrónicos de língua
portuguesa como este que está instalado no computador.
490 Palma RAMALHO é peremptória em afirmar que o desenvolvimento recente do tele-
trabalho impede a sua delimitação precisa - in Da autonomia dogmática..., cit. pp. 559,
nota 302. É claro que a autora escrevia no ano 2000, mas não cremos que dessa data
a esta parte o desenvolvimento do tele-trabalho tenha permitido a modificação deste
ponto de vista.
491 A literatura sobre a matéria, embora em número significativo, é dominada por aspectos
ligados à sociologia laboral. Na literatura jurídica portuguesa recenseámos as seguintes
obras relativas ao tele-trabalho: para além do estudo já referido do mestre Guilherme
Machado DRAY, in Estudos do Instituto do Direito do Trabalho (tele-trabalho, sociedade da
informação e direito), cit..., abordam o tema Maria do Rosário Palma Ramalho, in Da
Autonomia Dogmática do Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2000, referindo-se a
aspectos pontuais da questão semeados ao longo de toda a tese, tais como, a relação
entre o tele-trabalho e a subordinação jurídica (pp. 88, nota 187 e pp. 596), o contributo
do tele-trabalho para o crescimento de situações laborais atípicas e, consequentemente,
para a diluição das fronteiras entre o trabalho dependente e o trabalho independente
(pp. 558, nota 301, 559, nota 302, 559, nota, 303, 560 e 561, nota 306) e, por último, a
problemática da ausência de disciplina legal do tele-trabalho; Pedro Romano Martinez,
e outros escritos jurídicos 211

tença em Itália, que adiante comentaremos. O sítio do Bundesarbeitsgericht


alemão492 não acusa nenhuma resposta ao descritor telearbeit, embora o
termo quando colocado em motores de busca de servidores gerais poten-
cie uma multiplicidade de documentos, dando conta do interesse que o
fenómeno tem vindo a despertar. Em Espanha recenseamos igualmente
uma sentença cujo objecto foi a questão de saber se determinada relação
jurídica envolvia ou não uma relação de trabalho subordinado, tendo o
tribunal concluído em sentido afirmativo, perante as notas típicas apre-
sentadas pela relação jurídica493.
Embora o tele-trabalho esteja amplamente disseminado, na maior
parte dos países do mundo494 e esteja a ser apontado como a via por exce-

in Direito da Sociedade da Informação (Relações empregador empregado), Coimbra Editora,


1999, pp. 185 e segs); Joel Timóteo Ramos PEREIRA, in Direito da Internet e Comércio
Electrónico, Quid Juris, Lisboa, 2001, pp. 201 e segs; Maria Regina Gomes REDINHA, in
O teletrabalho, http://www.unicz.it/lavoro/REDINHA.htm. Todavia, a literatura mundial
sobre o tele-trabalho, mesmo na sua relação com o direito, já se apresenta em número
significativo. O sítio da Organização Internacional do Trabalho respondeu ao termo
telework com mais de 450 obras sobre o tema (cf. http://labordoc.ilo.org/cgi-bin), o
que assegura o interesse que o tema tem vindo a despertar.
492 http://www.bundesarbeitsgericht.de/.
493 Trata-se de uma decisão do Tribunal Supremo de 22 de Abril de 1996, citada
por Francisco Antonio Rodríguez Santana, in EL TELETRABAJO EN ESPAÑA
¿TRABAJO SUBORDINADO O AUTÓNOMO?, http://www.graduados-sociales.
com/ArticulosCO/teletrabajo.htm. Dessa sentença ressaltam os seguintes pontos
de interesse que permitem concluir pela existência de um contrato de tele-trabalho
na prestação de actividade à distância: estreita direcção dos trabalhos a realizar;
programa informático elaborado pela empresa; controlo do trabalho pela empresa
mediante comunicação directa; penalidades aplicadas à outra parte pelos atrasos
no cumprimento do trabalho encomendado; propriedade da empresa do trabalho
encomendado. A sentença especifica ainda que estes elementos não exigem a presença
física do trabalhador nas instalações empresariais, nem sujeição a um horário de
trabalho, nem tão pouco exclusividade na prestação do trabalho encomendado. Assim,
com base no art. 8.1 del Estatuto de los Trabajadores, conclui estar-se perante “una
relación laboral de específicas características pero no desnaturalizada en su esencia de prestación
de trabajo por cuenta y bajo dependencia ajena mediante el abono de una retribución“. Ponha-se
em relevo dois aspectos: o relativo à propriedade do resultado da actividade prestada
pelo tele-trabalhador e a referência à possibilidade de prestação do tele-trabalho a
mais do que um empregador. O primeiro aspecto posto em relevo faz apelo à obra por
encomenda, cujo regime jurídico, é regulado pelo direito de autor. O segundo aspecto
coloca problemas importantes, nomeadamente, do ponto de vista da responsabilidade
por acidentes de trabalho. Questões de prova colocam-se com muita acuidade e
não poderão ser descartadas situações de fraude: no caso de acidente, por exemplo,
o trabalhador tenderá a atribuir a responsabilidade ao empregador que lhe oferece
maiores garantias de solvabilidade.
494 Sobre a importância do fenómeno e o seu impacto no mundo, cf. Guilherme Machado
212 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

lência de organização do trabalho, afigura-se-nos prudente deixar actuar


os actores jurídicos, no nosso caso, os actores jurídico-laborais, antes da
actuação dos órgãos legislativos nacionais495.

II - A autonomia privada é uma fonte rica de soluções e no domí-


nio das relações de trabalho ela apresenta-se com duas poderosas frentes
de actuação: a frente das relações individuais de trabalho, em que, mercê
da posição de domínio que uma das partes exerce sobre a outra e que, por
conseguinte, representa um limite à invenção, é, por isso, menos criativa;
e a frente das relações colectivas de trabalho que, pelas potencialidades
que apresenta, é capaz de gerar soluções que constituem uma importante
via experimental, esta sim capaz de preparar intervenções legislativas
fundadas em bases firmes496. Nestes domínios novos, como o do tele-tra-
balho, o apelo à autonomia privada afigura-se-nos de preceito497. Num
sector que referiremos mais adiante - o das obras criadas por computador que
tem estreita relação com o tele-trabalho - uma via de solução apontada
para fazer face à legítima e justificada omissão legislativa, é precisamente
a via negocial498.

III - Há, todavia, domínios onde a actuação legislativa deve ser


coeva senão mesmo antecipativa dos fenómenos sociais. Estes domínios

DRAY, in Tele-trabalho, Sociedade da Informação e Direito...cit, pp. 261 e segs. Para um


inventário dos sítios europeus do tele-trabalho, cf. http://www.apdt.org/news/Sites
%20Europeus%20de%20Teletrabalho.htm.
495 Parecendo manifestar alguma preocupação quanto à falta de enquadramento jurídico
do tele-trabalho, cf. Palma RAMALHO, Da autonomia..., cit., pp. 632; Guilherme DRAY,
Tele-trabalho..., cit., pp. 284 e 285. Depois de especificar algumas situações que no
seu ponto de vista seriam específicas do tele-trabalho, entende que estas situações
específicas justificam uma actuação legislativa neste domínio.
496 O elogio da regulamentação colectiva como a via por excelência de regulação das
relações de trabalho parece dominar hoje a ciência jus-laborista. Cf., entre outros,
A. MENEZES CORDEIRO, in Manual do Direito do Trabalho....; No domínio do tele-
trabalho o Governo Francês tem estimulado o recurso à contratação colectiva. Cf. Rép.
min. n° 28123 : JOAN Q, 12 juin 2000, p. 3570 – cit. por Pascal ALIX, in La définition du
télétravail, http://www.virtualegis.com/bulletins/document.php?ref=15.
497 Em matéria de tele-trabalho a importância da autonomia privada é referida,
nomeadamente, por Machado DRAY, apesar de se manifestar a forvor de uma
intervenção legislativa. Cf. o seu Teletrabalho... cit., pp. 270.
498 Cf. José Alberto VIEIRA, in Direito da Sociedade de Informação (Obras geradas por
computador e direito de autor), Coimbra Editora, Coimbra 2001, vol. II, pp. 113 e segs,
reconhecendo que a autonomia da vontade representa amplas potencialidades de
actuação jurígena (pp. 140).
e outros escritos jurídicos 213

prendem-se, fundamentalmente, com os direitos da personalidade e em


particular com os já referidos direitos personalíssimos. Bem andou, pois,
o Conselho da Europa ao adoptar uma Convenção no sentido da protec-
ção dos dados pessoais499, com importante incidência no plano das rela-
ções de trabalho subordinado. O valor dos bens jurídicos em causa não
se compadecia, na verdade, com delongas legislativas. Na sequência, foi
adoptada a Directiva nº. 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conse-
lho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas singulares no
que respeita ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados,
transposta em Portugal pela Lei nº. 67/98, de 26 de Outubro, conhecida
como Lei de Protecção de Dados Pessoais, temática sobre a qual foi já
adoptado um conjunto significativo de instrumentos legislativos.500

499 Cf. Convenção para a protecção das Pessoas relativamente ao tratamento automatizado
de dados de carácter pessoal, aprovada para ratificação em Portugal pela Resolução
da Assembleia da República nº. 23/93, de 09 de Julho e ratificada pelo Decreto do
Presidente da República nº. 21/93, de 09 de Julho de 1993. Atente-se na rectificação nº.
10/93, publicada no Diário da República I-A, nº. 195, de 20 de Agosto de 1993.
500 Além da Lei de Protecção de Dados Pessoais, esta matéria conta em Portugal com um
número importante de intervenções legislativas, a saber: a matéria tem, como se sabe,
o seu assento constitucional no artº. 35º da Constituição da República que reconhece
o direito de acesso, rectificação e actualização dos dados pessoais de cada cidadão;
o direito de conhecer a finalidade por que tais dados são coligidos; a proibição de
tratamento de dados relativos a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária
ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica; o princípio do consentimento
do titular dos dados pessoais para a sua recolha e tratamento; o princípio da
não discriminação; a proibição do acesso de terceiros a dados pessoais, salvo em
casos excepcionais previstos na lei, entre outros. A Lei 67/98, de 26 de Outubro é
complementada pela Lei nº. 69/98, de 28 de Outubro que regulou o tratamento
dos dados pessoais e a protecção da privacidade no sector das telecomunicações,
transpondo a Directiva nº. 97/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15
de Dezembro de 1997. A jurisprudência e os órgãos de consulta já foram chamados a
pronunciar sobre esta matéria em vários momentos. Assim, no Ac. do STA de 13 de
Abril de 1997 discutiu-se o problema de divulgação de dados confidenciais constantes
do processo de notação dos funcionários, tendo o STA decidido no sentido de que o
acesso a tais dados deve ser restrito (salvo tratando-se do funcionário notado) e com a
especificação do fim a que o pedido se destina. Cf. http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/. No
mesmo sentido se pronunciou o Ac. do STA de 12 de Junho de 1997, considerando que
“Os dados constantes de um relatório clínico de terceiro, contendo informações sobre
doença ou lesões que padeça e o respectivo tratamento, são dados pessoais reservados,
cuja confidencialidade é imposta pela reserva da intimidade da vida privada“ - cf.
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/. No Ac. do STA de 9 de Outubro de 1996 discutiu-se
se, para efeitos de impugnação do concurso, os concorrentes interessados podiam
ter acesso aos dados pessoais dos demais. Parece-nos correcta a decisão tomada no
sentido de que tais dados poderão ser consultados pelos candidatos preteridos, para
efeitos de impugnação dos candidatos seleccionados. Cf. http://www.dgsi.pt/jsta.
nsf/. Cf. ainda Ac. do STA de 22 de Janeiro de 2003 no mesmo sítio. Sobre o tema, cf.
214 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

IV - A caracterização do teletrabalho passa pelo que esta modali-


dade de trabalho tem de específico.
O tele-trabalho é, fundamentalmente, fruto de inovações tecnoló-
gicas. Ele representa a possibilidade que o trabalhador tem de executar
a tarefa a que está obrigado pelo contrato, independentemente da deslo-
cação a um local de trabalho, da observância de um horário de trabalho
ou de sujeição constante e permanente a ordens e instruções da entidade
patronal, servindo-se do recurso às tecnologias de informação e comuni-
cação. Todavia, a ausência física da entidade patronal não significa que
a execução da tarefa a que o trabalhador está obrigado seja sempre uma
execução desacompanhada ou não vigiada, pois, o tele-trabalho pode en-
volver, e co-envolve muitas vezes, uma tele-direcção que poderá ser tão
intensa e persistente quanto a presença física do empregador ou do seu
representante.
Nomeadamente, nas situações de tele-trabalho on line em que o tele-
trabalhador está em permanente contacto com o empregador, a subordi-
nação pode incidir com forte intensidade501, apenas minorada pela auto-
nomia técnica com que o tele-trabalhador desenvolve a sua actividade.
Na verdade, o exército de trabalhadores adstritos a esta modalidade de
trabalho reúne, normalmente, importantes qualificações técnicas502 que,
no ponto de vista que temos vindo a defender, intervém numa relação
indirectamente proporcional face à subordinação jurídica. Ou seja, quanto
melhores são as qualificações técnicas do trabalhador, menor será a actua-
ção subordinativa do empregador, o que comprova uma outra ideia adju-
vante desta: a de que a organização empresarial tende hoje a estruturar-se
em coerência com uma ideia branda de subordinação jurídica, ideia esta
bem presente na modalidade do tele-trabalho.

V - O tele-trabalho apresenta-se, fundamentalmente, como um


factor de organização do trabalho. Serve, pois, de pano de fundo ou de

3ª Jornada Franco - Suiça de Dijon de 13-15 de Outubro de 1986, cf. Revue International
de Droit comparé, 39 ième année, nº. 3, Juillet-septembre, 1987 sob o lema La protection
des donnés personnelles.
501 Distingue-se das situações de tele-trabalho off line em que o tele-trabalhador recebe
previamente um conjunto de ordens e instruções com vista à execução da tarefa ou
função que executa e submete posteriormente à consideração do empregador. Cf.
Machado DRAY, in Teletrabalho..., pp. 269. Distinguem-se igualmente as modalidades
de teletrabalho ao domicílio, teletrabalho móvel, teletrabalho pendular e teletrabalho
offr shore, segundo Pascal ALIX, reconhecidas pelo Governo francês ((Rép. min. n°
28123 : JOAN Q, 12 juin 2000, p. 3570).
502 Cf. sobre este ponto Palma RAMALHO, Da Autonomia dogmática..., cit., pp. 559, nota
304; Guilherme DRAY, Teletrabalho..., cit., pp. 270.
e outros escritos jurídicos 215

enquadramento tanto para o trabalho subordinado, em qualquer das suas


modalidades, quanto para o trabalho autónomo ou para a prestação de ser-
viços. Pode enquadrar quer a execução de tarefas para uma pequena ou
grande empresa, como para a Administração Pública central, regional ou
local. O seu parente próximo é o trabalho no domicílio com quem apresenta
fortes afinidades503, mas não está igualmente afastado do contrato de pres-

503 Guilherme DRAY distingue o tele-trabalho do trabalho no domicílio por esta


modalidade de trabalho envolver, predominantemente, um trabalho manual,
corresponder a fracos índices retributivos e não envolver, em regra, o recurso a
instrumentos de informação e comunicação. In Teletrabalho... cit., pp. 270. O contrato de
trabalho no domicílio é equiparado ao contrato de trabalho (artº. 2º. LCT) O seu regime
jurídico encontra-se hoje previsto no Decreto-Lei nº 440/91, de 14 de Novembro, que
o caracteriza como um trabalho sem subordinação jurídica, praticado no domicílio do
trabalhador ou, tratando-se de vários trabalhadores sem subordinação entre si, no
domicílio de um deles desde que, até ao limite de quatro, prestem a sua actividade
ao mesmo empregador - dador de trabalho (artº. 1º ). As particularidades desta
modalidade de trabalho prendem-se fundamentalmente com o local onde o mesmo
é desenvolvido - o domicílio do trabalhador - com todas as consequências que
esta deslocação do local de trabalho encerra. Na verdade, o trabalho no domicílio
transforma o lar familiar num local de trabalho. É necessário, pois, que a lei salvaguarde
as eventuais intromissões do empregador na vida pessoal e familiar do trabalhador.
Além disso, mostra-se necessário evitar que o domicílio da família fique exposto a
riscos próprios da laboração. Daí a adopção de normas especiais relativas ao respeito
da privacidade do trabalhador e da sua família (artº. 2º/1); à utilização de substâncias
nocivas para a saúde do trabalhador e do seu agregado familiar (artº. 3º); aos exames
médicos (artº. 4º); à segurança social (artº. 11º) e à fiscalização (artº. 12º), entre outras.
A lei não esqueceu os interesses do empregador no quadro do trabalho no domicílio,
onde as possibilidades de concorrência desleal se colocam com particular intensidade
e as possibilidades de subtracção dos materiais, processos de fabrico e outros bens
colocados à disposição do trabalhador suscitam uma maior vigilância. Por isso, o
trabalhador está sujeito ao dever de segredo sobre as técnicas e modelos que lhe sejam
confiados (artº. 2º/2) e não pode dar às matérias primas e equipamentos uso diverso
do destinado ao trabalho que lhe foi confiado (artº. 2º/3).
O trabalho no domicílio recupera uma antiga distinção posta em causa pela doutrina e que consiste
separação entre trabalho manual e trabalho intelectual. No passado, esta distinção comandava
toda a disciplina das relações de trabalho e dava lugar a duas categorias de trabalhadores: o
empregado, cujo trabalho era predominantemente intelectual, e o assalariado, cuja actividade
era predominantemente física ou manual. A cada uma das categorias de trabalhadores
correspondia um regime jurídico diferenciado, com repercussões em matéria de período de
trabalho (o empregado trabalhava normalmente ao mês, ao passo que o assalariado trabalhava
normalmente à semana ou à quinzena); horário de trabalho (o empregado tinha, em regra, um
horário de trabalho inferior ao do assalariado, assim como tinha direito a isenção de horário não
reconhecido a este); retribuição (o empregado vencia, normalmente, ao mês e o assalariado à
semana ou à quinzena); férias (o período de férias do empregado era, em regra, superior ao do
assalariado); sanções disciplinares (as sanções disciplinares aplicáveis aos assalariados eram,
em regra, inferiores aos aplicáveis aos empregados) e havia, igualmente, diferenças mesmo no
plano terminológico, pois, a retribuição do empregado denominava-se ordenado, ao passo que
a retribuição do assalariado se denominava salário. Uma certa doutrina insurgiu-se contra esta
216 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

tação de serviços504.
Por isso, não podemos concordar com um certo sector da dou-
trina italiana quando advoga a ideia de que só há tele-trabalho onde há
subordinação. António VISCOMI num estudo publicado no Studium Iuris,
1999, n. 10 e posteriormente reelaborado e republicado em forma electró-
nica505 reputa errado considerar como tele-trabalho “qualunque prestazione
o attività svolta, con supporto informatico, al di fuori dell’unità produttiva o am-
ministrativa. Se questa opinione fosse valida - prossegue - dovrebbe paradossal-
mente dedursi che ogni ipotesi di lavoro a distanza (anche quelle, a domicilio, ben
conosciute agli albori della rivoluzione industriale) sia da considerare come una
forma - più o meno arcaica - di telelavoro: esito, questo, del tutto paradossale“.
Para este autor só haveria tele-trabalho havendo subordinação jurídica.
Pode até ser desejável que assim seja e pode ser que o enquadra-
mento jurídico do tele-trabalho venha a evoluir no sentido de reservar a
denominação apenas para as situações em que haja subordinação jurídica.
Todavia, no estádio actual do enquadramento jurídico do fenómeno, com
uma ausência quase completa de regulamentação506, afigura-se-nos arris-

distinção. O Professor Raul Ventura escrevia que “não há trabalho exclusivamente material,
nem exclusivamente intelectual. Todo o esforço humano é dirigido pela vontade, para o
conseguimento de certas finalidades práticas, com o concurso de todas as faculdades humanas.
Nenhum trabalho, mesmo manual, deixa de ser um acto de inteligência e de vontade. Nenhum
trabalho, mesmo intelectual, pode prescindir de manifestações físicas” in “A Relação Júridica
de Trabalho”, nº 11. ( citado por A. Neto, in “Contrato de Trabalho, notas práticas”.) Os
Professores Pires de Lima e Antunes Varela completavam esta afirmação reconhecendo que a
distinção perdera interesse prático. “Todos passaram - dizem - a ser genericamente designados
por trabalhadores a pretexto de a todos subordinar os mesmos princípios fundamentais da
relação de trabalho, pelo que desapareceu praticamente o interesse que delas podia provir”. in
Código Civil Anotado, 2º, 416. Recentemente o Professor MENEZES CORDEIRO recuperou
o interesse da distinção, considerando que a clivagem entre empregado e assalariado deve ser
mantida, pelo interesse que tem para as situações de autonomia técnica e autonomia deontológica
( cf. Manual de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 1994, pp. 110). Sobre o trabalho
ao domicílio, cf. António Monteiro FERNANDES, Direito do Trabalho, Almedina Coimbra,
1999, pp. 151 e segs; Maria do Rosário Palma RAMALHO, Da autonomia Dogmática do
Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 637-638. O trabalho no domicílio deve, ele
próprio, distinguir-se do trabalho familiar, aquele que se realiza no quadro da família, despida
de subordinação jurídica (cf. MENEZES CORDEIRO, Manual..., pp. 530). Não pudemos
recensear nenhuma decisão relativa ao trabalho no domicílio.
504 O tele-trabalho enobrece a relação de trabalho pela aproximação que realiza entre o
contrato de trabalho e o contrato da prestação de serviço. Na verdade, no tele-trabalho
o trabalhador tem preocupações especiais com o resultado da sua actividade.
505 Cf. http://www.unicz.it/lavoro/VISCOMItelelavoro.htm.
506 A Itália parece ser o país do mundo onde a disciplina do telelavoro, e apenas com
relevância no âmbito da administração pública, ganhou maiores desenvolvimentos.
Sobre esta disciplina, cf. Machado DRAY, in Teletrabalho..., cit., pp. 279 a 281. Os
e outros escritos jurídicos 217

cado sustentar em termos tão amplos, semelhantes afirmações. Refira-se,


aliás, que a Lei italiana relativa ao teletrabalho na Administração Pública
o define “como qualquer forma de prestação de trabalho, mediante o em-
prego de instrumentos telemáticos”. Neste particular, a posição que nos
afigura mais correcta foi aquela tomada no FRAMEWORK AGREEMENT
ON TELEWORK, adoptado pela Comissão Europeia a 16 de Julho de 2002
em que se reconhece que o telework cobre largas zonas de actuação, por
isso o define como um meio de organização para empresas e serviços pú-
blicos507. Não cremos, pois, que, por ora, se possa ligar o termo, irremedi-

desenvolvimentos recentes a registar nesta matéria prendem-se, fundamentalmente,


com um conjunto de propostas de lei visando a disciplina do fenómeno fora do âmbito
da Administração Pública, algumas hoje unificadas. cf. http://www.offertelavoro.it/
telelavoro/. Trata-se de um projecto com 17 artigos que define o teletrabalho como
qualquer forma de prestação de trabalho mediante o emprego de meios telemáticos
e em lugar diverso e distante daquele em que é aproveitado. Regula os direitos
fundamentais do tele-trabalhador, tais como o direito à informação, o direito à
sociabilidade, direitos estes extensivos aos tele-trabalhadores não subordinados. Prevê
normas sobre o controlo do trabalhador à distância, a participação em assembleias dos
trabalhadores, o direito de filiação sindical, a contratação colectiva e o teletrabalho
prestado do estrangeiro.
A contratação colectiva tem igualmente em Itália, nesta matéria, uma incidência importante.
Cite-se o Accordo sul Telelavoro Subordinato tra Confcommercio e Filcams-Cgil Fisascat-
Cisl Uiltucs-Uil, celebrado em 1997. Inclui apenas 18 artigos, disciplina os seguintes aspectos
do teletrabalho: define o teletrabalho e aponta, exemplificativamente; as suas modalidades
(ao domicílio, em centros de tele-trabalho, móvel e o que o Acordo chama de hoteling, isto
é, o tele-trabalho desenvolvido num posto de tele-trabalho na empresa para os trabalhadores
que desenvolvem a uma actividade prevalentemente externa; regula a prestação do trabalho; a
retribuição; o sistema de comunicação; as reuniões; os meios de controlo à distância; os direitos
sindicais; a organização do trabalho; os deveres de diligência e de reserva; a formação e o
direito de informação; as chamadas interrupções técnicas (interrupções no circuito telemático
devido a causas não imputáveis ao trabalhador); as medidas de protecção e o acidente de
trabalho. Este acordo prevê ainda uma cláusula de revisão, caso venha a ser adoptada uma lei
reguladora do tele-trabalho subordinado. Sobre este acordo, cf. “http://www.eiro.eurofound.
ie/servlet/ptconvert?IT9707118N”.
507 Afirma-se neste FRAMEWORK AGREEMENT ON TELEWORK, que “Telework
covers a wide and fast evolving spectrum of circumstances and practices. For that reason, social
partners have chosen a definition of telework that permits to cover various forms of regular
telework. The social partners see telework both as a way for companies and public service
organisations to modernise work organisation, and as a way for workers to reconcile work and
social life and giving them greater autonomy in the accomplishment of their tasks.” work and
social life and giving them greater autonomy in the accomplishment of their tasks. If Europe
wants to make the most out of the information society, it must encourage this new form of work
organisation in such a way, that flexibility and security go together and the quality of jobs is
enhanced, and that the chances of disabled people on the labour market are increased“. Este
documento poderá ser recolhido em: http://www.unicz.it/lavoro/UE_TW.pdf. A
doutrina francesa sobre este ponto aponta mo mesmo sentido. Pascal ALEXIS afirma
peremptoriamente que “o teletrabalho não constitui nem um regime, nem um estatuto
218 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

ável e unicamente, ao trabalho subordinado.


Observe-se, todavia, que este ponto de vista não contende com a
posição assumida pelo legislador português no Código do Trabalho, apro-
vado por Decreto da Assembleia da República nº. 51/IX, de 10 de Abril de
2003, no qual se define o teletrabalho como “a prestação laboral realizada
com subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa do empregador,
e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação“ (artº.
233º), incluindo, portanto, no conceito de tele-trabalho o elemento subor-
dinação jurídica. Na verdade, o legislador tem a preocupação de afirmar
que tal noção só vale “para efeitos deste Código” e bem podia deixar de o
afirmar, pois, todo o Código do Trabalho está pensado e estruturado com
vista à disciplina do trabalho subordinado. Mas esta referência do legis-
lador português só vem confirmar as nossas preocupações, pois, também
para o legislador italiano o conceito de tele-trabalho enquadra a prestação
de trabalho, pelo menos por ora, no âmbito da Administração Pública
que tem um estatuto diverso do dos trabalhadores subordinados.
Poucos países regularam o tele-trabalho. A Itália adoptou em 1996
uma Lei para o tele-trabalho na Administração Pública e, recentemente,
Portugal adoptou no seu Código do Trabalho normas disciplinadoras do
tele-trabalho subordinado. Do ponto de vista da sua disciplina jurídica,
tem-se privilegiado o recurso à autonomia privada, seja na modalidade de
contrato de trabalho, seja na modalidade de contratação colectiva, de que
é paradigmático o caso da Alemanha onde proliferam convenções colecti-
vas enquadrado, claro está, pelas normas gerais ou particulares aplicáveis
à modalidade paralela.
Apontam-se ao tele-trabalho alguns defeitos, como seja o possível
isolamento do tele-trabalhador, o desenraizamento sócio-profissional, as
possibilidades de confusão entre a vida privada e profissional do traba-
lhador..., mas ele tem vantagens que não poderão ser menosprezadas:
facilita a contratação de trabalhadores, em particular dos trabalhadores
deficientes, que, na comodidade da sua casa, ou dos centros de tele-con-
tratação podem executar a tarefa para que foram contratados; suprime
ou diminui as deslocações ao local de trabalho; reduz o stress decorrente
da utilização dos transportes, quer públicos, quer particulares; reduz ou
suprime os custos de deslocação ao local de trabalho; permite melhor con-
ciliação entre as situações de doença, parto, nojo ou aleitação com a vida
profissional; as próprias situações de suspensão do contrato de trabalho,
nomeadamente, por motivos disciplinares poderão ser melhor adequadas

jurídico”; corresponde a uma forma de organização de trabalho - Cf. http://www.


virtualegis.com/bulletins/document.php?ref=15.
e outros escritos jurídicos 219

aos interesses da empresa. Não está mesmo excluída a possibilidade de


continuidade de um contrato de trabalho na situação de prisão, desde que
ao tele-trabalhador preso sejam garantidas condições de tele-comunica-
ção.
Num país fraccionado geograficamente e com muitos técnicos dis-
persos pelas diversas ilhas e pelas diversas partes do mundo, o tele-traba-
lho apresenta-se como uma importante via para congregar essa força de
trabalho.
VI - O tele-trabalho veio suscitar problemas jurídicos de relevante
complexidade. Constitui um teste à relevância da empresa ou da organiza-
ção empresarial no domínio das relações de trabalho508; obriga a uma revi-
são do conceito do local de trabalho; mexe com o conteúdo e alcance da subordinação
jurídica509; coloca problemas de aplicação no espaço tanto no quadro interlocal510,

508 Cf. no mesmo sentido, Maria Regima Gomes REDINHA, Teletrabalho, cit.. que se
refere, a este propósito à plurilocalização ou à despacialização da empresa. Sobre a
relevância da empresa no direito laboral, cf., por todos, António Lemos Monteiro
FERNANDES, in Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 11ª edição, pp. 241 e segs;
509 Os problemas suscitados em torno da subordinação jurídica no quadro de uma
relação de tele-trabalho prendem-se, fundamentalmente, com o seu enfraquecimento.
O empregador fica limitado no exercício desse poder. Pela nossa parte entendemos
este enfraquecimento como um sintoma de evolução. Um dos perigos que têm sido
referidos a propósito do tele-trabalho prende-se com a possibilidade que ele cria de
transformação do lar conjugal em local de trabalho e, consequentemente, com a tentação
do empregador de se intrometer na vida pessoal e familiar do trabalhador. Pela
nossa parte entendemos que, neste particular, o tele-trabalho ao distanciar no espaço
a pessoa do trabalhador e a pessoa do empregador ou do seu representante, reduz
a dependência psicológica do trabalhador face ao empregador e, consequentemente,
aumenta a condição da pessoa do trabalhador. Note-se, por exemplo, que uma das
razões que levou o legislador a suprimir a admoestação verbal no quadro da Função
Pública foi precisamente o facto de esta espécie de sanção disciplinar envolver forte
proximidade entre o trabalhador e o empregador em termos que tem degenerado em
vias de facto.
510 Os estudos a que recorremos não fazem referência sobre este ponto. Todavia, em
ordens jurídicas complexas ou plurilegislativas, como seja o caso da Grã-Bretanha,
Espanha ou mesmo Portugal o tele-trabalho pode colocar problemas de conflitos
interlocais. Este carácter plurilegislativo da ordem jurídica portuguesa foi claramente
assumido pelo actual Código do Trabalho, aprovado pelo Decreto 51/IX, de 30 de
Maio 2003. Nos termos do artº. Artigo 4.º deste diploma na aplicação do Código do
Trabalho às regiões autónomas são tidas em conta as competências legais atribuídas aos
respectivos órgãos e serviços regionais; a fixação das condições de admissibilidade de
emissão de regulamentos de extensão e de condições mínimas compete às respectivas
Assembleias Legislativas Regionais; as regiões autónomas podem estabelecer, de
acordo com as suas tradições, outros feriados, para além dos fixados no Código do
Trabalho, desde que correspondam a usos e práticas já consagrados e podem ainda
regular outras matérias laborais de interesse específico, nos termos gerais. Esta norma
220 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

como no plano internacionalprivatistico511, suscitando, consequentemen-

vem suprimir todas as dúvidas para quantos ainda tivessem de que Portugal é um
ordenamento jurídico plurilegislativo com as consequências que esta natureza lhe
empresta no plano da aplicação da lei dentro do seu espaço territorial. O principal
problema que esta natureza complexa do ordenamento jurídico português levanta
prende-se com a inexistência de normas de direito interlocal, pois, curiosamente,
Portugal previu regras que permitam ao julgador ultrapassar problemas de remissão
para ordenamentos jurídicos complexos estrangeiros, mas não previu quaisquer regras
destinadas a regular os conflitos internos. Uma via possível de solução desta lacuna
poderá ser ou a bilateralização das regras previstas no artº. 20º do Código Civil u a
sua aplicação analógica aos conflitos internos, dado que esta norma está pensada
para operar no quadro da ordem jurídica estrangeira. Os princípios que na ordem
jurídica portuguesa orientam a aplicação da lei no espaço poderão desempenhar,
neste particular, um papel relevante. No domínio das relações de trabalho dois desses
princípios se apresentam com particular importância: o princípio da conexão mais
estreita e o princípio da protecção da parte débil.
511 Os problemas de aplicação da lei no espaço, no plano internacional, suscitados
pelo tele-trabalho não foram ainda tratados pela doutrina. Eles se colocam sempre
que a actividade desenvolvida pelo trabalhador está sujeito, por força das regras de
competência internacional, à actuação de uma ou várias ordem jurídica estrangeira.
Uma ordem jurídica estrangeira pode ser chamada a regular uma situação de tele-
trabalho porque o tele-trabalhador se encontra domiciliado no seu território, desenvolve
parte ou a totalidade da sua actividade no espaço de actuação dessa ordem jurídica ou
simplesmente porque ao celebrar um contrato de tele-trabalho as partes entenderam
por bem submeter a regulação do contrato às normas dessa ordem jurídica. Uma
ordem jurídica pode reclamar a regulação de uma determinada relação jurídica de
tele-trabalho quando, não sendo competente, de acordo com os critérios de conexão
fixados nos termos anteriormente referidos, as suas normas auto-limitadas reclamem
a sua aplicação às situações em contacto com a mesma. Neste particular, o tele-trabalho
pode suscitar relevantes problemas de aplicação da lei no espaço, principalmente, na
modalidade de tele-trabalho nómada que poderá fazer actuar normas provenientes
de diversas ordens jurídicas, suscitando, por essa via, diversos graus de conflitos de
leis. Além das normas auto-limitadas a regulação do tele-trabalho pode condicionar
a intervenção da ordem pública internacional do Estado e problemas de competência
internacional. O tele-trabalho vem, pois, facilitar a constituição de situações jurídicas
plurilocalizadas, precisamente, porque plurilocaliza o conceito de empresa, na
expressão de REDINHA (Teletrabalho, cit).
A matéria da lei aplicável ao contrato de trabalho internacional está amplamente tratado pela
doutrina. Afigura-se-nos que ela está preparada para responder aos novos desafios suscitados
pelo tele-trabalho. Na doutrina jurídica portuguesa o estudo mais profundo sobre a o tema
corresponde à magistral tese de doutoramento de Rui Manuel Gens de MOURA RAMOS, Da
Lei aplicável ao contrato de trabalho internacional, Coimbra, Almedina, 1991. O tema encontra
ainda referências em obras gerais: cf. António Menezes CORDEIRO, in Manual de Direito do
Trabalho, Almedina, Coimbra, 1994, pp. 201 e segs, compreensivelmente desactualizado, mercê
da entrada em vigor da Convenção de Roma sobre a Lei aplicável às obrigações contratuais,
de 19 de Junho de 1980; Luis de Lima PINHEIRO, in Direito Internacional Privado, direito
de conflitos, parte especial, vol. II, 2ª edição, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 202 e segs, entre
outros. No âmbito do II Curso de Pós-Graduação em Direito do Trabalho organizado pelo
Instituto do Direito do Trabalho, António Marques dos SANTOS publicou igualmente Alguns
e outros escritos jurídicos 221

te, idênticos problemas de determinação do direito aplicável; levanta pro-


blemas de competência territorial e bem assim de competência internacional;
implica com o poder disciplinar512 e o seu exercício e reclama uma atenção
particular à disciplina dos direitos da personalidade.
O tele-trabalho suscita ainda problemas específicos no domínio da
formação profissional513; vem revolucionar o método de recrutamento de tra-
balhadores, suscitando problemas particulares em matéria de igualdade de
oportunidade e coloca especiais problemas em matéria de prova do contrato
de trabalho514. Interfere com certas modalidades de contrato de trabalho

princípios de Direito Internacional Privado e de Direito Internacional Público do Trabalho, in


Estudos do Instituto do Direito do Trabalho, vol III, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 13 e segs.
Nós próprios inserimos um apontamento sobre o tema no nosso estudo sobre A Convenção de
Roma de 1980 sobre a Lei aplicável às Obrigações Contratuais, Pedro Ferreira, Lisboa, 1999.
O teste unificado de proposta de Desegni di Legge para a regulação do teletrabalho em Itália,
fora do âmbito da Administração Pública, procura dar resposta a este problema. O Artº. 10º
deste projecto prevê, entre outras soluções, a aplicação do artº. 6ª da Convenção de Roma sobre
a Lei aplicável às obrigações contratuais. Cf. http://www.offertelavoro.it/telelavoro/.
No que diz respeito aos problemas de competência internacional dos tribunais portugueses
suscitados pelo contrato de trabalho transnacional, a obra fundamental é a de Luis de Lima
PINHEIRO, Direito Internacional Privado, competência internacional e reconhecimento de
decisões estrangeiras, Vol III, Coimbra, Almedina, pp. 114 e segs para as situações sujeitas ao
regime comunitário e 206 e segs, para o regime interno.
512 No domínio disciplinar sabe-se, por exemplo, que a legislação atribui relevância
diversa consoante a infracção disciplinar seja praticada dentro ou fora do local de
trabalho. Mas podemos desde já assegurar que certos comportamentos disciplinares
ficam enfraquecidos ou deixam simplesmente de ter relevância numa relação de tele-
trabalho. Assim, a infracção disciplinar resultante do comportamento que caracteriza
desrespeito pelo colega de trabalho perde praticamente importância numa relação de
tele-trabalho (cf. artº. 121º do CT).
513 Estes problemas foram analisados no Meeting organizado por Ernest & Young
Italia em colaboração com a CISS e a Telerete Nordest. Neste Meeting dedicado
especialmente à formação para o tele-trabalho, considerou-se que esta modalidade
de trabalho vem imprimir uma verdadeira revolução no que respeita à metodologia
formativa tradicional. sobre este Meeting, cf. http://www.unicz.it/lavoro/indice.
htm.
514 O Código do Trabalho prevê que o contrato de tele-trabalho está sujeito a forma escrita
o que obvia alguns problemas. Outros porém poderão suscitar-se: um documento
entregue por via informática pode não chegar ao seu destino ou não ser entregue
numa determinada data. Sobre os problemas de prova, cf. Miguel Teixeira de SOUSA,
in Direito da Sociedade da Informação (O valor probatório dos documentos electrónicos),
Coimbra Editora, Coimbra, 2001, vol II, pp. 171 e segs. Ver ainda Bernard AMORY/
Yves POULLET, in Le Droit de la prouve face à l’informatique et a la télématique, Revue
International de Droit Comparé, 37 ième anné, nº. 2, avril-Juin, 1985, pp. 321 e segs;
Isabelle de LAMBERTERIE , in La valeur probatoire des documents informatique da les pays
de la CEE, RIDC, 44 ième année, nº 3, 1992, pp. 641 e segs;
222 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

como seja o trabalho de estrangeiros515, o trabalho doméstico e coloca pro-


blemas especiais de aplicação de figuras jurídicas tais como a suspensão do
trabalhador para efeitos de averiguação de comportamentos disciplinares.

2. A experiência portuguesa

I - O Código do Trabalho português não regula grande parte dos


problemas levantados em torno do tele-trabalho. Adopta, no essencial, a
seguinte disciplina desta modalidade de trabalho: impõe a sua redução a
forma escrita (artº. 103º/b)); manda observar determinadas formalidades
de identificação das partes; cargo, duração do contrato, actividade exerci-
da ou a exercer antes ou depois da cessação do teletrabalho; propriedade
dos instrumentos de trabalho e identificação do departamento e do supe-
rior hierárquico a que se reportará o trabalhador (artº. 234º). Estabelece
ainda normas sobre a liberdade contratual (artº. 235º); sobre a igualdade
de tratamento entre o tele-trabalhador e os demais (artº. 236º); sobre a pri-
vacidade do trabalhador (artº. 237º); sobre a higiene, saúde e segurança no
trabalho (artº. 239º); sobre o período normal de trabalho (artº. 240º) e sobre
a participação e representação colectiva (artº. 243º).

II - Reputamos este regime simultaneamente excessivo e lacunoso.


O regime é excessivo porque impõe elementos pressupostamente essen-
ciais que não se reportam unicamente a aspectos especialmente deter-
minados pela relação de tele-trabalho. Pode-se desde logo quetionar a
própria necessidade de forma escrita para a celebração desta modalidade
de trabalho. Trata-se de uma imposição normalmente associada a preocu-

515 O exercício de uma actividade laboral por estrangeiro em território português está
sujeito a particulares condicionalismos, hoje fixados pela Lei nº. 20/98, de 12 de Maio.
Assim, a prestação de trabalho por estrangeiros está sujeito a forma escrita (artº. 3º/1)
que deve respeitar um conjunto significativo de requisitos; está sujeito a depósito
na delegação ou subdelegação do Instituto do Desenvolvimento das Condições de
Trabalho (artº. 4º); a cessação do contrato está sujeito a comunicação igualmente ao
IDICT (artº 5º) e a violação destas normas está sujeita a severas sanções que poderão
atingir uma coima de 500.000$00 (2.500 €uros) por cada trabalhador. Os problemas que
o teletrabalho vem suscitar nesta matéria de contratação de estrangeiros prendem-se,
antes de mais, com a observância destas regras exorbitantes fixadas pela Lei nº. 20/98,
de 12 de Maio. A questão que se coloca é a de saber se o empregador está vinculado ou
não a observar estas condições de contratação do estrangeiro. Esta lei foi revogada pelo
Código do Trabalho (artº. 21º nº. 2, al,.j)) que, todavia, recebe, no essencial, o conteúdo
da Lei nº. 20/98, de 12 de Maio. Remete, igualmente, para legislação especial a fixação
de condições de contratação de estrangeiros (artº. 86º e segs deste Código). O Código
introduz, todavia, uma alteração relevante nesta matéria. A violação do princípio da
igualdade entre estrangeiros e nacionais constitui infracção grave (artº. 648º).
e outros escritos jurídicos 223

pações de segurança, mas que, em alguns casos, pode representar, igual-


mente, uma fonte de limitações.
O actual Código do Trabalho português impõe o recurso à forma
escrita para a celebração do contrato-promessa de trabalho; do contrato de tra-
balho a termo; do contrato de trabalho com trabalhador estrangeiro, salvo dispo-
sição legal em contrário; do contrato de trabalho em comissão de serviço; do
contrato de trabalho com pluralidade de empregadores; do contrato de trabalho
a tempo parcial; do contrato de pré-reforma e contrato de cedência ocasional de
trabalhadores (artº 103º CT). Impõe igualmente o recurso à forma escrita
para a prática de outros actos no quadro da relação laboral.
A imposição dessa forma prende-se com fundamentos diferencia-
dos516. Umas vezes, a intenção subjacente é a de proteger a liberdade de
vinculação ou de desvinculação. Outras vezes, o legislador procura fazer
face a meras dificuldades de prova, como acontece no contrato promessa
de trabalho em que a obrigatoriedade de redução a escrito visa a prova
ad perpetuam rei memoriam. Outras vezes ainda, o legislador pretende sim-
plesmente garantir a observância de normas que se destinam a prosseguir
determinadas políticas, nomeadamente, a política de emprego, como se-
jam as normas relativas à contratação de estrangeiros. A necessidade de
observância da forma escrita nesta modalidade de contrato de trabalho
não tem nenhuma outra justificação senão garantir o controlo da empre-
gabilidade da população estrangeira residente em Portugal. Neste parti-
cular, a exigência de forma escrita está ligada a factores de ordem pública
e envolve necessariamente um factor de limitação.
No caso particular do tele-trabalho os elementos que parecem justi-
ficar a forma escrita prendem-se com a deslocalização ou plurilocalização
do local de trabalho; a possibilidade de o domicílio do trabalhador passar
a funcionar como local de trabalho, com todos os problemas inerentes a
essa possibilidade, como seja a intromissão do empregador na vida pes-
soal e familiar do trabalhador; e ainda com a observância de normas que
protejam o trabalhador contra a possível escravidão pelo trabalho.
Não cremos, todavia, que esta tenha sido a melhor opção na actual
fase de disciplina desta modalidade de trabalho. Na verdade, a imposi-
ção de forma escrita pode funcionar no tele-trabalho contra o trabalhador
e, consequentemente, contra os objectivos que subjazem aos incentivos
à tele-contratação. Assim, um trabalhador residente na cidade do Porto
terá que se deslocar ou fazer-se representar por alguém em Lisboa para
poder celebrar um contrato de tele-trabalho com uma empresa, com sede

516 Cf. MENEZES CORDEIRO, Manual... cit. , pp. 585 e segs.


224 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

nesta última localidade, que pretenda os seus serviços. O problema torna-


se ainda mais pertinente se tivermos em linha de conta o estabelecido no
artigo 103º nº. 2 do CT, segundo o qual nos contratos em que é exigida
forma escrita, além da identificação, deve constar a assinatura das partes.
Ora, esta exigência pode criar problemas significativos na conclusão de
um contrato de tele-trabalho e comprometer os objectivos pelos quais esta
modalidade de trabalho é incentivada, qual seja o aumento do emprego.
Mas o regime é ainda excessivo por outras razões. De entre as for-
malidades que impõe para a celebração do contrato de tele-trabalho pou-
cas podem reputar-se verdadeiramente específicas deste contrato. As alí-
neas a), b), c) e d) e mesmo as alíneas f) e g) do artº. 234º/1 são comuns
à generalidade dos contratos. Não trazem, pois, nada de novo. Mesmo as
referências à protecção da vida privada do trabalhador e da sua família
ou as preocupações de segurança, saúde e higiene no trabalho já decorrem
das regras gerais. A referência é, pois, inútil.
O que este regime tem verdadeiramente de original é a referência
ao tele-trabalho e à disciplina da propriedade dos instrumentos de traba-
lho utilizados pelo trabalhador e uma certa pedagogia moralizadora. To-
davia, numa solução, do nosso ponto de vista criticável, no que respeita
aos instrumentos de trabalho estabelece uma presunção de propriedade
a favor do empregador. A solução afigura-se-nos incompreensível por-
que, precisamente que não tem a posse dos instrumentos de trabalho, é
que beneficia da presunção de titularidade. Trata-se igualmente de uma
norma irrealista por duas razões: a primeira é a de que em grande parte
das situações de tele-trabalho é atribuição de preferência na contratação
de quem tenha meios próprios de tele-comunicação, ou seja, computador
próprio e ligação à internet, tal como se exige hoje, para determinados
cargos, carro próprio; a segunda é a de que o próprio empregador irá
incentivar a obtenção pelo trabalhador daqueles meios de tele-comuni-
cação, transferindo para ele esse encargo. A realidade aponta, pois, para
uma forte presunção de propriedade dos instrumentos de trabalho a favor
do trabalhador, daí que não se compreende a opção do legislador. Só não
será assim quando o tele-trabalho seja desenvolvido no quadro de centros
de tele-trabalho.

III - Mas o sistema afigura-se-nos igualmente lacunoso porque o


legislador deixou problemas importantes por resolver. Já fizemos referên-
cia à compatibilização entre o tele-trabalho e as regras que condicionam a
contratação de estrangeiros em território nacional. O Código do Trabalho
não dá uma resposta sobre este ponto. Um trabalhador estrangeiro resi-
e outros escritos jurídicos 225

dente no estrangeiro pode ser contratado por uma empresa nacional em


regime de tele-trabalho independentemente da observância das normas
que condicionam a contratação de estrangeiros?
Poderão ser coligidos, neste particular, argumentos a favor e con-
tra. Se as normas sobre a contratação de estrangeiros visam regular o
mercado de trabalho, dando preferência na contratação de nacionais ou
de estrangeiros com título válido de residência em Portugal, então estas
normas constituem igualmente um obstáculo à tele-contratação de es-
trangeiros residentes no estrangeiro. Todavia, se a condição de aplicação
dessas normas tem subjacente uma conexão implícita, como parece ser o
caso, de simples presença ou residência em território português, então
tais normas não impedem a tele-contratação de estrangeiros residentes
em território estrangeiro. A doutrina internacionalprivatista parece ava-
lizar este ponto de vista. Lima PINHEIRO caracteriza as normas relativas
à condição jurídica de estrangeiros em território português como normas
cuja aplicação depende de uma conexão especial com a ordem jurídica
portuguesa, qual seja a presença ou a possibilidade de presença em ter-
ritório português517.

IV - Outro ponto lacunoso prende-se com a faculdade ou não de o


trabalhador exercer o direito de retenção sobre os instrumentos de traba-
lho que sejam propriedade do empregador. Na verdade, o trabalhador a
quem a entidade empregadora deva salários em atraso poderá ser tentado
a exercer esse direito sobre instrumentos de trabalho que lhe tenham sido
entregues, enquanto não forem satisfeitas as suas pretensões salariais.
Duas situações podem ocorrer a este propósito: por um lado, a
existência de divergências fundadas entre o trabalhador e o empregador
quanto ao montante de salários devidos ou mesmo quanto à própria exis-
tência de dívida e, por outro, a circunstância de o trabalhador ser levado a
exercer o direito de retenção sobre os instrumentos de trabalho, não como
forma de garantir a percepção de salários devidos, mas como meio de
pressão sobre o empregador para conservar o lugar.
Trata-se, pois, de situações melindrosas que mereceriam tratamento
legislativo adequado. Mas, precisamente para evitar este melindre, os em-
pregadores irão privilegiar a contratação de quem tenha meios próprios
de tele-comunicação, o que reforça ainda mais o nosso ponto de vista de

517 Cf. o seu Direito Internacional Privado, vol. I, Introdução e Direito de conflitos, Parte
Geral, Almedina, Coimbra, 2001, pp. 55-56. Sobre os princípios gerais de direito dos
estrangeiros, cf. este autor no II vol. desta obra, Direito Internacional Privado, Direito de
Conflitos, Parte especial, 2º edição, pp. 135 e segs.
226 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

que a presunção de propriedade dos instrumentos de trabalho não devia


ser estabelecida a favor do empregador, mas sim a favor do tele-trabalha-
dor. A este propósito, pense-se igualmente no tele-trabalhador residente
no estrangeiro: fará sentido presumir que os instrumentos que este utiliza
sejam propriedade do empregador?

V - Outro ponto omisso cujo tratamento legislativo seria inteira-


mente justificável diz respeito ao reconhecimento dos direitos de autor
sobre as obras intelectuais produzidas no quadro de uma actividade tele-
laboral. A questão apresenta interesse a dois níveis: ao nível das obras
criadas pelo tele-trabalhador e ao nível das obras criadas por computador.
O Artº. 14º do Código de Direito de Autor e Direitos Conexos - CDADC
tem uma disciplina desta matéria que se resume no seguinte: presume a
titularidade dos direitos de autor a favor do trabalhador, mas admite que,
por acordo das partes, essa titularidade pode pertencer originariamente
ao empregador. Do mesmo modo, se na obra não figurar o nome do seu
criador (o trabalhador) presume-se que pertence ao empregador518.
Não cremos que esta norma seja suficiente para regular o problema
da obra criada no quadro de uma relação de tele-trabalho. Se a criação re-
querer o concurso apenas do trabalhador o artº. 14º é certamente suficien-
te. Se a criação requerer o concurso de vários tele-trabalhadores pode-se
aplicar o regime das obras colectivas (artº. 16º do CDADC). Mas se a criação
contar com a cooperação do trabalhador e do empregador, como pode
acontecer numa relação de tele-trabalho, coloca-se um problema seme-
lhante aos das obras de coloboração (artº. 17º do CDACD) que tem, todavia,
a particularidade de um dos colaboradores se encontrar numa posição de
subordinação face a outro. Esta posição de subordinação que, aliás, domi-
na todo o regime laboral, justificaria da parte do legislador uma tomada
de posição quanto a estas obras, nomeadamente, estabelecendo critérios
de solução de eventuais conflitos daí decorrentes.
Outrossim, o regime do CDADC não foi pensado para as obras
criadas por computador. Sendo o computador uma ferramenta funda-
mental do tele-trabalhador coloca-se com particular interesse o problema
de saber quem deve ser titular dessas obras no quadro de uma relação de
tele-trabalho. Entende-se por obras criadas pelo computador “a obra pro-
duzida por meio de computadores, na qual é impossível a identificação
das várias contribuições criativas e dos respectivos autores”, conforme a
definição que reputamos a mais feliz, adoptada pelo Comité Internacio-

518 cf. sobre este ponto, Pedro Romano MARTINEZ, in Relações empregador empregado...,
cit., pp. 194.
e outros escritos jurídicos 227

nal de Peritos da Organização Internacional da Propriedade Intelectual519.


A questão pode ganhar um elevado nível de complexidade no chama-
do tele-trabalho off shore, sabido que as ordens jurídicas se posicionam
de modo diverso no que respeita ao reconhecimento do direito de autor
sobre estas obras. Sabe-se, por exemplo, que a Grã-Bretanha desde 1988
reconhece direitos de autor sobre obras desta natureza520. Em Portugal a
posição dominante parece ser no sentido de que tais obras não são pas-
síveis de protecção ao nível do Direito de Autor. Todavia, se um traba-
lhador português, residente em Portugal realizar uma tradução ou outra
obra controlada ou assistida por computador a favor de uma empresa ou
entidade inglesa, a obra será protegida, enquanto obra criativa no quadro
da lei inglesa, mas não o é no quadro da lei portuguesa. Que protecção é,
neste caso, devida ao trabalhador?
Pela nossa parte concordamos com a posição da doutrina portu-
guesa. Os requisitos de protegibilidade da obra intelectual são o mérito e a
criatividade que se encontram ausentes numa obra criada por computador.
Entendemos que se corre grave risco de destruir a essência do Direito
de Autor, banalizando a protecção decorrente deste ramo do direito em
razão de interesses económicos, como parece ser o que está por detrás da
posição assumida por ordens jurídicas como a Grã-Bretanha. As novas
tecnologias trouxeram uma particularidade que não vimos ainda tratada
pelos cultores de Direito Intelectual a que chamaríamos de dominialidade
criativa, ou seja, a situação em que certas actividades protegida pelo Di-
reito de Autor em virtude do seu mérito e originalidade, deixam de ser
uma actividade criativa, para passarem a ser uma actividade mecânica,
realizada através de softwares cada dia mais sofisticados. Tal é o caso da
tradução. Nestas situações tudo se passa como se a actividade intelectual
criativa caísse no domínio público, perdendo a obra daí resultante interes-
se para o Direito de Autor.
São estas, entre outras, as questões que nos suscita o regime actual
do tele-trabalho. Todavia, o Código do Trabalho será revisto daqui a 4
anos (artº. 20º do diploma de aprovação) e estamos certos que o tele-tra-
balho irá suscitar importantes reformas.

519 Sobre esta e outras definições de obra criada por computador, cf. José Alberto
VIEIRA, in Obras geradas por computador..., cit. , pp. 117 e segs.
520 Cf. José Alberto VIEIRA, ob. cit. pp. 118.
228 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

CONCLUSÃO

I - As possibilidades que a Sociedade de Informação veio trazer


para um país pobre como o nosso devem ser levadas muito a sério. A
oportunidade que hoje temos de, no conforto de uma secretária, aceder
a documentos preciosos, desde a mais remota antiguidade, como os ma-
gistrais textos do Corpo de Direito civil (Corpus Iuris Civile) Romano, ou
a Summa Theologica de S. Tomás de Aquino, ou ainda a oportunidade de
lermos na sua versão original os Seis Livros da República de Jean BODIN...
não deve limitar-se a deixar-nos extasiados perante a facilidade do acesso
à informação: obriga-nos a parar para reflectir e perguntar como vamos
aproveitar este verdadeiro el dorado, em benefício das populações e como
vamos criar condições para que todos possam aceder com menores custos
(se possível até sem custos) a esses mesmos benefícios.

II - Para mim, o assunto é de tal modo sério que justificaria a criação


de um departamento do Estado que se ocupasse exclusivamente desta
temática, envolvesse todos os órgãos do poder, com particular destaque
para o Poder Local. Estou certo que, com o batalhão de funcionários de-
socupados que pululam nos serviços públicos, através do mecanismo das
transferências, esse departamento seria criado praticamente sem maiores
custos do que aqueles que o Estado já tem.

III - Mas algumas posturas deverão ser corrigidas. Um princípio


fundamental da Sociedade de Informação é o da generosidade que escon-
jura a mesquinhez espiritual e obriga a atitudes de total abnegação. Só a
generosidade tem possibilitado que quantos empregaram muito do seu
esforço na preparação de uma informação de utilidade pública a tenham
colocado à disposição do grande público, para benefício de todos. Atitu-
de bilateral deve ser assumida por todos particularmente por aqueles que
têm a felicidade de possuir documentação privilegiada ou de relevante
importância.
Todavia, em Cabo Verde ainda se assiste a uma cultura avara de
sonegação da informação, mesmo da parte daqueles que por lei estão vin-
culados a divulgá-la. Não se compreende, por exemplo, que os Boletins
Oficiais não tenham sido até agora disponibilizados através da Internet,
gratuitamente ou não, assim como não se compreende porque é que mui-
tos estudos – e alguns de grande qualidade – desde económicos, jurídicos,
sociológicos, estatísticos e de outras áreas do saber não se encontram dis-
ponibilizados numa grande Base de Dados, acessível a todos os interes-
sados.
e outros escritos jurídicos 229

O mesmo se pode referir das sentenças judiciais, dos despachos,


das ordens de serviço, dos circulares com eficácia externa, dos modelos de
requerimentos... e até dos requisitos necessários para a prática de certos
actos. Se contabilizarmos, por exemplo, o tempo perdido pela generalida-
de dos funcionários na busca desorientada de uma lei ou na quantidade
de dinheiro que se gasta todos os dias na execução de fotocópias, ou mes-
mo em alguns estudos repetidos mandados realizar por serviços públicos
diferentes ou por sucessivos governos, compreende-se a importância des-
te problema.....

IV - Eu proporia a criação de um serviço, diria mesmo, um mega


serviço de Documentação e Informação do Estado que, numa imensa base
de dados, acessível a todos os cidadãos, consubstanciasse o essencial da
documentação do Estado, das autarquias locais e dos demais serviços pú-
blicos. Por exemplo, no sector jurídico eu propunha que todos os parece-
res jurídicos, sejam os produzidos pelos técnicos afectos à Administração
Pública, quer os solicitados a juristas externos à Administração Pública,
fossem obrigatoriamente publicados nessa base de dados.
Isto contribuiria, pelo menos, para duas coisas: essa base de dados
seria uma espécie de Revista Jurídica on line da Administração Pública,
onde outros juristas teriam igualmente um espaço para comentar num
plano estritamente técnico-científico os trabalhos dos demais colegas, o
que transformaria a Revista num espaço de debate, aquilo que na gíria
cibernética se chama Grupos de discussão, mas a colocação on line dessa
informação teria um valor de transparência, num duplo sentido: no senti-
do de uma maior transparência dos actos da Administração, mas também
no sentido de transparência da actuação do funcionário que produz o es-
tudo ou o parecer.
A colocação on line teria igualmente um outro efeito: evitar a repeti-
ção de estudos já produzidos. Assim, se a Administração necessita de um
parecer jurídico sobre a interpretação de um artigo da lei terá a possibili-
dade de verificar na Revista Jurídica on line da Administração Pública se
algum estudo já foi produzido sobre a matéria. Do ponto de vista financei-
ro, isto representa uma vantagem. Se se tratar de um parecer para o qual
a Administração pagou ou pagaria milhares de contos o conhecimento da
existência desse parecer impede a realização dessa despesa ou simples-
mente a poupança do tempo.

V – Proponho, assim, que a NOSi seja desde já transformada neste


serviço de documentação e informação, dotada da meios humanos e mate-
riais e instruídos todos os serviços do Estado, incluindo os das autarquias
230 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

locais, os tribunais, e outros órgãos do poder do Estado a encaminhar


para esse Serviço de Informação e Documentação da Administração Pú-
blica toda a documentação produzida e susceptível processada e colocada
à disposição do público.

VI – Proponho igualmente que a Imprensa Nacional seja integrada


nesse serviço e, consequentemente, extinta assim como proponho que se-
jam disponibilizados meios com vista à adopção da legislação pertinente
para regular toda a actividade das TIC.
e outros escritos jurídicos 231

II
ESTUDOS DE POLÍTICA E SOCIOLOGIA
PRÓ-LEGISLATIVA
232 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO
e outros escritos jurídicos 233

1. A INVERSÃO DO PRINCÍPIO DO INDEFERIMENTO TÁCITO


- uma análise de política legislativa521.

Sumário:

Introdução. 1. Origem e evolução da teoria do silêncio na


Administração. 2. Breve referência à natureza do silêncio da
Administração. 3. O silêncio no direito comparado: direitos
italiano, espanhol e português. Formas de que pode revestir-se
o silêncio da Administração. 4. O silêncio na legislação cabo-
verdiana: a) O Regimento do Conselho Superior das Colónias;
b) A Reforma Administrativa Ultramarina - RAU; c) O Esta-
tuto do Funcionalismo Ultramarino - EFU; d) O DL 14-A/83,
de 22 de Março; e) O silêncio positivo. 5. O acto tácito de in-
deferimento. Efeitos económico-sociais. 6. Sentido a imprimir
ao valor do silêncio da Administração.

Introdução.

Os particulares endereçam à Administração petições da mais varia-


da natureza. São licenças para obras de construção civil, de reconstrução,
ampliação, alteração, reparação ou demolição de edificações; são pedidos
de aprovação de projectos destinados à execução das referidas obras; são
licenças para habitação de edifícios construídos, reconstruídos ou que te-
nham sofrido grande modificação, procedendo verificação de habitabi-
lidade por peritos em construção e salubridade; são pedidos de vistorias
ou de alvarás de licença para estabelecimentos insalubres, incómodos,
perigosos e tóxicos; são licenças para ocupação de via pública, estabeleci-
mento de servidões, abertura de janelas, portas, varandas; são pedidos de
loteamento; licença para a exploração económica de divertimentos públicos
(teatro, cinema, bailado, audições musicais, bailes, competições desporti-
vas); ou para a instalação ou reabertura de cinemas, cine teatros, ou para
o estabelecimento de indústrias várias: panificação, exploração de hotéis,
pensões, pousadas, estalagens, motéis, hotéis, apartamentos, residenciais,
estabelecimentos de interesse turístico, casas de pasto, restaurantes, cafés e si-
milares e bem assim para a extracção de areia, abertura de poços, exercício
da pesca, etc. etc..

521 Este estudo foi realizado em 1994 e publicado em 2002 na Revista Direito e Cidadania.
234 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Impossível é catalogar em número e natureza todas estas petições


tão variadas que elas são. Esta impossibilidade torna-se ainda mais evi-
dente se se tiver em consideração que estas petições se renovam diaria-
mente na sua natureza em conformidade com as exigências do desenvol-
vimento económico e social.
Para responder às petições dos administrados a Administração se
socorre da figura do acto administrativo de que o acto tácito constitui uma
das modalidades. Este se forma em virtude de um comportamento con-
cludente (facta concludentia) pelo qual a Administração expressa a sua a
vontade de decidir a pretensão do particular num determinado sentido.
Mas nem sempre foi assim. No passado um grande número de pe-
tições e requerimentos não obtinha a resposta da Administração, donde
resultava a paralisia dos cidadãos face à inércia desta. Para obviar a este
estado de coisas a doutrina administrativa posterior à Revolução Francesa
criou a teoria do silêncio, doutrina segundo a qual à inércia da Adminis-
tração deveriam ser atribuídos efeitos de direito. Se é certo que quanto a
este ponto se registou consenso na doutrina, a discussão ainda hoje per-
manece no que diz respeito à natureza do silêncio da Administração e
quanto ao sentido dos respectivos efeitos.
No que respeita à natureza a discussão gira em torno da questão de
saber se o silêncio da Administração tem ou não a natureza de um acto ad-
ministrativo ou se se trata de uma mera ficção jurídica. Quanto ao senti-
do dos seus efeitos colocaram-se igualmente duas alternativas: conjugado
com o interesse público, ao silêncio da Administração deveria atribuir-se
efeito negativo, no sentido de rejeição da pretensão do interessado; po-
rém, conjugado com o interesse particular, a esse mesmo silêncio deve-
ria atribuir-se efeito positivo, no sentido do acolhimento dessa mesma
pretensão. O jus imperi em que normalmente o Estado aparece nas suas
relações com os particulares determinou que vingasse desde a primeira
hora o ponto de vista negativo, no sentido de que, decorrido um certo
prazo sem a Administração se pronunciar sobre a pretensão do particular,
se considerar não acolhida a pretensão, cabendo ao interessado a via do
recurso contencioso. Passou-se assim a falar em acto tácito de indeferimento
ou simplesmente em acto tácito.
Embora a teoria tenha na sua génese o objectivo de reforçar as ga-
rantias dos administrados face à Administração, a verdade é que esse
objectivo só em parte foi conseguido. Basta pensar nas múltiplas causas
que podem determinar o silêncio da Administração e, em consequência,
o acto tácito de indeferimento: pode tratar-se de mera inércia, desprovida
de qualquer sentido, de um mero efeito da organização ou até de má-fé ou
negligência daqueles que estão incumbidos de veicular o ponto de vista
e outros escritos jurídicos 235

da Administração. Isto é, serão certamente poucas as situações em que a


Administração opta intencionalmente pela via do silêncio como forma de
responder à pretensão dos interessados.
Em face desta constatação pode questionar-se se será de boa po-
lítica manter a teoria do silêncio nos moldes em que até hoje tem sido
concebida.
A questão afigura-se-nos pertinente naquelas situações em que o si-
lêncio da Administração, na modalidade dominante de silêncio negativo,
se reverte contra a própria Administração no sentido funcional, como a
Administração para o Desenvolvimento. Até que ponto uma Administra-
ção que se reclama para o desenvolvimento poderá continuar a atribuir
efeito negativo ao silêncio, entravando muitas vezes o seu próprio fun-
cionamento?
Em situações relacionadas com o condicionamento industrial, o
turismo, a pesca e as actividades económicas de um modo geral tem-se
verificado nos sistemas administrativos de tipo francês senão uma inver-
são do princípio do indeferimento tácito, pelo menos fortes excepções a
este princípio, a tal ponto que parece justificável falar-se do despertar da
inversão do princípio do indeferimento tácito, ou seja da atribuição, como
regra, do efeito positivo ao silêncio da Administração, ou pelo menos no
estabelecimento de fortes limites a esse princípio.
Existem, contudo, muitas vozes discordantes quanto à adopção
da regra do silêncio positivo com razões praticamente irrefutáveis. Bas-
ta pensar no funcionário que requer à Administração 50 dias de férias,
quando por lei só tem direito a 20 dias; ou no funcionário que requer a
transferência, colocação ou destacamento ou requer, dolosamente, a prá-
tica de um acto ilegal. Se o silêncio da Administração pudesse ter também
nestes casos efeito positivo, se transferiria para a Administração o ónus de
revogar os actos ilegalmente constituídos.
Seja como for, não deixa de ser questionável se em todos aqueles
casos em que ainda hoje a lei manda atribuir efeito negativo ao silêncio da
Administração é este o melhor caminho a seguir.
Esta é a questão de política legislativa fundamental, sobre a qual é
necessário debruçar, o que passa por uma análise das situações em que a
lei manda atribuir efeito negativo ao silêncio da Administração e verifi-
car até que ponto deste valor atribuído ao silêncio não resultarão maiores
danos para a Administração. Se é justificável que o particular seja, em to-
das as situações, penalizado por um efeito muitas vezes não querido pela
própria Administração; se, em muitas destas situações, não seria de boa
política atribuir valor positivo ao silêncio da Administração.
236 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Esta análise poderá ser desenvolvida de harmonia com o seguinte


plano:

1. Origem e evolução da teoria do silêncio da Administração.


2. Breve referência à natureza do silêncio da Administração.
3. O silêncio no direito comparado: direito italiano, espanhol e por-
tuguês. Formas de que pode revestir-se o silêncio da Administração.
4. O silêncio na legislação cabo-verdiana.
5. Sentido a imprimir ao valor do silêncio da Administração.

1. Origem e evolução da teoria do silêncio na Administração

A teoria do silêncio está intimamente relacionada com o antigo bro-


cardo latino segundo o qual qui tacet consentire videtur, ainda hoje expresso
em linguagem corrente: quem cala consente. O silêncio como facto con-
cludente é um preceito de origem canónica hoje unanimemente rejeitado
pela doutrina e pelas legislações em virtude da severidade do seu conteú-
do522. Basta pensar naquelas situações em que o sujeito se encontra impos-
sibilitado de exprimir a sua vontade, seja por indevida compreensão da
motivação determinante, seja por medo, coacção física ou moral ou outra
causa criadora de divergências entre a vontade e a declaração. A restrição
que lhe foi estabelecida pelo aditamento “si loqui debuisset ac potnisset” ou
“ubi loqui potuit ac debuit” não logrou salvar a regra e hoje o silêncio só
vale como declaração de vontade quando esse valor lhe seja atribuído por
lei ou convenção. Esta é a solução acolhida no artº. 218º do Código Civil
português e que, como já referimos, tem o apoio da doutrina em geral.
Nos finais do século XIX a doutrina do silêncio foi objecto de uma
grande elaboração doutrinária sobre a qual é usual citar-se o nome de Ber-
nhard WINDSCHEID (1817-1892) que, com o seu Lehrbuch des Pandektten-
reschtes (1862-1870) lhe imprimiu tal significado que ainda hoje constitui
referência doutrinária sobre a matéria523. Curiosamente é em torno desse

522 Cf., entre outros, Emílio BETTI, in Teoria Geral do Negócio Jurídico, Tradução portuguesa
de Fernando de MIRANDA, Coimbra, 1969, tomo I, pp. 267 e segs e particularmente
273 e segs; Carlos Alberto de Mota PINTO, in Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra 1976,
pp. 337339; Manuel A. Domingos de ANDRADE, in Teoria Geral da Relação jurídica,
Coimbra 1987, vol. II, pp. 134138.
523 Cf. Massimo SANSALE, in Il silenzio della Pubblica amministrazione nel diritto urbanistico,
Milano 1991, pp. 1 e segs; sobre WINDSCHEID ver Franz WIEACKER, in História do
Direito Privado Moderno, tradução portuguesa de António Manuel Botelho HESPANHA,
Porto 1980, pp. 509 e segs; John GILISSEN, in Introdução Histórica ao Direito, tradução
portuguesa de António Manuel HESPANHA e Manuel Luis Macaísta MALHEIROS,
Lisboa 1986, pp. 517 e segs.
e outros escritos jurídicos 237

período que se verificam as primeiras transposições jurisprudenciais da


teoria do silêncio para o domínio do direito público. Vigorava então em
França a concepção do Ministro-juiz, nos temos da qual, nas situações que
opunham a Administração aos particulares, era necessária a obtenção de
uma sentença de mérito ou demérito do juiz, sem a qual não era possível
o recurso para o Conselho de Estado. Como se compreenderá na ausência
de pronúncia da parte do Ministro-juiz o particular ficava sem a possibili-
dade de recorrer. Esta situação durou até o Decreto de 2 de Novembro de
1864 que equiparou o silêncio da Administração ao indeferimento, decor-
ridos que fossem quatro meses sobre a data da apresentação do pedido.
Em Itália a mesma solução foi admitida por um decreto do Conse-
lho de Estado de 2 de Março de 1894 nos termos do qual se podia recorrer
contra a inércia da Administração como se se tratasse de uma decisão de
conteúdo negativo. Ficou, porém, célebre o Caso Longo (1902) no qual esse
mesmo Conselho rejeitou a excepção de não recebimento de um recurso com
fundamento em ausência de decisão definitiva sobre a questão controve-
tida. “E vero, estabeleceu-se neste caso, che contro i decreti di dispensa dal
servizio o di destituizione pronunciati dai capi delle corti, e fatto salvo il reclamo
al ministro digrazia e giustizia; ma quando (come nella specie) l’impiegato colpito
da quella misura disciplinare ripetutamente ricorre al ministero, quando notifica
a questo giudiziariamente un atto invitandolo a provvedere e non ne ottiene alcu-
na risposta, nom potrebesi non riconoscere nel prolungato silenzio dell’autorità
superiore la determinazione di far proprio il provvedimento contro il quale fu
invano ad essa prodotto reclamo524. Rompia-se assim uma regra secular que
permitia à Administração sobrestar-se indefinidamente numa decisão,
sem que o particular tivesse a seu favor qualquer meio de recurso. Po-
rém, já nestas primeiras decisões jurisprudenciais e medidas legislativas
se verificou um distanciamento entre a solução comummente admitida
em direito privado segundo a qual o silêncio como declaração de vontade
se apresenta ora com um sentido positivo525, ora com um sentido negati-

524 Cit. por Pier Giorgio LIGNANI, in Silenzio Diritto Amministrativo, Enciclopedia Del
Diritto, vol. XLII, pp. 564, nota 13. Ver ainda Vincenzo TODARO, in Spunti innovativi
in materia di tutela contro il silenzio, in Rivista di Diritto Processuale Amministrativo,
anno X (1992) pp. 534 e segs, nota 1. Sobre a evolução histórica da doutrina do silêncio
em Itália, cfr. ainda L. DELPINO, in Diritto amministrativo, VII edizione totalmente
rifatta, (fonti, soggetti, atti, mezzi, beni, compiti, responsabilità, giustizia) Napoli, 1990, pp.
380.

525 Cf. artºs. 923º nº 2 do CC segundo o qual a proposta de compra e venda se considera aceite
se o comprador não se pronunciar dentro do prazo de aceitação; 1163º nos termos do qual
o silêncio do mandante por tempo superior àquele em que teria de se pronunciar vale
como aprovação da conduta do mandatário. Cf. igualmente artºs. 314º, 2266º nº 2; 2269º nº 2.
238 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

vo526, e a solução aceite em direito público que, como regra, fixa sentido
negativo ao silêncio da Administração. Esta solução é hoje unânime na
generalidade das legislações527.

526 Ver o artº. 1171º e o artº. 2263º: “Sendo legado o recheio de uma casa ou o dinheiro
nela existente, não se entende, no silêncio do testador, que são também legados os
créditos, ainda que na casa se encontrem os documentos respectivos” no que releva,
certamente, a ideia de protecção dos herdeiros legitimários e a necessidade de não
ultrapassar os estritos limites da vontade do de cujus). Afastamo-nos, assim da posição
de Hely Lopes MEIRELLES, segundo a qual o silêncio como regra é interpretado no
direito privado como “concordância da parte silente em relação à pretensão da outra
parte” ao passo que no “direito público nem sempre pode valer como aceitação ou
rejeição do pedido” in Direito Administrativo Brasileiro, 13º edição, 2º tiragem S. Paulo
(1988), pp. 77.
527 Cf. quanto ao direito português, artº. 53º do Regulamento do Supremo Tribunal
Administrativo, aprovado pelo Decreto nº. 41234, de 21 de Agosto de 1957, nos termos
do qual “os requerimentos ou petições que não obtenham despacho definitivo no prazo
de noventa dias a contar da sua entrega nas estações competentes, consideram-se, para
efeitos contenciosos, indeferidos”. Nos termos do § único deste mesmo diploma “se
posteriormente ao decurso dos noventa dias sem resolução recair no requerimento ou
petição que se presume indeferido despacho expresso de indeferimento, considerar-
se-á este confirmativo do indeferimento tácito, salvo se for fundamentado em factos
donde possa resultar a arguição de desvio de poder”. Admite-se que este artº. esteja
hoje revogado pelos artºs. 2º a 4º do DL nº. 265-A/77, de 17 de Junho. O artº 346º do
Código Administrativo, aprovado pelo DL nº 31:095, de 31 de Dezembro estabelecia
igualmente no seu parágrafo 1º que “a falta de deliberação dentro do prazo estabelecido
neste artigo (trinta dias) equivale, para efeitos de recurso contencioso, ao indeferimento
do requerimento apresentado”. Este artº foi revogado pelo artº 114º da Lei nº 79/77, de
25 de Outubro, conhecida por Lei das Autarquias Locais. A matéria foi disciplinada
pelo artº 82º do DL nº 100/84, de de 29 de Março que elevou aquele prazo para sessenta
dias. Hoje o regime jurídico do indeferimento tácito encontra-se disciplinado pelo artº
109º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pela Lei nº 32/91, de 20 de Junho
que prevê como prazo supletivo geral para a formação do acto tácito de indeferimento
noventa dias, admitindo, todavia, a possibilidade da existência de prazos especiais para
a formação do acto tácito. A este propósito ver artº. 175º do mesmo diploma. Quanto ao
direito italiano, cfr. artº 6º P.R. de 24 de Novembro de 1971, nº 1199, nos termos do qual
“Decorridos noventa dias a contar da data da apresentação do recurso sem que o órgão
perante o qual foi submetido tenha comunicado a sua decisão, o recurso se entende
como indeferido, para todos os efeitos legais e contra a decisão poderá ser intentado
recurso perante a autoridade judiciária competente ou recurso extraordinário perante
o Presidente da República. O direito italiano estabelece, contudo, prazos diversos para
a formação do acto tácito. Cfr. a título de exemplo o artº 8 da lei nº 426, de 11 de Junho
de 1971, que regula a inscrição na Câmara de Comércio, o qual estabelece o prazo de
sessenta dias para a formação do acto tácito. Quanto ao direito espanhol o artº 94 da Ley
de Procedimiento Administrativo estabelece: “quando se formula uma petição perante
a Administração e esta não notifica a sua decisão no prazo de três meses, o interessado
poderá denunciar a mora e, transcorridos três meses a contar da denúncia, poderá
considerar-se indeferida a sua petição para efeito de deduzir perante esta denegação
presuntiva o correspondente recurso administrativo ou jurisdicional, segundo proceda,
ou esperar a resolução expressa da sua petição”. Quanto ao direito francês a lei de 17 de
e outros escritos jurídicos 239

2. Breve referência à natureza do silêncio da Administração.

As condicionantes que estão na génese da teoria do silêncio em


Direito Administrativo motivaram igualmente a divergência doutrinária
quanto à natureza jurídica deste. Duas teses se confrontam ainda hoje nes-
ta matéria. A tese segundo a qual a atribuição de efeitos de direito ao si-
lêncio da Administração se traduz numa mera ficção jurídica (fictio juris),
por um lado, e a tese segundo a qual o silêncio da Administração se tra-
duz num verdadeiro acto administrativo, por outro. A primeira tese ser-
ve-se do argumento utilizado pela Administração para o não recebimento
dos recursos fundados em acto tácito: se do facto do silêncio não se pode
extrair a conclusão da existência de um acto administrativo, porquanto o
silêncio equivale a um não acto a que não se pode atribuir efeito algum,
então o silêncio da administração não é mais do que uma fictio juris528.
Para a outra corrente, sendo certo que o silêncio se traduz numa conduta
voluntária da Administração, constitui um verdadeiro acto administrati-
vo, pois, a Administração sabe que decorrido certo prazo e sob determina-
das condições o seu silêncio será interpretado num determinado sentido,
como deferimento ou indeferimento529. É esta hoje a tese dominante.

3. O silêncio no direito comparado: direitos italiano, espanhol e


português. Formas de que pode revestir-se o silêncio da Administra-
ção.
A doutrina italiana opera a distinção entre o silêncio propriamente

Julho de 1978 modificada pela lei de 11 de Julho de 1979 estabelece um prazo de quatro
meses decorridos os quais a petição do administrado se considera rejeitada. Quando ao
direito cabo-verdiano remetemos para o capítulo “o silêncio na legislação cabo-verdiana.
Para maiores desenvolvimentos ver Diogo Freitas do AMARAL, in Direito Administrativo,
vol. III, Lisboa, 1989, pp. 261 e segs; António Furtado dos SANTOS, in Dicionário Jurídico
da Administração Pública (Acto Administrativo), Coimbra 1965, pp. 126 e segs e em
particular 131 e segs; Guido LANDI in Il silenzo della Pubblica amministrazione aspetti
sostanziali e processuali, (Intoduzione al tema) Milano, 1985, pp. 37 e segs e em particular
46 e segs; Vincenzo TODARO, Spunti innovativi... cit., pp. 555 e segs; Pietro VIRGA, in
Diritto Amministrativo atti e ricorsi 2, Milano, pp. 43 e segs; Jose Ramon Parada VASQUEZ,
in Derecho Administrativo (parte general), Marcial Pons, pp. 92 e segs; Georges VEDEL,
Pierre DELVOLVÉ, in Droit Administratif, Paris, 1982, pp. 258; André de LAUBADÉRE
in Traité de Droit Administratif, neuvième édiction par Jean Claude VENEZIA et Yves
GAUDEMET, Tome I, Paris, 1984, pp. 575.
528 Ver neste sentido Hely Lopes MEIRELLES, in Direito Administrativo ..cit. pp. 77.
529 Para maiores desenvolvimentos cf.. Freitas do AMARAL,in Direito Administrativo...
cit. pp. 271 e segs; J. M.Sérvulo CORREIA, in Noções de Direito Administrativo I, Lisboa,
1982, pp. 395 e segs.
240 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

dito e o acto tácito. VIRGA explica-a da seguinte maneira: “o silêncio con-


siste na omissão de qualquer manifestação da vontade, que, como tal, não
pode assumir nenhum significado jurídico, nem positivo, nem negativo
(qui tacet neque negat utique fatetur), pelo que deve considerar-se como um
simples facto jurídico. Para que o silêncio possa assumir um determinado
significado, constituindo uma manifestação tácita da vontade da Admi-
nistração, é necessário que a lei lhe atribua um sentido positivo ou negati-
vo (isto é, silêncio tipificado), aquele que se verifica em circunstâncias tais
que lhe confiram o significado de um acto concludente”530.
A doutrina jurídica portuguesa não faz esta distinção. Quando fo-
lheamos os manuais de Direito Administrativo à procura dos vocábulos
acto tácito ou silêncio em regra somos remetidos para um ou outro destes
termos, como que a indicar que uma coisa é sinónima da outra531 . Isto
não quer dizer que em teoria não devamos fazer a distinção entre o acto
tácito e o silêncio, aliás, claramente estabelecida nos artºs. 217º e 218º do
CC. O acto tácito é aquele que resulta de factos que com toda a proba-
bilidade o revelam, parafraseando os termos do artº. 217º in fine do CC.
Como explicam os Profs. Pires de LIMA e Antunes VARELA o que aqui
prevalece é o critério prático e social, ou seja, o que resulta da experiência
comum532. Assim se um particular requer à Administração a atribuição de
uma pensão de sobrevivência e a Administração ordena a verificação do
óbito do funcionário falecido; a verificação dos descontos legais; o paren-
tesco do requerente e outros requisitos legais e posteriormente ordena a
elaboração do respectivo título, estes factos são por si só demonstrativos
da vontade da administração em deferir a pretensão do interessado, ou
seja, da existência de um acto tácito constitutivo da referida pensão. A
Administração não precisou de expedir um acto administrativo dirigido
directamente à constituição da pensão requerida. Resulta da experiência
comum que aqueles factos integram uma vontade tácita de deferir a pre-
tensão do interessado.
Diferentemente se passam as coisas na situação do silêncio. Neste
particular encontra-se ausente a prática de qualquer facto. No dizer do
Professor Manuel de ANDRADE “é um comportamento de todo em todo
abstensivo ou negativo; é não fazer coisa alguma”533. Tal acontece quando

530 In Diritto Amministrativo... cit. pp. 43.


531 Ver entre outros Marcelo CAETANO, in Manual de Direito Administrativo cit.; Sérvulo
CORREIA, Noções de Direito Administrativo cit..
532 In Código Civil anotado, vol. I, Coimbra (1987) pp. 209. No mesmo sentido Manuel de
ANDRADE, in Teoria Geral cit. pp. 132.
533 Ob. cit. .pp. 134.
e outros escritos jurídicos 241

a Administração na situação configurada permanece inerte, comporta-se


como se desconhecesse a petição do interessado.
Existe, porém, sempre em teoria, um ponto de contacto entre o si-
lêncio e o acto tácito. Ele nos levaria muito longe, e não cabe nos limites do
presente estudo. Mas traduz-se em considerar o comportamento omis-
sivo como a prática de um facto. Neste caso, que equivale não só ao re-
gresso à problemática da natureza jurídica do silêncio, mas também aos
requisitos de que deve revestir-se para produzir efeitos de direito, tanto
o silêncio como o acto tácito resultam de factos que com toda a probabili-
dade revelam a manifestação da vontade num certo sentido. Existem, em
contrapartida, pelo menos dois pontos que separam uma e outra figura.
Ao passo que o acto tácito pode resultar de um ou mais factos, o silêncio
resulta de um único facto, qual seja o comportamento omissivo. O ou-
tro ponto de desencontro traduz-se no valor de uma e outra figura como
meio declarativo: ao passo que o acto tácito tem o valor que em qualquer
circunstância lhe pode ser atribuído pela experiência comum, o silêncio
vale como declaração de vontade só e na medida em que esse valor lhe seja
atribuído por lei. Encontramos aqui, todavia, uma diferença importante
entre a disciplina do silêncio em direito privado, onde, como vimos, são
típicos os casos pontuais em que a lei atribui ao silêncio um sentido ou ou-
tro, e a mesma disciplina da matéria em direito público onde existe uma
norma genérica atributiva do valor negativo ao comportamento omissivo
concludente e só em casos típicos pontuais atribui valor positivo a esse
mesmo comportamento.
Chegados a este ponto podemos definir o silêncio como o acto táci-
to que resulta de um comportamento omissivo da Administração a que a
lei atribui efeitos de direito seja de sentido positivo, seja de sentido negati-
vo. Por isso, temos vindo a falar e continuaremos a falar, indistintamente,
em uma ou outra figura, sem prejuízo da distinção teórica a que acabámos
de proceder.
A doutrina italiana admite que o silêncio pode assumir várias mo-
dalidades: o silêncio-acolhimento (silenzio-accoglimento) que se traduz na
situação em que “a lei atribui ao silêncio o valor de acolhimento de uma
instância”; o silêncio-rejeição (silenzio-regetto) “em que a lei confere à inér-
cia da Administração o significado de denegação do acolhimento da ins-
tância ou recurso; e o silêncio-assentimento (silenzio-assenzo) que se traduz
nas situações em que o silêncio observado pela Administração “equivale
a assentimento, isto é ao provimento positivo de controlo (autorizações,
vistos, aprovações)”534. O silêncio-assentimento é, portanto, uma modalida-

534 Cf. DELPINO e DEL GIUDICE, in Diritto Amministrativo, cit. . 380-382.


242 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

de de silêncio-acolhimento, que se distingue deste pela natureza do pedido.


Também se distinguem as modalidades de silêncio-aprovação (silenzio-apro-
vazione), silêncio-facultativo (silenzio-facoltativo), silêncio-renúncia, (silenzio-
rinuncia) e silêncio-ilícito. O silêncio-aprovação é aquele que se verifica nas
relações inter-orgânicas, como acontece na situação em que o acto de uma
autoridade está sujeito à aprovação de uma outra autoridade. DELPINO e
DEL GIUDICE citam a propósito o artº 29º da Lei 20.3.1975 nº. 70 relativo
aos actos dos entes para-estatais que se encontram sujeitos à aprovação
do ministério da tutela (ministero vigilante). Neste caso a aprovação con-
sidera-se concedida decorridos que forem noventa dias sobre a data do
recebimento do pedido. Outra é a situação prevista nos artº. 45º, 47º e 48º
da Lei 10.2.1953 nº 62 relativa às deliberações dos órgãos regionais, pro-
vinciais e comunais não sujeitos a controle de mérito as quais se tornam
exequíveis se o órgão de controle não se pronunciar sobre os mesmos de-
corridos que forem vinte dias sobre a data do recebimento do pedido. Na
situação de silêncio-facultativo “o exercício de uma particular competência
no decurso de um procedimento administrativo é meramente facultativo,
pelo que transcorrido inutilmente o termo previsto para o seu exercício
se pode proceder à execução dos actos sucessivos”. Como exemplo citam
aqueles autores o artº. 7º da Lei 3.1.1978 nº 1 que prevê em matéria de em-
preitadas (appalti) de obras públicas a exigência de determinado parecer,
estabelecendo, todavia, que a sua falta não impede a prossecussão do pro-
cedimento, o qual continua o seu iter sem ter em conta o eventual atraso
do parecer. Na situação de silêncio-renúncia extingue-se um determinado
poder da Administração se este não for exercitado dentro de um certo
prazo, como acontece, por exemplo, na situação prevista na lei urbanista
(Lei 17.8.1942, nº 1150 art. 27º) que confere à região o poder de anular a
concessão ilegítima no espaço de dezoito meses, decorridos os quais esse
poder se considera extinto caso não seja exercido. Segundo estes autores
o silêncio é ilícito “em todos os casos em que o termo para o exercício de
um poder resulta aposto no interesse do destinatário do provedimento,
pelo que o inútil decurso do termo importa a lesão de direitos subjectivos
e dá lugar ao ressarcimento de danos”535. Como se compreenderá estas
diferentes modalidades ou espécies de silêncio acabam por se reconduzi-
rem, em última instância, às modalidades de silêncio positivo ou negativo
que é o que interessa para fins do presente estudo de política legislativa.
A modalidade de silêncio-aprovação que, como vimos, opera nas relações
inter-orgânicas e bem assim as modalidades de silêncio-facultativo e silên-
cio-renúncia poderão revelar-se valiosos instrumentos na perspectiva da

535 In Diritto Amministrativo... cit. pp. 382- 383.


e outros escritos jurídicos 243

desburocratização, suprimindo actos e procedimentos desnecessários.


No que respeita ao silêncio-ilícito esta é uma característica que se liga em
regra a qualquer comportamento omissivo da Administração tendo em
conta o dever que impende sobre esta de responder às petições dos ad-
ministrados.
Também na doutrina administrativa portuguesa, em que nos filia-
mos, se distinguem duas modalidades de acto tácito já várias vezes referi-
das: o acto tácito negativo, pelo qual ao comportamento omissivo da Admi-
nistração face à petição de um particular se atribui o sentido de indeferi-
mento; e o acto tácito positivo, nos termos do qual a esse comportamento se
atribui o sentido de deferimento da pretensão do interessado536.
Sendo certo que o nosso estudo visa, senão combater, pelo menos
aliviar os efeitos perniciosos do indeferimento tácito, importa realçar em
um e outro ordenamento as situações em que a lei atribui efeitos positivos
ao silêncio da Administração. Em Itália o silêncio tem o sentido de aco-
lhimento relativamente aos pedidos de inscrição de empresa artesanal (art.
9 da lei 25.7.1956 nº. 860); autorização para projecção e exportação de obra
cinematográfica (Lei 21.4.1962 nº 161); autorização provisória para descar-
ga em águas públicas (Lei nº 319 DE 10 de Maio de 1976); autorização para
construir ou recuperar habitações (Lei de 31. 12.1984); todas as autorizações
e vistos relativos às concessões para edificação; aprovação das deliberações das
entidades locais sujeitas a controle de mérito (Lei 20.31975); instalação ou
ampliação de indústria (Lei 27.5.1975); autorização para o comércio de mineral
e matéria radioactiva; produção, transporte e distribuição de energia eléctrica;
exportação de produtos horto-frutículos; planos de saneamento financeiro de em-
presas produtivas, desagravo de bens confiscados na sequência da aplicação de
sanções pecuniárias administrativas; licenças para a gestão de fundos comuns de
investimento537.
Em Espanha a Lei do Procedimento Administrativo estabeleceu no seu
art. 95º:
“O silêncio se entenderá positivo, sem denúncia de mora, quando
assim se estabeleça por disposição expressa ou quando se trate de auto-

536 Cf., por todos, Freitas do AMARAL, in Direito Administrativo cit. vol. III, pp. 262-263.
537 Estas informações foram possíveis com o concurso das seguintes obras: L. DELPINO/
DE GIUDICE, Diritto Amministrativo... loc. cit; Aldo M. SANDULLI, in Manuale di Diritto
Amministrativo XIV edizione, Napoli, 1984, pp. 652 e segs e, em particular, 655;Guido LANDI,
in Il silenzio...(introduzione al tema)... cit. pp. 51 e segs; Aldo SANDULLI, in Il silenzio... cit
(il silenzio della publica amministrazione oggi: aspetti sostanziali e processuali) pp. 7071;
Giuseppe ABBRAMONTE, Il silenzio...cit (silenzio rifiuto e processo amministrativo), pp
145146; Francesco BRIGNOLA, in Il silenzio... cit. (il silenzio-assenso) pp. 285 e segs e em
particular 304 e segs.
244 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

rizações ou aprovações que devam acordar-se no exercício de funções de


fiscalização e tutela dos órgãos superiores sobre os inferiores. Se as dispo-
sições legais não previrem para o silêncio um prazo especial, este será de
três meses a contar da petição”.
O direito espanhol concentra neste preceito uma parte importante
do que temos vindo a escrever sobre o silêncio positivo nas legislações.
Regula a situação do silêncio nas relações inter-orgânicas, o silenzio-apro-
vazione da doutrina italiana. Entre as leis consultadas trata-se da única, ao
lado da portuguesa, como veremos, que estabelece um preceito genérico
sobre o acto tácito positivo. Todas as demais legislações adoptaram nor-
mas específicas para regular casos específicos.
Foi esta circunstância que possibilitou a adopção de uma norma
deste teor, visto que ficam esconjurados os perigos que resultariam para
a Administração se tal norma abrangesse as relações entre estas e os par-
ticulares. O prazo nele previsto mau grado seja o geral afigura-se-nos,
todavia, extremamente longo. Três meses correspondem a 1/4 de um
ano, tempo demais para se verificar se uma certa petição pode ser ou não
deferida, mormente tratando-se de matéria que interessa directamente à
Administração em sentido orgânico. Registe-se, todavia, o ponto de vista
de que o prazo para a formação do acto tácito, seja positivo, seja negativo
pode variar tendo em conta a importância e a natureza da petição, como
aliás já é norma no direito italiano. Neste ordenamento existem situações
em que o acto tácito positivo se forma num período de dez dias.
Em Portugal o art. 56º § 6º do Código Administrativo previa, à se-
melhança da construção doutrinária de DELPINO e DEL GIUDICE, uma
situação de silêncio tácito positivo de aprovação quanto à aprovação de pos-
turas e deliberações das câmaras municipais, estabelecendo que, se den-
tro do prazo de trinta dias não fosse publicada portaria concedendo ou
negando a aprovação esta se considerava concedida. O art. 100º § 2º con-
tinha disposição semelhante, mas ambas se encontram hoje revogadas.
A legislação portuguesa prevê, todavia, outras situações de deferimento
tácito. Assim, as deliberações camarárias relativas à realização de obras
ou melhoramentos facultativos ou obrigatórios tornam-se executórias se
dentro do prazo de trinta dias a contar da data da sua apresentação ao
Governo este não lhes opuser o seu veto. Nos termos do nº 3 do art. 2º do
DL nº 166/70, de 15 de Abril “a falta de aprovação sobre os projectos (no
âmbito do licenciamento municipal) no prazo do trinta dias após aquele
em que for recebido o ofício da remessa interpreta-se como consentimen-
to”. De igual modo no âmbito do loteamento urbano “ se o loteamento for
requerido para zonas de construção urbana previstas em plano ou ante-
plano de urbanização aprovado e obedecer às condições exigidas nos seus
e outros escritos jurídicos 245

traçados e regulamentos... neste caso os pedidos consideram-se deferidos


se a câmara municipal sobre eles não se pronunciar no prazo de 90 dias”,
conforme se estipula no artº. 2º do DL nº 46 673, de 29 de Novembro de
1965. Estas e outras situações de deferimento tácito encontram-se hoje
consubstanciadas no art. 108º do Código do Procedimento Administrati-
vo que passamos a citar:

“1. Quando a prática de um acto administrativo ou o exercício de um


direito por um particular dependam de aprovação ou autorização de um órgão
administrativo, consideram-se estas concedidas, salvo disposição em contrá-
rio, se a decisão não for proferida no prazo estabelecido por lei.

2. Quando a lei não fixar prazo especial, o prazo de produção do de-


ferimento tácito será de 90 dias a contar da formulação do pedido ou da apre-
sentação do processo para esse efeito.

3. Para os efeitos do disposto neste artigo, consideram-se dependen-


tes de aprovação ou autorização de órgão administrativo, para além daqueles
relativamente aos quais leis especiais prevejam o deferimento tácito, os casos
de:
a) Licenciamento de obras particulares;
b) Alvarás de loteamento;
c) Autorizações de trabalho concedidas a estrangeiros;
d) Autorizações de investimento estrangeiro;
e) Autorizações para laboração contínua;
f) Autorizações de trabalho nocturno;
g) Acumulação de funções públicas e privadas.

4. Para o cômputo dos prazos previstos nos nºs. 1 e 2 considera-se


que os mesmos se suspendem sempre que o procedimento estiver parado por
motivo imputável ao particular”.

Esta disposição é ainda mais inovadora que o art. 95º da Lei do


Procedimento Administrativo espanhol, pois não se limita a adoptar uma
norma genérica reguladora de situações de deferimento tácito nas rela-
ções inter-orgânicas, contida na expressão “quando a prática de um acto
administrativo ... dependa da autorização de um órgão administrativo”
mas aventura-se mesmo na tentativa de adopção de uma norma genérica
que regule, no sentido do deferimento tácito, certos aspectos das relações
entre a Administração e os particulares. Estes aspectos a lei recorta-os no
domínio dos direitos subjectivos, exactamente aqueles que dependem de
246 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

aprovação ou autorização de um órgão da administração. Porém, à caute-


la, mesmos estes não estão isentos de limitações pois a lei que estabelece
a necessidade de autorização pode fixar norma em sentido contrário. Seja
como for, esta disposição é francamente inovadora, pois, como vimos, as
legislações consultadas se limitam a regular casos pontuais de deferimen-
to tácito, sem se aventurarem na adopção de uma disposição genérica.
A ratio do preceito afigura-se-nos compreensível. Quanto às rela-
ções inter-orgânicas trata-se da necessidade de suprimir procedimentos
e aliviar o peso da burocracia particularmente no âmbito de relações no
interior da Administração. Quanto ao exercício de direitos subjectivos
dependentes de autorização ou aprovação por parte dos particulares
prende-se com a necessidade de não se limitar indevidamente ou tornar
penoso o seu exercício mediante um sistema de indeferimento tácito que
obrigue a recursos hierárquicos e, eventualmente, contenciosos muitas
vezes não queridos pela própria Administração. Esta norma merece o
nosso aplauso na medida em que vem viabilizar o exercício efectivo de
direitos subjectivos antes passíveis de abandono em virtude da inércia
da Administração ou das condicionantes de natureza burocrática. Certo
é que a doutrina portuguesa irá encontrar alguma dificuldade no esforço
de delimitação do que sejam “direitos subjectivos dependentes de apro-
vação ou autorização” 538 mas este é um esforço que se impõe em qualquer
actividade exegética, particularmente em matérias tão inovadoras como
a ora disciplinada. Só é de se lamentar que o prazo para a formação do
acto tácito de deferimento seja tão longo (90 dias ) o que torna esta norma
sujeita às mesmas críticas que endereçamos ao art. 95º da Lei espanhola
do Procedimento Administrativo. Assim, supondo que um funcionário
requer à Administração autorização para acumular funções públicas e
privadas, um dos casos de direito subjectivo, cujo exercício depende de
autorização, previsto no nº 3 do art. 108º em análise. Supondo ainda que
a lei não estabelece nenhum prazo especial para a formação do acto tácito
positivo. Isto significa, de duas uma: ou a Administração se pronuncia
no sentido do deferimento ou indeferimento da autorização antes dos
noventa dias, prazo supletivo para a formação do acto tácito ou então o
particular tem de aguardar que decorram os referidos noventa dias para
saber que a sua pretensão foi deferida. Em tal situação é quase certo que
o particular irá pressionar a Administração para decidir a sua pretensão

538 Pense-se, por exemplo, no direito ao horário flexível reconhecido pela Lei nº º 4/84,
de 5 de Abril, regulamentada pelo DL nº 135/85, de 3 de Maio, conhecida por LEI DA
PROTECÇAO DA MATERNIDADE E DA PATERNIDADE. O exercício desse direito
depende do acordo entre o responsável do serviço e o funcionário interessado. Poder-
se-á considerar que se trata de um direito dependente de autorização ou aprovação?
e outros escritos jurídicos 247

antes dos referidos noventa dias e normalmente o fará visto que a autori-
zação para a acumulação de funções públicas em regra não requer muitos
actos instrutórios. Esta circunstância torna a norma do art. 108º nº 3 al. g)
praticamente inútil na medida em que as condicionantes em que se desen-
rola o processo de autorização para a acumulação de funções públicas e
privadas retiram-lhe toda a operacionalidade. O mesmo se dirá de outras
situações previstas no nº. 3 do referido art.. 108º, como seja a autoriza-
ção para laboração contínua e a autorização de trabalho nocturno. A isto
acresce o facto de toda a burocracia que se pretendeu aliviar com a norma
ser substituída por um outro mecanismo de travão ele também de ordem
burocrática qual seja a atitude intelectual mantida na convicção de que
naquela situação concreta a Administração não deve sequer preocupar-se
com o dever de resposta à pretensão do interessado, visto que, a termo
certo, essa mesma pretensão será deferida por força de lei. Este é um peri-
go que uma disciplina desse teor oferece, sem prejuízo do quanto se disse
a favor dessa mesma regulamentação. Compreende-se, todavia, a dificul-
dade de adopção de um prazo supletivo para a formação do acto tácito de
deferimento. Na verdade, assim como há pretensões cujo iter processual
em vista da sua resolução se esgota na prática de um único acto, logo
num mínimo espaço de tempo, outras há que requerem uma sequência
de actos, por vezes em número não previsível, cuja resolução perdura
por isso no tempo. O regime jurídico do deferimento tácito não pode ser
alheio a este aspecto dada a necessidade de assegurar à Administração
um prazo razoável para a apreciação e eventual decisão da pretensão
que lhe é submetida. Se o tempo necessário para a formação do acto tácito
positivo deve atender a esse prazo razoável, então o razoável, na falta de
norma expressa, para pretensões de diferente iter processual, é aquele que
atende à pretensão cuja resolução se esgota no maior número de actos.
Esta é a razão que determinou a fixação do longo prazo de noventa dias
para a formação do acto tácito positivo naquelas situações que o art. 108º
nº 3 enumera, onde ficam consumidas pretensões que poderiam ser consi-
deradas deferidas num prazo de 10 ou pouco mais dias.
Como veremos mais adiante, este problema poderá ser solucionado
ou estabelecendo diversos prazos para a formação do acto tácito positivo,
consoante a natureza da pretensão do particular, ou impondo a este o
ónus de colaborar na formação do acto tácito positivo. A primeira situa-
ção é comum nas legislações, e não é alheio ao pensamento do legislador
do CPA português, que atribuiu aos noventa dias natureza claramente
supletiva, ou seja, o referido prazo só opera na falta de norma em sentido
contrário. A segunda situação, algo inovadora, traduz-se em conceder ao
particular a possibilidade de, em certas matérias, e dentro dos limites que
a lei estabelecer, fixar à Administração o prazo dentro do qual a preten-
248 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

são se considera resolvida em sentido positivo. Assim, se uma empresa


requer à Administração autorização para laboração contínua, pode, neste
mesmo requerimento, mencionar que, decorridos 30 dias sem a Admi-
nistração se pronunciar sobre o assunto, a sua pretensão se considera re-
solvida em sentido afirmativo. Esta é uma pretensão que se enquadra no
grupo dos já referidos direitos subjectivos cujo exercício depende de apro-
vação ou autorização. Por isso que não existe qualquer inconveniente na
adopção de um regime deste teor. O particular não tem o dever mas sim
o ónus da indicação do prazo e deverá fazê-lo dentro dos limites mínimos
e máximos que a lei fixar. Este prazo assinado pelo particular só vincula a
Administração, por um lado, se estiver dentro dos limites legais e, por ou-
tro, se a Administração, de forma tácita ou expressa aceitar o prazo fixado
pelo particular. Neste caso, a Administração pode fazê-lo de dois modos:
alargando o prazo assinado ou dizendo, simplesmente, que não aceita o
prazo fixado, pelo que a pretensão cai sob a alçada do regime normal. Um
regime deste teor permite à Administração ter perfeito controlo da situa-
ção, sem que se possa alegar ausência de protecção do interesse público.
Mas este é um ponto que, como dissemos, retomaremos adiante.

* * *

Esta breve análise do direito comparado permite-nos extrair as se-


guintes conclusões:
a) Todas as legislações são unânimes em atribuir efeitos de direi-
to ao silêncio da Administração, seja de sentido positivo, seja de sentido
negativo.
b) Como regra o acto tácito tem o sentido de indeferimento da pre-
tensão do interessado.
c) Ao acto tácito é atribuído o sentido de deferimento da pretensão
quando assim seja estabelecido por norma expressa.
d) Em regra o deferimento tácito é estabelecido caso a caso, mas
os Códigos de Procedimento Administrativo espanhol e português esta-
beleceram normas genéricas, para regular os casos de deferimento, em
dois casos: nas relações inter-orgânicas e no que respeita ao exercício de
direitos subjectivos dependentes de autorização ou aprovação.

4. O silêncio na legislação cabo-verdiana.

a) O Regimento do Conselho Superior das Colónias.

O Regimento do Conselho Superior das Colónias, aprovado pelo


Decreto nº. 17:759, de 14 de Dezembro de 1929, parece ter sido o primeiro
e outros escritos jurídicos 249

diploma a regular o silêncio da Administração, para as antigas colónias


portuguesas de que Cabo Verde fazia parte. Dispunha o art. 58º deste di-
ploma:
“Para efeitos de recurso considera-se indeferido o requerimento,
representação, reclamação ou outra exposição escrita equivalente que
não seja de carácter meramente particular e sobre que a autoridade tenha
deixado de despachar no prazo de quarenta dias contados da entrada na
respectiva secretaria”.
A norma mencionava ainda duas situações em que as petições não
se consideravam despachadas: uma dizia respeito à menção “pendente” (§
1º), ainda hoje usual nos procedimentos; outra relativa aos despachos não
averbados “em livro de porta ou noutro registo acessível ao público, de
publicação oficial por algum modo ou de notificação ao interessado”. Em
tais casos a petição não se considerava despachada, formando-se o acto
tácito, para efeitos de recurso. Observe-se, todavia, que apesar do estabe-
lecido no § 1º deste art. 58º, sentenças houve na vigência da Reforma Ad-
ministrativa Ultramarina - RAU no sentido de que um requerimento que
obtém um despacho “pendente” deve considerar-se como despachado539
para efeito de recurso. Esta sentença obteria, contudo, um voto de vencido
ao encontro do art. 58º § 1º do Regulamento do CSC no sentido de que
“despacho quer dizer resolução. E pendente é quando muito o adiamento
da resolução”540.
O que importa reter, contudo, é a consagração, ao que parece pela
primeira vez, do princípio de que o silêncio da Administração face à pre-
tensão de um particular tem valor negativo, ou seja, a Administração re-
cusa dar provimento a essa mesma pretensão. Observe-se ainda que a este
sentido atribuído ao silêncio estava intimamente ligada a ideia de recurso.
O art. 58º dispunha expressamente que esse regime se destinava “para
efeitos de recurso”, donde o afastamento in limine da querela no sentido
de saber se o acto tácito podia ou não ser objecto de impugnação conten-
ciosa541.
Um outro aspecto do regime do Regimento do CSC que importa
aqui realçar está contido no § 2º do art. 58º. Resulta desta disposição que
se por alguma razão a decisão tomada não for acessível ao público ou
não chegar ao conhecimento do seu destinatário, ainda que essa decisão
exista, a petição tem-se por indeferida, para efeitos de recurso. Acolhe-se

539 cf.. Ac. do Trib. Adm. da Índia de 6 de Janeiro de 1939 cit. por Jaime TOMÉ, in Notas
às Leis Fundamentais do Império Colonial Português, Luanda, 1940, pp. 569-570.
540 Cit. por TOMÉ, ob. loc. cit..
541 Sobre este ponto ver Marcelo CAETANO, in O Direito, ano 68º nº 4, pp. 114.
250 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

assim, em sede administrativa o princípio segundo o qual uma declaração


de vontade só é eficaz na medida em que chegue ao conhecimento do seu
destinatário.
Quando por algum motivo tal não se verifica, tudo se passa como
se nenhuma decisão tivesse sido produzida.

b) A Reforma Administrativa Ultramarina - RAU

O regime contido no art. 58º do Regimento do CSC transitou para


os artº. 348º e 349º da RAU com algumas alterações que passamos a refe-
rir. O prazo para a formação do acto tácito foi significativamente redu-
zido para 20 dias posteriores àquele em que os requerimentos, petições
ou exposições tiverem dado entrada na direcção, repartição ou secreta-
ria “se outro prazo não estiver estabelecido na lei para caso especial”. A
RAU continha igualmente uma solução para a formação do acto tácito
decorrente das deliberações dos corpos administrativos, e estabelecia que,
neste caso, o prazo de 20 dias ia até ao encerramento da primeira sessão
seguinte ao da entrada dos requerimentos, petições, exposições ou preten-
sões. Uma outra inovação estabelecida pela RAU dizia respeito à respon-
sabilização por perdas e danos dos funcionários que não observassem os
prazos estabelecidos.

c) O Estatuto do Funcionalismo Ultramarino - EFU

O EFU não trouxe alterações significativas nesta matéria, salvo no


que respeita ao prazo necessário para a formação do acto tácito que sofreu
uma elevação significativa. Nos termos do art. 489º o prazo para a reso-
lução dos requerimentos e petições é em regra de trinta dias. Todavia, só
se forma o acto tácito de indeferimento quando os interessados requerem
certidão dos despachos que couberem aos requerimentos e petições (ou
da falta deles) e, na medida em que, no prazo de 8 dias, não haja resposta
desta solicitação, os requerimentos e petições consideram-se indeferidos
para efeitos hierárquicos e contenciosos. Ou seja, o EFU manda adoptar
face ao regime contido no Regimento do CSC e na RAU um procedimento
acrescido: o interessado deve, antes de considerar que a sua pretensão foi
indeferida, solicitar certidão do eventual despacho que coube ao requeri-
mento ou petição. Só na medida em que este último requerimento não seja
respondido dentro do prazo de oito dias é que se considera o primeiro re-
querimento indeferido para efeitos hierárquicos ou contenciosos. Note-se
que assim sendo o prazo para a formação do acto tácito torna-se em certa
medida variável. De facto, estabelecendo a lei que o requerimento com
e outros escritos jurídicos 251

vista à obtenção de certidão comprovativa de despacho do primeiro re-


querimento ou petição possa ser feito dentro dos 60 dias imediatos à con-
clusão dos 30 dias necessários para a resolução definitiva, a que se acresce
o tempo necessário para o transporte postal, resulta que, dependendo da
diligência do interessado, a formação do acto tácito podia formar-se tanto
no 38º dia, como no 98º dia. Esta é uma solução que se presta a críticas,
antes de mais por obrigar as partes a depositar dois requerimentos todos
eles susceptíveis de nenhuma resposta da Administração e, por outro, em
virtude de se ter que esperar, por vezes até 4 meses, para a formação do
acto tácito, o que do ponto de vista do interesse nacional representa um
considerável atraso. Bem andou, pois, o legislador que nas alterações pos-
teriores deste regime suprimiu a necessidade de segundo requerimento
sujeito, ele próprio ao indeferimento tácito, e à redução considerável do
prazo para 30 dias, como veremos já de seguida.

d) O DL 14-A/83, de 22 de Março.

Mau grado a forma simples como foi redigido o nº 2 do art. 22º


do DL nº 14-A/83, de 22 de Março, este diploma trouxe algumas altera-
ções de relevo na disciplina jurídica do acto tácito. Por um lado, suprimiu
a necessidade de obtenção de certidão comprovativa ou infirmativa de ter
sido ultrapassado o prazo legal de decisão, exigência que, como vimos foi
introduzida pelo EFU e, por outro, como que procurando um ponto de
equilíbrio entre as consequências do afastamento dessa exigência e a ne-
cessidade de o prazo legal não ser demasiado longo, reduziu para sessenta
dias o tempo decorrido o qual os requerimentos que não obtiverem resposta
da Administração se consideram indeferidos. Ao afastar a necessidade de
certidão comprovativa de despacho ou de falta dele o legislador extrai, no
plano processual, a consequência de que a petição de recurso será instruída
unicamente com a cópia do requerimento na qual tenha sido passado recibo
pelos serviços onde deu entrada o original ou na sua falta com qualquer
documento comprovativo da entrega do requerimento.

e) O silêncio positivo.

A legislação cabo-verdiana contém hoje algumas manifestações de


atribuição do sentido positivo ao silêncio da Administração. Tratam-se de
situações pontuais, sendo certo que, tal como acontece na generalidade
dos países, o legislador cabo-verdiano não se aventurou na adopção de
uma norma genérica atributiva de sentido positivo ao silêncio da Admi-
nistração. Recordemos alguns casos.
252 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Os pedidos de renovação de licenciamento comercial consideram-


se deferidos tacitamente se a Administração não se pronunciar sobre eles
no prazo de 45 dias (art. 19º do Decreto nº 60/86, de 23 de Agosto). Os
contratos de empreitada de obras públicas, empréstimos, concessões, for-
necimento ou outros actos de natureza administrativa não relativos ao
pessoal consideram-se visados pelo Tribunal de Contas se este não se pro-
nunciar sobre eles no prazo de 30 dias ( art. 9º do DL nº 46/89, de 26 de
Junho). De igual modo a Lei nº. 99/IV/93, de 31 de Dezembro que apro-
vou o regime jurídico da Empresa Franca estabeleceu, relativamente ao
requerimento com vista à sujeição a este regime, que, na falta de resposta,
o mesmo se considera deferido tacitamente, decorridos que forem 30 dias
sobre a data de entrada do requerimento.
À semelhança do CPA administrativo e certamente inspirado nes-
te código, o Decreto-Lei nº 51/93, de 30 de Agosto veio estabelecer um
conjunto de situações em que ao silêncio da Administração é atribuído o
sentido de deferimento tácito. Às situações previstas no CPA português
este diploma veio acrescentar mais as seguintes: autorização para o exer-
cício da actividade privada remunerada por agentes da Administração
Pública; licenciamento comercial, renovação de alvarás para comércio;
concessão de licenças aos agentes da Administração Pública e autorização
para a instalação de unidades industriais [art. 3º als. g) a l)].
A solução adoptada por este diploma suscita-nos algumas reservas.
Desde logo o prazo supletivo estabelecido para a formação do acto tácito
positivo de trinta dias. Na verdade, como já vimos a propósito do art. 108º
do CPA português, em rigor o prazo supletivo para a formação do acto
tácito positivo é aquele que resulta não da média, mas sim do máximo do
número de actos processuais. Isto em consideração, emerge imediatamen-
te a conclusão de que o prazo de trinta dias pode em alguns casos revelar-
se manifestamente insuficiente. Assim, supondo que alguém requer uma
autorização para a instalação de uma unidade industrial, situação previs-
ta na alínea l) do art. 3º deste diploma. O simples facto de se dever proce-
der ao estudo do impacto ambiental irá consumir, irremediavelmente, os
trinta dias dentro dos quais se formará o acto tácito positivo, numa altura
em que a Administração ainda está perfeitamente alheia às condicionan-
tes que rodeiam a instalação daquela indústria. É claro que o diploma
prevê a possibilidade de suspensão do referido prazo (art. 3º nº 2). Mas
esta só ocorre em virtude de comportamento “imputável ao particular”,
donde resultam excluídos os comportamentos ou actos objectivamente
necessários e bem assim os actos imputáveis à Administração. Esta mes-
ma questão pode colocar-se relativamente ao licenciamento comercial,
pelas diligências prévias que poderá justificar. Além disso, o diploma não
e outros escritos jurídicos 253

estabelece nenhum mecanismo de controlo da suspensão do prazo. Este


ocorre, certamente, no momento em que se verifica o motivo imputável ao
particular e cessa igualmente quando cessar esse motivo. Mas se subsisti-
rem dúvidas sobre a exactidão desses dois momentos o diploma não pre-
vê nenhum mecanismo para suprir a incerteza. Como veremos adiante,
propomos igualmente um prazo supletivo de trinta dias para a formação
do acto tácito positivo, prevendo, contudo, meios seguros de alteração
desse prazo, quando razões objectivas ou subjectivas a justificarem.

5. O Acto tácito de indeferimento. Efeitos económico-sociais.

O silêncio é responsável por atrasos consideráveis na Administra-


ção Pública. Pode mesmo dizer-se que o silêncio constituiu-se em factor
de paralisia do desenvolvimento nacional, tantas são as petições e reque-
rimentos dos administrados que ficam sem resposta da parte da Admi-
nistração. Não nos foi possível calcular a percentagem das petições e re-
querimentos que, por uma razão ou outra não obtiveram a resposta da
Administração, mas a experiência nos diz que ela poderá rondar em 50%
do total das petições e requerimentos entrados.
No plano individual os efeitos negativos do silêncio são deveras
preocupantes. Um inquérito na função pública revelaria prejuízos incal-
culáveis a quantos funcionários ficaram irremediavelmente prejudicados
na sua carreira em virtude de não terem sido respondidas as suas peti-
ções. O mesmo se dirá de outros requerimentos dirigidos ao exercício de
actividades ligadas à pesca, ao turismo, à indústria, cujos prejuízos só um
inquérito poderia revelar. Tal acontece porque a Administração se escuda
hoje no seu próprio silêncio, não respondendo às petições, umas vezes por
insuficiência de pessoal, outras vezes por mera negligência, mas outras
vezes ainda fazendo o silêncio funcionar como sanção relativamente a pe-
tições que considera indesejáveis. Sendo certo que a consequência normal
do silêncio é a via do recurso, este, seja na sua forma de recurso hierárqui-
co, seja na forma de recurso contencioso, e em particular nesta última mo-
dalidade, envolve consideráveis dispêndios de tempo e dinheiro muitas
vezes perfeitamente desnecessários. Pense-se, por exemplo, numa petição
com vista ao estabelecimento de uma indústria, indeferida tacitamente,
unicamente porque se extraviou o requerimento do interessado. Se a au-
toridade ad quem é a última instância de recurso gracioso, vai obrigar o
particular a intentar um recurso contencioso, com as inerentes consequên-
cias em perda de tempo e dinheiro, para exercer um direito que a própria
Administração concorda e tem interesse em que seja exercido.
254 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

6. Sentido a imprimir ao valor do silêncio da Administração.

No estádio actual das relações entre a Administração Pública e


os administrados se é questionável a inversão pura e simples do senti-
do a atribuir ao silêncio da Administração, não é menos questionável a
manutenção da solução actual, do indeferimento tácito, pelo menos em
toda a sua pureza, pelas consequências que daí resultam. As conclusões
que extraímos do direito comparado irão orientar-nos de ora em diante
na apresentação do que se nos afigura dever ser o sentido a imprimir à
disciplina do silêncio da Administração. Fá-lo-emos, desde já, de forma
articulada acompanhado, sempre que necessário, da respectiva memória
justificativa.

Artº. 1º

1. Com vista a facilitar procedimentos, os serviços públicos elaborarão e


colocarão, gratuitamente, à disposição dos interessados, modelos de formulários
relativos a requerimentos e petições sobre matéria da sua esfera de competência.
Tais modelos conterão, além dos requisitos legais formais e substanciais necessá-
rios para satisfazer a pretensão em causa, todas as informações necessárias com
vista a facilitar a comunicabilidade entre a Administração e o particular, tais
como o código telegráfico e os números de telefone, telex ou telefax.
2. Salvo tratando-se de formulários adoptados por lei, os modelos referidos
no número anterior não são vinculativos para os interessados que poderão elabo-
rar, por si ou por interposta pessoa, as suas petições e requerimentos, desde que
obedeçam aos requisitos legais.
3. Nenhum funcionário pode recusar receber ou dar seguimento a uma
petição ou requerimento a pretexto de não se mostrar conforme com os modelos
adoptados pelo serviço a que respeita, salvo tratando-se de modelo prescrito por
lei.
4. A Direcção Geral da Administração Pública velará para que os serviços
e organismos do Estado elaborem os modelos de requerimentos a que se refere o
nº 1 deste artigo.
5. A Direcção Geral da Administração Pública constitui-se depositária de
todos os modelos de formulários elaborados pelos mais diversos serviços do Estado
e promoverá a sua verificação com as prescrições legais e publicação sob a forma
de Manual de Formulários da Administração Pública.

Justificação: Este artigo não carece de demorada explicação. Trata-se


apenas de dar forma legal àquilo que já é prática em alguns serviços
do Estado e é em alguns casos previsto nas leis em vigor. O que
e outros escritos jurídicos 255

tem de inovador é a possibilidade que cria de se consubstanciar


num único manual todos os formulários da Administração Pública,
facilitando os procedimentos. Pode questionar-se o porquê da sua
inserção num diploma destinado a regular o silêncio da Adminis-
tração Pública. A explicação é simples: o silêncio é também um pro-
blema burocrático, cuja solução passa por facilitar a comunicabili-
dade entre a Administração e os particulares. Note-se que o silêncio
traduz, em rigor, na ausência de comunicação. Este artigo pretende
tornar mais fácil essa comunicação impondo àquela que se encon-
tra melhor preparada tecnicamente o dever de organizar e colocar à
disposição dos interessados os formulários relativos a requerimen-
tos e petições que gravitam na sua esfera de competência.
Aproveita-se igualmente para modernizar os meios de comunica-
ção entre a Administração e os particulares, possibilitando a notifi-
cação por telegrama, telefone, telex ou telefax, como já é, aliás, nor-
ma no direito comparado. cf. art. 70º do CPA português. Todavia,
é necessário esclarecer que, salvo os casos em que a lei fixa obriga-
toriamente um modelo de formulário a seguir, caso em que deverá
ser respeitado, sob pena de ilegalidade, os demais modelos não são
vinculativos, isto é, o particular não está inibido de fabricar os seus
próprios modelos, desde que contenham os requisitos legais. Por
isso, se estabelece nos nº 2 e 3 que nestes últimos casos nenhum fun-
cionário pode recusar receber e dar seguimento as petições entra-
das a pretexto de não se mostrarem conformes com as prescrições
legais. A norma tem pertinência visto que é comum, pelo menos
em Portugal, a recusa pelas secretarias das repartições de petições,
unicamente por não se mostrarem conformes com os formulários
adoptados, independentemente de estarem ou não conformes com
as prescrições legais.

Artº. 2º

1. Os serviços públicos estão vinculados a responder dentro dos prazos


legalmente estabelecidos todas as petições e requerimentos dos particulares que
obedeçam aos termos legais e sejam dirigidos à entidade competente.
2. Quando outro prazo não resulta da lei ou regulamento, a resposta a que
se refere o número anterior não poderá ultrapassar 30 dias.
3. Se a resposta à petição do interessado requerer um estudo prévio, desse
facto ser-lhe-á dado conhecimento, em prazo não superior a 10 dias, com a indi-
cação da entidade, serviço ou funcionário encarregado de fazer o referido estudo
e bem assim do prazo previsto para a sua conclusão. Esta informação poderá ser
256 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

prestada por nota ou ofício, telefone, telegrama, telex, telefax ou outro meio válido
de comunicação.
4. Quando o serviço público fizer uso do telefone ou outro meio de comu-
nicação não sujeito a registo e o particular manifestar interesse em que a mesma
informação lhe seja prestada por outro meio, proceder-se-á em conformidade, fa-
zendo referência ao meio, data e conteúdo da primeira comunicação.

Justificação: O número 1 deste artigo estabelece o dever de respos-


ta, que em algumas legislações tem dignidade constitucional. No
nosso direito pode inferir-se nomeadamente do Artº. 15º da Cons-
tituição que responsabiliza o Estado e seus agentes pelos actos e
omissões, donde resulta a contrario um dever de acção, ou seja, um
dever de resposta às petições e requerimentos endereçados à Ad-
ministração. Não se trata de uma disposição nova no nosso direito
administrativo. A RAU estabelecia, como vimos, no seu artº. 348º
a obrigação de resolver, remeter ou submeter a quem de direito os
requerimentos, petições, exposições ou pretensões nos vinte dias
posteriores à sua entrada nos serviços, sob pena de responsabilida-
de disciplinar e civil. Idêntica disposição está hoje contida no artº.
489º do EFU que apenas elevou esse prazo para 30 dias, acrescidos
do tempo necessário para o transporte postal. O dever de resposta
não está portanto alheio ao nosso direito. Se trata neste projecto de
lhe dar apenas um novo alento, particularmente quando se preten-
de disciplinar, ou se se quiser, redisciplinar o regime jurídico do
silêncio da Administração, que constitui o modo mais flagrante de
violação desse dever.
Afigurou-se-nos de manter o prazo de trinta para resolução defi-
nitiva dos requerimentos e petições, com a consciência, todavia,
de que algumas petições requererão menos tempo para a sua re-
solução e, outras, mais tempo. Quanto a estas últimas admite-se a
possibilidade de o respectivo prazo de resolução ser alongado me-
diante comunicação prévia dirigida ao interessado, com a indica-
ção da data prevista para a resolução. Este afigura-se-nos constituir
o primeiro passo no que pretende ser a inovação deste projecto:
diminuir no máximo ou mesmo acabar com os estrangulamentos
de comunicação entre a Administração e os particulares a que es-
tão associadas outras medidas, como veremos, que estabelecem o
ónus de colaboração do particular com a Administração. Até agora
nenhuma norma legal impunha à Administração o dever de infor-
mar o particular dos actos interlocutórios que implicam delongas
de procedimento e conduzem à formação do acto tácito negativo
e outros escritos jurídicos 257

muitas vezes não querido pela própria Administração. Uma norma


deste teor irá impedir a formação do acto tácito nas situações em
que não é desejável, sem grandes delongas burocráticas, visto que
a Administração pode socorrer de um dos meios de comunicação
previsto neste artigo.

Artº 3º

1. Todos os serviços públicos estão igualmente vinculados a encaminhar,


em prazo não superior a cinco dias, para o serviço competente as petições e reque-
rimentos sobre matéria não inscrita na sua esfera de competência, dando conheci-
mento desse facto ao particular interessado.
2. Quando em razão das normas de procedimento for manifesto que o re-
querimento não poderá ter seguimento, desse facto será dado conhecimento ao
interessado, prestando-lhe, todavia, todas as informações necessárias para enca-
minhar e fazer valer a sua pretensão.

Justificação: Esta norma visa combater o desleixo na Administração


Pública estabelecendo a obrigatoriedade de a Administração cola-
borar com o particular na realização dos seus interesses individu-
ais. Por vezes acontece que um particular, desconhecendo as regras
de competência ou procedimento, encaminha indevidamente uma
determinada pretensão. Quando assim acontece alguns serviços
deixam morrer na gaveta o requerimento, lesando, por vezes, o in-
teressado. Trata-se de um desleixo manifesto e antipatia para com
o particular que é necessário combater. A norma propõe-se fazê-
lo de uma de duas maneiras: impondo, por um lado, aos serviços
a obrigação de encaminhar para o serviço competente as petições
e requerimentos que indevidamente lhe forem endereçadas e, por
outro, esclarecendo o particular, nas situações em que o requeri-
mento não pode prosseguir, qual o melhor modo realizar a sua pre-
tensão.
Esta norma não é uma inovação. O CPA português regula a mesma
questão no seu art. 34º, porém, com algumas diferenças. Por um
lado, exige erro desculpável por parte do particular, como requisito
para o encaminhamento da sua pretensão para o órgão competente,
o que se nos afigura uma exigência dispensável, pois deve presu-
mir-se a desculpabilidade desse erro, ou pelo menos ignorância da-
quele quanto ao procedimento a seguir. Por outro, apenas permite
a remessa do requerimento para o órgão competente, se esse órgão
pertencer ao mesmo ministério ou à mesma pessoa colectiva, o que
258 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

se nos afigura igualmente limitativo, porquanto grande parte do


substrato das situações que vem regular fica sem disciplina jurídi-
ca. Os erros mais comuns nesta matéria são os requerimentos que
deviam ser apresentados no Ministério das Obras Públicas serem
apresentados na Câmara Municipal, no Ministério do Desenvolvi-
mento Rural ou vice-versa. Ou então requerimentos que deviam
ser apresentados no Ministério do Turismo ou do Comércio serem
apresentados no Ministério da Indústria, e assim sucessivamente.
Assim, se alguém necessita de ocupar parte de uma estrada para
obras de interesse particular pode ter dúvidas sobre se há-de pedir
a autorização respectiva no Ministério das Obras Públicas ou no
Município local. Se o fizer perante a entidade incompetente não ve-
mos por que não se há-de remeter o requerimento ex-oficio para a
entidade competente. Razão por que não seguimos a orientação do
direito português nesta matéria.

Art. 4º

1. Os requerimentos e petições que não tiverem resolução definitiva dentro


de 30 dias, a contar da data da sua entrada nos serviços, consideram-se tacitamen-
te indeferidos para efeitos de recurso hierárquico e contencioso.
2. A Administração poderá, todavia, suster a produção do efeito previsto
no número anterior, desde que, pelos meios previstos nos nº 3 e 4 do art. 2º e antes
de completar o prazo nele fixado, comunique ao interessado que a sua pretensão
se encontra em curso de apreciação e lhe assine outro prazo não superior a 60 dias
dentro do qual se pronunciará sobre o assunto.
3. Na situação prevista no número anterior o prazo para o recurso conten-
cioso conta-se a partir da data em que completar o prazo fixado pela Administra-
ção, mas o funcionário ou o titular do órgão da Administração será pessoalmente
responsável perante o particular pelos danos causados em virtude do diferimento
indevido do prazo.
4. Em caso de dúvida o prazo para a interposição do recurso contencioso
conta-se depois de completados 60 dias a contar da data de entrada do requerimen-
to na última instância de recurso gracioso.

Justificação: Reproduz-se no nº 1 deste artigo a norma do art. 22º do


DL 14-A/83, de 22 de Março, retomando mais uma vez o princípio do
indeferimento tácito. O projecto aporta, contudo, duas alterações de
fundo. Por um lado é reduzido de sessenta para trinta dias o tempo
necessário para a formação do acto tácito negativo, o que se fez pela
necessidade de imprimir maior dinâmica na Administração. Não
e outros escritos jurídicos 259

nos parece fazer sentido obrigar o particular a aguardar, em todos


os casos, pelo decurso de um prazo de sessenta dias para saber que
foi indeferida a sua pretensão. Há requerimentos cuja resolução se
esgota num único despacho, sem a necessidade de qualquer outro
expediente interlocutório. Concomitantemente cria-se a possibili-
dade do estabelecimento de um prazo móvel dando à Administração
o poder de suster a formação do acto tácito negativo, assinando ao
particular um novo prazo, desta feita não superior a sessenta dias,
dentro do qual a sua pretensão será deferida.
Esta é a grande inovação deste projecto. Atende, por um lado, ao
carácter relativo do procedimento administrativo gracioso, que
varia, em número de actos, consoante a natureza da pretensão do
particular, por isso relativiza igualmente o prazo necessário para a
formação do acto tácito. Por outro, pretende abandonar um certo
mutismo reinante entre a Administração e o particular durante o
período de formação do acto tácito, dando àquela a possibilidade
não só de intervir na composição do prazo para a formação do acto
tácito, que é igualmente e, antes de mais, prazo de resolução, mas
também de se comunicar com o particular durante esse período,
fornecendo-lhe as indicações necessárias sobre o andamento do
processo.
Este artigo contém ainda dois aspectos que importa relevar. Se a
lei concede à Administração a possibilidade de elevar o prazo de
resolução ou de formação do acto tácito, logo é a partir desse prazo
que se conta o tempo necessário para a interposição do recurso con-
tencioso. Mas neste caso se ocorrer a formação do acto tácito por
incúria da Administração serão os funcionários e os titulares dos
órgãos da Administração responsabilizados pelos danos que causa-
rem ao particular. Um outro aspecto a registar é o de que podendo
a Administração socorrer-se de meios de notificação não sujeitos a
registo, como é o caso do telefone, e não tendo o particular exigido
comunicação escrita, podem ocorrer situações em que não se sabe
ao certo qual o momento da formação do acto tácito. Em tais casos
a dúvida resolve-se considerando formado o acto tácito ao 60º dia a
contar da data da entrada do requerimento na última instância de
recurso gracioso. Assim, se um particular submete uma petição ao
director de serviço e deste recorre sistematicamente para o director-
geral e para o secretário de Estado, o prazo para a formação do acto
tácito, para efeitos de recurso contencioso, conta-se a partir da data
deste último requerimento.
260 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Artº. 5º

1. A formação do acto tácito negativo não impede a Administração de se


pronunciar a todo o tempo sobre a pretensão do interessado, confirmando ou revo-
gando o acto de indeferimento.
2. O acto explícito revogatório do acto tácito negativo determina, em caso
de recurso contencioso de anulação, a inutilidade superveniente da lide, mas o
interessado não está inibido de intentar um novo recurso de anulação do novo acto
se total ou parcialmente lhe for desfavorável.

Justificação: Este artigo estabelece um regime para o acto explícito


expedido pela Administração posterior à formação do acto tácito, precei-
tuando, por um lado, que a Administração pode sempre confirmar ou
revogar o acto tácito entretanto formado e, por outro, que o acto explícito
revogatório, ou seja o acto que defere a pretensão do particular, implica a
inutilidade superveniente do recurso contencioso que entretanto tiver sido
intentado. Esta orientação é a seguida pela doutrina dominante nesta ma-
téria.

Artº. 6º

Consideram-se tacitamente deferidos no prazo de 5 dias as petições e re-


querimentos que obedeçam aos requisitos estabelecidos no nº 1 do art. 2º. deste
diploma respeitantes a:
a) passagem de certidões relativas a documentos não confidenciais ou não
considerada segredo do Estado, nomeadamente os previstos no art. § 1º do 493º
do EFU;
b)restituição de documentos;
c) gozo de férias;
d) autorização para o funcionário se deslocar ao estrangeiro;
e) compensação de faltas nas férias dos funcionários;
f) inscrição nos serviços competentes das obras públicas, com vista a
elaboração, assinatura ou direcção de execução de obras de construção, a que se
refere o artº. 11º do Regulamento Geral de Construção Urbana, aprovado pelo
Diploma Legislativo nº 1043, de 13 de Junho de 1950.

Justificação: ver artº. 9º.

Artº 7º

Consideram-se tacitamente deferidos num prazo de 15 dias os requerimen-


tos e petições, nas condições descritas no nº 1 do art. 2º relativos a:
e outros escritos jurídicos 261

a) antecipação total ou parcial dos gozo das férias;


b) pedidos de transferência entre os diversos serviços da mesma direcção-
geral, desde que não envolvam dispêndio para o Estado;
c) os pedidos de importação de veículo automóvel sem dispêndio de cam-
biais ao abrigo do Decreto nº 140/83, de 31 de Dezembro;
d) os pedidos de habilitação à pensão de sobrevivência ao abrigo do dispos-
to no DL nº 118/83, de 10 de Dezembro;
e) as licenças para a execução de trabalhos de pouca importância, descri-
tos por simples indicação gráfica, memória ou petição a que se refere o art. 7º do
Regulamento Geral de Construção Urbana, aprovado pelo Diploma Legislativo
nº 1043, de 13 de Junho;
f) as licenças para habitação ou ocupação a que se refere o art. 253º do
Regulamento Geral de Construção urbana, aprovado pelo Diploma Legislativo
nº 1043, de 13 de Junho;

Justificação: Ver art. 9º.

Artº 8º

1. Consideram-se tacitamente deferidos num prazo de 30 dias os requeri-


mentos e petições nas condições descritas no nº 1 do art. 2º, relativos a:
a) a autorização para a participação do funcionário ou do respectivo côn-
juge em empresas comerciais como sócios, a que se refere o artº. 4º do DL nº 2/85,
de 12 de Janeiro;
b) pedidos de apresentação à junta de saúde dos funcionários ou seus fa-
miliares;
c) pedidos de autorização para o exercício de actividades estranhas ao ser-
viço a que se refere o art. 13º do Estatuto do Oficial e do Sargento das FARP,
aprovado pelo DL nº 57/85, de 3 de Junho;
d) autorizações e aprovações reclamadas no exercício de funções de fiscali-
zação e tutela dos órgãos superiores sobre os órgãos inferiores.
2. É aplicável o disposto no corpo deste artigo, interpretando-se como sen-
do produzidos no sentido favorável à pretensão do interessado, os pareceres a que
se refere o nº 3 do art. 2º do DL nº 107/89, de 30 de Dezembro, relativos à cons-
tituição ou estabelecimento de uma instituição financeira internacional.

Justificação: Ver art. 9º.

Art. 9º

1. Consideram-se tacitamente deferidos num prazo de 60 dias os requeri-


mentos e petições nas condições descritas no nº 1 do art. 2º, relativos a:
262 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

a) pedidos de licença sem vencimento;


b) autorizações para o exercício da actividade de importador, retalhista,
agente comercial, vendedor ambulante, feirante, negociante, grossista ou arma-
zenista, a que se refere o Decreto nº 58/86, de 23 de Agosto;
c) pedidos de renovação das licenças a que se refere o Decreto mencionado
na alínea anterior;
d) pedidos de alargamento de licença ou alvará a outros tipos de activida-
de ou a outras classes de produtos;
f) autorizações para construção ou modificação de obras hidráulicas a que
se refere o art. 17º do Decreto nº 165/87, de 31 de Dezembro;
g) licenças, concessões e autorizações para o uso dos recursos hídricos a
que se refere o Decreto nº. 166/87, de 31 de Dezembro;
h) licenças para a destilação de aguardente da cana sacarina, a que se
refere o DL nº 40/78, de 6 de Maio;
i) os projectos a que se referem os artºs. 1º e 2º do Regulamento Geral
de Construção urbana, aprovado pelo Diploma Legislativo nº 1043, de 13 de
Junho;
j) as licenças para obras de construção, reconstrução, modificação, am-
pliação, consolidação, alteração a que se refere o art. 14º do Regulamento Geral
de Construção urbana, aprovado pelo Diploma Legislativo nº 1043, de 13 de
Junho;
l) a autorização para a constituição ou estabelecimento de uma instituição
financeira internacional a que se refere o art. 2º do DL nº 107/89, de 30 de De-
zembro;
m) a autorização ao investidor externo para o exercício das actividades
económicas compreendidas no âmbito dos sectores previstos na Lei nº 49/III/89,
de 13 de Julho;
n) Exercício de direitos subjectivos dependentes de autorização ou apro-
vação.

Justificação: Os artºs. 6º a 9º do projecto procuram inventariar as ma-


térias susceptíveis de deferimento tácito. A redacção destes artigos
obedeceu à orientação dominante nesta matéria, que é aliás a que
decorre do art. 218º do CC, nos termos do qual o silêncio só vale
como declaração de vontade quando esse valor lhe seja atribuído
por lei. São, portanto, taxativos os casos em que a lei fixa esse valor
ao silêncio da Administração que, também nesta matéria, se orienta
pelo princípio da reserva de lei. A inventariação feita pode não ser
completa, por isso a remessa do diploma para parecer dos mais di-
versos serviços do Estado e uma eventual discussão pública sobre
o seu conteúdo se nos afigura pertinente. De facto, poderão ter-nos
e outros escritos jurídicos 263

passado despercebidas situações que pela sua natureza são sus-


ceptíveis de se enquadrarem na previsão de um daqueles artigos e
que por virtude da sua actividade quotidiana seja do conhecimento
imediato daqueles serviços. É imperioso, pois, que o projecto seja
submetido à apreciação desses serviços e possa ser melhorado com
vista a atingir um limite óptimo de eficácia.
Quanto seja do nosso conhecimento esta poderá ser a primeira
experiência que consubstancia de modo tão exaustivo num úni-
co diploma as situações susceptíveis de deferimento tácito. Como
pudemos demonstrar no breve excurso pelo direito comparado as
legislações de um modo geral regulam estas situações de forma
pontual, exceptuado o caso do CPA português (art. 108º) a que já
fizemos referência.
Importa relevar alguns aspectos do regime proposto.
Antes de tudo para que se verifique a formação do acto tácito é
necessário que o particular seja parte legítima e a petição seja en-
dereçada à entidade competente. Daí a referência ao art. 2º nº 1.
Estabelecem-se prazos diversos para a formação do acto tácito,
consoante a natureza da matéria. Assim, se um particular requer
a passagem de uma certidão, a restituição de um documento ou a
compensação de faltas nas respectivas férias, tanto estas petições
podem ser despachadas com um simples deferido, como pelo sim-
ples comportamento omissivo no decurso do prazo de cinco dias.
O que ditou o estabelecimento de prazos diversos para matérias
diversas foi a importância destas. A medida que aumenta a impor-
tância da matéria, aumenta igualmente o prazo para a formação
do acto tácito positivo. Requerer o gozo de férias não é o mesmo
que requerer a antecipação desse mesmo gozo. De facto, naquela as
férias já se mostram vencidas e se trata apenas de exercer o direito
a elas dentro de um quadro já previamente estabelecido. Nesta se
trata de antecipar o respectivo vencimento e eventualmente alterar
o quadro pré estabelecido.
Envolve, portanto, mais tempo para apreciação.

Artº 10º

1. Em todos os requerimentos e petições dirigidos à entidade competente


relativos às matérias previstas nos artigos 6º a 8º deste diploma, o particular está
vinculado a fazer expressa menção deste facto, indicando concretamente que a
pretensão em causa se enquadra na previsão de uma das alíneas neles prevista e
bem assim a data da formação do acto tácito positivo.
264 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

2. A falta da indicação a que se refere o nº 1 deste artigo não invalida a


aplicação do regime previsto neste diploma, mas desobriga a Administração e bem
assim aos seus funcionários e agentes de responder civilmente pelos danos daí
resultantes.

Justificação: Esta é igualmente uma disposição claramente inovado-


ra. Fixa ao particular o ónus de colaborar na formação do acto tácito
positivo. No próprio requerimento indicará à Administração que
sobre aquela pretensão concreta é susceptível de recair acto tácito
positivo caso a mesma não se pronuncie findo um certo prazo. Tra-
ta-se de uma chamada de atenção que possibilita à Administração
colocar-se de sobreaviso não só quanto aos requerimentos ilegais
como quanto às pretensões sobre as quais não é desejável a forma-
ção do acto tácito positivo.

Artº 11º

1. A Administração poderá suster igualmente a formação do acto tácito po-


sitivo relativo a petições e requerimentos indevidamente enquadrados na previsão
a que se refere o nº 1 do art. anterior ou pelas razões descritas no nº 3 do art. 2º
em comunicação dirigida ao interessado com a indicação dos fundamentos que
justificam o enquadramento indevido.
2. A Administração poderá igualmente suster a produção do acto tácito posi-
tivo em despacho fundamentado, por razões de manifesto interesse público.

Artº. 12º

A revogação, substituição, reforma do acto tácito constitutivo de direitos


obedece ao regime legal dos demais actos constitutivos de direitos.

Art. 13º

1. É criada a figura do comunicante administrativo encarregada de velar


pelo cumprimento dos prazos legais, pela prestação ou solicitação de informações,
pareceres ou outros actos necessários ao bom andamento do processo.
2. O comunicante administrativo constitui o elo de ligação permanente
entre o particular e a entidade encarregada de dar satisfação ao seu pedido.
3. Serão designados comunicantes administrativos os funcionários ou
agentes que, em razão da matéria, se encontram mais estreitamente ligados ao
processo. Não podem ser designados comunicantes administrativos os funcioná-
rios ou agentes em cujo conteúdo funcional não se incluem actividades relaciona-
das com relações públicas.
e outros escritos jurídicos 265

4. Em todos os processos cuja resolução não se esgota num único despacho


é obrigatória a designação de comunicante administrativo, cuja nomeação é feita
é feita caso a caso.
5. É competente para a designação de comunicante administrativo a enti-
dade com competência legal para se pronunciar sobre a pretensão do particular.

Justificação: Uma das razões que conduz muitas vezes à formação


do acto tácito são as dificuldades de comunicação entre a Adminis-
tração e os administrados. Lutar contra esta ordem de estrangu-
lamentos constitui um dos objectivos da moderna Administração.
Em Cabo Verde alguns passos começam a ser dados nesse sentido.
Ainda no decurso deste ano alguns serviços públicos foram dota-
dos de caixas de reclamações e sugestões, o que é revelador do de-
sejo da Administração em manter permanente comunicação com os
particulares para a melhoria do serviço prestado.
Este projecto vem dar o seu contributo nesta matéria. Cria uma
nova figura que denomina comunicante administrativo cuja função
é servir de elemento de ligação permanente entre a Administração
e o particular, deste o primeiro ao último acto do procedimento
administrativo gracioso.

Artº. 14º

O comunicante administrativo poderá passar, independentemente de des-


pacho superior e dentro de cinco dias contados da data em que lhe for requerida,
certidão narrativa sobre a data de entrada das petições ou requerimentos, data
em que as submeteu a despacho, parecer, informação ou outro andamento que
tiveram, a resolução tomada ou a falta de uma resolução.

Artº 15º

Os titulares dos órgãos da administração ou os seus agentes obrigados


ao cumprimento das disposições contidas no presente diploma que, por dolo ou
negligência, deixarem de cumprir os prazos nele estabelecidos, ou permitirem a
formação indevida de acto tácito seja de conteúdo positivo, seja de conteúdo ne-
gativo, incorrem em responsabilidade disciplinar, civil ou criminal, conforme ao
caso couber. Na mesma responsabilidade incorre aquele que em idênticas condi-
ções deixar de acatar as determinações judiciais em matéria administrativa.

Artº 16º

1. Aquele que tiver a seu favor uma disposição legal que lhe reconheça al-
gum direito ou uma sentença judicial condenatória da Administração na prática
266 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

de um acto ou na adopção de um comportamento positivo ou negativo, poderá, na


falta de reconhecimento ou cumprimento voluntário, total ou parcial, por parte
da Administração, requerer perante o tribunal do seu domicílio a notificação do
titular do órgão da Administração legalmente competente para tornar efectivo o
exercício do referido direito ou determinação judicial dentro do prazo que reputa
adequado.
2. O titular do órgão da Administração é citado para responder no prazo
de 8 dias. Na falta de resposta é fixado o prazo proposto pelo requerente. Havendo
resposta, o juiz decidirá, depois de efectuadas as diligências probatórias necessá-
rias, fixando o prazo proposto ou outro prazo que repute adequado, ou simples-
mente indeferindo a pretensão do particular com fundamento em ilegalidade,
manifesta contrariedade ou grave prejuízo para o interesse público.
3. O não cumprimento dentro do prazo fixado pelo juiz constitui crime de
desobediência punível.

Justificação: Este artigo pretende transpor para o processo adminis-


trativo o regime estabelecido nos artº. 1456º e 1457º do CPC sobre
a fixação judicial de prazo. Trata-se também de uma disposição que
pretende combater a inércia da Administração responsabilizando
os seus agentes pelos actos e omissões que violem os direitos e
outros interesses legítimos dos particulares. A ideia de fazer esta
transposição surgir nos de um caso que casualmente acompanha-
mos. A lei portuguesa reconhece aos pais com filhos de idade até 12
anos o direito a um horário de trabalho flexível com vista a facilitar
o acompanhamento dos mesmos. Com base na referida disposição
legal uma cidadã portuguesa, polícia de profissão, requereu peran-
te o respectivo comandante a atribuição do horário flexível. O Co-
mandante recusou-lhe o exercício desse direito, alegando que, a ser
deferida a sua pretensão, constituiria um precedente perigoso por-
que punha em causa toda a organização dos turnos na PSP. Incon-
formada a requerente interpôs recurso hierárquico para o Ministro
da Administração Interna que lhe deu razão, mas apesar disso o
Comandante recalcitrou e não cumpriu o despacho do Ministro.
Este, todavia, não querendo indispor-se com o seu inferior hierár-
quico nada fez para obrigar ao cumprimento do seu despacho. A
recorrente recorreu para o STA da inércia do Ministro da Admi-
nistração Interna, mas este, em resposta ao recurso, esclareceu ao
tribunal que sempre reconheceu à recorrente o direito a horário fle-
xível, resposta que determinou a inutilidade superveniente da lide.
Daí resultou que na prática existe uma norma legal que reconhece
à polícia em causa o direito a horário flexível, há um despacho do
e outros escritos jurídicos 267

Ministro da Administração Interna que lhe reconhece o mesmo di-


reito, há ainda uma sentença judicial que lhe reconhece igualmente
o mesmo direito, mas a agente continua a cumprir o mesmo horá-
rio que os demais polícias. Todavia, não pode executar a sentença,
porque não se trata de uma sentença condenatória. Trata-se de um
despacho onde apenas se encontra a referência de que o Ministro
da Administração Interna lhe reconhece o exercício do direito. Nes-
te caso a polícia ficou de mãos atadas sem um meio de fazer valer
o seu direito.
Um pormenor importante da disciplina legal do horário flexível é
o de que a Administração é obrigada a fazer acordo com o titular
desse direito, o que constitui uma norma louvável, na medida em
que revela o sentido de uma Administração dialogante, uma Ad-
ministração que não quer impor, antes pretende que os seus actos e
determinações, mesmo quando destinados ao exercício do interesse
público, sejam inteligíveis para o particular. Todavia, uma norma
deste tipo não pode ser desacompanhada de medidas de esclareci-
mento a quantos se habituaram a resolver as coisas do Estado uni-
camente pela força e não sentiram ainda a presença de um novo
princípio que já se desenha a disciplinar as relações entre a Admi-
nistração e os administrados que poderíamos chamar princípio do
mínimo de atritos, a que se encontra associada a transparência dos
actos da Administração, o dever de fundamentação, a proibição da
inércia e consequentemente do silêncio e, sobretudo, a proibição
do uso da força. Esta só se mostra legitimada quando o interesse
público se sobrepõe ao interesse particular. Mas mesmo neste caso
é necessário ter bem presente o que significa interesse público, nem
sempre devidamente compreendido nas tomadas de posição feitas
em seu nome.
Retomando a fundamentação do preceito verifica-se que em casos
como o relatado o particular fica de mãos atadas perante uma Ad-
ministração que lhe reconhece um direito mas não lhe permite o
seu exercício efectivo. Neste caso é necessário uma medida judicial
que ponha cobro à inércia da Administração.
Em Espanha os administrados têm vindo a fazer valer, em casos
como este, o recurso de amparo previsto nos artºs 161 e 162 da res-
pectiva constituição, recurso que encontrou acolhimento no art. 19
da nossa constituição actual. É certo que se poderá lançar mão do
recurso de amparo, nomeadamente na situação que lhe é caracterís-
tica de se mostrarem esgotadas todas as vias do recurso ordinário.
Mas haverá situações em que não se justifica obrigar o particular a
268 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

percorrer todas as instâncias de recurso, nomeadamente quando a


situação é de mera inércia do titular do órgão da Administração.
Assim, nas situações em que o direito se mostra claramente defi-
nido, seja por determinação legal, seja por conformação judicial, e
se trata apenas de cumprir, como na situação descrita, não vemos
como não se possa lançar mão de um expediente célere, como o
proposto, com vista a fazer valer o direito violado.
Poder-se-á pensar que a medida proposta coloca a Administração
na dependência da acção judicial, mas este argumento é de todo im-
procedente. Antes de mais porque não se trata de uma norma que
se dirige à Administração como pessoa colectiva, cuja integridade
permanece incólume maxime no que respeita às suas relações com o
poder judicial, mas sim ao titular do órgão da Administração, como
pessoa individual capaz de agir dominado por convicções, senti-
mentos, modos de estar que não se harmonizam com os princípios
por que se rege a Administração Pública. Neste particular, contra-
riamente ao que se poderia pensar, a fixação judicial de um prazo
ao titular do órgão da Administração para executar um comando
legal ou uma determinação judicial se traduz em última instância
na realização do interesse público porquanto é do conteúdo cor-
respondente ao interesse público que a Administração obedeça aos
comandos legais e às determinações judiciais e aja nas relações com
os particulares segundo o princípio do mínimo de atritos. Por isso se
estabelece que fixado o prazo e não havendo cumprimento da parte
do titular do órgão da Administração este poderá ser perseguido
por crime de desobediência.
Observe-se ainda que nem sempre o Tribunal concluirá necessaria-
mente pela fixação de um determinado prazo e isto poderá ocorrer,
pelo menos em dois casos: quando seja manifesto que a pretensão
do particular não pode proceder, esta seria uma situação de inde-
ferimento liminar;
ou quando o interesse público seja superior ao interesse que através
da medida judicial o particular pretende acautelar.

Art. 17º

A partir da data da entrada em vigor deste diploma fica revogada toda a


legislação em contrário, nomeadamente, o art. 10º nº 2 do Decreto nº 60/86, de 23
de Agosto e o art. 20º nº 1 do Decreto nº 60/86, de 23 de Agosto, e o artº. 22º nº
2 do DL 14-A/83, de
e outros escritos jurídicos 269

Artº 18º

O artigo 9º do Regulamento Geral de Construção Urbana, aprovado pelo


Diploma Legislativo nº 1043, de 13 de Junho de 1950, passa a ter a seguinte re-
dacção:
“Quando tenha sido aprovado qualquer projecto e a licença para a execu-
ção da obra não tenha sido levantada no prazo de seis meses, a contar da data do
despacho ou da formação do acto tácito de deferimento, caducará esta resolução
para todos os efeitos, não podendo a licença ser concedida sem nova revisão do
projecto e informação favorável dos serviços competentes”.

Artº 19º

Até 90 dias contados a partir da data da entrada em vigor deste di-


ploma, as entidades competentes para decidir as pretensões a que o mes-
mo se refere, poderão, em despacho fundamentado, suster a formação do
acto tácito positivo no prazo que corresponderia ao acto em causa, por
razões de impossibilidade técnica, sobrecarga de serviço ou outro funda-
mento plausível.

Artº 20º

1. Este diploma entra imediatamente em vigor e a título experimen-


tal pelo período de seis meses, findos os quais será revisto e actualizado
em conformidade com os dados colhidos da execução experimental.
2. Todos os serviços públicos que durante o período experimental
registarem dificuldades na interpretação, harmonização com outros di-
plomas em vigor e bem assim quaisquer obstáculos à boa execução deste
diploma devem comunicá-los à Direcção-Geral da Administração Públi-
ca, fazendo-os acompanhar das sugestões que considerem pertinentes
atender no momento da revisão.
270 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO
e outros escritos jurídicos 271

2. PLANO DIRECTOR MUNICIPAL E PLANOS URBANÍSTICOS


DETALHADOS DA ILHA DA BOA-VISTA(1).

§ 1º. Generalidades

1. Introdução

Existe a convicção generalizada no sentido de que o planeamento


urbanístico é, em Cabo Verde, uma medida dos nossos dias. Se é certo que
a elaboração de planos de ordenamento do território com a cientificidade
com que aparecem nos documentos ora em apreço só agora fizeram o seu
aparecimento, todavia o planeamento urbanístico, com o sentido amplo
que esta expressão encerra, não foi totalmente alheio às concepções ad-
ministrativas em Cabo Verde, particularmente no que respeita à Admi-
nistração Local. Como demonstramos noutro lugar pode mesmo dizer-se
que Cabo Verde acompanhou a par e passo a evolução mundial da ciência
administrativa em matéria do ordenamento do território, revelando mes-
mo, em alguns casos, preocupações que só modernamente passaram a
fazer parte da administrativa urbanística.(2)

2. Política Legislativa

Com as normas urbanísticas prosseguem-se, normalmente, deter-


minadas políticas. Isto quer dizer que, contrariamente ao que se poderia
pensar, estas normas não são neutras. Impregnam ao ordenamento ter-
ritorial uma fisionomia que se harmoniza com certas opções de política
social, económica, habitacional, viária, de lazer, etc. Assim, consoante o
momento histórico ou político a gestão do espaço territorial adquire esta
ou aquela fisionomia.
Remonta a Aristóteles e Platão as ideias sobre esta matéria. Aris-
tóteles defendia uma gestão individualista da cidade, assente na proprie-
dade privada e na defesa da família. Diferentemente Platão tinha uma
concepção socializante da gestão da urbe. Toda ela devia ser pré-orde-
nada em função do bem colectivo e não de interesses individuais. Como
reconhece o Prof. Freitas do AMARAL foi a concepção aristotélica que

1
Estudo publicado na Revista Direito do Urbanismo (Portugal) nº 10, 1999.
2
Sobre este ponto, cfr. o nosso Código de Terra, Livraria Saber, Praia, 2002.
272 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

vingou e condicionou o modelo de urbanismo que vigoraria praticamente


até o século XIX ( in Direito do Urbanismo (Opções políticas e ideológicas sub-
jacentes à Legislação Urbanística), Instituto Nacional da Administração, Lis-
boa, 1988, pp. 93 e segs). Até esta altura o papel das câmaras municipais
se traduzia apenas em arbitrar a gestão do território, de forma pontual. É
o já referido o período do laissez-faire, de cariz claramente liberal.
A partir deste século inicia-se o período da industrialização e com ela
o êxodo dos operários para as cidades. Assiste-se então a um crescimento
desordenado das cidades; as construções clandestinas; os bairros de lata...
Com a difusão das ideias socialistas do sec. XIX condena-se o crescimen-
to desordenado das cidades e faz-se um constante apelo à “racionalidade,
programação, visão de conjunto, planeamento a médio e longo prazo, ati-
tude prospectiva” - Freitas do AMARAL ob. cit. pp. 97. O planeamen-
to urbanístico tem, por conseguinte, subjacente uma concepção socialista
do ordenamento do território que preconiza não apenas “um urbanismo
de disciplina, puramente policial” mas sobretudo “um urbanismo de sal-
vaguarda... um urbanismo activo... de planeamento, de direcção central”,
porque o plano deve orientar, deve dirigir. O plano é director, daí o insti-
tuto hoje contido em várias legislações, nomeadamente na nossa, do Plano
Director Municipal.

3. Princípios orientadores

A legislação caboverdiana actual espelha nos seus princípios funda-


mentais esta concepção. A Constituição da República está prenhe de prin-
cípios orientadores da disciplina urbanística, algumas das quais encontra-
ram já tradução em lei ordinária. Desde logo, ela preconiza uma ampla
participação das populações na formulação das políticas do ordenamento do
território, na concepção, realização e execução dos planos, obrigando a
uma constante informação aos cidadãos sobre os planos em vigor ou em
curso de elaboração. Neste particular, as entidades públicas e privadas
estão vinculadas ao dever de recíproca colaboração, devendo aquelas,
através do Estado e do Município “viabilizar as iniciativas urbanísticas
dos particulares que respeitem o interesse público e se conformem com
as previsões e disposições dos planos de ordenamento” (artº. 3º. al. m) da
Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho). Essa legislação preconiza também igual
tratamento dos agentes urbanísticos, rejeitando o laissez-faire e criando me-
canismos de protecção da parte débil em matéria de ordenamento do ter-
ritório. Preocupações como a harmonia entre o mundo rural e mundo urbano
encontram-se igualmente presentes; a conservação dos recursos naturais; a
protecção do ambiente; crescimento turístico, habitacional; defesa e criação de
e outros escritos jurídicos 273

espaços verdes; preservação do património histórico e cultural são algu-


mas das orientações que decorrem da legislação vigente em matéria de
planeamento urbanístico.
Fausto de QUADROS inventariou catorze princípios constitucio-
nais que norteiam o direito do urbanismo em Portugal que passamos a
enunciar: O princípio da prossecussão do interesse público; o princípio
do dever de boa administração; o princípio do respeito pelos interesses
legítimos dos cidadãos na prossecussão do interesse público; o principio
da legalidade; o princípio da justiça e da imparcialidade na actuação da
Administração; o princípio da igualdade dos cidadãos; o princípio da Boa
fé, da segurança jurídica e da confiança legítima; o princípio da propor-
cionalidade; o princípio da participação dos cidadãos na formação das
decisões ou deliberações que lhes digam respeito; princípios atinentes à
expropriação por utilidade pública; princípio da fundamentaçãoexpressa
dos actos administrativos; princípio da responsabilidade da administra-
ção e dos seus agentes e o princípio da descentralização da Administração
local (in Direito do Urbanismo (princípios fundamentais de Direito Constitu-
cional e de Direito Administrtivo em matéria de Direito do Urbanismo), cit. pp.
269 e segs).
Mercê da manifesta influência que o direito constitucional portu-
guês teve na elaboração da nossa Constituição (cfr. o nosso artigo Família
e casamento No actual projecto de revisão constitucional - Voz di Povo 28.5.92)
todos estes princípios tiveram nela acolhimento e muitos deles encon-
tram-se amplamente desenvolvidos na legislação vigente.
Os planos em apreço também não são neutros, pois, pela sua posi-
ção hierárquica, pela sua subordinação obrigatória à legislação em vigor,
refletem esta polilítica socializante de ordenamento urbanístico.

§ 2º. O Regulamento do PDM

4. Noção e objecto do PDM

O PDM é definido por lei como o instrumento de planeamento que


rege a organização espacial do território municipal ( artº. 23º nº. 1 da Lei
nº. 85/IV/93, de 16 de Julho). Tem por objecto a delimitação das áreas
urbanas e peri-urbanas; a qualificação das áreas não urbanizáveis; o esta-
belecimento do traçado esquemático da rede viária e das infraestruturas
urbanísticas; a localização dos principais equipamentos públicos e a deli-
mitação das áreas a abranger por plano de desenvolvimento urbano e por
plano detalhado (nº. 3 do mesmo artigo). O PDM configura-se assim como
o instrumento por excelência de planeamento urbanístico do território
274 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

municipal na sua totalidade. De entre os planos urbanísticos encontra-se


no topo da hierarquia, condicionando, portanto, quer o PDU quer o PD.
Respeitando o PDM à totalidade do território municipal, coloca-se
o problema da área limítrofe desta, o que se prende com a divisão admi-
nistrativa do território nacional (ver sobre este ponto o DL nº. 93/82, de 6
de Novembro que aprovou a nova divisão administrativa do país). Este
problema não oferece, todavia, particular significado no que respeita à
ilha da Boa Vista visto que o Município abrange a totalidade da ilha, na
sua superfície de 620 Km2.

5. Elaboração

Nos termos do artº. 5º. do Decreto nº. 87/90, de 13 de Outubro, ex


vi do artº. 124º da Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho, competia ao Ministro
responsável pela Administração Interna mandar elaborar o Plano Direc-
tor Municipal (PDM). Esta norma, de todo incompatível com a autonomia
do poder local, foi revogada pelo artº. 28º al a) da Lei referida nos termos
do qual compete à assembleia municipal deliberar sobre a elaboração do
PDM. Esta mesma competência assiste às assembleias municipais no que
respeita aos Planos de Desenvolvimento Urbano (PDU).
O processo de elaboração do PDM é todo ele conduzido pela Câma-
ra Municipal (artº. 26º nº. 3 al. b) da Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho).

6. Medidas preventivas

Com vista a evitar actuações urbanísticas que posteriormente pos-


sam comprometer a melhor execução do Plano, permite a lei que o órgão
competente para determinar a sua elaboração possa estabelecer que a área
por ele abrangida fique sujeita a determinadas medidas preventivas, com
vista à manutenção do status quo.
No que respeita aos PDM e aos PDU compete às assembleias mu-
nicipais fixar as referidas medidas. Mas no que respeita aos Planos Deta-
lhados (PD) esta faculdade é da competência das câmaras municipais, a
quem compete, igualmente, deliberar quanto à elaboração destes planos
(artº. 28º al. b) e artº. 29º da Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho).
Estas medidas podem consistir no estabelecimento de certas con-
dições quanto à concessão de licenças ou autorizações municipais, mas
em outros casos poderão mesmo envolver a recusa de atribuição dessas
licenças ou autorizações (artº. 35 nº. 2 do Dec. nº. 87/90, de 13 de Outu-
bro). Deverão ser fundamentadas e estão sujeitas ao princípio da propor-
cionalidade ou do equilíbrio, ponderando-se se os prejuízos resultantes de
e outros escritos jurídicos 275

actuações urbanísticas que envolvam alteração das circunstâncias locais


são ou não socialmente mais relevantes que os eventuais prejuízos de-
correntes das medidas preventivas a adoptar. Sendo aqueles socialmente
mais relevantes mostra-se justificada a adopção de medidas preventivas
(artº. 35º cit. nº. 3).
A eficácia de tais medidas depende da sua publicação no Boletim
Municipal ou em Editais ou Avisos e a sua implantação não dá direito a
qualquer indemnização. (Para maiores desenvolvimentos sobre este pon-
to cfr. José Osvaldo GOMES in Direito do Urbanismo (Operações Urbanísticas
e Medidas Preventivas) INA, já cit. pp. 368 e segs).

7. O PDM e o direito de propriedade

Sobre os terrenos objecto da urbanização incidirão muitas vezes di-


reitos de propriedade. O exercício pleno desses direitos pode contender
com os objectivos de urbanização, donde a necessidade de definição, por
um lado, dos limites de intervenção dos planos urbanísticos, ou seja, até
que ponto poderão intervir os planos urbanísticos na definição de cri-
térios de ordenamento do espaço territorial, sem contenderem com os
direitos de propriedade legalmente reconhecidos e, por outro, em que
circunstâncias deverão ceder esses mesmos direitos de propriedade, de
modo a tornar possível o ordenamento do espaço territorial.
Conflituam-se, neste ponto, dois direitos, ambos constitucional-
mente reconhecidos. Por um lado, o direito à propriedade privada reco-
nhecido pelo artº. 66º da CR e, por outro, os direitos colectivos à habitação
(artº. 69º) ao ambiente de vida sadio e ecologicamente equilibrado (artº.
70º) à qualidade de vida, à paisagem, aos recursos naturais e ao patrimó-
nio histórico-cultural e artistico nacional (artº. 7º).
Historicamente o direito de propriedade se analisa em três facul-
dades fundamentais: o direito de usar, fruir e dispor, o jus utendi, fruendi
e abutendi a que se referiam os romanos. O direito de usar pressupõe um
conjunto significativo de intervenções: desenvolver uma actividade agrí-
cola, silvícola ou pecuária; instalar uma construção; permitir o direito de
uso por parte de outras pessoas. Todavia, como observa o Prof. Oliveira
ASCENSÃO o direito de construir foi desanexado do direito da proprieda-
de ou, acrescentamos nós, se lhe estabeleceu fortes limitações. O direito de
uso da propriedade não é hoje um direito indiscriminado. O proprietário
não pode usar da propriedade a seu bel-prazer. Pode fazê-lo, sim senhor,
desde que esse exercício esteja de acordo com os planos de expansão e de-
senvolvimento; desde que respeite o ambiente e reverta, afinal, em bene-
fício do bem comum (sobre estes pontos ver José de Oliveira ASCENSÃO,
in Direito do Urbanismo (O Urbanismo e o Direito de Propriedade)... pp. 319 e
segs), pois de outro modo está submetido a fortes limitações.
276 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Em algumas circunstâncias o direito de propriedade pode mes-


mo ser suprimido com vista à melhor execução dos planos urbanísticos.
Intervém, então, a figura da expropriação por utilidade pública. Trata-se de
uma medida excepcional que encontra o seu fundamento na circunstância
de o exercício privado do direito de propriedade poder contender com
a realização de interesses da colectividade. Quando tal acontece cede o
direito menor da propriedade privada em benefício do interesse geral ou
do interesse de uma determinada colectividade. Essa limitação extrema
do exercício do direito de propriedade não pode, em nenhum caso, fazer-
se sem contrapartidas. Se a colectividade fica beneficiada com a limitação
extrema imposta ao titular do direito, é igualmente de justiça que essa
mesma colectividade suporte os prejuízos sofridos por aquele. O proprie-
tário expropriado tem, por conseguinte, direito a ser indemnizado pelo
sacrificio imposto.
Os planos sujeitos à nossa apreciação não só criam ope legis algumas
dessas limitações, como da sua execução poderão resultar situações de
expropriação.

8. O Regulamento do PDM. Lei de aprovação

Notam-se neste ponto algumas deficiências de forma. No que res-


peita às regras de aprovação dos planos urbanísticos estabelece o artº. 124º
da Lei 85/IV/93, de 16 de Julho a manutenção em vigor, até à sua subs-
tituição, dos diplomas legais e regulamentares publicados no âmbito da
Lei nº. 57/II/85, de 22 de Junho, entretanto, revogada por aquele preceito
legal. Ao abrigo deste diploma foi aprovado o Decreto nº. 88/90, de 13 de
Outubro que estabeleceu o conteúdo das diferente figuras de plano urba-
nístico e bem assim o Decreto nº. 87/90, de 13 de Outubro que disciplinou
a elaboração, aprovação e homologação dos planos urbanísticos.
Qualquer destes dois diplomas mantêm, portanto, a sua vigência,
porém, com as necessárias adaptações, dado que muitos dos seus preceitos já
não se coadunam com as disposições da Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho
que, mutatis mutandis e de forma ad-hoc, regulamentam. Impõe-se, com
urgência, a regulamentação desta lei, em cumprimento do estabelecido
no seu artº. 126º, pois muitas disposições do Decreto 87/90, de 13 de
Outubro são claramente inconstitucionais.
É, por conseguinte, em atenção ao estabelecido no referido Decreto nº.
87/90, de 13 de Outubro, sempre com as devidas adaptações, que se orienta-
rá na elaboração, aprovação e homologação dos planos urbanísticos.
Mostrando-se já cumpridas todas as fases de elaboração do plano
estabelecidas no artº. 4º do referido Decreto e restando apenas a homolo-
e outros escritos jurídicos 277

gação a que se reporta a al. g) do mesmo preceito legal, temos que repor-
tar-nos ao artº. 20º, nos termos do qual serão submetidos à homologação
do Governo, através do Ministro da Administração Interna, os planos
directores municipais e os planos de desenvolvimento urbanístico das ci-
dades da Praia e do Mindelo (nº. 1). Quer o Plano de Desenvolvimento
Urbano quer o Plano Detalhado serão submetidos à aprovação do Minis-
tro da Administração Interna (nº. 2).
Todos estes preceitos devem hoje ser objecto de uma interpretação
actualista. A discriminação estabelecida na al. b) do referido artº. 20º no
sentido de submeter à aprovação do Governo os Planos de Desenvolvi-
mento urbanístico das cidades da Praia e do Mindelo e a homologação
dos demais planos de desenvolvimento ao Ministério da Administração
Interna parece violar o princípio da igualdade dos planos urbanísticos, pois
trata diferentemente realidades que são iguais perante a lei. Ao estabele-
cer esta diferente solução para planos de um e outro território, o referido
preceito parece atribuir um estatuto de menoridade ou pelo menos de
menor importância a certas partes do território nacional. Temos, portan-
to, a opinião de que o respeito pelo princípio da igualdade obriga que os
demais planos de desenvolvimento urbanístico, não só os das cidades da
Praia e Mindelo, devem ser objecto de homologação por parte do Gover-
no, enquanto órgão colegial, não sendo bastante a homologação do Mi-
nistério da Administração Interna. Esta solução legal coloca em diferentes
posições hierárquicas planos que a nível do ordenamento do território
municipal se encontram no mesmo grau, pois, daí resulta que os planos
de desenvolvimento urbanístico das cidades da Praia e Mindelo serão
aprovados por Decreto do Governo (artº 21º) e os planos de desenvolvi-
mento urbanístico das demais cidades e Vilas por Portaria do Ministro
da Administração Interna. E sendo certo que um Decreto do Governo
é formalmente de nível hierárquico superior à Portaria de um Ministro,
segue-se que a tramitação que conduz à sua aprovação pressupõe uma
maior intervenção do Governo e um maior cuidado na sua apreciação.
Refira-se igualmente que sendo a homologação, pela sua natureza,
um acto administrativo (cf. M. Galvão TELES que define a homologação
como a “concordância dada pelo orgão deliberativo a uma proposta de
resolução que lhe é submetida”, fazendo notar, todavia, que na prática
o termo é muitas vezes utilizado relativamente a actos que apresentam
a natureza de aprovação (in Homologação, Enc. Verbo, vol. 10, col. 434) é
infeliz a expressão legal segundo a qual “os planos serão submetidos à
homologação do Ministério da Administração Interna”. Na verdade os
ministérios não praticam actos administrativos. São os Ministros, enquan-
to responsáveis pelo departamento governamental, que praticam actos
278 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

administrativos, por isso que a fórmula correcta é a de “homologação do


Ministro da Administração Interna”.
A referida interpretação actualista obriga igualmente que a referên-
cia a Ministério da Administração Interna seja hoje tida como equivalente
a Ministro da Justiça e Administração Interna, em conformidade com a
nova estrutura administrativa.
Este excurso crítico em torno da problemática da homologação dos
PDM permite-nos estabelecer o seguinte:

— Ao abrigo da legislação em vigor é da competência do Governo


a homologação dos Planos Directores Municipais (artº. 20º nº. 1 al. a) do
Decreto nº. 87/90, de 13 de Outubro ex vi do artº. 124º nº. 2 da Lei nº. 85/
IV/93, de 16 de Julho);
— A homologação é concedida sob a forma de Decreto do Governo,
nos termos do nº. 1 do artº. 21º do mencionado Decreto 87/90, de 13 de
Outubro.
— Sendo certo que a competência regulamentar do Governo deve
fundar-se na Constituição da República, o preceito da Lei Fundamental
que sanciona essa competência encontra-se previsto na alínea b) do artº.
217º, nos termos do qual “compete ao Governo, através do Conselho de
Ministro, ou de qualquer dos seus membros, no exercício de funções ad-
ministrativas fazer regulamentos necessários à boa execução das leis”.
Nesta conformidade, o cabeçalho do Decreto que homologa o Plano
Municipal da Boa Vista carece dos seguintes ajustamentos:

DECRETO Nº.........../96.

Ao abrigo do disposto no artº. 20º nº. 1 al. a) do Decreto nº. 87/90, de 13 de


Outubro ex vi do artº. 124º nº. 2 da Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho;
No uso da faculdade conferida pela alínea b) do artº. 217º da Constituição
da República;
O Governo decreta o seguinte:

Artº. 1º.
É homologado o Plano Director Municipal da Ilha da Boa Vista, que faz
parte integrante do presente diploma.

9. Artº. 1º. objecto

O conteúdo do artº. 1º. não se me afigura o mais adequado. O objec-


to do regulamento não é apenas o estabelecimento de regras sobre a ocu-
e outros escritos jurídicos 279

pação, o uso e a transformação do solo abrangido pelo PDM da Boa Vista.


O PDM tem um âmbito muito mais vasto, o que o torna uma realidade
muito mais complexa e muito mais penetrante do que a mera disciplina
da ocupação, uso e transformação do solo. É, aliás, usual referir-se que
estes planos cumprem uma quádrupla função, todas elas de uma enorme
complexidade: 1) -inventariação da realidade urbanística; 2) - conforma-
ção do território; 3) -conformação do direito de propriedade do solo; e 4) -
gestão do território (ver sobre este ponto Fernando Alves CORREIA, in O
Plano Urbanístico e o princípio da igualdade... pp. 181 a 186). À inventariação
da realidade urbanística correspondem as acções de “caracterização do solo,
do subsolo e recursos hídricos, estudos demográficos respeitantes ao mu-
nicípio, estudos económicos, a análise social, a análise dos aglomerados
urbanos e da rede urbana, bem como a definição das relações intermuni-
cipais e a hierarquia dos aglomerados urbanos” (cf. CORREIA, ob. cit.
pp. 182). À função de conformação do território correspondem as acções de
“definição dos princípios e regras respeitantes à organização do território
e à racionalização da ocupação e utilização do espaço” (CORREIA, ob. loc.
cit.). À função de conformação do direito de propriedade do solo encontram-se
ligadas acções como a “classificação do uso e destino do solo, da divisão
do território em zonas e da definição dos parâmetros a que se deve obe-
decer a ocupação, uso e transformação de cada uma delas” (autor e obra
citada, pp. 183). Por último, à função de gestão do território correspondem
acções de “coordenação e de compatibilização das iniciativas públicas e
privadas com repercussão no espaço municipal, bem como da fixação
de um faseamento correspondente à sua realização no tempo” (ibidem,
pp. 185). Além disso, ensina este mesmo autor, o PDM inclui obrigatoria-
mente “a política municipal de ordenamento, a programação da adminis-
tração urbanística, a regulamentação da prática urbanística, bem como o
plano de financiamento para as respectivas fases de realização” (ibidem,
pp. 186).
Ao limitar o objecto do regulamento ao estabelecimento de regras
sobre a ocupação, uso e transformação do solo, o projecto parece atender
apenas a uma das funções do PDM. E nem se pode referir que é este o
objecto que resulta da legislação em vigor. De facto, ao estabelecer a tipo-
logia dos planos urbanísticos o Decreto nº. 88/90, de 13 de Outubro, apli-
cável no quadro da actual Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho, por força do
artº. 124º. nº. 2 da mesma Lei, define os PDM como “os instrumentos de
planeamento físico que estabelecem as principais opções em matéria de
uso, ocupação e transformação do território a que respeitam...” (artº. 6º)
parecendo conformar-se com a proposta contida no artº. 1º do projecto em
apreciação. Todavia, o artº. 7º do mesmo diploma estabelece um conjunto
280 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

de objectivos que os PDM devem prosseguir que extravasam em muito


a definição contida no referido artº. 6º. Além dos aspectos relacionados
com a ocupação, uso e transformação do solo os PDM programam e de-
senvolvem acções em matéria de zoneamento do território; definem áreas
de localização de actividades produtivas; das infraestruturas; dos equipa-
mentos sociais; asseguram a distribuição geográfica; garantem a coorde-
nação das diferentes actividades e dos projectos de incidência local; for-
necem informações necessárias à definição de políticas de base regional e
nacional e, por último, servem de base à programação das actividades dos
municípios. A já referida quádrupla função atribuída aos PDM pela dou-
trina administrativa está, pois, consagrada na legislação em vigor, o que
torna limitada a proposição contida no artº. 1º. do projecto em apreço.
Nesta conformidade, propomos a seguinte alteração: ou a supres-
são pura e simplesmente do artº. 1º., tendo em conta a nossa proposta de
inclusão de um novo artº. 1º ou a revisão da formulação por forma a tor-
ná-la mais abrangente. A supressão do artigo ainda nos pareceria a mais
adequada, pois o objecto do regulamento é tão sómente a homologação
do PDM da ilha da Boa Vista. Trata-se de um projecto de diploma que
visa apenas homologar o referido plano, fixando as suas regras. É este o
seu objecto.
Refira-se, aliás, que o conteúdo do projecto excede, de longe, o que
no artº. 1º se consubstancia. Da sua leitura resulta que não se ocupa ape-
nas de aspectos relacionados com a ocupação, uso e transformação do
solo, mas também da melhoria da acessibilidade e das condições de trans-
porte; da fixação da população; da protecção e valorização ambiental; da
promoção do turismo; do regime urbanístico do solo; da classificação e
qualificação do solo; da definição das áreas urbanizadas; núcleos turísti-
cos; áreas culturais etc. etc. Por conseguinte, o artº. 1º. diz menos daquilo
que efectivamente constitui o objecto do diploma, razão por que mante-
mos a nossa proposta da sua supressão e substituição pelo artigo propos-
to.

10. Artº. 2º. Âmbito Territorial

Não nos suscita quaisquer objecções. Refira-se apenas uma curiosi-


dade histórica. Até 1855 a administração municipal da Ilha do Sal compe-
tia ao município da Ilha da Boa Vista. Até esta data a circunscrição terri-
torial do município abrangeu não apenas o território da Ilha da Boa Vista,
mas também o território da Ilha do Sal. A partir de 30 de Junho de 1855
a Portaria nº. 21-A, da mesma data, publicada no Boletim nº. 169 mandou
proceder à separação das duas ilhas no que respeita à administração mu-
e outros escritos jurídicos 281

nicipal e criou uma comissão municipal com as atribuições fixadas pelo


Código Administrativo para as Câmaras Municipais, para administrar a
Ilha do Sal. O âmbito territorial do Município da Boa Vista foi, portanto,
reduzido pela referida Portaria.

11. Artº. 3º. Natureza e Antecedentes

A doutrina administrativa tem por altamente controversa a proble-


mática de saber qual seja a natureza dos planos urbanísticos. Uns carac-
terizam-nos como acto administrativo individual; outros como acto adminis-
trativo geral; outros ainda como regulamento administrativo; acto misto ou
instituto jurídico sui generis (para maiores desenvolvimentos cf. Fernando
Alves CORREIA , in O Plano Urbanístico e o princípio da igualdade... pp. 217
e segs; João Paulo Miranda de SOUSA, in Direito do Urbanismo (Os Planos
de urbanização no vigente Ordenamento Jurídico Português), INA, cit. pp. 359 e
segs). Excede largamente os limites deste estudo perpassar os fundamen-
tos de uma e outra proposta doutrinária. Temos para nós que a natureza
que ressalta do regime jurídico dos PDM é a de regulamento administrativo,
sendo certo que a natureza jurídica de qualquer instituto deve necessaria-
mente revelar-se a partir da sua disciplina jurídica (ver no mesmo sentido
Prof. José de Oliveira ASCENSÃO , in Direito Autoral, Lisboa (1989) pp. 70;
Miranda de SOUSA, ob. loc. cit. pp. 361). O artº. 3º. tem por epígrafe “na-
tureza e antecedentes”, estabelecendo o seu nº. 1 que o PDM da Boa Vista
é o instrumento de planeamento que rege a organização espacial do ter-
ritório municipal”. A nosso ver este preceito padece dos mesmos vícios
que referimos a propósito do artº. 1º. - objecto. Na verdade, o PDM não é
apenas o instrumento de planeamento que rege a organização espacial do
território municipal. É, como já se viu, mais do que isso, razão por que se
deve reputar o conteúdo desse preceito insuficiente. Além disso, o nº. 2 do
artº. 3º. não se ocupa da natureza jurídica do PDM, mas sim do seu conceito,
que resulta igualmente insufuciente. Uma coisa é a natureza jurídica de
um determinado instituto, coisa bem diferente é o seu conceito. Não se
referindo à natureza jurídica do PDM deve seguir-se que o conteúdo do
artigo encontra-se em contradição com a sua epígrafe.
Mas este artigo 3º. suscita-nos uma outra objecção. Dispõe o seu nº.
2 que “a elaboração do PDM da Boa Vista foi determinada pela Lei nº. 85/
IV/93, de 16 de Julho que define as bases do ordenamento do território
nacional e do planeamento urbanístico dos núcleos de povoamento”. Não
compreendemos a importância deste preceito regulamentar que se nos
afigura, aliás, em contradição com a lei. Na verdade, nos termos do artº.
5º. do Decreto nº. 87/90, de 13 de Outubro al. a) “compete ao Ministro da
282 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Administração Interna mandar elaborar os planos directores municipais”.


Esta disposição, claramente inconstitucional, por violar o princípio da des-
centralização administrativa, de que o princípio da autonomia do poder local
se pode considerar o principal corolário, deve ter-se hoje por ilegal, pois,
viola o disposto no artº. 28º da Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho nos ter-
mos do qual “a elaboração do plano urbanístico é determinada mediante
deliberação da assembleia municipal...” (nº. 1 al. a). Deste preceito resulta
que não há uma instrução ope legis no sentido de se proceder à elaboração
dos PDM, mas sim o deferimento dessa competência para as assembleias
municipais. Neste sentido, afigura-se-nos que seria mais próprio referir-
se à deliberação da Assembleia Municipal da Boa Vista que determinou
a elaboração do PDM e não a referência que se nos afigura inútil à Lei nº.
85/IV/93, de 16 de Julho.
Por estas considerações, propomos igualmente a supressão, pura e
simples do artº. 3º, sob a epígrafe Natureza e Antecedentes.

12. Artº. 4º. - Regime

Afigura-se-nos deslocado o artº. 4º. O seu lugar sistemático parece


ser no título respeitante ao regime urbanístico do solo - Titulo II. Propo-
mos a sua deslocação para este lugar.

13. Artº. 5º. - Objectivos

Este artigo não nos coloca quaisquer objecções. Harmoniza-se com


o quanto escrevemos anteriormente sobre a função do PDM. Refira-se,
apenas, que reforça as nossas objecções no que respeita ao artº. 1º.

14. Artº. 8º - Prazo de vigência

Este artigo é vinculativo. Dele resultará que o PDM da Boa Vista


não poderá ser revisto antes de decorridos 12 anos sobre a data da sua ho-
mologação. Este prazo, que se harmoniza com o limite máximo legal, afi-
gura-se-me demasiado longo, particularmente se tivermos em considera-
ção que, sendo a primeira vez que se aprovam, relativamente ao território
municipal da Boa Vista, planos desta natureza, dada uma certa inexperi-
ência na sua execução, certamente irão colocar-se problemas de reajusta-
mento que poderão não se compadecer com o limite temporal de 12 anos.
Além disso, não sabemos se ao PDM foi atribuído um valor prospectivo e
uma programação tais que se compaginam com esse horizonte temporal.
Nesta conformidade, propomos uma de duas soluções: ou adoptar-se a
e outros escritos jurídicos 283

formulação estabelecida na Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho segundo a


qual “O Plano Director Municipal... deverá ser revisto no prazo máximo
de 12 anos”, donde resulta a possibilidade de ser revisto a todo o tempo,
por deliberação da Assembleia Municipal, e, obrigatoriamente, antes de
se completarem 12 anos sobre o início da sua execução; ou fixar-lhe um
período mais reduzido dentro do qual não poderá ser revisto, mas a partir
do qual será obrigatoriamente revisto. O limite de 5 anos afigura-se-nos
um prazo razoável e, nesta conformidade, propomos, em alternativa uma
das seguintes formulações ao artº. 8º:

Prazo de vigência

O Plano Director Municipal da Boa Vista deverá ser revisto no prazo


máximo de 12 anos.
ou
O Plano Director Municipal da Boa Vista vigora pelo período de 5 anos, a
partir do qual deverá ser obrigatoriamente revisto.

Qualquer destas duas formulações se harmoniza com o estabele-


cido no artº. 23º nº. 2 da Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho, norma que
tem um carácter imperativo preceptivo, visto que impõe uma actuação
(facere) verificada uma certa previsão: decurso do prazo de doze anos. A
injunção imperativa depende do cumprimento de um termo legal. Antes
do decurso desse período a norma é permissiva, visto que dentro desse
periodo de tempo (12 anos) pode decidir-se ope legis, mediante a fixação
de um periodo mais curto (5 anos) pela revisão do PDM ou ope voluntatis,
mediante a deliberação da Assembleia Municipal, pela mesma revisão.
Esta possibilidade de revisão num e noutro caso ficaria gorada mediante
uma formulação como a contida no projecto em apreciação, pois propõe,
imperativamente, um prazo de vigência de 12 anos. São estas as razões
por que opinamos no sentido referido.

15. Artº. 9º - Estatuto da propriedade imobiliária.

Como se colhe do projecto, este artigo corresponde ao artº. 36º da


Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho que praticamente reproduz. Não com-
preendemos a importância de se reproduzir, sem regulamentar, num di-
ploma que pela sua natureza é um regulamento, disposições da lei geral.
Esta norma deverá ser descida ao nível de regulamento adaptando-a à
realidade concreta do PDM.
284 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

16. Artº. 10º. - áreas não urbanizáveis

Este artigo nos suscita apenas uma alteração de forma. No nº. 3


onde se lê “... sem prejuízo da realização de operações...” afigura-se-nos
que se deve ler “...mas poderão ser realizadas operações...”

17. Artº. 12º. - áreas agrícolas

Este artigo nos suscita, igualmente, apenas uma alteração de for-


ma. Em vez de “... que possuam características adequadas à actividade
agrícola e agro-pecuária, ou que as possam vir a adquirir”, propomos a
seguinte formulação: “que possuam ou venham a adquirir características
adequadas à actividade agrícola e agro-pecuária”.
Afigura-se-nos igualmente que o nº. 2 carece de uma mais ampla
regulamentação. A referência na alínea a) a “todas as acções e actividades
que destruam as potencialidades agrícolas do solo” é demasiado genérica.
Mostra-se necessário estabelecer mais concretamente as acções proibidas.
Por exemplo: cortar árvores; plantar determinadas espécies; cortar tarafes
e outros arbustos cuja remoção facilite a erosão do solo arável; extrair le-
nha; podar árvores etc. etc. A formulação demasiado genérica por que se
optou obriga que o PDM venha a necessitar de um amplo regulamento
de execução.
A alínea b) do artº. 12º. parece exceder as limitações contidas no
artº. 42º. da Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho. Do artº. 12º proposto resulta
que nas áreas agrícolas só é permitida a instalação de “equipamentos de
apoio à actividade agrícola” (nº. 2 al. b). Não é isso que resulta do art.
42º da Lei nº. 85/IV/93 que parece permitir, igualmente, nessas áreas a
construção de casas unifamiliares, quando não exista a possibilidade de
formação de núcleos de povoamento concentrado; instalações e equipa-
mentos para apoio das actividades de turismo; recreio e lazer e, de um
modo geral, todas as edificações de excepção referidas no artº. 42º. nº. 2
als. a) a g). Da formulação proposta resultaria que o proprietário de uma
área agrícola não poderia instalar nela aquele restaurante muito aprecia-
do para onde aos domingos se desloca a população para se refazer, entre
o verde, de uma semana de azáfama. A lei não conduz neste sentido e é
bom que assim seja.
É claro que se poderá contra-argumentar que as excepções à proi-
bição de construir em áreas agrícolas já se encontram previstas no artº.
11º do PDM, mas esta referência não deixa o problema resolvido porque
a disposição do artº. 11º estabelece, em termos gerais, quais as edificações
que, excepcionalmente, poderão ser implantadas nas áreas não urbanizá-
e outros escritos jurídicos 285

veis. Sendo certo que a norma especial - no caso da área agrícola a conti-
da no artº. 12º) - derroga a norma geral (lex specialis derrogat lex generalis),
deve seguir-se que o que contará para efeitos de excepção aos limites à
edificabilidade em áreas agrícolas será o contido no artº. 12º e não o con-
tido no artº. 11º. Neste sentido, a disposição do artº. 12º nº. 2 al. b) é ilegal
porque viola o disposto no artº. 42º. nº. 2 da Lei nº. 85/IV/93.
Propomos assim a supressão da al. b) do nº. 2 do artº. 12º, deixando
que a excepção à proibição de construir em área agrícola decorra da apli-
cação do nº. 11º. proposto, até porque sendo imperativa a disposição do
nº. 2 do artº. 42º da Lei 85/IV/93 serão esses e apenas esses os limites que
poderão ser estabelecidos em regulamento.

18. Artº. 13º. áreas silvo-pastoris

Tanto nas áreas agrícolas, como nas áreas silvo-pastoris afigura-se-


nos necessário estabelecer certas imposições. O quanto escrevemos sobre
a breve história do direito do urbanismo em Cabo Verde poderá ser algo
ilucidativo. A obrigação de plantar um determinado número de árvores
em atenção à extensão do terreno, parece-nos uma medida a retomar. Esta
medida poderá ser acompanhada com determinadas políticas de natureza
fiscal, como por exemplo a redução nos impostos, em atenção ao núme-
ro de árvores plantadas ou outras contrapartidas atribuídas pelo Municí-
pio.

19. Artº. 19º. - Núcleos turísticos

No nº. 1 deste artigo onde se lê Santa Mónica deve ler-se Currali-


nho.

20. Artº. 20º. Áreas de ocupação industrial

A tipologia estabelecida pelo nº. 2 deste artigo, distinguindo as áre-


as industriais do Município em área industrial e armazém de apoio ao
futuro porto da Vila de Sal-Rei e Unidades industriais existentes - fábrica
de peixe em Sal-Rei e Fábrica de cerâmica do Rabil, não se nos afigura a
mais adequada. Antes de mais, porque dele resulta que nos próximos 12
anos, tempo previsto para a execução do Plano, manter-se-ão as mesmas
indústrias. Além disso, não é absolutamente seguro que quer a fábrica de
peixe de Sal-Rei, quer a fábrica de cerâmica do Rabil se manterão nos lu-
gares onde se encontram implantados. Pensamos que essa tipologia deve
ser estabelecida em abstracto, em atenção às possibilidades de desenvol-
286 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

vimento industrial da ilha no seu todo e não em concreto. Sendo Boa Vis-
ta uma ilha predominantemente agrícola e ao mesmo tempo redeada de
praias, suscita-se alguma dificuldade em definir uma área de concentra-
ção industrial. Dada a pequenez da ilha a ligação entre as áreas urbanas
e as áreas agrícolas não tem grandes soluções de continuidade, a ponto
de se poder definir à partida uma certa área como área de concentração
industrial. Mas o PDM poderá estabelecer certas condicionantes com vista
à implantação de estabalecimentos de natureza industrial.
Assim, afigura-se-nos que a implantação de quaisquer unidades
industriais deverá ser precedida de um estudo específico de localização, sem
o qual o Câmara ficará vinculada a não autorizar a implantação dessas
mesmas unidades.
A legislação em vigor obriga igualmente à realização de estudos de
impacte ambiental precedendo a instalação de qualquer unidade indus-
trial.
O PDM poderá tirar partido dessa obrigação legal, condicionando
igualmente a autorização ou licença camarária para a instalação de indús-
tria à aprovação do estudo de impacte ambiental.
Pensamos igualmente que o PDM deverá fixar certas obrigações
que orientarão o estudo específico de localização da unidade industrial:
não poderão atingir zonas de expansão urbana, nem zonas de desenvol-
vimento turístico, paisagístico, agrícola, silvo-pastoril e, devendo ser nas
suas proximidades, essas zonas deverão ser salvaguardadas com um cer-
to perímetro de protecção.
Nas zonas de localização industrial deverão ser igualmente estabe-
lecidas certas imposições, nomeadamente, a obrigação de plantar árvores
e a proibição de não cortar árvores.
Isto em conformidade, sugerimos a seguinte disposição:

Artº. 21º - implantação de unidades industriais

1. A autorização para a implantação de unidades ou estabelecimentos de


natureza industrial nas áreas abrangidas pelo PDM-Boa Vista depende da verifi-
cação comulativa dos seguintes requisitos:
a) -Terem sido realizados estudos específicos de localização da unidade in-
dustrial, com a participação dos serviços competentes da Câmara Municipal da
Boa Vista ou com a participação de um técnico nomeado pela mesma Câmara;
b) - Terem sido realizados estudos de impacte ambiental, de harmonia com
a legislação em vigor.

2. Os estudos referidos na alínea a) do número anterior deverão respeitar a


delimitação das áreas de expansão urbana e peri-urbana; as áreas agrícolas, silví-
e outros escritos jurídicos 287

colas, florestais, paisagísticas e naturais e quando as unidades industriais devam


localizar-se nas suas proximidades deverá ser estabalecido um perímetro de pro-
tecção por forma a causar-lhes o mínimo de dano.

21. Artº 22º - condicionantes

A autorização para a implantação de uma unidade ou estabeleci-


mento industrial poderá ser acompanhada de obrigações impostas ao re-
querente, destinadas a preservar o meio ambiente, o património natural,
paisagístico, agrícola ou florestal.

22. Artº. 24º. - rede rodoviária

A disciplina da rede rodoviária aparece no PDM apenas como con-


dicionante, ou seja, o projecto se preocupa apenas em criar uma faixa non
edificandi ao lado das estradas principal e secundária e dos caminhos ru-
rais. Todavia, nos termos do artº. 23º nº. 3 al. c) da Lei 85/IV/93 o PDM
deve fazer o traçado esquemático da rede viária, donde a dúvida que se
poderá colocar quanto à questão de saber se o actual traçado esquemáti-
co das estradas servirá o desenvolvimento da ilha nos próximos 12 anos,
caso se mantenha esse período de vigência do PDM.
A faixa non edificandi quer das estradas, quer dos caminhos rurais
afigura-se-me reduzida. Nos próximos anos alguns desses caminhos se
transformarão em estradas e estas tenderão, necessariamente, a alargar-
se. Note-se que a actual largura das estradas da Boa Vista são pouco mais
do que suficientes para a circulação de uma viatura de pequeno porte.
Sem pretender comparar Boa Vista com o caso português, recordamos
que em alguns casos foi estabalecida em Portugal, por certos planos de
ordenamento do território, uma faixa non aedificandi de 200 metros de
cada lado. Penso que poderemos, no nosso caso, ir até aos 100 metros de
cada lado nas estradas principais e 50 metros nas estradas secundárias,
aplicando-se o mesmo regime nos caminhos rurais pela sua vocação de
se transformarem, posteriormente, em estradas. Até porque, tendo a fai-
xa non aedificandi a natureza jurídica de servidão administrativa poderá a
qualquer momento ser levantada (sobre o regime jurídico das servidões
administrativas cfr. Marcelo CAETANO, in Manual de Direito Administra-
tivo, vol. II , 9º. edição (reimpressão), Coimbra 1980, pp. 1052 e segs).
O nº. 4 do artº. 24º do projecto de regulamento do PDM estabelece
uma faixa de protecção com a largura de 20 metros para cada lado do eixo
da via, sem, todavia, definir qual seja essa via.
288 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

23. Artº. 25º. saneamento básico

No nº. 3 deste artigo propomos a seguinte alteração formal: em vez


de ...”deve observar as seguintes disposições e dispor dos seguintes...”
refira-se “deve obedecer às seguintes disposições e observar os seguintes
perímetros de protecção...”.
Da leitura das alíneas a) e b) deste artigo se colhe que o perímetro
de protecção próxima está contido no parímetro de protecção à distância.
Perguntamos se, tendo em conta a sua finalidade, não será demasiado re-
duzido esse perímetro de protecção à distância (100 metros). Nos termos
do nº. 4 do artº. 26º no perímetro de protecção próxima não devem existir
fossas, culturas adubadas ou estrumadas. Nos parímetros de protecção à
distância não devem ser efectuadas regas com águas negras, como não de-
vem ser implantadas instalações sanitárias, lixeiras ou currais. Não com-
preendemos muito bem essa diferença de regime. Será que no perímetro
de protecção à distância poderão ser construídas fossas; fazer culturas
adubadas ou estrumadas e permitir a acumulação de águas pluviais? Será
que uma fossa ou cultura estrumada instalada a 20 metros de um furo
de captação de água para abastecimento público causa significativamente
mais danos ao furo do que instalada a 100 metros?
Cremos que não se justificam estes dois níveis de perímetro porque
a cada um não corresponde um regime específico ou um conteúdo espe-
cífico. Afigura-se-nos que estabelecendo um perímetro de protecção num
raio de 100 metros em torno da captação, dando-lhe o conteúdo a que se
reporta o nº. 4, alcança-se o objectivo pretendido.
Nesta conformidade, propomos as seguintes alterações aos nºs. 3 e
4 do artº. 26º:
“3. Os furos de captação de água para abastecimento público de-
vem dispor de um perímetro de protecção a captações subterrâneas num
raio de 100 metros em torno ca captação.
4. No perímetro de protecção não devem existir depressões, fossas,
culturas adubadas...”

24. Artº. 29º Dunas e praias

A excepção prevista no nº. 4 do artº. 29º não se nos afigura a mais


adequada. Exclui da proibição de construir nas praias apenas os empreen-
dimentos turísticos previstos e em curso quando pensamos que se tratará
de fixar critérios abstractos aplicáveis a quaisquer praias. Parece que esse
critério é o de a construção revestir natureza turística. Todavia, não cre-
mos que deva ser esta a melhor solução. O boavistense tem uma ligação
e outros escritos jurídicos 289

intensa com o mar. Reservar todas as praias para a instalação de empreen-


dimentos turísticos significa cortar-lhe, em alguma medida, essa ligação.
Além disso, mostra-se necessário evitar que através dos Planos de urba-
nização se criem mecanismos de segregação social. Pensamos que cada
praia (onde se lê Praia de Santa Mónica deve ler-se Praia do Curralinho)
deve ser objecto de um Plano Detalhado onde se definem as zonas turís-
ticas, de habitação, de lazer, de cultura; de recreio e os demais aspectos
previstos no artº. 25º nº. 4 da Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho. Importa
que o regulamento não amarre o Município com certos compromissos que
poderão ser eventualmente prejudiciais.
Nesta conformidade, propomos a seguinte alteração ao nº. 4 do
artº. 29º:
“As praias serão objecto de um plano urbanístico detalhado”.

25. Artº. 30º - Arribas

Propomos as seguintes alterações de forma ao artº. 30º:


“As áreas de arriba assinaladas na carta de condicionantes geomor-
fológicas deverão ser objecto de protecção, sendo nelas interditas todas as
acções que possam prejudicar as suas características naturais”.

26. TITULO III - DISPOSIÇÕES FINAIS

O projecto de diploma refere-se duas vezes a “disposições finais”:


uma vez no título III (artºs. 35 e segs) e uma segunda vez no Capitulo V
(artºs. 47º e segs). Todavia, o conjunto das disposições que integram quer
o título, quer o capítulo não revestem características próprias de dispo-
sições finais. Tratam-se de normas sobre a Execução do planeamento ur-
banístico, revisão e reformulação dos planos; sua interpretação; consulta
pública e fiscalização. Estas disposições vão buscar a sua génese nos artº.s
60º e segs da Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho, capítulo que tem por título
DA EXECUÇÃO DO PLANEAMENTO URBANÍSTICO. É esta denomi-
nação que se nos afigura mais adequada ao título III.

27. Artº. 43º - Interpretação

A norma contida no artº. 43º do projecto é ilegal e, por via indirec-


ta, inconstitucional, por violar o princípio da autonomia do poder local.
Vimos que por força deste princípio a competência para de decidir da
elaboração dos PDM é das assembleias municipais. A estas mesmas as-
sembleias compete aprovar os planos urbanísticos como lhes assiste igual-
mente interpretá-los. Propomos:
290 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Artº. 43º. - interpretação

1. Compete à Assembleia Municipal da Boa Vista interpretar e integrar as


disposições do PDM Boa-Vista. Esta competência poderá ser delegada no Presi-
dente da Câmara.
28. Artº. 44º - Consultas que impliquem interpretação
O que referimos a respeito do artº. 43º é aplicável, mutatis mutandis,
ao artº. 44º. Esta matéria não é da competência do Ministro, mas sim da
Assembleia Municipal que poderá delegá-la no Presidente da Câmara.

29. Artº. 46º - Revisão

Ver o que escrevemos em comentário ao artº. 8º.

30. Artº. 47º - Fiscalização

É da competência da Câmara Municipal a fiscalização do cumpri-


mento das disposições do presente regulamento. Não se trata, hoje, de
uma competência da Direcção-Geral do Ordenamento do Território, sob
pena de se consentir uma imiscuência do poder central nas atribuições do
poder local. Suprima-se, pois, a referência à DGOT.

31. Artº. 50º - Entrada em vigor

A norma contida no artº. 50º do projecto contraria o disposto na lei


geral sobre a entrada em vigor dos diplomas legais. Essa vigência ocorre,
em geral, no 5º dia após a publicação, para o território nacional, e no 30º
dia, nos demais casos. Trata-se de um limite mínimo que não pode ser
violado. Refira-se apenas que o presente diploma entre imediatamente
em vigor.

32. Aspectos omissos no PDM

O projecto do PDM da Boa Vista é omisso quanto a um conjunto de


aspectos que importa aqui fazer referência.

a) - Infracções urbanísticas

Consideram-se infracções urbanísticas os actos que estando sujeitos a


licença ou autorização municipal, se realizem sem uma ou outra, sejam ou
e outros escritos jurídicos 291

não legalizáveis face à sua conformidade com as normas do ordenamento


aplicáveis e bem assim os actos que sejam praticados em desconformida-
de com licença de construção, autorização ou ordem de execução (artº.
104º da Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho).
Tanto o PDM como os demais regulamentos em apreço não prevê-
em disposições destinadas a sancionar comportamentos, sejam acções ou
omissões, adoptados em violação de normas que disciplinam o planea-
mento urbanístico. Nos termos do artº. 47º do projecto de PDM atribui-se
à Câmara Municipal da Boa Vista competência para fiscalizar, em cola-
boração com a Direcção-Geral do Ordenamento do Território, o cumpri-
mento dos planos urbanísticos, mas desse mesmo projecto não resultam
quaisquer normas que tipificam as acções ou omissões susceptíveis de
constituir infracção urbanística e quais as sanções que lhes deveriam cor-
responder. Esta omissão não tem, todavia, como consequência a ausência
absoluta de normas que reprimam comportamentos que de uma forma ou
outra impedem, perturbem ou criam obstáculos à melhor realização do
PDM e dos demais planos urbanísticos.
A questão que se deve colocar é a de saber se este regulamento, pelo
seu valor hierárquico-formal (vimos que o diploma que o aprovará tem
o valor formal de decreto) constitui diploma bastante para regular esta
matéria. Esta questão obriga-nos a discorrer, ainda que de modo sucinto,
sobre os pressupostos jurídico-constitucionais em matéria de repressão de
comportamentos, maxime os de natureza urbanística.
Em direito do urbanismo podemos distinguir infracções com uma
dupla natureza: infracções de natureza penal e infracções de natureza
contra-ordenacional.

a.1) - Infracções penais

Constitui infracção penal o comportamento que viola uma norma


penal. Com efeito, o facto para ser punível deve ser típico, no sentido de
que deve encontrar-se descrito e declarado punível por uma norma ante-
rior ao momento da sua prática. A tipicidade é, portanto, um pressuposto
de punibilidade.
A Constituição sujeita ainda ao princípio da reserva de lei, também
chamado princípio da legalidade, a disciplina das infracções criminais, o que
tem como consequência que só mediante lei formal, ou seja lei emanada da
Assembleia da República ou emanada do Governo no uso de autorização
legislativa, podem ser estabelecidas reacções de natureza criminal.
A Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho é pouco esclarecedora a respeito
das infracções urbanísticas de natureza criminal. Embora contenha um
292 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

capítulo destinado exclusivamente à disciplina das Infracções Urbanísti-


cas (cap. VII, artºs. 103º e segs), não permite identificar quais as que têm
natureza penal. Pelo contrário, parece arrumar numa única disposição as
infracções de diferente natureza, porquanto os actos sujeitos a licença ou
autorização a que se refere o artº. 104º nº. 1 a), tanto podem ter natureza
penal, como contraordenacional. A medida é criticável porque não per-
mite identificar os comportamentos que poderão constituir infracção (
por exemplo, prosseguimento dos trabalhos sem autorização; cedência do
prédio a terceiros; construção para além da altura máxima; implantações
urbanísticas em terreno não urbanizável, etc. etc) os quais só poderão ser
determinados pela remissiva, ou seja, partindo da norma que sujeita a
licença ou autorização municipal a prática destes actos. Estamos, todavia,
em crer que não foi propósito do legislador de 1993 adoptar uma disci-
plina penalistica das infracções em matéria do urbanismo, como parece
decorrer da natureza das sanções que adopta com vista à reposição da le-
galidade urbanística: restauração da ordem jurídica afectada; restauração
da realidade física alterada pelo acto ilegal; suspensão e anulação do acto
administrativo em que se funda a infracção urbanística; ressarcimento de
danos; indemnização dos prejuízos; embargo; demolição e reposição do
terreno no estado em que se encontrava (cfr. artºs. 105º a 107º).
O único momento em que o legislador se refere a infracções de na-
tureza criminal reporta-se ao artº- 105º al. c) referindo-se à imposição de
sanções aos responsáveis pelas infracções urbanísticas “sem prejuízo da
responsabilidade... criminal... em que eventualmente tenha incorrido”,
donde parece resultar que não terá querido disciplinar as infracções ur-
banísticas desta natureza.
Não tendo o legislador disciplinado estas infracções deve retirar-se
duas consequências: a primeira é a de que não compete a este regulamen-
to tipificar os comportamentos e estabelecer as sanções correspondentes
de natureza criminal porque isso o feriria de insconstitucionalidade or-
gânica (Governo a praticar actos próprios da Assembleia da República)
material (Governo a legislar sobre matéria reservada da AR, sem a compe-
tente autorização legislativa) e formal (pois ainda que tivesse autorização
legislativa a forma competente não seria a de Decreto, mas sim de Decreto
Legislativo). A segunda é a de que em virtude do princípio da legalidade
não poderão ser punidos comportamentos não previstos em lei temporal-
mente anterior ao momento da sua prática, pelo que será pelo recurso à
legislação comum, como aliás decorre da al. c) do artº. 104º, que se reagirá
contra as infracções urbanísticas de natureza criminal.
Nesta conformidade, são aplicáveis às infracções desta natureza o
estabelecido na lei geral. Assim, se a infracção urbanística consistir na de-
e outros escritos jurídicos 293

sobediência a uma ordem legitimamente emitida para adoptar ou abster-


se de uma certa actuação urbanística, se a esta infracção não corresponde-
rem sanções de outra natureza, poderá ser reprimida como crime de deso-
bediência, previsto e punido nos artºs. 188º e 189º do Código Penal vigente.
O mesmo se passará com outros comportamentos típicos de natureza pe-
nal descritos e punidos em lei geral, mas susceptíveis de enquadrar uma
actuação urbanística. Refira-se, todavia, que, sempre tendo em conta o
pricípio da tipicidade, se tais comportamentos não estiverem claramente
descritos a infracção não será punível porque nâo prevista em lei anterior
(princípio da não retroactividade). Recomenda-se assim à Câmara Municipal
da Boa Vista que, no quadro da Associação de Municípios, promova a
urgente elaboração de uma tipologia de infracções urbanísticas pela inca-
pacidade que se experimentará, em muitos casos, de não poder punir, no
quadro da lei geral, certos comportamentos urbanístico-criminais.

a.2) - Contraordenações

Caracteriza-se como contraordenação a actuação urbanística que


corresponda a um facto ilícito e censurável punido com uma coima. Tam-
bém esta modalidade de infracção urbanística não parece ter encontrado
acolhimento na Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho. Sendo certo que estas
infracções se caracterizam pela natureza da reacção - aplicação de uma
coima - não prevendo a referida Lei nenhuma infracção contra a qual re-
age com coima deve seguir-se que também esta modalidade de infracção
não foi comtemplada pela lei.
Como reagir, então, às actuações urbanísticas susceptíveis de cau-
sar gravames à boa execução dos planos urbanísticos?
Antes de mais através das reacções administrativas previstas nos
artigos 103º a 109º da Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho. Algumas dispo-
sições desta Lei poderiam ser regulamentadas pelo PDM, naturalmente,
sem violar o seu conteúdo, em atenção ao fim específico das suas normas.
Neste sentido, propomos a inclusão de mais um capítulo no regulamento
do PDM da Boa Vista que contenha as reacções adequadas.
Não se compadece nos limites deste estudo identificar essas acções,
seus autores e as correspondentes reacções. Na infracção urbanística cer-
tas reacções serão dirigidas para o dono da obra; outras para o responsá-
vel da obra; outras ainda para o comitente; outras para o comissário. Só
através de um estudo cuidado de cada uma das disposições do PDM e dos
comportamentos que autoriza ou proíbe é possível identificar a reacção
correspondente.
294 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Assim, a utilização de áreas não urbanizáveis para fins de urbani-


zação importará, necessariamente, uma reacção. Mas essa reacção para
além de ser diferente consoante o sujeito infractor e o seu grau de parti-
cipação e de culpa, será igualmente diferente consoante se trate de edifi-
cação em área agrícola, silvo-pastoril, áreas naturais, residuais ou classifi-
cadas. Do mesmo modo, nas áreas urbanizáveis a edificação depende do
loteamento e a construção sem obediência às regras de loteamento urbano
envolve uma reacção. Existem certas operações como seja a violação da
faixa non edificandi seja no que respeita à rede viária, seja no que respeita
ao saneamento básico ou a construção em domínio público tal como ou-
tras actuações urbanísticas como seja a instalação de depósitos de lixo, a
construção em dunas ou nas praia, a violação da distância mínima para
implantação de instalações pecuárias requerem, entre outras, uma reac-
ção não só destinada a reprimir a primeira actuação, como também para
prevenir ou reprimir actuações reincidentes.
A disciplina destas infracções urbanísticas impõe-se, portanto, até
porque a sua adopção neste regulamento terá um efeito pedagógico e dis-
suasor, tendo em conta a ampla publicidade que a lei obriga do PDM.
Refira-se igualmente que certos comportamentos que caracterizem
infracções de natureza urbanística poderão ser prevenidas ou reprimidas
através dos mecanismos previstos no Regulamento Geral de Construção e
Habitação Urbana, aprovado pelo Decreto nº. 130/88, de 31 de Dezembro
ou ainda através da aplicação do Código das Posturas Municipais da Ilha
da Boa Vista, aprovado por deliberação da Assembleia Municipal de 22
de Julho de 1994, conforme aviso de 5 de Dezembro do mesmo ano publi-
cado no B.O. nº. 49. Nos termos do artº. 5º da Lei nº. 134/IV/95, de 3 de Ju-
lho que aprovou o Estatuto dos Municípios, “o município goza de poder
regulamentar próprio, que lhe permita criar normas gerais com carácter
obrigatório na área da sua jurisdição, sobre matéria integrada no quadro
das suas atribuições, nos limites da Constituição e da Lei”. Ao abrigo des-
ta disposição o Municipio da Boa Vista poderá, nomeadamente, proceder
à revisão do Código das Posturas Municipais, adaptando às exigências de
execução não apenas do PDM mas também dos demais planos urbanísti-
cos em curso de aprovação. Recomenda-se, pois, igualmente a revisão do
Código das Posturas Municipais em atenção a esta nova realidade que são
os Planos Urbanísticos. Também o Regulamento de Ocupação e Conces-
são de Terrenos nas Províncias Ultramarinas, aprovado pelo Decreto nº.
43894, de 6 de Setembro de 1961 adoptou nos seus artigos 265º e segs uma
rígida disciplina de infracções, mandando punir com pena criminal mui-
tas actuações de natureza urbanística. Atente-se também ao que dispõe
o Decreto nº. 87/89, de 24 de Novembro que regulou as actividades dos
empreiteiros de obras públicas e particulares.
e outros escritos jurídicos 295

Até que seja adoptado um regime coerente destas infracções serão


por estas normas que as mesmas se regularão.

b) - O ambiente

É igualmente notável que o PDM não está orientado por preocupa-


ções sérias em matéria do ambiente. É certo que algumas das suas normas
tocam aspectos relacionados com o ambiente, mas parece-nos que falta a
definição de uma política ou pelo menos a adopção de normas que visam
a prossecussão de uma política do ambiente. Particularmente numa ilha
onde o espectro da desertificação é, há mais de um século, uma constante,
seria de todo o interesse que o PDM fosse cotejado, a par e passo, com
disposições ordenadas para o combate à desertificação. Neste particular,
recordamos que Cabo Verde é parte na Convenção Internacional sobre a Luta
Contra a Desertificação Nos Países Gravemente afectados pela Seca e/ou pela De-
sertificação, particularmente em África, adoptado em 1994, instrumento que
obriga os Estados contratantes a estabelecer estratégias e a definir priori-
dades no quadro dos planos ou políticas de desenvolvimento durável para
lutar contra a desertificação e diminuir os efeitos da seca. Pela sua posição
herárquica - recorde-se que as convenções internacionais têm valor su-
pra-legal - as normas desta Convenção vinculam sejam os Planos de Or-
denamento do Território, sejam os Planos Urbanísticos, tanto directa, se
das suas normas resultarem comandos dirigidos a entidades públicas ou
privadas, como indirectamente, através da consubstanciação desses mes-
mos comandos em lei ordinária. Realce-se que uma política do ambiente
definida através do PDM seria até proveitosa para o Município, tendo em
conta o sistema de cooperação, inclusivé financeira, que essa Convenção
preconiza para a implementação dos planos que as contiverem.

c) - aeroporto

Pensamos que o PDM deveria estabelecer uma reserva para im-


plantação do futuro aeroporto internacional da Boa Vista. O antigo pro-
jecto de Santa Mónica (Curralinho) previa um aeroporto. Não sabemos
se não será de retomar esta ideia. Não dispomos de elementos que nos
permitam aprofundar este ponto.

§ 3º. Regulamento do Plano de Urbanização de Sal-Rei

É incontestável o apuramento técnico revelado no projecto de Re-


gulamento do Plano de Urbanização da Vila de Sal-Rei. A constante re-
296 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

missão para a Planta legal permitiu um regulamento bastante mais com-


preensível do que aquele que contém o Plano Director Municipal da Boa
Vista. A nosso ver, faltou ao PDM esta postura remissiva que permitiria
clarificar muitas das suas opções.
O projecto suscita-nos, todavia, alguns problemas de forma que
passamos a referir:

1. Artº. 1º. Designação do plano

Tal como referimos a respeito do PDM também este artigo carece


de alguns ajustamentos. Nos termos da legislação em vigor compete ao
Ministro da Administração Interna a aprovação dos planos de desenvol-
vimento urbanístico (artº 20º nº. 2 do Decreto nº. 87/90, de 13 de Outubro,
ex vi do artº. 124º nº. 2 da Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho). Falta-lhe,
pois, o cabeçalho como se segue:

Portaria nº …………/96
Ao abrigo do disposto no artº. 20º nº. 2 al. a) do Decreto nº. 87/90, de 13 de
Outubro ex vi do artº. 124º nº. 2 da Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho;
Manda o Governo pelo Ministro da Justiça e Administração Interna:

Do mesmo modo o conteúdo do artº. 1º. dá ideia que o regulamen-


to e a planta são duas realidades separadas que se juntam para formar o
PDU-Sal-Rei. Não é este o sentido da lei. Ao aprovar ou homologar os do-
cumentos que integram o PDU o regulamento apropria-se de todos esses
elementos que passam a fazer parte integrante dele. Neste sentido é mais
esclarecedor, por exemplo, o artº. 1º. do Decreto Regulamentar nº. 11/91,
de 21 de Março que aprovou o Plano Regional de ordenamento do Terri-
tório para o Algarve (PROT-Algarve). dispõe nestes termos: “O presente
diploma consagra o Plano Regional de Ordenamento do Território para o
Algarve...”. É que o regulamento é ele próprio o Plano, contém o Plano e
apropria-se de todos os elementos que integram o Plano.
O diploma que aprova quer os planos de ordenamento do territó-
rio, quer os planos urbanísticos têm este sentido: contém os planos respec-
tivos que dele fazem parte integrante; consagram esses mesmos planos,
conforme a terminologia utilizada no PROT-Algarve. Por isso, propomos
a seguinte redacção ao artº. 1º.:

Arº. 1º.
(homologação)
É homologado o Plano de Desenvolvimento Urbano da Vila de Sal-Rei,
ilha da Boa Vista, adiante designado por PDU Sal-Rei, anexo ao presente diploma
e dele faz parte integrante.
e outros escritos jurídicos 297

2. Artº. 2º. âmbito territorial

No nº. 2 deste artigo a Unidade de Execução 3 deve denominar-se


área de S. Cristóvão e não área do Estoril.
Não se sabe ao certo a data em que a Ilha de S. Cristóvão (Jlha de
sã Christouã) passou a denominar-se Ilha da Boa Vista ou vice-versa. A
resposta a esta questão fundamental encontra-se diluída na problemática
que rodeia o feito do achamento das Ilhas de Cabo Verde e a data desse
achamento, o que levanta igualmente uma outra problemática: a de saber
se foi a ilha da Boa Vista ou a Ilha de Santiago a descoberta em primeiro
lugar. O veneziano Luiz de CADAMOSTO e o português Diogo GOMES
iniciaram eles próprios desde o século XV esta disputa sobre a autoria do
achamento das ilhas, lançando desde então os historiadores numa polé-
mica que ainda hoje não terminou. O mais recente livro de História de
Cabo Verde retoma o problema pela voz do Prof. Luiz DE ALBUQUER-
QUE (cfr. História Geral de Cabo Verde, vol. I, Lisboa 1991, pp. 23 e segs)
com novos dados, sem ser, contudo, definitivamente esclarecedor.
Numa coisa parece, todavia, que os historiadores estão de acordo:
foi o veneziano Luiz de CADAMOSTO (Alvise de Cá da Mosto) que atri-
buiu à ilha o nome Boa Vista. Ouçamos o próprio veneziano referindo-
se a um temporal que o havia surpreendido na costa ocidental africana:
“duas noites e três dias aguentamos o tempo até que avistamos terra, o que mui-
to nos espantou porque não a esperávamos naquelas paragens. Vimos então que
eram duas grandes ilhas até alí desconhecidas. Á primeira ilha em que abordámos
pusemos o nome de ilha da Boa Vista por ter sido a primeira que vimos naquelas
partes”- cit. por Manuel PINHEIRO CHAGAS, in História de Portugal, vol.
2º., Lisboa 1899, pp. 343. Boa Vista é, portanto, o nome atribuído à ilha por
CADAMOSTO, o que é reconhecido pela generalidade dos historiadores
e pelo próprio Pinheiro CHAGAS, um dos mais acérrimos críticos das
teses de CADAMOSTO sobre o achamento das ilhas.
O que é certo é que o nome Ilha de S. Cristóvão é aquele que aparece
nos documentos oficiais mais antigos. Por Carta de Doação Régia de 3 de
Dezembro de 1460 D. Afonso V transferiu, com todas as rendas, direitos
e jurisdições para o Infante D. Fernando as cinco ilhas antes descobertas,
fazendo expressa referência à ilha de S. Cristóvão (sam Christouam). Lê-se,
igualmente, na Carta de Doação ao Infante D. Fernando das Ilhas de Cabo
Verde feita por D. Afonso V com a data de 19.9.1462:
“...forã achadas xij Jlhas,.s: çimquo per Antonyo de Nolle em vida do Jfante
dom Anrrique meu tio, que deus aja, que se chamã a Jlha de Santiago e Jlha sam
Filipe e a Jlha das Mayas e a Jlha de sã Cristouã e Jlha do Sall, que sã nas partees
da Guineea, e as outras sete ... que sam estas: a Jlha Braua e a Jlha de san Nycollao
298 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

e a Jlha de sam Vicente e a Jlha Rasa e a Jlha Bramca e a Jlha de samta Luzia e a
Jlha de Santa(n)tonio que sã atraués do cabo Verde...” ( in História GERAL DE
CABO VERDE, Corpo Documental, vol. I, Lisboa (1988) pp. 15 e 17).

S. Cristóvão é o padroeiro dos navegantes, festejado no dia 25 de


Julho, data que nos permite extrair uma de duas interpretações: a de que
ela marca o dia do achamento da ilha da Boa Vista ou, como admite o Prof.
Luiz de Albuquerque, que outro navegador a teria igualmente descoberto
e lhe dado este nome. O que é certo é que o nome Ilha de S. Cristóvão fez
a sua própria carreira. Gerou Baía de S. Cristóvão, nome atribuído inicial-
mente à actual Baía de Sal-Rei também chamada Porto Inglês, mercê da
importância que os ingleses tiveram na ilha em matéria de exploração de
salinas, como gerou praia de S. Cristóvão, modificado por via popular
para Praia de Jon Q’ston.
Este debate de inegável interesse para a história da Ilha da Boa Vis-
ta será prosseguido em lugar próprio.
O que importa aqui reter é que não se pode apagar da memória co-
lectiva praticamente a última referência que nos liga à denominação Ilha
de S. Cristóvão. Praia de João Cristóvão ou mesmo praia de Jon Q’ston,
se se aceitar a modificação por via popular, é, portanto, um património a
preservar. Estoril não tem para nós nenhum significado. Não nos liga a
nada e é sobretudo uma referência particularmente incómoda.

3. Artº. 6º - Uso do solo e dos edifícios

No nº. 1 deste artigo onde se lê “... são destinadas ao domínio pú-


blico da Câmara da Boa Vista” deve ler-se “integram o domínio público
da autarquia”.

4. Artº. 7º. Edificabilidade

No artº. 7º. nº. 1 onde se lê “... nos prédios existentes ou a criar...”


deve ler-se “nos prédios existentes ou a implantar”...”.
O nº. 2 deste artigo deve ser completado como se segue: “... nome-
adamente o Regulamento Geral da habitação e Construção Urbana, apro-
vado pelo Decreto nº. 130/88, de 31 de Dezembro”.

5. Artº. 10º - Unidade de Execução 1 - Centro

A altura máxima prevista no nº. 2 deste artigo (2 pisos) pode con-


tender com licenças já concedidas noutro sentido. Em disposição final ou
transitória estas situações deverão ser salvaguardadas.
e outros escritos jurídicos 299

6. Artª.19º - Interpretação das disposições do plano

O artigo é tautológico: “As deliberações....serão feitas por delibera-


ção...”. Propomos: “A interpretação e integração das disposições do plano
serão feitas por deliberação da Assembleia Municipal que poderá delegar
esta competência no presidente da Câmara Municipal da Boa Vista”.

As deliberações ou decisões interpretativas de conteúdo genérico


serão sempre publicadas no Boletim Municipal e, na falta deste, mediante
Aviso ou Edital. Poderão ser consultadas e delas obtidos extractos nos
termos previstos no artigo 11º deste regulamento e demais disposições
legais em vigor.

7. Artº. 10 - Prazo de vigência

Ver o que escrevemos sobre o prazo de vigência do PDM.

8. Omissões

A mais significativa omissão do Plano de urbanização de Sal-Rei


diz respeito à ausência de normas que estabeleçam sanções a infracções
de natureza urbanística. Remetemos assim para o quanto escrevemos a
propósito desta omissão no PDM.
O ambiente ficou igualmente omisso.

§ 4º. Regulamento dos Planos Urbanísticos detalhados das áreas


de expansão de Sal-Rei

1. Generalidades
Este regulamento beneficia do quanto temos vindo a referir relati-
vamente quer ao PDM, quer ao ao PDU Sal-Rei. É omisso no que respeita
a sanções e contém denominações que estão em desacordo com o patri-
mónio linguístico boa-vistense. No que concerne a sanções mantemos,
também quanto a ele, o que escrevemos sobre as omissões do PDM, refe-
rindo, todavia, que no caso particular dos planos urbanísticos detalhados
a resposta a um sistema repressivo poderá ser buscada através de uma
revisão do Código das Posturas do Município da Boa - Vista, sem prejuízo
da adopção de normas específicas destinadas a reprimir infracções aos
preceitos dos planos detalhados.
Muitas das deficiências de carácter formal já foram referidas a res-
peito dos planos anteriormente apreciados. Assim, o artº. 1º. padece dos
300 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

mesmos vícios formais do Plano de Urbanização de Sal-Rei; utiliza a ex-


pressão Zona do Estoril, em vez de Zona de S. Cristóvão, pelas considera-
ções anteriormente expendidas e o artº. 9º padece igualmente dos mesmos
vícios formais referidos a respeito do artº. 19º do Plano de Urbanização de
Sal-Rei. Aqui e alí o projecto se refere “...dos PUD’s...” ou “...os PUD...”.
mas segundo a filóloga Edite ESTRELA a flexão das abreviaturas faz-se
pelo artigo. A fórmula utilizada no projecto é americana e não portugue-
sa. Ver igualmente artºs. 10º; 11º; entre outros.
Muitas disposições deste projecto justificam a adopção de medidas
preventivas que poderão desde já ser tomadas pela Assembleia Munici-
pal.
Propomos igualmente quanto ao artº. 9 deste regulamento a mesma
formulação proposta para o artº. 19 do Plano de urbanização de Sal.Rei:

Artª. 9º - Interpretação das disposições do plano

“A interpretação e integração das disposições do plano serão feitas por


deliberação da Assembleia Municipal que poderá delegar esta competência no pre-
sidente da Câmara Municipal da Boa Vista.
As deliberações ou decisões interpretativas de conteúdo genérico serão
sempre publicadas no Boletim Municipal e, na falta deste, mediante Aviso ou
Edital. Poderão ser consultadas e delas obtidos extractos nos termos previstos no
artigo 11º deste regulamento e demais disposições legais em vigor.
No artº. 11º onde se lê “... concretiza-se mediante...” sugerimos “...
concretiza-se, alternativamente, mediante...”.

§ 5º. Regulamento do Plano Urbanístico detalhado


da Praia de Chaves

Remissão. O Regulamento do Plano urbanístico detalhado da Praia


de Chaves carece de uma ampla revisão formal. Este regulamento não
parece ter sido elaborado com o mesmo cuidado com que foi elaborado o
regulamento do PDU de Sal-Rei. Tudo o que escrevemos sobre o cabeça-
lho do PDU de Sal-Rei é-lhe aplicável, mutatis mutandis.
Além das alterações formais que se impõem relativamente aos ar-
tigos 1º; 2º; 3º; 4º; 5º; 6º; 8ºe 11º o regulamento é omisso no que respeita
a infrações às suas normas. Assim, pressupõem a aplicação de uma san-
ção com vista a prevenir ou reprimir comportamentos urbanísticos que
atentem contra o estabalecido no nº. 8 do artº. 3º; nº. 1 do artº. 4º; nº. 4
do artº. 4; nº. 3 do artº. 5º; nº. 6 do artº. 5º; nº. 3 do artº. 8º, além de outras
disposições.
e outros escritos jurídicos 301

O regulamento é omisso no que respeita ao meio ambiente não con-


tendo quaisquer normas sobre plantação ou corte de árvores, esgotos,
acondicionamento ou tratamento de lixo, embora algumas dessas ideias
estejam diluídas no artº. 3º, sem especificar. No nº. 4 do artº. 3º. pensa-
mos que se deve retirar a limitação “...de apoio à totalidade da popula-
ção turística” porque leva a considerar que essas unidades de comércio e
serviços não poderão apoiar as demais áreas. Do mesmo modo, o título
do Capítulo III - Disposições finais não corresponde ao seu conteúdo que
respeita à interpretação, vigência, publicidade e consulta do Plano, dispo-
sições que não têm a natureza de Disposições Finais.

CONCLUSÕES GERAIS

A análise feita até agora dos Planos urbanísticos do Município da


Boa Vista permite-nos extrair as seguintes conclusões:

I - Trata-se de documentos de incontestável valia técnica e de im-


portância fundamental para o desenvolvimento da Ilha da Boa Vista. A
disciplina que imprimem não só ao ordenamento existente mas também
à sua expansão cria garantias seguras de que a futura cidade de Sal-Rei
e os demais povoados obedecerão a critérios científicos que harmonizem
os elementos humano, natural, paisagístico, histórico e cultural. A sua
utilidade não se esgota nos limites em que se contém. Poderão constituir
igualmente instrumentos preciosos para os serviços de cartografia e ca-
dastral, como poderão ser utilizados na adopção de técnicas avançadas de
registo e prova da propriedade.

II - Para além de alguns aspectos de natureza formal amplamente


referidos no texto do parecer, o Plano Director Municipal da Boa Vista
cumpre, no essencial o estabelecido nas leis em vigor, relativamente a pla-
nos da sua natureza. Com efeito, delimita as áreas urbanas e peri-urbanas;
qualifica as áreas não urbanizáveis; traça esquematicamente a rede viária
e as redes de infraestruturas urbanísticas; localiza os principais equipa-
mentos públicos e delimita ou pelo menos identifica as áreas a abranger
por plano de desenvolvimento urbano e plano detalhado, tudo conforme
o estabelecido no artº. 23º da Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho.

III - Alguns aspectos de pormenor poderão, todavia, ser melhora-


dos os quais se encontram referidos na análise pontual dos artigos. En-
tendemos, todavia, que o prazo de vigência do plano é demasiado longo,
tratando-se de um primeiro Plano Director do Município da Boa Vista,
302 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

cuja execução certamente requererá, a breve trecho, alguns ajustamentos


que não se compadecem com o limite temporal de 12 anos. Entendemos
igualmente que o PDU deveria estabelecer um traçado esquemático da
rede viária, em atenção ao desenvolvimento futuro da ilha. A omissão
fundamental diz respeito à ausência de normas repressivas de actuações
urbanísticas susceptíveis de pôr em causa a melhor execução do PDM. O
regulamento parece ter deixado esta matéria para a lei geral e para as pos-
turas municipais, mas afigura-se-nos que seria de acrescentar ao projecto
um capítulo especificamente sobre as INFRACÇÕES URBANÍSTICAS di-
rectamente dirigidas contra as normas do PDM.

IV - O PDM utiliza denominações como seja Praia de Santa Móni-


ca, em vez de Praia do Curralinho; Praia do Estoril em vez de Praia de
São Cristóvão abusivamente introduzidas no património linguístico das
localidades. Algumas dessas novas denominações têm uma consequência
histórica grave porque condicionam a apagar da memória colectiva ele-
mentos importantes da História de Cabo Verde, em geral, e da História
da Boa Vista, em particular. Sabe-se, com efeito, que a primeira denomi-
nação atribuída à ilha da Boa Vista foi a de Ilha de S. Cristóvão, nome que
baptizou inicialmente a actual baía de Sal-Rei e baptizou igualmente a
praia hoje dita de Estoril. É dever dos poderes públicos preservar a deno-
minação original, sendo certo que Estoril não tem para Boa Vista nenhum
significado.

V - Somos igualmente da opinião que a tipologia das áreas de ocu-


pação industrial deverá ser definida em abstracto e com valor prospectivo,
não se acantonando às áreas existentes. Com efeito, a definição das áreas
de ocupação industrial parece não admitir a possibilidade de crescimento
industrial da ilha da Boa Vista, o que, até certo ponto, está em contra-
dição com a possibilidade de desenvolvimento de indústrias extractivas,
como propomos uma maior flexibilidade no que respeita à construção nas
praias que deverá ser objecto de planos detalhados.

VI - O regulamento do PDM é limitado no que respeita ao ambien-


te. É certo que aqui e alí foca aspectos relacionados com o ambiente. Mas
pela aridez da ilha, pelo espectro da desertificação justificaria que este
aspecto fosse tido mais em consideração.

VII - Alguns aspectos dos regulamentos justificariam que fossem


tomadas medidas preventivas com vista a evitar alterações que poderão
vir a prejudicar a melhor execução dos planos. Os projectos estão feridos,
e outros escritos jurídicos 303

em alguns aspectos, de ilegalidade por violação de preceitos a que devem


obediência. Muitas dessas contradições foram mencionadas no corpo do
parecer e sugerida a correcção.

VIII - Refira-se, a título marginal, que a actual lei que define as Ba-
ses do Ordenamento do Território Nacional carece de uma ampla regula-
mentação. Os regulamentos aprovados no quadro da Lei nº. 57/II/85, de
22 de Junho mostram-se claramente desactualizados e contêm disposições
que contrariam normas constitucionais. A Câmara Municipal da Boa Vis-
ta poderá, através da Associação de Municípios promover a regulamen-
tação dessa lei por forma a adaptar os actuais regulamentos à disciplina
urbanística hodierna.

IX - Refira-se, do mesmo modo, que o jurista experimenta algumas


dificuldades em obter uma visão de conjunto da actual legislação discipli-
nadora das actuações urbanísticas, pela sua disseminação no tempo, pela
ausência de um corpo coerente de normas legais. Muita dessa legislação
vem do tempo colonial e se refere a institutos e figuras administrativas
que desapareceram ou foram substituídas pelas actuais leis administra-
tivas, o que obriga a um esforço de interpretação e integração actualista.
É tempo, pois, de se proceder à concentração dessa legislação, seja me-
diante a elaboração de novas leis e regulamentos, seja procedendo-se à
organização de colectâneas devidamente anotadas, com referência aos ar-
tigos revogados, figuras substituídas ou desaparecidas da ordem jurídica
caboverdiana.

X - Pela novidade do tema, pela sua importância para a vida das


populações e para a organização e desenvolvimento locais justifica-se,
igualmente, que a matéria seja alvo de debate, seja a nível municipal, seja
a nível nacional, através da organização de colóquios, mesas redondas,
conferências que permitam uma maior compreensão da problemática do
planeamento em geral e do planeamento urbanístico em particular. Refi-
ra-se a este propósito que é através de instrumentos desta natureza que
o Instituto Nacional da Administração - INA (Portugal) tem vindo a ob-
ter documentos de incontestável valia, muitos utilizados com proveito na
elaboração deste parecer, seja no que respeita ao Direito do Urbanismo,
seja no que respeita ao Direito do Ambiente. Apesar de o tema do Direito
do Urbanismo já se encontrar bastante desenvolvido, em Portugal não
se cessa de realizar encontros sobre o tema sempre na mira do aperfeiço-
amento técnico. A Este propósito realizar-se-á um encontro promovido
pelo Centro de Estudos Culturais Raio da Luz, encontro, curiosamente,
304 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

apoiado, entre outras instituições, pela Câmara Municipal de Seixal, ge-


minada com a da Boa Vista, subordinado ao tema “As áreas urbanas de
génese ilegal e a Lei nº. 91/95”, estando previstas três mesas de trabalho:
Reconversão Urbanística e Poder Central; Processo de Reconversão Urba-
nística e as autarquias locais e A reconversão urbanística e as suas dispo-
sições legais multidisciplinares. Farei constar o resultado desse encontro,
em que também participarei, à consideração da Câmara Municipal da
Boa Vista, enviando o essencial da documentação produzida, mas julgo
que é tempo de Cabo Verde se lançar igualmente em realizações do géne-
ro que certamente irão contribuir para o aperfeiçoamento profissional dos
agentes envolvidos no processo de urbanização em todas as suas fases.

====================
==========

DOCUMENTAÇÃO CONSULTADA:

A - LEGISLAÇÃO

— Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho -Define as bases do ordenamen-


to do Território e o planeamento urbanístico;
— Código das Posturas Municipais da Boa Vista, aprovado por de-
liberação da Assembleia Municipal, de 22 de Julho de 1994;
— Lei nº. 134/IV/95, de 3 de Julho - Aprova o Estatuto dos Muni-
cípios;
— Decreto nº. 87/89, de 24 de Novembro - Regula as actividades
dos empreiteiros de obras públicas e particulares;
— Decreto nº. 43 894, de 6 de Setembro de 1961 - Aprova o Regu-
lamento da Ocupação e Concessão de Terrenos nas Províncias Ultrama-
rinas;
— Decreto nº. 87/89, de 13 de Outubro - regula a elaboração, apro-
vação e homologação dos planos urbanísticos;
— Decreto nº. 88/90, de 13 de Outubro - regula as figuras de plano
urbanístico;

B - BIBLIOGRAFIA

— BARRIO, Javier Delgado: El control de la discrecionalidad del


planeamento urbanistico, Madrid, 1993.
— BOUBÉE, Gabriel Roujou: Le droit pénal de la construction et de
L’urbanisme, Paris 1988.
e outros escritos jurídicos 305

— BARTOLI, Maria Angela/PREDIERI, Alberto: Piano Regolatore,


Enciclopedia del diritto, Giuffrè vol. XXXIII, pp. 654 e segs.
— CADERNOS Municipais: Uma política de Urbanismo, Ano 2- nº.
4, Março 1979, pp. 39 e segs.
— CALIXTO, Vasco: Viagem a Cabo Verde, Lisboa 1974.
— CORREIA, Fernando Alves: As garantias do particular na expro-
priação por utilidade pública, Coimbra 1982.
— Formas Jurídicas de Cooperação Intermunicipal, Coimbra 1986.
— O plano urbanístico e o princípio da igualdade (tese de doutora-
mento), Coimbra 1989.
— DUERR, William A.: Fundamentos da Economia Florestal, tra-
dução portuguesa de Eugénio Lamas da SILVA, Lisboa 1972.
— FERRINHO, Homero: Desenvolvimento Rural, Praia, 1987.
— GOMES, José Osvaldo: Manual dos Loteamentos Urbanos,
Coimbra 1983.
— Plano Director Municipal, Coimbra 1985.
— HISTÓRIA Geral de Cabo Verde, Corpo Documental, vol. I, Ins-
tituto de Investigação Científica Tropical - Lisboa, Direcção Geral do Pa-
trimónio Cultural - Praia (1988).
— INSTITUTO Nacional da Administração: Direito do Urbanismo
vários autores sob a coordenação do Prof. Freitas do AMARAL, Lisboa,
1988.
— KASPER, Josef E.: Ilha da Boa Vista Cabo Verde, Praia 1987.
— LIBERATO, José Manuel Nunes: Autarquias e ordenamento,
Lisboa 1988.
— MICHEL e outros: Estado do ambiente no mundo, Lisboa, 1995.
— MORBIDELI, Giuseppe: Piano territoriale, Enciclopedia del di-
ritto, Giufffrè vol. XXXIII, pp. 705 e segs.
— PROGRAMA do II Governo Constitucional da II República,
aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº. 8/96 de 30 de
Abril, publicado no Suplemento ao B.O. bº. 12, I Série.
— RIBEIRO, Julio/QUITÉRIA, M. Luisa: Regime jurídico dos lote-
amentos, Coimbra 1985.
— SARDINHA, José Miguel: Introdução ao Direito Penal Ecológi-
co, Separata da Revista da Ordem dos Advogados, ano 48, Lisboa, Setem-
bro 1988.
— SEMINÁRIO sobre gestão dos municipios, Lisboa s/d.
306 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

ANEXO
MODELO DE DELIBERAÇÃO

Ao abrigo do disposto no artº. 118º. al. a) da Lei nº. 85/IV/93, de 16


de Julho, que aprovou as Bases do Ordenamento do Território Nacional e
do Planeamento Urbanístico, se torna público que a Assembleia Munici-
pal, na sua sessão extraordinária do passado dia 28 de Agosto do corrente
ano aprovou, para ter incidência sobre o território do Município da Boa
Vista, os seguintes instrumentos de planeamento urbanístico:
• 1 - O Plano Director Municipal da ilha da Boa Vista;
• 2 - O Plano de Desenvolvimento Urbano da Vila de Sal-Rei;
• 3 - Os Planos Urbanísticos Detalhados das Áreas de Expansão da
Vila de Sal-Rei.
O Plano Director Municipal - PDM é um importante instrumento
de desenvolvimento e de política social da ilha da Boa Vista, para cuja rea-
lização foram feitos estudos profundos sobre o solo, o subsolo, os recursos
hídricos, estudos demográficos, económicos e de análise social. Ele é o ins-
trumento que define a política municipal do ordenamento do território,
relativa às áreas urbanizáveis e não urbanizáveis (agrícolas, silvo-pasto-
ris, naturais, residuais e classificadas); estabelece as zonas de implantação
de núcleos turísticos e de ocupação industrial; fixa as áreas destinadas à
cultura e ao lazer; lança o traçado principal da rede viária e estabelece
condicionantes sobre saneamento básico, o domínio público hídrico, a uti-
lização de ilhéus, dunas e praias.
Mas o Plano Director Municipal é igualmente um importante ins-
trumento de política do ambiente, de conservação do património paisa-
gístico da ilha da Boa Vista e de preservação do património histórico-lin-
guistico da ilha da Boa Vista. Por isso, recupera os nomes Praia de S. Cris-
tóvão e Praia do Curralinho que se passaram indevidamente a chamar-se
Praia do Estoril e Praia de S. Mónica. Em particular, no que respeita à
praia de S. Cristóvão, que por via popular se modificou por Praia de Jon
Q’ston, chamar-lhe Praia do Estoril equivale a apagar da memória colec-
tiva aquilo que constitui a única referência que nos liga ao mais antigo
nome atribuído à Ilha da Boa Vista, constante dos documentos oficiais.
Lê-se, com efeito, na Carta de Doação ao Infante D. Fernando das Ilhas de
Cabo Verde (19.9.1462):
“...forã achadas xij Jlhas,.s: çimquo per Antonyo de Nolle em vida do Jfante
dom Anrrique meu tio, que deus aja, que se chamã a Jlha de Santiago e Jlha sam
Filipe e a Jlha das Mayas e a Jlha de sã Cristouã e Jlha do Sall, que sã nas partees
da Guineea, e as outras sete ... que sam estas: a Jlha Braua e a Jlha de san Nycollao
e outros escritos jurídicos 307

e a Jlha de sam Vicente e a Jlha Rasa e a Jlha Bramca e a Jlha de samta Luzia e a
Jlha de Santa(n)tonio que sã atraués do cabo Verde...”
Ilha de S. Cristóvão era, portanto, o nome atribuído à ilha da Boa
Vista, o qual gerou Baía de S. Cristóvão, nome atribuído inicialmente à
actual Baía de Sal-Rei e Praia de S. Cristóvão, modificado por via popular
para Praia de Jon Q’ston. É dever da Câmara e de todos os munícipes con-
tribuir para a preservação destas referências históricas e não deixar que,
levianamente, sejam substituidas por referências que nada têm a ver com
o passado histórico da Ilha da Boa Vista.
O PDM insere-se na política nacional de ordenamento do território
que por sua vez se filia na Política Nacional de Desenvolvimento, cujo
principal instrumento é o Plano Nacional de Desenvolvimento. O PDM
não é, portanto, um documento isolado pois o seu objectivo é reforçar a in-
tegração da ilha da Boa Vista no espaço nacional, promover o crescimento
harmonioso das localidades, fomentar o turismo, melhorar a acessibilida-
de e as condições de transporte, infraestruturas, abastecimento de água,
energia eléctrica, valorização paisagístico e ambiental, comércio, serviços,
trocas com o exterior etc. etc.
A melhor execução do PDM irá requerer o concurso de todos os
munícipes. O Plano estabelece restrições quanto às zonas de implantações
urbanísticas; quanto à altura das edificações; quanto às zonas onde não é
possível construir ou não é possível implantar construções, senão de uma
determinada característica; como impõe certas condutas no que respeita à
preservação do meio ambiente; conservação do património paisagístico;
utilização das áreas agrícolas, florestais, naturais, residuais, de ocupação
industrial, tudo condicionantes que irão afectar ou simplesmente limitar
o direito dos munícipes sobre a propriedade do solo, em particular, na
faculdade de construir, todavia em benefício do bem comum.
De harmonia com algumas normas quer do PDM quer do PDU Sal-
Rei a Câmara goza do direito de preferência na alienação dos terrenos
situados na área do plano pelo que deverão os interessados que queiram
alienar os seus terrenos situados dentro dessas áreas notificar os serviços
competentes da Câmara, antes da celebração de qualquer contrato pro-
messa ou definitivo com terceiros sobre os mesmos terrenos, para que a
Câmara possa exercer o seu direito de preferência. O não reconhecimento
à Câmara do direito acabado de mencionar envolve consequências para
os interessados, que poderão implicar com a própria validade do contrato
celebrado com terceiros.
Por isso, desde já se solicita a mais ampla colaboração dos muníci-
pes.
308 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

O PDM e os demais instrumentos de planeamento urbanístico que


o acompanham estarão, de ora em diante, à disposição de todos os mu-
nícipes que queiram consultá-los, nos Paços do Concelho, por forma a
melhor conhecerem os seus objectivos e metas programáticas.
Para constar se lavrou o presente Aviso que vai ser publicado nos
lugares públicos e do costume.
Câmara Municipal da Ilha da Boa Vista, aos ......................
O Presidente,
e outros escritos jurídicos 309

3. SOBRE A REFORMA DO REGIME PROCESSUAL CIVIL EM CABO


VERDE (*)

Sumário:

Introdução. I - Nota sobre a evolução da Legisla-


ção Processual Civil em Cabo Verde. II - O Regime
Processual e Substantivo em vigor. III - Pressu-
postos da Reforma Processual Civil.

INTRODUÇÃO

1. É cada vez mais um dado adquirido que as reformas legislativas


devem ter por base estudos prévios de natureza multidisciplinar, sem os
quais se corre o risco de as opções de política legislativa corresponderem
a exigências circunstanciais ou não corresponderem ao sentido da melhor
alteração.
Ao nível da administração da justiça há notícia de estudos profun-
dos realizados a este propósito: no Uruguai a reforma do direito proces-
sual civil, levada a cabo em 1988, teve o seu início com um “Projecto de
Diagnóstico da Justiça em Uruguai”, com vista ao conhecimento da reali-
dade não de uma forma empírica, mas baseado em dados científicos. A
tarefa foi cometida a um grupo de trabalho interdisciplinar integrado por
especialistas de todas as áreas afins à realidade processual civil, mas prin-
cipalmente por advogados, sociólogos e psicólogos. Entende-se que o re-
sultado deste diagnóstico, que durou vários anos, foi não apenas útil para
a reforma do regime processual civil que se lhe seguiu, mas também para
a própria reforma dos serviços administrativos.
Um estudo semelhante acabou, recentemente, de ser realizado
em Portugal, igualmente por uma equipa interdisciplinar, coordenada e
orientada pelo Prof. Dr. Boaventura de Sousa SANTOS, sob o título Os
Tribunais na sociedade portuguesa. Este estudo integrado por cinco volu-
mes relativos aos mais diversos aspectos desta problemática, como seja a
litigiosidade, a morosidade da justiça e a representação dos tribunais na
sociedade portuguesa, não se encontra ainda disponível para o grande

(*) Estudo produzido em 1995 em jeito de apoio à reforma processual civil cabo-verdiana. O
novo Código do Processo Civil cabo-verdiano não foi ainda aprovado.
310 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

público, mas graças à inestimável colaboração do Centro de Estudos Judi-


ciários, na pessoa da Drª. Isabel JORDÃO, a ele tivemos acesso e estamos
certos que, em virtude de se debruçar sobre a mesma realidade jurídica
- a administração da justiça - e em virtude de ser essencialmente o mesmo
o corpo de normas sobre o qual pretende agir, dele colheremos contri-
buições importantes para fundamentar propostas de política legislativa,
apesar das diferenças marcantes, no plano sociológico entre as duas rea-
lidades.
Nos Estados Unidos da América, onde a premência de reforma do
direito processual civil se tem vindo a colocar com muita acuidade, estu-
dos importantes foram realizados a este respeito. A ABA - American Bar
Association realizou, em 1984, um estudo que ficou consubstanciado na
monografia Attacking Litigation Costs and Delay, Final Report of the Action
Commission to Reduce Court Costs and Delays, tema que foi retomado por
este organismo, em 1992, no seu estudo Bleuprint to Improve the Civil Justice
System. Um estudo semelhante foi realizado em 1989 pela Broking Insti-
tution sob a preocupação de Justice for all, Reducing Costs and Delay, in Civil
Litigation, Report of Task Force. A matéria chegou a interessar o próprio
Congresso dos EUA que, em 1990, apresentou o seu Report of the Federal
Courts Study Committee e retomada em 1991 pelo Vice-presidente dos EUA
no seu Report from President’s Council on Competitiveness, Agenda for Civil
Justice Reform in America.

3. Estranhamente a única vez que em torno da justiça houve, em


Cabo Verde, preocupações de se fazer estudos de natureza sociológica foi
a própósito dos já extintos Tribunais de Zona. Estes estudos foram igual-
mente realizados pelo Prof. Boaventura de Sousa SANTOS, em 1984, e
encontram-se consubstanciados numa monografia intitulada “A Justiça
popular em Cabo Verde”, dada a lume em forma policopiada. Nem como
pano de fundo este estudo se debruçou sobre a totalidade da realidade da
justiça em Cabo Verde. Circunscreve-se aos Tribunais de Zona relativa-
mente aos quais analisa a sua estrutura e a caracterização social dos res-
pectivos juízes, a natureza dos litígios que estes tribunais eram chamados
a prevenir ou a resolver; os modelos de decisão e as relações entre esses
Tribunais e a comunidade, por um lado, e entre esses e o partido então no
poder, por outro.
Estudos dessa natureza merecem o nosso aplauso, pois entende-
mos que nenhuma reforma legislativa poderá ser plenamente conseguida
se não tiver na base um diagnóstico da realidade sobre a qual pretende
agir. Tais estudos de sociologia pró-legislativa, na terminologia do Prof.
e outros escritos jurídicos 311

Jean CARBONNIER542 para além de contribuirem para afastar aquisições


infundadas, permitem a confirmação, verificação e testagem de cada op-
ção de política legislativa, como permitem relevar procedimentos que
numa abordagem superficial passariam despercebidos. Pena é, pois,
que esta reforma que agora se inicia não tenha sido precedida de estu-
dos sociológicos, antropológicos, filosóficos, sociais, históricos, culturais
que permitiriam uma maior aproximação da verdadeira idiossincrassia e
mentalidade do povo caboverdiano, pois, como a propósito escreveu Na-
rana COISSORÓ, com inegável mestria, “o que é preciso é que haja uma
forma de processo compatível com a cultura e a mentalidade dos povos,
de acordo com a sua ilustração e necessidade de justiça”543 Não se trata,
pois, de encontrar o modelo ideal de processo, mas sim aquele processo
que seja adequado a cada comunidade em razão dos valores que lhes são
essenciais e característicos.
Conscientes dessa lacuna, e pese embora a frustração que nos acom-
panha, orientaremos a exposição que se segue por forma a minimizá-la no
essencial, de acordo com o seguinte esquema:

— num primeiro capítulo procuraremos reunir ideias muito gerais


e sinópticas sobre a história do direito processual civil em Cabo Verde,
o que se revela igualmente um trabalho espinhoso, pois, quanto seja do
nosso conhecimento, até hoje nenhum estudo se ocupou ex professo desta
matéria (sobre a importância dos conhecimentos históricos no processo
de legiferação cfr. António HESPANHA, in A Feitura das Leis, vol. II - como
fazer leis - (A perspectiva histórica e sociológica), Instituto Nacional da Admi-
nistração, Lisboa, 1986, pp. 59 e segs);

— num segundo capítulo daremos informações sobre o estádio ac-


tual da legislação civil em Cabo Verde e questionaremos até que ponto as
alterações introduzidas foram acompanhadas de alterações correspon-
dentes em matéria processual civil;

— num terceiro capítulo analisaremos o sentido a imprimir à re-


forma da legislação processual civil, no quadro da actual Constituição
caboverdiana, dos compromissos assumidos pelo Estado de Cabo Verde

542 Cf. o seu Sociologia Jurídica, Coimbra, Almedina, 1979, tradução de Diogo Leite de
CAMPOS, pp. 423 e segs.
543 In Cabo Verde, Guiné e S. Tomé e Príncipe - Curso de extensão Univesitária (O julgamento
de questões gentílicas) 1965-1966, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas
Ultramarinas, pp. 649 e segs e, em particular, 675.
312 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

a nível internacional, tomando em consideração a documentação já pro-


duzida a este propósito.

I
NOTA SOBRE A EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL
CIVIL EM CABO VERDE

4. Preliminares. A escassez de produções doutrinárias em Cabo Ver-


de não possibilitou até à data uma investigação séria sobre a história do
Direito Cabo-verdiano, no que respeita aos mais variados ramos de di-
reito. Quanto sabemos dele é colhido nas monografias ou artigos sobre a
história geral de Cabo Verde o que é, compreensivelmente, insuficiente.
As contribuições de nomes como Christiano José de Senna BARCELLOS,
com os seus Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, publicados, em
Lisboa, em 1899; António CARREIRA, com o seu Cabo Verde, Formação e
Extinção de uma sociedade escravocrata (1460-1878) 2ª edição, Lisboa, 1983, e
os estudos e documentos publicados pelo Padre António BRÁSIO de que
cabe referir a obra Descobrimento, povoamento e evangelização de Cabo Verde,
Studia, Lisboa, Julho de 1962, nº. 10, pp. 49 a 95, são, entre outras, as obras
que constituem referências fundamentais não só em virtude do significa-
tivo corpo documental de que dão notícia, donde a sua importância para
o investigador da história do direito caboverdiano, mas também porque
muitas das suas análises tocam aspectos relevantes da área jurídica que
nenhum investigador poderá descurar, ainda que para fazer delas uma
nova leitura ou uma nova abordagem, pelo filtro da metodologia jurídi-
ca.
Recentemente duas obras importantes trouxeram uma contribui-
ção inegável para a compreensão da história de Cabo Verde em geral e,
naturalmente, da história do direito caboverdiano: por um lado, os dois
volumes do Corpo documental sobre a História Geral de Cabo Verde, editado
conjuntamente pelo Instituto português de Investigação Científica Tro-
pical de Lisboa, cuja contribuição, neste particular tem vindo a suscitar
redobrado interesse, e pela Direcção Geral do Património Cultural cabo-
verdiano. Os dois volumes desta obra foram editados em Lisboa, respecti-
vamente, em 1988 e 1990. Por outro lado, sob a cordenação dos Profs. Luis
de ALBUQUERQUE e Maria Emília Madeira SANTOS foi igualmente
publicado sob o mesmo título História Geral de Cabo Verde, 1º. volume (Lis-
boa, 1991) uma obra de colaboração que contou com a participação de três
autores nacionais (António Correia e SILVA, Ilídio BALENO e Iva Maria
CABRAL).
e outros escritos jurídicos 313

5. Todavia, até à presente data nenhuma obra tratou ex professo a


história do direito caboverdiano que, tal como os demais aspectos deste
ramo do saber, se apresenta ao investigador completamente virgem.
Após a Independência Nacional a investigação jurídica domésti-
ca apenas produziu alguns artigos de revista, de um modo geral orien-
tados para a resolução de questões práticas do dia-a-dia. A publicação
de revistas da especialidade não foi igualmente estimulante. Logo após
a Independência Nacional foi criada a Revista do Ministério da Justiça
que integrava cinco secções: legislação, jurisprudência, doutrina, vária
e direito comparado, mas esta revista desde 1984 caiu no esquecimento,
tendo reaparecido recentemente, todavia, sem mostras de regularidade. A
revista do IPAJ - Instituto do Patrocínio e Assistência Judiciária e a Revista
Cabo-Verdiana de Direito tentaram suprir a lacuna deixada pela Revista
do Ministério da Justiça, mas a primeira não passou do primeiro número
e a segunda, há dois anos a esta parte, que se aguarda a sua publicação.
Quanto a matéria estreitamente relacionada com o Direito Processual Civil
pouco há a referir. Para além da publicação da legislação processual civil
sobre a orgânica e funcionamento das Comissões de Litígio de Trabalho;
a orgânica e funcionamento das Secretarias dos Tribunais e do Ministério
Público; a organização e funcionamento dos tribunais, a organização ju-
diciária, em geral, o Estatuto do Pessoal judiciário; o estatuto dos juizes
dos já extintos Tribunais de Zona e sobre a competência destes tribunais,
nenhum artigo de fundo foi publicado relativa à matéria processual civil.
Em 1984 o Dr. Jorge FONSECA publicou no nº. 22, ano 9º, pp. 113 e segs
da Revista do Ministério da Justiça um artigo sob o título Prova por presun-
ções que constituiu o seu relatório de mestrado, apresentado na Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa no ano escolar 1981-1982, artigo
que abordou o tema numa perspectiva de lege data e sem qualquer preo-
cupação específica atinente ao direito caboverdiano. Na mesma Revista o
Dr. Rui ARAÚJO havia publicado no número 21, ano 8º, Julho/Dezembro
de 1983, pp. 119, um artigo intitulado Sobre a Justiça em Cabo Verde, este
sim abordando preocupações práticas, embora pontuais sobre o estádio
da administração da justiça em Cabo Verde. Além destes artigos nenhum
outro trabalho se ocupou da matéria processual civil.

6. No plano jurisprudencial recorde-se a criação em 1980 da Colectâ-


nea da Jurisprudência que surgiu em complemento à Revista do Ministério
da Justiça, mas esta Colectânea, tal como a Revista do IPAJ, não passou do
número zero. Apesar de tudo registou alguns acórdãos relativos a acções
de despejo, revisão e confirmação de sentenças estrangeiras, recursos, nu-
lidade e aclaração de acórdãos. Um 1º. número desta Colectânea chegou a
314 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

ser dado a público, porém, na forma policopiada, mas desde então nunca
mais a publicação teve qualquer seguimento.

7. Neste ambiente cientificamente inóspito compreende-se que


tudo esteja ainda por fazer no plano da investigação processual civil. Não
foram ainda dados os primeiros passos. Para a um bom número de ju-
ristas a história do direito processual civil em Cabo Verde praticamente
começa em 1939 quando a Portaria nº. 9:605, de 20 de Julho de 1940 auto-
rizou a publicação do Decreto-Lei nº. 26:637, de 28 de Maio de 1939, que
aprovou o Código de Processo Civil, com as alterações introduzidas pelo
Decreto-Lei nº. 29:950, de 30 de Setembro de 1939.
Não é, porém, esta a realidade dos factos.

8. A justiça senhorial. A história do direito processual civil cabover-


diano é tão antiga quanto a própria história do achamento e colonização
das Ilhas. Descobertas em 1460, já na Carta pela qual, dois anos depois,
mais precisamente a 19 de Setembro de 1462, D. Afonso V doou as Ilhas ao
Infante D. Fernando “ com todos rios, ancoraçoões, madeiras, pescarias, corall,
tyntas, myneiras, vieiros, preceoos...” se lhe atribuiu desde logo a faculdade
de exercer jurisdição cível e crime em todas as ilhas, exceptuando apenas
os feitos crimes “em que caiba morte ou talhamento de membro” que se man-
tinham na alçada do Rei (cfr. História Geral de Cabo Verde - Corpo documen-
tal, doc. nº. 1, vol. I, pp. 13). A jurisdição cível foi, portanto, inicialmente
atribuída ao Capitão das Ilhas que a exercia com base em três corpos de
normas: o direito consuetudinário local; as posturas municipais e as Orde-
nações do Reino. As câmaras municipais desempenharam igualmente um
papel preponderante na administração da justiça. Investidas do poder de
ditar posturas municipais, podiam julgar as infracções cometidas dentro
da respectiva circunscrição geográfica, dando lugar a uma dualidade de
poderes: o do capitão das ilhas e o das câmaras municipais, poder este que
se manteve até meados deste século, na forma de julgados municipais.
A crescente autonomia da administração local e a necessidade de
garantir a protecção dos interesses da Coroa deu lugar à criação da figu-
ra do Corregedor que tinha jurisdição sobre todo o arquipélago e estava
dotado de uma ampla competência: “segurança pública - impedindo o
asilo de degredados ou ladrões, ordenando a inquirição de roubos, infor-
mando-se da existência de bandos e da segurança das prisões - a supe-
rintendência dos funcionários administrativos e camarários - controlo da
actuação dos advogados e procuradores, escrivães e porteiros, feitores e
almoxarifes, examinando as inquirições e devassas feitas pelos tabeliães
e as penas impostas pelos juízes, inquirindo sobre as dissidências entre
e outros escritos jurídicos 315

concelhos - verificação do desenvolvimento económico - incentivando


o povoamento das zonas desabitadas, vigiando a actividade dos almota-
cés, promovendo a construção de obras proveitosas para a comunidade”
- Angela DOMINGUES in História geral de Cabo Verde (Administração e ins-
tituições: transplante, adaptação e funcionamento), vol. I, Lisboa/Praia, 1991,
pp. 106 e segs, em particular, m 109-110). No plano da jurisdição cível
competia ao Corregedor “superintender nas fazendas e nos bens dos de-
funtos e ausentes... fazer executar as dívidas feitas por funcionários da Fa-
zenda Real; levantar devassas com base no depoimento de testemunhas”
- Angela DOMINGUES, Ibidem. Os poderes do Corregedor congregavam,
pois, áreas como a administrativa, a judicial (cível e crime) e até a legisla-
tiva, sendo certo que lhe estavam igualmente atribuídos poderes para a
publicação de alvarás e outras normas.
Contrariamente ao que se verificou nas demais colónias portugue-
sas onde se registou a necessidade de substituição sistema judiciário tra-
dicional, baseado essencialmente no direito costumeiro, pelo sistema judi-
ciário introduzido pelo Governo Colonial (sobre este aspecto, cfr. Narana
COISSORÓ, ob.loc. cit.), em Cabo Verde a organização da justiça foi toda
ela baseada na organização vigente na metropole, pelo que não se regis-
taram situações de conflito entre modelos de administração da justiça. O
único momento em que o poder real e o poder local se conflituaram nesta
matéria terá ocorrido com a nomeação do Corregedor, figura que, em vir-
tude do vasto poder de que estava revestido, suscitou o descontentamen-
to quer do poder judicial senhorial, quer do poder camarário, mas este
conflito nada teve que ver com algum modelo autóctone de administração
da justiça (Cfr. Angela DOMINGUES, ob. cit. pp. 111-112).

9. A Novíssima Reforma Judiciária. Com a vitória do liberalismo e a


difusão dos seus princípios pelo continente europeu, e sob a influência
dos Códigos prussiano e napoleónico, registaram-se em Portugal três
reformas importantes no sistema judiciário: a Reforma Judiciária levada a
cabo em 1832; a Nova Reforma Judiciária de 1837 e a Novíssima Reforma Judi-
ciária realizada em 1841. Não temos notícia das repercussões que as duas
primeiras reformas tiveram nas Províncias Ultramarinas, em geral, e em
Cabo Verde, em particular. Todavia, em 1881, o Decreto de 4 de Agosto
declarou em vigor nas províncias ultramarinas com modificações, e in-
dependente de publicação nos respectivos boletins oficiais, o Código de
Processo Civil, aprovado pela Lei de 8 de Novembro de 1876, o qual rece-
beu o essencial da Novíssima Reforma Judiciária, realizada em 1841544. Nessa

544 Cf. sobre este ponto R.C.Van CAENEGEM, in Civil Procedure (History of European Civil
Procedure), Encyclopedia of comparative law, vol. XVI, Chapter 2, pp. 2-51, Boston-Lancaster-
316 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

altura o Código do Processo Comercial constava de diploma autónomo


ao CPC, mandado igualmente vigorar nas Províncias Ultramarinas pela
PR de 31 de Maio de 1895, publicado no Boletim nº. 27 da mesma data.
Entre os diplomas de finais século XIX e início do actual, sobre matéria
processual civil, existem alguns que importa referir: A CL de 13 de Maio
de 1896, publicado no Boletim nº. 23 que estabeleceu os requisitos e for-
malidades para a distribuição de inventários entre maiores e orfãos; a PP
de 30 de Janeiro de 1897, publicada no Boletim nº. 5 que mandou instalar
o tribunal comercial na Ilha de São Vicente; o Decreto de 23 de Dezembro
de de 1897 que aprovou o Regimento de Justiça da Província de Cabo
Verde, publicado em apêndice ao Boletim nº. 20 de 1898 e o Decreto de 30
de Novembro de 1900 que parece ter disciplinado pela primeira vez o re-
gime jurídico da assistência pública judiciária em Cabo Verde, diploma que
se encontra publicado no Boletim nº. 51 do mesmo ano. Foi, aliás, nessa
altura que uma série de medidas legislativas foram tomadas em torno do
regime jurídico da assistência pública judiciária, como então se chamava.
Foram criadas duas Comissões de Assistência Judiciária, uma na Comar-
ca de Sotavento, conforme Aviso de 5 de Agosto de 1901, publicado no
Boletim nº. 41 do mesmo ano, outra na Comarca de S. Vicente, aprovada
pelo Edital de 1 de Outubro de 1901, publicado no Boletim nº. 47. Neste
mesmo ano foi regulamentado o Decreto que havia aprovado o regime
jurídico da assistência judiciária (cfr. Boletim nº. 1 de 1901).

10. O Código de Processo Civil de 1939. Entre 1900 e 1940, ano em que,
como vimos, foi mandada vigorar nas províncias ultramarinas o Código
de Processo Civil de 1939, foram tomadas várias medidas relativas à legis-
lação processual civil e à organização judiciária. No plano da legislação
processual civil refira-se a extensão a Cabo Verde das sucessivas altera-
ções ao Código de Processo Comercial, a primeira operada pelo Decreto
de 26 de Maio de 1911 e tornado extensivo às ex-colónias pelo Decreto nº.
3558, de 1917 e a segunda em 1928 pelo Decreto nº. 15:623, de 22 de Junho,
tornada extensiva pelo Decreto 15:682, de 5 de Julho de 1928. Legislou-se
sobre o exercício da advogacia, de que cabe referir o facto curioso de proi-
bição dessa actividade aos Delegados do Procurador da República e man-
dou-se proceder a uma compilação de toda a legislação dispersa sobre o
processo civil e o processo comercial. Instituiu-se o processo sumário para
as falências de valor não superior a 50.000$00 e passou-se a admitir a dili-
gência da posse judicial avulsa, disciplinada pelo Decreto nº. 16:461, de 1 de

Tubingen, 1987).
e outros escritos jurídicos 317

Fevereiro de 1929, tornado extensivo às colónias pelo Decreto nº. 16:776,


de 25 de Abril de 1929. A organização judiciária sofreu igualmente uma
reforma de fundo: foi aprovada a Organização Judiciária das colónias pelo
Decreto nº. 14:453 de 20 de Outubro de 1927, publicado no Suplemento nº.
2 ao nº. 8; criaram-se tribunais arbitrais, julgados de paz, e mantiveram-
se os julgados municipais. Foi igualmente criado um Conselho Superior
Judiciário das Colónias.

II
O REGIME PROCESSUAL E SUBSTANTIVO EM VIGOR

11. O Código de Processo Civil de 1961. O CPC aprovado pelo De-


creto-Lei nº. 44 129, de 28 de Dezembro, de 1961, foi tornado extensivo
ao Ultramar pela Portaria 19 305, de 30 de Julho de 1962, publicada no
B.O. nº. 30, de 31 de Julho de 1963. Antes da Independência Nacional as
seguintes alterações ao diploma foram mandadas vigorar nas Províncias
Ultramarinas e, consequentemente, em Cabo Verde: o DL nº. 44 690, de 11
de Maio de 1967, tornado extensivo ao Ultramar pela Portaria nº. 23 090,
de 26 de Dezembro e o DL 323/70, de 11 de Julho, tornado extensivo ao
Ultramar pela Portaria nº. 402/70, de 17 de Agosto.
Após a Independência do país, poucos foram os diplomas publica-
dos sobre matéria processual civil. Pode mesmo dizer-se que ao significa-
tivo número de leis substantivas, entretanto publicadas, não correspon-
deram idênticas preocupações em matéria processual. Tirante os aspectos
relacionados com a alçada dos tribunais, custas de processo, organização
judiciária, pode dizer-se que o primeiro diploma a alterar o Código de Pro-
cesso Civil, após a Independência Nacional, parece ter sido o DL 32/87,
de 28 de Março ao estabelecer um processo especial para o reconhecimen-
to judicial da união de facto. Como se revelará, todavia, no decurso desta
reforma, o Código de Família que disciplinou este instituto constitui, por
sí só, um diploma que, pelo alcance das reformas por ele introduzidas no
tecido social caboverdiano, implicaria outras alterações na legislação pro-
cessual civil. Além deste diploma o CPC foi igualmente alterado pelo DL
75/90, de 10 de Setembro e pelo DL 195/91, de 31 de Dezembro.
Todavia, não se pode dizer que o direito caboverdiano foi, no de-
curso destes últimos 20 anos, totalmente avesso à adopção de regimes
processuais. A nível do direito laboral a criação das Comissões de Litígio
de Trabalho - CLT condicionou o aparecimento de um modelo processual
célere e expedito, mas não temos notícia sobre os resultados deste proce-
dimento no andamento dos processos. As CLT foram aprovadas pelo DL
68/83, de 13 de Agosto, substituindo os Tribunais Regionais e Sub-Re-
318 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

gionais no conhecimento dos litígios emergentes de relações de trabalho


subordinado. A sua alçada era igual à dos Tribunais Regionais de 1ª classe
e o processo podia correr sem necessidade de constituição de mandatá-
rio judicial. As CLT ocupavam-se tanto de acções declarativas, como de
acções executivas. No processo declarativo eram logo na petição inicial
oferecidas as provas e requeridas diligências. O réu podia responder no
prazo de 5 dias, sob pena de ser imediatamente condenado no pedido,
mas em todo o caso, o julgamento devia realizar-se no prazo máximo de
40 dias. Os acórdãos da CLT constituiam título executivo bastante. Toda-
via, a circunstância de estes tribunais terem sido extintos leva a concluir
que os resultados práticos desse processo não terão sido os melhores.
A par deste diploma foram adoptadas na ordem jurídica regimes
processuais em matéria de contencioso administrativo, do direito tributá-
rio e, mais recentemente, disciplinou-se o Recurso de Amparo.
O CPC vigente mostra-se em alguns aspectos desajustado com o
direito caboverdiano actual. Muita da terminologia que utiliza perdeu ac-
tualidade pelo simples facto da Independência de Cabo Verde. Com efei-
to, o Código utiliza amiúde referências a Portugal, Lisboa, Porto, Ordem
dos Advogados, Caixa Geral de Depósitos, expressões que, na prática, em
virtude de uma interpretação actualista tem vindo a ser substituídas por
terminologia equivalente: Cabo Verde, Praia, IPAJ, Banco de Cabo Verde,
etc. etc.. Outros aspectos requerem modificação em virtude de alterações
introduzidas no sistema jurídico vigente, nomeadamente no que respeita
à Organização Judiciária. Assim, o Código se refere amiúde a Tribunal
da Relação ou simplesmente Relação, o que já não corresponde à actual
organização judiciária. Na verdade, a legislação vigente disciplina, e a ac-
tual Constituição da República sancionou, a existência de dois tribunais
judiciais: o Supremo Tribunal de Justiça e tribunais de primeira instância
(artº. 228º. da CR). Este mesmo preceito admite a possibilidade de haver
tribunais de segunda instância (nº. 2), mas esta possibilidade não recebeu
ainda tradução legislativa. As competências originariamente atribuídas
pelo actual CPC ao Tribunal da Relação (cfr. artº. 61º e 224º do CPC) são
exercidas pelo Supremo Tribunal de Justiça, como seja o conhecimento de
causas destinadas à revisão e confirmação de sentenças estrangeiras.

12. A legislação substantiva. Vejamos agora o essencial da legislação


substantiva em vigor e averiguar-se das alterações nela introduzidas e
quais as suas repercussões na reforma em curso.
Tanto o Código Civil de 1867, como o Código Civil de 1966, apro-
vado pelo DL nº 474, de 25 de Novembro de1966, foram mandados vigo-
rar nas então chamadas províncias ultramarinas portuguesas, o primeiro
e outros escritos jurídicos 319

pelo Decreto de 18 de Novembro de 1869 e o segundo pela Portaria nº


22869, de 4 de Setembro de 1967.
Este último diploma revogou toda a legislação relativa às matérias
abrangidas pelo Código Civil, mas ressalvou a vigência da legislação pri-
vativa de natureza civil (artº 3º nº 1 e 2) de que recordamos o Decreto nº
43525, de 7 de Março de 1961, que regulou os arrendamentos de prédios
urbanos no ultramar. Estará certamente fora do âmbito deste projecto
compilar toda esta legislação e averiguar-se da sua actual vigência.
Com a Independência de Cabo Verde a 5 de Julho de 1975, quer a
Lei da Organização Política do Estado desta mesma data, quer a Consti-
tuição da República, aprovada na IX Sessão legislativa da Primeira Legis-
latura a 5 de Setembro de 1980, ressalvaram a vigência transitória de toda
a legislação em vigor em Cabo Verde, à data da independência nacional
“não contrária à Constituição e às restantes leis da Republica”. A revisão
constitucional levada a cabo pela Lei Constitucional nº 2/III/90, de 29 de
Setembro, manteve a referência ao carácter transitório, que foi suprimido
pelo artº 317 da Constituição da República cabo-verdiana, aprovada pela
Lei constitucional nº 1/IV/92, de 25 de Setembro. Também esta Constitui-
ção manteve em vigor todo o direito anterior, salvo no que for contrário à
Constituição e aos princípios nela consignados.
O Código Civil de 1966 é um desses diplomas cuja vigência foi res-
salvada, mas tem sido objecto de várias alterações.

III
PRESSUPOSTO DA REFORMA
PROCESSUAL CIVIL

13. A alteração da legislação processual civil pressupõe, em gran-


de medida, a estabilidade da legislação substantiva. Não é absolutamente
seguro que o ordenamento jurídico caboverdiano tenha adquirido esta
estabilidade. O percurso que fizemos pela legislação substantiva revela
ainda zonas significativas onde tais alterações se impõem. Como ficou
demonstrado o capítulo relativo ao Direito dos Estrangeiros e Conflitos
de Leis carece de ampla revisão. As eventuais alterações neste capítulo
são susceptíveis de desencadear alterações correspondentes em matéria
da competência internacional do tribunal cabo-verdiano, como na acção
especial de revisão e confirmação de sentenças estrangeiras. O Governo
de Cabo Verde tem em curso um processo de revisão do actual Código
de Família, por forma tal que poderá envolver mesmo a repristinação do
entretanto revogado Livro IV do CC. A reposição em vigor deste Livro do
Código Civil e as eventuais alterações que se lhe introduzirem, para além
320 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

de implicarem alterações consequentes no Livro V do mesmo código,


que regula o regime jurídico sucessório, trará repercussões significativas
a nível do processo executivo, dos processos especiais, com particular
destaque para os processos de jurisdição voluntária e para o processo de
inventário. A reforma igualmente em curso do regime jurídico das Socie-
dades Comerciais repercutir-se-á, necessariamente, no regime processual
civil sobre a Liquidação de Patrimónios, com especial destaque para a
falência. O recebimento de institutos novos na ordem jurídica cabover-
diana, tais como a união de facto, implicará igualmente correspondentes
alterações no regime processual civil.
Estas preocupações obrigam-nos a uma solução de compromisso.
Se, por um lado, não é possível descurar, na reforma em curso a legislação
substantiva em vigor, não se pode perder de vista, em absoluto as altera-
ções que se tem em vista introduzir na referida legislação.

14. O modelo Constitucional de processo civil. A Constituição da Repú-


blica aprovada pela Lei Constitucional 1/IV/92, de 25 de Setembro, pelo
seu valor hierárquico, impõe comandos que, em caso algum, poderão ser
descurados nesta reforma. A Constituição contém normas injuntivas so-
bre a separação de poderes, a organização judiciária, o estatuto dos juízes,
a estrutura do processo, o estatuto das partes, o modo de decidir, o de-
ver de colaboração na administração da justiça, normas que constituem a
base essencial em que assentará a presente reforma.
O modelo constitucional processual civil começa a desenhar-se
logo no artº. 1º do Texto Fundamental nos termos do qual “Cabo Verde
reconhece a inviolabilidade e inalienabilidade dos Direitos do Homem
como fundamento de toda a comunidade humana da paz e da justiça”.
As ideias de paz de justiça social, fundamentos últimos do regime pro-
cessual civil estão, pois, consubstanciadas no pórtico da Constituição e
se realizam na base do princípio da separação de poderes (artº. 2º) e da
independência dos tribunais (artº. 130º) e têm ampla consagração no regi-
me dos direitos, liberdades e garantias fundamentais (cfr. artºs. 11º a 25º,
57, 83, entre outros). No que respeita ao estatuto do juiz a Constituição
acolhe ideias como a pré-constituição legislativa do juiz (artº. 224º); o ca-
rácter ordinário e não extraordinário do juiz (artº. 223º e 224º, 1); a inde-
pendência do juiz (artº. 221º, 3); a imparcialidade do juiz (artº. 221º, nº. 2),
donde parece resultar igualmente a garantia de rejeição ou recusa do judex
suspectus, e bem assim a ideia de idoneidade do juiz. No que concerne
às partes tanto a legitimatio ad causam attiva, como a legitimatio ad causam
passiva estão garantidas, pelo reconhecimento do direito de acesso aos tri-
bunais para a tutela efectiva dos direitos e interesses legítimos (artº 20º) e
e outros escritos jurídicos 321

bem assim a igualdade das partes, com todas as suas implicações, a nível
do contraditório, da produção da prova; da igualdade de armas e, em
rigor, da própria estrutura judicial, que deverá ser estabelecida por forma
a garantir esta igualdade. A parte débil é protegida e à parte vencida é
garantido o direito de recurso da decisão. Estes princípios repercutem-
se no processo executivo, na estrutura do processo, no modo de decidir,
com especial referência ao dever de fundamentação, por forma tal que
não cabe nos limites destas notas analisar.

15. O processo civil convencional. Outro aspecto que vinculará o le-


gislador serão as obrigações assumidas pelo Estado caboverdiano no pla-
no internacional. Todavia, a nível do direito processual civil convencio-
nal pouco há de significativo a referir. Enquanto potência colonizadora,
Portugal estendeu às suas ex-colónias praticamente todas as Convenções
assinadas no domínio do direito processual civil internacional. Com a in-
dependência do país tais convenções cairam no complicado regime de
sucessão de tratados internacionais, mas quanto seja do nosso conheci-
mento não foram desenvolvidas as démarches necessárias com vista à
referida sucessão. Há, porém, notícia apenas de algumas convenções bila-
terais celebradas neste domínio. Acordos de cooperação judiciária foram
celebrados com Portugal (1976) - acordo este que já sofreu duas revisões
- Angola (1979), a ex-RDA (1980) e Senegal. Em 1982 foi igualmente cele-
brado com Portugal o Acordo sobre a cobrança de alimentos. Encontra-se
em curso um processo de adesão de Cabo Verde à Convenção Internacio-
nal Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro de Actos Judiciais e
Extra-Judiciais em Matéria Civil e Comercial, concluída na Haia em 15 de
Novembro de 1965, o que é tanto mais de estranhar quanto é certo que a
referida Convenção, aprovada pelo Decreto-Lei nº. 210/71 e publicada
no Sup.ao B.O. nº. 45 de 1973, foi tornada extensiva às Províncias Ultra-
marinas pela Portaria nº. 325/71, igualmente publicada no Sup. ao B.O.
nº. 45. Em matéria processual civil internacional nenhum outro acordo
parece ter sido celebrado, nem temos notícia que outros esteja em curso
de aprovação ou adesão.

16. Outro comando que necessariamente vincula o legislador é o


contido no artº. 3º. do DL 44 129, de 28 de Dezembro de 1961 que aprovou
o actual CPC, nos temos do qual “todas as modificações que de futuro se
façam sobre a matéria contida no Código de Processo Civil serão inscritas
no lugar próprio deste diploma, mediante a substituição dos artigos alte-
rados, a supressão das disposições que devam ser eliminadas ou o adicio-
namento dos preceitos que se mostrem necessários”. Este preceito parece
322 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

ser vinculativo quanto a futuras alterações a este corpo de normas. O le-


gislador não só fica vinculado à sistemática do código, como parece que
lhe fica vedado substituir integramente os preceitos deste código, sem que
uma disposição de igual valor hierárquico revogue o comando contido no
artº. 3º e lhe atribua a necessária autorização para legislar ex novo sobre a
totalidade do CPC. Este papel poderá perfeitamente ser desempenhado
pela lei de autorização legislativa, pois sendo esta matéria da competência
originária da Assembleia da República (cfr. artº. 188º al. a), b), d) e p)) o
Governo só poderá legislar sobre ela mediante a respectiva autorização.
Consoante a opção que se fizer o diploma revestirá a forma de Lei, ao
abrigo do disposto no artº. 284º nº. 2 al. d) ou a de Decreto Legislativo,
nos termos do disposto no artº. 285º nº. 2 al. b), todos da Constituição da
República.
e outros escritos jurídicos 323

4. REFORMA DA LEI DAS BASES DE ORDENAMENTO DO TERRI-


TÓRIO E PLANEAMENTO URBANÍSTICO

Sumário:

1. Introdução. 2. A disciplina do Ordenamento


Territorial e Planeamento Urbanístico. 3. A ne-
cessidade de revisão da LBOTPU. 4. Agenda da
reforma. 5. Bases em que assentam o ordenamen-
to do território e o planeamento urbanístico: a) o
território. b) a população. c) o ambiente. d) zo-
nagem agro-ecológica e de vegetação. e) admissão
administrativa. 6. Planos: estádio de elaboração.
7. Cartografia e Cadastro. 8. Política legislativa.
9. Sentido da alteração da Lei nº 85/IV/93, de 16
de Julho.

1. INTRODUÇÃO

I. O regime jurídico que disciplina a preservação, uso, transfor-


mação, ordenamento e fiscalização destas actividades sobre a terra está
a crescer e a consolidar. A pouco e pouco Cabo Verde vai adquirindo um
corpo legal que permitirá um verdadeiro controlo das situações jurídicas
em torno da gestão da terra nas suas mais diversas vertentes. A Constitui-
ção da República545 fixou as balizas fundamentais nesta matéria, atribuin-
do ao Estado as funções de “proteger a paisagem, a natureza, os recursos
naturais e o meio ambiente bem como o património histórico-cultural e
artístico nacional” (artº. 7º al. k)) e as de “criar as condições necessárias
para a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais
por forma a tornar efectivos os direitos económicos, sociais e culturais
dos cidadãos” (artº. 7º al. j)). O planeamento foi igualmente erigido em
estratégia de desenvolvimento (artº. 91º) e, no plano individual, foram

545 Cabo Verde já teve duas constituições: a Constituição da República de 1980,


aprovada na IX Sessão Legislativa da Primeira Legislatura a 5 de Setembro de 1980 e a
Constituição da República de 1992, aprovada pela Lei Constitucional nº. 1/IV/92, de
25 de Setembro com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei Constitucional
de Lei Constitucional nº 1/V/99 de 23 de Novembro. Antes destas Constituições
vigorou, no primeiro período da Independência Nacional a Lei da Organização Política
do Estado – LOPE – de 5 de Julho de 1975.
324 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

reconhecidos os direitos à iniciativa privada (artº. 67º), à propriedade pri-


vada (artº. 68º) à habitação e urbanismo (artº. 71º), ao ambiente (artº. 72º)
e à cultura (artº. 78º).
O ordenamento do território surge no contexto da CR como meio
e fim de políticas económicas, sociais e culturais. O direito à habitação, en-
quanto direito fundamental de todo o cidadão, aparece associado ao direi-
to do urbanismo (artº. 71º) para pôr em relevo que a habitação condigna passa
necessariamente por políticas correctas de ordenamento do território e de
planeamento urbanístico (artº. 71º/a)), do mesmo passo que se fomenta e
se garante a participação de todos os interessados na elaboração dos ins-
trumentos do planeamento urbanístico.
Também a realização do direito ao ambiente, que surge no quadro
constitucional não só como direito subjectivo ao ambiente, mas também
como direito colectivo ao ambiente, passa igualmente por políticas correctas
de ordenamento do território e do planeamento urbanístico (artº. 72º), e
de promoção do aproveitamento racional de todos os recursos naturais,
com vista à salvaguarda da sua capacidade de renovação e estabilidade
ecológica.
Ambiente e ordenamento têm, portanto, no quadro constitucional
uma interpenetração tal que há até quem propugne a concentração destes
dois sectores no mesmo departamento do Estado546.
Do ponto de vista da competência legislativa, a matéria do ordena-
mento do território está reservada à Assembleia Nacional (artº. 176º/2/e))
e bem assim as bases do sistema de protecção da natureza que constitui o
seu adjuvante natural (artº. 176º/2/f)).

II. No plano internacional Cabo Verde procedeu à ratificação de


um conjunto de instrumentos que não só reclamam condutas de absten-
ção susceptíveis de prejudicar a terra, mas também medidas positivas,
tais como a Convenção Internacional de Combate à Desertificação Nos Países
afectados Por seca Grave e ou Desertificação Particularmente em África, a Con-
venção de Viena para a Protecção da Camada de Ozono, de 22 de Março de 1985
e a Convenção sobre a Diversidade Biológica, de 5 de Julho de 1992547. Foram
igualmente assumidos alguns compromissos de âmbito bilateral como
seja o Protocolo de Cooperação entre o Governo da República Portuguesa e o
Governo da República de Cabo Verde nos Domínios da Administração Local, do

546 Ver, neste sentido, APRA, Philippe: Manual de Elaboração dos Planos Urbanísticos
– Análise das Etapas Administrativas e Técnicas, ANMCV, Praia, 2004.
547 Sobre a situação jurídica destes instrumentos internacionais, Cf. Geraldo ALMEIDA,
in Código da Terra..., pp. 109 e segs.
e outros escritos jurídicos 325

Ordenamento e Urbanismo e do Equipamento Rural e Urbano, celebrado aos


29 de Março de 1988, e o respectivo Protocolo Adicional, celebrado aos 27
de Janeiro de 1989, mais tarde rescindidos e substituídos pelo Protocolo de
Cooperação entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde nos Do-
mínios do Ordenamento do Território, do Urbanismo e da Cartografia e Cadastro,
assinado em 1994.

III. No plano interno foi adoptado um conjunto significativo de leis


que cobre matérias como o Ambiente, o Urbanismo, a Construção urbana,
as Reservas turísticas e a actividade industrial.
Grande parte dessa legislação já se encontra consubstanciada no
nosso Código da Terra para onde remetemos548. Cite-se a legislação mais
importante particularmente a publicada a partir deste Código.

Assim, importa tomar em consideração

No domínio do Ambiente:
— Lei 86/IV/93, de 26 de Junho que aprova a Lei de Bases da Política
do ambiente e o respectivo regulamento aprovado pelo Decreto-Legislativo nº.
14/97, de 1 de Junho

— Decreto-Lei nº 3/2003, de 24 de Fevereiro, B.O. nº 5, I Série que esta-


belece o regime jurídico dos espaços naturais, paisagens, monumentos e lugares
que pela sua relevância para a biodiversidade, pelos seus recursos naturais, função
ecológica, interesse económico-social, cultural, turístico ou estratégico, merecem
uma protecção especial e integrar-se na Rede Nacional das Áreas Protegidas.

No domínio do urbanismo:
— Lei nº. 85/IV/93, de 16 de Julho que aprovou a Lei das Bases do Orde-
namento do território e Planeamento Urbanístico, lei esta não regulamentada e
hoje pendente de revisão.

No domínio da construção:
— Decreto nº. 130/88, de 31 de Dezembro, que alterou o Regulamento
Geral de Edificações Urbanas.

No domínio do turismo:
— Lei nº 21/IV/91, de 30 de Dezembro, Suplemento B.O. nº52/91: esta-
belece os objectivos, princípios, meios, instrumentos básicos e políticas de desen-
volvimento turístico.

548 Cf. Geraldo da Cruz ALMEIDA, in Código da Terra, pp. 311 e segs.
326 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

— Lei nº 42/IV/92, de 6 de Abril, Suplemento B.O. nº 14/91: estabelece o


regime jurídico de utilidade turística, a atribuir aos empreendimentos turísticos
que satisfaçam determinados pressupostos, definidos na lei.

—Decreto-Lei nº 68/92, de 19 de Junho, 2ª Suplemento, B.O. nº 24/92:


regula a concessão de reconhecimento de mérito turístico às pessoas singulares ou
colectivas, nacionais ou estrangeiras.

—Decreto-Lei nº 3/93, de 7 de Fevereiro, B.O. nº 6/94, I Série: revê o


regime regulador da actividade das agências de viagens e turismo constante do
Decreto-Lei no.101-S/90, de 23 de Novembro, no sentido de os adequar às neces-
sidades actuais do sector.

—Decreto-Lei nº 11/94, de 14 de Fevereiro, B.O. nº7/94, I Série: cria o


Fundo do Desenvolvimento do Turismo, o qual tem por objecto contribuir para
o fomento da actividade do sector do turismo, através da concessão de subsídios,
prestação de garantias às instituições de crédito e pagamento de bonificações de
juros, podendo ainda passar a conceder crédito turístico a curto, médio e longo
prazo.

—Decreto Lei nº 14/94, de 14 de Março, B.O. nº 10/94, I Série: Revê o


Estatuto da Indústria Hoteleira e Similar, estabelecendo as normas respeitantes
ao aproveitamento dos recursos turísticos nacionais e ao exercício desta indústria
e similar.

— Decreto-Regulamentar nº 3/94, de 7 de Dezembro, B.O. nº 6, I Série:


regulamenta o exercício da actividade das agências de viagens.

— Decreto-Regulamentar nº 4/94, de 14 de Março, B.O. nº 10/94, I Série:


estabelece as normas respeitantes à instalação, classificação e funcionamento dos
estabelecimentos hoteleiros e similares.

—Decreto-Lei nº 55/95, de 16 de Outubro, B.O. nº 35, 3ª Série: extingue


o INATUR e aprova os novos estatutos do PROMEX.

—Decreto Regulamentar nº 18/97, de 30 de Dezembro: Declara Zona de


Desenvolvimento Turístico Integral os sítios de Ponta de Pau Seco e Ponta Preta
na Ilha do Maio.

—Lei nº 49/VI/2004, de 23 de Agosto: autoriza o Governo a legislar so-


bre o planeamento físico, a gestão e administração das zonas turísticas especiais
e outros escritos jurídicos 327

(Zonas de Desenvolvimento turístico Integral e Zonas de Reserva e Protecção


Turística).

No domínio das pescas:


—Decreto-Lei nº 17/87, de 18 de Março de 1987: Define os princípios
gerais da política de aproveitamento dos recursos haliêuticos.

—Decreto-Lei nº 97/87, de 05 de Setembro de 1987: Relativo aos recursos


haliêuticos nacionais.

—Decreto nº 23/91, de 04 de Abril de 1991: Aprova o acordo entre a Re-


pública de Cabo Verde e a Comunidade Económica Europeia relativo à pesca ao
largo de Cabo Verde.

—Decreto-Lei nº 72/92, de 20 de Junho de 1992: Altera alguns artigos do


D.L. nº17/87, de 18 de Março, que define os princípios gerais da política de apro-
veitamento de recursos haliêuticos.

—Lei nº 60/IV/92, de 21 de Dezembro de 1992: Relativa aos recursos vivos


e não vivos dos espaços marítimos da República de Cabo Verde.

—Lei nº 89/IV/93 De 13 de Dezembro de 1993: estabelece as condições ge-


rais de realização de investimentos externos em Cabo Verde, bem como os direitos,
garantias e incentivos atribuídos nesse âmbito.

—Decreto Regulamentar nº 1/94 de 03 de Janeiro de 1994 - simplifica os


processos de autorização e registo das operações de investimento externo, regula-
dos actualmente pelo Decreto nº 155/90, de 22 de Dezembro.

—Decreto-Lei nº 255/94, de 18 de Abril de 1994: Cria o Fundo de Desen-


volvimento das Pescas.

— Portaria nº 52/94 de 8/08 - Regulamenta a aplicação do PROFE

— Decreto-Lei nº 40/94 de 6/06 - Estabelece o Programa de Fomento Em-


presarial (PROFE)

— Decreto-Lei nº 26/94, de 29 de Dezembro de 1994: Cria o Sistema Inte-


grado de Apoio ao Investimento Produtivo no sector das pescas.

— Decreto-Lei nº 46/97 de 14/07 altera algumas disposições do


PROFE
328 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

No domínio da indústria:
— Decreto nº 157/90 de 22/12 - Estabelece a definição de actividade indus-
trial para efeitos de aplicação do Estatuto Industrial, e discrimina as actividades
que como tal podem ser consideradas.

— Decreto nº 159/90 de 22/12 - Cria o Fundo de Desenvolvimento In-


dustrial.

— Decreto nº 45/92 de 12/05 - Cria o Instituto de Apoio ao Desenvolvi-


mento Empresarial (IADE)

— Portaria nº 4/92 de 18/02 - Regulamenta os procedimentos de declara-


ção prévia de projectos industriais, de inscrição de empresas e de averbamento de
projectos no cadastro industrial

— Decreto nº 22/92 de 15/02 - Define como actividade industrial outras


actividades para além das estabelecidas no anexo do D.L. nº 157/90 que estabelece
a definição de actividade industrial para efeitos de aplicação do Estatuto Indus-
trial, e discrimina as actividades que como tal podem ser consideradas.

— Decreto-Lei nº 9/92 de 21/01 - Aprova o acordo de Cooperação no do-


mínio da industria e energia entre a República de Cabo Verde e a República Por-
tuguesa

— Decreto-Lei nº 73/IV/94 de 27/12 - Revê o funcionamento do Fundo de


Desenvolvimento Industrial

— Decreto nº 06/95, de 28 de Agosto de 1995: aprova o Acordo Especial de


Cooperação no domínio das Pescas entre a República de Cabo Verde e a República
Portuguesa.

— Edital nº 1/97 da C.M da Praia - Regulamenta a distribuição de lotes


na Zona Industrial da achada Grande de Trás.

— Decreto nº 17/97 de 21/04 - Aprova o Protocolo Adicional ao acordo


de cooperação científica e técnica entre Cabo Verde e Portugal no dominio das
infraestruturas industriais.

IV. Para completar este quadro legal, dois grandes projectos encon-
tram-se em curso de discussão:

— o Anteprojecto da Lei dos Solos e;


e outros escritos jurídicos 329

— o Anteprojecto da Lei de Expropriação por Utilidade pública549.

O primeiro clarifica a problemática do território particularmente no


seu aspecto estático. Visa:
— Definir os princípios fundamentais que orientam a utilização do
solo;
— Repartir o domínio público e o domínio privado;
— Identificar o domínio público do Estado e das autarquias locais;
— Fixar o domínio privado do Estado, das autarquias locais e dos
particulares;
— E adoptar um conjunto de normas destinadas a clarificar situa-
ções menos claras em matéria de prova da propriedade, reservas, afora-
mento e outras situações jurídicas.
O Anteprojecto da Lei dos Solos já foi objecto de profunda discus-
são no seio da Administração Pública e da Associação Nacional de Muni-
cípios. O figurino adoptado irá moralizar e humanizar a problemática dos
solos, numa conjugação inteligente entre o interesse público e o interesse
privado, pois, nenhuma regulação é completa e justa se ignorar os direi-
tos, liberdades e garantias dos cidadãos

V. O segundo anteprojecto com uma incidência importante no do-


mínio dos solos encontra-se igualmente pendente de discussão. Trata-se
da lei de expropriação por utilidade pública que visa concretizar uma
ideia que data de 1983.
A lei de expropriação por utilidade pública constitui um comple-
mento a um tempo importante de várias outras leis com intervenção no
território: a Lei do ambiente, a lei dos solos, as mais variadas leis relativas
a reservas; os mais variados diplomas relativos ao ordenamento do territó-
rio e ao planeamento urbanístico e ainda os diplomas sobre a construção e
habitação urbana, turismo e indústria. Na verdade, ela concretiza um dos
mais importantes limites ao direito de propriedade privada que é exacta-
mente a expropriação da propriedade privada por razões de utilidade pú-
blica. De facto, pode-se expropriar para prosseguir interesses ambientais,
como seja, por exemplo, a expropriação de uma paisagem propriedade
privada que corre perigo perante os amplos poderes do proprietário; para
prosseguir interesses da economia nacional, como sejam as já concretiza-
das expropriações de largas extensões de terrenos com vocação turística;

549 Um outro projecto importante encontra-se em curso de elaboração. Trata-se da Lei


das Bases da Cartografia e do Cadastro há muito reclamada. Data, aliás, de 1971,
Decreto nº. 132/71, de 6 de Abril, o interesse manifestado na realização das operações
de cadastro.
330 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

para prosseguir interesses de planeamento ou de desenvolvimento, como


seja a expropriação de um terreno adequado para o lançamento de uma
rede viária ou a expropriação de uma casa que compromete o ordenamen-
to ou a funcionalidade de um espaço urbano. A expropriação funciona,
pois, como medida de último recurso quando os poderes do proprietário
sejam passíveis de comprometer a boa execução das medidas fundadas
numa racionalidade técnica550. Ela é a expressão do jus imperii do Estado
que, entre outras funções, reorienta o comportamento dos agentes em
atenção ao bem comum.
Compreende-se, pois, que o ordenamento territorial e o planea-
mento urbanístico encontram-se entre as razões que fundaram a revisão
da actual legislação sobre expropriação por utilidade pública551.

VI. Apesar da significativa extensão do quadro legal aplicável à


problemática das terras, já aprovado ou em vias de aprovação, busca-se
agora o seu aperfeiçoamento e a Lei das Bases de Ordenamento do Terri-

550 Sobre este conceito e o seu confronto com o direito de propriedade, cf. José de Oliveira
ASCENSÃO, in Direito do Urbanismo (urbanismo e o direito de propriedade), INA, pp 319
e segs.
551 A disciplina jurídica da matéria de expropriação por utilidade pública encontra
manifestações em Cabo Verde desde meados do século XIX. Ainda se encontram em
vigor as seguintes leis: Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948, (BO nº 43 de 24 de Outubro
de 1953) que aprova o Regime de Expropriações por Utilidade Pública; Lei n.º 2063,
de 3 de Junho de 1953, (BO nº 43 de 24 de Outubro de 1953) que aprova o Regime
dos Recursos em matéria de Expropriações por Utilidade Pública; Lei n.º 2142, de 14
de Maio de 1969, (BO nº 33 de 12 de Agosto de 1972) que modifica o Processo Geral
de Expropriações Urgentes; Portaria n.º 425/72, de 3 de Agosto, (BO nº 33 de 12 de
Agosto de 1972): que estende às Províncias Ultramarinas, com alterações, a Lei n.º
2142, de 14 de Maio de 1969; Decreto n.º 332/72, de 23 de Agosto, (BO nº 27 de 7 de
Julho de 1973) que fixa normas a observar no caso de Expropriação Urgente requerida
pelo Estado, Autarquias Locais ou Serviços Autónomos; Decreto n.º 385/73, de 28 de
Julho, (BO nº 41 de 13 de Outubro de 1973) que regula o Pagamento de Indemnizações
por Expropriação; Portaria n.º 445/73, de 29 de Julho, (BO nº 27 de 7 de Julho de 1973)
que estende às Províncias Ultramarinas, com alterações, o Decreto n.º 332/72, de 23 de
Agosto e Portaria n.º 638/73, de 26 de Setembro, (BO nº 40 de 6 de Outubro de 1973)
que estende às Províncias Ultramarinas os artigos 1º a 6º do Decreto Lei nº 278/71 de
23 de Junho, sobre o regime de Expropriações por utilidade pública de Edificações
construídas sem Prévia Licença. Além destes instrumentos, a problemática da
expropriação por utilidade pública encontrou menção no Regulamento de Ocupação
de Terrenos (artº. 217º- expropriação do concessionário e artº. 237º - expropriação do
foreiro); na Lei dos Solos, aprovado pelo Decreto – Lei nº 576/70, de 24 de Novembro
de 1970, que introduziu o conceito de expropriação sistemática; na Lei das Bases do
Planeamento Urbanístico e do Planeamento do Território, aprovado pela Lei n.º 85/
IV/93 de 16 de Julho, diploma que nesta matéria, contém normas inconstitucionais,
além dos diplomas sobre as chamadas Zonas Turísticas Especiais.
e outros escritos jurídicos 331

tório e Planeamento Urbanístico, aprovado pela Lei nº. 85/IV/93, de 16 de


Julho, é uma dessas leis cuja reforma tem sido reclamada. Suscita-se, a seu
respeito, um conjunto de problemas, traduzidos em incorrecções técnicas,
dissintonias, conceitos errados ou desactualizados, excessiva regulamen-
tação, ausência de um quadro eficiente de sanções, para além de questões
insuficientemente tratadas como sejam os planos especiais, a problemática
do loteamento, os planos turísticos e industriais de iniciativa particular...,
numa palavra, reclama-se a sua revisão.
Não se pode, todavia, pensar que a LBOTPU só tem defeitos. Du-
rante os mais de 10 anos da sua execução tem prestado o seu papel, dir-
se-á mesmo, o seu importante papel na ordenação do território, norteando
as actividades de planeamento e urbanismo por um conjunto significativo
de princípios e regras fundamentais552. Fixou directivas de ordenamento
do território e planeamento urbanístico; a tipologia de planos que adopta
(Esquema Nacional de Ordenamento do Território; Esquema Regional do
ordenamento do Território; Plano Especial de Ordenamento do Territó-
rio; Plano Director Municipal; Plano de Desenvolvimento Urbano e Plano
Detalhado) não tem merecido contestação, nem tão pouco o seu modo
de hierarquização ou condicionalidade recíproca; as medidas preventi-
vas que adopta com vista à melhor prossecução dos objectivos dos planos
têm-se revelado eficazes; os encargos urbanísticos que fixa são aceites com
naturalidade. Mesmo o regime processual urbanístico, no que respeita à
competência para a elaboração, aprovação, homologação dos planos, ape-
sar da desarmonia existente entre a lei e os regulamentos apenas reclama
aperfeiçoamentos aqui e ali.
Apesar destas virtudes a sua revisão é desejada por todos. O objec-
tivo do presente estudo é o de dar a conhecer o sentido dessa revisão. No
que respeita aos regulamentos, como é sabido, até à presente data não foi
adoptado o Regulamento Nacional de Urbanismo a que se refere o artº 7º da
LBOTPU. Os regulamentos em vigor, adoptados à luz da Lei 57/II/85, de
22 de Junho mostram-se inadequados, requerendo da parte do aplicador
um significativo esforço de adaptação.
Estas e outras razões que serão mais adiante explicitadas justificam
a reforma que se pretende levar a efeito.

552 Este ponto de vista é, aliás, reconhecido em documentos oficiais tais como o
PROGRAMA PARA O ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO no qual se lê “Os Planos
Urbanísticos elaborados, tiveram o mérito de contribuir para o desenvolvimento de muitas
cidades e vilas com uma certa harmonia e equilíbrio, permitindo o traçado e construção de infra-
estruturas básicas, de equipamentos colectivos e sociais, de serviços urbanos, de habitação e de
instalações de actividades económicas diversas” – DGOTH.
332 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

2. A DISCIPLINA DO ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO


E PLANEAMENTO URBANÍSTICO

I. Desde que se tornou país independente, Cabo Verde já adoptou


duas leis sobre o ordenamento do território e o planeamento urbanístico.
A primeira foi adoptada pela Lei nº. 57/II/85, de 22 de Junho e a segunda
pela Lei 85/IV/93, de 16 de Julho, agora em curso de revisão.
Como temos referido, o ordenamento do território e o planeamen-
to urbanístico não são, todavia, desconhecidos da história legislativa de
Cabo Verde. A edificação da Povoação de Ponta do Sol na ilha de Santo
Antão obedeceu a um plano previamente estabelecido a que se chamou
Plano de Edificação da Povoação de Ponta do Sol da Ilha de Santo Antão, man-
dado elaborar em 1864. Também Tarrafal obedeceu a um Plano de Higie-
ne, Arborização e Alinhamento das Ruas que data de 1865. Em 1911 foi
mandado vigorar na cidade do Mindelo na ilha da S. Vicente O Regula-
mento de Salubridade das Edificações urbanas da Cidade de Lourenço Marques,
que tinha sido aprovado em 1906. Desde 1916 que Cabo Verde tem um
Regulamento Geral das Edificações Urbanas na província, aprovado pela Por-
taria Provincial nº. 180 da mesma data. De 1916 até 1950, data em que
foi aprovado o Regulamento Geral de Construção Urbana, foi adoptado um
conjunto de instrumentos dispersos sobre a matéria do ordenamento do
território e o planeamento urbanístico553. Pode, pois, dizer-se que há mais
de um século que são aplicadas no território nacional normas relativas ao
ordenamento do território e ao planeamento urbanístico.

II. A LBOTPU não é, todavia, o único corpo de normas que disci-


plina as actividades de planeamento e urbanismo. As fontes do Direito
do Urbanismo passam pela Constituição da Republica; pelos instrumen-
tos internacionais de que Cabo Verde é parte e vigoram validamente na
ordem jurídica cabo-verdiana; pelas leis ordinárias e pelos regulamentos
adoptados em sua execução. Pode ainda referir-se o costume que nesta
matéria apresenta uma importância escassa.
Uma análise aturada destas diversas fontes não pode ser objecto do
presente relatório. Refira-se apenas alguns dos seus aspectos essenciais.
A Constituição da República fixa ao ordenamento do território e ao
planeamento urbanístico os princípios fundamentais que orientam a sua
concretização. Desde logo o princípio do carácter unitário do Estado ou sim-
plesmente princípio da unidade do Estado, consagrado em vários preceitos
constitucionais, nomeadamente, nos artigos 1º, 2º nº. 2 e artº. 6 nº. 3 da

553 Para maiores desenvolvimentos cf. O nosso Código da Terra..., cit., pp. 30 e segs.
e outros escritos jurídicos 333

CR. Na actual lei este princípio manifesta-se na existência de um Esquema


Nacional de Ordenamento do Território (artº. 15º al. a) e artº. 20º da Lei
85/IV/93, de 16 de Julho) instrumento que, a nível nacional e tendo por
objecto a totalidade do território nacional (cf. artº. 6º da CR) , estabelece
as opções gerais e vinculativas, seja a nível regional, seja a nível local em
matérias tais como reservas agrícolas e florestais; áreas sujeitas a regimes
especiais de protecção; áreas vedadas à urbanização; áreas preferenciais
de desenvolvimento urbano; áreas preferenciais de desenvolvimento in-
dustrial, turístico, redes viárias (cf.. artº. 20º. da Lei 85/IV/93).
No plano institucional este princípio apresenta uma consequência
importante: ao fazer apelo à multidisciplinaridade em matéria do terri-
tório reclama igualmente um sistema integrado de gestão territorial em que
intervêm factores sociológicos, antropológicos, biológicos, ambientais, ju-
rídicos, ecológicos, tecnológicos. Este sistema integrado de gestão territo-
rial exprime-se igualmente em políticas de participação das populações,
de combate à pobreza, de desenvolvimento da economia e de melhoria
da qualidade de vida.
O paradigma ambiental apresenta neste particular uma dimensão
transversal. No dizer de LORENZETTI, a consideração da vertente am-
biente convoca todas as ciências para uma nova festa em que deverão
comparecer de vestido novo554. “No caso do direito o convite é amplo:
abarca o público e o privado, o penal e o civil, o administrativo e o pro-
cessual, sem excluir nada, mas com a condição de que adoptem novas
características”555.
A descentralização administrativa (artº. 2º. nº. 2 in fine da CR) é ou-
tro princípio constitucional que intervém em matéria do ordenamento do
território e do planeamento urbanístico. Considerado esteio fundamental
da concepção constitucional da autonomia do poder local556, este princípio
preconiza que “a gestão dos interesses das populações locais cabe, em
princípio, e como regra, às autarquias locais“ só podendo o Estado ocu-
par-se dessa mesma gestão mediante atribuição legal557. Em matéria de
planeamento urbanístico este princípio tem como consequência natural a
existência de planos próprios dos territórios locais e a impossibilidade de

554 In Las normas fundamentales... pp. 483.


555 Ibidem.
556 Cfr. Vital MOREIRA e Gomes CANOTILHO in Constituição da República Portuguesa
anotada, 3ª edição revista, Coimbra (1993) pp. 886.
557 Fausto de QUADROS, in Direito do Urbanismo (princípios fundamentais de Direito
Constitucional e de Direito Administrativo em matéria de Direito de Urbanismo), pp. 291.
334 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

se condicionar a sua aprovação à existência prévia de planos de ordena-


mento do território.
Além dos princípios referidos a doutrina administrativa e constitu-
cionalista considera mais os seguintes:

— o princípio da prossecução do interesse público;


— o princípio da boa administração;
— o princípio do respeito pelos interesses legítimos dos cidadãos
na prossecução do interesse público;
— o principio da legalidade;
— o princípio da justiça e da imparcialidade na actuação da Admi-
nistração;
— o princípio da igualdade dos cidadãos;
— o princípio da Boa fé, da segurança jurídica e da confiança legí-
tima;
— o princípio da proporcionalidade;
— o princípio da participação dos cidadãos na formação das deci-
sões ou deliberações que lhes digam respeito;
— princípios atinentes à expropriação por utilidade pública;
— princípio da fundamentação expressa dos actos administrati-
vos;
— princípio da responsabilidade da administração e dos seus agen-
tes e o princípio da descentralização da Administração local558.

Estes princípios, embora sejam princípios gerais do Direito Admi-


nistrativo, aplicáveis portanto ao Direito do Urbanismo, não são específi-
cos deste sub-ramo do Direito Administrativo. Autores como FRIAS apre-
sentam o seguinte elenco:

— o princípio da equidade intergeracional;


— o princípio da sanidade do ambiente e o consequente direito a
um ambiente são;
— o princípio da precaução com vista a evitar infortúnios e impre-
vistos;
— o princípio da interdisciplinaridade na tomada de decisões;
— o princípio do livre acesso à informação ambiental;
— o princípio da solidariedade dos sectores de maior risco;
— o princípio da progressividade;

558 Fausto de QUADROS in Direito do Urbanismo (princípios fundamentais de Direito


Constitucional e de Direito Administrativo em matéria de Direito do Urbanismo), cit. pp. 269
e segs.
e outros escritos jurídicos 335

— o princípio da valorização económica do ambiente e dos seus


recursos naturais;
— o princípio da responsabilidade civil;
— o princípio da conservação da diversidade biológica;
— o princípio da preservação da estabilidade climática;
— o princípio da restrição nuclear;
— o princípio dos efeitos transfronteiriços;
— o princípio do desenvolvimento sustentável559.

Além destes princípios que orientam a correcta gestão do território


e do planeamento urbanístico em atenção à particular intensidade da sua
relação com o ambiente, a CR adopta importantes mecanismos de protec-
ção como sejam o direito de petição e o direito de acção popular. Nos termos
do artº. 58º/1 “todos os cidadãos, individual ou colectivamente, têm o direito de
apresentar, por escrito, aos órgãos de soberania ou do poder local e a quaisquer
autoridades, petições, queixas, reclamações ou representações para defesa dos seus
direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral e bem assim o direito de se-
rem informados em prazo razoável sobre os resultados da respectiva apreciação”.
O direito de acção popular está reconhecido pelo nº. 3 deste artigo.

III. A segunda mais importante fonte do direito do urbanismo


corresponde aos tratados e convenções internacionais. Neste particular,
aquelas normas do Direito Internacional geral ou comum aplicáveis ao or-
denamento do território e ao planeamento urbanístico vigoram na ordem
jurídica cabo-verdiana enquanto vigorarem na ordem jurídica internacio-
nal (artº 12º/1). Do mesmo passo, “os tratados e convenções internacio-
nais, validamente aprovados ou ratificados, vigoram na ordem jurídica
cabo-verdiana após a sua publicação oficial e entrada em vigor na ordem
jurídica cabo-verdiana e enquanto vincularem internacionalmente o Esta-
do de Cabo Verde” (artº 12º/2).
De relevante importância é ainda o nº. 4 do mesmo artigo que es-
tabelece de forma inequívoca a superioridade hierárquica das normas e
princípios de direito internacional geral ou comum e convencional sobre
os actos legislativos e normativos internos de valor infra-constitucional, o
que tem, entre outras, várias consequências: não só aqueles instrumentos
gozam de primazia de aplicação face à lei ordinária, como esta não poderá
contrariá-los, sob pena de inconstitucionalidade.
A CR revela ainda grande abertura no que respeita ao acolhimento
das decisões dos órgãos competentes internacionais em matéria do orde-
namento do território e do planeamento urbanístico (artº. 12º/3).

559 Citado por LORENZETTI, ob. cit. pp. 499-500.


336 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

IV. A mais importante fonte legislativa em vigor em matéria do


ordenamento do território e planeamento urbanístico é a actual Lei nº.
85/IV/93, de 16 de Julho, cuja revisão agora se reclama. Esta lei não foi
objecto de regulamentação. O seu artº. 124º preconizou a manutenção em
vigor dos diplomas publicados em execução da Lei nº. 57/II/85, de 22 de
Junho até à sua substituição. Tais regulamentos substitutivos não chega-
ram a ser aprovados. Por isso, vigoram ainda na ordem jurídica cabo-
verdiana o Decreto nº. 87/90, de 13 de Outubro que regulou a elaboração,
aprovação e homologação dos planos urbanísticos e o Decreto nº. 81/90,
de 13 de Outubro que regulamentou as figuras de plano urbanístico. Es-
tes diplomas mostram-se desactualizados, requerendo a sua aplicação im-
portantes medidas de ajustamento.
´É a disciplina que esta legislação imprime ao ordenamento do ter-
ritório e ao planeamento urbanístico que constitui objecto da presente re-
forma. Os seus aspectos essenciais, tanto nas suas virtudes como nos seus
defeitos, serão referidos na medida reclamada pelo desenvolvimento dos
trabalhos. Os princípios que acolhe em matéria de ordenamento do terri-
tório podem ser sintetizados no seguinte quadro:

- Harmonização das actuações do Estado e dos municípios;


- Participação dos cidadãos;
- Adequação do nível de planeamento;
- Justificação dos planos de ordenamento;
- Fundamentação das normas de ordenamento;
- Informação dos cidadãos;
- Exercício das faculdades urbanísticas;
- Delimitação das faculdades urbanísticas;
- Garantia da igualdade de tratamento;
- Participação da comunidade nas mais-valias fundiárias;
- Da colaboração das entidades públicas e dos particulares;
- Viabilização das iniciativas particulares 560.

A LBOTPU preconiza como seus os seguintes objectivos e medi-


das:
- Desenvolvimento harmonioso das regiões e dos núcleos de po-
voamento;
- Protecção dos recursos naturais, designadamente do solo, ar,
água, flora e fauna;
- Protecção do património arqueológico, arquitectónico, urbanís-
tico e paisagístico;

560 Cf. Artº. 3º.


e outros escritos jurídicos 337

- Ordenamento da ocupação, uso e transformação do solo;


- Traçado e localização das infraestruturas e equipamentos;
- Disponibilização de terrenos para a instalação de actividades
produtivas (industriais, turísticas, comerciais, serviços etc.),
para a construção/promoção de habitação e para espaços pú-
blicos e de lazer561.

3. A NECESSIDADE DE REVISÃO DA LBOTPU

A reforma que ora se pretende da actual Lei das Bases de Ordena-


mento do Território e do Planeamento Urbanístico não é fruto do capri-
cho. Resulta de ponderada decisão em atenção ao conjunto de problemas
suscitados. Tecem-se relativamente a esta lei as seguintes críticas:
— São imprecisos os conceitos de ordenamento, organização especial e
transformação do solo que utiliza: “a expressão ordenamento é aplicada ora
como um produto; ora como um ente, ora como um procedimento – Celso
Fernandes;
— O nº. 3 do artº. 7º parece violar o princípio da autonomia muni-
cipal. Dele resulta que o regulamento municipal nunca é inovador, o que
viola a norma constitucional segundo a qual “as autarquias locais gozam
de poder regulamentar próprio, nos limites da Constituição e da lei” (artº.
257º). Ou seja, é a própria Constituição que reconhece às autarquias po-
deres regulamentares decorrentes directamente da CR e da lei. A Lei das
Bases vem criar uma limitação acrescida, obrigando-as a respeitar os re-
gulamentos do Governo em matéria de urbanismo.
— A definição de Plano Director Municipal como o instrumento
de planeamento que rege a organização espacial do território municipal
não é compatível com a de ordenamento territorial e urbano referido nos
artºs 6º e 7º, nem de ordenamento urbano referido no artº. 9º - Celso Fer-
nandes;
— Imprecisões contidas sobretudo nos Capítulos I, II, III – Celso
Fernandes;
— Inexistência de um Regulamento Nacional de Urbanismo tal como
previsto no artº. 7º da LBOTPU;
— Excessiva regulamentação. Com os seus 127º artigos é a mais
desenvolvida e regulamentada lei das bases conhecida – cf. Geraldo Al-
meida, Código da Terra..., pp. 40;

561 Cf. Artº. 4º. Ver sobre este ponto Celso FERNANDES In O papel do ordenamento do
território no desenvolvimento sustentável de Cabo Verde - em estreita articulação com o
ambiente., Praia, 2003.
338 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

— A classificação que adopta de infracção urbanística em graves e


leves (artº 104º) é errada. Dela resulta que onde há plano urbanístico, há
infracção grave; e onde não há plano urbanístico há infracção leve donde
resulta que, para a maior parte do território nacional, as infracções urba-
nísticas são leves, às quais correspondem sanções igualmente leves, só e
unicamente em virtude da inexistência de planos.
— Ao referir-se quanto às infracções apenas aos planos urbanísti-
cos, com exclusão dos planos de ordenamento, deixa entender que todas
as infracções aos planos de ordenamento são infracções leves. Assim, a
violação do Esquema Nacional do Ordenamento do Território (ENOT);
do Esquema Regional do Ordenamento do Território (EROT) e dos Planos
Especiais de Ordenamento do Território (PEOT) serão sempre infracções
leves, pois, estes planos não são planos urbanísticos, mas sim planos de
ordenamento do território, o que é uma solução perigosa.
— Inclui normas inconstitucionais como a do artº. 33º quando es-
tabelece, e forma categórica, que “a homologação de um plano urbanísti-
co legitima a expropriação por utilidade pública e a posse administrativa
dos terrenos e dos edifícios necessários à sua plena execução”, quando
nenhum plano urbanístico pode legitimar automática e inevitavelmente,
como parece decorrer dessa norma, a expropriação por utilidade pública.
— A noção que dá de infracção urbanística de “violação, através de
acto ilícito e censurável, das normas de ordenamento ou das especifica-
ções do alvará” (artº. 5º al. v) é deficiente e muitissimo incompleta.
— Refira-se ainda o uso de terminologia inadequada, tais como
“disposições adicionais” (Secção I que encima o artº. 110º) que não sa-
bemos o que são e porque razão são adicionais. Que características lhes
confere esse carácter adicional.

4. AGENDA DA REFORMA

I. No I FÓRUM NACIONAL DO ORDENAMENTO DO TERRITÓ-


RIO ocorrido entre 5 e 6 de Novembro de 2001 a revisão da Lei das bases
de Ordenamento do Território e do Planeamento Urbanístico já tinha sido
colocada em agenda. As 38 conclusões e recomendações saídas dessa Fórum
apontam todas para a reforma desta legislação.

Passemo-las em revisão:

1. Actualizar a Lei de bases do Planeamento e sua comparticipação e arti-


culação com a Lei de bases do Ordenamento do Território e do Plane-
amento Urbanístico;
e outros escritos jurídicos 339

2. Rever a Lei de Bases do Ordenamento do Território e do Planeamento


Urbanístico por forma a adequar alguns conceitos e aligeirar o seu con-
teúdo;
3. Dotar com urgência a D.G.OT dos meios institucionais, organizacionais,
humanas, técnicos e financeiros por forma a que possa exercer com efi-
ciência e eficácia as funções que lhes estão atingidas.
4. Proceder com a maior urgência à elaboração do Esquema Nacional e dos
Esquemas Regionais do ordenamento do Território;
5. Dar continuidade, em estreita articulação com os Municípios à elabora-
ção dos Planos urbanísticos Municipais até que venham a ser criadas as
condições de assunção por estes dessa responsabilidade.
6. Proceder periodicamente à elaboração de Relatórios sobre o Estado de
Ambiente e ter em devida conta os dados e informações neles disponi-
bilizados na elaboração dos Planos de ordenamento do território.
7. Reflectir sobre a problemática da regionalização do país, tendo nomea-
damente em conta a necessidade de elaboração de Planos regionais de
desenvolvimento e esquemas regionais de Ordenamento do Território
8. Proceder de forma sistemática a estudos de fundo sobre os diversos im-
pactos susceptíveis de serem causadas pelas grandes obras, nomeada-
mente nos domínios económico, das aglomerados urbanos, das acessi-
bilidades, do ambiente etc.
9. Adoptar uma pratica condicente com a Lei de bases do ordenamento
do território e do Planeamento Urbanístico, no tocante ao processo de
elaboração dos Planos Especiais;
10. Adoptar mecanismo e posturas de concertação, articulação e comple-
mentaridade entre a administração central, a municípios, os operadores
e a sociedade civil no que se refere à elaboração dos Planos das zonas
turísticas especiais e das zonas costeiras.
11. Compatibilizar os estatutos do Promex e diversa legislação atinente à
matéria d elaboração de planos, aprovação de projectos, licenciamen-
tos etc, sendo desejável uma reanálise das competências das estruturas
centrais concernentes e dos municípios
12. Lançar um debate desapaixonado sobre os aspectos positivos e negati-
vos da experiência da criação de ZDII’s e ZRDT’s, em termos económi-
cos sociais políticos e ambientais;
13. Condições de condições para que os municípios assumiram plenamen-
te a função de elaboração de Planos Urbanísticos municipais.
14. Elaborar as Leis dos Solos e das Expropriações por forma a deter a ad-
ministração central e os Municípios de instrumentos adequados de ges-
tão do solo;
15. Elaborar e aprovar uma Lei de Cadastro, que estabelece a metodologia
de base e a elaboração de cadastro rústico urbano;
16. Elaborar com urgência a cartografia nacional em diferentes escalas e em
formatos standartizados;
340 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

17. Realizar um Forum sobre Infraestruturas de e para o desenvolvimen-


to;
18. Proceder à inventariação do património do estado dos municípios;
19. Proceder à adequação da Li de Alvarás à natureza e á dimensão do
mercado de construção e ponderar sobre a conveniência da criação de
Alvarás Municipais;
20. Organizar uma MESA-REDONDA com os parceiros habitacionais e ex-
ternos com vista à compatibilização de várias iniciativas e programas e
projectos relativos a cartografia e cadastro;
21. Criar as condições para que o Município da praia passa entrar no mer-
cado fundiário, de modo a adquirir, pela via negocial, bolsas de ter-
renos para infraestruturação urbana, para dotação de equipamentos e
infraestruturas sociais e para a promoção de programas habitacionais,
particularmente para camadas mais desfavoráveis da sociedade.
22. Em relação ao tema 3. Planos da zona costeira e a sua articulação com o
Ordenamento do Território.
23. Estabelecer um quadro jurídico institucional com vista à gestão integra-
da das Zonas costeiras privilegiando o desenvolvimento sustentável a
longo prazo em termos ecológicos e ambientais;
24. Recomendar ao Governo e à Câmara Municipal da Praia que sejam
adaptadas medidas de regulação dos preços de venda das bolsas de
terreno e de lotes urbanos, visando a minimização do fenómeno de es-
peculação fundiária,de que já há sinais evidentes, especulação essa que
tem efeitos directos, em termos de sobrecustos, tanto para a dotação de
infraestruturas e equipamentos urbanos como para az promoção habi-
tacional;
25. Recomendar ao Governo que, em caso de ineficácia da via negocial,
lance mão do instituto de expropriação por utilidade publica tendo em
vista a obtenção de terrenos para que o Município da Praia possa levar
a cabo programas de dotação de infraestruturas, equipamentos e servi-
ços urbanos e de promoção habitacional.
26. Considerar que o Ambiente e o Ordenamento do Território pela sua na-
tureza integradora e pela similitude dos princípios e objectivos que os
caracterizam se tratam de dois sectores com enormes interfaces, o que,
como tal, requer uma acentuada articulação e concertação;
27. Considerar que um dos meios de implementar uma eficaz articulação
entre o Ambiente e o Ordenamento do território é o da participação
conjunta em estudos, programas e projectos que visem prosseguir ob-
jectivos similares;
28. Serem levados a cabo estudo de viabilidade, no tocante a reutilização
de águas residuais para fins urbanos (irrigação) e industriais (refrigera-
ção de caldeiras), na cidade da Praia;
29. Ser levado a cabo o tratamento conjunto das águas residuais domésticas
e industriais da cidade da Praia, estas sujeitas a pré- tratamento, para
viabilizar os investimentos consentidos e a consentir;
e outros escritos jurídicos 341

30. Reflectir sobre localização da futura ETAR da Praia que permita a reu-
tilização das águas tratadas para fins múltiplos, nomeadamente para a
agricultura, uma vez que a actual localização resultou de uma deficien-
te previsão do desenvolvimento e crescimento da Cidade da Praia.
31. Formular a aplicação políticas e programas de gestão integrada dos
recursos hídricos.
32. Reforço da cooperação regional e internacional em matéria de transfe-
rência de tecnologia e de financiamento de programas e projectos sobre
recursos hídricos.
33. Instaurar um ambiente atractivo para os investimentos públicos e pri-
vados destinados a melhoria dos serviços de abastecimentos de água e
saneamento.
34. Procurar consenso quantos as medidas a tomar, os meios de execução e
resultados a concretizar.
35. Procurar executar uma política de reabilitação de bairros degradados
ou irregulares por forma a permitir atracção das concessionárias dos
serviços públicos de água e saneamento e o incremento das ligações
domiciliárias;
36. Serem devidamente dimensionadas e localizadas as Zonas Industriais,
de modo a serem respeitados os requisitos essenciais para o desenvol-
vimento dessas unidades, nomeadamente espaço envolvente suficien-
tes para “superfícies livres” e para a expansão, sendo desejável que a
área mínima de 10 ha;
37. Primar pela melhoria da organização dos Parques Industriais para ga-
rantir a comercialização, a promoção e a gestão dos mesmos.
38. Preocupação de excessiva ocupação de praias, como a de santa Maria,
por Hotéis que se desenvolvem paralelamente e não perpendicular-
mente à linha da costa, preocupação que convém reter e ser exigida em
norma para certas situações.

II. Esta matéria foi retomada pelo FÓRUM SOBRE A PROBLEMÁ-


TICA DAS TERRAS DE CABO VERDE que tivemos a oportunidade de
organizar na cidade da Praia, em 2002, com a colaboração do Ministé-
rio da Justiça, do Ministério da Administração Interna e da DGOTH, do
qual saiu igualmente um conjunto de conclusões e recomendações direc-
ta e indirectamente relacionada com a problemática do ordenamento do
território. Mais uma vez a revisão da LBOTPU foi colocada em agenda.
Tratando-se, todavia, de um evento de carácter mais geral, as conclusões
e recomendações saídas deste Fórum espelham preocupações e medidas
sobre as mais diversas políticas com incidência no território.
Pela sua importância reproduzem-se neste relatório as referidas
Conclusões e Recomendações:
342 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

1. A Terra é um bem de todos os cabo-verdianos e, como tal, o seu orde-


namento, uso, exploração, ou outro modo de gestão, deverá ser feito
no interesse das gerações presentes e vindouras. A gestão actual desse
bem precioso não poderá perigar a sua utilização e usufruto pelas ge-
rações futuras.
2. A Terra é um bem raro e precioso pertencente a toda a Nação Cabo-
verdiana, pelo que a sua gestão não poderá hipotecar a Independência
Nacional, o bem estar e o futuro das famílias cabo-verdianas e o seu
modo de obtenção de meios de subsistência.
3. O ordenamento do território deverá ser feito em bases criteriosas e no
estrito respeito pela lei. As normas que o disciplinam, tanto ao nível
urbano, como ao nível rural, têm o valor de lei. A sua observância
impõe-se, pois, a todas as entidades públicas como privadas. O Fórum
constatou que algumas entidades, particularmente, algumas Câmaras
Municipais, não respeitam as normas relativas ao ordenamento do ter-
ritório e ao planeamento urbanístico, por um lado, pelo desrespeito do
“processo”, estatuído na Lei de Bases, de elaboração, aprovação, ho-
mologação, publicitação e registo dos planos e, por outro lado, pela
introdução de alterações intempestivas às propostas urbanísticas cons-
tantes nos planos aprovados, ainda que não homologados. O Fórum
chamou a atenção para a necessidade ingente de respeito escrupuloso
pelas orientações e normas da Lei de Bases e para o facto de os planos
urbanísticos aprovados terem o valor de lei e, ainda que não homolo-
gados, serem a expressão da boa fé, respeito pela palavra dada pelas
instituições a que o Cidadão depositou confiança, devendo, por con-
seguinte, esses planos urbanísticos ser observados e respeitados, nos
mesmos termos que as leis.
4. O Fórum alertou para a enorme importância dos planos de ordenamento
do território e dos planos urbanísticos no ordenamento, transformação,
administração e gestão da terra à escala nacional, regional e munici-
pal, pelo que recomendou que, por um lado, a DGOTH seja dotada de
meios para assumir em pleno as suas responsabilidades em matéria de
elaboração dos Planos de Ordenamento do Território, em particular os
Esquemas Regionais de Ordenamento do Território e que, por outro
lado, seja reforçada a capacidade financeira e técnica dos Municípios de
modo a viabilizar a elaboração, aprovação e homologação dos Planos
Directores Municipais, dos Planos de Desenvolvimento Urbano e dos
Planos Detalhados.
5. O Fórum concluiu que algumas disposições legais que disciplinam o
ordenamento, a transformação e a gestão da terra em Cabo Verde ca-
recem de urgente revisão, por manifesta desadequação e por apresen-
tarem deficiências técnicas notórias. De entre essa legislação, colhe citar
a Lei das Bases do Ordenamento do Território e Planeamento Urbanís-
tico; o Regime actual de Expropriação por Utilidade Pública; a Lei dos
Solos. O Fórum constatou que alguma dessa legislação está em curso
e outros escritos jurídicos 343

de revisão, como seja a Lei dos Solos e a Lei da Expropriação por Uti-
lidade Pública, pelo que recomendou a aceleração desse processo de
elaboração. A propósito da lei de Uso do Solo, o Fórum recomendou
a clarificação de conceitos e uma tomada de posição quanto à oportu-
nidade de utilização de institutos relativos à cedência de terrenos pela
Administração, como a venda, o aforamento, o direito de superfície
e outros. No tocante à Lei de Bases de Ordenamento do Território e
Planeamento Urbanístico, recomendou a sua revisão imediata e a sua
compatibilização e integração com preocupações de sustentabilidade
ambiental e económica, pela introdução de orientações normativas re-
lativas, tanto às áreas protegidas, aos espaços com vocação agrícola,
florestal e pecuário, como aos espaços propícios ao desenvolvimento
turístico e industrial.
6. O Fórum considerou, ainda no concernente a legislação de enquadra-
mento da gestão da terra, que toda a disciplina das Zonas Turísticas
Especiais, carece de profunda adequação e alteração, por conter nor-
mas feridas de patente inconstitucionalidade, pelo que recomendou
expressamente que, com caracter de urgência, a legislação relativa às
Zonas Turísticas Especiais seja compatibilizada com os princípios cons-
titucionais que regulam o direito à propriedade privada, garantem a
separação de poderes, a autonomia do Poder Local, mas viabilizem o
Estado e a Administração desconcentrada do Estado a desenvolverem,
no quadro do Estado de Direito democrático, o turismo nacional, como
factor de promoção do desenvolvimento nacional e do progresso das
populações. O Fórum não rejeitou, pois, a existência das chamadas
Zonas Turísticas Especiais, que admitiu, mesmo, terem trazido alguns
benefícios, nomeadamente no que respeita à preservação de espaços
naturais e ao controlo e salvaguarda de implantações urbanístico-tu-
rísticas “selvagens”, mas condenou, em absoluto, o modo como a legis-
lação permite a sobreposição de competências, mesmo entre sectores
da própria Administração Central, e notoriamente no tocante ao Po-
der Local e, ainda, à forma de obtenção de terrenos para a prossecução
desses fins, com desrespeito pelos interesses e direitos adquiridos dos
cidadãos e das comunidades locais, estado de coisas esse que deve ser
revisto com urgência, em prol de um desenvolvimento turístico susten-
tável e participado.
7. Levando em linha de conta os enormes constrangimentos que a ausên-
cia de cadastro provoca ao nível do conhecimento do território para
efeitos de ordenamento, planeamento urbanístico, transformação, ges-
tão, clarificação do direito de propriedade, facilitação dos processos de
inscrição matricial e de registo predial, actualização dos rendimentos
tributáveis, entre outros, o Fórum recomendou que seja dado urgente
seguimento à elaboração da Lei de Bases do Cadastro e de uma Meto-
dologia Nacional de Cadastro Multifuncional da propriedade urbana
e rústica;
344 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

8. Dadas as conhecidas potencialidades do país em matéria de desenvol-


vimento turístico e as perspectivas que se apresentam de constituir
um dos sectores chave do processo de desenvolvimento económico e
social de Cabo Verde, o Fórum reflectiu aprofundadamente sobre a
temática da gestão da orla costeira e do domínio público marítimo e
constatou que o actual enquadramento legal dessa matéria se presta
a alguns constrangimentos e a alguma falta de flexibilidade, pelo que
recomendou a revisão da actual disciplina legal atinente à matéria, no-
meadamente com vista a facilitar a desafectação naquelas situações que
envolvam um interesse público notório e um impacto positivo no de-
senvolvimento do país, sem prejuízo da salvaguarda dos ecossistemas,
da biodiversidade e do património e das paisagens naturais.
9. O Fórum constatou com enorme preocupação que o processo de inscri-
ção matricial e de registo predial caracteriza-se por algum facilitismo
e peca por uma certa falta de qualidade, por um lado, por ausência
de plantas cadastrais e, por outro, pela não observância dos requisi-
tos legais conducentes ao bom registo. Foram mencionadas situações
de enormes discrepância entre a área declarada e a área real e ainda
falsificações de documentos, pelo que o Fórum recomendou a neces-
sária coordenação entre os serviços registrais, camarários e cadastrais
e a estrita observância dos requisitos legais, com vista à recuperação e
preservação da fé pública.
10. O Fórum constatou igualmente que existem situações de manifesta con-
fusão de concessionários de propriedade imperfeita que se arvoram em
proprietários perfeitos; de arrendatários que se arvoram em proprietá-
rios; de meros possuidores que se reclamam proprietários plenos; de
justificações notariais, seja sobre terrenos do Estado, como sobre terre-
nos privados que suscitam dúvidas sobre a sua legalidade; de heranças
indivisas ou a que se procedeu a uma divisão a título particular; de
omissões tanto no registo predial como no registo matricial e um sem
número de situações que requerem urgente intervenção legislativa e/
ou administrativa. O Fórum recomendou que sejam adoptadas medi-
das de saneamento destas situações, à semelhança do que aconteceu,
nomeadamente, em Macau, que, por força de ter vigorado no seu ter-
ritório as mesmas leis que vigoraram em Cabo Verde, se debate com
os mesmos problemas. O Fórum recomendou igualmente que ao lado
de medidas legislativas, sejam tomadas medidas administrativas, como
as figuras de circulares, ordens, instruções, despachos interpretativos
para por cobro a estas situações ou conferir-lhes causa jurídica.
11. Tendo em conta a dimensão que os problemas relativos à Terra têm
assumido, o Fórum recomendou que se mande proceder a estudos com
vista a recuperar figuras que tiveram um papel importante na gestão
das Terras em Cabo Verde, como seja a figura do Julgado de Paz, ins-
tituído com proveito recentemente em países como Portugal e Itália; a
figura do louvado ou mesmo tribunais especiais destinados a resolver
e outros escritos jurídicos 345

de forma sumária as questões relativas à Terra, os quais poderiam in-


cluir pessoas idóneas e juizes especiais.
12. O Fórum constatou que o sistema de registo predial tal como está orga-
nizado na nossa ordem jurídica, como registo predial facultativo, pres-
ta-se a enormes dificuldades no que respeita à prova dos actos relativos
à propriedade da terra. A prática aconselha a partir para uma solução
de registo predial obrigatório e constitutivo. Esta solução teria, todavia,
em consideração o saneamento das situações referidas no ponto 10, sob
pena de esta alteração legislativa vir a suscitar outros estrangulamen-
tos.
13. O Fórum apreciou intervenções muito positivas trazidas por alguns no-
tários e conservadores que entenderam por bem dar a sua contribuição,
mas recomendou que devem ser promovidas acções de formação nota-
rial, como forma de qualificar e capacitar os agentes do sector. Deverão
ser assim organizados cursos de formação notarial.
14. O Fórum constatou que muitos dos problemas que se suscitam a ní-
vel da gestão das terras se prendem com uma deficiente formação dos
agentes da Administração Pública que intervêm no sector, pelo que
recomendou que sejam promovidos estudos que determinem a loca-
lização desses focos de estrangulamento e promovam a formação dos
agentes envolvidos.
15. O Fórum considerou que toda a transacção imobiliária deve ser feita na
base da transparência, de modo a garantir a fé pública e a segurança
das transacções. Devem, pois, ser repensados os sistemas de notários
privativos das câmaras municipais e ao invés partir-se para o sistema
de liberalização da actividade notarial, à semelhança do que aconteceu
recentemente em Portugal. Esta medida teria por efeito reduzir a buro-
cracia e aumentar a qualidade da prática notarial.
16. O Fórum recomendou o envolvimento dos privados e das comunida-
des locais nos assuntos relacionados com a gestão da terra, promoven-
do a associação de proprietários, dada a grande importância de que
se revestem questões relativas à terra no dia a dia dos cidadãos e da
Administração;
17. O Fórum manifestou grande preocupação pelo excessivo número de
processos pendentes relativos a expropriações, as quais, as mais das
vezes, correspondem a situações que datam dos alvores da Indepen-
dência Nacional, algumas a que se atribuiu carácter muito urgente e
que, até hoje, não foram resolvidas ou já caducaram simplesmente; ocu-
pações ilegais e outras situações pendentes que envolvem violação de
direitos com alguma gravidade. O Fórum recomendou ao Governo que
dinamize a Comissão de Avaliação já criada para o estudo destes casos
e promova o mais rapidamente possível a pacificação jurídica, dando
a todos estes casos causa jurídica, o que se traduz, igualmente, numa
forma de garantir o bem estar material e espiritual das populações e de
promover a paz social.
346 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

18. O Fórum constatou que muitas situações de ilegalidade, inconstitucio-


nalidade, preservação da fé pública requereriam intervenção do Minis-
tério Público, intervenção essa que é desconhecida, por isso se admite
que nunca foi feita. O Fórum recomendou uma actuação mais positiva
do Ministério Público nas acções relacionadas com a gestão da terra,
incluindo o controlo das próprias justificações notariais sobre terrenos
do Estado ou das autarquias locais. Nomeadamente, o Fórum consta-
tou que algumas justificações notariais feitas sobre terrenos do Estado
e das autarquias locais estarão feridas de nulidade, pelo que poderão
ser revistas a todo o tempo.
19. Ainda no quadro das acções de defesa da fé pública, o Fórum recomen-
dou que seja adoptada a maior publicitação possível das justificações
notariais, pela via da Edital e de outros meios que se revelarem efi-
cientes, por forma a viabilizar um amplo conhecimento das populações
interessadas.
20. No domínio do ambiente, o Fórum recomendou uma maior integração e
compatibilização com políticas e medidas respeitantes ao ordenamento
do território, ao planeamento urbanístico, à gestão de zonas turísticas
especiais, à gestão da orla marítima e do domínio público marítimo. Re-
comendou ainda o Fórum a adopção de um maior nível exigencial aos
estudos de avaliação de impacte ambiental, os quais devem assumir
um caracter sistemático e obrigatório, a dispensa de uma maior atenção
e investimento na educação para o exercício da cidadania e a criação de
um Fundo do Ambiente.
21. Ainda em matéria do ambiente, o Fórum recomendou a regulamenta-
ção da acção popular municipal e a criação de mecanismos que viabili-
zem a protecção de interesses difusos.
22. O Fórum recomendou que seja estudada a possibilidade de reactivar as
Freguesias que antes desempenhavam um papel importante junto das
populações em matéria de gestão das terras e dispunham até de com-
petências próprias para esse efeito. Nomeadamente, os terrenos baldios
estão por lei na administração das freguesias, o que requer um estudo
desta problemática.
23. Como meio de garantir a aplicação das principais Conclusões e Reco-
mendações, o Fórum recomendou a criação de um Comité de Segui-
mento da implementação das medidas propostas. Nomeadamente, o
Fórum recomendou que seja criada uma equipa multidisciplinar desti-
nada a promover estudos sectoriais sobre a condição jurídica das terras
de Cabo Verde e que seja retomada a discussão pública de alguns dos
temas tratados.

Estes dois fora formam no seu conjunto uma importante Agenda de


Reforma da Lei das Bases de Ordenamento do Território e do Planeamen-
to Urbanístico e respectivos regulamentos.
e outros escritos jurídicos 347

5. BASES EM QUE ASSENTAM O ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO


CABO-VERDIANO E O PLANEAMENTO URBANÍSTICO

As bases em que assentam o ordenamento do território e o pla-


neamento urbanístico atendem a variáveis ligadas ao território, ao am-
biente, à economia, à geografia, ao clima, à população e à sua repartição e
densidade; ao turismo e respectiva projecção; à infraestruturação do país
e respectiva projecção; à repartição de competências entre os diversos ór-
gãos do poder central e local; à participação das ONG e de elementos da
sociedade civil. O estudo destas variáveis não constitui, pois, objecto de
nenhum ramo do direito em particular. Constitui objecto de várias dis-
ciplinas onde se inclui a ciência jurídica, em especial a ciência do Direito
Administrativo, de que o Direito do Urbanismo constitui um dos ramos,
e a ciência do Direito Constitucional. As ciências não jurídicas concorrem
com o Direito do Urbanismo para a determinação e estudo dessas diver-
sas variáveis.
Neste particular, cooperam com o Direito do Urbanismo as ciên-
cias da economia, da biologia, da geografia, da geologia, da estatística, da
engenharia, da sociologia, entre outras562. Razão por que só poderemos
ocupar-nos destas variáveis de forma sumária.

a) - O TERRITÓRIO

O conceito de território para efeitos de ordenamento é o previsto


no artº. 6º da CR.
Nos termos deste artigo o território é composto
a) Pelas ilhas de Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nico-
lau, Sal, Boa Vista, Maio, Santiago, Fogo e Brava, e pelos ilhéus e ilhotas
que historicamente sempre fizeram parte do arquipélago de Cabo Verde;
b) Pelas águas interiores563, as águas arquipelágicas564 e o mar terri-

562 Sobre a interdisciplinaridade desta matéria, cf. Manuel da Costa LOBO, in Direito do
urbanismo (noções fundamentais. Conceitos técnicos. Habitação e seus espaços de vivência),
pp. 24.
563 As águas interiores podem ser marítimas e não marítimas. As águas interiores marítimas
são aquelas “que se situam entre as linhas de fecho naturais das embocaduras dos rios,
rias, lagoas, portos artificiais e docas e as linhas de base rectas”; as águas interiores
não marítimas são “todas as águas designadamente rios, estuários, rias, lagoas, portos
artificiais e docas, que se encontram para dentro das respectivas linhas de fecho
naturais e estão sob jurisdição das capitanias dos portos nos termos da legislação em
vigor, com excepção dos troços internacionais”.
564 O conceito de águas arquipelágicas tem a sua origem no artª 2º da Convenção das
Nações Unidas sobre o Direito do Mar, adoptado pela Assembleia Geral das Nações
348 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

torial565 definidos na lei, assim como os respectivos leitos e subsolos;


c) Pelo espaço aéreo suprajacente aos espaços geográficos referidos
nas alíneas anteriores.
O território inclui ainda a zona contígua, a zona económica exclusiva e
plataforma continental, definidas por lei, sobre as quais o Estado de Cabo
Verde possui direitos de soberania em matéria de conservação, explora-
ção e aproveitamento dos recursos naturais, vivos ou não vivos, e exerce
jurisdição nos termos do direito interno e das normas do Direito Interna-
cional.
O território nacional e os direitos de soberania que o Estado exerce
sobre o território são inalienáveis (artº. 6º/3 da CR).
O território emerso apresenta-se dividido por ilhas e ilhéus com as
dimensões constantes do quadro que se segue:

Ilhéus e ilhas de Cabo Verde566


Ilhas e Ilhéus Sup.(km2) Comp.(m) Larg. (m) Alt. m. (m)

Santo Antão 779 42.750 23.970 1.979


S. Vicente 227 24.250 16.250 725
Santa Luzia 35 12.320 5.350 395
Ilhéu Branco 3 3.975 1.270 327
Ilhéu Raso 7 3.600 2.770 164
S. Nicolau 343 44.500 22.000 1.304
Sal 216 29.700 11.800 406
Boa Vista 620 28.900 30.800 387
Maio 269 24.100 16.300 436
Santiago 991 54.900 28.800 1.394
Fogo 476 26.300 23.900 2.829
Brava 64 10.500 9.310 976
Ilhéu Grande 2 2.350 1.850 95
I. L. Carneiro 0.22 1950 500 32

Unidas em 28 de Julho de 1994 que parece estabelecer uma relação entre águas
interiores e águas arquipelágicas. Assim, o conceito de águas interiores parece estar
pensado para o caso dos Estados costeiros e o conceito de águas arquipelágicas para
o de caso de Estado arquipélago. Estabelecem, com efeito, a Convenção: “A soberania do
Estado costeiro estende-se além do seu território e das suas águas interiores e, no caso de Estado
arquipélago, das suas águas arquipelágicas, a uma zona de mar adjacente designada pelo nome
de mar territorial” – artº. 2º. Nº. 1 da CNUDM.
565 Mar territorial ou águas territoriais são “as que banham as costas de um Estado e
estão sujeitas à sua jurisdição até certo limite determinado pelo direito internacional”.
Tradicionalmente, o alcance do mar territorial era de 3 milhas contadas a partir da
baixa preia-mar.
566 Fonte: João Pereira Silva, O ordenamento do território e a infra-estruturação...
e outros escritos jurídicos 349

— Incluam-se ainda 13 ilhéus.


— A Zona Económica Exclusiva tem certa de 700.000 km2.
— Terra arável representa 10% das terras emersas.
— Agricultura de sequeiro: 95% da terra arável.
— Agricultura de regadio: 5%.

b) - A POPULAÇÃO

Cabo Verde tem vindo a sofrer um crescimento populacional e ur-


bano a uma taxa média anual de 2,4%. Assim, em 1990 a população cabo-
verdiana era de 341.491 habitantes para passar a ser de 434.263 habitantes.
Entre 1990 e 2000 o aumento da população foi de 92.772 habitantes. Hoje
os dados registados pelo INE são os seguintes:
— Número de habitantes: 475.947;
— Densidade populacional: 108 habitantes/km2;
— Concentração: áreas urbanas 54%;
— Taxa de crescimento 2,4%;
— Idade: 42% inferior a 14 anos;
— População estimada em 2020: 629833 habitantes (Ver quadro in-
fra).

Projecção da População 2005-2020567

Ano Efectivos
2005 475.947
2006 484.904
2007 494.105
2008 503.548
2009 513.221
2010 523.103
2011 533.231
2012 543.590
2013 554.145
2014 564.849

567 Fonte: INE.


350 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

2015 575.647
2016 586.561
2017 597.512
2018 608.434
2019 619.249
2020 629.833

Do ponto de vista urbanístico chame-se a atenção para o caso par-


ticular da Cidade da Praia que, entre 1990 e 2000 teve um crescimento
populacional na ordem de 65%, ou seja, de uma população de 71.000
habitantes, em 1990, passou para 106.000 habitantes, em 2000, com uma
densidade populacional de 410.9 habitantes/km2, contra uma densidade
de 298.9 habitantes/km2 da cidade de S. Vicente e uma densidade média
nacional de 109 habitantes/km2.

- A divisão da população por Concelho é a que resulta do quadro


seguinte:
POPULAÇÃO POR CONCELHO1

2000 2002 2005 2010

Concelho Urban
Total Urbano Rural Total Rural Total Urbano Rural Total Urbano Rural
o
Efectivos % % Efectivos % % Efectivos % % Efectivos % %
Cabo Verde 434 625 53,9 46,1 450489 55,3 44,7 475948 57,3 42,7 523103 60,7 39,3
Ribeira Grande 21 594 22,5 77,5 21510 22,5 77,5 21343 22,5 77,5 20924 22,5 77,5
Paul 8 385 21,4 78,6 8349 21,4 78,6 8280 21,5 78,5 8108 21,5 78,5
Porto Novo 17 191 44,8 55,2 17453 45,8 54,2 17861 47,4 52,6 18570 50,0 50,0
São Vicente 67 163 93,8 6,2 69837 94,2 5,8 74136 94,7 5,3 82127 95,7 4,3
São Nicolau 13 661 40,3 59,7 13535 40,9 59,1 13310 41,7 58,3 12816 43,0 57,0
Sal 14 816 89,8 10,2 15889 89,9 10,1 17631 89,9 10,1 20924 90,0 10,0
Boa Vista 4 209 48,1 51,9 4661 48,5 51,5 5398 49,0 51,0 6800 50,0 50,0
Maio 6 754 39,6 60,4 7042 40,7 59,3 7506 42,3 57,7 8370 45,0 55,0
Tarrafal 17 792 32,5 67,5 19168 32,6 67,4 21403 32,9 67,1 25632 33,3 66,7
e outros escritos jurídicos

Santa Catarina 50 024 14,5 85,5 51841 17,4 82,6 54757 21,8 78,2 60157 29,0 71,0
Santa Cruz 33 015 25,9 74,1 34223 27,4 72,6 36163 29,6 70,4 39756 33,3 66,7
Praia 106 348 89,5 10,5 112735 90,0 10,0 123078 90,7 9,3 142546 91,9 8,1
São Domingos 13 320 12,0 88,0 13523 12,6 87,4 13838 13,5 86,5 14385 15,0 85,0
São Miguel 16 128 30,9 69,1 16437 31,4 68,6 16922 32,0 68,0 17786 33,0 67,0
Mosteiros 9 535 4,1 95,9 9564 4,2 95,8 9706 4,3 95,7 9939 4,5 95,5
São Filipe 27 886 28,2 71,8 28043 30,5 69,5 28155 34,0 66,0 28248 39,8 60,2
Brava 6 804 27,4 72,6 6678 27,4 72,6 6462 27,4 72,6 6016 27,4 72,6
351

(1) Fonte: INE


352 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

- A repartição da população por grupo etário é a que resulta do qua-


dro seguinte:

REPARTIÇÃO DA POPULAÇÃO POR GRUPO ETÁRIO1

Anos de projecção
Grupos Etários
específicos 2000 2005 2010 2015 2020
Efectivos % Efectivos % Efectivos % Efectivos % Efectivos %

População total 434.624 475.947 523.103 575.647 629.833

Infanto-Juvenil

0 9.407 2,2 14.739 3,1 15.022 2,9 14.884 2,6 15.508 2,5

1-4 55.015 12,7 64.225 13,5 69.878 13,4 75.139 13,1 76.956 12,2

Educação

4- 5 24.719 5,7 22.091 4,6 26.680 5,1 29.247 5,1 30.476 4,8

6-11 78.052 18,0 68.275 14,3 72.164 13,8 81.226 14,1 87.623 13,9

12- 17 68.828 15,8 77.584 16,3 69.165 13,2 68.489 11,9 79.233 12,6

Alfabetização

49.828 11,5 61.969 13,0 62.427 11,9 52.921 9,2 62.151 9,9

15- 24 86.806 20,0 109.396 23,0 122.118 23,3 113.316 19,7 113.349 18,0

15 e + 251.874 58,0 293.429 61,7 335.500 64,1 368.000 63,9 409.472 65,0

Maioridade

18 e + 220.218 50,7 255.030 53,6 298.597 57,1 336.341 58,4 370.822 58,9

Fecundidade

15- 49 201.582 46,4 240.775 50,6 275.024 52,6 295.370 51,3 324.313 51,5

Trabalho e Emprego

10-14 63.449 14,6 63.779 13,4 54.077 10,3 63.220 11,0 68.874 10,9

10- 64 288.073 66,3 328.381 69,0 362.945 69,4 406.820 70,7 451.449 71,7

15 - 64 224.624 51,7 264.602 55,6 308.868 59,0 343.600 59,7 382.575 60,7

População Idosa

60 e + 37.305 8,6 34.817 7,3 32.113 6,1 34.542 6,0 41.653 6,6

Fonte: INE
e outros escritos jurídicos 353

Registem-se os seguintes dados:

— Densidade populacional: 100 habitantes por km2568.


— Cidades mais populosas: A capital, Praia na Ilha de Santiago com
106.052 habitantes em 2000, a Cidade do Mindelo na Ilha de São Vicente
com 67.844 habitantes, ilha do Sal com 14.792 habitantes, Santa Cruz na
Ilha de Santiago com 32.822 habitantes, a Cidade de São Filipe na Ilha do
Fogo com 7.894 habitantes e a Cidade Assomada em Santa Catarina na
ilha de Santiago com 7.095 habitantes (dados de 2000)569.
— Estrutura etária e rácio de comparação sexual: Abaixo dos 14
cerca de 41.9 % da população, havendo 1.02 homens por cada mulher, dos
15 aos 64 anos cerca de 51.5% da população, havendo 0.92 homem por
cada mulher, acima dos 65 anos cerca de 6.6% da população, havendo 0.63
homens por cada mulher e no total da população há 0.94 homens por cada
mulher (estimativas de 2002)570.
— Crescimento natural anual: 0.85% (estimativa de 2002)571.
— Taxa de natalidade: 27.81 nascimentos por 1.000 habitantes
(estimativa de 2002)572.
— Taxa de mortalidade: 7 mortes por 1.000 habitantes (estimativa
de 2002)573.
— Taxa de mortalidade infantil: 51 mortes por 1.000 nados vivos
(estimativa de 2002)574.
— Taxa de expectativa de vida: 70 anos para os homens e 72 anos
para as mulheres (estimativas de 2002)575.

568 Fonte: Governo http://www.primeiroministro.cv/


569 Fonte: Governo http://www.primeiroministro.cv/
570 Fonte: Governo http://www.primeiroministro.cv/
571 Fonte: Governo http://www.primeiroministro.cv/
572 Fonte: Governo http://www.primeiroministro.cv/
573 Fonte: Governo http://www.primeiroministro.cv/
574 Fonte: Governo http://www.primeiroministro.cv/
575 Fonte: Governo http://www.primeiroministro.cv/
354 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

— Religião: 95% da população cabo-verdiana professa o catolicismo,


sendo que a restante população é protestante576.
— Pessoas sem abrigo: total 117 (Censo 2000)
— Agregados a viverem em barracas; 1.145;
— Unidades de alojamento com as paredes em pedra solta, pedra e
terra e pedra argamassada 45.454 (48,4%);
— Unidades com pavimento em terra: 3.990 (8,2%)
— Agregados vivendo em alojamentos de 1 e 2 dimensões: 35.156
(37,4%)
— Agregados a se abastecerem em chafariz: 41.989 (45%)
— Agregados com água canalizada 23.259 (25%);
— Agregados sem cozinha: 31.472 (33,5%);
— Agregados utilizando lenha: 30.243 (32%);
— Agregados sem casa de banho, sem retrete e sem latrina 50.775
(54%);
— Agregados a evacuarem águas residuais ao redor da casa: 45.437
(48%);
— Agregados a evacuarem águas residuais na natureza: 22.153
(23,6%);
— Agregados sem esgoto e fossa 22.776 (24%);
— Agregados a utilizar electricidade: 46.999 (50%);
— Agregados a utilizar petróleo: 33.678 (36%)

c) - AMBIENTE

As medidas de política em matéria de ambiente encontram o seu


suporte legislativo em três diplomas fundamentais:
— A Lei do Ambiente, aprovada pela Lei nº. 86//IV/93, de 26 de Julho;
— O Regulamento à Lei das Bases do Ambiente, aprovado pelo
Decreto-legislativo nº. 14/97, de 1 de Julho;
— O Decreto-Lei nº 3/2003, de 24 de Fevereiro, que estabelece o

576 Fonte: Governo http://www.primeiroministro.cv/


e outros escritos jurídicos 355

regime jurídico dos espaços naturais, paisagens, monumentos e lugares


que pela sua relevância para a biodiversidade, pelos seus recursos
naturais, função ecológica, interesse económico-social, cultural, turístico
ou estratégico, merecem uma protecção especial e integrar-se na Rede
Nacional das Áreas Protegidas.
Na sequência deste último diploma foram delimitadas as seguintes
áreas protegidas nas seguintes ilhas:

— BOA VISTA

- Reserva natural Integral Ilhéu de Baluarte: “presença e nidificação


de aves emblemáticas a nível mundial tais como a fragata e o
alcatraz”577
- Reserva Natural Integral Ilhéu Curral Velho: presença e nidificação
de aves emblemáticas a nível mundial tais como a fragata e o
alcatraz578
- Reserva Natural Integral Ilhéu dos Pássaros: presença e nidificação
de aves emblemáticas a nível mundial579;
- Reserva Natural Boa Esperança: “presença de processos ecológicos
derivados da dinâmica de areia e da presença da desembocadura
da Ribeira do Rabil; qualidade visual da sua paisagem”580;
- Reserva Natural de Moro de Areia: “preservação de processos
ecológicos derivados da dinâmica arenosa e a conservação de
habitates de interesse para espécies endémicas como os rabijuncos,
guinchos, tartaruga, tubarões gato”581;
- Reserva Natural Ponta do Sol: “presença de espécies emblemáticas
da avifauna insular (rabijuncos e guinchos) e geológicos”582;

577 Cf. Plano Estratégico para o Desenvolvimento Turístico 2004-2015 – Ministério da Eco-
nomia, Crescimento e Competetividade, (inédito) pp. 34.
578 Cf. Plano Estratégico para o Desenvolvimento Turístico 2004-2015 – Ministério da Eco-
nomia, Crescimento e Competetividade, (inédito) pp. 35.
579 Cf. Plano Estratégico para o Desenvolvimento Turístico 2004-2015 – Ministério da Eco-
nomia, Crescimento e Competetividade, (inédito) pp. 35.
580 Cf. Plano Estratégico para o Desenvolvimento Turístico 2004-2015 – Ministério da Eco-
nomia, Crescimento e Competitividade, (inédito) pp. 36.
581 Cf. Plano Estratégico para o Desenvolvimento Turístico 2004-2015 – Ministério da Eco-
nomia, Crescimento e Competitividade, (inédito) pp. 37.
582 Cf. Plano Estratégico para o Desenvolvimento Turístico 2004-2015 – Ministério da
Economia, Crescimento e Competitividade, (inédito) pp. 38.
356 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

- Reserva Natural Tartaruga: “conservação das praias com áreas de


nidificação de tartarugas”583;
- Parque Natural do Norte: “conservação dos valores naturais
(presença de áreas de nidificação de tartarugas, avifauna de interesse,
principalmente rapinas e estepárias) com o desenvolvimento sócio-
económico das populações584;
- Monumento Natural Ilhéu de Sal-Rei: “presença de importantes
valores naturais pelas espécies de fauna e flora; valor histórico
cultural o antigo forte Duque de Bragança”585;
- Monumento Natural Monte Estância: “valores geológicos,
geomorfológicos e paisagísticos; peculiaridade da flora e da fauna
existente586;
- Monumento natural do Monte de Santo António: mesmos
fundamentos
- Monumento Natural Rocha Estância: mesmos fundamentos.
- Paisagem protegida Curral Velho: “preservação da identidade
paisagística e das características naturais conformada por currais e
núcleos de populações tradicionais587;
- Paisagem protegida Monte Caçador e Pico Forcado: valores
geomorfológicos e a peculiaridade da flora e da fauna existente;
Poça Olho do Mar 588;

583 Cf. Plano Estratégico para o Desenvolvimento Turístico 2004-2015 – Ministério da Eco-
nomia, Crescimento e Competitividade, (inédito) pp. 38.
584 Cf. Plano Estratégico para o Desenvolvimento Turístico 2004-2015 – Ministério da Eco-
nomia, Crescimento e Competitividade, (inédito) pp. 40.
585 Cf. Plano Estratégico para o Desenvolvimento Turístico 2004-2015 – Ministério da Eco-
nomia, Crescimento e Competitividade, (inédito) pp. 40.
586 Cf. Plano Estratégico para o Desenvolvimento Turístico 2004-2015 – Ministério da Eco-
nomia, Crescimento e Competitividade, (inédito) pp. 40.
587 Cf. Plano Estratégico para o Desenvolvimento Turístico 2004-2015 – Ministério da Eco-
nomia, Crescimento e Competitividade, (inédito) pp. 42.
588 Cf. Plano Estratégico para o Desenvolvimento Turístico 2004-2015 – Ministério da Eco-
nomia, Crescimento e Competitividade, (inédito) pp. 43.
e outros escritos jurídicos 357

MAIO589

- Reserva Natural Casas Velhas: preservação das praias como áreas


de nidificação de tartarugas; ecosistema valioso para a conservação
da avifauna limnicola;
- Reserva Natural Lagoa Cimidor: conservação de um espaço natural
frequentado por diversas aves marinhas de interesse e por ser uma
das lagoas salinas com água permanente;
- Reserva Natural Praia do Moro: nidificação de tartarugas.
- Parque Natural do Maio: conservação dos valores naturais
existentes; potenciar o desenvolvimento sócio-económico das
povoações locais.
- Paisagem protegida Monte Penoso e Monte Branco: singular e
excepcional complexo argiloso, calcário e eruptivo, devido à presença
de depósitos mesozóicos, os mais antigos do arquipélago.
- Paisagem protegida Monte Santo António: paisagem eminentemente
natural onde não se levou a cabo nenhum uso do solo destacável, à
excepção da actividade agrária.
- Paisagem Protegida Salinas do Porto Inglês: habitat idóneo para
muitas espécies de aves limnícolas e migrantes com importância
mundial.

SAL590

- Reserva Natural Marinha Baía da Murdeira: excepcional riqueza


de ecossistemas submarinos com elevada proporção de elementos
endémicos e singulares; praias de alimentação e nidificação de
algumas espècias de tartarugas marinhas.
- Reserva Natural Costa da Fragata: corredor de areia de alto valor
ecológico. Existência de importantes formações dunares; habitats
para determinadas espécias faunísticas com especial importância
para a tartaruga Caretta caretta.

589 Cf. Plano Estratégico para o Desenvolvimento Turístico 2004-2015 – Ministério da Eco-
nomia, Crescimento e Competitividade, (inédito) pp. 44 segs.
590 Cf. Plano Estratégico para o Desenvolvimento Turístico 2004-2015 – Ministério da Eco-
nomia, Crescimento e Competitividade, (inédito) pp. 49 segs.
358 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

- Reserva Natural Ponta do Sinó: alto valor ecológico das praias


relacionado com o ciclo biológico das tartarugas e o ecossistema
das terras salgadas para aclher avifauna local e migratória.
- Reserva Natural Rabo Junco: presença e nidificação de espécies
emblemáticas.
- Reserva Natural Serra Negra: presença e nidificação de espécies
emblemáticas; espaço chave para a conservação da biodiversidade.
- Reserva Natural Morrinho de Açucar: beleza, singularidade e
representatividade de um elemento geológico de alta incidência
visual.
- Monumento Natural Morrinho do Filho: interesse geológico e
paisagístico.
- Paisagem Protegida Buracona-Ragona: sector representativo do ponto
de vista geológico e paisagístico; presença de formas vulcânicas
singulares, tais como lavas almofadadas e tubos vulcânicos.
- Paisagem Protegida Monte Grande: valor geológico dos seus
materiais recentes, com sectores de pilow-lavas no litoral.
- Paisagem Protegida Salinas de Pedra do Lume e Cagarral: elementos
naturais como culturais relacionados com a existência de uma
interessante caldeira vulcânica e com a exploração de salinas;
paisagem de singular beleza e valor ecocultural.
- Paisagem Protegida Salinas de Santa Maria: interesse turístico e
potenciais fins terapêuticos.

Outros sítios cuja protecção tem sido suscitada591

SANTO ANTÃO

Moroços: Toda a área do perímetro florestal


Vale do Paúl/Cova/R.Torre: Toda a área, com restrições, por
componentes
Cruzinha: A área a partir dos 500 metros de altitude
Topo de Coroa: A cabeceira aplanada a partir dos dos 1500 metros

591 Informação gentilmente cedida por Manuel Pereira SILVA.


e outros escritos jurídicos 359

de altitude, com restrições específicas à area de concentração dos


endemismos

S. NICOLAU

M. Gordo: Toda a área compreendida entre 800/1312 m altitude,


com restrições específicas para os espaços de maior concentração e
qualidade endemismos
Fajã Cima: considerá-la paisagem natural
A.Cabaças: área entre 500/626 m altitude

SANTIAGO

Serra Pico Antónia: área perímetro florestal entre 1200/1394 m


altitude, com restrições específicas p/espaços de maior concentração
e qualidade endemismos
Serra Malagueta: área perímetro floresta entre 700/1050 m altitude,
com restrições específicas para os espaços de maior concentração e
qualidade endemismos
Boa Entrada e Banana: declaração medidas protecção Garça
Vermelha
Lugar Velho: toda a área, com medidas restritivas para os sítios de
maior concentração e qualidades endemismos
Monte Graciosa: área compreendida entre 100/199 m altitude, com
restrições de acesso e uso
FOGO

Chã das Caldeiras

S. VICENTE

Monte Verde: Toda a área da plataforma cimeira


R. de Vinha: Toda a área de vegetação do tarafe
360 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

SANTA LUZIA

Toda a zona da ilha.

d) - Zonagem agro-ecológica e de vegetação

De há alguns anos a esta parte o INIA – Instituto Nacional de


Investigação Agrícola mandou proceder a estudos importantes que
conduziram à elaboração de cartas de zonagem agro-ecológica e da
Vegetação de Cabo Verde. Tais estudos, pelo nível de informação que
fornecem sobre o meio físico, a classificação dos solos, a classificação das
zonas, o coberto vegetal, espécies botânicas e a sua distribuição territorial,
revelam-se importantes instrumentos a ter em conta nas políticas de
ordenamento do território.

e) - A divisão político-administrativa

O território nacional encontra-se dividido em concelhos, unidade


politico-administrativa importante para efeitos de ordenamento do
território e planeamento urbanístico. Na verdade, as iniciativas de
ordenamento e urbanização competem ao Estado e aos municípios.
Àquele competem as iniciativas de âmbito nacional e regional. A estes
competem as iniciativas de âmbito local, entendido como tal o território
municipal. Não estão, todavia, inviabilizadas as iniciativas urbanísticas
dos particulares, desde que respeitem ao interesse público e se conformem
com as previsões e disposições dos planos (artº. 3º al. m)).
Os concelhos existentes em cada ilha são os seguintes:
— Na ilha de Santo Antão existem os Concelhos de Paul, Porto
Novo e Ribeira Grande;
— Na Ilha de S. Vicente, o Concelho de S. Vicente: que abrange
administrativamente a Ilha de Santa Luzia;
— Na ilha de S. Nicolau, o Concelho de S. Nicolau. Estão em curso
a criação de mais concelhos nesta Ilha;
— Na ilha do Sal, o Concelho do Sal;
— Na ilha da Boa Vista, o Concelho da Boa Vista;
— Na ilha do Maio, o Concelho do Maio;
— Na ilha de Santiago, os Concelhos de Praia, Santa Catarina, Santa
Cruz, S. Domingos e S. Miguel: estão em curso a criação de mais concelhos
nesta ilha;
— Ilha do Fogo, Concelho de S. Filipe;
— Ilha da Brava, Concelho da Brava.
e outros escritos jurídicos 361

6. PLANOS: ESTÁDIO DE ELABORAÇÃO

Nos diversos concelhos o interesse pelo planeamento tem vindo a


instalar-se paulatinamente. A obrigatoriedade de elaboração de planos foi
estabelecida ou condicionaram a obtenção de determinadas prerrogativas
à sua elaboração.
Devem ser louvadas essas medidas de carácter pedagógico.
A Associação Nacional de Municípios com o apoio da cooperação
francesa elaborou o diagnóstico sobre o estádio de elaboração dos planos
urbanísticos nos municípios de Cabo Verde. Desse diagnóstico resulta o
seguinte no que respeita ao estádio de elaboração dos planos.

- Concelhos de Paul
Em 1997 mandou-se proceder ao diagnóstico da situação existente
através de um estudo realizado pela empresa TECTOPLACA. Nada mais
se conhece sobre o planeamento urbanístico deste concelho.

- Porto Novo
Não dispõe de PDM nem de PDU. Em 1995 mandou-se elaborar um
estudo de diagnóstico com a inclusão de cenários, planos e regulamentos
relativos à Vila do Porto Novo, mas este estudo equivalente a um Plano
de Detalhe não chegou a ser submetido à aprovação.

- Ribeira Grande
Não dispõe nem de PDM, nem de PDU nem de PD. Em 1986
mandou-se proceder à elaboração da Planta da Vila de Ponta do Sol. Em
1999 fez-se um estudo sobre a preservação dos centros antigos e em 2002
sobre o loteamento da Vila de Ponta do Sol.

- Concelho de S. Vicente
Tanto o PDM como o PDU da Vila do Mindelo foram
mandados elaborar desde 1993, com a colaboração da TECTOPLACA.
Pressupostamente o PDM está em vigor desde 1995, mas desconhece-se
se obedeceu à tramitação legal. Nomeadamente, não terá sido submetido
à homologação.

- Concelho de S. Nicolau
Os estudos com vista à elaboração do PDM tiveram início desde
1993 com a colaboração da TECTOPLACA e IFH. Idênticos estudos foram
iniciados em 1984 com vista à elaboração do PDU.
362 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Ambos mostram-se inconcluídos.

- Concelho do Sal
O PDM está em curso de elaboração desde 1996, com a participação
da empresa ARCOTECH mas não foi até agora aprovado. Existe
igualmente um PDU para a Vila de Santa Maria e Espargos e um Plano de
Detalhe para a Vila de Santa Maria. Estes Planos também não foram até
agora aprovados.

- Concelho da Boa Vista


Dispõe de um Plano Director Municipal que inclui um diagnóstico
da situação urbanística, define cenários, planos e regulamentos. Trata-se
de um estudo iniciado em 1994 e concluído em 1996 que contou com a
participação da Oficina de Arquitectura de Portugal.
A propósito do PDM da Boa Vista pelo menos dois estudos foram
produzidos:
- um estudo de Geraldo da Cruz Almeida, - O Plano Director
Municipal e os Planos Urbanísticos Detalhados da Ilha da Boa Vista (Parecer),
Revista de Direito e Urbanismo (Portugal) nº. 10, Coimbra, Almedina
(1999).
- Um estudo de João Pereira SILVA, Plano Director Municipal da Boa
Vista (diagnóstico) inédito.
Refira-.se ainda o Plano de Desenvolvimento Urbano de Sal-Rei
elaborado em 1997 pela mesma Oficina de Arquitectura de Portugal.
O PDM não foi submetido à homologação ministerial.
Em Março do ano 2000, com o apoio das Canárias e da União
Europeia, realizado pela Natura 2000 um estudo de diagnóstico contendo
cenários, planos, propostas de zonagem e regulamento relativo ao
património natural da Ilha. O mesmo documento foi elaborado para a
Ilha do Maio e classificado pela ANMCV como de relevante importância
para o PDM.

- Concelho do Maio
O Município do Maio não mandou até à presente data elaborar o
seu PDM. O único estudo que dispõe, neste particular, diz respeito a um
diagnóstico mandado realizar em Março do ano 2000, com o apoio das
Canárias e da União Europeia, realizado pela Natura 2000. Trata-se de
um instrumento que define a zonagem do território em atenção ao seu
património natural. A Associação Nacional dos Municípios classifica este
documento como muito importante para a elaboração do PDM.
e outros escritos jurídicos 363

- Concelho da Praia
O PDM está em curso de elaboração desde o ano 2000. Já dispõe de
um estudo de diagnóstico; um estudo de cenários; planos e regulamentos,
mas não foi submetido a discussão, aprovação ou homologação. O PDU
da Praia encontra-se na mesma situação.
O Município dispõe de Planos de Detalhe relativamente aos
seguintes Bairros: Palmarejo, Palmarejo de Baixo, Achada de S. Filipe,
Cidadela, Terra Branca, Achada de Santo António, Novo Plateau, Cova
Minhoto, Caiada, Achada Grande Trás Industrial, Ribeira Achada Grande
trás, Achadinha, Várzea de Companhia e Nova Praia.
Existem igualmente estudos e Planos de Detalhe relativos às ZDTI
da Praia.

- Santa Catarina
Embora ainda não disponha do PDM, Trata-se de uma tarefa já
agendada e a ser realizada no mais curso espaço de tempo. Em 1992 foi
mandado elaborar um estudo incluindo diagnóstico, cenários, planos e
regulamentos, com vista ao PDU da Vila da Assomada, com a colaboração
do Gabinete Georgina MELO, mas este documento não chegou a ser
aprovado.

- Santa Cruz
Não tem PDM. Em 1992 Mandou-se proceder a um estudo com
vista ao PDU da Vila de Pedra Badejo, estudo esse que não foi concluído
e nem está aprovado.

- S. Domingos
Não tem PDM. O PDU das Vilas de Praia Baixo, S. Domingos,
Ribeira Chiqueiro, Milho Branco e Praia Formosa foi mandado elaborar
em 2003. Não foi concluído nem aprovado.

- S. Miguel
O PDM foi aprovado em 2002, mas não se sabe se foi sujeito a
homologação. Foi igualmente aprovado um PDU para a Vila da Calheta
desde essa data.

- Concelho de S. Filipe
Os estudos Com vista ao PDU foram mandados elaborar em
1991. Em 1996 foram elaboradas as cartas gráficas e regulamentos, tudo
com a colaboração da empresa ARCOTECH. Todavia, o PDM nunca foi
submetido à aprovação, nem chegou a entrar em vigor.
364 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Nas mesmas circunstâncias se encontra o PDU da Vila de S. Filipe.

- Concelho dos Mosteiros


Desconhece-se a existência de qualquer plano urbanístico. Sabe-se
apenas que está em curso o respectivo levantamento topográfico.

- Concelho da Brava
O Município da Brava não mandou até à presente data elaborar
o seu PDM. O único estudo que dispõe, neste particular, diz respeito a
um diagnóstico mandado realizar em 2002 relativamente à Vila de Nova
Sintra, o qual inclui planos e regulamentos.
Este estudo de diagnóstico não foi submetido a aprovação. A
Associação Nacional dos Municípios interroga-se sobre o seu valor jurídico.
Desconhecendo nós qual a tramitação seguida para a sua adopção, não
podemos emitir uma opinião segura sobre esta questão.
Mais refere o estudo levado a cabo pela Associação Nacional de
Municípios que a Assembleia Municipal votou um regulamento de
urbanismo aplicável a uma zona central da Vila de Nova Sintra, cujo valor
jurídico também suscita.
As assembleias Municipais podem votar regulamentos592, maxime
os regulamentos relativos à regulação de interesses locais. O seu valor
jurídico depende do seu conteúdo que desconhecemos. Se observarem
as leis gerais da República, como seja a Lei das Bases do Ordenamento
do Território e do Planeamento Urbanístico, nos seus parâmetros
fundamentais, tais regulamentos são válidos.

**

592 Cf. Geraldo da Cruz ALMEIDA, in A tipologia dos actos legislativos no direito constitucio-
nal cabo-verdiano, (nesta colectânea).
e outros escritos jurídicos 365

O ponto da situação no que respeita à elaboração de planos


urbanísticos é o que decorre do quadro seguinte elaborado pela DGOTH:

PONTO DE SITUAÇÃO DOS PLANOS URBANÍSTICOS MUNICIPAIS1

MUNICÍPIO Situação Anterior a Situação Actual Observações


1990
PRAIA Plano Geral Esquema Director do A CM da Praia elaborou em
Planos de Pormenor Concelho da Praia 96/97 o Esquema Director e
e vem elaborando o PDU da
PDM da cidade da Praia em Cidade da Praia
elaboração
SÃO VICENTE PDM PDM Actualizado
PDM , Em elaboração novo PDM,
SAL PDM PDU`s e PD´s PDU’s de S. Maria e Espargos
Carecem de revisão e 4 PP’s

SÂO FILIPE - PDM, PDU e PD carecem de Desejável a actualização nesta


revisão legislatura
PORTO NOVO PDM, PDU e PD carecem de Desejável a actualização nesta
revisão legislatura
BOA VISTA PDM, PDU e PD carecem de Desejável a actualização nesta
revisão legislatura
RIBEIRA GRANDE - PDM , PDU e PD Processo paralisado,
começaram a ser elaborados desde 97. Convêm relançar
PAÙL - PDM , PDU e PD Processo paralisado,
começaram a ser elaborados desde 97. Convêm relançar
SÂO NICOLAU - PDM , PDU e PD Processo paralisado,
começaram a ser elaborados desde 97. Convêm relançar
TARRAFAL - PDM, PDU e PD em A serem elaborados pela IFH
elaboração
SÂO MIGUEL - PDM, PDU e PD em A serem elaborados pela IFH
elaboração
MAIO - Plano de Pormenor PDM, PDU e PD´s, a elaborar
nesta legislatura
SANTA CATARINA A elaborar
C/caracter de urgência
SANTA CRUZ PDU esquemático e PP A elaborar
C/caracter de urgência
MOSTEIROS Por elaborar
SÂO DOMINGOS Por elaborar
BRAVA Por elaborar

Fonte: DGOTH.
366 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

7. CARTOGRAFIA E CADASTRO

Concomitantemente à reforma da LBOTPU encontra-se igualmente


em curso de elaboração a Lei das bases do Cadastro e a Lei da Produção
Cartográfica. O cadastro e a produção cartográfica constituem importantes
instrumentos de planeamento. As preocupações com o cadastro predial
datam do século XIX. A Portaria, de 18.dez.1842, B. n.º 7 determinou a
formação do cadastro das propriedades rurais da província. Em 1902 a
Portaria de 20.jan.1902, (B. n.º 34) mandou organizar a Secção Técnica
para cadastro que ficou a cargo da Comissão das Terras que desenvolveu
um conjunto de diligências, nomeadamente, o desenvolvimento de acções
públicas para a sua organização (cf. Edital de 1902 (B. Nº. 9). Em 1923 foi
criada a Secção de Agricultura e Cadastro da Direcção das Obras Públicas,
cujos trabalhos não são conhecidos.
No domínio da cartografia também há notícias que datam de inícios
do século XX. Em 1927 a Portaria Provincial n.º 56, de 12.abr.(B. n.º 15)
mandou elaborar cartas corográficas, a cores, das ilhas do arquipélago,
ampliadas e completadas, com discriminações das propriedades do
Estado, mas não se conhece o resultado desta determinação.

8. POLÍTICA LEGISLATIVA

I - As normas de ordenamento do território e planeamento


urbanístico não são neutras. Prosseguem políticas económicas, sociais,
culturais, ambientais, viárias, de lazer. Como observa FREITAS DO
AMARAL, estas normas não visam apenas disciplinar593. Preconizam uma
intervenção activa no território, de salvaguarda, de direcção central. Neste
sentido, todo o plano é director pela razão de que orienta as actuações
no território em atenção à prossecução de determinados objectivos. Esta
visão corresponde à concepção socialista de ordenamento do território
que vingou sobre o laissez-faire; laissez-passer e sobre o Estado polícia.

II - A definição de políticas em matéria do ordenamento do território


compete à Assembleia Nacional, ao Governo e aos Municípios, a estes
dentro dos limites da autonomia municipal. A reunião das preferências
definidas traduzem no seu conjunto opções de politica legislativa que
orientam o consultor no processo de tradução legislativa.

593 In Direito do Urbanismo (opções políticas e ideologias subjacentes à legislação Urbanística)...,


pp. 93 e segs.
e outros escritos jurídicos 367

Os elementos a atender nesta matéria são:

- O Programa do Governo da Legislatura 2002-2005;


- As Grandes Opções do Plano 2002-2005;
- Os Planos Regionais de Desenvolvimento;
- Os Planos Municipais de Desenvolvimento;
- Os Plano Nacional de Acção para o Ambiente;
- A Estratégia Nacional de Conservação da Natureza;
- O Plano Estratégico de Desenvolvimento Turístico;
- Os termos de Referência fornecidos pelo dono do projecto (o
Governo).

III - Dos elementos referidos resultam as seguintes opções de política


legislativa em matéria do ordenamento do território e do planeamento
urbanístico:

- a LBOTPU deve espelhar uma Política Nacional de Ordenamento


o Território, enformada por um conjunto de processos interdependentes
entre si que atenda aos solos, sua vocação e sustentabilidade; aos
interesses económicos, sociais, culturais; à solidariedade e compromisso
inter-geracionais, ao desenvolvimento equilibrado das regiões e à justa
repartição da riqueza nacional;
- A LBOTPU deve permitir e facilitar Políticas Locais de Ordenamento
do Território e Planeamento Urbanístico que promovam a requalificação
urbana, a beleza das cidades e outros aglomerados urbanos; facilite a
circulação viária e o saneamento básico e promova os demais interesses
locais sem quaisquer constrangimentos que não os ditados por superiores
interesses nacionais;
- Como tal a LBOTPU deve espelhar o princípio da descentralização
administrativa como factor do reforço do Poder Local;
- O ordenamento do território deve assentar-se num Sistema
Integral de Gestão do Território que atenda ao território nacional na sua
totalidade, conserve a sua unidade, respeite a diversidade territorial e a
biodiversidade, mantenha uma articulação constante e permanente com o
interesses do Ambiente e outros sectores de desenvolvimento;
- A LBOTPU deve espelhar uma cultura de participação
activa das populações, de articulação, concertação, coordenação e
de complementaridade, por parte de todos os agentes e sectores
envolvidos, assim como implementar um sistema de procedimentos que
privilegie o nível decisório mais próximo dos cidadãos (princípio da
subsidariedade);
368 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

- O ordenamento do Território deve constituir um importante


instrumento de luta contra a pobreza e a exclusão social; de facilitação
do acesso das regiões e populações às Novas Tecnologias de Informação
e Comunicação; do acesso ao conhecimento e à cultura; de difusão de
elementos culturais autóctones na sua mais ampla diversidade, como factor
de enriquecimento espiritual e de valorização da caboverdianidade;
- A LBOTPU deve permitir a adopção de planos especiais que
protejam a biodiversidade nacional; as zonas históricas; as zonas com
especial vocação turística ou industrial; a orla marítima, as bacias
hidrográficas e outros espaços naturais de modo a impedir a sua
degradação e a promover a sua melhor utilização;
- Além dos planos referidos no item anterior, a LBOTPU deve
permitir a existência de instrumentos adequados de gestão territorial que
incluam uma estratégia de organização do espaço territorial, organizem
a ocupação humana e a utilização dos solos, permitam a protecção dos
ecossistemas e promovam o desenvolvimento;
- A LBOTPU deve viabilizar as iniciativas particulares em matéria
de planeamento urbanístico, regular as operações de loteamento e
fixar os parâmetros que permitam a absorção de planos especiais de
desenvolvimento turístico, industriais ou outros de iniciativa particular;
- A LBOTPU deve atribuir um carácter vinculativo aos instrumentos
de gestão territorial não só para as entidades públicas, mas também,
dentro de certos limites, para as entidades particulares, assim como
adoptar medidas tanto preventivas como sancionatórias para fazer face à
possibilidade de comprometimento das medidas de ordenamento, seja a
montante, seja a jusante;
- Nesta conformidade, a LBOTPU deve adoptar um quadro
adequado de sanções que reprima os comportamentos sejam acções ou
omissões susceptíveis de comprometerem os objectivos do ordenamento
e do planeamento urbanístico;
- A LBOTPU deve assegurar a mais completa informação dos
particulares, em termos que vinculem tanto as entidades do poder central,
como as do poder local, de todas as fases do processo de elaboração dos
instrumentos de gestão territorial, assim como garantir-lhes o acesso aos
documentos da administração e bem assim a possibilidade de impugnarem,
através da acção popular, do recurso administrativo ou através de queixa às
entidades competentes qualquer acção ou omissão da Administração lesiva
dos interesses que a mesma LBOTPU visa defender, independentemente
de culpa dos agentes da Administração ou da existência de um prejuízo
efectivo para o território ou para o ambiente;
e outros escritos jurídicos 369

- A LBOTPU deve salvaguardar os direitos, liberdades e garantias


dos cidadãos que incidam ou tenham relação com o território, susceptíveis
de serem comprometidos por medidas de racionalidade técnica e garantir
mecanismos de compensação quando a inevitabilidade da intervenção
causar um prejuízo efectivo ou comprometer a realização de interesses
particulares, sem prejuízo do estabelecido na legislação relativa à
expropriação por utilidade pública;
- A LBOTPU deve preconizar medidas de monitoramento que
permitam uma avaliação permanente do ordenamento do território e
do planeamento urbanístico e a apresentação periódica do resultado
desse monitoramento através de relatórios seja do Governo perante a
Assembleia Nacional, seja das câmaras perante a respectiva assembleia
municipal, sem prejuízo da tutela inspectiva;
- A LBOTPU deve adoptar um sistema adequado de divulgação e
publicidade dos instrumentos de gestão territorial, de caracterização dos
sítios, dos solos e sua vocação, classificação e qualificação por forma a
possibilitar o seu mais amplo conhecimento por parte dos interessados.

9. SENTIDO DA ALTERAÇÃO DA LEI N.º 85/IV/93


DE 16 DE JULHO

Tendo em conta o que fica exposto, preconizamos as seguintes


alterações à actual LBOTPU:

- Rever a fórmula prevista no artº. 1º. por forma a possibilitar que


o ordenamento do território nacional e o planeamento urbanístico não se
circunscrevam aos núcleos de povoamento;
- Manter o princípio, aliás, já previsto em outros projectos em
curso de elaboração, segundo o qual o território cabo-verdiano constitui
património colectivo da Nação;
- Manter o princípio segundo qual o ordenamento do território e o
planeamento urbanístico devem obedecer o interesse público e respeitar
os direitos e interesses legítimos dos cidadãos;
- Manter o princípio segundo o qual o ordenamento territorial
e urbano visa melhorar a qualidade de vida individual e colectiva dos
cidadãos, a protecção do meio ambiente e o desenvolvimento equilibrado
das regiões;
- Manter o princípio da colaboração recíproca entre o Estado e os
Municípios no ordenamento territorial e planeamento urbanístico;
- Manter e rever o princípio de participação dos cidadãos na
elaboração e execução dos planos de ordenamento, não apenas através
370 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

dos órgãos competentes da Administração central, regional e local, mas


também de outras pessoas colectivas de direito público e de pessoas e
entidades privadas;
- Suprimir a alínea c) do artº. 3º por falta de clareza;
- Suprimir as alíneas d), e) e f) do artº. 3º relativos à fundamentação
dos actos administrativos relativos as actuações urbanísticas por regularem
matéria do âmbito da lei geral;
- Suprimir a alínea g) do artº. 3º pela sua desnecessidade. Na
verdade, apenas reafirma o dever de cumprimento das leis relativas ao
exercício de faculdades urbanísticas. Ora, toda a lei uma vez aprovada
já contém em si o dever da sua observância. Não necessita ela própria de
afirmar que deve ser cumprida. Aliás, o acto de promulgação e de entrada
em vigor da lei têm inerente a obrigação do cumprimento da mesma;
- Erigir em princípio a função social da propriedade contida na
alínea h) do artº 3º;
- As garantias de igualdade, a participação das comunidades
nas mais valias fundiárias, a colaboração entre as entidades públicas e
privadas, a viabilização das iniciativas particulares devem ser mantidas;
- Converter em princípio a regra segundo a qual a organização
espacial do território deve promover um desenvolvimento equilibrado das
regiões e dos núcleos de povoamento, para que cada parcela do território
nacional tire o melhor partido da respectiva vocação, potencialidades e
recursos (artº. 4º a));
- Manter os demais objectivos previstos no artº. 4º no que respeita à
protecção dos recursos naturais, designadamente do solo, ar, água, flora e
fauna, por forma a garantir o equilíbrio dos ecossistemas, a permanência
dos biótipos e a salvaguardar as bacias hidrográficas, as faixas costeiras
e os solos com aptidão agrícola ou florestal; à protecção do património
arqueológico, arquitectónico, urbanístico e paisagístico, por forma a
salvaguardar a identidade dos núcleos de povoamento e a valorizar a
paisagem; ao ordenamento da ocupação, uso e transformação do solo, por
forma a que o parcelamento da propriedade, as obras de construção, a
instalação das actividades e a utilização dos edifícios satisfaça as exigências
da comunidade; a extensão e o funcionamento das infra-estruturas
e equipamentos, por forma a melhorar o acesso aos serviços básicos
prestados às actividades produtivas e às populações; a disponibilização
de terrenos para a instalação de indústrias e serviços, para a criação de
paços públicos e para a edificação de casas, de habitação, por forma a
satisfazer as necessidades sociais e individuais;
- Suprimir ou evitar conceitos e definições. A doutrina jurídica
tem ainda hoje por verdadeira a regra segunda a qual toda a definição
e outros escritos jurídicos 371

é perigosa (omne definitio periculosa est). Não se desconhece que é prática


na legislação urbanística incluir uma lista de conceitos, mas essas listas
apresentam, normalmente, três ordens de defeitos: contêm conceitos
errados ou duvidosos; brigam com conceitos equivalentes adoptados
noutra legislação e não se antolha qual o critério que determina a escolha
das categorias a definir. Ou seja, essa escolha é normalmente arbitrária.
Em alguns casos a selecção das categorias a definir tem por objectivo
fixar um sentido de interpretação: para efeitos dessa lei a categoria deve
ser entendida com aquele conteúdo preciso. Neste caso, o que pretende
o legislador é impor um certo critério hermenêutico: o intérprete está
vinculado a dar ao conceito o conteúdo que lhe emprestou o legislador,
com exclusão de qualquer outro. Assim, as noções de coisa (artº. 202º do
CC); condição (artº. 270º CC); presunções (artº. 349º do CC) confissão (artº.
352º do CC) e outras vinculam o intérprete a atribuir a tais termos, em
toda e qualquer disposição onde forem mencionados no Código Civil,
o conteúdo que lhes empresta as referidas disposições. Parece ser uma
virtude, mas não é. Na verdade, várias leis podem concorrer para regular
determinada matéria. Se para as diversas leis o conteúdo atribuído àquela
categoria for diversa, a solução torna-se conflituante. Assim, a Lei das
Bases do Ambiente, aprovado pela Lei nº. 86/IV/93, de 26 de Junho define
o ordenamento do território como “o processo integrado da organização
do espaço biofísico, tendo como objectivo o uso e a transformação do território,
de acordo com as suas capacidades e vocações, e a permanência dos valores de
equilíbrio biológico e de estabilidade geológica, numa perspectiva de aumento da
sua capacidade de suporte da vida” – artº 5º/2/b). Ora, do ponto de vista da
Lei das Bases do Ordenamento do Território e do Planeamento Urbanístico
o ordenamento do território define-se também pelos seus objectivos que
não são, todavia, aqueles previstos na Lei do Ambiente. Nos termos dessa
Lei “o ordenamento do território é a resultante espacial de um conjunto de acções
políticas, técnicas e administrativas, entre si coordenadas e compartilhadas por
forma a promover um desenvolvimento equilibrado das regiões e dos núcleos de
povoamento, a protecção do meio ambiente e a melhoria de qualidade de vida dos
cidadãos” (artº. 5º/1)594. Enquanto que a Lei do Ambiente põe a tónica na
capacidade e vocação do território, a Lei das Bases do ordenamento do
Território privilegia o desenvolvimento equilibrado. Digamos que a Lei
do Ambiente parte do território para definir o que seja o Ordenamento

594 Confronte-se com esta noção dada por João Pereira SILVA: “O ordenamento do terri-
tório consiste na procura de uma melhor distribuição da população e das actividades
económicas no território nacional de acordo com os recursos conhecidos e potenciais,
por forma a aumentar a riqueza nacional e o bem estar das populações” – in O ordena-
mento do território e a infra-estruturação, estudo inédito.
372 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

do território, ao passo que a Lei das Bases do Ordenamento do Território


parte de actuações sobre o território para definir o mesmo conceito. Um
atende ao objecto; o outro às acções sobre o objecto. Não são conceitos
excludentes entre si, mas não se sobrepõem na totalidade. Aliás, o facto de
a definição adoptada pela LBOTPU ter tido a preocupação de incluir uma
referência ao ambiente mostra isso mesmo. Também o facto de a definição
adoptada pela Lei do Ambiente se referir a um “processo integrado de
organização do espaço biofísico” mostra que não descura as acções sobre
o objecto;
- Em virtude destes e doutros problemas, entendemos, com a
doutrina dominante, que não é papel do legislador ocupar-se de definições.
MOTA PINTO admite mesmo que, se o legislador considerar que uma
dada questão tem uma determinada natureza, o intérprete pode concluir
outra coisa em face da regulamentação dada à questão ou ao instituto
em que ela se coloca595. No mesmo sentido se pronuncia MENEZES
CORDEIRO, considerando que os conceitos jurídicos adoptados pelo
legislador não vinculam cientificamente596;
- Por isso, propomos a solução radical de suprimir todos os conceitos
e definições contidos na LBOTPU, maxime os referidos no artº. 5º;
- Propomos igualmente a supressão do artº. 6º, pois, toda a norma
urbanística já contém em si o dever da sua observância. Escusado é, pois,
repeti-lo;
- Os regulamentos do urbanismo – REGULAMENTO NACIONAL
DO URBANISMO ou REGULAMENTO NACIONAL DO ORDENA-
MENTO DO TERRITÓRIO E DO PLANEAMENTO URBANÍSTICO – deve
ser mantido nos seus dois níveis: governamental e municipal (artº. 7º);
- As chamadas directivas de ordenamento são verdadeiras injunções
que vinculam tanto as entidades públicas, como as entidades privadas.
Em direito directiva tem o sentido de orientação; norma orientadora
que poderá ser observada ou não na sua totalidade. Ora, não é isto que
resulta das chamadas Directivas de Ordenamento que estabelecem regras
vinculativas sobre a utilização de áreas com aptidão agrícola e florestal;
sobre as faixas costeiras e as margens dos cursos de água; a localização das
edificações em atenção aos riscos naturais; a necessidade de salvaguardar

595 Direitos Reais, Lições coligidas po Álvaro MOREIRA e Carlos FRAGA, Coimbra, Al-
medina, 1971, pp. 155-156.
596 In Da usucapião de imóveis em Macau, RJM, nº. especial sobre A questão das terras
em Macau, (1997), pp. 411, reportando-se às achegas de que o conceito de usucapião
tem sido objecto a nível doutrinário. Este mesmo ponto de vista está presente no pen-
samento do autor em Direitos Reais (reprint), Lex, Lisboa, 1979, pp. 465-466.
e outros escritos jurídicos 373

áreas naturais, agrícolas ou florestais entre os povoamentos e outras sobre


o ordenamento urbano. O modo como se encontram apresentadas na
LBOTPU as chamadas directivas de ordenamento são na verdade bases
do ordenamento do território e do planeamento urbanístico. Propõe-se a
alteração da lei em conformidade;
- Não é claro o conceito de normas de ordenamento de aplicação directa.
Parece admitir a existência de normas de ordenamento de aplicação
indirecta. A LBOTPU considera normas de ordenamento de aplicação
directa as normas sobre
a) À intensidade máxima da ocupação do solo;
b) À altura máxima e ao afastamento mínimo entre edifícios;
c) Às áreas mínimas destinadas a espaços públicos;
d) infra-estruturas urbanísticas e equipamento colectivos.
O conceito de normas de aplicação directa aparece em direito
fundamentalmente com dois significados: ao nível do Direito processual
com sentido de normas de aplicação imediata e ao nível do Direito
Internacional Privado com o sentido e normas de aplicação necessária. Como
normas de aplicação imediata não seguem o regime normal de aplicação
da lei no tempo: a lei nova adjectiva aplica-se imediatamente, com
prejuízo da lei antiga ainda que aos processos entrados em juízo antes
da sua vigência. Como norma de aplicação necessária dispensa a mediação
da regra de conflitos e concorre com a lei mandada aplicar por esta para
regular uma situação com elementos de estraneidade.
As normas referidas na LBOTPU não apresentam nenhuma
destas naturezas, daí a dúvida sobre as razões da sua qualificação como
normas de aplicação directa. A investigação posterior determinará a sua
conservação ou não.
- Mantém-se a tipologia dos planos que passam a integrar o Sistema
Integral de Gestão do Território em
a) Esquema Nacional de Ordenamento do Território;
b) Esquema Regional de Ordenamento do Território;
c) Plano Especial de Ordenamento do Território;
d) Plano director municipal;
e) Plano de Desenvolvimento Urbano;
f) Plano Detalhado.
E a sua distinção em Planos de Ordenamento e Planos urbanísticos,
a sua vocação nacional, regional e municipal e, bem assim, a respectiva
hierarquia.
- Deve ser mantido o princípio de que a aprovação de plano de
ordenamento de grau hierárquico inferior pode preceder a aprovação
de plano de grau superior e que os planos de ordenamento de grau
374 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

hierárquico superior devem ter em conta o ordenamento territorial e


urbano adoptado nos planos de grau inferior, sem prejuízo de dever ser
mantida a hierarquia e ela dever ser respeitada;
- Entendeu-se que o conteúdo material e documental dos diversos
planos não deve ser objecto de uma Lei das Bases, mas sim do Regulamento
Nacional do Ordenamento do Território e do Planeamento Urbanístico. A
fixação desse conteúdo na Lei das Bases representa forte limitação por não
permitir a adaptação às especificidades locais;
- Deve ser mantido um limite temporal de vigência dos planos -
discutir-se-á o regime actual 12/24 anos - sem prejuízo de os regulamentos
particulares poderem fixar prazo menor;
- O regime dos planos especiais de ordenamento do Território deve
ser completamente reformulado por forma a integrar os Planos relativos
às Zonas de Desenvolvimento Turístico Especiais, às áreas protegidas
e à orla marítima no conjunto dos demais planos e a harmonizar a sua
elaboração, aprovação prévia e definitiva com a competência para a
elaboração dos demais Planos;
- Neste particular, atender ao disposto na Lei nº 49/VI/2004, de
23 de Agosto que autoriza o Governo a legislar sobre o planeamento
físico, a gestão e administração das zonas turísticas especiais (Zonas
de Desenvolvimento turístico Integral e Zonas de Reserva e Protecção
Turística);
- Conservar o actual regime das medidas preventivas destinadas
a evitar a modificação das circunstâncias e condições existentes por
actuações que possam comprometer a futura execução do plano ou torná-
la mais difícil ou onerosa;
- Alargar o âmbito de participação dos particulares na elaboração
dos planos por forma a gerar uma atitude de co-responsabilização no seu
cumprimento, nomeadamente, no que respeita ao seu papel de prevenção
de construções ilegais;
- No que respeita aos efeitos dos planos reafirmar e reforçar o seu
carácter vinculativo. Um plano é um elemento de fé pública. Todos estão
vinculados ao seu cumprimento. Mesmo os esboços com base nos quais um
particular tomou a decisão de contratar com a garantia de que não seriam
alterados devem vincular, desta feita não como norma geral, mas como
cláusula particular, gerando responsabilidade daquele que incumprir.
- A regulação do direito de preferência não deve prejudicar as leis
do mercado, mas também não deve promover a especulação imobiliária.
Ao nível do plano deve ser concedido nos termos em que contribua para
viabilizar a sua melhor execução;
e outros escritos jurídicos 375

- Nenhum plano pode legitimar só por si (artº. 33º da LBOTPU) a


expropriação por utilidade pública. Legitima, sim, medidas preventivas,
mas nunca a expropriação, mormente a posse administrativa dos terrenos
por ele abrangidos. A norma do referido artº. 33º é inconstitucional,
por violação do disposto no artº. 68º da CR que reconhece o direito à
propriedade privada. Isso não quer dizer que em virtude de um plano
não sejam justificadas expropriações por utilidade pública. Mas estas
devem obedecer ao regime normal;
- A suspensão dos planos só pode fundar-se em interesses nacionais
ou regionais. Deve ser salvaguardada a autonomia municipal nesta
matéria;
- O regime urbanístico do solo passa a constar de uma Lei dos Solos,
salvo no que for estreitamente ligada ou determinada por intervenções
urbanísticas;
- O regime dos encargos urbanísticos deve ser mantido e
desenvolvido em sede dos regulamentos, no que respeita à cedência da
edificabilidade, cumprimento dos prazos de construção, cedência de áreas
dotacionais, participação nos custos de urbanização;
- O regime das edificações em desconformidade com o plano deve
ser revisto em atenção ao que já se mostra previsto na Lei de Expropriação
por utilidade pública (projecto);
- O regime do programa municipal de actuação urbanística antecede
cronologicamente os planos urbanísticos;
- O loteamento constitui um elemento importante das actuações
urbanísticas. A actual Lei apenas regula as actuações de parcelamento.
- Deve ser garantido o direito de reversão das áreas dotacionais;
- O regime de concessão do domínio público não pode ser objecto
da LBOTPU. Remete-se a sua regulação para a Lei dos Solos;
- O licenciamento de actuações urbanísticas deve ser harmonizado
com o Regulamento Geral de Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto
130/88, de 31 de Dezembro;
- O mesmo se passa com todo o processo de licenciamento
consubstanciado na LBOTPU. Não constitui matéria objecto desta lei;
- O regime das infracções urbanísticas deve ser totalmente revisto;
- O regime de deferimento tácito, do indeferimento tácito, deve
harmonizar-se com a lei geral por forma a evitar vários regimes vigentes
sobre a mesma matéria ou sobre o mesmo acto administrativo;
- A norma do artigo 110º não tem razão de ser. Os pareceres só
poderão ser vinculativos se apropriados por acto administrativo para a
respectiva fundamentação;
376 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

- O dever de fundamentação dos actos administrativos constitui


matéria do âmbito da Lei geral. O mesmo se diga do regime de invalidade
dos actos administrativos, do recurso hierárquico, da nulidade dos actos
jurídicos;
- Deve ser mantido um serviço de Registo Central de Ordenamento
do Território com as atribuições constantes da LBOTPU em matéria do
ordenamento e planeamento;
- Manter um sistema de publicidade, registo e depósito obrigató-
rios.
e outros escritos jurídicos 377

IV
JURISPRUDÊNCIA COMENTADA
378 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO
e outros escritos jurídicos 379

1. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA DAS


COMUNIDADES DE 18 DE OUTUBRO DE 2001 597

Sumário:

Trabalhador do Banco Central Europeu. Uso


indevido de correio electrónico. Direito à reserva
da vida privada. Despedimento.

ANOTAÇÃO

I - A discussão em torno da problemática da utilização da Internet


nos locais de trabalho entrou na ordem do dia. Já é notável um certo frenesi
da doutrina jurídico-laboral na busca de respostas para um problema
novo.
O momento não podia ser mais adequado, agora que se assiste a
um visível interesse pelos estudos relativos às relações entre o direito do
trabalho e os direitos fundamentais, por um lado, e o direito do trabalho
e os direitos da personalidade, por outro598. Na verdade, as principais
questões que se suscitam em torno da utilização das novas tecnologias
no âmbito das relações de trabalho prendem-se fundamentalmente com a
sua interferência com os direitos da personalidade.
As mais recentes publicações espelham a continuidade deste
interesse pelos direitos da personalidade. Nos seus escritos em homenagem
ao Grande Professor Inocêncio GALVÃO TELLES, António MENEZES
CORDEIRO inventariou o material necessário para o estudo da dogmática
de Os direitos de personalidade na civilística portuguesa599 e num estudo mais
específico, igualmente dedicado a um outro Grande Nome das ciências

597 O texto do acórdão poderá ser recolhido em http://europa.eu.int/jurisp. Dada a sua


extensão não se publica neste lugar. Anotação escrita em 2002.
598 Sobre a distinção entre estas categorias de direitos, cf. Castro MENDES In Estudos
sobre a Constituição (direitos, liberdades e garantias – alguns aspectos gerais), vol. I, pp. 117.
A distinção é retomada pelo autor in Teoria Geral do Direito Civil, I, Lisboa, 1995, pp. 458
e ainda por Radindranath V. A. CAPELO DE SOUSA, in O Direito Geral de Personalida-
de, Coimbra, 1995, pp. 403, nota 999 e A. MENEZES CORDEIRO, In Tratado de Direito
Civil, I Parte Geral, Tomo I, 1999, pp. 158.
599 Cf. Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Almedina,
2002, pp. 21 e segs.
380 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

jurídicas portuguesas, Isabel Telles de Magalhães COLLAÇO, Maria do


Rosário PALMA RAMALHO discorreu sobre o Contrato de trabalho e direitos
fundamentais da pessoa, estudo este que, no momento em que escrevemos,
não tivemos ainda a oportunidade de ler600. Os estudos publicados no
âmbito do Instituto do Direito do Trabalho dão igualmente conta do
interesse que a doutrina laborista portuguesa tem dado aos problemas
de interferência entre o direito do trabalho, os direitos fundamentais e os
direitos da personalidade601.
Do nosso ponto de vista, este interesse assinala o reencontro do
Direito do Trabalho com as suas verdadeiras raízes. Não se pode, pois,
falar em crise, mas sim do reforço e cristalização do núcleo material que
possibilitou a especialização deste ramo do Direito. Na verdade, foi a
descompressão dos direitos da personalidade e a consequente contenção do
âmbito material do Direito das Obrigações que viabilizou o aparecimento
do Direito do Trabalho. Atreveríamos até a afirmar ter-se tratado de um
fenómeno universal que se verificou em sociedades fundadas em modelos
de obtenção de mão-de-obra perfeitamente díspares, como seja o modelo
europeu, fundado no trabalho essencialmente livre, e o modelo africano
que se baseou no trabalho escravo602.

600 Lamentavelmente os Estudos em Homenagem à Professora Magalhães COLLAÇO


não se encontram ainda disponíveis na Biblioteca da Faculdade de Direito de Lisboa,
apesar de já se encontrarem à venda.
601 Cf. Guilherme Machado DRAY, Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, vol. I - Justa
Causa de Despedimento (Justa causa e esfera privada) Coimbra, Almedina, 2001, pp. 35 e
segs.
602 Infelizmente a doutrina juslaborista portuguesa não dedicou uma grande atenção ao
nascimento e evolução dos regimes jurídico-laborais nas antigas províncias Ultrama-
rinas de Portugal. No estudo da evolução do Direito do Trabalho em Portugal, tudo
se passa como se esta evolução se tivesse desenvolvido à margem das antigas posses-
sões ultramarinas e estas nunca tivessem feito parte do território português As obras
recentes espelham esta omissão. Assim, embora se ocupem da evolução do Direito do
Trabalho, em Portugal, não fazem qualquer referência ao papel desempenhado nessa
evolução pelas antigas províncias ultramarinas portuguesas, os estudos de Pedro Ro-
mano MARTINEZ, Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2002; António Lemos Mon-
teiro FERNANDES, Direito do Trabalho, 11ª Edição, Almedina, Dezembro 1999; Ber-
nardo da Gama LOBO XAVIER, Curso de Direito do Trabalho, 2ª edição, VERBO, 1996;
António Menezes CORDEIRO, Manual de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 1994,
entre outros. Todavia, a evolução histórica do direito laboral conheceu, nas antigas
províncias ultramarinas portuguesas, especificidades que devem merecer a atenção
do investigador. Mercê do modelo social e económico em vigor nas antigas Provín-
cias Ultramarinas portuguesas a que se aliava a relativa autonomia legislativa então
reconhecida às colónias, o Direito do Trabalho sofreu nestas paragens uma evolução
própria, caracterizada por um pano de fundo comum à generalidade das províncias
ultramarinas portuguesas, ditado, certamente, pelas bases gerais ou regimes jurídicos
e outros escritos jurídicos 381

Este comentário não é lugar próprio para nos ocuparmos desta


demonstração. Atente-se, apenas, que o bem jurídico afectado pela
escravidão é a liberdade pessoal, liberdade de reger a própria pessoa;
liberdade de trabalhar ou de não trabalhar, que o Código Civil de 1867
tipificava no seu artigo 356º como um direito originário603. A escravatura
configura-se como a supressão deste direito de liberdade, cuja recuperação
justificou a adopção de um conjunto de normas de vigilância e protecção
da pessoa com elevado nível garantístico, caracterizado, por exemplo, no
estabelecimento de um regime de Tutela Pública a que ficaram submetidos
os libertos ou na instituição de um Curador dos Serviçais que participava na
própria elaboração do contrato de trabalho, fiscalizando o conteúdo das
suas cláusulas.
Apesar das diferenças manifestas no que respeita ao ponto de
partida e sentido da evolução, pois, enquanto na Europa as normas
laborais nascem de condições ligadas à protecção da saúde e integridade
física dos trabalhadores, na África colonial essas normas nascem,
fundamentalmente, de preocupações ligadas à protecção da liberdade de
contratar, curioso é observar que em ambos os casos se visa prosseguir um
fim comum: a protecção dos direitos da personalidade no âmbito das relações
laborais: o direito à saúde e integridade física, num lado, e o direito de liberdade,
noutro. Este fim comum possibilitou posteriormente a convergência dos
dois modelos, sempre apoiados na ideia de vigilância dos direitos da
personalidade.

II – Não se pense, todavia, que este recorte operado pelos direitos


da personalidade no âmbito do Direito das Obrigações aponta sempre e
necessariamente para a adopção de medidas legislativas de protecção a
ponto de o trabalhador ser, em alguns casos, tratado como se fosse um
incapaz ou um menor. Na verdade, estamos entre aqueles que acreditam
que o trabalho é um factor de dignificação do homem e, pelo trabalho, o
homem realiza a sua personalidade604. A própria ideia de subordinação
jurídica não briga com este ponto de vista, pois, a circunstância de

tornados extensivos às colónias, mas também por particularidades próprias de cada


província em termos que apresenta relevante interesse de investigação.
603 Cf. MENEZES CORDEIRO, Os Direitos da personalidade... cit. pp. 26.
604 Afirma LANGLOIS, a este propósito: “o efeito superior do trabalho é o seu efeito
imanente na própria pessoa que o realiza” e funda esta afirmação na frase incisiva de
S. Mateus: De que serve o homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder a sua alma?
(Mat. 16:26) – in Doutrina Social da Igreja, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 1990, pp. 57-
58.
382 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

alguém orientar ou ter simplesmente a faculdade legal ou contratual


de orientar a actividade de outra pessoa não envolve, necessariamente,
despersonalização. Se essa direcção ou orientação actuar de modo a
permitir a livre expressão da personalidade e essa direcção ou orientação
contribuir para a obtenção de melhores resultados nos planos pessoal e
profissional do trabalhador, a subordinação jurídica ergue-se até como
factor de dignificação da pessoa do trabalhador. Por esta razão, não nos
move igualmente nenhum receio no que respeita aos fenómenos recentes
chamados de flexibilização e de desregulamentação das relações laborais605, na
medida em que contribuam para diminuir algum excesso de garantismo
que tende a transformar o trabalhador num calaceiro, muitas vezes
bom cumpridor do horário de trabalho, mas pouco preocupado com o
resultado da sua actividade, ou seja, pouco interessado na sua valorização
pelo trabalho. O garantismo, nesta medida, este sim, pode erguer-se em
factor de despersonalização do trabalhador.

III – Isto não pretende significar, todavia, que se deva baixar a


guarda, pois, o perigo espreita a todo o momento. Ele é persistente e está
mesmo erigido em lei: a chamada lei da oferta e da procura. Enquanto
o salário representar o preço pago pela incorporação do trabalho na
produção de bens e enquanto esse salário estiver sujeito às leis da oferta
e da procura, o Estado tem que exercer uma permanente vigilância sobre
a pessoa do trabalhador, sob pena de, este, a pretexto de celebrar um
contrato de trabalho, submeter-se a um contrato de escravidão.
Os bens da personalidade susceptíveis de serem afectados pelas
relações de trabalho são: a dignidade da pessoa humana; a liberdade individual;
a reserva da vida privada e familiar606; a honra; a intimidade; o descanso607 e

605 Sobre estes dois fenómenos, cf. Maria do Rosário PALMA RAMALHO, in Da autono-
mia Dogmática do Direito do Trabalho, Almedina, 2000, pp. 581 e sgs.
606 Segundo KAYSER, “os questionários para efeitos de contratação não podem incluir
questões sobre a situação familiar do candidato a emprego, como seja a questão de sa-
ber se é solteiro ou casado, se vive em união livre ou se tem filhos” – La protection de la
vie prive – protection du secret de la vie prive, Presses Universitaires d’Aix-Marseille, Eco-
nómica, Paris, 1995, pp. 267. Nesta medida um tribunal francês considerou abusivo o
despedimento de um trabalhador pelo simples facto de ter anunciado ao empregador
o seu casamento. O tribunal considerou não existir nenhuma ligação entre o contrato
de trabalho e a situação familiar que o trabalhador pretendia constituir. Cf. Code du
Travail, Dalloz, 1999, edição CD-Rom, consulte vie privée. Isto não quer dizer que a
situação familiar do trabalhador não deva ser tomada em consideração para efeitos de
fixação das condições de execução do trabalho.
607 A ligação entre o direito ao trabalho e o direito ao descanso pode ser questionada. Para
a doutrina dominante trata-se de uma ligação necessária e até inquestionável. Para nós,
e outros escritos jurídicos 383

a saúde. Qualquer momento das vicissitudes das relações de emprego

todavia, esta ligação não é isenta de vícios e objecções. Temo-la até por controversa,
algo abusiva, e, como tal, sujeita a ser repensada senão mesmo rejeitada (a denúncia
desta ligação entre trabalho e lazer é antiga. Cfr. Encyclopedia of Marxism, vb working
day - http://www.marxists.org/glossary/index.htm). O pensamento jurídico da doutrina
representativa e retratado nas diversas legislações, no que respeita ao direito ao re-
pouso concebe este direito como uma decorrência do direito ao trabalho: o direito ao
repouso é um direito de quem trabalhou, de quem trabalha ou de quem vai trabalhar.
Manifestações desta ideia encontram-se já no texto constitucional: A CRP concebe o
descanso semanal, o repouso e o lazer como direitos do trabalhador. O direito ao des-
canso é regulado não no capítulo relativo aos direitos, liberdades e garantias individuais,
mas no capítulo relativo aos direitos, liberdades e garantias do trabalhador. Em nenhum
outro momento a Constituição se ocupa da regulação deste direito. Do mesmo modo,
o dia de cada pessoa é pensado pela Constituição da República como dia de trabalho.
Por isso, se estabelece que cada trabalhador tem direito a um limite máximo da jornada
de trabalho. O próprio direito a férias é igualmente regulado no quadro dos direitos,
liberdades e garantias dos trabalhadores.
Os instrumentos internacionais e a legislação ordinária afinam-se pelo mesmo diapa-
são. Várias Convenções e Recomendações da Organização Internacional do Trabalho
ocupam-se da duração do trabalho (cf. Convenção sobre a duração do trabalho na indús-
tria (1919); no comércio e serviços (1930); nas minas de carvão (1935); nos transportes
por estrada (1939); nos trabalhos públicos (1936); na indústria têxtil (1937); vidreiros
(1935), do repouso (cfr. Convenção da OIT sobre o repouso na indústria (1921); nos
estabelecimentos comerciais (1921); e das férias (cf. Convenção da OIT sobre as férias
pagas (1936);, estabelecendo uma relação de causa-efeito entre estes direitos e o direito
ao trabalho. O mesmo se passa na legislação ordinária, quer da função pública, quer
laboral.
Há uma ideia de centralidade do trabalho que parece dar razão aos filósofos marxistas-
leninistas nas suas críticas sobre o carácter alienante do trabalho. Na verdade, tudo
parece passar-se como se a pessoa estivesse unicamente fadada ao trabalho e não mais
do que ao trabalho. Cf., sobre este ponto, Encyclopedia of Marxist, vb. Alienation - http://
www.marxists.org/glossary/index.htm. Esta ideia de alienação é referida igualmente por
Leôncio BASBAUM que, a este propósito refere: “Quando o homem se vê forçado, des-
de o aparecimento da propriedade privada, a trabalhar para sobreviver ou seja, vender
sua força de trabalho, isso não significa que ele deva dedicar parte da sua vida – 8 ou
10 horas de trabalho – a outro. Na realidade lhe entrega quase tudo. Às 8 ou 10 horas de
trabalho que gasta no local em que exerce a sua actividade, é preciso juntar as horas que
consome desde o levantar até chegar a local e mais outras tantas, do local de trabalho
até a volta ao seu lar. Como suas noites devem ser bem dormidas, para que possa no
dia seguinte vende a sua força de trabalho, sua hora de dormir está condicionada ao
facto de que deve dormir cedo. Toda sua vida familiar (da alimentação ao sono) passa
a girar na realidade em torno dessas 8 a 10 horas que vende ao patrão, o que significa
praticamente as 24 horas do dia” – in Alienação e Humanismo..., cit. pp. 24. Cf. ainda a
Encíclica do Concílio Vaticano II Gaudium et Spes (1965), referindo-se à escravidão do
homem pelo trabalho e à necessidade de adaptar o processo produtivo às necessidades
da pessoa e à sua forma de vida. Nº. 67. Esta Encíclica foi objecto de um ciclo de con-
ferências consubstanciadas numa monografia, destinada a celebrar os 20 anos da sua
existência, com edição a cargo da Rei dos Livros – cf. Comissão Nacional Justiça e Paz,
in Gaudium et Spes – uma leitura pluridisciplinar vinte anos depois, coordenação de Mário
PINTO, António Leite GARCIA e João SEABRA, Lisboa, 1988.
384 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

reclama a vigilância dos direitos da personalidade.

Razões históricas permitiram esta postura assistemática na conformação jurídica do


direito ao descanso. Na verdade, o direito ao repouso esteve na própria origem do Di-
reito do Trabalho (ver, no mesmo sentido, Arnaldo SÜSSEKIND, in Direito Constitucio-
nal do Trabalho, 2ª edição, actualizada e ampliada, RENOVAR, Rio de Janeiro/S.Paulo,
2001, pp. 215 e segs, de quem discordamos, todavia, na afirmação de que “a primeira
lei a limitar a jornada de trabalho foi a inglesa, de 1847”), pois, parece ser incontroverso
que a primeira lei a limitar a jornada de trabalho foi o Apprentices Act de 1802 (cf. J. T.
WA. In Encyclopaedia Britannica (Labour Law), vol 13, pp. 545). Tratou-se de uma lei,
adoptada por iniciativa de Sir Robert Peel e que visou moralizar o trabalho dos jovens,
reduzindo o seu tempo de trabalho para 12 horas diárias.
Outras medidas do género centraram-se igualmente em torno do direito ao descanso,
como seja a Lei de 29 de Agosto de 1833 que retomou o trabalho dos jovens, primei-
ro, proibindo-o para aqueles que não tinham completado 9 anos de idade, segundo,
limitando a sua jornada de trabalho para nove horas diárias e a chamada Lei das Fá-
bricas que restringiu o trabalho das mulheres a 12 horas diárias e reduziu ainda mais
o tempo de trabalho dos menores, de 9 horas diárias para 6 horas e meia (Sobre esta
evolução, cfr. J. T. WA. In Encyclopaedia Britannica (Labour Law), vol 13, pp. 545 e segs.
Sobre a aprendizagem, cfr. F.T. MA. Encyclopaedia Britannica (apprenticeship), vol. 2, pp.
144 e segs).
A disciplina do direito ao descanso esteve, pois, entre as leis que deram os primeiros
passos na autonomização do Direito do Trabalho. Daí o desfoque sistemático a que nos
referimos.
Também na África colonial portuguesa, os primeiros diplomas que disciplinaram o
trabalho, a seguir à abolição da escravatura, fixaram o horário de trabalho em nove
horas e meia por dia e isentaram o colono ou serviçal do trabalho em dias santificados
(Cf. artº. 42º do Regulamento para os Contratos de Serviçais e Colonos nas Províncias da
África Portuguesa, de 21 de Novembro de 1878). Em tudo o mais o direito ao descanso
constituía uma graça do patrão. Este era livre de permitir ou não o descanso dos seus
serviçais. Mesmo nos dias santificados o colono e o serviçal não estavam completa-
mente isentos da “obrigação de serviço para tratamento necessário de gados e dos
serviços da vida habitual” (cf. artº. 42º § 2º do Regulamento para os Contratos de Serviçais
e Colonos nas Províncias da África Portuguesa, de 21 de Novembro de 1878)., pelo que na
prática o reconhecimento de um direito ao descanso ficava no livre arbítrio do patrão.
Só em 1903, pelo Decreto de 3 de Agosto, a matéria foi disciplinada tendo o Decreto
de 17 de Dezembro de 1910 autorizado os Governos Coloniais a regularem o descanso
semanal.
Todavia, o descanso, o lazer, o repouso, mais do que direitos do trabalhador, são direi-
tos da pessoa humana. A Declaração Universal dos Direitos do Homem , adoptada a 10
de Dezembro de 1948, tem sobre esta matéria a formulação mais feliz. Estabelece, com
efeito, no seu artº. 24º que “toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres e, especialmente,
a uma limitação razoável da duração do trabalho e a férias periódicas pagas”, concebendo,
claramente, o repouso e o lazer como direitos da pessoa humana, independentemente
do estabelecimento de uma relação laboral. A norma pode, aliás, ser dividida em duas
partes que se explicam por razões pedagógicas: uma que se reporta ao repouso e ao
lazer como direitos da pessoa humana; outra que vincula o reconhecimento desses
direitos, no domínio laboral. Esta segunda parte da norma do artº. 24º da DUDH visa
garantir que este direito da pessoa humana represente um limite inexcedível dos direi-
tos do trabalhador, vinculando o próprio e a todos com quem ele contratarem. E sendo
a DUDH a bitola pela qual se interpretam e integram as normas constitucionais e legais
e outros escritos jurídicos 385

A necessidade da respectiva protecção pode colocar-se já no


momento da contratação ao nível dos métodos de selecção608 (entrevistas;

relativas aos direitos fundamentais, esta opção do Texto Fundamental obriga a aperfei-
çoamentos no interior da própria constituição e no âmbito da legislação ordinária.
Para uma análise próxima daquela que acabámos de desenvolver, cf. Pierre KAYSER,
in La protection de la vie privée par le droit... cit. pp.. 265, considerando que « o assalariado
é antes de mais um homem e tem o direito, a este título, a uma vida privada e a uma
vida pública independentes da sua vida profissional. Deve haver uma separação, um
fechamento entre a vida profissional do assalariado e a sua vida privada e pública”.
Admite, todavia, que esta separação não pode ser completa e este fechamento não
pode ser estanque, pois, o assalariado é também a este respeito um homem e um ho-
mem indivisível.
608 O Code du Travail francês tem uma disposição clara a este respeito: “as informações
solicitadas sob qualquer forma que seja a um candidato a um emprego ou a um assa-
lariado não podem ter como finalidade senão apreciar a sua capacidade de ocupar o
emprego proposto ou as suas aptidões profissionais. Estas informações devem apre-
sentar uma ligação directa e necessária com o emprego proposto ou com a avaliação
das aptidões profissionais” – Artº. L.120-2 e L. 121-6. Em França, discutiu-se a este
respeito se a omissão por um trabalhador, no momento da sua contratação, da sua con-
dição de padre podia constituir motivo de despedimento. O tribunal pronunciou-se
em sentido negativo, considerando que, tratando-se de um aspecto da vida privada do
trabalhador, não tinha nenhum dever de o revelar ao empregador. Revogou, portanto,
a decisão. Os tribunais franceses revogaram igualmente a decisão de um empregador
de despedir um trabalhador que no momento da contratação omitiu o facto de ter sido
objecto de uma condenação penal: o assalariado não tem a obrigação de dar conhe-
cimento ao empregador dos seus antecedentes criminais e o despedimento baseado
neste facto está ferido de ilicitude. Sobre os casos relatados, cfr. Code du Travail, 1999,
edição CD-Rom, consulte vie privée. Cf. ainda Pierre KAYSER, in La protection de la vie
privée par le droit..., pp. 265-266 com o relato de outras situações.
Neste particular, cobram real interesse três situações de particular gravidade: a situa-
ção dos toxicodependentes; dos seropositivos e o conhecimento que resulta do projecto
genoma humano. As questões que se colocam em torno destes casos são as seguintes:
a) pode uma empresa questionar um candidato a emprego sobre o uso de substâncias
psicotrópicas ou a sua seropisitividade? b) pode uma empresa realizar testes genéticos
com vista a averiguar se o candidato a emprego poderá vir a sofrer posteriormente de
alguma doença que o incapacite de prestar cabalmente as suas funções ou envolver a
empresa em responsabilidade?
No que respeita à seropositividade e à toxicodependência a doutrina francesa distingue
dois momentos fundamentais: o momento da contratação e o momento da execução do
contrato. No momento da contratação não pode o empregador questionar o candidato
a emprego sobre a sua eventual toxicomania ou seropositividade. Isso violaria o seu
direito à intimidade e à reserva da vida privada. Diferentemente, durante a execução
do contrato pode o empregador submeter a generalidade dos trabalhadores a exames
médicos para avaliar da sua robustez física para o exercício do cargo, devendo o mé-
dico opinar unicamente se o trabalhador se encontra apto ou inapto para o exercício
do cargo. Cf. Pierre KAYSER, La protection..., pp. 266-267. Sobre a questão de saber se
os indivíduos portadores de HIV podem obter atestado de robustez física para efeitos
de ingresso na função pública, ver. Parecer da PGR (Portugal) nº. 25/95, de 25 de Maio
que opinou, bem a nosso ver, em sentido afirmativo, considerando que “releva da
386 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

exames médicos; testes psicológicos) e ao nível dos requisitos exigidos


(v. gr. pertença a um determinado grupo étnico)609, mas é no decurso da
execução das relações de emprego que mais se suscita a necessidade de
protecção dos bens da personalidade.
Antigamente um trabalhador não podia deslocar-se do seu domicílio
sem comunicar o facto à entidade patronal610. Esta norma tinha maior peso
específico no direito da função pública onde o funcionário público estava
mesmo impedido de contrair casamento sem autorização superior611,

apreciação médica, através do respectivo atestado, avaliar se os indivíduos portadores


do VIH dispõem ou não de robustez físico-psíquica necessária ao exercício das funções
a que se candidatam”- DR de 24-4-1997. O recurso aos testes genéticos oferece a maior
complexidade. A este tema dedicou João Nuno Zenha MARTINS, a monografia O
Genoma Humano e a contratação laboral, Celta Editora, Oeiras, 2002. Não obstante a sua
complexidade, na linha das ideias que temos vindo a desenvolver, somos da opinião
seguinte: o direito ao trabalho e o direito à vida encontram-se intrínseca e irremedia-
velmente ligados. A vida tem que ser vivida de acordo com a dimensão individual de
cada um. A vida não pode ser adiada e muito menos o seu fim antecipado. Permitir a
realização de testes para efeitos de contratação, com o objectivo de prevenir doenças
genéticas, com a consequência brutal de a pessoa não poder ser contratada caso se con-
firme que, num futuro, próximo ou longínquo virá a sofrer de alguma doença, equivale
a adiar a realização da vida ou a antecipar o seu fim. É aceitar o transpersonalismo.
Uma norma que dispusesse em sentido contrário seria, a nosso ver, manifestamente
inconstitucional, dado que retiraria sentido ao direito ao trabalho, como direito a ga-
nhar a vida. Recorde-se os termos como este direito é enunciado na Carta Social Euro-
peia, adoptada em Turim a 18 de Outubro de 1961 “toda a pessoa terá a oportunidade
de ganhar a vida mediante um trabalho livremente escolhido” – Parte I. Entendemos,
pois, que os resultados do projecto genoma humano só poderão servir para melhorar o
exercício da vida e para fortalecer a sua dignidade. Ideias em sentido contrário devem
merecer a maior vigilância da parte do Estado.
609 A Lei portuguesa n.º 134/99, de 28 de Agosto que proíbe as discriminações no exercício de
direitos por motivos baseados na raça, cor, nacionalidade ou origem étnica, considera prática
discriminatória a adopção de procedimento, medida ou critério, directamente pela en-
tidade empregadora ou através de instruções dadas aos seus trabalhadores ou a agên-
cia de emprego, que subordine a factores de natureza racial a oferta de emprego, a ces-
sação de contrato de trabalho ou a recusa de contratação e bem assim a produção ou
difusão de anúncios de ofertas de emprego, ou outras formas de publicidade ligada à
pré-selecção ou ao recrutamento, que contenham, directa ou indirectamente, qualquer
especificação ou preferência baseada em factores de discriminação racial e a adopção
por entidade empregadora de prática que no âmbito da relação laboral discrimine um
trabalhador ao seu serviço. Esta mesma lei proíbe despedir, aplicar sanções ou preju-
dicar por qualquer outro meio o trabalhador por motivo do exercício de direito ou de
acção judicial contra prática discriminatória.
610 Ver sobre este ponto, Marcelo CAETANO, Manual de Direito Administrativo, 9ª edição,
vol. II, pp. 750 e segs.
611 No antigo Ultramar português, esta matéria foi regulada pelo Decreto nº. 32 657, de
6 de Fevereiro de 1943, mais tarde alterado pelo Decreto nº 48286, de 22 de Março
e outros escritos jurídicos 387

tendo a doutrina jurídica justificado a necessidade de intromissão do


Estado na vida privada dos funcionários com base na ideia de “respeito
devido à corporação” que implicaria igual “dever de conduta digna na
vida privada”. Marcelo CAETANO entendia que um dirigente carecia
de se impor aos olhos dos seus subordinados não só como profissional
mas como cidadão, e graduava este dever de acordo com a categoria do
funcionário em causa612.

de 1968, diplomas que estabeleciam a obrigatoriedade de autorização prévia para


os casamentos dos funcionários dos quadros administrativos do Ultramar. Competia
ao governador da Província autorizar o casamento, mas, tratando-se de casamento a
celebrar com indivíduo de nacionalidade estrangeira, só o Ministro do Ultramar podia
conceder a autorização. A sanção para a celebração do matrimónio sem autorização
superior era extremamente gravosa: inactividade entre 181 dias a 18 meses; aposenta-
ção compulsiva; demissão (art. 354º do EFU ex vi art. 3º do Decreto nº. 48 286, de 22 de
Março).
612 In Manual...II, pp. 751. A jurisprudência portuguesa tem uma posição duvidosa sobre
este ponto. Um Ac. da Relação do Porto de 16 de Dez. de 1985 admitiu que “a definição
de justa causa (...) não envolve apenas os comportamentos do trabalhador praticados
no lugar e no tempo de trabalho e directamente relacionados com este, mas também os
meros actos da vida privada do trabalhador, desde que graves e culposos e que deter-
minem a imediata impossibilidade da relação laboral” – in Col. Jur. V, 212. Do mesmo
modo um Ac. do STJ de 31 de Outubro de 1986 considerou lícito o despedimento de
um trabalhador de uma companhia de seguros envolvido em tráfico de droga e puni-
do posteriormente com pena de prisão maior - Bol. do Min. da Just., 360, 468. Neste
caso seria discutível se a extinção do vínculo laboral deveria passar por um processo
disciplinar ou se não se trataria de mera caducidade por facto de príncipe. Neste mesmo
sentido posicionou-se um Ac. da Relação de Coimbra, de 21 de Janeiro de 1993, consi-
derando que “os factos da vida privada cometidos fora do local e tempo do trabalho,
pelos reflexos prejudiciais causados no serviço e no âmbito de trabalho são susceptí-
veis de constituir justa causa de despedimento” -Col. de Jur., 1993, 1, 85. A Relação
de Lisboa produziu, igualmente, um Acórdão sobre este ponto em termos que nos
suscitam muitas dúvidas: um comandante de aeronave entregou-se ao álcool durante
o período de repouso e provocou alguns desacatos num hotel onde se encontrava hos-
pedado. Considerando que o trabalhador não tinha observado o período de repouso
regulamentar e que tinha posto em causa a imagem da empresa concessionária do ser-
viço de transportes de passageiros, considerou lícito o despedimento do trabalhador
– Cf. Ac. da RL de 17 de Junho de 1993, Col. de Jur., 1993, 3, 187. Do nosso ponto de
vista, esta decisão sanciona uma intromissão abusiva do empregador na esfera privada
do trabalhador e revela algum desconhecimento sobre a chamada teoria do repouso
activo . Um trabalhador que se libertou das preocupações do trabalho, por algum mo-
mento, pode encontrar-se em melhores condições de desempenhar as suas funções no
dia seguinte do que aquele trabalhador que, cioso do cumprimento dos seus deveres,
por razões várias, incluindo o stress laboral, não conseguiu conciliar o sono, apesar de
se ter recolhido na hora ditada pelo patrão. Daí as nossas reservas relativamente a esta
decisão. Cf. ainda neste sentido Ac. do STJ, de 10 de Dezembro de 1997 in Acs. Dout.
do STA, 436, 524.
No domínio da função pública um Ac.. do STA de 17 de Dezembro de 1997 considerou
igualmente que as condutas da vida particular de um funcionário podem constituir
388 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Hoje esse grau de interferência tende a reduzir em nome da


dignidade da pessoa humana. Na reforma das relações de trabalho e de
toda a filosofia das sanções disciplinares, a tendência é no sentido
de uma maior humanização das relações de trabalho. Esbate-se a
dependência pessoal (persönliche Abhängigkeit) que tende a reconduzir-
se ao estritamente necessário para a conservação e desenvolvimento da
actividade empresarial. O trabalhador pode mesmo negociar – diz-se - o
grau de subordinação a que ficará vinculado face ao empregador613. Certas

infracção disciplinar quando possam afectar a dignidade e o prestígio da função e que


não obsta a esta conclusão o princípio da protecção constitucional da intimidade da
vida privada e familiar instituída no artigo 26º, nº 1, da C.R.P, dado que este precei-
to não pretende abranger certos comportamentos inseridos em situações especiais de
relação com os poderes públicos, vulgarmente designadas por «relações especiais de
poder». Tal seria o caso dos funcionários públicos, integrados numa dada hierarquia e
sobre os quais recaem particulares deveres de obediência, eficiência e disciplina, com
vista a assegurar os interesses e necessidades gerais da colectividade. (Acs. Dout. do
STA, 440-441, 1122).
Diferentemente, porém, se posicionaram outras decisões. Um Ac. do STJ de 14 de
Novº. de 1986, pronunciou-se no sentido de não constituir justa causa de despedimen-
to as ofensas corporais praticadas por uma trabalhadora sobre outra, em lugar bastante
afastado do local de trabalho, fora do tempo de serviço e sem qualquer reflexo na em-
presa em que ambas trabalhavam” - BMJ, 361, 403 – e um Ac. da Relação de Coimbra
julgou igualmente que não constitui justa causa de despedimento o facto de um em-
pregado bancário, para satisfação de despesas imperiosas, pedir dinheiro emprestado
a clientes do Banco onde trabalha, pois, estes “actos da vida privada do trabalhador,
estranhos à empresa, só podem justificar a justa causa de despedimento se afectarem
valores empresariais objectivos que ponham em causa a confiança necessária à relação
laboral ou afectem o prestígio exigido ao trabalhador nas relações com os clientes”.
Considerou o tribunal que tal comportamento não afecta valores empresariais, não
afecta a relação laboral nem o prestígio do funcionário perante os clientes, pelo que
não constitui justa causa de despedimento – Ac. RC de 1 de Junho de 1995, Col. de
Jur., 1995, 3, 85. Neste mesmo sentido se pronunciou igualmente um Ac. do STJ de
9 de Junho de 1999 que considerou que “A desobediência a uma ordem da entidade
patronal no sentido de proibir o uso de “drogas”, na medida em que condiciona a vida
privada do trabalhador e nela se intromete, limitando a sua liberdade individual e não
dizendo respeito directamente à execução e disciplina do trabalho, não justifica uma
sanção disciplinar” – Recolhido em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/
613 Cf. António Monteiro FERNANDES in Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 1999
pp. 135 e segs. Alguma doutrina refere hoje, como se se tratasse uma aquisição do nos-
so tempo, a circunstância de o trabalhador poder acordar com o empregador o grau de
subordinação jurídica a que fica vinculado pelo contrato. Em rigor este direito sempre
existiu, pois, ele é a essência própria das relações de trabalho. Pelo contrato de traba-
lho o trabalhador não ajusta apenas a prestação de uma actividade ao empregador.
Acorda igualmente – diríamos até, principalmente - o grau de dependência pessoal
a que fica vinculado pelo contrato. A fonte da subordinação jurídica não é a lei; é o
contrato livremente celebrado. Muitas variantes intervêm na determinação desse grau
de subordinação: a autonomia técnica; a dependência económica; as responsabilidades
e outros escritos jurídicos 389

autorizações foram suprimidas, nomeadamente, a já referida licença para


casar, assim como se suprimiu no direito da função pública a repreensão
verbal614 que, incompreensivelmente, foi mantida no âmbito das relações
de trabalho subordinado.615.
Porém, as legislações encontram-se ainda aquém do que seria
desejável nesta matéria, mercê de factores ligados ao desenvolvimento
tecnológico. Conservam-se preocupações ao nível da colecta e tratamento
de dados pessoais, da utilização de sistemas de vídeo-vigilância616, dos

do trabalhador, nomeadamente, as de ordem familiar. No limite, a lei baliza, impe-


rativamente, o poder de vontade do trabalhador para preservação dos seus direitos
de personalidade. Cf. A. MENEZES CORDEIRO quando estabelece a relação entre
a subordinação jurídica, enquanto traço distintivo decisivo do contrato de trabalho,
e a autonomia da vontade. Cf. o seu Manual de Direito do Trabalho..., cit. pp. 535-536.
Diferentemente parece posicionar-se A. L. MONTEIRO FERNANDES, Direito do Tra-
balho..., pp. 131 que, não obstante definir a subordinação jurídica como uma relação de
dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato
face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, “dentro dos limites do
contrato” parece considerar que a fonte da subordinação jurídica é a lei e não o con-
trato, pois, admite que “se trata de um elemento reconhecido e mesmo garantido pelo
direito” (ob. loc. cit.).
614 Cf. art.. 11º do Estatuto Disciplinar dos funcionários e Agentes da Administração
Central, Regional e Local, aprovado pelo DL nº. 24/84, de 16 de Janeiro.
615 O actual Anteprojecto do Código do Trabalho português não tem em vista modificar
esta solução. Cf. art 356º. Em Portugal, não existe, aliás, uniformidade de soluções
entre os diversos corpos legais, no que respeita a esta modalidade de sanção discipli-
nar. Mantém a pena de advertência, sem especificar se verbal ou escrita ou se verbal e
escrita, o Estatuto disciplinar dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei nº. 21/85, de 30
de Julho (art.. 85º); o Estatuto Disciplinar dos Funcionários de Justiça, aprovado pelo DL
nº. 276/87, de 11 de Dezembro (art.. 127º al. a)); o Estatuto Disciplinar dos solicitadores,
aprovado pelo DL nº. 483/76, de 19 de Junho (art.. 85º al. a)); o Estatuto disciplinar do
pessoal dos CTT, aprovado pela Portaria nº. 348/87, de 28 de Abril (art.. 6º).
616 A jurisprudência de alguns países já se defrontou com a problemática da utilização da
video-vigilância no âmbito das relações de trabalho. O Supremo Tribunal de Justiça de
Madrid ocupou-se da questão seguinte: uma empresa instalou um sistema de vigilância
de trabalhadores numa área reservada a descanso, através do qual teve conhecimento
de factos imputáveis a um trabalhador e pelos quais este foi despedido. O trabalhador
recorreu da decisão alegando violação do seu direito à intimidade pessoal, protegido pelo
artigo 18 da Constituição espanhola. Embora a empresa contestasse alegando que a
medida se inscrevia no seu direito reconhecido pelo art.. 20.3 do Estatuto dos Trabalha-
dores de “adoptar as medidas que considere mais oportunas de vigilância e controlo
para verificar o cumprimento pelos trabalhadores das suas obrigações contratuais”, na
sua sentença de 14 de Setembro de 2000, o tribunal desatendeu a argumentação da em-
presa, revogou o despedimento e mandou reintegrar o trabalhador, considerando ter
havido violação por parte da empresa do direito à intimidade pessoal do trabalhador.
A decisão afigura-se-nos acertada. Ela inscreve-se na filosofia assente em matéria de
protecção da intimidade e das relações deste direito com a prova ilícita. Nos termos
390 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

chamados telemóveis da terceira geração e do controlo pelo empregador do


correio electrónico do trabalhador.

IV- A sentença que nos propusemos comentar prende-se,


precisamente, com estes aspectos ligados à utilização das novas
tecnologias.
Vejamos o caso:
Um trabalhador do Banco Central Europeu, identificado na sentença
por X, entrou, em 1998, ao serviço do BCE com a categoria profissional
de documentalista. O seu posto de trabalho estava equipado com um
computador, ligado a um servidor central que lhe permitia fazer ligação à
Internet e enviar e receber correio electrónico.
Em Agosto de 1999, um outro trabalhador do BCE apresentou
junto da Comissão Executiva um protesto contra X, alegando que
este o assediava com o envio de mensagens electrónicas de conteúdo

do artigo 32º/8 da CRP “ são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa
da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na
correspondência ou nas telecomunicações”. A vídeo-vigilância utilizada para fins que não
se inscrevem nos objectivos da organização empresarial é ilegal assim como é ilícita a
prova obtida por este meio. O foro íntimo e a vida privada constituem a reserva in-
frangível de todo o ser humano. Esta reserva permite-lhe ter o domínio de si próprio,
sem o qual perde a condição de pessoa. O direito à reserva não é concedido, mas ape-
nas reconhecido. Por este reconhecimento o direito extrai como consequência necessá-
ria a protecção da intimidade a qualquer preço, ainda que essa protecção redunde em
prejuízo ou violação de direitos de outrem, particularmente quanto se trata de direitos
de diferente valor e natureza. Esta ideia hoje presente em várias constituições (v. gr.,
CRP art.. 26º) representa uma evolução significativa do ponto de vista da protecção da
pessoa humana, que tem nesta matéria lugar primeiro e central. O direito atribui maior
valor negativo ao facto intromissão no foro íntimo e na vida privada de uma pessoa
para perscrutar as suas paixões da alma, do que o eventual prejuízo que o metediço
possa ter pelo conhecimento dessas paixões. A ilicitude da prova assim obtida é de pre-
ceito, e justifica, igualmente, as limitações, nomeadamente, em matéria de audiências
em processo criminal, cuja publicidade poderá ser restringida, senão mesmo excluída,
em nome da defesa da intimidade pessoal, familiar ou social das pessoas envolvidas.
Os interesses do empregador cedem, pois, perante o bem jurídico da pessoa humana,
o que não quer dizer que ao empregador esteja sempre e em todo o caso vedada a
utilização de quaisquer sistemas de vídeo-vigilância que, em alguns casos, podem até
constituir-se em factor de segurança dos trabalhadores, tendo sempre como limite o
dever de reserva da intimidade e da dignidade pessoal destes. Sobre este ponto, cf.
Pierre KAYSER, in La protection de la vie privé – protection du secret de la vie privé, cit.,
que a pp. 264 e segs desta obra se ocupa deste tema. Sobre a vigilância electrónica para
efeitos do disposto no art.. 201º do CPP, ver Lei portuguesa nº. 122/99, de 20 de Agosto
que a regula. Ver ainda a Convenção para a Vigilância de Pessoas Condenadas ou
Libertadas Condicionalmente, aberta à assinatura em Estrasburgo em 30 de Novembro
de 1964. Portugal aprovou esta Convenção para ratificação pela Resolução da Assem-
bleia da República nº 50/94, D.R. de 12 de Agosto.
e outros escritos jurídicos 391

pornográfico e ideologicamente extremistas. Na sequência desta denúncia,


a Comissão Executiva do BCE abriu um processo disciplinar e suspendeu
o trabalhador.
A instrução do processo que se seguiu, que incluiu a audição
de testemunhas e peritagem do computador, permitiu concluir que X
vinha assediando o colega de trabalho, autor da denúncia, enviando-lhe
mensagens de conteúdo pornográfico e/ou ideologicamente extremistas,
insinuando que este colega era homossexual e ameaçando-o de agressão.
Mais se concluiu que X tinha enviado mensagens com o mesmo conteúdo
tanto para o interior como para o exterior do BCE, num total de 900
páginas. Foram igualmente coligidas em CD-ROM imagens pornográficas
que X tinha difundido por correio electrónico.
Toda esta actividade ocorreu no local de trabalho, durante o horário
de trabalho e fazendo uso de equipamentos da empresa.
Uma circular do BCE – o ECB Internet Usage Policy – estabelecia que
“os serviços Internet fornecidos pelo BCE destinam-se a fins de serviço”.
Considerando que o trabalhador tinha abusado dos instrumentos
de trabalho colocados à sua disposição “ao fazer uso com carácter não
profissional da Internet e do correio electrónico em proporções não razoáveis e
intoleráveis”, e que tinha envenenado o ambiente de trabalho no gabinete
que partilhava com outros empregados do BCE; considerando ainda
que estes factos prejudicavam a imagem do BCE e que eram inaceitáveis
segundo o senso comum e, a fortiori, para um membro da função pública
comunitária, despediu o trabalhador.
O trabalhador recorreu da decisão para o Tribunal de Primeira
Instância, invocando, entre outros argumentos, violação dos seus direitos
da personalidade, pois, ao fundar o despedimento no desrespeito de
regras de conduta, este fundamento devia reputar-se ilegal.
O tribunal desatendeu esta pretensão, considerando que “esta
obrigação de comportamento constitui uma aplicação elementar do
princípio comum aos direitos da grande maioria dos Estados-Membros,
segundo o qual os contratos, e nomeadamente os contratos de trabalho,
devem ser cumpridos de boa fé”. Em razão do seu alcance fundamental,
a sua existência é de tal forma evidente que se impõe manifestamente,
mesmo na falta de qualquer estipulação expressa”.
Este caso apresenta fortes semelhanças com um outro julgado pelos
tribunais espanhóis que passamos igualmente a sumariar:
Um trabalhador da Deutsche Bank, S.A. utilizou recursos do
Banco e procedeu ao envio de 140 mensagens electrónicas a um total
de 298 destinatários, quando o correio electrónico tinha sido criado
exclusivamente como ferramenta de trabalho, para agilizar e facilitar as
392 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

comunicações dentro da empresa e com as demais filiais do Deutsche


Bank. O Banco proibira expressamente o uso de correio electrónico para
fins pessoais, o que foi incumprido pelo trabalhador em causa. Assim, não
obstante ter decaído na primeira instância, o Tribunal Superior da Justiça
da Catalunha deu razão ao Deutsche Bank, S.A., por considerar ter havido
violação da lealdade laboral. O tribunal ponderou que a situação de o
trabalhador utilizar o correio da empresa como ferramenta de trabalho
dá origem a um conflito entre o direito à intimidade do trabalhador,
reconhecido pelo artº. 18 da Constituição Espanhola e pelo o artº. 18 do
Estatuto dos Trabalhadores, por um lado, e o direito do empresário de
controlar e vigiar os seus trabalhadores e verificar o cumprimento por
parte destes das suas obrigações e deveres contratuais, previsto no artº.
20.3 do mesmo Estatuto dos Trabalhadores, por outro. O conflito foi
decidido, em última instância, a favor do empregador617.
O Acórdão do Tribunal de Justiça de Primeira Instância levanta
um bom número de problemas jurídicos618, mas aqui só cuidaremos
dos problemas suscitados em torno das razões que conduziram ao
despedimento do trabalhador, qual seja o uso indevido da Internet e do
equipamento do BCE colocado à sua disposição.
A discussão em torno do primeiro fundamento tem sido colocada
em termos de saber se o empregador pode ou não ter acesso ao correio
electrónico do trabalhador. Já se perfilham duas teses sobre a matéria: uma
que, privilegiando os direitos da personalidade, defende, em qualquer
caso, a impossibilidade de o empregador ter acesso ao correio electrónico
do trabalhador; outra que, enaltecendo o poder de direcção do empregador
e o poder organizativo da função, reconhece ao empregador, em qualquer
caso, o direito de aceder ao correio electrónico do trabalhador619.

617 Cf. Sentença do Tribunal Superior de Justiça da Catalunha de 14 de Novembro de


2000.
618 Além do problema da utilização abusiva da Internet, o acórdão ocupou-se ainda de
questões ligadas à competência do Tribunal de Primeira Instância, à legalidade das
condições de trabalho e ao direito de defesa. Sobre o direito comunitário do trabalho, cf.
Maria Luísa DUARTE, Estudos do Instituto do Direito do Trabalho, vol. I, Almedina, 2001,
pp. 153 e segs. As relações de trabalho entre os trabalhadores e o Banco Central Euro-
peu suscitam problemas particulares. Na verdade, não estando o BCE submetido ao
direito de nenhum Estado Membro, o regime laboral destes trabalhadores não coloca
problemas de articulação entre o Direito Comunitário e o Direito dos Estados Mem-
bros.
619 Para uma análise destas teses questão cf. Adriano Campos de Assis MENDES, in As-
pectos jurídicos do monitoramento de e-mails e de acesso à Internet em redes corporativas:
http://www.jurisnauta.com.br/; Mário António Lobato de Paiva, in O monitoramento do
correio electrónico no ambiente de trabalho: http://www.intelligentiajuridica.com.br/index.html
e outros escritos jurídicos 393

O modo como o problema tem sido colocado merece da nossa


parte uma resposta liminar a favor do trabalhador: a concretização do
princípio da reserva da vida privada e familiar, garantido pela generalidade
das Constituições Europeias parece inviabilizar, em tese geral, toda a
possibilidade de o empregador poder ter acesso à correspondência pessoal
do trabalhador, sem o consentimento do mesmo. Qualquer lei, estatuto,
regulamento de empresa, convenção colectiva ou acordo colectivo de
trabalho; qualquer sentença judicial que autorizasse essa possibilidade
seria, a todas as luzes, inconstitucional e, no plano comunitário, contrário
aos princípios comuns aos Estados Membros.
Todavia, entendemos que, no quadro da empresa, nem todo e
qualquer correio electrónico deve ser entendido como correio electrónico
pessoal do trabalhador. Pela nossa parte, entendemos por tal o correio criado
pelo trabalhador para troca de correspondência estritamente ligada à sua
vida pessoal e familiar e do qual tem total controlo do ponto de vista
do acesso e de tal ordem que outras pessoas ou entidades, incluindo o
empregador, só poderão aceder ao mesmo correio com o concurso do
trabalhador ou, na falta deste concurso, mediante violação das condições
de segurança por ele fixadas.
Assim, não constitui correio electrónico pessoal do trabalhador a
caixa de correio criada por este no sítio autónomo ou alojado da empresa,
para fins estritamente ligados à actividade empresarial. Neste caso, o
correio electrónico constitui mera ferramenta de trabalho. A esta caixa
de correio poderá ter acesso, além do trabalhador, o empregador ou
outro funcionário ou agente indicado pelo empregador. Uma caixa assim
criada não apresenta nenhuma ligação pessoal com o trabalhador e a
sua utilização para fins pessoais é ilegal e constitui infracção disciplinar,
punível nos termos gerais de direito.
Entendemos, assim, que, em qualquer dos dois casos mencionados,
os tribunais decidiram bem. A invocação pelo trabalhador nestes
casos, em sua defesa, do direito à intimidade e, consequentemente, da
ilegalidade das obrigações de comportamento620, afigura-se-nos perfeitamente

com amplas hiperligações.


620 Os problemas relacionados com obrigações de comportamento já se suscitaram em
Itália e França. Recentemente uma sentença do Tribunal de Apelação de Milão, de 9
de Abril de 2002 decidiu que “não é passível de procedimento disciplinar o trabalha-
dor de uma secção de gastronomia de um supermercado que não apara a barba com
regularidade”. Em comentário a esta sentença Pietro ICHINO recorda outros casos
semelhantes já julgados: um empregado bancário que se apresentou ao serviço vestido
de xerife de far west; outro que se apresentou de camisola interior e outro ainda que se
apresentou ao serviço de bermudas, caso este julgado pela jurisprudência francesa. Ver
394 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

despropositada. Se a conta foi aberta para fins empresariais e o trabalhador


tinha claro conhecimento deste facto e, não obstante o correio ter sido
aberto em nome do trabalhador, este foi prévia e claramente informado
de que o mesmo não poderia ser utilizado para fins diversos da actividade
empresarial, se mesmo assim o utilizou, há violação de deveres contratuais.
Acedendo a entidade patronal, como lhe competia, a esse correio e, se por
esta via, tomou conhecimento de correspondência pessoal do trabalhador,
este não pode alegar, procedentemente, violação da intimidade e da
reserva da vida privada.
Por isso, a sentença paralela do Tribunal da Catalunha afirmou – e
bem – que a actuação do empregador “não constitui violação de um direito
fundamental ao segredo das comunicações”. É a acção do trabalhador que
constitui “utilização indevida dos meios e instrumentos da empresa para
fins alheios aos estritamente laborais”.
Pode, porém, colocar-se a questão de saber que posição seguir
quando a entidade patronal ou pessoa que teve acesso ao correio electrónico
do trabalhador, nas circunstâncias descritas, vier a divulgar factos da vida
privada deste de que teve conhecimento ao aceder ao referido correio.
Em tal caso, entendemos que haverá responsabilidade civil e/ou criminal,
não em virtude do acesso ao correio electrónico do trabalhador, mas como
consequência necessária da divulgação dos referidos factos. Todas as
pessoas que vierem a tomar conhecimento da correspondência pessoal do
trabalhador ficam vinculadas ao dever de segredo. A eventual divulgação
do conteúdo dessa correspondência constitui violação desse dever.
Porém, já constitui correio electrónico pessoal se, não obstante
ter sido criado no sítio autónomo ou alojado da empresa, o empregador
permitir ao trabalhador trocar, no mesmo correio, além da correspondência
da empresa, correio privado, pois, o interesse do trabalhador à reserva
da sua vida pessoal e familiar consome e sobrepõe-se aos interesses da
actividade empresarial. Aplica-se aqui a teoria da consumpção, autorizada
pela natureza dos bens jurídicos em presença. Em tal caso, está vedado o
acesso do empregador ao correio electrónico do trabalhador.

V – Outro problema que as duas sentenças mencionadas suscitam


diz respeito à utilização pelo trabalhador de equipamentos da empresa
para troca de correspondência pessoal e realização de outras operações
através da Internet.
A posição tomada em ambas as decisões deve ser sufragada.
Considera, acertadamente, que a utilização pelo trabalhador do tempo de

Rivista Italianna di Diritto Del Lavoro, anno XXI, 2002, pp. 658 e segs.
e outros escritos jurídicos 395

trabalho e de equipamentos da empresa para a realização de operações de


natureza pessoal constitui violação do dever de lealdade.
Este ponto de vista deve ser aplaudido e ele é igualmente válido tanto
no âmbito das relações de trabalho subordinado, quanto no âmbito das
relações de emprego público. Ao trabalhador ou agente da Administração
Pública está, em princípio, vedada a utilização de equipamento informático
da empresa ou serviço público para fins de natureza pessoal. A simples
consulta de um e-mail ou a navegação, ainda que um período muito curto,
utilizando equipamento da entidade empregadora, durante o tempo
que, por lei ou contrato, seria destinado ao empregador ou ao Estado,
não é, como se poderia pensar, um aspecto de somenos importância.
Para além dos danos que a utilização do equipamento pode dar lugar,
a soma do tempo utilizado pelo conjunto dos trabalhadores ou agentes
na realização de operações de natureza pessoal pode representar, a um
tempo, um aumento considerável dos gastos de comunicação, uma
diminuição significativa da disponibilidade dos trabalhadores ou agentes
e uma cessação dos lucros que resultariam da actividade do trabalhador.
A empresa sofre, portanto, um tríplice prejuízo.
Em qualquer dos casos há violação do contrato e, quando reiterada,
pode, conforme a culpa do trabalhador ou agente, dar lugar à extinção
do vínculo contratual. E o dever violado não é apenas o dever de lealdade e
o dever de boa fé contratual, como assinalou a jurisprudência espanhola.
Há lesão dos interesses patrimoniais da empresa e do empregador (ou do
serviço público) e há ainda incumprimento do contrato, pois, durante o
tempo em que esteve a realizar na Internet operações de interesse pessoal,
o trabalhador deixou de prestar a actividade a que se obrigou pelo contrato.
Dá-se a quebra ilegal do sinalagma, dado que o trabalhador aufere uma
retribuição correspondente a um período de trabalho que disponibilizou
a seu favor, período este que deveria ter sido disponibilizado a favor do
empregador621.

VI - A disciplina desta matéria é, pois, um dado que se impõe quer


ao nível da função pública quer ao nível da legislação laboral, mas num e
noutro sector, poderão desde já ser tomadas medidas em sede de ordens
ou instruções de serviço, regulamento de empresa, contratação colectiva
ou outra, a fim de se evitar cair numa situação descontrolada.
Esta preocupação afigura-se-nos tão pertinente quanto é certo que
estudos realizados por algumas empresas americanas revelaram prejuízos

621 Sobre situações legais de quebra do sinalagma, cf. PALMA RAMALHO, Da autonomia
dogmática... cit., pp. 777 e segs.
396 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

consideráveis com a utilização indiscriminada da Internet por parte de


trabalhadores. No Brasil, a General Motors despediu recentemente 13
trabalhadores pelo mesmo motivo, estando a questão da reintegração
desses trabalhadores pendente de discussão na Delegacia Regional de
S. Paulo. Outros 83 trabalhadores da empresa foram intimados a não
utilizar os e-mails da empresa para fins não profissionais. Embora os
Sindicatos considerem excessiva a punição de despedimento, a verdade
é que, diferentemente da posição assumida pelos sindicatos espanhóis, os
sindicatos brasileiros concordam em que os trabalhadores não poderão
usar os e-mails da empresa para fins particulares622.
Quanto seja do nosso conhecimento, o primeiro país a regular esta
matéria foi o Reino Unido, através do Regulation of Investigatory Powers
Act 2000 que reconheceu às empresas o poder de fiscalizar e interceptar
comunicações dos seus trabalhadores, incluindo e-mails e telefonemas
sempre que suspeitarem do seu conteúdo.
De jure condendo admitimos, em conclusão, as seguintes ideias
chaves para a disciplina desta questão:

BASE I
– Utilização pelo trabalhador de equipamento da empresa para
acesso à Internet para fins pessoais

1 - Compete à entidade empregadora decidir se o trabalhador pode


ou não utilizar equipamentos da empresa para ter acesso à Internet e
enviar e receber correio electrónico de natureza pessoal.
2 - A utilização indevida de equipamentos da empresa, para os fins
referidos no número anterior, constitui violação de deveres contratuais e
dá lugar à responsabilidade civil e disciplinar, punível consoante o grau
de culpa do trabalhador.
3 - A autorização concedida ao trabalhador para a utilização de
equipamentos da empresa para aceder à Internet ou praticar outras
operações electrónicas, não confere ao empregador ou a qualquer outro
responsável da empresa o poder de aceder ou controlar as operações
electrónicas realizadas pelo trabalhador, maxime as de ordem pessoal.
Em tal caso, o acesso abusivo do empregador ou outro responsável da
empresa à correspondência pessoal do trabalhador, constitui violação do

622 Sobre este caso, consultar http://www.terra.com.br/informatica/2002/05/25/000.


html e ainda http://www.businessstandard.com.br/bs/noticias/2002/05/0019. A
Ford no Brasil já tomou idêntica posição. Cf. http://idgnow.terra.com.br/idgnow/in-
ternet/2002/06/0011.
e outros escritos jurídicos 397

dever de reserva de vida privada e familiar do trabalhador e dá lugar a


responsabilidade civil e criminal, nos termos gerais de direito.
4 - O empregador pode revogar a autorização concedida a todo o
tempo, assim como pode estabelecer, unilateralmente, se a utilização dos
equipamentos da empresa poderá ser feita durante o período normal de
trabalho ou fora do período normal de trabalho. Em qualquer dos casos,
o empregador poderá ainda fixar para cada dia, semana ou mês durante
quanto tempo, expresso em horas ou minutos, o trabalhador poderá
utilizar os equipamentos da empresa. A ultrapassagem dos limites
fixados pelo empregador faz o trabalhador incorrer em responsabilidade
civil e disciplinar.
5 - É vedado ao empregador cobrar a utilização dos equipamentos
como um serviço prestado ao trabalhador, salvo tratando-se de empresa
em que a prestação deste serviço constitui o objecto da sua actividade
(cibercafés, v.gr.).

BASE II
– Correio electrónico em nome do trabalhador para fins
empresariais
1 - A entidade empregadora pode acordar com o trabalhador a
criação de correio electrónico em nome do trabalhador em sítio da empresa,
autónomo ou alojado, para fins exclusivos da actividade empresarial.
2 - O acordo do trabalhador em juntar o seu nome ou apelido ao
endereço electrónico deve ser dado de forma expressa e inequívoca e é
revogável a todo o tempo, sem prejuízo de dever indemnizar o empregador
pelos prejuízos que a revogação acarretar.
3 - A utilização pelo trabalhador para fins pessoais de correio
electrónico criado para fins exclusivos da actividade empresarial, constitui
infracção e co-envolve responsabilidade civil e disciplinar, punível
consoante o grau de culpa do trabalhador.
4 - A entidade empregadora ou outra pessoa em seu nome pode, a
todo o tempo, ter acesso a essa caixa de correio, conhecer o nome electrónico
de utilizador e a respectiva chave de acesso. Poderá também alterar estas
informações, ler a correspondência trocada, destruí-la, transferi-la para
outra pasta do mesmo computador ou computador remoto, assim como
realizar outras operações electrónicas, sem que tal acarrete qualquer
responsabilidade.
5 - A recusa pelo trabalhador em transmitir à entidade empregadora
as informações que lhe permitam ter acesso à caixa do correio constitui
infracção disciplinar.
398 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

6 - A entidade empregadora poderá, a todo o tempo, fazer o download


dos ficheiros existentes na caixa do correio, assim como poderá encerrá-la,
dando conhecimento prévio ao trabalhador.

BASE III
– correio electrónico misto

1- As prerrogativas estabelecidas nos pontos 4., 5. e 6. da Base II


são vedadas à entidade empregadora que permitir o trabalhador utilizar
para fins pessoais correio electrónico criado para fins empresariais, salvo
acordo expresso com o trabalhador.
2. Ao correio electrónico misto são aplicáveis, com as devidas
adaptações, o disposto na Base I para o correio electrónico criado para
fins pessoais.
São estas as nossas ideias básicas sobre este ponto, sem prejuízo de
melhor investigação desta matéria.
e outros escritos jurídicos 399

2. ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (PORTUGAL)


DE 13 DE NOVEMBRO DE 2002623

A DECISÃO

I - Os tribunais do trabalho são competentes, em razão da matéria, para


conhecer de acção em que o autor, alegando que celebrou com a ré contratos
de trabalho a termo certo, para, sob as suas ordens, direcção e fiscalização,
desempenhar funções docentes, que, atenta a improcedência do motivo invocado
para a celebração dessa vinculação precária, se converteram em contrato sem prazo
(situação que não sofreu alteração apesar de, a partir de certo ano, os contratos
passarem a ser denominados de prestação de serviços), e que a ré, ao “dispensar os
seus serviços”, procedeu a despedimento ilícito, vem pedir a condenação desta no
pagamento da correspondente indemnização e de retribuições não pagas.

II - São de qualificar como contratos de trabalho, e não de prestação de


serviços, os celebrados entre a ré e o autor pelos quais este se comprometeu a
exercer funções docentes, sob as ordens, direcção e fiscalização daquela, realidade
que se manteve - como o autor alegou e a ré não impugnou - mesmo após a
alteração da designação dos contratos para “contratos de prestação de serviços”,
pois é irrelevante o nomen juris dado pelas partes aos contratos celebrados.

III - Face à revogação, expressa ou implícita, operada pelo Decreto-Lei n.º


139-A/90, de 28 de Abril, que aprovou o “Estatuto da Carreira dos Educadores de
Infância e dos Professores do Ensino Básico e Secundário”, dos Decretos-Leis n.ºs
266/77, de 1 de Julho, 553/80, de 21 de Novembro, e 300/81, de 5 de Novembro,
e à caducidade parcial do Despacho n.º 92/ME/88, do Ministro da Educação,
de 17 de Maio de 1988, tornou-se insubsistente a jurisprudência que, com base
neste complexo normativo, sustentava a existência de um “regime especial” de
caducidade anual da acumulação de funções no ensino particular por parte de
professores do ensino oficial, que afastaria a aplicação do regime geral relativo à
celebração e caducidade do contrato de trabalho a termo (aprovado pelo Decreto-
Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro).

IV - Do artigo 111.º do Estatuto da Carreira Docente de 1990,


regulamentado pela Portaria n.º 652/99, de 14 de Agosto, resulta a abolição da
regra da anualidade das autorizações para a aludida acumulação de funções;

623 Texto recolhido em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/. Anotação feita com a colaboração


da Drª. Sofia Veiga.
400 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

actualmente, esta autorização, uma vez concedida, permanece “válida enquanto


se mantiverem as condições que permitiram a acumulação”.

V - A celebração de contrato de trabalho, entre estabelecimento de ensino


particular e professor do ensino oficial, para exercício de actividade docente sem
prévia obtenção da autorização de acumulação, não torna o contrato nulo por
ter sido pretensamente celebrado contra legem; a referida acumulação não é uma
actividade proibida por lei e a autorização prevista não tinha de ser expressa, nem
sequer prévia ao exercício de actividade, podendo as funções no ensino particular
ser iniciadas logo que formulado o pedido de autorização. Isto é: a concessão da
autorização não era condição de validade ou de eficácia do contrato de trabalho
celebrado entre o professor do ensino oficial e o estabelecimento de ensino
particular; a eventualmente superveniente recusa de autorização é que constituía
causa de cessação desse contrato.

VI - Considerada insubsistente a razão pela qual a acção foi julgada


improcedente no despacho saneador (prevalência do “regime especial” referido
em III), impõe-se o prosseguimento dos autos, uma vez que os mesmos não
fornecem elementos suficientes para uma decisão conscienciosa das restantes
questões pendentes, designadamente a da unificação da relação laboral apesar da
existência de intervalos (coincidentes com as férias escolares de Verão) entre os
diversos contratos formalmente celebrados, o que depende da indagação sobre se
eram as mesmas as funções exercidas pelo autor e as necessidades que a ré visava
satisfazer.

ANOTAÇÃO

1. Fundamentos da subordinação jurídica. Como se sabe, o critério


da subordinação jurídica como elemento caracterizador determinante
do contrato individual de trabalho tem sido posto em causa. Pela nossa
parte, entendemos que a supressão deste elemento, a não ser substituído
por outro que caracterize a dependência pessoal do trabalhador face
ao empregador, à semelhança, por exemplo, do persönliche Abhängigkeit
alemão, envolverá uma verdadeira falência do direito do trabalho que,
por este facto, perde a sua razão de ser.
Reportamos a ideia de subordinação jurídica ao princípio da
dignidade da pessoa humana, princípio que, como sabemos, não é privativo
da Constituição Laboral.
A sua penetração nas relações de trabalho coloca-se a quatro níveis
fundamentais: no plano das relações reflexas do trabalhador; no plano das
relações entre o trabalhador e o empregador; no plano das relações entre
e outros escritos jurídicos 401

o trabalhador e os demais trabalhadores que participam da organização


empresarial e ainda no plano das relações entre o trabalhador e o público.
Com excepção da primeira, todas as demais relações são relações
estabelecidas entre o trabalhador e terceiros. Mas todas apresentam
particularidades que justificam a sua individualização.
As relações entre o trabalhador e o empregador são susceptíveis
de interferir de modo significativo no poder de vontade e em toda a vida
pessoal do trabalhador. Constituem, pois, terreno propício para a prática de
actos passíveis de contender com a dignidade do trabalhador. As relações
entre o trabalhador e os demais trabalhadores no quadro da empresa
desenvolvem-se em condições de proximidade pessoal que facilitam
o conhecimento da vida pessoal e familiar do trabalhador e potenciam
a prática de actos susceptíveis de imiscuir na honra e consideração do
trabalhador. Esta proximidade, ainda que ténue, verifica-se igualmente
nas relações entre o trabalhador e o público e viabiliza, do mesmo modo,
a prática de actos que poderão brigar com a vida pessoal do trabalhador.
As consequências que a lei extrai destas relações não se circunscrevem
ao Direito do Trabalho. Elas encontram-se disseminadas por outros ramos
do direito que, neste particular, cooperam com o Direito do Trabalho na
sua conformação e disciplina.
No plano reflexo, a lei extrai consequências jurídicas que recaem
sobre o próprio sujeito de direitos – no caso, o trabalhador - impondo-
lhe determinadas condutas de auto-preservação pessoal. Na verdade,
a condição de pessoa do trabalhador não é um assunto que interesse
unicamente ao próprio. Se soçobrar a pessoa humana, com ela soçobrará
o próprio Estado de que a pessoa constitui substrato imprescindível. Por
isso, a condição de pessoa é inalienável, irrenunciável e imprescritível.
Quando entra numa relação laboral, seja numa relação de emprego
público, seja numa relação de emprego privado, a pessoa acarreta consigo
estas normas que a vinculam à auto-preservação. Esta vinculação tem
uma dimensão absoluta e outra relativa que envolve, concomitantemente,
medidas de protecção absolutas e relativas. A pessoa não tem total
disponibilidade de si mesma. Um trabalhador que se vinculasse a servir
alguém por toda a vida, independentemente de qualquer retribuição,
estaria a celebrar um contrato de servidão. Este contrato, porque contrário
aos princípios de ordem pública, seria nulo e de nenhum efeito, por força
do disposto no artº. 81º do CC, pois, colocaria o trabalhador num estado
de dependência pessoal absoluta face a outra pessoa.
Todavia, toda a pessoa tem a faculdade de desenvolver as acções
necessárias para prover ao seu sustento e para angariar os meios que lhe
permitam viver em dignidade. Estes meios podem passar, e nas sociedades
402 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

hodiernas passa quase sempre, pela celebração de contratos que a colocam


na dependência pessoal de outra ou outras pessoas. Nisto consiste a
subordinação jurídica que se apresenta, a um tempo, com uma dimensão
pública e outra privada. Na sua dimensão pública, a subordinação jurídica
apresenta-se como um quadro legal dentro do qual se move a liberdade
individual. Tem como limites fundamentais a ordem pública e os bons
costumes. Na sua dimensão privada, exprime-se na faculdade que o
sujeito tem de se subordinar e até de fixar os termos, o conteúdo e o grau
dessa subordinação. Para além destes parâmetros intervém as regras da
conformação pública para protecção da pessoa do trabalhador.
Compreende-se, assim, que, para nós, a fonte da subordinação
jurídica é o contrato livremente celebrado e o seu fundamento a
faculdade de auto-limitação voluntária da liberdade individual. A
subordinação jurídica radica, pois, na limitação voluntária de um direito
de personalidade.
Alguns aspectos da legislação vigente têm em consideração esta
ideia de dignidade da pessoa humana do trabalhador ou, pelo menos,
prestam-se à realização desta ideia. Assim, o carácter intuito personae
do contrato de trabalho; a existência de uma categoria profissional
para cada trabalhador; as restrições ao jus variandi; o direito a férias e a
obrigatoriedade do respectivo gozo; o reconhecimento do direito à greve;
o princípio da culpa em processo disciplinar e a consequente ausência de
responsabilidade objectiva do trabalhador, apontam para esta dimensão
personalista das relações de trabalho.

2. Podia-se pensar que a ideia da subordinação jurídica contenderia


com o princípio da dignidade da pessoa humana do trabalhador. Neste
sentido, a circunstância de uma pessoa desenvolver a sua actividade sob
a autoridade e direcção da outra pessoa envolveria despersonalização da
primeira e brigaria com a sua dignidade.
Refutamos esta objecção com duas razões fundamentais: a primeira
é a de que a circunstância de alguém orientar ou ter simplesmente a
faculdade legal ou contratual de orientar a actividade de outra pessoa não
envolve, necessariamente, despersonalização. Como escrevemos no nosso
comentário à sentença do Tribunal de Justiça das Comunidades, “se essa
direcção ou orientação actuar de modo a permitir a livre expressão da
actividade e da personalidade criativa do trabalhador e essa direcção ou
orientação contribuir para a obtenção de melhores resultados nos planos
pessoal e profissional do trabalhador, a subordinação jurídica ergue-se
até como factor de dignificação da pessoa do trabalhador”. A segunda
é a de que cada dia mais se esbate o carácter constante e permanente da
e outros escritos jurídicos 403

subordinação jurídica. Além das situações de autonomia técnica que a


atenuam de forma significativa, a organização actual das relações laborais
está estruturada em coerência com esta ideia branda de subordinação
jurídica. Na verdade, tanto maior for o peso da actuação permanente e
sistemática de quem exerce o poder de direcção, maiores serão os custos
dessa actuação. Do ponto de vista do empregador, é até desejável que o
trabalhador interiorize tão breve quanto possível um conjunto de comandos
que lhe permitam participar de forma positiva e sem desafinações na
organização empresarial, dispensando a presença permanente de alguém
que exerça o poder de direcção.
A oposição entre estes dois aspectos das relações de trabalho
– a dignificação do trabalhador, por um lado, e a sua subordinação ao
empregador, por outro – só se desencadeia a partir do momento em que
o poder de direcção é exercido de tal ordem que o trabalhador perde
vontade própria. Tal ocorre na situação de escravidão.

3. A legislação laboral vigente apresenta soluções que permitem


sustentar o ponto de vista que reconduz a subordinação jurídica à
limitação voluntária dos direitos da personalidade. Do mesmo modo que
as limitações voluntárias de um direito de personalidade são revogáveis,
a todo o tempo (artº. 81º do CC), permitindo-se ao sujeito libertar-se
da vinculação livremente consentida, também no contrato de trabalho
a lei reconhece ao trabalhador a faculdade de se auto-desvincular,
independentemente da invocação do motivo. Monteiro FERNANDES fala
a este propósito da “recuperação da liberdade pessoal” do trabalhador624,
fazendo assim apelo à sua recondução aos direitos de personalidade. A
ideia está presente, em termos mais ténues, em MENEZES CORDEIRO
que fala igualmente em “liberdade pessoal”, rematando que”ninguém
pode ser obrigado a trabalhar contra a sua vontade”625.
A similitude dos dois regimes é, assim, por demais, evidente: do
mesmo modo que qualquer pessoa pode esquivar-se a acatar as limitações
voluntariamente consentidas no seu direito de personalidade, também
o trabalhador pode em qualquer momento pôr termo à relação laboral.
Mesmo nas situações em que está vinculado a um prazo maior de pré-
aviso, como seja nas situações de representação, direcção ou autonomia
técnica, pode usar dessa faculdade, indemnizando o empregador pelos
eventuais prejuízos decorrentes da desvinculação, ocasionados à empresa
(artº. 39º). Esta norma completa a similitude com o regime dos direitos da

624 Direito do Trabalho, 11ª edição, Almedina, 1999, pp. 583.


625 Manual de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 1994, pp. 856.
404 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

personalidade. Neste particular, a regra é igualmente, como se referiu, a


da livre revogabilidade das limitações legais voluntariamente consentidas,
sem prejuízo de dever indemnizar os prejuízos causados às legítimas
expectativas da outra parte (artº. 81 nº 2)626.
É dentro deste quadro teórico que apreciaremos a decisão sujeita
comentário.

4. Nota crítica ao acórdão. A jurisprudência não é unânime quanto


à qualificação jurídica dos contratos para exercício da actividade docente.
A questão tem sido colocada com interesse em matéria do ensino superior
particular cooperativo, mas também relativamente a contratos celebrados
com desportistas, para o exercício de actividade docente. Pode, aliás,
dizer-se que todas as situações que reclamam um grau (elevado ou não)
de autonomia técnica suscitam problemas de qualificação.
Trata-se de saber se tais contratos deverão ser caracterizados como
contratos de prestação de serviço ou como contratos de trabalho.
Decisões num e noutro sentido têm sido tomadas. Referiremos
algumas.

- Acórdão da Relação de Lisboa, de 15/1/1997: Exercendo o Autor funções


de Professor, leccionando diversas disciplinas curriculares do ensino
secundário, desde 1-9-1991 até 31-8-1994, no estabelecimento de ensino
da Ré, em Angola, usando instrumentos de trabalho pertencentes à Ré,
em conformidade com horários pré-estabelecidos, recebendo mensalmente
a sua remuneração, na qual eram feitas deduções para a Caixa Geral de
Aposentações, para o IRS e para o Montepio dos Servidores do Estado, é
de concluir que a natureza da actividade desenvolvida pelo Autor é típica
do contrato de trabalho subordinado, na medida em que aponta claramente
para a situação de subordinação jurídica. O ter-se denominado como de
prestação de serviços o contrato celebrado em 1-9-1991, em nada releva

626 Essa indemnização tem sido, por vezes, atribuída pelos tribunais. Cf. Ac. do STJ, de
19/02/1997, nos termos do qual “rescindido o contrato de trabalho sem observância
do aviso prévio de 60 dias, o trabalhador constitui-se na obrigação de pagar à entidade
patronal uma indemnização de valor igual à remuneração de base correspondente ao
período de aviso prévio em falta (artigos 38 e 39 do Decreto-Lei 64-A/89, de 27 de
Fevereiro)”. Esclarece este Acórdão que a entidade patronal não tem de deduzir pedi-
do reconvencional, bastando-lhe excepcionar a compensação, se pretende compensar
crédito seu com crédito do autor dentro dos limites deste. Cf. Ainda ac. Do STJ de
3/07/96 e Ac. Do STJ de 16/12/2000, entre outros. Sobre a rescisão com base na lei
dos salários em atraso, cf. Ac. Do STJ de 26/4/99 e de 23/03/2001, todos recolhidos
em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.
e outros escritos jurídicos 405

quanto à sua verdadeira qualificação jurídica, que tudo aponta no sentido


do contrato de trabalho627.

- Acórdão do STJ de 18/06/1997: À relação jurídica de emprego consistente


na prestação de serviços, em regime de acumulação, por um professor do
ensino público a uma escola do ensino particular, aplica-se o Estatuto do
Ensino Particular e Cooperativo. Trata-se de um contrato sujeito à lei
especial acima referida que se renovará anualmente se tal renovação for
solicitada pelo estabelecimento particular e autorizada pela Direcção Geral
do Pessoal do Ministério da Educação. A não renovação do contrato implica
a pura e simples caducidade do mesmo, sendo irrelevante a ausência de
processo disciplinar a preceder a cessação da relação laboral628.

- Acórdão da Relação de Lisboa de 22/09/99: O facto de as partes terem


denominado o contrato de “prestação de serviço” não é significativo
quanto à sua qualificação jurídica, pois esta não depende do “nomen iuris”
que os contratantes lhe tenham atribuído. O contrato de trabalho não é
incompatível com a autonomia profissional do trabalhador, no campo
técnico. É pois de trabalho e não de prestação de serviços, o contrato
celebrado pela ré com a autora para exercer as suas funções de docência,
leccionando em estabelecimento de ensino particular, usando instrumentos
pertencentes à ré, obedecendo a horários pré-estabelecidos e recebendo
mensalmente remuneração certa, em função do tempo de horas semanais
de trabalho prestado629.

- Acórdão do STJ de 6/04/2000: o professor universitário que executava


as suas funções nas instalações das rés, utilizava os meios que estas
colocavam à sua disposição, tais como salas de aula, material didáctico,
biblioteca, pessoal administrativo, contínuos, auxiliares e serviços de
secretaria; tinha um horário para a leccionação das aulas o qual era por
ele determinado de acordo com as suas disponibilidades de tempo, fazia
serviço de vigilância de provas escritas e realizava provas orais, devendo
cumprir as horas pré-determinadas para o efeito, era remunerado à hora,
tinha a obrigação de entregar em prazos fixados os resultados das provas
escritas, elaborava e entregava o programa da cadeira, antes do início das
aulas e ainda comparecia às reuniões do Conselho, não pode concluir-se
que ele estava sujeito à autoridade e direcção da ré 630.

627 Recolhido em: http://www.dgsi.pt/


628 Recolhido em: http://www.dgsi.pt/
629 Recolhido em: http://www.dgsi.pt/
630 Recolhido em: http://www.dgsi.pt/
406 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

- Acórdão do STJ de 16 de Maio 2000: Se num contrato para leccionar em


Estabelecimento Superior Privado as partes convencionaram por acordo
e de harmonia com as conveniências do professor-trabalhador; se, sem
oposição dele nunca lhe foram pagas férias e subsídios; e se do contrato
consta a sua resolução imediata por incumprimento grave das obrigações
nele previstas e se como tal é considerado um determinado número de faltas;
tudo leva a concluir pela inexistência de um contrato de trabalho631.

-Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25/09/2002: A autonomia


técnica, cientifica e pedagógica é uma característica essencial da actividade
docente, sobretudo no ensino superior, tal como sucede com a autonomia
técnica na actividade de um médico ou de um advogado, mas isso não
impede que tais actividades constituam objecto de um contrato de trabalho.
É incorrecto sustentar que pelo facto de a Autora - professora universitária
não se dedicar à actividade docente em regime de exclusividade, a sua
actividade não pode constituir objecto de um contrato de trabalho, ou
admitindo que possa constituir objecto de tal contrato., a mesma não pode
beneficiar dos mesmos direitos e garantias de protecção de que beneficiam
os que se dedicam a tal actividade em regime de exclusividade.- Não existe
no nosso ordenamento jurídico laboral qualquer estribo legal onde tal tese
se possa apoiar632.

- Acórdão do STJ de 13 de Novembro de 2002: Mantendo-se as condições


que permitiram a acumulação funções no ensino particular por parte de
professores do ensino oficial, a não apresentação de pedido (anual) de
autorização, na vigência do Estatuto da Carreira Docente de 1990, não
determina a caducidade do contrato, pelo que a imposição unilateral,
pela entidade patronal, da cessação de funções docentes configura um
despedimento ilícito por não precedido de processo disciplinar nem fundado
em justa causa633.

A oposição entre os acórdãos referidos é manifesta. Face a situações


aparentemente idênticas, como seja a situação julgada pelo Acórdão da
Relação de Lisboa, de 15/1/1997 e a situação julgada pelo Acórdão do STJ
de 6/04/2000, decidiu-se, no primeiro caso, pela existência inequívoca de
um contrato de trabalho e, no segundo, pela existência de um contrato de
prestação de serviços.

631 Recolhido em: http://www.dgsi.pt/


632 Recolhido em: http://www.dgsi.pt/
633 Recolhido em: http://www.dgsi.pt/jstj.
e outros escritos jurídicos 407

No acórdão sujeito a comentário caracterizou-se como contrato


de trabalho o contrato celebrado entre um estabelecimento de ensino
particular e um professor de ensino oficial, considerando que, apesar da
autonomia técnica, o docente desenvolve a sua actividade em regime de
submissão à autoridade e direcção da entidade patronal.
Parece tratar-se, hoje, da jurisprudência dominante, da qual podem
ser colhidas as seguintes ideias fundamentais: - a subordinação jurídica e
a subordinação económica634 são elementos caracterizadores do contrato
individual de trabalho; - são estes dois elementos que permitem distinguir
o contrato de trabalho do contrato de prestação de serviço; - o acordo das
partes no sentido da celebração de um contrato de trabalho ou no sentido
da celebração de um contrato de prestação de serviço não vincula o
tribunal, pois, contratos formalizados como sendo de prestação de serviço
são, afinal, contratos de trabalho; - a existência de subordinação jurídica
avaliar-se-á partindo das notas típicas do contrato em causa, os chamados
indícios de subordinação.

5. Entendemos que a subordinação jurídica se exprime em


comportamentos de sujeição que poderão ser técnicos ou administrativos.
Os comportamentos de sujeição técnicos são actuações do trabalhador
que revelam o seu grau de competência para a realização de obra ou serviço.
Quanto menor for essa competência, maior é o grau de subordinação a
que o prestador do serviço está sujeito. Neste caso, a pessoa por conta de
quem é desenvolvida a actividade tem, em regra, superioridade técnica
sobre a pessoa que a desenvolve. Por isso conforma, através de ordens ou
instruções, o comportamento desta última em atenção aos interesses da
organização empresarial.
Estamos então no domínio dos trabalhadores indiferenciados. A
subordinação incide sobre eles de forma penetrante e de modo sistemático
e persistente, pois, além da subordinação técnica submetem-se ainda à
subordinação administrativa ou organizacional, traduzida na observância
de normas que disciplinam a organização do trabalho na empresa.
Todavia, à medida que adquirem conhecimentos técnicos – que
pode apenas traduzir-se no conhecimento da rotina diária da empresa
- caminham para a já referida forma branda de subordinação jurídica
que continua sempre presente, pois, exprime-se na faculdade potencial
que tem o empregador de, a qualquer momento e de acordo com os seus

634 Pondo em causa a ideia da subordinação económica como critério diferenciador do


contrato de trabalho, cf. Albino Mendes BAPTISTA, in Jurisprudência do Trabalho anota-
da, relação individual de trabalho, 3ª edição (reimpressão), pp. 21-22.
408 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

interesses, fazer actuar o poder de conformação unilateral da prestação


devida pelo trabalhador.
Às normas que evidenciam comportamentos de sujeição administrativos
tem feito referência a jurisprudência, ao que julgamos, bem, como indícios
reveladores da subordinação jurídica. Prendem-se com a faculdade
potencial de alguém conformar a prestação de outra pessoa através de
ordens ou instruções, ainda que nunca a utilize ou só a utilize remotamente;
com a existência de um local de prestação da actividade fornecido pela
pessoa a favor de quem a actividade é desenvolvida e com a consequente
implicação de deslocação a esse local para prestar o serviço; com a
definição de um horário que deve ser observado, estando essa definição a
cargo da pessoa ou entidade a favor de quem a actividade é prestada; com
o cumprimento de convocatórias, ordens de serviço e outras instruções
relativas à organização administrativa do serviço.
Estes elementos caracterizadores da subordinação administrativa
revelam-se fundamentais para a caracterização jurídica do contrato, nas
situações de autonomia técnica. O critério que se nos afigura fundamental
é o de saber se a pessoa tem a faculdade absoluta de pré-ordenar o
seu próprio comportamento para alcançar um determinado resultado
(produção de um bem; realização de uma obra) ou se tem que ajustar o
seu comportamento e toda a sua vida pessoal e familiar à organização
pré-estabelecida por outra pessoa (no caso, o empregador). Nas situações
de autonomia técnica a existência de subordinação pode, nalguns casos,
cingir-se à verificação destes índices de ordem administrativa.

6. Compreende-se, assim, que aderimos à doutrina do acórdão em


apreço. A circunstância de o contrato ter sido qualificado como sendo de
prestação de serviço não se nos afigura relevante. Há muito que a doutrina
e a jurisprudência firmaram o ponto de vista de que nem o próprio
legislador tem legitimidade para fazer qualificações jurídicas, mormente
as partes num contrato. A qualificação jurídica é papel do julgador. Não é
papel das partes, nem tão pouco do legislador.
Todavia, não retiramos razão a MENEZES CORDEIRO, doutrina
aliás seguida por vários acórdãos, na afirmação de que a vontade das
partes contitui elemento distintivo fundamental para a caracterização do
contrato635. Na verdade, esta referência do autor não pode ser entendida no
sentido de que bastaria a enunciação pelas partes da vontade de celebrar
um contrato de prestação de serviço para esta vontade, formalmente
transmitida, mediante a fixação de um nomem juris, vincular o tribunal.

635 Manual..., pp. 535-536.


e outros escritos jurídicos 409

Situações se verificarão em que a qualificação do contrato feita pelas


partes não corresponde ao seu conteúdo. A interpretação da vontade das
partes é, assim, de preceito e nessa interpretação não se pode contentar
com elementos formais, ainda que correspondam ao contrato inicialmente
celebrado. Poderão mesmo ocorrer situações de modificação contratual.
Um contrato inicialmente celebrado com as características típicas de um
contrato de prestação de serviço pode modificar-se, paulatinamente,
gerando um contrato de trabalho, mercê da alteração das circunstâncias
de facto e jurídicas que rodearam a sua execução. Este é, todavia, um
assunto que não abordaremos aqui.
Entendemos, pois, que o tribunal decidiu bem, produzindo uma
sentença de invejável qualidade técnica.
410 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO
e outros escritos jurídicos 411

3. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL PORTUGUÊS DE


6 DE MAIO DE 1987636

Sumário:
Prescrição de créditos laborais. Discriminação de
bens jurídicos. Inconstitucionalidade.

I – O prazo de prescrição dos créditos resultantes do contrato de trabalho


e da sua violação ou cessação previsto no nº I do artigo 38º do Regime Jurídico do
Contrato Individual de Trabalho aprovado pelo Decreto-Lei nº 49 408, de 24 de
Novembro de 1969 abrange o pedido de declaração de nulidade do despedimento.
II – A segurança no emprego traduz uma expressão directa do direito ao trabalho
constituindo a sua mais importante dimensão a proibição dos despedimentos sem
justa causa. O significado desta garantia apresenta-se como uma negação clara
do direito ao despedimento por parte das entidades patronais (e empregadores em
geral), os quais não gozam da liberdade de disposição sobre as relações de trabalho.
III – O direito ao trabalho, assegurado no artigo 59º da Constituição (artigo 51º nº
1 da versão originária) reconhece aos cidadãos na sua vertente essencial o acesso a
um posto de trabalho, constituindo o Estado numa verdadeira obrigação de actuar
no sentido de essa expectativa obter concretização material e configurando-se assim
como um direito positivo dos cidadãos perante o Estado. IV – A segurança no
emprego, consagrada no artigo 53º da Constituição (artigo 52º alínea b), da versão
originária) visa garantir antes de tudo o direito do trabalhador à manutenção do
seu posto de trabalho na exacta medida do enquadramento constitucional definido
na respectiva regra de proibição de despedimentos injustos, proibição que vincula
directamente as entidades públicas e privadas devendo o Estado para além de
uma acção de sentido negativo – não consentir despedimentos sem justa causa –
assegurar uma acção de conteúdo positivo – garantir a efectiva observância daquela
proibição. V – O estabelecimento, pela lei ordinária do prazo (aliás relativamente
dilatado) de um ano para ser exercido o direito de accionar a impugnação dos
despedimentos ilícitos não traduz supressão ou simples compressão daqueles
direitos ao trabalho e da segurança no emprego constitucionalmente consagrados.
VI – Aliás, não se confundindo o direito de acção (que visa assegurar a tutela
dos direitos subjectivos e tem como sujeito passivo o Estado) com a essência
substantiva destes mesmos direitos (cuja titularidade passiva é representada pela

636 1
O Acórdão em questão encontra-se publicado no todo ou em parte em vários lugares.
Vem publicado no Diário da República II série, nº. 178, de 5 de Agosto de 1987; no
BMJ nº. 367, pp. 203 e segs e sumariado em http://www.dgsi.pt/. Anotação escrita
em 2002.
412 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

entidade patronal) a fixação de um prazo para o exercício do direito de impugnação


do despedimento não incide sobre a própria relação de trabalho, visando antes,
atendendo a exigências de certeza e segurança jurídicas, permitir uma solução do
conflito num prazo que não é exíguo e de cuja duração não resultam manifestas
e efectivas limitações ao direito tutelado. VII – Assim, não é inconstitucional a
norma do artigo 38º nº 1 do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho
aprovado pelo Decreto-Lei nº 49 408.

ANOTAÇÃO
§ 1º
Nota evolutiva

I - As Ordenações do Reino. Embora seja lugar comum a


afirmação segundo a qual o Direito do Trabalho é de construção recente,
as Ordenações do Reino incluíram várias disposições, de natureza
obrigacional, reguladoras das relações de serviço entre o amo ou o senhor
e o criado ou o lacaio. Os Títulos XXIX e segs do Livro IV das Ordenações
Filipinas ocuparam-se particularmente do trabalho doméstico, o que
explica, eventualmente, a circunstância de a matéria ter sido retomada no
Código Civil de 1867.
Os domínios regulados foram os seguintes: Do criado que vive com o
senhor a bemfazer, e como se lhe pagará o serviço (Tit. XXIX, Liv. IV); Do criado
que vivendo a bem fazer, se põe com outrem, e do que o recolhe (Tit. XXX, Liv.
IV); Como se pagarão os serviços e soldadas dos criados, que não entram a partido
certo (Tit. XXXI, Liv. IV); Que não se possa pedir soldada ou serviço passados
três anos (Tit. XXXII, Liv. IV); Por que maneira se provarão os pagamentos dos
serviços e soldadas (Tit. XXXIII, Liv. IV); Do que lança de casa o criado que tem
por soldada (Tit. XXXIV, Liv. IV); Do que demanda ao criado o dano que lhe fez
(Tit. XXXV, Liv. IV).
A prescrição dos créditos decorrentes dessas relações era, pois, uma
das matérias disciplinadas pelas Ordenações no Titulo XXXII do Livro IV,
sob a epígrafe Que se não possa pedir soldada ou serviço passados três anos.
Nos termos desta disposição, “os homens ou mulheres que morarem
com senhores, ou amos a bemfazer, ou por soldada ou jornal, ou por qualquer
convença, se depois que se deles saírem, passarem três anos, e seus senhores e amos
estiverem sempre nesses lugares, onde se deles serviram, sem se deles partirem, e
os tais servidores e criados os não demandarem nos ditos três anos por seu serviço;
não os poderão mais os demandar, nem serão a isso recebidos, nem seus amos mais
obrigados a lhes pagar. Porém, aos menores de vinte e cinco anos começarão a
correr os ditos três anos, tanto que chegarem à dita idade de vinte e cinco”.
e outros escritos jurídicos 413

O regime em causa foi herdado das Ordenações Manuelinas637, mas


não conservado inteiramente nas Filipinas, pois, ao que parece, prestou-
se a situações de fraude. Muitos criados ou lacaios, aproveitando-se do
facto de os seus amos e senhores nunca lhes exigir quitação, vinham mais
tarde reclamar salários e soldadas já pagos, àqueles ou a seus herdeiros.
Para fazer face a estas fraudes as Ordenações Filipinas vieram estabelecer
que “todo o lacaio ou criado que estiver com amo aos meses... não possa pedir
soldada de algum mês que haja servido, passados três meses depois de saírem de
casa dos seus amos””. Como consequência, a prescrição de três anos foi,
pois, reduzida para três meses, tratando-se de contrato celebrado por um
mês. Mas esta não foi a única alteração trazida pelas Ordenações Filipinas.
Quando a ração fosse paga em “dinheiro seco”o lacaio ou criado não
podia exigir o seu pagamento senão até dez dias a contar da data em que
cessaram o serviço, sob pena de se presumirem “pagos e satisfeitos”. Ao
lado da prescrição de três anos, passou assim a haver uma prescrição de três
meses, para os contratos celebrados até um mês e uma prescrição de dez dias,
para os créditos relativos a ração paga a “dinheiro seco”.
As alterações trazidas pelas Ordenações Filipinas foram, pois, no
sentido da redução do prazo legal da prescrição e o seu objectivo teve em
vista proteger o amo ou senhor, desonerando-o, tão breve quanto possível,
das suas obrigações para com o serviçal ou lacaio638.

II – O Código Civil de 1867. A matéria da prescrição dos


créditos laborais foi retomada pelo Código Civil de 1867 em termos que
permitem crer ter sido fortemente influenciada pelo regime jurídico das
Ordenações639. Assim, nos termos do artº. 538º do CC de 1867, prescreviam

637 Cf. Tit. XX, Liv. IV da Ordenações Manuelinas. No que respeita ao início da prescri-
ção, estas Ordenações apresentavam uma particularidade curiosa relativamente aos
créditos a soldadas devidas a menor. O prazo de prescrição não se iniciava nem corria
enquanto não atingisse a maioridade (vinte e cinco anos).
638 A prescrição no regime jurídico das Ordenações interessou aos praxistas portugueses.
Cf. Ordenações Filipinas, Livros IV e V, FCG, notas aos Tit. XXIX e segs e as referências
ali citadas. Cf. ainda Coelho da ROCHA, Instituições de Direito Civil Portuguez, sexta
edição, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1886, pp. 357 e segs; Adriano Paes da
Silva VAZ SERRA, Prescrição e Caducidade, in BMJ nº. 105-106, pp. 82 nota 625.
639 Ver, neste sentido, José DIAS FERREIRA, in Código Civil português, Anotado, segunda
edição, vol. III, Coimbra 1902, pp. 48, anotação do artº. 1387º. Para obviar os inconve-
nientes relacionados com as dificuldades de prova nas acções por soldadas dos cria-
dos, esta disposição veio estabelecer como meio de prova o juramento do amo. Dias
FERREIRA lamentou que esta mesma solução não tivesse sido adoptada também no
serviço salariado, onde igualmente não é prática exigir recibos, à semelhança do que
acontece com o Código Civil francês e encontrava-se prevista no projecto do Código
414 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

no prazo de seis meses “os vencimentos dos trabalhadores e de quaisquer oficiais


mecânicos, que trabalhem de jornal640” e bem assim “as soldadas dos criados que
servem por mês”. Do mesmo modo, nos termos do artº. 539º deste Código,
prescreviam no prazo de um ano “as soldadas dos criados que servem por um
ano” - 5º, iniciando a correr desde o dia em que o criado sai da casa do
amo (7º § 3º). Este regime era retomado por remissão, pelo § único do artº.
1387º do mesmo Código.
O Código Civil de 1867 regulava igualmente a prescrição dos
créditos do amo por perdas e danos os quais não podiam ser exigidos
“senão durante um mês depois da sua despedida ou do termo do contrato” – artº.
1388º § único.
Este diploma retomou, pois, duas das três modalidades de
prescrição acolhidas pelas Ordenações Filipinas: a prescrição de três anos
que reduziu para um ano e a prescrição de três meses, agora alargada
para seis meses, abandonando a prescrição de 10 dias.
Esta concepção do regime jurídico dos créditos laborais tinha na sua
base a compreensão da actividade laboral como aluguer de serviços641.

III - Regime actual. Hoje, o artº. 38º do Regime Jurídico do Contrato


Individual de Trabalho, aprovado pelo Decreto-lei nº. 49 408, de 24 de
Novembro de 1969, sob a epígrafe Prescrição e regime de provas dos créditos
resultantes do contrato de trabalho, estabelece:

“1. Todos os créditos resultantes do contrato de trabalho e da sua violação ou


cessação, quer pertencentes à entidade patronal, quer pertencentes ao trabalhador,
extinguem-se por prescrição, decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele
em que cessou o contrato de trabalho, sem prejuízo do disposto na lei geral
acerca dos créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais.

2. Os créditos resultantes de indemnização por falta de férias, pela


aplicação de sanções abusivas ou pela realização de trabalho extraordinário,
vencidos há mais de cinco anos, só podem, todavia, ser provados por documento
idóneo”.

Civil espanhol – anotação citada.


640 Este era, igualmente, o regime fixado no artº. 2271º do Código Civil francês. Para um
comentário a esta disposição, cfr. M. TROPLONG, in Commentaire sur la Prescription,
Bruxelas, 1843, nº 972 e segs.
641 O termo aluguer era, aliás, corrente na doutrina e esteve na base da justificação do re-
gime da prescrição adoptado pelo Código Civil francês, como assinala DURANTON,
cit. por TROPLONG, Commentaires..., pp. 532, nota 4.
e outros escritos jurídicos 415

A constitucionalidade desta disposição já foi mais do que uma vez


suscitada e apreciada, em primeiro lugar pelo acórdão em comentário
e, ao que saibamos, pelo acórdão do Tribunal Constitucional de 26 de
Janeiro de 1994642.
Por créditos laborais deve entender-se o conjunto das prestações
devidas reciprocamente pelos sujeitos jurídico-laborais. São, pois,
prestações devidas pelo empregador ao trabalhador ou por este ao
empregador. Integra, assim, a noção de crédito laboral, do ponto
de vista do trabalhador, a retribuição, no seu sentido mais amplo; as
prestações devidas pelo empregador ao trabalhador pela prestação de
horas extraordinárias; a indemnização devida por férias não gozadas; os
subsídios de turno, as compensações devidas por isenção de horário; a
indemnização devida por despedimento sem justa causa ou a indemnização
acordada por cessação do contrato de trabalho por mútuo acordo, toda e
qualquer atribuição financeira ou patrimonial e toda e qualquer prestação
de dare ou de facere devida pelo empregador ao trabalhador.
O STJ considerou ainda como integrando a noção de crédito
para efeitos de aplicação do regime de prescrição dos créditos laborais,
a reintegração pedida pelo trabalhador em acção de impugnação de
despedimento,643 objecto do acórdão em comentário.

642 É o seguinte o sumário deste acórdão: – I - O princípio constitucional da igualdade, en-


tendido como proibição do arbítrio e limite objectivo à discricionariedade legislativa,
não veda ao legislador a realização de distinções e a consagração de regimes diferentes
quando diversas forem as situações a regular, apenas proibindo a adopção de medidas
que estabeleçam distinções discriminatórias, desigualdades de tratamento material-
mente infundadas, desprovidas de fundamento razoável e sem qualquer justificação
objectiva e racional. II – A disciplina constante do nº 1 do artigo 38º do Regime Jurídico
do Contrato Individual de Trabalho, ao possibilitar ao trabalhador a exigência dos seus
créditos no prazo de um ano contado da cessação do contrato de trabalho – obviando
ao natural efeito dissuasor durante a manutenção do vínculo laboral – está em conso-
nância com a especificidade das relações de trabalho subordinado, visando a defesa
do interesse dos trabalhadores dependentes. III – A interpretação daquele preceito, em
termos de se considerarem abrangidas as próprias acções que visem a declaração de
nulidade ou ilicitude do despedimento – qualificando o prazo para as interpor como
de prescrição e não de caducidade – não viola o direito de acesso aos tribunais, já que
tal prazo não se revela desadequado e desproporcionado, de modo a dificultar grave-
mente o exercício do direito, e tem na sua base razões de certeza e segurança jurídicas.
In Bol. do Min. da Just., 433, 168.
643 Cf. Ac. do STJ de 15 de Novembro de 2000, Acs. Dout. do STA, 475, 1067. A conclu-
são afigura-se-nos acertada se tomarmos a noção de crédito como qualquer prestação
devida: de dare ou de facere. É, aliás, neste sentido que António Joaquim LOPES DA
SILVA se referia ao credor como “aquele que tem direito a uma determinada coisa ou
quantia ou à prestação de algum facto ou serviço” – in Repertório Jurídico, vol. 4, Coim-
bra, 1888, pp. 92.
416 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Em contrapartida, integra a noção de crédito laboral, do ponto


de vista do empregador, as indemnizações devidas pelo trabalhador
por prejuízos causados à pessoa ou à fazenda do empregador; pelo
incumprimento do contrato de trabalho; toda e qualquer atribuição
financeira ou patrimonial e toda e qualquer prestação de dare ou de facere
devida pelo trabalhador, nesta qualidade, ao empregador.
Deve ainda considerar-se como integrando a noção de crédito,
para efeitos de aplicação do regime de prescrição dos créditos laborais,
a indemnização devida, seja pelo empregador, seja pelo trabalhador,
por violação da boa fé contratual, maxime nas situações de culpa na
formação do contrato de trabalho644. A densificação do conceito de boa fé,
que na doutrina civilista lusófona encontrou a sua grande expressão em
MENEZES CORDEIRO645, aponta para o reconhecimento deste ponto de
vista. Não se pode, todavia, concluir, da ligação que estabelecemos entre
a responsabilidade daí decorrente e o regime de prescrição dos créditos
resultantes de um contrato de trabalho, por nenhuma aproximação
às construções contratualistas na matéria da culpa in contrahendo. Na

644 Uma situação a considerar será a seguinte: A, trabalhador, presta a sua actividade por
tempo indeterminado a B, empregador, a quem já não satisfaz o trabalho de A. Acorda
com C, também empregador, no sentido de este propor a A melhores condições de
trabalho, aliciando-o a mudar para a sua empresa. A aceita, mas, antes de concluído o
período experimental, C prescinde dos seus serviços, invocando o nº. 4 do artº. 89º que
permite a qualquer das partes denunciar o contrato, durante o período experimental,
sem invocação do motivo nem aviso prévio. Nesta situação C nunca quis contratar A,
mas sim ajudar B a despedi-lo. Não há boa fé no comportamento de C, que não poderá
alegar, procedentemente, que a desvinculação durante o período experimental não dá
lugar a qualquer indemnização. Efectivamente assim é, mas na situação concreta não
opera a disposição que regula o período experimental, mas sim aquela que sanciona a
culpa na formação do contrato (cf. artº. 217º do CC). Esta situação suscita o problema
da repartição das responsabilidades entre o primeiro e o segundo empregador relati-
vamente ao trabalhador. Serão ambos responsáveis ou a responsabilidade recai uni-
camente sobre a pessoa do segundo empregador? Este é, naturalmente, responsável a
título de culpa na formação do contrato, mas não se pode esquecer que foi o primeiro
empregador que aliciou o segundo empregador, a propor ao trabalhador melhores
condições de contrato. Aliciou, pois, ao trabalhador a despedir-se. Esta conduta en-
volve responsabilidade, pelo que afigura-se-nos plausível responsabilizar o primeiro
empregador, solidariamente, com o segundo empregador na reparação devida ao tra-
balhador. Deve, todavia, notar-se que o princípio da culpa na formação do contrato
não visa apenas a protecção do trabalhador. Em 1964, o Bundesarbeitsgerichts (BAG)
julgou um caso de culpa na formação do contrato a favor do empregador por violação
das regras da boa fé da parte do trabalhador. Sobre este caso, cf. MENEZES CORDEI-
RO, in Tratado..., pp. 338.
645 Cf. o seu estudo Da Boa fé..., pp. 528 e segs e retomado em Tratado..., pp. 331 e segs.
e outros escritos jurídicos 417

realidade, comungamos das críticas dirigidas a esta tese646 e aderimos, sem


reservas, à posição que funda a responsabilidade pré-contratual na lei. O
fundamento último desta espécie de responsabilidade está na dignidade
da pessoa humana que tem como corolário necessário a ideia de pessoa
em responsabilidade, pelas suas acções ou omissões, independentemente
de vinculações contratuais647. O personalismo ético impõe a toda a pessoa
uma actuação responsável648, maxime quando essa actuação possa interferir
com direitos, interesses e expectativas de outras pessoas com quem o
sujeito se relaciona.
Há, todavia, uma subordinação de todo o período pré-contratual
ao tipo de contrato que as partes pretendiam celebrar. Esta circunstância
pré-ordena o comportamento humano para alcançar aquele resultado.
Esta especial intencionalidade obriga a não vincular a pessoa para além
dos limites dessa mesma intencionalidade. Parece assim justificável
semelhante subordinação da responsabilidade pré-contratual ao modelo
contratual que as partes tinham em vista celebrar649, o que se repercute em
todo o seu regime jurídico, sem excluir o regime de prescrição a que os
direitos decorrentes desse tipo contratual estão sujeitos.
O crédito jurídico-laboral pode assim decorrer de lei, acto ou
contrato.

IV - Algumas situações próximas da relação jurídico-laboral não


se confundem com o crédito jurídico-laboral para efeitos de aplicação do
seu regime. Assim, não integra a noção de crédito laboral a indemnização
devida por acidente de trabalho; a pensão de reforma antecipada, devida
ao trabalhador650; as pensões de sobrevivência; o subsídio de luto, o

646 Cf. MENEZES CORDEIRO, Tratado..., pp. 334 e segs.


647 Estranha-se, pois, a conclusão de Dário MOURA VICENTE no reconhecimento de que
não é possível uma resposta unívoca, válida urbi et orbi, sobre os fundamentos da res-
ponsabilidade pré-contratual – In Da responsabilidade Pré-contratual..., pp. 347.
648 Cf. LARENZ/WOLF, apud MENEZES CORDEIRO, Tratado…, pp. 155 e segs;
649 Dário MOURA VICENTE, parece defender o mesmo ponto de vista. Embora considere
inviável e algo injustificável aplicar, nas situações de conflito de leis, a lei do lugar
onde o trabalhador exerce habitualmente o seu trabalho, em matéria de responsabi-
lidade pré-contratual, admite, todavia, a aplicabilidade da lei que resulta da concre-
tização de uma cláusula de excepção quando o conjunto das circunstâncias permite
concluir que o contrato de trabalho apresenta conexão mais estreita com outro país
– in Da responsabilidade pré-contratual em Direito Internacional Privado..., pp. 480. Sobre a
cláusula de excepção e sobre a lei aplicável ao contrato de trabalho, cf. ainda Geraldo
ALMEIDA, Convenção de Roma ..., pp. 47 e segs e 58 e segs.
650 Assim julgou o STJ no seu acórdão de 26 de Abril de 1999, cf. Col. Jur., 1999, 2, pp.
418 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

subsídio de funeral e outras prestações que não se fundam no contrato


individual de trabalho.

§ 2º
Constitucionalidade do Regime

V – Legislação comparada. As legislações não apresentam


uniformidade no que respeita ao regime de prescrição dos créditos
laborais. Em França, a Lei nº 71-586, de 16 de Julho de 1971 fixou o
prazo de prescrição em 5 anos. Em Itália vigoram dois regimes sobre
esta matéria: um regime de prescrição presuntiva breve, de 1 e 3 anos,
aplicável às retribuições correspondentes a períodos não superiores ao
mês e um regime de prescrição extintiva, de 15 anos, aplicável aos créditos
emergentes da cessação do contrato de trabalho.
Cabo Verde tem também duas disposições sobre esta matéria, uma
que regula a prescrição dos créditos pertencentes ao trabalhador (artº. 56-
A, do Regime Jurídico Geral das Relações de Trabalho, aprovado pelo
Decreto-Lei nº. 62/87, de 30 de Junho, disposição, aliás, aditada pelo
Decreto–Lei nº. 51-A/89, de 26 de Junho) e outra que regula a prescrição
dos créditos do empregador (artº. 59º). Em qualquer dos dois casos,
quer os créditos do trabalhador, quer os do empregador, prescrevem no
prazo de um ano, mas, tratando-se de créditos resultantes do contrato
de trabalho, da sua violação ou cessação, este prazo conta-se a partir da
data da cessação do contrato de trabalho, ao passo que no que respeita
aos créditos da entidade empregadora, conta-se a partir da data em que
o crédito se constituiu. Os créditos relativos a férias ou ao exercício de
trabalho extraordinário estes prescrevem no prazo de três anos, a contar
da data do seu vencimento.
Em Angola este prazo é de seis meses (artº. 165º da Lei Geral do
Trabalho).
O Brasil tem nesta matéria uma posição singular, na medida em
que conferiu à prescrição dos créditos laboristas dignidade constitucional.
Nos termos do artº. 7º inciso XXXIX, conforme Emenda Constitucional nº.
28, de 25/5/2000651, prescrevem no prazo de cinco anos as acções quanto
a créditos resultantes das relações de trabalho, para os trabalhadores
urbanos e rurais, até ao limite de dois anos após a extinção do contrato
de trabalho.

268.
651 Para uma crítica desta disposição, cfr. Arnaldo SÜSSEKIND, in Direito Constitucional
do Trabalho..., pp. 307-308.
e outros escritos jurídicos 419

Dos textos consultados resulta que os prazos de prescrição dos


créditos decorrentes das relações de trabalho variam, portanto, de 6
meses a 15 anos, o que nos leva a supor que o mesmo é fixado de um
modo perfeitamente aleatório, carecendo, portanto, de uma orientação
valorativa de política legislativa.

VI - Estas divergências assinaláveis entre as legislações permitem


colocar a questão de saber por que critérios se há-de orientar-se o legislador
na conformação dos regimes de prescrição dos créditos do trabalho. Na
verdade, afigura-se-nos pouco compreensível, mesmo no plano da sua
conformidade com a Constituição, a posição de leis como a portuguesa
quanto a duas ordens de problemas: a primeira diz respeito à igualdade de
tratamento entre os créditos do trabalhador e os créditos do empregador;
a segunda quanto ao estabelecimento do prazo legal decorrido o qual
ocorre a prescrição.
Sendo as prestações do trabalhador e do empregador de natureza
diversa – o trabalhador está vinculado a prestar uma actividade de
natureza pessoal, logo, intransmissível, por isso, intuito personae, ao passo
que o empregador está vinculado a pagar-lhe uma retribuição, logo,
fungível – não parece compreensível que a lei valore do mesmo modo
uma e outra e sujeite ao mesmo regime os créditos daí decorrentes. Esta
objecção já havia sido suscitada por A. MONTEIRO FERNANDES, que
manifestou desconfiança face a esta perspectiva igualitária por não lhe
parece socialmente fundada652.
Cremos que estas anomalias se prendem com um certo desnorte do
Direito do Trabalho que, por um lado, ainda se debate com a necessidade
de consolidação de perspectivas dogmáticas que confiram ao legislador
uma óptica valorativa tal que lhe permitam alcançar um grau óptimo
de coerência interna da legislação laboral e, por outro, com os conflitos
laborais e alterações conjunturais de variáveis económicas ou mesmo
metas de desenvolvimento que obrigam a acomodações permanentes
que, aparentemente, não se compadecem com uma política legislativa
fundada em bases valorativas.
A constitucionalidade do artº. 38º da LCT e bem assim os
Acórdãos do Tribunal Constitucional que reconheceram essa mesma
constitucionalidade suscitam-nos algumas reservas, não em razão dos
fundamentos invocados, mas em virtude de fundamentos que, do nosso
ponto de vista, não foram tomados em consideração na apreciação
dessa mesma constitucionalidade. Estes fundamentos permitiriam uma
abordagem diversa daquela que justificou a decisão da constitucionalidade
do referido artigo.

652 In Direito do Trabalho..., pp. 462.


420 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Vejamos porquê.

VII – Fundamentos. Todo o direito está assente numa base


personalista. Podemos afirmar, sem medo de errar, que a pessoa humana,
na sua plena dimensão, constitui o eixo em torno do qual gravitam todas
as soluções e recursos do sistema jurídico. E não se notam significativas
antinomias entre os mais diversos ramos de direito quando concorrem para
apreender a pessoa humana como realidade ontológica. A demonstração
desta afirmação levar-nos-ia muito longe, tão vasta é a amplitude e tão
complexos são os vínculos e subordinações que suscita. Por ora, basta a
consideração de que o percurso com vista à verificação e demonstração
dessa coerência poderá ser feito partindo do núcleo para a periferia ou vice-
versa. Qualquer que seja o ângulo visual do intérprete e, por conseguinte,
qualquer que seja o ponto de partida, essa coerência revela-se-nos com toda
a sua plenitude. Ela descobre-se ou tem incidência em aspectos formais,
tais como lugares sistemáticos, enunciados linguísticos, conteúdos mínimos
ou obrigatórios, mas também em aspectos materiais ou de substância. A
pessoa humana interfere, pois, com princípios jurídicos; com as regras de
competência, seja dos órgãos da soberania, seja dos demais órgãos e serviços;
compromete a natureza de normas; legitima uma tipologia de sanções;
força um determinado regime de responsabilidade; justifica um sistema
de vigilância e protecção e, correlativamente, mecanismos de compensação;
condiciona a valoração de actos jurídicos e fundamenta um modelo de
justiça. Em todos estes momentos o sistema obriga, coerentemente, seja
no direito público como no direito privado; seja no direito substantivo como no
direito processual, a colocar a pessoa humana em lugar primeiro e central.
À pessoa humana destina os mais importantes recursos do sistema, para
a valorizar, no sentido mais preciso do termo, proteger e responsabilizar.
Fala-se, a este propósito, de uma concepção personalista, como fundamento
dos direitos da família romano-germânica.
A Constituição da República, enquanto Lei Fundamental, é o corpo
de normas que dá o mote necessário e pré-ordena todo o sistema jurídico
com o propósito de alcançar este objectivo. Para além da disciplina que
ela própria estabelece, fixando nesta matéria princípios e regras imutáveis,
refina normas antigas, impõe ou condiciona normas novas e vigia
permanentemente todas as vicissitudes do sistema. A pessoa humana é
assim erigida em centro polarizador de direitos, deveres, ónus e sujeições
jurídicas, mas também em elemento condicionador de opções de política
legislativa.
e outros escritos jurídicos 421

VIII - É partindo dessa base valorativa que a disciplina da prescrição


dos créditos laborais tem que ser estribada.
A ordem jurídica portuguesa concebe a prescrição como um
instituto de natureza eminentemente substantiva. Mesmo quanto esta
opera nos interstícios do processo a prescrição não perde essa natureza. Os
elementos que permitem optar pela natureza substantiva da prescrição são:
o estabelecimento da prescritibilidade ou imprescritibilidade consoante a
natureza do direito em causa; a variação dos prazos de prescrição em razão
das características de cada direito; a extinção dos direitos pela actuação
da prescrição; a constatação oficiosa dessa actuação; a subordinação do
regime da prescrição ao regime do direito a que a mesma respeita (artº.
40º)653.
Cremos que esta constatação permite uma compreensão clara dos
fundamentos da prescrição e, consequentemente, das actuações de política
legislativa nesta matéria.
A força da unidade sistemática do ordenamento jurídico obriga
a determinadas actuações do legislador. Fixados os princípios, ou
descobrindo-os nos interstícios das normas pelos processos de abstracção,
eles passam a vincular o próprio legislador que, na sua actividade
legiferante, deve tomá-los em consideração, sob pena de adoptar
normas refractárias ao sistema jurídico. A actuação legislativa não é,
pois, inteiramente livre, pois, encontra constrangimentos que brotam do
próprio sistema.
A prescrição traduz-se na extinção de um direito pelo seu não
exercício pelo titular do mesmo direito, durante um certo lapso de tempo.
A fixação deste tempo é tarefa do legislador, mas não pode ser uma tarefa
arbitrária. A valoração das situações e a natureza dos direitos em presença
constituem elementos a ter necessariamente em conta pelo legislador
na definição desse mesmo prazo. E note-se que a prescrição é daqueles
institutos que espelha com fidelidade esta dimensão valorativa. A sua
disciplina tende a exprimir uma relação directamente proporcional entre
a natureza do bem jurídico protegido e a possibilidade ou não da sua
extinção pelo decurso de tempo, por um lado, e o prazo dentro do qual
essa extinção pode ocorrer, por outro.
Há certos direitos que são indisponíveis, pela sua natureza. De
entre eles contam-se os direitos da personalidade. Essa indisponibilidade
importa como consequência necessária a sua imprescritibilidade, pois, se
o sujeito do direito não pode dispor dele ou renunciá-lo, do mesmo modo

653 11
Andou, pois, bem o Acórdão da RC de 25 de Junho de 1998 na caracterização que fez
do prazo de prescrição a que alude o artº. 38ª da LCT – in Col. Jur., III, pp. 72.
422 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

este não poderá extinguir-se pelo decurso do tempo. Esta consequência foi
retirada ao nível do trabalho intelectual mercê da ligação intrínseca entre
a obra e a personalidade do autor. A lei toma esta ligação por imutável.
Por isso, liga-lhe a característica da imprescritibilidade.
O trabalho intelectual (reportando-se a actividade) ou obra
intelectual ou propriedade intelectual (reportando-se a resultado) contém
a essência trabalho humano. É esta essência que deve ser alargada na
busca de perspectivas valorativas. Não se trata, claro está, de reconduzir
todo o trabalho humano à obra intelectual, pois, nem todo o trabalho
preenche, enquanto tal, os requisitos de protegibilidade, próprios da obra
literária ou artística ou da propriedade industrial654. Neste sentido, o
resultado do trabalho, mesmo subordinado, só é protegido enquanto obra
intelectual, se exprimir uma relação intrínseca e inextrincável entre a obra
e o seu autor. Todavia, se é certo que nem todo o trabalho representa,
neste sentido, obra intelectual, não é menos certo que todo o trabalho
exprime uma ligação com a pessoa que o realiza655 e é esta ligação impõe
um Direito do Trabalho, com autonomia relativamente aos demais ramos
do direito, e, consequentemente, uma dogmática própria do Direito do
Trabalho.
A consequência deste ponto de vista ao nível da disciplina legal
da prescrição dos créditos laborais, não implica, claro está, a adopção
de um regime de imprescritibilidade dos direitos daí decorrentes, pelas
razões já aduzidas, mas parece brigar frontalmente com dois aspectos
já referidos e que se encontram no centro das decisões comentadas: o

654 A protecção de uma obra, como obra intelectual, assenta nos requisitos de mérito e
originalidade. Pressupõe, pois, criação, sem a qual não se estabelece a paternidade sobre
a obra.
655 Emanuel MOUNIER, in Le personnalismo, PUF, 1949, pp. 100 refere-se a esta ideia nos
seguintes termos: “Sob o ângulo do agir a acção não visa principalmente edificar uma
obra exterior, mas formar o agente, sua habilidade, sua virtude, sua unidade pessoal.
Esta zona de acção ética tem o seu fim e a sua medida na autenticidade, nota fortemen-
te influenciada pelos pensadores existencialistas”. Sobre o trabalho como realização
pessoal, ver, também, Leite de CAMPOS, Lições de Direitos da Personalidade..., pp. 106.
LANGOIS diz a este respeito: “Há um modo particularmente humano de se relacionar
a pessoa com as coisas, e de actuar sobre elas imprimindo-lhe a universalidade do seu
espírito. O trabalho – todo o trabalho na sua dimensão de «arte» por assim dizer – ex-
prime a personalidade num objecto exterior” – In Doutrina Social..., pp. 196. Todavia,
a doutrina jurídica distinguiu, correctamente, a impressão espiritual que correspon-
da a criações do espírito e aquelas que não correspondem a criações do espírito. As
primeiras, regulou-as pelo Direito de Autor ou Direito da Propriedade Industrial; as
segundas, regulou-as pelo Direito do Trabalho, sem deixar de, através deste ramo do
direito, retirar as consequências necessárias da criação espiritual ocorrida no quadro
de uma relação de trabalho, maxime relação de trabalho subordinado.
e outros escritos jurídicos 423

estabelecimento de uma equivalência de regimes entre a prescrição dos


créditos do trabalhador e créditos da entidade patronal, por um lado, e o
estabelecimento de um prazo de prescrição exageradamente curto.
O legislador trata com inimizade e até com alguma discriminação
o crédito do trabalhador, face a outros créditos de diversa e até inferior
natureza. Não se compreende, por exemplo, que a prescrição de um
crédito decorrente do fornecimento de um bem tenha melhor tratamento
legal que o crédito decorrente do trabalho humano incorporado nesse
mesmo bem.
Afigura-se-nos que esta discriminação não é consentida pela
Constituição.
A solução que nos parece correcta nesta matéria foi a tomada no
acórdão do STA de 22 de Outubro de 1991. Neste acórdão discutiu-se a
questão da prescritibilidade de vencimentos, tendo o tribunal rejeitado
o ponto de vista da Administração Pública que, sustentando a natureza
periódicas destas prestações, pretendia ver-lhes aplicada a al. g) do artº.
310º do CC que estabelece para as prestações renováveis um prazo
prescricional de cinco anos. O Tribunal considerou que estas prestações
não são renováveis e que o seu prazo de prescrição é o ordinário – 20
anos656.
Cremos que as razões aduzidas teriam permitido ao Tribunal
Constitucional uma compreensão diversa da problemática da prescrição dos
créditos laborais e concluído, eventualmente, pela inconstitucionalidade
do artº. 38º da LCT. A solução actual, cuja raiz histórica, se encontra na
concepção das relações de trabalho como aluguer de serviços, não se nos
afigura compatível com as novas perspectivas dogmáticas do Direito do
Trabalho.
Terminamos, por ora, citando TURGOT:
“Deus ao dar ao homem necessidades, ao obrigá-lo a recorrer ao seu trabalho,
transformou o fruto do trabalho propriedade desse homem, e essa propriedade é a
primeira, a mais sagrada e a mais imprescritível de todas”.

São estas as nossas considerações, sem prejuízo de melhor


investigação da matéria.

656 BMJ nº 410, pp. 516.


424 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO
e outros escritos jurídicos 425

4. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL PORTUGUÊS Nº


224/98(*)

Sumário:
Despedimento de mulher grávida. Inconstitucio-
nalidade.

ANOTAÇÃO

1. É uma tradição universal a legislação laboral de cada país conter


disposições que regulam especificamente o trabalho de mulheres. Uma
característica comum a tais diplomas é a de colocar a mulher numa
situação de protecção não reconhecida aos demais trabalhadores.
Tem-se, a este propósito, questionado dois aspectos: por um lado,
se será justificável conferir à mulher uma especial protecção no trabalho e,
por outro, em caso afirmativo, quais os limites dessa protecção.
Os estudos de política legislativa não são unânimes sobre semelhante
matéria. Segundo uma concepção dominante nos países nórdicos, uma
protecção especial às mulheres, que não se baseie em razões de ordem
estritamente biológicas, envolveria uma verdadeira discriminação, pois,
não só não garante a igualdade de oportunidades em matéria de emprego,
como promove a existência de formas estereotipadas de repartição do
trabalho. Por isso, as legislações dessa região são hoje marcadas por uma
ausência quase completa de disposições que assegurem uma protecção
especial às mulheres que não se funde em razões estritamente biológicas.
Os argumentos avançados contra essa discriminação positiva são
os seguintes:
- a protecção é contrária ao princípio da igualdade, que obriga que
cada um, homem ou mulher, seja tratado como pessoa, seja qual for o seu
sexo;
- a protecção salda-se num prejuízo financeiro para cada mulher
em particular e para todas as mulheres em geral, pois, lhes reduz a
possibilidade de obtenção de emprego, acentua a segregação em função
do sexo no mercado de trabalho e aumenta o trabalho dos homens;
- a protecção favorece o pleno emprego dos homens e a ascendência
destes sobre a mulher .
Assim, os países nórdicos não restringem o acesso das mulheres
nem ao trabalho nocturno, nem fixam quaisquer restrições à duração do

* Anotação escrita em 2004. Texto recolhido em www.tribunalconstitucional.pt para onde


remetemos.
426 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

trabalho657. Não ratificaram nem a Convenção da OIT nº 3, de 1919658, nem


a Convenção nº 103, de 1952659, relativas à protecção da maternidade. Nesta
matéria, a Suécia contentou-se em ratificar a parte VIII da Convenção nº
102, de 1952660, relativa à segurança social, a qual trata das prestações de
maternidade durante a gravidez, e após o parto, consentindo apenas a
protecção no que respeita ao manuseamento de substâncias que importem
riscos para a saúde, não com fundamento na divisão tradicional de tarefas
entre os sexos, nem tão pouco nas suas diferenças físicas, mas por razões
de ordem biológica, pois algumas substâncias podem ser mais perigosas
para as mulheres do que para os homens.

2. Uma outra corrente entende que o regime de protecção do


trabalho de mulheres é inteiramente justificado, pois, existem diferenças
psicológicas e fisiológicas que, inequivocamente, o determinam.
São os seguintes os principais argumentos avançados a favor de
um regime de protecção:
- a protecção é necessária tendo em conta a divisão tradicional das
tarefas entre os sexos: se se permitisse à mulher exercer trabalho nocturno,
prestar horas suplementares, ou ocupar-se de tarefas perigosas, etc.,
ficaria sobrecarregada tendo ainda em consideração o seu papel de esposa
e mãe.
- a protecção impõe-se por razões de ordem biológica, ligadas, por
exemplo, à gravidez.
- a protecção permite salvaguardar outros interesses mais
importantes, como por exemplo, o bem-estar dos filhos e o emprego dos
homens.

Num notável artigo publicado na Revista Internacional do Trabalho,


A. P. Biryoukova entende que “é em razão das diferenças naturais entre
os sexos que se deve, por exemplo, o desenvolvimento inferior do sistema
muscular das mulheres. À idade de 20 anos, a força muscular de uma
mulher equivale a, mais ou menos, 65% da força muscular de um homem,

657 Cf., nomeadamente, a lei norueguesa - Act No. 4 of 4 February 1977 relating to Worker
Protection and Working Environment que, na verdade, limita o seu regime de protec-
ção unicamente aos aspectos de ordem biológica.
658 Sobre os países que ratificaram esta Convenção, consulte-se http://www.ilo.org/ilo-
lex/french/convdisp2.htm.
659 Cf. http://www.ilo.org/ilolex/french/convdisp2.htm
660 Sobre as ratificações a esta Convenção e bem assim a posição da Suécia, cf. http://
www.ilo.org/ilolex/french/convdisp2.htm.
e outros escritos jurídicos 427

para baixar para 54% à idade de 55 anos. O consumo de energia pelas


mulheres é de cerce de 85% do consumo dos homens. O consumo máximo
de oxigénio de um homem de 20 anos é, em média, de 4,1 litros por
minuto, contra 2,9 litros para uma mulher da mesma idade; a capacidade
pulmonar das mulheres é, por cada quilo do peso do corpo, inferior em
11% à capacidade dos homens, e a taxa de hemoglobina em 20%. Mas o
que distingue mais particularmente a mulher do homem é a diferença
quantitativa e qualitativa de seu equilíbrio hormonal.”
Em razão destas diferenças fisiológicas o organismo feminino não
responde da mesma forma que o organismo masculino aos factores que
integram o ambiente do trabalho. As mulheres reagem mais rapidamente
ao calor que os homens: o aumento de temperatura do ar e do esforço
físico tem como consequência uma acumulação mais rápida de calor no
organismo feminino. Muitos elementos nocivos do ambiente de trabalho
actuam indirectamente sobre as funções especificamente femininas,
desregrando outras funções do organismo. Para provocar complicações
no organismo feminino, tanto basta a concentração de uma reduzida
quantidade de substâncias perigosas. Por exemplo, que uma concentração
de 5mg de fenol por m3 não tem quaisquer efeitos sobre a saúde do homem,
mas pode alterar gravemente as funções menstruais e reprodutivas da
mulher. O barulho e as vibrações têm igualmente efeitos diversos sobre
os organismos masculino e feminino. Observações feitas sobre o pessoal
navegante das aeronaves demonstraram que, sob a influência do barulho
e das vibrações do voo, as hospedeiras sofrem, não raro, perturbações, ao
passo que o pessoal navegante masculino não é quase nunca afectado.
Estas razões ditariam uma especial conformação jurídica do
trabalho das mulheres.

2. O actual anteprojecto do Código do Trabalho Português estabelece


normas particulares sobre o trabalho de mulheres, parecendo inclinar-se
para uma posição moderada nesta matéria. Assim, além do princípio
geral da não discriminação entre os sexos, o anteprojecto estabelece,
nos termos do artº. 8º al. h) que, na fixação das condições de trabalho, o
contrato de trabalho e os instrumentos de regulamentação colectiva de
trabalho devem adoptar normas que garantam a protecção de mulheres
grávidas, puérperas e lactantes. Do mesmo modo, nos termos do artº. 50º
“o despedimento da trabalhadora grávida, puérpera ou lactante carece
sempre de parecer prévio da entidade que tenha competência na área da
igualdade de oportunidades entre homens e mulheres”, presumindo-
se sem justa causa o despedimento por facto imputável a trabalhadora
grávida, puérpera ou lactante, sempre que a entidade com competência
428 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

na área da igualdade emita parecer desfavorável. O despedimento de


trabalhadora grávida depende de parecer favorável da entidade com
competência na área de trabalho, sob pena de nulidade.
Pelo despedimento ilícito a mulher grávida, puérpera ou lactante
tem direito a optar pela reintegração ou por uma indemnização que se
calcula nos seguintes termos: não poderá, em caso algum, ser inferior a três
meses de retribuição de base e diuturnidades ou o equivalente a quinze
e quarenta e cinco dias de retribuição-base mais diuturnidades por cada
ano completo ou fracção de antiguidade. Caso haja razões para oposição
à reintegração, o que acontece se, por exemplo, a entidade empregadora
entender que a presença da trabalhadora, por exercer cargos de direcção ou
administração, é gravemente prejudicial e perturbador para a prossecução
da actividade empresarial, ou na falta destas circunstâncias, tratando-se
de micro-empresa (artº. 427º) a indemnização é calculada entre 30 e 60
dias por cada ano de trabalho (artº. 428º).

3. O actual Anteprojecto do Código Trabalho rompe, assim, com


a discriminação positiva a favor da trabalhadora grávida, puérpera ou
lactante em matéria de indemnização por despedimento. No Acórdão em
comentário, os argumentos do Tribunal Constitucional foram no sentido
de que a norma revogatória não contou com a necessária autorização
legislativa, sendo certo que a matéria dos direitos, liberdades e garantias
fundamentais é matéria da competência legislativa de reserva relativa da
Assembleia, pelo que o Governo só poderá legislar sobre ela precedendo
autorização da Assembleia da República. Numa decisão que nos
pareceu correcta considerou que a norma revogatória estava eivada de
inconstitucionalidade orgânica.
Todavia, o Tribunal Constitucional escusou-se de se ocupar do
problema suscitado de constitucionalidade material, problema este que
não ficará ultrapassado com a aprovação por Lei da actual Proposta
do Código do Trabalho. Na verdade, se como pretendia a autora, como
fundamento do seu pedido de declaração de inconstitucionalidade
da norma revogatória do artº 118º da LCT, “a Constituição, por um lado,
estabelece um direito das mulheres a uma protecção especial e adequada durante
a gravidez e após o parto, por outro, consagra uma imposição ao legislador no
sentido de ser criada uma disciplina que dê satisfação, nos diversos planos do
seu exercício, a esse direito”- sic, então deveria seguir-se que esta especial
vinculação do legislador, impunha-lhe o dever de conservar a norma
do artº. 118º ou de adoptar norma semelhante. Assim julgando, a actual
proposta do Código do Trabalho estaria ferida de inconstitucionalidade
material por violação do artigo 59º da CR.
e outros escritos jurídicos 429

Não cremos que assim seja. Sanado o vício da inconstitucionalidade


orgânica mediante a aprovação por lei da actual proposta do Código
do Trabalho, não se nos afigura que algum comando constitucional
imponha uma discriminação positiva a favor das mulheres em matéria
de indemnização por despedimento sem justa causa. Não cremos, sequer,
que a Constituição consinta semelhante discriminação positiva, de modo
a justificar uma eventual opção de política legislativa.
Também nesta matéria é notável uma certa maturidade do
Direito do Trabalho. Depois dos excessos cometidos tanto no sentido de
discriminações negativas, como no sentido de discriminações positivas,
parece ter chegado o momento da busca de equilíbrios em matéria da
disciplina do trabalho de mulheres. E, neste particular, são, muitas vezes,
as próprias mulheres a levantar o véu da rejeição de uma protecção
injustificada.
430 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO
e outros escritos jurídicos 431

5. SENTENÇAS DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA PRAIA


1.º JUIZO CÍVEL. DE 24 DE OUTUBRO DE 2005 E 23 DE MARÇO
DE 2006

Sumário:

Posse judicial avulsa. Conflito de títulos:


Título translativo da propriedade; Contrato de
arrendamento; Cessão da posição contratual;
Vício de forma; Inalegabilidade formal; Supressio-
surrectio

1ª DECISÃO

A CVC – CONSTRUÇÕES DE CABO VERDE, SARL, pessoa colectiva


matriculada na Conservatória do Registo Comercial da Praia sob o n.º 163/
900809, com sede em Achada Grande Frente, representada pelo presidente do
conselho da administração Dr. Rodrigo Vaz Guedes Croft Moura, veio intentar
contra
Britar Lda., representada pelos sócios gerentes Lourenço de Pina e Carlos
de Pina, com sede em Achada Grande Frente, Praia;
Lourenço de Pina, mais conhecido por Tatá, proprietários de camiões e
residente na subida de Terra Branca, Praia e,
Carlos de Pina, mais conhecido por Carlitos, comerciante e residente em
Palmarejo, (Rua Santiago) Praia
Uma acção de posse judicial avulsa, com processo especial, nos termos dos
artigos 1044.º e segs do CPC, pedindo que lhe fosse conferida a posse material de
um tracto de terreno ocupado pelos réus, com os fundamentos seguintes:
«1. A 1 de Agosto de 2001 a Autora adquiriu à Câmara Municipal da
Praia, mediante contrato de compra e venda (doc.1), um lote de terreno sito em
Achada Grande, com uma área global de 32.545,8m2, confrontando a Norte com
terrenos municipais aforrados, a Sul e Oeste com Encosta e a Este com Estrada
que dá acesso à Achada Grande Traz e com uma parcela de 1.650m2 aforada
ao Sr., António Sanches Ferreira pelo preço de 30.918.510$00 (trinta milhões,
novecentos e dezoito mil e quinhentos e dez escudos).
2. A autora pagou o Imposto sobre o Património devido pela compra
(doc.2).
3. Após a venda e o cumprimento das obrigações fiscais a Câmara Municipal
da Praia inscreveu o terreno adquirido em nome da autora (doc.3).
432 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

4. A autora registou na Conservatória dos Registos da Praia a compra do


referido terreno (doc.4)
5. Assim o prédio encontra-se inscrito na matriz predial e registado na
Conservatória em nome de Autora.
6. Sucede que a Autora não tem acesso a parte do terreno adquirido.
7. Efectivamente, dos 32.545.8m2 comprados à Câmara Municipal da
Praia, 13.750m2 (parte marcada a amarelo no doc. 5) estão na posse material dos
réus.
8. A Autora, apesar de ter a seu favor um título translativo de propriedade,
nunca tomou a posse material dessa parte do terreno cuja propriedade adquiriu,
porquanto,
9. A parte do terreno assinalada no doc. 5 a amarelo está a ser detida,
ocupada e utilizada pelos Réus.
10. Os Réus não têm qualquer título válido que lhes legitime essa
ocupação.
11. A Autora está impedida do uso e da fruição do prédio como
proprietária,
12. de obter os rendimentos da exploração do prédio,
13. e de ter acesso ao referido tracto de terreno.
14. Os Réus, não obstante o pedido da Autora, recusaram-se a proceder à
entrega do prédio.
15. Possuindo a Autora um titulo translativo de propriedade e o registo
definitivo do direito de propriedade sobre o prédio a favor dela, face à atitude
dos réus, não lhe restou, outra via senão o recurso a via judicial por não entrega
voluntária do prédio pelos Réus.
16. Dispõe o art. 1044º CPCivil que «aquele que tenha a seu favor um
titulo translativo do direito de propriedade pode requerer que lhe seja conferida a
posse ou entrega judicial da coisa».
17. A compra e venda é um contrato translativo da propriedade (art.874º.
º Cód. Civil);
18. O direito de propriedade transferiu-se para a Autora por mero efeito do
contrato, sendo esta a actual proprietária do prédio.
19. Nos termos do disposto da alínea a) do art. 879º do C. Civil, a
transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito é um dos efeitos
essenciais da compra e venda e opera automaticamente, por mero efeito do contrato
(art. 408º, n.º1 CC)».
Os réus contestaram o peticionado alegando a existência de um contrato de
arrendamento que legitima a ocupação, uso e fruição do tracto de terreno.
Juntaram documentos e arrolaram testemunhas, que foram inquiridas.
O tribunal é face ao pedido da requerente, absolutamente competente.
O processo não enferma de nulidades que o invalidem.
e outros escritos jurídicos 433

As partes dispõem de personalidade e da capacidade judiciárias e são


legítimas, pois que são os detentores de facto do tracto de terreno cuja posse
material lhes é exigida pela autora (artigo 1045º do Código de Processo Civil).
Não há qualquer outra excepção ou questão prévia de que cumpra
conhecer.
Resulta da prova acolhida o seguinte:
Em 01 de Agosto de 2001 a Autora comprou à Câmara Municipal da Praia
um lote de terreno, sito em Achada Grande, com uma área global de 32.545,8m2,
confrontando a Norte com terrenos municipais aforados, a Sul e Oeste com Encosta
e a Este com entrada que dá acesso à Achada Grande Trás e com uma parcela de
1.650m2 aforada ao Sr. António Sanches Ferreira, pelo preço de 30.918.510$00
(Doc.de fls. 05 a 08 dos autos);
Este terreno encontra-se inscrito na matriz predial e registado na
Conservatória do Registo Predial da Praia em nome da autora (Doc. de fls. 11 a
13 dos autos).
Em 3 de Julho de 1987, entre o Município da Praia e Construções Técnicas,
S.A, delegação de cabo Verde, foi celebrado um contrato de arrendamento de
um tracto de terreno, sito em Achada Grande, com uma área de 10.082m2, que
confronta por todos os lados com terrenos municipais (Doc. De fls.31 a 34 dos
autos).
Este tracto do terreno faz parte integrante dos 32.545,8m2 de terreno
vendidos pelo Município da Praia à autora.
Desde Outubro de 1998, os réus são representantes da Construções
Técnicas, S.A. por força do substabelecimento da procuração de fls. 30 e 56 dos
autos, respectivamente.

***

A acção especial de posse ou entrega judicial regulada nos artigos 1044º,


e seguintes do Código de Processo Civil, visa aqueles casos em que há um título
translativo de propriedade que transfere igualmente a posse para o respectivo
titular que tem, assim, a posse jurídica, mas não a efectiva, e pretende assumir
esta.
Os documentos juntos pela autora satisfazem as exigências previstas nos
artigos 1044.º e seguintes do Código de Processo Civil.
Nos termos do artigo 262º n.º 2 do Código Civil «salvo disposição legal em
contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador
deva realizar».
Por sua vez dispõe o artigo 127.º do Código do Notariado que
«1. As procurações que exigem intervenção notarial podem ser lavradas
por instrumento público, por documento escrito e assinado pelo representado, com
434 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

reconhecimento presencial da letra e assinatura, ou por documento assinado pelo


representado, com reconhecimento da assinatura.
2. As procurações com poderes gerais de administração civil ou de gerência
comercial, para contrair obrigações cambiais, para fins que envolvam confissão,
desistência ou transacção em pleitos judiciais, ou a representação em actos que
devam realizar-se por escritura pública ou outro modo autêntico, ou para cuja
prova seja exigido documento autêntico, devem ser conferidas por uma das duas
primeiras formas previstas no número antecedente.
3. Os substabelecimentos revestirão a forma exigida para a procuração».
Mais dispõe o artigo 1109.ºdo Código Civil que «Considera-se realizado
para comércio ou indústria o arrendamento de prédios urbanos ou rústicos tomados
para fins directamente relacionados com a actividade comercial ou industrial».
Resulta do contrato de fls. 31 a 34 dos autos que A Construções Técnicas,
SARL, Delegação de Cabo Verde, tomou de arrendamento o tracto de terreno acima
referido, para fins directamente relacionados com a sua actividade industrial, o que
determinou que fosse celebrado por escritura pública em obediência ao disposto no
artigo 10.º do Decreto N.º 43.525, de 07 de Março de 1961.
Logo, face ao disposto no artigo 262.º n.º2 do Código Civil a procuração
passada a favor do engenheiro Joaquim Loureiro Salústio para representar
a Construções Técnicas, SARL, no negócio que ora nos interessa, ou seja, na
celebração do contrato de arrendamento com o Município da Praia, em 21 de Julho
de 1987, deveria revestir a forma de escritura pública. Só que na parte inicial do
mesmo número ressalvam-se os casos em que a lei disponha em contrário. Ora um
destes casos é o do artigo 127.º do Código do Notariado.
Assim, a procuração de fls.56 a 59 dos autos tanto podia ser lavrada por
instrumento público, o que se verificou, ou por documento escrito e assinado pelo
representado, com reconhecimento presencial da letra e assinatura (artigo 127.º
/1 e 2).
Por outro lado, como os substabelecimentos revestirão a forma exigida
para a procuração (artigo 127.º /3), o substabelecimento de fls. 30 dos autos
deveria ter sido lavrado por instrumento público documento escrito e assinado
pelo representado, com reconhecimento presencial da letra e assinatura, o que
seguramente, no caso em apreço não se verificou.
Daí que, face à nulidade do substabelecimento de fls. 30 dos autos se tenha
de concluir que os requeridos não se encontram legitimado para uso e fruição do
tracto de terreno em questão.

***

Termos em que, e sem necessidade de mais considerações, julgo acção


provada e procedente, e, em consequência, ordeno que a requerente seja investida
e outros escritos jurídicos 435

na posse efectiva do referido tracto de terreno e condeno os requeridos a reconhecer


essa posse.
Custas pelos requeridos, com procuradoria que fixo em 180.000$00 (cento
e oitenta mil escudos).
Praia, 24 de Outubro de 2005
Assinado ilegível.

2ª DECISÃO

A CVC – CONSTRUÇÕES DE CABO VERDE; SARL, pessoa colectiva


matriculada na Conservatória do Registo Comercial da Praia sob o n.º163
/900809, com sede em Achada Grande Frente, representada pelo presidente do
Conselho de Administração Dr. Rodrigo Vaz Guedes Croft Moura, requereu
execução de sentença proferida na acção de posse judicial avulsa contra Britar
Lda., representada pelos sócios gerentes Lourenço de Pina e Carlos de Pina, com
sede em Achada Grande, Praia, Lourenço de Pina, mais conhecido por Tatá,
proprietário de camiões e residente na subida de Terra Branca, Praia e Carlos de
Pina, mais conhecido por Carlitos, comerciante e residente em Palmarejo, (Rua
Santiago) Praia.
Na acção de posse judicial avulsa decidiu-se que a autora fosse investida
na posse efectiva de uma parte do tracto de terreno descrito na Conservatória do
Registo Predial da Praia, sob o número 20.155, a fls. 33 verso do livro B/77.
Ordenada a citação na execução, vieram os executados deduzir embargos
de execução, com o fundamento em benfeitorias, nos termos do artigo 920.º do
Código de Processo Civil.
Na contestação aos embargos deduzidos, a exequente pede que sejam
julgados improcedentes.
Tudo visto:
O meio de oposição por embargos, estabelecido no artigo 929.º do Código
de Processo Civil, não é extensivo à posse judicial avulsa, podendo o requerido
invocar, na contestação, qualquer título justificativo da posse e, consequentemente,
alegar o direito de retenção, até ser indemnizado por benfeitorias não levantáveis
sem detrimento (Acórdão do STJ, de 13 de Janeiro de 1959, no BMJ N.º83-335 e
artigos 1270.º, 216.º, todos do Código Civil).
Aliás, na posse judicial avulsa a execução contém-se na própria sentença,
sem necessidade de recorrer a processo de execução autónomo. O investimento na
posse faz-se por simples mandado, lavrando-se auto da diligência (Acórdão da RL,
de 14 de Fevereiro de 1968, na JR, 14.º -68).
Finalmente, importa ter presente que a decisão proferida na acção de
posse judicial avulsa é provisória, não impedindo que o vencido faça valer o seu
436 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

direito pelas acções possessórias ou pelos outros meios adequados (artigo 1051.º
do CPC).
De todo o exposto, resulta que o meio de oposição por embargos, estabelecido
no artigo 929.º do Código de Processo Civil, não é extensivo à posse judicial avulsa,
pelo que ordeno se invista a exequente na posse efectiva do tracto de terreno em
litígio.
Custas pelos executados.
Praia, 23 de Março de 2006
Assinado Ilegível.

ANOTAÇÃO

1. Este foi seguramente um dos mais mediáticos casos judiciais pela


circunstância de ter envolvido dois cidadãos que decidiram recorrer à
greve de fome como forma de protesto contra estas decisões, mas também
pela importância que os medias entenderam por bem dar ao caso.
Eu próprio fui chamado a pronunciar-me sobre os seus aspectos
jurídicos, tendo, na oportunidade, na Televisão de Cabo Verde, contestado
a ligeireza da decisão, que, do meu ponto de vista, “não fez justiça”,
limitando-se a apoiar em aspectos estritamente formais para negar o
direito dos réus então grevistas.
A análise da sentença foi, na altura, perfunctória, como não podia
deixar de competir a uma opinião para a comunicação social. Todavia,
porque, no essencial, entendo que os pontos de vista então expendidos,
nomeadamente, sobre a razão fundamental de que as decisões, ora em
anotação, não fizeram justiça no caso concreto, retomo, nestas notas, os
argumentos expendidos para melhor os clarificar, competindo, sempre
àqueles que tiverem a opinião contrária, a faculdade de contradizer os
meus argumentos, se não concordarem com eles, como, aliás, estou a fazer
agora com as referidas sentenças.
Devo referir que não me move nenhum interesse nem pessoal, nem
humanitário condoído pela sorte dos réus grevistas. As minhas opiniões
são estritamente técnicas. Aliás, na oportunidade, contestei igualmente o
recurso à greve de fome como forma de protesto e de reacção às decisões
judiciais, tanto assim que os réus tinham e têm ainda ao seu alcance um
conjunto significativo de instrumentos jurídicos a que podiam e podem
ainda recorrer para fazer valer o seu direito. O recurso à greve de fome foi,
do meu ponto de vista, tão precipitado quanto a sentença, tanto assim que
o protesto se dirigiu contra quem nada mais podia fazer: o Município da
Praia. Na verdade, havendo já uma decisão judicial que ordenou a entrega
e outros escritos jurídicos 437

do imóvel à autora CVC, por maior que fosse a vontade do Município


em resolver a questão, dando o dito por não dito, reconhecendo aos réus,
como pretendiam, um direito de preferência na compra do imóvel, esta
vontade sempre seria inoperante em face da existência de uma decisão
judicial que reconheceu à autora CVC o direito ao imóvel e o direito à sua
posse efectiva.

2. Vejamos, então, brevemente, os contornos do caso.

As Construções Técnicas, S.A., através da sua delegação de Cabo


Verde, celebraram com o Município da Praia, em 1987, um contrato de
arrendamento tendo por objecto um tracto de terreno, sito na Achada
Grande, com uma área de 10.082 m2, confrontado, por todos os lados, por
terrenos municipais. Este terreno está integrado num terreno pertencente
ao Município que mede 32.545,8 m2.
A execução deste contrato de arrendamento prosseguiu até 1998, data
em que as Construções Técnicas, S.A., através de um substabelecimento,
decidiram transferir para a Britar, Lda, uma sociedade de direito cabo-
verdiano, integrada pelos sócios Lourenço de Pina e Carlos de Pina, a
gestão do imóvel. Esta transferência operou-se através do mecanismo do
substabelecimento da procuração com base na qual o Sr. Engenheiro Joaquim
José Loureiro, representante das Construções Técnicas, S.A. celebrou, em
nome desta, o contrato de arrendamento.
A Britar, Lda actuou sobre o terreno em causa desde 1998 até, 2006,
portanto, durante 8 anos. Fez benfeitorias e pagou algumas rendas, ao que
parece sem grande regularidade.
Em Agosto de 2001, o Município da Praia celebrou com a CVC
– Construções de Cabo Verde, S.A. um contrato de compra e venda da
totalidade desse lote de terreno com a área de 32.545,8 m2. Todas as
formalidades inerentes ao registo do imóvel foram cumpridas e bem
assim as obrigações fiscais.
A Britar, Lda não foi tida nem achada na celebração desse negócio.
Portanto, não lhe foi reconhecido o direito de preferir na compra.
Julgando-se com direito à posse efectiva da totalidade do imóvel, a
CVC intentou uma acção especial de posse judicial avulsa, alegando ser
proprietária do referido imóvel; que apesar do título translativo, nunca
tomou posse material efectiva da parte do terreno ocupada pela Britar,
lda, com a área de 13.750 m2; que a Britar, Lda não tem qualquer título que
legitime a sua ocupação e que a Britar, Lda deve ser coagida a proceder à
entrega efectiva da parte ocupada do imóvel.
438 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

3. A sentença deu como provado que o contrato de compra e venda


do imóvel é válido e considerou que a propriedade se transferiu por mero
efeito deste contrato (artº. 879º a) do CC). Mais considerou provado que
em 3 de Julho de 1987, entre o Município da Praia e Construções Técnicas,
S.A, delegação de Cabo Verde, foi celebrado um contrato de arrendamento
de um tracto de terreno, sito em Achada Grande, com uma área de
10.082m2, que confronta por todos os lados com terrenos municipais (docs.
de fls. 31 a 34 dos autos); que este tracto do terreno faz parte integrante
dos 32.545,8m2 de terreno vendidos pelo Município da Praia à autora e
que “desde Outubro de 1998, os réus são representantes das Construções
Técnicas, S.A., por força do substabelecimento da procuração de fls. 30 e
56 dos autos, respectivamente”.

4. Partindo dos factos dados como provados e considerando que


os documentos juntos pela autora satisfazem as exigências previstas nos
artigos 1044º e segs do CPC, a sentença em análise passou a discutir a
validade da procuração com base na qual foi celebrado o contrato de
arrendamento e, subsequentemente, a do substabelecimento, para concluir
o seguinte:
- a procuração com base na qual foi celebrado o contrato de
arrendamento é válida, pois, obedeceu à formalidade prevista no artº.
127º do Código do Notariado;
- todavia, o substabelecimento, porque deveria ter sido lavrado “por
instrumento público, documento escrito e assinado pelo representado,
com reconhecimento de letra e assinatura”, é nulo porque não obedeceu
a essa formalidade. Esta nulidade retira aos Réus qualquer legitimidade
para ocupar o imóvel.
E “sem necessidade de mais considerações” julgou a acção provada
e ordenou que a autora CVC fosse investida na posse efectiva do referido
tracto de terreno.

5. Posteriormente a CVC veio requerer a execução da sentença,


tendo os Réus deduzido embargos de executado com fundamento em
benfeitorias. O tribunal desatendeu a pretensão, considerando que “o
meio de oposição por embargos, estabelecido no artº. 929º do CPC não é
extensivo à posse judicial avulsa”.
A sentença foi, portanto, executada com intervenção policial.

6. A sentença em questão suscita, desde logo, um problema


de legitimidade. Se na verdade, “desde Outubro de 1998, os Réus
são representantes das Construções Técnicas, S.A.”, por força do
e outros escritos jurídicos 439

substabelecimento de uma procuração, coloca-se então a questão de saber


em que nome actuam os Réus: se em nome próprio, como sucessores
na posição jurídica das Construções Técnicas, S.A.; ou se em nome das
Construções Técnicas, enquanto seus representantes. No primeiro caso,
os RR são parte legitima porque detém a coisa em nome próprio; no
segundo os RR seriam parte ilegítima porque detém a coisa em nome de
outrem. Neste segundo caso, quem teria interesse directo em contradizer,
seriam as Construções Técnicas, S.A. que só poderia ser clarificado com
a interpretação do substabelecimento, cujo conteúdo não foi revelado na
sentença.
Na verdade, o substabelecimento é passível de várias interpretações
na economia do processo. Poderá consistir na cessão da posição contratual
das Construções Técnicas, S.A. para a Britar, Lda; poderá enquadrar-se na
figura de cessão de exploração comercial como poderá ser um subarrendamento.
O substabelecimento não foi objecto de interpretação de modo a clarificar
qual o sentido pretendido pelas partes.
Parece, todavia, que quer a posição dos réus, quer a da Autora,
aceite pelo tribunal, é a de que os réus actuam em nome próprio, enquanto
sucessores na posição jurídica das Construções Técnicas, S.A.. Ou seja,
detém o imóvel não enquanto representantes das Construções Técnicas,
mas sim enquanto pessoa jurídica a quem as Construções Técnicas,
S.A., titulares originários de um contrato de arrendamento, transferiram
a sua posição jurídica de arrendatário. Os réus actuam, pois, em nome
próprio. São, portanto, parte legítima, pois, como é jurisprudência e
doutrina uniformes, tem legitimidade passiva na acção especial de posse
judicial avulsa aquele que detiver a coisa no momento em que a acção é
intentada.

7. Mas precisamente neste ponto particular se coloca um problema


jurídico sério em torno da sentença. Se o contrato de arrendamento entre
as Construções Técnicas, S.A. e a Câmara Municipal da Praia é válido,
como parece resultar implícito da sentença em apreciação, e sucedendo
os réus na posição jurídica de arrendatário, justifica-se apreciar, como
fez o tribunal, a validade jurídica do substabelecimento com base no
qual se deu a sucessão no contrato de arrendamento? E, sendo nulo o
substabelecimento por falta de forma, como considerou o tribunal, qual
o destino do contrato de arrendamento celebrado entre a Câmara e as
Construções Técnicas, S.A.?
É comum aquele que tem um contrato de arrendamento transferir
a posição jurídica de arrendatário para outra pessoa, com ou sem o
consentimento do senhorio. Esta transferência da posição jurídica poderá
440 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

ser expressa ou tácita. É expressa quando por palavras escritas ou outro


modo inequívoco e directo de manifestação da vontade aquele que é
arrendatário manifesta a intenção de transferir a sua posição jurídica
para outra pessoa que a aceita e esta posição é igualmente aceite pelo
senhorio. É tácita quando de um conjunto de factos se deduz com toda
a probabilidade a intenção de transferir a posição jurídica e de a aceitar,
quer por parte do senhorio, quer por parte do futuro arrendatário.
Por vezes acontece que o senhorio não tem conhecimento imediato
da intenção do inquilino de transferir para outrem a sua posição jurídica,
pessoa esta que a aceitou. Tal acontece, por exemplo, quando o senhorio
apenas toma conhecimento da substituição da pessoa do arrendatário
no momento em que um terceiro surge como arrendatário e pretende
pagar as respectivas rendas. Este facto – aceitação das rendas pagas pelo
arrendatário substituto, em nome próprio - revela com toda a probabilidade
que o senhorio reconhece como válida a transferência da posição jurídica
de arrendatário para outra pessoa e aceita essa transferência.
Quando tal acontece o contrato de arrendamento prossegue no
tempo com o novo arrendatário, sem qualquer interrupção.
Esta transferência da posição jurídica apresenta todas as
características da cessão da posição contratual.
A questão está em saber qual a forma que deve assumir a cessão. A
doutrina e a jurisprudência têm entendido fixar nesta matéria requisitos
de forma subordinados, ou seja, se o contrato deve ser reduzido a escrito,
a cessão deverá igualmente assumir a mesma forma.
Esta é, na verdade, o regime legal. Mas se os requisitos de forma
não forem cumpridos a doutrina tem entendido que aquele que aceitou
uma forma inválida não pode invocá-la em seu favor, sob pena de
abuso de direito, e nem tão pouco compete ao juiz conhecer dessa falta
oficiosamente.

8. A inalegabilidade formal constitui, na verdade, uma das formas


tipológicas do abuso do direito. Nesta situação o titular do direito adopta
um comportamento que permite concluir que aceita como válida uma
forma adoptada para a celebração de um negócio jurídico, mas vem mais
tarde invocar a inobservância da forma legalmente prescrita para exigir
um direito ou se eximir de uma obrigação.
Este tipo de comportamento é tido como abusivo e, como tal,
reprimido pela ordem jurídica, com fundamento na conjugação de dois
elementos: a repercussão do tempo nas relações jurídicas e a boa fé.
e outros escritos jurídicos 441

Assim, um Acórdão da Relação de Évora661 considerou que a


situação em que o arrendatário comercial invoca a nulidade do contrato
de arrendamento, por falta de forma, para se eximir ao pagamento de
rendas caracterizaria abuso de direito, na modalidade de venire contra
factum proprium, que, do meu ponto de vista é mais uma situação de
inalegabilidade formal, dado que o factum proprium não é exclusivo daquele
que o invoca e dele pretende tirar partido.

9. Esta forma tipológica do abuso do direito traz, aliás, na sua


dinâmica duas outras manifestações da figura com interesse para o
presente caso: o binómio supressio-surrectio.
Na supressio dá-se a supressão de uma faculdade jurídica pela
conjugação do tempo com a boa fé. Na surrectio ocorre o fenómeno
inverso: dá-se o nascimento de uma situação jurídica pela associação do
tempo com a boa fé662.
Um caso julgado pelo Tribunal da Relação do Porto caracteriza
uma situação de surrectio. Neste caso o proprietário de um prédio
urbano arrendou para a actividade de oficina um rés-do-chão, tendo o
arrendatário passado a utilizar igualmente um terreno anexo pertencente
ao mesmo proprietário. Quando o proprietário veio pretender a restituição
da parcela de terreno, o tribunal considerou a conduta abusiva663.
Nesta situação parece que o decurso do tempo associado à boa fé
conduziu ao surgimento de uma faculdade jurídica, qual seja o direito à
utilização do terreno anexo à oficina.

10. Esta doutrina, sumariamente delineada, afigura-se-me aplicável


ao caso da Britar, Lda. É certo que a acção correu entre a CVC e a Britar,
Lda e o arrendamento foi celebrado entre o Município e as Construções
Técnicas, S.A.. Mas a invocabilidade do contrato de arrendamento tem
que ser vista à luz da posição jurídica do Município da Praia, melhor
dizendo, à luz da posição jurídica da Britar, Lda perante o Município da
Praia.
Se este – o Município - não poderia, sob pena de abuso de direito,
invocar em juízo o incumprimento das regras de forma, na cessão da
posição contratual da parte das Construções Técnicas, S.A. para a Britar,

661 Ac. da Relação de Évora, de 11 de Novembro de 1993 (col. Jur. V, 283).


662 Para maiores desenvolvimentos, cf. A. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil
português, I Parte Geral, Tomo I - Introdução, Doutrina Geral, Negócio Jurídico, Coimbra,
Almedina, 1999, pp. 206.
663 Proc.690/99 -3ªSecção, Ac. de 8/7/99 -2ª secção Cível (João Vaz) www.trp.pt.
442 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Lda, por identidade de razão não poderia a CVC fazer a mesma invocação,
para negar à Britar, Lda o direito ao arrendamento. Do contrário, retirar-
se-ia sentido ao direito de sequela de que goza a posição jurídica do
arrendatário.
11. Além disso, não se pode deixar de tomar em consideração que
há 8 anos que a Britar Lda actua no terreno em causa, à vista de todos e
de boa fé, de forma pública e pacífica como um verdadeiro arrendatário.
Se as pessoas nestas condições adquirem o direito de propriedade, pelo
tempo, como não hão-de adquirir um direito menor, como seja direito ao
arrendamento, verificados os mesmos pressupostos?

12. Entendo que dificilmente se pode negar à Britar, Lda o seu


direito ao arrendamento, não só com fundamento na inalegabilidade do
vicio de forma, que se transmite do Município da Praia para a CVC, com o
contrato de compra e venda, mas também porque a Britar, Lda tem actuado
e sido aceite pelo senhorio originário como arrendatário. Não cremos
que possa hoje o tribunal invocar a invalidade do substabelecimento para
negar à Britar, Lda o direito ao arrendamento e extrair a consequência
gravíssima de a colocar, 8 anos depois, numa situação equiparável à de
um esbulhador violento contra o qual se requer tutela. Em variadíssimas
hipóteses o tempo tem por efeito criar situações jurídicas. A aquisição da
propriedade por usucapião é um dos exemplos, mas a lei prevê diversos
casos em que o decurso do tempo faz caducar ou prescrever direitos.
Marcelo CAETANO defende, por exemplo, que um funcionário investido
com base num contrato de provimento nulo adquire a posição jurídica
de funcionário público, decorrido certo tempo durante o qual lhe foi
reconhecida a condição.

13. Assim, do meu ponto de vista, à Britar, Lda deve ser reconhecido
um título, próprio ou em nome de outrem, que se conflitua com o título
de propriedade. Quem adquiriu uma propriedade tem direito à posse
material efectiva da coisa adquirida e pode obter tutela judicial contra
aquele que, estando em poder da coisa, impede a concretização desse
desiderato. Todavia, este direito do proprietário pode não proceder se
aquele que detém a coisa tem um título que legitima essa detenção.
A jurisprudência é uniforme no sentido de que não pode ser
concretizada a posse material efectiva de um imóvel a favor do adquirente
de uma propriedade em face de um contrato de arrendamento664.

664 Ver, neste sentido, Ac. do STJ (Portugal) de 6.7.1993, BMJ nº. 429, pp. 761; Ac. do STJ
(Portugal) de 19.10.1995, Col. Jur.; 1995, 3, 68; Ac. da RE de 1.7.1993, BMJ nº. 429, 909.
e outros escritos jurídicos 443

E note-se que ainda que a Britar, Lda seja tida como detentora em
nome alheio, como seria o caso se se interpretasse o substabelecimento
como sendo um mandato de representação das Construções Técnicas,
S.A. pela Britar, Lda, mesmo assim a jurisprudência tem entendido que
“não pode ser conferida a posse ao requerente [da posse judicial avulsa]
que prejudique aquele uso e fruição”665. Em tal caso, ao requerente da
posse judicial avulsa só pode ser conferida a posse jurídica e não a posse
material efectiva666.
Este conflito de títulos dirime-se, assim, a favor do titular do direito
ao arrendamento.
Tem-se discutido se o contrato de arrendamento pode ser apreciado
no quadro da acção especial de posse judicial avulsa. Como decidiu o
Ac. do STJ de Portugal de 17 de Maio de 2001667, contrariamente a uma
jurisprudência minoritária que opina no sentido de que a acção adequada
para se discutir a validade, subsistência e eficácia do contrato de
arrendamento é a acção de despejo, pelo que essa discussão não poderia
ocorrer no quadro de uma acção especial de posse judicial avulsa668, a
resposta deve ser afirmativa.
Como bem refere o STJ de Portugal nesse Ac. de 17 de Maio de
2001 “na acção de posse judicial avulsa, como em qualquer outra, o juiz
deve por imperativo legal conhecer de todas as questões que as partes
tenham submetido à sua apreciação, nomeadamente, a existência de
um contrato de arrendamento”, pois, o que se discute é a “existência e
validade de uma relação jurídica” que, quando devidamente titulada,
impede a concretização de uma pretensão jurídica, qual seja a posse
material e efectiva do imóvel, objecto do contrato de arrendamento, por
parte do proprietário.

14. Por esta mesma razão não podemos acompanhar a douta decisão
quando considera que “o meio de oposição de embargos, estabelecido no
artigo 929º do Código do Processo Civil não é extensivo à posse judicial
avulsa”. Para fundamentar este ponto de vista o meritíssimo juiz invocou
em seu favor o Acórdão do STJ de Portugal de 13 de Janeiro de 1959,
publicado no BMJ nº. 83 – 335. Ora, o sentido desta decisão foi há muito
ultrapassado. São hoje inúmeras as sentenças que hoje permitem a

665 Cf. Ac. do STJ de Portugal de 19.10.1995, Col. Jur., 1995, 3, 68.
666 Ver, veste sentido, Ac. da RE, de 1.7.1993, BMJ nº. 429, pp. 908.
667 In www.dgsi.pt
668 Ver, neste sentido, Ac. da RL. De 13 de Abril de 1977, Col. Jur. 11, 404.
444 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

utilização do meio de oposição previsto no artº. 929º do CPC no âmbito


da acção especial da posse judicial avulsa. A regra é a de que quem teria
por lei um direito de retenção – e julgo que esse direito é reconhecido à
Britar, Lda – pode, com base nesse direito opor-se à execução de uma
medida judicial incompatível com esse mesmo direito. Neste sentido
se pronuncia o STJ (Portugal) considerando que “o titular do direito
de retenção tem o direito de usar, em relação à coisa retida, das acções
destinadas à defesa da posse, ainda que seja contra o próprio dono,
portanto, também, dos embargos de terceiro”669. Ora, a Britar, Lda alegou
e provou ter realizado benfeitorias no imóvel em termos que lhe conferem
o direito de retenção sobre o mesmo. Vem neste sentido um outro Ac.
do STJ (Portugal) de 14 de Janeiro de 1997. Considera este Acórdão que
“Se o arrendatário benfeitorizar o prédio e para tal tiver autorização do
senhorio não é equiparado a possuidor de má fé, assistindo-lhe o direito a
ser indemnizado das benfeitorias necessárias e das úteis não levantáveis
sem detrimento da coisa, com o que se evita o locupletamento injusto do
senhorio”. Se “este seu crédito resulta de despesas feitas por causa da
coisa que tem de entregar e é protegido por garantia real - confere-lhe o
direito de a reter”670.

15. A minha conclusão é a de que as decisões tomadas em torno deste


caso foram insuficientemente trabalhadas em termos que redundaram
numa injustiça contra a Britar, Lda.

669 Ac. de 19-11-1996, in http://www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp/DtoRetencao.html.


670 in http://www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp/DtoRetencao.html.
e outros escritos jurídicos 445

6. ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 30/06/99671

Sumário:

I - Desde que uma parte de uma empresa tenha


orçamento próprio, com um espaço próprio e utilização
de equipamentos próprios e materiais apenas a ela afectos,
tem de se considerar que tem um acentuado grau de
autonomia, devendo entender-se como constituindo um
estabelecimento próprio.
II - A transferência dessa “parte da empresa”, por cisão
desta, para outra empresa acarreta a transferência dos
contratos de trabalho, sem que os trabalhadores se lhe
possam opor.
III - A Directiva 77/187/CEE não obriga os Estados
Membros a prever que os trabalhadores se possam opor à sua
transferência para o novo proprietário do estabelecimento.

ANOTAÇÃO

1. Interroga-se, por vezes, sobre o destino dos contratos de trabalho


quando alguém sucede, por negócio inter-vivos ou mortis causa, na
posição jurídica do empregador, por venda, sucessão, doação, trespasse,
fusão, cisão, transformação de empresa privada em empresa pública,
transformação de sociedade civil ou comercial em sociedade corporativa,
etc. O problema põe-se ainda relativamente a outras vicissitudes da
empresa, tais como nacionalização, concessão, e, como reverso desta, o
resgate.
O Artigo 37º da LCT veio adoptar uma disciplina a este respeito,
estabelecendo:

Artigo 37.º
(Transmissão de estabelecimento)

1. A posição que dos contratos de trabalho decorre para a entidade patronal


transmite-se ao adquirente, por qualquer título, do estabelecimento onde
os trabalhadores exerçam a sua actividade se, antes da transmissão, o
contrato de trabalho houver deixado de vigorar nos termos legais, ou se

671 Versão completa em www.dgsi.pt. Anotação feita em 2002


446 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

tiver havido acordo entre o transmitente e o adquirente, no sentido de os


trabalhadores continuarem ao serviço daquele noutro estabelecimento
sem prejuízo do disposto no artigo 24.º.
2. O adquirente do estabelecimento é solidariamente responsável pelas
obrigações do transmitente vencidas nos seis meses anteriores à
transmissão, ainda que respeitem a trabalhadores cujos contratos hajam
cessado, desde que reclamadas pelos interessados até ao momento da
transmissão.
3. Para efeitos do n.º 2 deverá o adquirente, durante os quinze dias
anteriores à transacção, fazer afixar um aviso nos locais de trabalho
no qual se dê conhecimento aos trabalhadores que devem reclamar os
seus créditos.
4. O disposto no presente artigo é aplicável, com as necessárias adaptações,
a quaisquer actos ou factos que envolvam a transmissão da exploração
do estabelecimento.

Estas disposições conferem ao trabalhador uma espécie de direito


de sequela sobre a empresa ou estabelecimento em que prestam a sua
actividade, proibindo a cessação da relação juridico-laboral, assim como
a perda de quaisquer direitos ou regalias do trabalhador, pelo simples
facto da transmissão do estabelecimento. Havendo transmissão da
posição jurídica do empregador, o novo titular do estabelecimento ou
empresa assume a posição em que se encontrava o primitivo empregador
relativamente aos trabalhadores, com todas as consequências jurídicas.
Assim, mantêm-se integralmente os contratos de trabalho, no que respeita
à categoria profissional do trabalhador, à retribuição, à antiguidade, e a
outras garantias e regalias. O trabalhador conserva mesmo o direito de
pedir contra o transmissário a anulabilidade ou a declaração de nulidade
de alguma cláusula, do próprio contrato de trabalho, por motivo de erro,
dolo, ou coação, praticados pelo anterior empregador. Assim, se um
trabalhador que fosse obrigado, pelo transmitente, a assinar uma carta
na qual solicitava a rescisão do seu contrato de trabalho, esta declaração
obtida mediante coacção, moral ou física, conforme fosse o caso, poderia
ser anulada pelos órgãos judiciais competentes, e executada contra o novo
empregador, sem que este pudesse opor que a coacção tinha sido exercida
pelo anterior empregador.
Os objectivos de segurança no emprego levam ao entendimento
de que existe uma relação objectiva entre o trabalhador e a empresa ou
estabelecimento em que o mesmo presta a sua actividade - a chamada
teoria da empresa - pelo que a transmissão do estabelecimento não tem
suficiente aptidão para destruir ou pôr em causa a relação de trabalho.
e outros escritos jurídicos 447

2. Duas questões se colocavam neste acórdão: a primeira a de saber


se o estabelecimento em causa constituía uma unidade económica com
autonomia suficiente para viabilizar a sua transmissão independentemente
da transmissão da totalidade da empresa; a segunda, a de saber se
o trabalhador é obrigado a aceitar o novo empregador, ou se razões
subjectivas ligadas ao novo empregador poderão constituir justa causa
para o trabalhador rescindir o contrato de trabalho?
A questão torna-se mais pertinente quando é certo que, no que
respeita ao trabalhador, exige-se, normalmente, a prestação, por si, da
actividade a que está obrigado (o chamado carácter intuitu personae do
contrato de trabalho672), O estabelecimento de um correlato com esta
característica determinaria que as prestações do empregador deveriam
ser satisfeitas por aquele com quem o trabalhador contratou, e não por
outrem.
Desacompanhado de outros fundamentos, a lei parece negar ao
trabalhador essa faculdade. Por várias razões.
A primeira prende-se com a natureza das prestações correspectivas
no contrato de trabalho. Assim, ao passo que a principal prestação do
empregador é uma coisa fungível, a prestação a que o trabalhador se
obriga, pelo contrário, é uma coisa infungível. Daí que, enquanto a
prestação do empregador pode ser satisfeita quer por este quer por
um terceiro, tal não acontece relativamente à prestação do trabalhador.
O empregador pode consentir na substituição do trabalho de A pelo
trabalho de B, mas a prestação de B nunca é a realização da prestação de
A. De facto, ao trabalhador interessa auferir o seu salário, quer provenha
do empregador quer de outra pessoa, mas este já não poderá contentar-se
com a actividade deste ou daquele trabalhador, pois cada qual tem a sua
especialidade profissional, a sua perícia, a sua diligência, etc.
A segunda prende-se com razões de ordem lógica. Se se reconhece ao
trabalhador uma relação objectiva com a empresa, como forma de garantir
a subsistência da relação laboral, não é curial permitir ao trabalhador
rescindir o contrato de trabalho unicamente porque não aceita a pessoa
do novo empregador a não ser que queira assumir as consequências do
seu acto.

672 O carácter intuitu personae do contrato de trabalho foi tomado em consideração a pro-
pósito da transmissão de estabelecimentos na sentença do 8º Juízo do tribunal de Tra-
balho de Lisboa, de 26 de Junho de 1986, nos termos do qual “o contrato de trabalho é um
contrato celebrado “intuitu personae» pelo que a transmissão da posição contratual terá de ser
restringida às hipóteses expressamente consignadas na lei, e, assim, só por força da lei se poderá
admitir tal transmissão, sem o acordo ou consentimento expresso do trabalhador”. In Col. de
Jur., IV, 329.
448 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Além das razões apontadas, parece-nos não ser de boa política


deixar que trabalhadores menos escrupulosos possam aproveitar de
alterações circunstanciais que impliquem alteração da posição contratual
do empregador para obter fácil enriquecimento à custa da entidade
empregadora cedente.

3. Todavia, não se pode pensar que o trabalhador está inelutavel-


mente vinculado a seguir a empresa. A perspectiva personalista que per-
filhamos como fundamento do direito civil português e, consequentemen-
te, como fundamento do Direito do Trabalho, briga com a solução que vê
nos trabalhadores mais um activo patrimonial da empresa, susceptível de
mudar de mãos de acordo com os caprichos ou os interesses do emprega-
dor. Há muito foi rejeitado o ponto de vista que vê no trabalho humano
uma mercadoria. A Constituição da República parece mesmo reconhecer
ao trabalhador, como corolário do direito ao trabalho, não só o direito à
escolha da profissão, mas também o direito à escolha do empregador.
De facto, não é indiferente para o trabalhador a pessoa do
empregador, no sentido mais amplo que esta expressão encerra. Um
empregador pode ter liquidez e outro não ter; pode ter bens e outro não
ter; pode ter bens em território nacional e o outro não ter; pode ser nacional
e preencher para os trabalhadores todas as condições que permitem ao
trabalhador em cada momento obter a satisfação dos seus créditos e o
outro pode ser estrangeiro e não preencher as referidas condições; um
empregador pode ser criminoso ou encontrar-se ligado a actividades
criminosas; pode ser um mau gestor; ter relações complicadas com os
trabalhadores, com os clientes, com o fisco, com a previdência social... e
um outro não se encontrar nas circunstâncias descritas.
Tanto bastaria para considerar que não é, nem pode ser indiferente,
para o trabalhador a pessoa do empregador.
Mas há ainda um outro dado importante. Pela celebração do con-
trato de trabalho o trabalhador acorda condições particulares de prestação
da sua actividade a um certo empregador. Na fixação dessas condições
particulares o trabalhador atende a razões de natureza pessoal e familiar
que poderão não ser mantidas, serem diminuídas ou até suprimidas com
o novo empregador. Mais: pelo contrato de trabalho o trabalhador coloca-
se num estado de sujeição, confere ao empregador autoridade para lhe
conformar a prestação, admoestá-lo ou aplicar outras sanções disciplina-
res. Para se colocar nesse estado de sujeição o trabalhador realiza uma
escolha sobre a pessoa do empregador. Decide, voluntária e unilateral-
mente, a quem deve conferir tais poderes, pois, se realizar uma escolha
falsa ou errada, a lei permite-lhe pôr termo à relação, a todo o tempo, com
ou sem indicação do motivo. É certo que as condicionantes de ordem pes-
e outros escritos jurídicos 449

soal, familiar ou profissional interferem no grau de liberdade de escolha


do empregador, mas essas condicionantes inscrevem-se na condicionante
geral da libertação do homem. Enquanto a sociedade estiver estratificada
em classes sociais cumprirá ao direito compensar a debilidade de uma
classe face à outra, com normas que promovam ou restabeleçam a igual-
dade material.

4. A lei não pode, pois, deixar de tomar em consideração estas


condicionantes que orientam a escolha pelo trabalhador da pessoa do
empregador, mas, do mesmo modo, não pode deixar de reconhecer ao
empregador o poder soberano de gerir a empresa, dentro dos limites da
lei, realizando as alterações que lhe permitam tirar melhor proveito da
organização. Há até vicissitudes que escapam ao controlo do empregador,
como sejam as modificações decorrentes da intervenção dos poderes
públicos ou de morte do empregador.
Dá-se, pois, uma fortíssima colisão de interesses que espelham as
dificuldades sentidas pelos legisladores na busca de soluções harmoniosas.
As duas directivas adoptadas pelas Comunidades Europeias sobre esta
matéria são disso um exemplo. Delas não resulta nem a obrigação para
o empregador cedente de conservar os contratos de trabalho, nem a
obrigação para os trabalhadores de aceitar o novo empregador. Uma
delas foi, aliás, invocada pela decisão comentada, a propósito do Acórdão
de 16 de Dezembro de 1992, processo C-132/91 (Grigorios Katsikas contra
Angelos Konstantinidis) do Tribunal das Comunidades em termos que nos
suscitam alguns reparos, como já vamos ver.
O que é certo é que essas Directivas – a Directiva 77/187/C.E.E e
a Directiva 98/50/CE – colocam os legisladores nacionais numa situação
paradoxal. Se nem o empregador cedente está vinculado a conservar os
contratos de trabalho, nem o trabalhador está vinculado a aceitar o em-
pregador cessionário, então a busca de equilíbrios e, consequentemente,
o apuramento de consequências jurídicas têm que se fundar em bases ob-
jectivas. Hão-de ser as circunstâncias que rodeiam a cessão da posição
jurídica do empregador que determinarão as consequências jurídicas a
extrair, seja relativamente ao empregador cedente, seja relativamente aos
trabalhadores.
As legislações têm neste particular feito apelo ao critério de
modificação substancial das condições de trabalho em detrimento do
trabalhador. Este critério metodológico afigura-se-nos adequado, pois, ao
socorrer-se de uma cláusula aberta, deixa nas mãos do aplicador da lei o
poder de avaliar em cada caso se se verifica ou não a referida modificação
substancial das condições de trabalho. Em situações de colisão total de
interesses o recurso a cláusulas desta natureza – aquelas que, no dizer
450 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

de Menezes CORDEIRO, não comunicam imediatamente o seu conteúdo


– é de preceito. Elas dão ao julgador uma larga margem de liberdade na
avaliação dos interesses em presença.
A cláusula de modificação substancial deixa, todavia, uma pista
implícita que perspectiva uma busca de soluções a favor do trabalhador.
A relação que se gera com a transmissão de estabelecimento é uma
relação quadrangular - empregador cedente; empregador cessionário;
trabalhador; empresa ou estabelecimento. Além da ligação objectiva que
extrai entre trabalhador e empresa, o que se justifica pela incorporação
da actividade do trabalhador na empresa, conferindo-lhe mais valia,
o legislador comunica aos empregadores cedente e cessionário actos
de um e outro, responsabilizando-os reciprocamente. Assim, não só o
empregador cessionário se torna solidariamente responsável pelos actos
do empregador cedente, como este é responsabilizado por actos ou meros
circunstancialismos ligados àquele. Na verdade, não só o empregador
cessionário é responsável solidário pelas vicissitudes do contrato do
trabalho ligadas ao empregador cedente, como a modificação substancial
das condições de trabalho ligada a condicionalismos que gravitam em
torno do empregador cessionário, têm aptidão para repercutir sobre
a pessoa do empregador cedente. Se o trabalhador rescindir o contrato
de trabalho porque a cessão acarretou modificação substancial das suas
condições de trabalho (facto ligado ao empregador cessionário) repercute-
se sobre o empregador cedente as consequências desta rescisão.
As recentes alterações ao artº 2112 do Código Civil italiano
que disciplina esta matéria dão nota desta solução673. Reconhece aos
trabalhadores o direito de pôr termo ao contrato de trabalho, com justa
causa, dentro de três meses a contar da transferência do estabelecimento,
desde que se verifique uma modificação substancial das condições de
trabalho674. A jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades vai

673 Cf. D. Lgs. 2 fevereiro de 2001 n. 18, publicado na Gazeta Oficial de 21 fevereiro 2001,
n. 43 sobre “Attuazione della direttiva 98/50/CE relativa al mantenimento dei diritti dei lavo-
ratori in caso di trasferimento di imprese, di stabilimenti o di parti di stabilimenti” .
674 Art. 2112 (Mantenimento dei diritti dei lavoratori in caso di trasferimento d’azienda)
1. In caso di trasferimento d’azienda, il rapporto di lavoro continua con il cessionario ed
il lavoratore conserva tutti i diritti che ne derivano.
2. Il cedente ed il cessionario sono obbligati, in solido, per tutti i crediti che il lavoratore
aveva al tempo del trasferimento. Con le procedure di cui agli articoli 410 e 411 del
codice di procedura civile il lavoratore può consentire la liberazione del cedente dalle
obbligazioni derivanti dal rapporto di lavoro.
3. Il cessionario è tenuto ad applicare i trattamenti economici e normativi previsti dai
contratti collettivi nazionali, territoriali ed aziendali vigenti alla data del trasferimento,
fino alla loro scadenza, salvo che siano sostituiti da altri contratti collettivi applicabili
all’impresa dal cessionario. L’effetto di sostituzione si produce esclusivamente fra con-
e outros escritos jurídicos 451

igualmente no mesmo sentido. O artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 77/187/


C.E.E tem sido interpretado no sentido de que “ não obsta a que um
trabalhador empregado pelo cedente à data da transferência da empresa se oponha
à transferência para o cessionário do seu contrato ou da sua relação de trabalho,
na condição de que essa decisão seja por ele livremente tomada”, competindo
ao “órgão jurisdicional de reenvio determinar se o contrato de trabalho
proposto pelo cessionário implica uma modificação substancial das
condições de trabalho em detrimento do trabalhador”, caso em que o
artigo 4.°, n.° 2, da directiva obriga os Estados-Membros a considerarem
que a rescisão foi da responsabilidade da entidade patronal”675.

5. Quer-nos assim parecer que o apoio que o STJ vai buscar ao


Acórdão de 16 de Dezembro de 1992, processo C-132/91 (Grigorios Katsikas
contra Angelos Konstantinidis) do Tribunal das Comunidades tem menos
importância do que aquela que lhe foi conferida. Considerou-se que este
Acórdão não repele a solução segundo a qual “a transferência dessa “parte
da empresa”, por cisão desta, para outra empresa acarreta a transferência
dos contratos de trabalho, sem que os trabalhadores se lhe possam opor”,
como se escreveu no sumário. O Acórdão sujeito a comentário chega
mesmo a afirmar que “não raro a continuidade de uma (...) actividade
depende da particular aptidão e conhecimentos especializados dos que
nele trabalham” e que “por isso, (...) sem os trabalhadores que os servem,
a transmissão de muitos estabelecimentos” (é) negócio inviabilizado

tratti collettivi del medesimo livello.


4. Ferma restando la facoltà di esercitare il recesso ai sensi della normativa in materia di
licenziamenti, il trasferimento d’azienda non costituisce di per sé motivo di licenzia-
mento. Il lavoratore, le cui condizioni di lavoro subiscono una sostanziale modifica nei
tre mesi successivi al trasferimento d’azienda, può rassegnare le proprie dimissioni
con gli effetti di cui all’articolo 2119, primo comma.
5. Ai fini e per gli effetti di cui al presente articolo si intende per trasferimento d’azienda
qualsiasi operazione che comporti il mutamento nella titolarità di un’attività econo-
mica organizzata, con o senza scopo di lucro, al fine della produzione o dello scambio
di beni o di servizi, preesistente al trasferimento e che conserva nel trasferimento la
propria identità, a prescindere dalla tipologia negoziale o dal provvedimento sulla
base dei quali il trasferimento è attuato, ivi compreso l’usufrutto o l’affitto d’azienda.
Le disposizioni del presente articolo di applicano altresì al trasferimento di parte
dell’azienda, intesa come articolazione funzionalmente autonoma di un’attività econo-
mica organizzata ai sensi del presente comma, preesistente come tale al trasferimento
e che conserva nel trasferimento la propria identità
675 Cf., entre outros, ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção) 12 de
Novembro de 1998 Europièces SA, em liquidação, Wilfried Sanders, em falência, Automo-
tive Industries Holding Company AS. In http://europa.eu.int/jurisp/cgi-bin/form.pl?lang=pt
&Submit=Pesquisar&docrequire=alldocs&numaff=&datefs=&datefe=&nomusuel=&domaine
=&mots=Katsikas&resmax=100
452 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

à partida, arrastando os inconvenientes de diversa ordem ...”. Ora, do


Acórdão Grigorios Katsikas contra Angelos Konstantinidis não resulta
elementos que permitiriam ao STJ optar pela solução seguida.
Na verdade, no ponto 37 deste Acórdão pode ler-se o seguinte:
“Convém assim responder à parte das questões do Arbeitsgericht Bamberg
e do Arbeitsgericht Hamburg relativa ao artigo 3., n. 1, da directiva que
as disposições deste artigo devem ser interpretadas no sentido de que
não obstam a que um trabalhador empregado pelo cedente à data da
transferência da empresa, na acepção do n. 1 do artigo 1. da directiva,
se oponha à transferência do seu contrato ou da sua relação laboral para
o cessionário. A directiva não obriga, no entanto, os Estados-membros a
prever que, na hipótese de o trabalhador decidir livremente não manter o
contrato ou a relação laboral com o cessionário, o contrato ou a relação de
trabalho se mantêm com o cedente. Também não se opõe a isso. No caso
vertente, compete aos Estados-membros determinar o destino reservado
ao contrato ou à relação laboral com o cedente”676. Esta posição é aliás
reafirmada no ponto 42 do mesmo acórdão nos seguintes termos: “Tendo
o Tribunal de Justiça, no n. 37 do presente acórdão, respondido que as
disposições do artigo 3. , n. 1, da directiva não obstam a que um trabalhador
empregado pelo cedente se oponha à transferência do seu contrato ou
da sua relação de trabalho para o cessionário, não há que responder às
questões relativas ao alcance da expressão “disposições... mais favoráveis
aos trabalhadores” que consta do artigo 7. da directiva”.
Trata-se de jurisprudência constante. Embora se deva reconhecer
que não foram levados ao processo elementos que permitiriam ao STJ
decidir de modo diferente como decidiu, a fundamentação afigura-se-nos
excessiva, pois, parece limitar o direito dos trabalhadores a consentirem
na transferência dos seus contratos de trabalho para o empregador
cessionário, o que não nos parece fundado.

6. A matéria relativa à transmissão de estabelecimento encontra-se


hoje disciplinada nos artigos 309º e segs da Proposta do Código do Trabalho,
a cuja análise procederemos noutra oportunidade. Dessa disciplina há um
aspecto que salta à vista: a possibilidade de acordo entre o empregador
alienante e o empregador adquirente de empresa ou estabelecimento, tendo
por objecto o contrato de trabalho, sem o aval ou o mero conhecimento do
trabalhador visado (artº. 310º nº. 1), a quem competirá apenas sofrer as
consequências do acordo celebrado. Compreende-se que tal prerrogativa
conferida aos empregadores é susceptível de perigar a subsistência dos
contratos de trabalho, pela possibilidade que cria de conluio entre as
entidades empregadoras.

676 htp://europa.eu.int/smartapi/cgi/sga_doc?smartapi!celexplus!prod!CELEXnumdo
c&numdoc=61991J0132&lg=PT
e outros escritos jurídicos 453

7. SENTENÇA DO TRIBUNAL CIVIL DA COMERCA DA PRAIA,


DE 21 DE ABRIL DE 2004

Sumário:

Concessão do serviço público das telecomunicações.


Exclusivo. Telefone sobre IP (internet Protocol).
Violação do direito ao exclusivo. Providência
cautelar não especificada.

DECISÃO

CABO VERDE TELECOM, S.A, sociedade comercial anónima, com


sede na Praia, representada pelo Senhor Eng. João Fernandes Pires Correia, na
qualidade de Presidente da Comissão Executiva, vem requerer PROVIDÊNCIA
CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA contra MULTIDATA LIMITADA,
sociedade comercial por quotas, com sede em Achada de Sto. António, na Praia,
representada pelo seu sócio-gerente Senhor Rui Martins, residente na Praia,
pedindo que seja decretada a apreensão de todos os referidos cartões de chamada
em poder da requerida e esta intimada a abster-se de importar e comercializar tais
cartões, até decisão definitiva da acção principal.
Alega, para tanto, e em resumo, que:
1. A requerente é concessionária do serviço público de telecomunicações
em Cabo Verde.
2. Incluindo-se no âmbito da concessão o “exclusivo relativo ao serviço
público de telecomunicações entre Cabo Verde e outros países”.
3. Englobando “a concentração, a comutação e o processamento da todo o
tráfego de entrada ou saída, relativo a todo e qualquer serviço de telecomunicações,
ainda quando o mesmo, tratando-se de tráfego de saída, seja originando em rede
diferente da concessionária, ou tratando-se de tráfego de entrada, seja destinado a
rede diferente da concessionária”.
4. No quadro da referida concessão a requerente obrigou-se a realizar
elevadíssimos investimentos, para estabelecer infra-estruturas de telecomunicações
em ordem a dotar Cabo Verde de um sistema moderno de telecomunicações.
5. Investimentos que, como é comum nas concessões de serviços públicos,
a requerente deve recuperar através da cobrança de tarifas e preços estabelecidos
pelo Estado.
454 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

6. A requerida vem comercializando na Praia cartões de chamada pré-


pagos em versões de 10 US$ e 20 US$ – que, utilizando o serviço de Internet
estabelecido pela A, dão acesso ao portal www.phoneserver.com (docs 1 a 3).
7. O qual permite terminar chamadas numa linha telefónica em qualquer
parte do mundo;
8. À margem das infra-estruturas públicas de comutação telefónica
internacional geridas, em exclusivo, pela requerente.
9. A tarifas muito mais baixas que as oficiais praticadas pela requerente,
10. Deste modo, está a requerida a propiciar um serviço telefónico entre
Cabo Verde e outros Países comutado e processado à margem e em violação
exclusivo de que a requerente é titular.
11. Sendo crescente o número de utilizadores, atento ao facto de as tarifas
de tal serviço serem mais baixas que as oficiais praticadas pela requerente.
12. Tal situação prejudica, manifestamente, a requerente,
13. Pois, permite um número crescente de ligações telefónicas internacionais
a partir de Cabo Verde, sem que a requerente possa cobrar as respectivas tarifas.
Ora,
14. Assegurar as ligações internacionais de Cabo Verde, em matéria de
telecomunicações é missão de serviço público de telecomunicações.
15. O qual deve e só pode ser assegurado, em exclusivo, por operador que,
ou é o Estado directamente, ou é a concessionária do serviço público.
16. Seja qual for a categoria de serviço de telecomunicações em que tais
ligações internacionais se integrem.
17. Por isso, a actividade da requerida é ilegal, violado o referido.
Mas,
18. Mesmo que entenda que o serviço prestado pela R – aproveitando o
serviço complementar de Internet estabelecido pela A – é um mero serviço de valor
acrescentado,
19. Sempre a actividade da R deve, a mesma, ser considerada ilícita,
20. Pois tais serviços de valor acrescentado só podem ser prestados
ou pela concessionária de serviço público ou por empresa de telecomunicações
complementares licenciada para o efeito ou por pessoa singular ou colectiva
autorizada.
21. Autorização que compete ao membro da Governo responsável pelas
telecomunicações e obedece aos requisitos e procedimentos estabelecidos no
Decreto-lei nº. 70/95, de 20.11 e na Portaria nº. 69/95, de 28.12.
22. A R não se inclui em qualquer das referidas categorias, pois,
nem é concessionada de serviço público, nem operadora de telecomunicações
complementares e nem possui a autorização devida.
23. Pelo que não pode prestar serviços de telecomunicações de valor
acrescentado.
e outros escritos jurídicos 455

Requerer que a providência seja decretada sem audiência prévia da


requerida que poderá por em risco a fim da mesma sem permitir-lhe ocultar os
cartões em questão.
Juntou documentos.

O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da


hierarquia.
O processo mostra-se isento de nulidades que o invalidem na sua
totalidade.
As partes dispõem de personalidade e capacidade judiciárias e são
legítimas.
Não há excepções, outras, de que importa conhecer desde já.
Recebido liminarmente o requerimento inicial, pelos documentos juntos
resultam provados, ainda por verosimilhança, os seguintes factos:
A requerente é concessionária do serviço público de telecomunicações de
serviço público em Cabo Verde, com o exclusivo relativo ao serviço público de
telecomunicações entre Cabo Verde e outros países.
A requerida vem comercializando na Praia cartões de chamada pré-pagos –
em versões de 10 US$ e 20 US$ – que, utilizando o serviço de Internet estabelecido
pela A, dão acesso ao portal www.phoneserver.com.
- As tarifas são muito mais baixas que as oficiais praticadas pela
requerente.
- Tal situação prejudica, manifestamente, a requerente.
- A requerida não é concessionária de serviço público, nem operadora de
telecomunicações complementares.
Preceitua o art. 399.º do Código de Processo Civil que «Quando alguém
mostre fundado receio de que outrem, antes da acção ser proposta ou na pendência
dela cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer, se
ao caso não convier nenhum dos procedimentos regulados neste capítulo, as
providências adequadas à situação, nomeadamente a autorização para a prática
de determinados actos, a intimação para que o réu se abstenha de certa conduta,
ou a entrega dos bens móveis e imóveis, que constituem objecto da acção, a um
terceiro, seu fiel depositário».
Verifica-se que do citado legal ressaltam os seguintes requisitos:
1º. – A providência a obter não pode estar abrangida por qualquer das
outras medidas cautelares legalmente nominadas.
2º. – Há-de existir um direito.
3º. – O requerente tem de experimentar um receio fundado de que esse
direito venha a sofrer lesão grave e de difícil reparação.
4º. – Não pode resultar da providência prejuízo superior ao dano que ela
visa evitar.
Passemos a verificar se se encontram ou não preenchidos os requisitos
legalmente exigidos para o decretamento da presente providencia cautelar.
456 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

O primeiro requisito se mostra preenchido, visto que a medida cautelar


adequada é a presente medida dai que o requerente não poderia lançar mão de
outras medidas cautelares legalmente fixadas.
O segundo requisito também se mostra preenchido. Pois, a requerente, por
ter a exclusividade na exploração do serviço público de telecomunicações entre
Cabo Verde e outros Países, fez elevadíssimos investimentos nos serviços fixos de
ligações telefónicas internacionais, tem direito de ser ressarcido dos prejuízos que a
requerida lhe provocou com a comercialização, por parte desta, na Praia de cartões
de chamadas pré-pagos, impedindo-lhe assim de recuperar esses investimentos
através de cobrança de tarifas e preços aos utentes.
Quanto ao terceiro requisito teria o requerente que alegar e indiciariamente
provar que experimentou fundado receio de que a continuação da lesão do seu
direito à cobrança da tarifas e preços, é de tal ordem que, sem a medida ora
requerida o seu direito a recuperação dos investimentos feitos no serviço fixo de
ligações telefónicas internacionais, corria o risco de sofrer lesão grave e de difícil
reparação.
Apurou-se que o preço dos cartões pré-pagos praticados pela requerida é
de valor muito inferior ao preço praticado pela requerente no seu serviço fixo de
ligações telefónicas internacionais.
Assim não custa acreditar que o risco de violação do direito da requerente
é real e que a comercialização dos cartões pré-pagos pela requerida pode provocar-
lhe prejuízos de difícil reparação.
Realmente no quarto requisito onde se diz que «não pode resultar da
providência prejuízo superior ao dano que ela visa evitar», há que indagar se
a providência em causa é adequada e suficiente para impedir a continuação
da comercialização dos referidos cartões pré-pagos sem que daí resulte para a
requerida prejuízo superior ao dano que se quer evitar na esfera patrimonial da
requerente.
Se se tomar a medida de intimar a requerida para abster-se de importar e
comercializar os referidos cartões, tal facto não provocará na sua esfera jurídico
patrimonial um prejuízo superior ao dano que com o decretamento da presente
providência se pretende afastar.
Porque a apreensão dos mencionados cartões pré-pagos, por receio
dos mesmos serem ocultados pela requerida, não pode ser objecto da presente
providência, essa medida deve ser desatendida.
Nestes termos, julgo injustificada a primeira medida (apreensão de todos
os cartões de chamada em poder da requerida) e justificada a segunda, e, em
consequência, ordeno que a requerida, MULTIDATA, LDA, seja:
- Intimada para abster-se de importar e comercializar os cartões de chamada
pré-pagos, em versões de 10US$ e 20US$ que, utilizando o seu serviço de acesso
de Internet, dão acesso ao portal www.phoneserver.com.
e outros escritos jurídicos 457

Custas pela requerente, com taxa de justiça que fixo em ¼ (um quarto) do
correspondente valor da acção.
Registe e notifique.
Praia 21 de Abril 2004
O Juiz de Direito,
Assinado ilegível

ANOTAÇÃO

A Multidata é uma sociedade por quotas de responsabilidade


limitada, que tem por objecto a importação e exportação de produtos
informáticos. No quadro da sua actividade a Multidata celebrou com
a firma inglesa PhoneServer um contrato pelo qual a empresa passou
a revender ao público cabo-verdiano cartões de chamadas pré-pagos,
produzidos e controlados pela Phone Server, que poderão ser utilizados
com a tecnologia IP (Internet Protocol) para iniciar uma chamada através
de um PC e terminá-la em qualquer parte do mundo.
Considerando que este serviço viola o seu direito ao exclusivo de
exploração do serviço público das telecomunicações em Cabo Verde, a
Cabo Verde Telecom, SA intentou contra a Multidata uma Providência
cautelar não especificada, seguida de acção principal, pedindo que fosse
decretada a apreensão de todos os cartões de chamada em poder da
Multidata e que esta fosse intimada a abster-se de importar e comercializar
tais cartões.
A CV Telecom fundou a sua pretensão no facto de ter a concessão,
em regime de exclusivo, do serviço público das telecomunicações entre
Cabo Verde e outros países, o qual engloba “a concentração, a comutação
e ou processamento de todo o tráfego de entrada ou de saída relativo a
todo e qualquer serviço de telecomunicações, ainda quando o mesmo,
tratando-se de tráfego de saída, seja originado em rede diferente da da
concessionária, ou, tratando-se de tráfego de entrada, seja destinado a
rede diferente da das concessionária”.
Mais alegou a CV Telecom que, como encargo da referida
concessão, obrigou-se a realizar investimentos elevadíssimos para
estabelecer infra-estruturas de telecomunicações, os quais deve recuperar
através da cobrança de tarifas e preços estabelecidos pelo Estado. Que a
comercialização dos referidos cartões não só viola o direito ao exclusivo
da CV Telecom, como lhe causa prejuízos.
Considerando preenchidos os requisitos do artº. 399º do CPC o Juiz
de Direito da Comarca da Praia desatendeu a pretensão da CV Telecom
no sentido de mandar apreender os cartões vendidos pela Multidata,
458 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

mas intimou esta a “abster-se de importar e comercializar os cartões de


chamadas pré-pagos em versões de 10 US$ e 20 US$, que utilizando o seu
serviço de acesso internet, dão acesso ao portal www.phoneserver.com”.
A douta decisão foi embargada em tempo oportuno e dela se
recorreu igualmente de agravo, o qual corre ainda os seus termos.
Cumpre, pois, apreciar nesta anotação a medida judicial.

§ 1º
Introdução

I - O caso sub judice interfere com as relações entre as Novas


Tecnologias de Comunicação e Informação, convencionalmente chamada
Sociedade da Informação677, e o direito. Esta interacção coloca o jurista
perante temas difíceis. Por isso, tudo quanto diz respeito a este assunto
deve redobrar a humildade do operador do direito. É, pois, de preceito
que todo o jurista, quando confrontado com problemas novos que
digam respeito às relações entre o direito e a Sociedade da Informação,
se posicione com a cautela e humildade necessárias, pois, os erros são
frequentes e para quem tem o poder decidir as relações controvertidas as
injustiças poderão tornar-se irreparáveis.

II - Não é certo que os velhos esquemas mentais devam ser


abandonados. Pelo contrário, eles constituem o grande lastro sobre o qual
o jurista da Sociedade da Informação apoiará a sua participação. Tem-se
falado sobre este ponto em Vinho Novo em Odres Velhos678 para exprimir
esta ideia de continuidade que, na verdade existe, ou não fossem ainda
válidos muitos dos antigos esquemas mentais construídos pelo velho
Direito Romano.
Porém, o processo de transposição requer cautelas e não é certo
que tudo possa ser transposto. Algumas situações confrontarão o jurista
com lacunas, incompletudes e até ilusões de óptica. Poderá mesmo ser
colocado perante situações refractárias.

677 O termo sociedade de informação generalizou-se, mas contesta-se a sua utilização.


Oliveira ASCENSÃO, prefere sociedade de comunicação, mas não cremos que seja fe-
liz a proposta. Na verdade, todas as sociedades são sociedades de comunicação. O que
as distingue da sociedade actual é o aumento exponencial do nível de comunicação
que as novas tecnologias de informação e comunicação hoje permitem. Nos últimos
tempos tem-se proposto a sua substituição pela expressão Sociedade do Conhecimen-
to.
678 Cf. Manuel ª Carneiro da FRADA, in Direito da Sociedade da Informação (Vinho Novo
em Odres Velhos? – A responsabilidade civil das operadoras de internet e a doutrina
comum da imputação de danos) Vol. II, Coimbra Editora, 2001, pp. 7 e seguintes.
e outros escritos jurídicos 459

Alguns institutos mostrar-se-ão desadequados e outros poderão


ser mesmo estruturantes. A localização, por exemplo, que representou
durante séculos a grande segurança do jurista tem sido fortemente abalada
pela Sociedade de Informação. Na verdade, o jurista aprendeu a regular
as situações da vida em atenção à sua localização no espaço. O seu ponto
de partida é o da qualificação para posterior localização e determinação
da lei aplicável.
Todavia, a sociedade da informação se não rompeu, abalou
fortemente a noção de espaço com que durante séculos o jurista trabalhou.
Em alguns casos só por mero artifício jurídico certas situações jurídicas
poderão ser localizadas num determinado espaço jurídico, pois, as razões
que fundam a sua localização neste espaço e determinam a aplicabilidade
de uma determinada lei, poderão ser igualmente válidas para a sua
localização noutro espaço e determinação da aplicabilidade de uma outra
lei.
Se um internauta adquire um pacote de chamadas pré-pago,
utilizando o seu cartão de crédito, a situação jurídica está tão fortemente
ligada ao local da residência habitual do internauta (que só por si suscita
importantes problemas de concretização) como ao local da sede da
empresa que fornece o serviço de telefone sobre IP (internet protocol),
como ao lugar de celebração do negócio que poderá ser diverso dos dois
anteriores. Estes factores encontram-se em igualdade de circunstâncias no
momento da determinação da lei aplicável.

III - Nesta matéria tem-se recorrido a odres velhos abandonados,


como seja o critério do interesse, na formulação vigorosa de Philipe Heck.
Localizações seguras têm sido, pois, buscadas no interesse do menor,
do trabalhador, do consumidor, da parte débil, rompendo assim com
modelos territorialistas.
A Convenção de Roma de 1980 sobre a Lei aplicável às Obrigações
Contratuais fundou um conjunto de soluções localizadoras com base neste
critério do interesse679. Para além da localização fundada em medidas
protectoras, como as anteriormente referidas, a residência habitual do
devedor da prestação característica680 domina toda a sua perspectiva
localizadora, o que não é mais do que a concretização do interesse daquele
que se encontra vinculado àquela das prestações que desempenha o papel
económico e social.

679 Cf. Geraldo da Cruz Almeida, in Convenção de Roma de 19 de Junho de 1980 sobre a lei
aplicável às obrigações contratuais, Lisboa, 1999, pp. 27 e segs e em particular, 55 e segs.
680 Sobre este conceito, cf. Geraldo Almeida, Convenção de Roma..., pp. 40 e segs.
460 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

IV – Este é apenas um exemplo de como a humildade do jurista


deve vir ao de cima quando se trata de se mover nos meandros da
sociedade da informação no seu cotejo com o direito. Na verdade, “a
sociedade da informação surge como pano de fundo no contexto do
exercício dos direitos”681. Pode, pois, dar-lhes uma nova configuração e
consequentemente, tornar aparente uma configuração anterior, assim
como pode permitir a sua reclassificação e modificar o seu modo de
exercício que, na maioria dos casos, agiliza.
O conceito de prudência, jurisprudente, apanágio do jurista, ganha
no novo mundo das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação
uma dimensão redobrada.

§ 2º
O exclusivo: breve configuração jurídica

I – O exclusivo ou a situação jurídica em regime de exclusivo,


define-se pelos seus próprios termos: trata-se da faculdade conferida a
uma pessoa, singular ou colectiva, de exercer um direito, com exclusão de
outras pessoas.
Em variadíssimas situações, por lei, acto administrativo ou negócio
jurídico, poderá ser constituída ou atribuída a exploração exclusiva de
uma obra ou actividade a uma pessoa singular ou colectiva.
Em Direito Público existem dois modos de se constituir uma
situação de exclusivo:
a) – quando a própria lei qualifica o modo de exploração como sendo
de exclusivo, isto é, a lei não consente que naquele sector de actividade
haja outro modo de exploração que não seja a exploração exclusiva;
b) – quando a lei consente a exploração não exclusiva, livre ou
generalizada, mas admite que, verificados determinados pressupostos, por
acto administrativo a exploração possa ser feita em regime de exclusivo.
Na primeira situação o regime de exclusivo é determinado por força
de lei (ope legis). É o que acontece, por exemplo, nos jogos de fortuna ou
azar, cuja exploração é normalmente atribuída, em exclusivo a instituições
de misericórdia, como seja a Santa Casa de Misericórdia, em Portugal,
ou a Cruz Vermelha de Cabo Verde, em Cabo Verde, que, por lei têm a
exploração exclusiva, dos jogos de totoloto e totobola.
Na segunda situação a atribuição do exclusivo decorre de um acto
ou contrato administrativo. No referido acto ou contrato vai associada a

681 Cf. Geraldo ALMEIDA, in Subsídios em torno dos direitos de cidadania na Sociedade da
Informação, Direito e Cidadania, ano VI nº. 19, pp. 231.
e outros escritos jurídicos 461

garantia dada pela Administração, com base nas regras da boa fé, de que
naquele sector de actividade, nenhum outro alvará será passado, sem que
tenha decorrido um certo prazo ou este prazo não tenha sido renovado.

II - O exclusivo poderá ser igualmente objecto de negócio jurídico,


regulado pelo direito privado, como é o caso, por exemplo, de uma
pessoa nomear alguém, com exclusão de outrem, como seu manager,
agente ou representante em determinado negócio ou actividade (futebol,
representação, música ou outras actividades culturais), mediante uma
remuneração ou participação nos lucros da actividade.
Estas situações de exclusivo reguladas pelo direito privado não
apresentam interesse particular para o caso ora em apreço.

III – Tanto nas situações de direito privado, como nas situações de


direito público, o exclusivo poderá ser total ou parcial. Um exclusivo é total
quando não admite a existência de actividades recaindo sobre o mesmo
objecto ou âmbito de exploração, do ponto de vista material, espacial ou
temporal. Assim, uma empresa poderá identificar parte do seu objecto de
exploração, como seja o fornecimento de uma matéria prima, e celebrar
com outra empresa fornecedora dessa matéria prima o exclusivo do seu
fornecimento. Assim, certas empresas francesas da indústria perfumeira
têm contratos de exclusivo de fornecimento de determinadas algas com
empresas portuguesas que cultivam essas mesmas algas. Trata-se de um
exclusivo total, pois, a empresa perfumeira obriga-se a adquirir todas as
algas que a empresa portuguesa cultivar, assim como, do mesmo passo, a
empresa portuguesa se obriga a não fornecer essas mesmas algas senão à
empresa perfumeira francesa. O exclusivo é, nesta medida, bilateral.
Um exclusivo é parcial quando admite fraccionamento do seu
objecto, sem sobreposição funcional de cada uma das partes delimitadas.
Assim, a atribuição de um exclusivo a uma determinada pessoa ou
entidade poderá respeitar apenas à fracção de um território assim como
poderão ser estabelecidos critérios de delimitação fundados numa base
pessoal, como seja o exclusivo de certa categoria de clientes.

IV - O objecto do exclusivo deve ser devidamente delimitado não


só do ponto de vista material, mas também do ponto de vista pessoal,
geográfico ou temporal. Não poderão ser consentidas formulações
indefinidas nem conceitos vagos na determinação do objecto do
exclusivo. Compreender-se-á mais adiante porquê: o exclusivo limita o
direito de acesso aos bens ou à actividade económica gerida em exclusivo.
É, portanto, necessário que os operadores económicos, titulares ou não
462 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

titulares do exclusivo, o conheçam com exactidão. Aquele (o titular) para


que reconheça os limites do seu espaço reservado; este (os não titulares)
para que identifiquem as fronteiras do espaço livre. Em caso de dúvida,
rege-se o princípio da liberdade económica.

V - Elemento importante do exclusivo é o encargo. Trata-se de um


elemento comum à constituição de situações jurídicas de exclusivo, quer
as reguladas pelo direito público, quer as regidas pelo direito privado.
Na situação de exclusivo atribuída às instituições de misericórdia
ou de solidariedade social, como seja a Santa Casa da Misericórdia de
Portugal ou a Cruz Vermelha de Cabo Verde, o encargo exprime-se em
responsabilidades sociais: aquelas entidades ficam vinculadas a destinar
parte dos lucros obtidos com a actividade explorada em regime de
exclusivo em obras de carácter social, tais como o socorro a indigentes;
apoio a necessitados, mas também em actividades públicas de formação,
atribuição de bolsas de estudo ... Em direito público o encargo exprime-
se, numa palavra, na prossecução de interesses públicos com que fica
gravada a pessoa beneficiária do exclusivo.
O encargo no exclusivo regido pelas regras de direito privado
exprime-se, normalmente, em objectivos. A parte gravada com o encargo
compromete-se a atingir determinados objectivos, como seja, alcançar
determinado volume de negócios; contratar com uma pessoa ou entidade
com determinadas características (contratação com um clube estrangeiro,
por exemplo); atingir determinado nível de salário, etc. etc.

VI - O encargo apresenta-se com uma tríplice natureza: revela-se


como ónus, obrigação e sujeição. Enquanto ónus exprime-se na ideia de
que a satisfação de um interesse depende da prática de um certo acto e de
tal modo que a ausência do acto compromete a prossecução do interesse.
Estes actos encontram-se no controlo do beneficiário do exclusivo e a sua
inexecução não envolve qualquer sanção.
O encargo como obrigação reporta o exclusivo com o contrato.
Através do contrato as partes assumem obrigações recíprocas, parte das
quais constituem encargos para o concessionário.
Enquanto sujeição o encargo exprime-se em obrigações inelutáveis.
Reporta o exclusivo com o acto público do Estado investido de jus
imperii.
Esta tríplice natureza do encargo apresenta importante interesse
dogmático que compreensivelmente não analisaremos aqui. O incumpri-
mento de uma ou outra pode levar à aplicação de medidas punitivas (se-
questro, rescisão do objecto da concessão, resgate) ou fazer desencadear a
excepção de incumprimento (exceptio non adimpleti contratus).
e outros escritos jurídicos 463

VII – O exclusivo tem por efeito a supressão da concorrência.


Naquele sector de actividade ou, dentro do mesmo sector de actividade,
em determinada área geográfica, afora o titular do exclusivo outras pessoas
ficam impedidas de exercer essa mesma actividade ou de actuar dentro
da área geográfica delimitada. Consequentemente, o exclusivo limita a
autonomia privada, restringe a liberdade de acção das empresas e, como
tal, pode constituir um entrave ao progresso económico e social.
Como factor restritivo da concorrência, o exclusivo tem um efeito
negativo sobre os preços do produto ou serviço explorado nesse regime,
cuja oscilação fica no critério da entidade concessionária, caso não seja
acautelada no caderno de encargos ou a entidade reguladora não exerça
a vigilância necessária. Como tal, o exclusivo favorece situações de abuso
da posição dominante.

VIII – A regra em direito público é a da inexistência de exclusivos.


E compreende-se porquê: o exclusivo é, senão uma violação, pelo menos
uma forte excepção ou limitação ao princípio da igualdade, da liberdade
de escolha, que constituem direitos fundamentais. O acesso a um
determinado bem económico, cultural, social ou outro pela generalidade
das pessoas singulares ou colectivas fica interditado em favor de outra
pessoa. A liberdade económica fica manietada.

IX - Esta regra tem uma consequência importante do ponto de vista


hermenêutico, pois, em situações de dúvida insanável prevalece o ponto
de vista da inexistência do exclusivo quanto ao ponto em dúvida. Não
poderá ser consentida uma interpretação que torne o exclusivo regra e a
ausência de exclusivo (liberdade económica) excepção.

X - Todavia, a atribuição do exclusivo está normalmente associada


à realização de investimentos que de outro modo não poderiam ser
realizados. Em matéria das telecomunicações o exclusivo está fortemente
condicionado à prestação de um serviço universal.

§ 3º
O exclusivo da Cvtelecom: âmbito material

I – Por contrato de concessão celebrado a 28 de Novembro de 1996 e


publicado em Boletim Oficial II Série nº. 7 de 17 de Fevereiro de 1997, entre
o Estado de Cabo Verde e a Cabo Verde Telecom, SARL, as duas partes
Concedente e Concessionária acordaram quanto aos seguintes aspectos
considerados objecto do Contrato (Cláusula 2ª):
464 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

a) – o estabelecimento, gestão e exploração, em regime de exclusivo,


das infra-estruturas que constituem a rede básica de telecomunicações;
b) – o estabelecimento, gestão e exploração das infraestruturas de
transporte e difusão de sinal e telecomunicações de difusão;
c) – a prestação dos seguintes serviços fundamentais de telecomu-
nicações:
i. serviço fixo de telefone;
ii. serviço fixo de telex;
iii. serviço fixo comutado de transmissão de dados;
d) – A prestação do serviço de difusão e de distribuição de sinal de
telecomunicações de difusão;
e) – A prestação do serviço de circuitos alugados;
f) – A prestação do serviço telegráfico.

II – De harmonia com o disposto nesta cláusula 2ª nº. 1, al. a) o regime


de exclusivo parece limitar-se ao “estabelecimento, gestão e exploração
das infraestruturas que constituem a rede básica das telecomunicações”,
pois, só no quadro desta alínea foi utilizada a expressão “em regime de
exclusivo”. Na verdade, em boa hermenêutica não se poderá estender a
expressão a outras alíneas da mesma cláusula, sem falsear o pensamento do
legislador. Só se poderia fazer esta extensão às demais alíneas da cláusula
2ª se a referência ao “regime de exclusivo” constasse do corpo do artigo e
não apenas em uma das suas alíneas, pois, caso as partes tivessem querido
acordar o regime de exclusivo quanto a todas as situações previstas nas
demais alíneas ou teria feito referência ao regime de exclusivo no corpo
do artigo ou o teria repetido em cada alíneas.
Portanto, temos que concluir que desta cláusula 2ª a atribuição
de exclusivo só respeita ao “estabelecimento, gestão e exploração das
infraestruturas que constituem a rede básica de telecomunicações.

III – O conceito de infraestruturas que constituem a rede básica de


telecomunicações encontra-se previsto no artº. 21º do DL 5/94, de 7 de
Fevereiro e integra “o sistema fixo de acesso de assinantes e pela rede
de transmissão, sendo ainda seus elementos os nós de concentração,
comutação e processamento, essencialmente destinados à prestação de
serviços fundamentais”.

IV – Todavia, a cláusula 4ª do contrato de concessão parece


modificar substancialmente o estabelecido na cláusula 2ª do mesmo
contrato ao estabelecer que “é conferido o regime de exclusivo ao
estabelecimento, gestão e exploração de todas e quaisquer infraestruturas
e outros escritos jurídicos 465

de telecomunicações, à prestação do serviço fixo de telefones e de telex, à


prestação do serviço fixo de circuitos alugados bem como à prestação dos
serviços telegráficos constantes da alínea a), dos pontos i) e ii) da alínea c)
e da alínea e) e f) do nº. 1 da cláusula 2ª”.
Ou seja, a cláusula 4ª.1 altera o nº. 1. a) da cláusula 2ª, dando-lhe
um conteúdo mais amplo. Enquanto a cláusula 2ª nº. 1 a) limita o exclusivo
às infraestruturas “que constituem a rede básica de telecomunicações”, a
cláusula 4ª nº. 1 estende o exclusivo a todas e quaisquer infraestruturas de
telecomunicações.

V - Qual deve ser o entendimento a seguir: aquele que aponta


no sentido de reconhecer o direito ao exclusivo para todas e quaisquer
infraestruturas de telecomunicações ou aquele que aponta no sentido de
que esse exclusivo se deve limitar à rede básica das telecomunicações?
Salvo melhor opinião, a própria cláusula 4ª do contrato de
concessão contém a resposta. Na verdade, ela exceptua no nº. 2 do objecto
do contrato de exclusivo as infraestruturas afectas à emissão, recepção
e transmissão de serviços de teledifusão (alínea a)); as infraestruturas
afectas às telecomunicações privativas (al. b)) e ainda as infraestruturas
de telecomunicações complementares (al. c)).
Do mesmo passo, o nº. 3 da referida cláusula também exclui do
regime de exclusivo as infraestruturas de transporte e difusão de sinal de
telecomunicações de difusão, bem como a prestação de serviço de difusão
e de distribuição de sinal de telecomunicações de difusão.
Portanto, parece de seguir que a expressão “todas e quaisquer
infraestruturas de telecomunicações” a que se refere a cláusula 4ª nº. 1,
promete mais do que dá. Tem, pois, que ser interpretada restritivamente.
Na verdade, “toda e quaisquer infraestruturas de telecomunicações”
aponta para uma abrangência que não deveria consentir qualquer
excepção. Ora, se a própria lei admite excepções como as referidas no nº.
2 da mesma cláusula, então o sentido da expressão não poderá ser o de
“toda e quaisquer infraesturas de telecomunicações”, mas sim de certa e
determinada infraestrutura de telecomunicações.
A conjugação entre esta cláusula 4ª e a cláusula 2ª aponta, pois,
para um regime de exclusivo no que respeita às infraestruturas de
telecomunicações que constituem a rede básica de telecomunicações, na
linha do entendimento segundo a qual nas situações de dúvida insanável,
como esta em que duas cláusulas do mesmo contrato de concessão
apresentam conteúdos diferentes, a melhor hermenêutica é aquela que
aponta para a conservação do regime regra da concorrência e não aquela
que aponta para o regime excepcional do exclusivo.
466 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

VI – Da conjugação entre as cláusulas 2ª e 4ª do contrato de


concessão do serviço público das telecomunicações resulta que a empresa
concessionária tem exclusivo sobre as seguintes matérias:

a) – estabelecimento gestão e exploração das infraestruturas que


constituem a rede básica de telecomunicações;
b) – a prestação do serviço fixo de telefones;
c) – a prestação do serviço fixo de telex;
d) – a prestação de serviço de circuitos alugados;
e) – a prestação dos serviços telegráficos.

VII – Da conjugação das cláusulas 2ª e 4ª do contrato de concessão


resulta que a empresa concessionária não tem exclusivo sobre todas as
demais matérias, nomeadamente:

a) – infraestruturas exclusivamente afectas à emissão, recepção e


transmissão dos serviços de teledifusão;
b) – infraestruturas afectas às telecomunicações privativas;
c) – infraestruturas de telecomunicações complementares;
d) – prestação do serviço comutado de transmissão de dados;
e) – estabelecimento, gestão e exploração das infrestruturas de
transportes.

VII – Tendo em conta o quanto se referiu anteriormente, o nº. 5


da Cláusula 4ª do Contrato de concessão tem que ser entendido em
conjugação com o estabelecido no nº. 1 da mesma cláusula. Tem, pois, uma
incidência subordinada e não absoluta. Isto é, o seu alcance só é válido
relativamente às situações onde foi reconhecido o regime de exclusivo.
Portanto, não pode ser lido como abrangendo todo e qualquer serviço
de telecomunicações, mas sim como abrangendo só aqueles serviços de
telecomunicações cujo estabelecimento, gestão e exploração foi atribuído
em regime de exclusivo.
A não se fazer esta interpretação, ao não se subordinar o nº. 5 da
cláusula 4ª ao nº. 1 da mesma cláusula deixa-se sair pela janela aquilo
que se fez entrar pela porta. Isto é, uma interpretação absoluta do nº. 5 da
cláusula 4ª não é consentida.
Portanto, o nº. 5 da cláusula 4ª do contrato de concessão de
serviço público deve ter o seguinte entendimento: nas situações em que
é reconhecido o exclusivo são englobadas as operações de concentração,
e outros escritos jurídicos 467

comutação e processamento de todo o tráfego, de entrada e saída, relativo


a todo e qualquer serviço de telecomunicações... Em boa hermenêutica
deve-se, consequentemente, entender que o nº. 5 da cláusula 4ª não tem,
nem pode ter incidência, sobre as situações referidas anteriormente não
abrangidas pelo regime de exclusivo.

VIII – Refira-se, aliás, que o contrato presta-se a relevantes problemas


de interpretação, pois, ao incluir no seu âmbito matérias sobre as quais
se pretendeu atribuir um regime de exclusivo e matérias concessionadas,
porém, sem regime de exclusivo, criou situações de clara confusão,
pois, na prática, a detenção pela concessionária das infraestruturas das
telecomunicações e a ausência de uma entidade reguladora, lhe tem
permitido tratar toda a concessão como sendo em regime de exclusivo.

§4
O exclusivo da Cvtelecom: âmbito espacial

I - Nos termos da cláusula 3ª do contrato de concessão, o regime de


exclusivo atribuído nos termos fixados no § anterior vigora relativamente
ao estabelecimento, gestão e exploração das infra-estruturas de
telecomunicações no interior da República de Cabo Verde; entre Cabo
Verde e outros países e ainda em trânsito por Cabo Verde.
O nº. 5 da cláusula 4ª do contrato de concessão vem clarificar, mais
uma vez, o conteúdo da cláusula 3ª considerando que o exclusivo engloba
a concentração, a comutação e o processamento de todo o tráfego de
entrada ou de saída, relativo a todo o serviço de telecomunicações, ainda
quando o mesmo, tratando-se de tráfego de saída, seja originado em rede
diferente da da concessionária, ou tratando-se de tráfego de entrada, seja
destinado a rede diferente da da concessionária.
O alcance desta disposição tem, como já foi referido, que ser
determinado de forma subordinada, ou seja, este alcance está limitado às
matérias que constituem objecto do exclusivo, pelo que a disposição não
poderá ser interpretada de forma isolada.

§ 5º
O exclusivo da Cvtelecom: âmbito temporal

No plano temporal, o exclusivo vigora por um período de 25 anos


(cláusula 6ª do contrato de concessão), o qual teve o seu início no dia 1 de
Janeiro de 1996.
468 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

§ 6º
Exclusivo: o encargo

I - Como já foi referido, o encargo representa a contrapartida


fundamental do exclusivo. Dir-se-á mesmo que sem encargo o exclusivo
surge sem sentido.
O contrato de concessão prevê encargos genéricos e específicos.
O contrato de concessão inclui obrigações específicas no âmbito
das infraestruturas da rede básica e das infraestruturas de transportes
de difusão (cláusula 9ª); obrigações específicas no âmbito da prestação
de serviços de telefones (cláusula 10ª); obrigações específicas no âmbito
da prestação do serviço de telex (cláusula 11ª); obrigações específicas
no âmbito da prestação do serviço telegráfico (cláusula 12º); obrigações
específicas no âmbito da prestação do serviço comutado de transmissão
de dados (cláusula 13º); obrigações específicas no âmbito da prestação do
serviço de difusão e distribuição de sinal de telecomunicações de difusão
(cláusula 14ª); obrigações específicas no âmbito da prestação de serviço
de circuitos alugados (cláusula 15º); obrigações específicas no âmbito do
serviço de telefone e comutado de transmissão de dados prestados através
de RDIS (cláusula 16º).

II - Para completar este conjunto de encargos prevê o contrato de


concessão determinadas prestações gratuitas como seja o número nacional
de socorro; o acesso aos serviços de informação relativos a assinantes,
erros, avarias e reclamações; a edição e distribuição periódica da lista de
assinantes dos serviços fixos de telefones e de telex; a prestação do serviço
gratuito a determinadas entidades, como seja, o Presidente da República,
o Presidente da Assembleia Nacional, o Primeiro Ministro e restantes
membros do Governo, o Presidente do Supremo Tribunal da Justiça e o
Procurador-Geral da Justiça, nos termos a definir em convénio (cláusula
21ª).
Todavia, conforme informações colhidas junto da entidade
reguladora o convénio a que se refere a cláusula 21ª nunca foi celebrado.

III – Não interessa nesta anotação analisar cada uma das situações.
Duas delas, todavia, deverão ser chamadas à colação, pois, o regime dos
encargos a elas associado pode apresentar interesse para a melhor análise
da questão em apreço. Trata-se dos encargos associados à prestação dos
serviços de telefone, previstos na cláusula 10ª; dos encargos associados
à prestação do serviço comutado de transmissão de dados, previsto na
cláusula 13ª.
e outros escritos jurídicos 469

A análise de outros encargos poderá merecer interesse, como sejam


os encargos associados ao serviço de telecomunicações complementares,
regulado pelo DL nº. 72/95 de 20 de Novembro e os encargos associados
ao serviço de telecomunicações de valor acrescentado, regulado pelo DL
nº 70/95, de 20 de Novembro.

IV – A leitura das obrigações específicas da concessionária no


âmbito do serviço de telefones chama a atenção para vários aspectos,
mas só alguns deverão merecer a nossa atenção. Além dos princípios
da legalidade, igualdade no acesso ao serviço pelo público em geral e,
consequentemente, da proibição da discriminação ou da demonstração
de preferência por algum cliente, a Cvtelecom está obrigada a garantir
a “interoperabilidade com serviços de telecomunicações de uso público
prestados por outros operadores”, sempre que tecnicamente viável, e a
introduzir um conjunto de facilidades que flexibilizem a sua utilização
por parte dos utentes em geral (cláusula 10ª nº. 1 als. c) e d)).

V – No domínio das obrigações específicas no âmbito da prestação


do serviço comutado de transmissão de dados, além dos encargos
gerais, a Concessionária está vinculada a “assegurar em condições de
igualdade e não discriminação a prestação ao público em geral, de serviço
de transmissão de dados por comutação de pacotes com características
técnicas harmonizadas em conformidade com as recomendações
aplicáveis, garantindo a sua interligação e interoperabilidade, sempre que
tecnicamente viável, com serviços de telecomunicações de uso público
prestados por outros operadores, quando por estes solicitados e desde
que se verifiquem as especificações técnicas de acesso” (cláusula 13ª al.
a)) e bem assim assegurar o conjunto mínimo dos interfaces para acesso à
rede” (cláusula 13ª al. b)).

De referir que, lamentavelmente, muitos dos encargos a que


a concessionária ficou vinculada pelo contrato de concessão ficaram
dependentes do convénio a que se refere a cláusula 21ª que, entretanto,
nunca foi celebrado.

§ 7º
Análise da medida cautelar: legitimidade das partes

I – É dentro deste quadro jurídico sumariamente delineado


que a medida cautelar e toda a situação jurídica sub júdice tem que ser
analisada.
470 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

II - A sentença em questão deu como assente a legitimidade das


partes. Todavia, as partes só são legítimas quando têm interesse em
demandar e em contradizer. Neste sentido, tem-se por controversa a
legitimidade da Multidata em contradizer. Na verdade, esta empresa
tem por objecto social a importação e comercialização de produtos
informáticos. A importação e comercialização de cartões de chamadas
pré-pagos integram perfeitamente o objecto do seu negócio.
Tendo a concessionária requerente da providência fundado a
sua pretensão na violação do exclusivo de prestação de serviço das
telecomunicações em Cabo Verde e entre Cabo Verde e outros países, a
actividade da Multidata não apresenta adequação suficiente para violar
esse mesmo exclusivo. A Multidata não é uma companhia de telefones e
para violar o direito ao pretenso exclusivo da Cvtelecom a Multidata teria
que incluir no seu objecto social a prestação de serviços telefónicos. Actua
em nome e no interesse da Callserve Communications Limited, limitando-
se a revender os cartões de chamadas pré-pagos que a Callserve produz
com tecnologia própria, software e hardware próprios.
Salvo melhor opinião, a Multidata poderia ter invocado a sua
ilegitimidade e, como tal, deveria ter sido declarada parte ilegítima na
acção.

III - Quem tem de facto interesse em contradizer as pretensões da


Cvtelecom é a Callserve Communications Limited, companhia de telefones
fundada sobre tecnologia IP, com sede em 2 Harbour Exchange Square –
London E14 9GE. É esta empresa que dispõe de infraestruturas adequadas
em softwares e hardwares para prestar o serviço de telecomunicações
sobre IP; é esta empresa que produz, controla e comercializa os cartões
de chamadas pré-pagos e é esta empresa que tem a pretensão de colocar
o seu serviço à disposição de todos os potenciais interessados, em todo
o mundo, incluindo Cabo Verde. Aliás, a Call Serve Communications
Limited tem controlo remoto sobre todos os cartões que emite pelo que
poderá cancelar qualquer cartão que é vendido fora de um território
predeterminado.
Para aceder ao serviço a Phone Serve disponibiliza um number/
PINs para cada utilizador, sob seu controlo soberano, controlo esse que
exerce sobre a própria Multidata, pois, a todo o tempo pode fazer cessar o
serviço prestado através desta empresa.
Em caso de dificuldades no acesso a Phone Serve disponibiliza um
serviço de apoio técnico, através do site htt://www.phoneserve.com/
SuportForm.asp.
e outros escritos jurídicos 471

Portanto, quem está, pretensamente, a violar o direito do exclusivo


da Cvtelecom, concessionária do serviço público das telecomunicações
em Cabo Verde, é a Callserve e não a Multidata.
A legitimidade da Multidata, empresa de estatuto social cabo-
verdiano, só se compreende enquanto agente da Callserve Communica-
tions. Mas então se é assim, a providência não deveria ter corrido entre
a Cvtelecom e a Multidata, mas sim entre a Cvtelecom e a Callserve
Comunication, notificada através do seu agente Mutidata ou mediante
carta rogatória.

IV – Não tendo a Multidata sido declarada parte ilegítima, por falta


de interesse em contradizer, a mesma poderia ter-se socorrido do incidente
processual do chamamento à acção. Invocando a sua qualidade de mero
agente ou revendedor, poderia ter chamado à demanda a Callserve
Communication que é quem, na verdade, se apresenta nesta providência
com interesse em contradizer as pretensões da Cvtelecom e que, portanto,
tem legitimidade passiva.

V - Deve-se, todavia, dizer que são já incontáveis as empresas que


hoje, em todo o mundo, prestam serviços desta natureza. Os serviços
de telefonia via IP encontram-se implantados em mais de 180 países,
representando nalguns países cerca de 50% do serviço prestado, pela
forma como embarateceu as comunicações internacionais.
Note-se, porém, que o desenvolvimento das novas tecnologias
tende a superar a tecnologia actual da VoIP. Nalguns países já se instalou
a guerrilha entre os fornecedores de telefonia IP e outras tecnologias mais
recentes como WiMax e WI-FI, que utilizam redes móveis com maior
potencial que os actuais VoiP e susceptíveis de embaratecer ainda mais as
comunicações, principalmente as comunicações entre dois interlocutores
distantes682.
Não tendo Cabo Verde a pretensão de legislar para o mundo inteiro,
qualquer decisão sobre esta matéria carecerá de efectividade. Será uma
decisão inútil.

VI - A conclusão que se deve tirar é a de que, ainda que a CallServe


ou outra empresa seja chamada à acção por violação do pretenso exclusivo
da Cvtelecom, uma decisão dos nossos tribunais não poderia ser executada,
pois, não seria reconhecida a competência dos nossos tribunais ou das

682 Cf. http://www.wirelessbrasil.org/wirelessbr/secoes/sec_voip.html#1 com maiores


detalhes.
472 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

nossas leis para regular o caso, pelas razões que fiz notar no que respeita
à determinação da lei aplicável.

§ 8º
nulidade da decisão: falta de citação

I – A regra em processo civil é a do princípio do contraditório, regra


esta que, como é jurisprudência constante, “só deve ser sacrificada na me-
nor medida possível e apenas nos casos expressamente contemplados na
lei”683. Um desses casos em que a lei permite, excepcionalmente, ao juiz
tomar uma decisão sem ouvir a parte contrária é a de a audiência poder
por em risco o fim que se pretende alcançar com a providência. Tratan-
do-se de uma medida excepcional o juiz tem, não só o dever de fazer a
opção sobre se deve ou não ouvir a parte contrária, como, optando por
não a ouvir, de fundamentar devidamente a sua decisão, não apenas no
que respeita à verificação dos requisitos da providência, mas também por
que razão considera justificado, no caso submetido à sua apreciação, não
ouvir a contraparte.
A providência em causa foi tomada sem ouvir a parte contrária,
mas em nenhum ponto da decisão está demonstrado que o risco invocado
pela requerente da providência para justificar a não audição da parte
contrária estava demonstrado.

II – Esta omissão torna a sentença nula e de nenhum efeito e,


consequentemente, nulo todo o processado a seguir ao momento em
que o juiz deveria emitir a pronúncia de não ouvir a parte contrária,
acompanhada dos respectivos fundamentos. Numa decisão semelhante
o STJ de Portugal concluiu que “instaurada providência cautelar não
especificada – suspensão de gerente de sociedade por quotas – e abstendo-
se o juiz de ordenar ou dispensar a citação do requerido, limitando-se a
designar dia para inquirição das testemunhas e a decretar a providência
em seguida à produção da prova apesar de o requerido não ter sido citado,
verifica-se a nulidade de falta de citação prevista nos preceitos conjugados
dos artigos 194º, alínea a), e 195º, nº 1, alínea a), do citado Código”684.

§ 9º
Violação do Exclusivo: caracterização jurídica da voz sobre IP

I – Deve-se questionar em que categoria se situa a voz sobre IP


(Voice over IP) para efeitos da sua caracterização jurídica e determinação

683 Cf. Ac. do STJ (Portugal) de 29.4.1998, BMJ 476, pp. 335 e segs.
684 Ibidem.
e outros escritos jurídicos 473

do regime jurídico aplicável. Esta caracterização visa, nomeadamente,


determinar se a voz sobre IP integra ou não o regime de exclusivo
assegurado à Cvtelecom.
Neste particular, há dois aspectos que devem ser diferenciados,
como aliás já foram, porque se trata de actividades diferentes e como tal
sujeitos a regimes jurídicos igualmente distintos: um é a utilização da
tecnologia IP para realizar operações de voz, isto é, a telefonia IP; outro é a
actividade de agenciamento, representação, mediação ou outra actividade
paralela de prestação de serviços complementares em torno da tecnologia
IP.
Trata-se de situações diversas mesmo do ponto de vista jurídico.
Assim, se uma empresa quisesse instalar em Cabo Verde um serviço de
telefonia IP teria que ser autorizada, mediante a concessão de uma licença
de exploração desse serviço. O mesmo não se passa com a actividade de
prestação de serviços associados, como seja a venda de cartões IP ou a
simples faculdade de permitir o acesso IP, através de um cibercafé, v.gr.,
que não está seguramente sujeita ao licenciamento devido para exploração
de um serviço de telecomunicações. Para o exercício destas actividades
basta que a empresa legalmente constituída inclua no seu objecto a
faculdade de prestar esse serviço.

§ 10º
A VoIP como serviço de telecomunicações

I - A medida cautelar, na sequência da argumentação expendida


pela concessionária, considerou que a mesma tem exclusividade “na
exploração do serviço público de telecomunicações entre Cabo Verde e
outros países” – sic e por isso considerou a VOIP também se inclui nesse
exclusivo. Da sentença cautelar não se antolha, todavia, nenhum esforço
no sentido de demonstrar a convicção do juiz. Aliás, essa convicção é tão
segura e de tal ordem que a afirmação da existência de exclusivo não surge
na sentença a título principal, mas sim de forma subordinada. O direito
ao exclusivo consta, na verdade, de uma frase intercalar da sentença que
se lhe refere deste modo: “... a requerente, por ter a exclusividade do
serviço de telecomunicações entre Cabo Verde e outros países, fez ...”.
Parece tratar-se para o juiz de um dado tão adquirido que não carece de
ser demonstrado.

II - A pobreza da decisão revela-se neste ponto gritante.


É do domínio geral que a Administração Pública está vinculada ao
princípio da reserva de lei, segundo o qual os seus actos deverão fundar-
474 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

se numa lei anterior que lhe reconheça a competência para a sua prática.
A regra, aliás, em Direito Público é a de os órgãos da Administração
só poderem praticar aqueles actos para os quais têm competência legal,
contrariamente à regra dominante em Direito Privado segundo o qual
tudo o que não é proibido por lei é permitido.
O princípio da reserva de lei devia, pois, permitir ao juiz questionar
que lei conferiu à Administração o poder de atribuir exclusivos em matéria
do serviço público das telecomunicações, qual o alcance desse exclusivo e
se esse alcance atribuído está ou não em conformidade com a lei.
Esta verificação não foi feita. Aliás, nenhuma norma legal foi
invocada pelo juiz para demonstrar a existência de uma situação jurídica
de exclusivo. Mais: nenhuma norma legal foi invocada para sustentar as
pretensões da concessionária. O único apoio de que se serviu o juiz foi
o argumento carreado ao processo pela Concessionária requerente da
providência o que é compreensivelmente insuficiente.
Tudo se passou como se o argumento da concessionária requerente
não oferecesse contestação e tivesse, como parece que teve, valor de lei.

III – Deve-se, porém, afirmar que o juiz caiu num logro. Na verdade,
dos elementos colhidos pelo juiz para a decisão, vê-se que também a
concessionária requerente não cita nem a lei, nem o contrato em que se
funda o exclusivo, limitando-se a afirmá-lo, sem nenhum suporte legal. E
afirma-o de tal modo amplo que a afirmação se torna falsa.
Refere, com efeito: “a requerente é concessionária do serviço público
de telecomunicações em Cabo Verde” – afirmação parcialmente falsa,
pois, como ficou demonstrado atrás, nem a requerente é concessionária
de todo o serviço público de telecomunicações, como tanto a lei como
o próprio contrato de concessão admitem a possibilidade da existência
de outros operadores; e continua: “incluindo no âmbito da concessão
o exclusivo relativo ao serviço de telecomunicações entre Cabo Verde
e outros países” – afirmação também falsa, pois, como se demonstrou
igualmente o contrato de exclusivo cobre apenas algumas áreas do sector
das telecomunicações entre Cabo Verde e outros países.
Portanto, nem a requerente é a única concessionária possível em
matéria das telecomunicações em Cabo Verde, nem tem o exclusivo sobre
a totalidade das operações de telecomunicações em Cabo Verde. Há um
claro propósito ardiloso no modo como os fundamentos da pretensão são
apresentados ao tribunal. A má fé da concessionária afigura-se patente.

IV – O dever de averiguar a lei aplicável e determinar se as


pretensões da requerente tinham ou não cobertura legal, impunha-se ao
e outros escritos jurídicos 475

juiz por razões redobradas, pois, tratou-se de uma situação em que ele
decidiu o caso concreto sem ouvir a parte contrária. Ora, a não audição
da parte contrária, além de se tratar de uma situação excepcional, só
aceitável nas situações tipificadas na lei – portanto, a lei que permitia
afastar o contraditório tinha que ser mencionada e os fundamentos dessa
preterição claramente apresentados - tem ainda por efeito a dispensa de
colaboração de uma das partes na composição do litígio. Esta dispensa
de colaboração devia redobrar a diligência do juiz, nomeadamente, no
ponto de saber se a requerente era ou não titular do direito de exclusivo
invocado, para não correr o risco de emitir uma decisão injusta.

VI – A qualificação da VoIP como integrando o conceito de


“telecomunicações” pela sua amplitude e falsidade, não permite resolver
a questão jurídica subjacente. Como é jurisprudência corrente, quando
o juiz deixa de se pronunciar sobre uma questão de direito que deveria
apreciar, este facto torna a sentença nula685.

§ 11º
A VoIP como serviço de valor acrescentado

I - A própria concessionária admite no seu requerimento uma


diferente qualificação, mas é para ela uma alternativa marginal, pois, não
lhe permite sustentar o ponto de vista de que o seu direito ao exclusivo
abrange esta matéria. Admite, pois, a possibilidade de o serviço prestado
pela requerida se tratar de um serviço de valor acrescentado, desta feita não
para sustentar a tese da existência e violação do seu direito de exclusivo,
que reconhece não ter sobre os serviços de valor acrescentado, mas para
sustentar a tese de que a requerida estaria a desenvolver uma actividade
ilícita porque não licenciada pelo membro do Governo responsável pelas
telecomunicações.

II - Este aspecto é importante na economia da providência cautelar,


porquanto é a própria requerida a introduzir um elemento de dúvida
sobre o direito que pretende ver acautelado. Este é um outro ponto que
deveria fazer redobrar a diligência do juiz e levá-lo a realizar uma opção,
fundamentada, entre as duas possíveis qualificações admitidas pela
concessionária, já que este elemento de dúvida, introduzido – repita-se
– pela própria concessionária-requerente, põe em causa a verosimilhança
da existência do direito ao exclusivo, cuja atendibilidade modificaria
substancialmente o sentido da decisão.

685 Cf., por todos, Ac. do STA (Portugal) de 24 de Abril de 1996, BMJ nº. 456, pp. 482.
476 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

III – Refira-se, aliás, que é também a própria concessionária


requerente a admitir no seu requerimento que esta diferente qualificação,
aquela que permite caracterizar a venda de cartões de chamadas pré-pagas
como um serviço de valor acrescentado, só poderá ser considerado como
uma actividade ilícita por não se tratar de uma actividade licenciada.
Ora, o controlo de uma actividade não licenciada é algo que compete à
autoridade reguladora do serviço das telecomunicações. Não confere, só
por si, nenhum direito à Cvtelecom que, como qualquer outra pessoa,
pode simplesmente denunciá-la junto de quem de direito. Não pode partir
dessa actividade que, aparentemente, viola normas de polícia económica
para fazer valer direitos contratuais.

IV - Aproveita-se, aliás, para questionar se a actividade da Multidata


de venda de cartões de chamadas pré-pagos necessita de licenciamento e,
na falta deste, se constitui uma actividade ilegal.
A resposta deve ser negativa. A venda de cartões de chamadas
pré-pagos configura-se como uma actividade de agência, mediação,
representação, de acordo com o conteúdo fixado pelas partes, ou mesmo
como uma actividade comercial tout court equivalente à venda dos cartões
de chamadas pré-pagos feita pela Cvtelecom através de outras empresas ou
entidades. Estas empresas ou entidades apenas necessitam que o objecto do
seu negócio inclua a faculdade de adquirir, vender, agenciar ou representar
outra pessoa na comercialização dos bens ou produtos dessa natureza.
Trata-se de uma actividade não sujeita a licenciamento específico. De
outro modo, teríamos que concluir que as actuais bombas de combustível,
o café Sofia e outros representantes e agentes da CvTelecom deveriam
encontrar-se munidos de uma licença para prestação de um serviço de
valor acrescentado para poderem comercializar os referidos cartões. Salta,
pois, à vista que a actividade de venda de cartões de chamadas pré-pagos,
sejam da Cvtelecom, sejam de outra empresa qualquer, não está sujeita a
licenciamento como um serviço de valor acrescentado.
O que está sujeito a licenciamento são os serviços que o Decreto-Lei
nº. 70/95, de 20 de Novembro define como aquele que “tendo como único
suporte os serviços fundamentais ou complementares, não exigem infra-
estruturas de telecomunicações próprias e são diferenciáveis em relação
aos próprios que lhes servem de suporte” (artº. 2º).

§ 12º
Posição adoptada: a VoIP como um serviço de rede de pacotes

I – A telefonia IP é, do nosso ponto de vista, uma modalidade


de serviço de telecomunicações que se integra no serviço de rede de
e outros escritos jurídicos 477

pacotes686. É esta, na verdade, a caracterização feita, nomeadamente,


pela insuspeita 9 Telecom Francesa na resposta às questões apresentadas
pela ART - Autorité de Régulation des Télécommunications, francesa,687 que o
caracteriza como um processo de “transfert de des paquets contenant la
voix”.
A Nicotel VoIP Portugal refere a este propósito: “quando falamos
“Voz sobre IP” estamos nos referindo a telefonia baseada na rede de
pacotes. Na telefonia IP o fluxo de informações (pacotes) passa pela
internet, em vez de usar estrutura telefônica convencional. Dessa forma
todas as chamadas telefônicas são tratadas da mesma forma, independente
de serem locais ou internacionais”688.
No mesmo sentido se pronunciam os serviços de ciência e educação
do Brasil, referindo: “A tecnologia VoIP consiste em trafegar voz e
dados através da rede de pacotes no protocolo IP (Internet Protocol).
Esta tecnologia é baseada em padrões e recomendações e aprovado por
institutos de padronização internacional, como por exemplo, o IETF ou o
ITU. Com a utilização desta tecnologia a ligação telefônica poderá ser feita
através do computador ou mesmo de um telefone689.

II – A telefonia IP não se confunde, portanto, com a telefonia


tradicional. O que permite uma eventual confusão entre estes dois
modos de comunicação é a associação de dois elementos: o afastamento
geográfico de quem emite e quem recebe uma mensagem e a ilusão,
assente numa inércia histórica, de que a comunicação está a atravessar
fronteiras. Na verdade, estamos habituados a pensar que, quando fazemos
uma chamada de Cabo Verde para os EUA, por exemplo, estabelecemos
um circuito entre dois ou mais interlocutores, um em Cabo Verde, outro
nos EUA. E na verdade assim é na tecnologia tradicional que requer o
estabelecimento de um circuito entre dois assinantes.
Ora, na tecnologia IP “com a utilização de redes de pacotes para
tráfego de voz elimina-se a necessidade da presença de um circuito.
Dentro destes conceitos, a voz é empacotada e transmitida em redes de

686 Por comutação de pacotes entende-se a “técnica de transmissão de dados que divide a in-
formação em envelopes de dados discretos, denominados pacotes. Desse modo, em caso de falha
durante a transmissão, a informação perdida afeta uma fração do conteúdo total, em vez de afe-
tar o todo. A estação receptora encarrega-se de montar os pacotes recebidos na seqüência correta
para reconstruir o arquivo ou sinal enviado” - Glossário das Tecnologias da Informação.
687 Cf. http://www.art-telecom.fr/publications/9telecom.htm#
688 Cf. http://voip.magoarte.com/voip-nikotel_en.htm
689 http://www.abafando.hpg.ig.com.br/ciencia_e_educacao/8/index_int_11.html
478 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

computadores juntamente com os dados”. No ambiente da internet a


voz é tratada do mesmo modo como são tratados outros elementos tais
como representações gráficas, vídeo, imagem, etc. Quem diz “Cvtelecom”
na Internet, seja porque o escreveu numa página Web, num email, ou
o pronunciou perante um telefone IP, diz algo que é reconhecido pela
tecnologia IP como bits, representados pelos sinais 0 e 1.
Como assegura um autor, “telecommunications companies have to
face the fact that voice is becoming nothing more than a data stream. Voice
is becoming another application riding on IP”690. Portanto, a voz é hoje
apenas um dado passível de ser transformado em bits 0 e 1, empacotado,
transmitido e desempacotado como qualquer outro dado.
Recentemente foi mesmo descoberta uma tecnologia que permite
a cegos navegarem na internet, o que quer dizer que esse pacote tem
sido cada vez mais aperfeiçoado de modo a permitir receber e transmitir
representações sensitivas de escritas, imagens, vídeo, sons...
E as tecnologias de informação têm vindo cada vez mais a melhorar
os softwares e hardwares utilizados nesse mecanismo de conversão da
voz em dado, eliminando, paulatinamente, alguns defeitos ligados,
nomeadamente, ao tempo de transmissão de voz, como quem diz, ao
empacotamento e desempacotamento; eliminação do ruído; supressão
do eco traduzido na repetição da voz de quem realiza uma chamada IP;
aumento da velocidade de transmissão, etc.etc. Na verdade, reconhece-se
que a qualidade de uma chamada IP é, ainda hoje, inferior à qualidade
de uma chamada pelos meios tradicionais, precisamente em virtude da
ausência de um circuito.

III – A tecnologia IP pelo modo como opera, superou o conceito de


chamada interna e chamada internacional. No conceito actual uma chamada
é internacional quando estabelece um circuito entre dois interlocutores
situados em pontos geográficos politicamente diferenciados. O conceito
de internacional é, portanto, um conceito geo-político.
A tecnologia IP superou este conceito. Uma comunicação
internacional é tratada como se se tratasse de uma chamada local. Melhor
ainda: através na utilização da tecnologia de rede de pacotes deixa de
haver chamadas internas e chamadas internacionais, porque todas as
chamadas são tratadas da mesma maneira. Passa a haver simplesmente
chamadas. Quer o nosso interlocutor esteja no Japão ou em Cabo Verde;
nos Estados Unidos da América ou em Portugal o processo de tratamento
da mensagem, do pacote, é sempre o mesmo. Tudo se passa como se

690 http://www.voip-belgium.be/index.php.
e outros escritos jurídicos 479

estivéssemos a utilizar uma rádio de Cabo Verde para comunicar com


alguém numa rádio do Japão, dos EUA ou de Portugal. Aliás, diz-se
mesmo que a telefonia através da Internet se iniciou como uma espécie de
rádio de amadores.
IV - O quadro que se segue apresenta as principais diferenças entre
as duas tecnologias:

Telefonia tradicional Telefonia de internet


-Fundada em comutação de -Fundada em comutação de
circuitos pacotes
-Permite distinguir claramente um -Não utiliza um circuito, nem
circuito no interior de um país e um interno nem internacional
circuito internacional
- Uma chamada internacional Uma chamada internacional não
utiliza maiores infraestruturas que utiliza maiores infraestruturas que
uma chamada interna uma chamada interna
- Uma chamada internacional é, Uma chamada internacional é
portanto, mais cara que uma chamada tratada como uma chamada local
interna

- oferece (ainda) maior segurança - é mais vulnerável


- as escutas só são, em princípio, - está propenso à acção dos hackers
possíveis nos termos da lei que poderão realizar escutas
indevidas
- o serviço é oferecido pelas - o serviço é oferecido por qualquer
companhias de telefone nacionais companhia de telefone IP em todo o
mundo
- o serviço só pode ser adquirido - O serviço pode ser adquirido em
no território nacional qualquer parte do mundo
- a lei que regula este serviço é, em - a lei que regula este serviço é a
princípio, a lei local que resultar do direito de conflitos
aplicável: em regra é a lei do devedor
da prestação característica, ou seja, a
da sede da empresa que presta o
serviço (inglesa, vgr)
- o consumidor só poderá - o consumidor poderá prevalecer
prevalecer da lei local de todas as leis em contacto com a
situação jurídica
480 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

V - Outras diferenças são apontadas por Luis Enrique Torreyes


Rico nos termos seguintes:
“...las redes de voz y datos son esencialmente diferentes. Las redes
de voz y fax, que emplean conmutación de circuitos, se caracterizan por:
. Para iniciar la conexión es preciso realizar el establecimiento de
llamada.
· Se reservan recursos de la red durante todo el tiempo que dura la
conexión.
· Se utiliza un ancho de banda fijo ( típicamente 64 Kbps por canal
de voz ) que puede ser consumido o no en función del tráfico.
· Los precios generalmente se basan en el tiempo de uso.
· Los proveedores están sujetos a las normas del sector y regulados y
controlados por las autoridades pertinentes (en nuestro caso, el Ministerio
de Fomento y la Comisión del Mercado de las Telecomunicaciones).
· El servicio debe ser universal para todo el ámbito estatal.
Por el contrario, las redes de datos, basadas en la conmutación de
paquetes, se identifican por las siguientes características:
· Para asegurar la entrega de los datos se requiere el direccionamiento
por paquetes, sin que sea necesario el establecimiento de llamada.
· El consumo de los recursos de red se realiza en función de las
necesidades, sin que, por lo general, sean reservados siguiendo un criterio
de extremo a extremo.
· Los precios se forman exclusivamente en función de la tensión
competitiva de la oferta y la demanda.
· Los servicios se prestan de acuerdo a los criterios impuestos por
la demanda, variando ampliamente en cuanto a cobertura geográfica,
velocidad de la tecnología aplicada y condiciones de prestación”691.

VI – Um sistema de telefones IP requer investimentos avultados


que não se esgotam num simples processo de venda de cartões, como
mostra o quadro seguinte:

691 in www.monografias.com
e outros escritos jurídicos 481

Rede IP - Fonte: http://www.monografias.com

§ 13º
A tecnologia IP e o exclusivo da Cvtelecom

I – Assim, à pergunta sobre se a Cvtelecom pode reclamar


exclusivo sobre um serviço de telefones fundado na tecnologia IP, a
resposta deve ser negativa.
Como se demonstrou anteriormente, o exclusivo da Cvtelecom
não abrange o serviço fixo comutado de transmissão de dados que,
de acordo com o nº 4 da cláusula 4ª é prestado “em termos de serviço
universal”. Neste particular, o contrato de concessão prevê obrigações
para a concessionária de explorar directa ou indirectamente o serviço; de
assegurar, em condições de igualdade e não discriminação a transmissão
de dados por comutação de pacotes e ainda de garantir a “interligação
e interoperabilidade sempre que tecnicamente viável com os serviços
de telecomunicações de uso público prestados por outros operadores”
(cláusula 13ª).
Ou seja, o contrato de concessão impõe à concessionária o encargo
de facilitar e viabilizar a convergência tecnológica692.

692 A convergência tecnológica exprime a “tendência de união de várias tecnologias num úni-
co equipamento - por exemplo, palmtops e celulares, TVs e computadores etc. Também
pode significar, no âmbito da prestação de serviços, a transmissão de voz, dados, áudio e
vídeo - com e sem fio, por uma única operadora” – Glossário sobre tecnologia da informação.
482 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

II - Refira-se, aliás, que, pelo seu carácter recente o contrato de


concessão celebrado entre Cabo Verde e a Cvtelecom não poderia ter
previsto semelhante serviço, mormente incluí-lo no regime de exclusivo.
Considera-se, com efeito, que a tecnologia relativa à VoIP só muito
recentemente fez o seu aparecimento. Foi no ano de 1995, portanto, nas
vésperas da celebração do contrato de exclusivo com a Cvtelecom (1996)
que a Pentium introduziu nos computadores pessoais (PC) a placa de
som. Parece ter sido a empresa israelita Volcatec que, há cerca de 9 anos,
portanto, depois de ter sido celebrado o contrato de exclusivo com a
Cvtelecom, desenvolveu, com resultados até então pouco satisfatórios, o
primeiro software que permitia fazer ligações telefónicas com tecnologia
IP693.

III - Por isso, há dois aspectos que devem ser tidos em consideração:
a possibilidade que as companhias de telefones tradicionais têm de
utilizar a tecnologia IP e de nos fornecer um serviço a baixo custo,
fazendo passar a ilusão de que está a prestar-nos um serviço fundado na
tecnologia tradicional, cobrando, portanto, um valor de longe superior ao
valor real do serviço. Do meu ponto de vista, esta situação que é real, para
além de configurar abuso da parte da empresa fornecedora dos serviços
de telecomunicações, configura crime de burla punível pela lei penal
vigente.

§ 14º
Constitucionalidade do exclusivo

I – O exclusivo concedido à Cvtelecom suscita problemas de


constitucionalidade. Desde logo quanto ao diploma em que se fundamenta.
Na verdade, a atribuição do exclusivo à Cvtelecom tem a sua base legal no
artº. 11º do DL nº. 5/94, de 7 de Fevereiro que identifica o serviço público
de comunicações e preconiza a sua exploração, em regime de exclusivo,
pelo Estado, por pessoa colectiva de direito público ou por pessoa colectiva
de direito privado, mediante contrato de concessão de serviço público.
Sendo o diploma em causa um DL ele vai buscar o seu apoio
constitucional na al. a) do n. 2 do artigo 216º da Constituição da República
de 1992, naturalmente, antes da redacção que lhe foi introduzida pela
Reforma de 1999. Ora, esta disposição respeita a matérias não reservadas
à Assembleia Nacional, o que não é o caso previsto no DL em causa. Na

693 Cf.http://www.estado.estadao.com.br/colunistas/siqueira/2003/05/siquei-
ra030518.html
e outros escritos jurídicos 483

verdade, o diploma regula matérias atinentes aos direitos, liberdades e


garantias fundamentais que, na CR de 1992, ainda antes da revisão de
1999, constituía matéria de reserva relativa da Assembleia Nacional.
Com efeito, o diploma regula questões como o direito de utilizar os
serviços de telecomunicações (artº. 7º); correspondência proibida (artº.
8º); inviolabilidade de correspondência e comunicações (artº. 9º); tarifas
e preços (artº. 10º); o regime de exclusivo e, consequentemente, restrições
à liberdade de escolha e à autonomia privada (artº. 11º); classificação
de bens como domínio público (artº. 21º nº. 3); contém normas sobre a
expropriação por utilidade pública (artº. 24º nº. 2); sobre a regulação da
concorrência (artº. 26º); e estabelece restrições ao princípio de igualdade
entre estrangeiros e cabo-verdianos no que respeita à participação no
capital da operadora das telecomunicações (artº. 29º).
As matérias referidas interferem com o disposto no artº. 188º da
CR, na redacção de 1992. São matérias relativas a direitos liberdades e
garantias; expropriação por utilidade pública; privatização dos bens e
empresas do sector público, que constituem matéria de reserva relativa da
Assembleia Nacional. Assim sendo, para que o Governo pudesse legislar
sobre elas devia munir-se da competente autorização legislativa.
A falta de autorização legislativa torna o diploma organicamente
inconstitucional. Ainda que este diploma tenha sido objecto de ratificação,
o que desconhecemos, como é doutrina corrente, “a ratificação de um de-
creto-lei organicamente inconstitucional não sana a inconstitucionalidade
nem para o passado nem para o futuro”694 . Sendo o diploma organica-
mente inconstitucional está sujeita aos efeitos previstos no artº. 276º da CR
na redacção de 1999. Assim, os tribunais poderão recusar a aplicação das
normas desse diploma, nomeadamente, a que regula, sem autorização le-
gislativa, o regime de exclusivo do serviço público das telecomunicações,
assim como as entidades com legitimidade poderão promover a respecti-
va declaração de inconstitucionalidade.

II – Tratando-se de matéria para as quais seria necessária a autori-


zação legislativa, deve seguir-se que o diploma em causa está igualmen-
te ferido de inconstitucionalidade formal. Na verdade a forma adequa-
da para os actos legislativos adoptados no uso de autorização legislativa
é a de decreto legislativo695. O decreto legislativo é, na verdade, a forma
dos actos do Governo praticados no uso de autorização legislativa (artº.

694 Cf., por todos, Ac. do STA (Portugal) Acs. Dout. do STA, 298, 1233.
695 Cf. o nosso estudo Tipologia dos actos legislativos na Constituição Cabo-verdiana de 1992,
NA, 2004 (Jornadas Parlamentares).
484 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

257º/2/b)). Trata-se de uma novidade trazida pela Constituição de 1992.


Tem o sentido de decreto com valor de lei formal, ou seja, lei emanada
da Assembleia Nacional. A determinação de quais as matérias que à luz
da Constituição podem assumir a forma de decreto legislativo passa as-
sim pela determinação de quais as matérias que podem ser objecto de
autorização legislativa. Actualmente são todas as previstas no artº. 176º
da CR .

III - É igualmente duvidoso se o diploma em causa não estará feri-


do de inconstitucionalidade material. Um princípio fundamental da cons-
tituição económica é a da “... igualdade de condições de estabelecimento,
actividade e concorrência dos agentes económicos” (artº. 90º nº. 2 al b))
e bem assim o da criação de condições favoráveis ao livre e generaliza-
do acesso ao conhecimento e à informação (artº. 90º nº. 2 al. d)). Da CR
resultam igualmente normas sobre a inserção de Cabo Verde no siste-
ma económico mundial; apoio aos agentes económicos nas suas relações
com o resto do mundo; a protecção das famílias com fracos recursos...
tudo normas que, numa análise aprofundada, que não cabe nos limites
desta anotação, se afiguram violados pelas disposições do DL 5/94, de 7
de Fevereiro, mormente quando interpretado nos termos como o foi pelo
contrato de concessão de serviço público das telecomunicações celebrado
entre o Governo de Cabo Verde e a Cvtelecom, SA.

CONCLUSÕES

I – O tratamento jurídico de temas que interferem com as Novas


Tecnologias de Comunicação e Informação obriga o operador jurídico
a cautelas redobradas, pois, algumas situações confrontarão o jurista
com lacunas, incompletudes e até ilusões de óptica. Não deverão ser
abandonados os métodos tradicionais de tratamento das questões jurídicas,
que na verdade constituem o grande lastro sobre o qual operará o jurista
actual, mas o tratamento jurídico das questões ligadas à Sociedade da
Informação deve redobrar a sua condição de jurisprudente.

II – O exclusivo é a condição jurídica decorrente de lei, acto ou


contrato, de alguém executar uma obra ou exercer uma actividade, com
exclusão de outras pessoas. Tem por efeito a supressão da concorrência e
a limitação da autonomia privada.
Em Direito Público a regra é a da inexistência de exclusivos.

III – Os princípios da Constituição Económica rejeitam a existên-


cia de exclusivos. Em caso de dúvida quanto ao âmbito do exclusivo
e outros escritos jurídicos 485

prevalece o ponto de vista da inexistência do exclusivo sobre o sector


considerado.

IV – Do contrato de concessão do serviço público de telecomunicações


celebrado entre a Cvtelecom e o Estado de Cabo Verde resulta que a
empresa concessionária tem exclusivo sobre
a) – o estabelecimento gestão e exploração das infraestruturas que
constituem a rede básica de telecomunicações;
b) – a prestação do serviço fixo de telefones;
a) – a prestação do serviço fixo de telex;
b) – a prestação de serviço de circuitos alugados;
c) – a prestação dos serviços telegráficos.

V – Do contrato de concessão referido na conclusão anterior resulta


que a concessionária não tem exclusivo sobre nenhum outro sector da
actividade das telecomunicações.

VII – A venda de cartões de chamadas pré-pagos fundados na


tecnologia IP é uma actividade que se insere no objecto do negócio
da empresa Multidata, Lda. Configura-se como a venda de cartões
pelas bombas de gasolina, cafés e outras empresas em representação
da Cvtelecom. Trata-se de uma actividade não sujeita a licenciamento
específico.

VIII – A venda dos cartões referidos na conclusão anterior não


tem adequação suficiente para violar o direito ao exclusivo conferido à
Cvtelecom em nenhum dos pontos referidos na conclusão IV.

IX – Tem adequação aparente para violar o direito ao exclusivo da


Cvtelecom a actividade da Callserve Communication limited, companhia
de telefones fundada sobre tecnologia IP, com sede em 2 Harbour Exchange
Square – London E14 9GE, que dispõe de infraestruturas adequadas em
softwares e hardwares para prestar o serviço de telecomunicações sobre IP
e coloca o seu serviço à disposição de todos os potenciais interessados, em
todo o mundo, incluindo Cabo Verde, quer através da prestação directa
do serviço, quer através dos seus representantes espalhados por todo o
mundo.

X – Todavia, a tecnologia em que se funda a telefonia IP assenta


numa rede de pacotes e não numa rede de circuitos. A Cvtelecom não
486 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

tem exclusivo sobre a rede de pacotes. Logo, não pode reclamar que a
prestação de um serviço de telefones fundado na tecnologia IP viola o seu
direito ao exclusivo.

XI – Em processo civil o princípio do contraditório só poderá ser


afastado nas situações previstas na lei e mediante despacho fundamentado.
Trata-se de uma medida excepcional a que o juiz só poderá recorrer
quando a audiência ponha em risco o fim que se pretende alcançar com a
providência.
A sentença que decretou a cessação da actividade da Multidata,
Lda consistente em vender cartões de chamadas pré-pagos e a respectiva
importação, independentemente da audiência desta empresa, sem
fundamentar a medida, nem de facto nem de direito, é nula e de nenhum
efeito.

XII – A sentença que dá como adquirido que a concessionária


requerente tem o exclusivo sobre determinado sector de actividade, sem
se curar da verificação de qual a lei, acto ou contrato atribui à pretendente
o direito que alega, nem qual o âmbito, alcance e limites do referido
exclusivo é nula é de nenhum efeito.

XIII – O controlo de uma actividade de telecomunicações não


licenciada é da competência da entidade reguladora, no caso do Instituto
das Comunicações e das Tecnologias de Informação. O exercício de uma
actividade não licenciada passível de violar o pretenso exclusivo da
concessionária Cvtelecom confere a esta o poder de denunciar a actividade
ilegal, mas não lhe confere quaisquer outros direitos.

XIV - A norma do DL nº. 5/94, de 7 de Fevereiro com base na qual


foi celebrado o contrato de exclusivo com a Cvtelecom é orgânica, formal
e (eventualmente) materialmente inconstitucional. A eventual ratificação
deste diploma não sana a inconstitucionalidade nem para o passado, nem
para o futuro.
e outros escritos jurídicos 487

VI
NOTAS DISPERSAS
488 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO
e outros escritos jurídicos 489

1. ESTADO CONSTITUCIONAL E ESTADO REAL(*)

1. Foi-me proposto o tema Constituição e realidade ou Estado


Constitucional e Estado real. Se bem compreendo, pretende-se averiguar
em que medida a prática jurídica se adequa com à Constituição vigente.
O título poderá, todavia, ser objecto de, pelo menos, duas
interpretações: por um lado, ele presta-se a averiguar em que medida a
Constituição vigente se adequa ou não à nossa realidade cultural e, por
outro, até que ponto a aprovação de leis ordinárias e a prática administrativa
se tem conformado com a Constituição em vigor. Curiosamente, ambos
os pontos de vista são de política legislativa. No primeiro indagaríamos
sobre a conformação entre a constituição material e a constituição formal
e sobre os limites impostos por aquela ao poder constituinte. Esta não
é, certamente, tarefa de um homem só. No segundo caso, constituiria
objecto da nossa indagação as leis vigentes, particularmente as adoptadas
a partir da entrada em vigor da Constituição, questionando-se da sua
conformidade com o Texto Fundamental. Este trabalho árduo coloca de
uma assentada três interrogações: por um lado, como compatibilizar um
tema dessa natureza com o pouco tempo disponível para esta intervenção
(15 minutos) e, por outro, que matérias escolher para realizar este
confronto com a Constituição, uma vez que será impensável pretender
abarcar a sua totalidade. Por último, porquê a escolha da minha pessoa
para intervir sobre matéria tão comprometedora. Na realidade, nem sou
versado em direito constitucional e as matérias que tenho vindo a estudar
situam-se mais na área do direito civil. Em bom rigor, os meus estudos
de direito constitucional são primários. Não se aperfeiçoaram desde que
celebrei o meu fatídico primeiro ano de direito. Além disso, estando eu a
residir em Portugal, nem sempre a legislação publicada em Cabo Verde
chegou às minhas mãos. Não me reconheço, pois, um domínio total da
legislação cabo-verdiana, particularmente a publicada nos últimos dez
anos, de modo a poder pronunciar-me com segurança sobre o tema que
ora me é proposto.
Entremos, todavia, na aventura.

2. Do meu ponto de vista, a nossa Constituição é globalmente


boa. Acolhe a generalidade dos princípios fundamentais que estruturam
as constituições democráticas modernas. Não vou passá-los todos em
revista, mas irei referir alguns. Assim, no plano das relações internacionais,

(*) Comunicação a propósito da celebração do 10º Aniversário da Constituição.


490 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

acolhe o primado do direito internacional sobre o direito interno, sem


deixar quaisquer dúvidas no sentido de que os tratados e convenções
internacionais regularmente aprovados e ratificados vigoram na ordem
interna cabo-verdiana acima das leis; acolhe princípios tais como o da
coexistência pacífica e da solução pacífica dos litígios internacionais; do
respeito pela soberania dos Estados; do direito à autodeterminação dos
Povos; da igualdade dos Estados; da reciprocidade de vantagens; da
cooperação com todos os povos.
Do ponto de vista das relações entre o Estado e as instituições religio-
sas recebe os princípios da separação entre as igrejas e o Estado e o da
liberdade das confissões religiosas e, no que respeita às relações entre os
órgãos se soberania, garante o princípio da separação e interdependência
de poderes.
Quanto aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos podemos ga-
bar-nos de que a nossa Constituição está, ao lado de outras constituições,
como a portuguesa, claramente na linha da frente. Protege o indivíduo
como pessoa, reconhecendo e garantindo os seus direitos de personalida-
de, como o direito à identidade, à honra, à liberdade, à imagem, à integri-
dade física e moral, à reserva da vida privada e familiar. Proíbe a prisão
sem culpa formada e rodeia o julgamento de todas as garantias judiciais,
desde o acesso ao direito e aos tribunais, passando pela presunção de ino-
cência, pelo direito de defesa, pelo direito ao recuso e mesmo pelo direito
de revisão das decisões judiciais quando fundem em violação de lei subs-
tantiva. Reconhece o direito ao habeas corpus e a medida recente de habeas
data696, instrumental da personalidade individual. Rejeita a pena de morte
e bem assim as penas cruéis, desumanas e degradantes, assim como rejei-
ta a extradição de estrangeiros ou apátridas por motivos políticos ou reli-
giosos ou por crimes a que correspondam pena de morte, prisão perpétua
ou lesão irreversível de integridade física. No que respeita aos estrangeiros,
acolhe ainda o princípio fundamental do tratamento nacional com incidên-
cia na generalidade dos sectores da vida social, ressalvados certos direitos
civis e políticos, e condena a violência, a xenofobia e o racismo.
No que concerne ao chamado quarto poder – a imprensa – estão
reconhecidas as liberdades de pensamento, de imprensa, de informação;
é vedada a censura e garantido o pluralismo de expressão.

696 Desconhecemos se o regime jurídico de habeas data se encontra ou não regulado. To-
davia, independentemente deste facto, é certo e seguro que alguns aspectos ligados à
utilização da Informática carecem urgente de medidas legislativas. Adiante retomare-
mos estes aspectos.
e outros escritos jurídicos 491

Temos, pois, uma Constituição aberta para o mundo e que recebe


o essencial dos valores cristãos, aqueles valores que justificaram a luta
pelas liberdades fundamentais, permitiram a independência nacional e
estimulam agora a construção da nossa identidade. Temos, pois, uma
Constituição francamente democrática.
3. Porém, nem tudo são rosas. No que respeita ao exercício das
liberdades fundamentais, o Estado actua de modo diferente, consoante a
pessoa ou entidade perante quem tais liberdades são exercidas. O direito
clássico concebia o indivíduo como auto-suficiente. Por isso, as normas
que adoptou para o proteger fundaram-se, essencialmente, em princípios
formais: todos são iguais perante a lei. Hoje, compreende-se que, quer face
ao Estado, quer face a determinadas organizações, o indivíduo carece de
protecção. É a concepção do indivíduo hipo-suficiente. A hiposuficiência
individual obriga à necessidade e existência de normas compensatórias ou
de normas finalisticamente compensatórias. Permite igualmente outras
construções fundadas numa base não apenas linguística, mas, sobretudo,
substancial. Fala-se, a propósito, de igualdade material, por oposição à
igualdade formal. Aquela apresenta-se revestida de normas compensatórias
que permitem ajustar equilíbrios a favor de quem se encontra numa posição
de debilidade económica, social, cultural, linguística. Esta construção deu
origem a um princípio geral de direito, o chamado princípio da protecção da
parte mais débil, trazido para a cena jurídica pela mão do direito laboral,
sob a forma de favor laboratoris e que hoje se encontra disseminado quer no
direito constitucional, onde tem expressão na ideia de igualdade material,
como no direito civil e até no direito internacional.
No Direito Internacional Público permitiu o surgimento do direito
de ingerência, que tem possibilitado intervenções mesmo armadas em
diversos países, em defesa das minorias étnicas, linguísticas e culturais. No
Direito Internacional Privado, tido tradicionalmente como uma disciplina
essencialmente formal, não só tem vindo a permitir a superação desse
mesmo formalismo, como possibilitou o aparecimento de mecanismos
que, quer em sede da localização da situação privada internacional,
como no da escolha da conexão relevante, ou no modo de regulação
das situações privadas internacionais protegem a parte mais débil.
Cinco categorias de pessoas são visadas, neste particular, pelo Direito
Internacional Privado: os trabalhadores; os menores; os consumidores e
os deficientes, em alguns casos, as mulheres. Esta área da ciência jurídica
tem vindo a fazer recurso a uma espécie particular de normas jurídicas,
as chamadas normas de aplicação imediata que delimitam elas próprias o
seu âmbito de aplicação no espaço e intervêm com prioridade sobre a lei
normalmente competente segundo a regra de conflitos. Trata-se de normas
492 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

que protegem determinadas políticas económicas, sociais, culturais e que


por isso são igualmente utilizadas como normas compensatórias, ao lado
de outras técnicas como seja a das conexões alternativas que conferem ou
estão associadas a um particular alcance unilateral conferido à autonomia
da vontade, como modo de proteger a parte mais débil. Amiúde confere
igualmente particulares poderes ao aplicador da lei para, em concreto,
atribuir maior protecção à parte mais fraca.

4. Todavia, se o Estado adopta, com facilidade relativa, normas


compensatórias para equilibrar situações de fragilidade de indivíduos
face a outros indivíduos e organizações, com maior dificuldade adopta,
voluntariamente, sem que seja fundada em revolução ou pressão social,
normas que protegem o indivíduo face ao Estado. Na base desta postura
está um conjunto de ideias preconcebidas e falsas, como seja a de que o
Estado não erra, consubstanciada na máxima inglesa segunda a qual the
king can do no wrong que possibilitou que, durante muito tempo, vigorasse
a ideia da irresponsabilidade do Estado, ideia que ainda hoje está para
vingar na generalidade dos países ditos democráticos. Em Portugal, só
recentemente se elaborou um projecto de lei para substituir um decreto-
lei de 1967697, sobre a matéria da responsabilidade do Estado por actos
de gestão pública. Com efeito, responsabilizar o Estado equivale a
responsabilizar os titulares dos órgãos do Estado, daí que aqueles que
estão no Poder não têm normalmente a coragem de adoptar normas que
envolvem a sua própria responsabilização.
Esta postura insere-se num conjunto de mecanismos que o Estado
tem à sua disposição, uns legais, outros ilegais, que lhe permitem
contornar, impunemente, o cumprimento de normas que ele próprio
adopta, incluindo normas constitucionais. São mecanismos que, para
aproximarmos do título proposto para este tema, permitem criar um fosso
entre o comando e a prática constitucional. Esses mecanismos são, do
meu ponto de vista:
- a omissão legislativa;
- o cruzamento de normas de diferente natureza;

697 Cfr. Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967 que inseriu disposições desti-
nadas a regular, em tudo que não esteja previsto em leis especiais, a responsabilidade
civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos
actos de gestão pública e deu nova redacção aos artigos 366º e 367º e à alínea b) do §
1º do artigo 815º do Código Administrativo. Posteriormente a este diploma foi apro-
vado o Decreto-Lei nº 301/99, de 5 de Agosto que definiu níveis de responsabilidade e
actuação dos serviços e organismos públicos intervenientes no circuito da informação,
contabilização e administração das receitas do Estado.
e outros escritos jurídicos 493

- a lei e o regulamento;
- o silêncio administrativo e
- a prática administrativa.
Estes mecanismos são adequados a provocarem um esvaziamento
progressivo da constituição material.
a) - A omissão legislativa ocorre quando o Estado, tendo o dever
de legislar sobre determinada matéria, não legisla, com dolo ou mera
culpa. Quando a omissão corresponde à inobservância de uma norma
constitucional preceptiva estamos em face de uma inconstitucionalidade
por omissão. Quando a omissão corresponde ao incumprimento de uma
norma legal (por exemplo, um regulamento de que dependa a execução
de uma lei) estamos em face de uma ilegalidade.
A omissão legislativa, tal como a própria actividade legislativa698,
deveria envolver a responsabilidade do Estado, mas se quanto à actividade
legislativa não se suscitam dúvidas sobre essa responsabilização, já no
que respeita à omissão do dever de legislar podem suscitar-se dúvidas
fundadas. Desde logo se tomarmos em consideração o dever geral de
julgar consubstanciado no artº. 8º do Código Civil. Se o juiz não pode
abster-se de julgar alegando falta ou obscuridade da lei, então o juiz não
poderia condenar o Estado por falta de lei, ou seja, por omissão legislativa.
Por isso, as duas únicas tentativas que conhecemos, em Portugal,
de responsabilização do Estado por omissão legislativa resultaram
infrutíferas. No Acórdão da Relação de Lisboa, de 14 de Dezembro de

698 A jurisprudência portuguesa teve já a oportunidade de se pronunciar sobre a respon-


sabilidade do Estado por actos legislativos, sendo hoje pacífica no que respeita a este
tipo de responsabilidade. No Ac. do STA, de 24-2-1994, (Bol. do Min. da Just., 434,
396) foi decidido que o Estado pode ser civilmente responsável pelos prejuízos causa-
dos ilicitamente aos cidadãos, através do exercício da função legislativa. Tratava-se de
uma lei que forçava os oficiais do exército a passarem compulsivamente à reserva por
razões de saneamento da função pública. A questão foi levada a tribunal e o Estado
foi obrigado a indemnizar os referidos oficiais “pela diferença entre a retribuição que
lhes caberia se tivessem continuado no activo e aquilo que lhes foi efectivamente pago
durante o período do saneamento”. Cfr. Ainda Ac. do STA, de 10 de Março de 1999,
Acórdão Doutrinários, 449, 675 que considera competente para este tipo de responsa-
bilidades os tribunais civis, com exclusão dos tribunais administrativos; Ac. da Relação
de Lisboa, de 23 de Janeiro de 1996, que se pronuncia nos mesmos termos (Col. Jur.
1996, 1, 102) e ainda Ac. Ac. do S.T.J. de 30-10-1996 (Bol. do Min. da Just., 460, 753), que
se ocupou da questão curiosa de saber se uma lei de aprovação do orçamento podia
ou não envolver a responsabilidade do Estado por acto legislativo. Embora a resposta
fosse afirmativa, pois a lei orçamental é hoje considerada uma lei material, capaz de
envolver a responsabilidade do Estado, circunstâncias ligadas à situação concreta não
justificaram a responsabilização. Ver ainda: Ac. da Rel. da Lis. de 1 de Julho de 1993
(Col. Jur., 1993, 3, 144) e Ac. do STJ de 9.2.1993, BMJ, 424, 582.
494 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

1995699, foi decidido que uma determinada norma do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais deveria ser interpretada de forma lata por forma
a excluir a responsabilidade do Estado por omissão legislativa. No Ac.
do STJ de 30 de Outubro de 1996, já citado, decidiu-se que “só poderia
falar-se de um direito à emanação de normas onde houvesse o direito
de «exigir» uma actuação positiva do legislador, sendo que o direito à
legislação representaria uma violação do princípio da divisão de poderes e
uma «completa subversão da relação de força entre legislativo e judicial”.
O caso Aquaparque, pelo seu carácter mediático, poderá vir a tornar-se
no primeiro caso de condenação do Estado por omissão legislativa, mas
este caso ainda corre os seus trâmites apesar de já ter obtido uma decisão
favorável à tese da responsabilização do Estado700.

b) - O cruzamento de normas de diversa natureza é outra das vias


pelas quais o Estado contorna a Constituição e outras leis da República.
Por vezes realiza-o no interior da própria Constituição, mas outras
vezes fá-lo em leis e regulamentos. Poderíamos chamar a esta técnica
inconstitucionalidade ou simplesmente ilegalidade escondida, parafraseando a
expressão de um teórico do Direito Internacional Privado que criou uma
teoria a que chamou de reenvio escondido. Ela consiste em reconhecer certos
direitos, liberdades e garantias que são posteriormente enfraquecidas
na sua exequibilidade prática ou mesmo retiradas através de normas
orgânicas ou estatutárias. Assim, o Estado fundando-se no princípio da
separação de poderes estabelece de forma interdependente os poderes
Legislativo, Executivo e Judicial. Isto cria direitos na esfera privada dos
cidadãos, nomeadamente, a garantia de que serão julgados por tribunais
independentes e que a legalidade será observada mesmo relativamente
àqueles que participaram do processo de legiferação. Todavia, o grande
calcanhar de Aquiles do princípio da separação de poderes é o ele ser,
inevitavelmente, definido por lei, pois quem faz a lei é o poder legislativo,
parte interessada nessa repartição de competências. Se quem parte e reparte
e não fica com a maior parte ou é tolo ou não tem arte, claro está que o poder
legislativo vai estabelecer restrições aos demais poderes do Estado,
o executivo e o judicial. Se quanto ao poder executivo a questão não é
grave, principalmente nas democracias parlamentares em que o executivo
acaba por ser uma costela do legislativo, quando não acontecem casos
particulares, como o vivido nos últimos cinco anos da nossa democracia,

699 Bol. do Min. da Just., 452, 481


700 Sobre este caso existe ampla documentação na internet. A sentença poderá ser consul-
tada em http://www.verbojuridico.net/jurisp/1i_aquaparque.pdf.
e outros escritos jurídicos 495

em que tudo parecia como se o Parlamento é que era uma costela do


Governo, o mesmo já não se pode dizer do Poder Judicial. Este é a principal
vítima deste parte e reparte... Assistimos recentemente a inviabilização
da nomeação de membros do Conselho Superior da Magistratura
propostos pelo Parlamento, ao que se diz a troco da profissionalização de
deputados. Os estatutos de outras entidades como o Procurador-Geral da
República, dos juizes do STJ, do Tribunal de Contas e ainda do Tribunal
Constitucional, padecem do mesmo vício. Quem propõe ou nomeia,
controla. Quem é proposto ou nomeado fica na dependência de quem o
propõe ou o nomeia. Dirão, mas isto é o resultado da interdependência dos
vários poderes, pois também o PR, os deputados, os membros do Governo
podem ser responsabilizados perante o Poder Judicial. Todavia, não vejo
a Constituição a conferir poderes ao Ministério Público ou aos Tribunais
para impugnarem a nomeação de determinadas pessoas para os cargos de
Ministro ou Secretário de Estado. Politicamente o Presidente da República
pode não aceitar o Ministro ou do Embaixador proposto pelo Governo,
mas nenhuma competência assiste ao Poder Judicial nesta matéria. Este
não pode exercer um juízo de oportunidade sobre a nomeação deste ou
daquele porque se entende que este juízo deve ser puramente político e o
Poder Judicial não exerce funções políticas. Se assim é, então não deveria
competir ao Governo e ao Parlamento interferirem na composição dos
Membros do Conselho Superior da Magistratura e do Conselho Superior
do Ministério Público.
Compreende-se, pois, que tenho fortes reservas quanto ao modelo
constitucional do estatuto das entidades que referi. O modelo que advogo é
o da eleição directa. O PGR deixou de ser o advogado do Estado para passar
a ser o defensor da legalidade. Não se compreende que seja o Governo a
propor a nomeação deste. É certo que o PGR é nomeado pelo PR, mas
visto que a proposta deve partir do Governo, dá-se um enfraquecimento
da competência deste no que respeita à defesa da legalidade. A questão
afigura-se-me tanto mais pertinente quanto é certo que o PGR no exercício
das suas funções pode ter que exercer a acção penal contra um membro
do Governo. Se este membro do Governo for aquele que propôs a sua
nomeação, temos que convir que ele fica limitado no cumprimento do seu
dever.

c) A via, por excelência, pela qual o Estado contorna a Constituição


é a das leis e regulamentos. Estou certo de que se realizássemos
um estudo sério de confronto entre a Constituição e as leis vigentes
chegaríamos à conclusão de que muitas destas normas padecem de
inconstitucionalidade. Isto deve-se a várias razões: a impreparação técnica
496 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

dos nossos deputados; o desleixo; o conluio parlamentar, a ausência de um


Tribunal Constitucional e, sobretudo, a pouca participação e o comodismo
da sociedade civil. O sector da propriedade privada é aquele que mais
tem sido sacrificado. Denunciei em tempos algumas leis adoptadas em
matéria de expropriação por utilidade pública que do meu ponto de vista
são claramente inconstitucionais, como por exemplo a lei que prevê a
transferência oficiosa da propriedade privada para o património do Estado,
sem que os proprietários sejam tidos nem achados, ou a lei que cria as
chamadas Zonas de Desenvolvimento Turístico Integral que são geridas
pelo poder central, sem o concurso das autoridades locais. O Governo
para aprovar estas leis deveria ter sido autorizado pela Assembleia
Nacional. Ora, verifiquei que a lei de autorização legislativa foi aprovada
por voto unânime dos deputados, incluindo os da oposição. Neste caso
não terá sequer havido conluio parlamentar, mas apenas desleixo da
bancada da oposição.
Além de normas sobre a propriedade privada, citem-se ainda
a título exemplicativo algumas leis do trabalho que estão pejadas de
inconstitucionalidades.

d) Outras vezes o Estado escuda-se no silêncio para não reconhecer


ou para cercear direitos, liberdades e garantias individuais estabelecidos
constitucionalmente. Trata-se de um comportamento omissivo, muitas
vezes carregado de dolo, outras vezes simplesmente culposo ou
negligente perante uma situação em que tinha o dever de reagir, positiva
ou negativamente.
A problemática do silêncio da administração não é de agora (1).
Data do século XVIII e permitiu até a criação de uma teoria do silêncio da
administração. Todavia, ainda hoje continua a causar graves prejuízos ao
cidadão. Se fizéssemos uma estatística quanto ao número de requerimentos
endereçados à Administração e o número de respostas obtidas certamente
encontraríamos um imenso buraco negro.
O silêncio da administração tem várias causas sendo a mais grave
de todas elas a cultura do desrespeito da Administração para com o
cidadão. Ainda não se perdeu a ideia de que a Administração presta um
favor ao cidadão e que, por esta razão, aquela não tem uma obrigação
legal de responder os requerimentos e petições desta. É uma cultura
retrógrada cerceadora do desenvolvimento. Uma Administração que se
reclama para o desenvolvimento não pode sobrestar-se indefinidamente
sobre as petições dos administrados, pois está a limitar-lhes a respectiva
participação cívica, está a prejudicar os seus negócios e a atrasar os
respectivos projectos. A um regime do silêncio da Administração tem
e outros escritos jurídicos 497

que estar necessariamente associada uma disciplina da responsabilidade


da Administração e dos seus agentes. Quem tinha o dever de responder
e não respondeu e com a sua inacção causou prejuízos a terceiros, deve
ser responsabilizado por perdas e danos. E nessa disciplina deve ser
estabelecida uma quota de responsabilidade daqueles que agem em nome
e no interesse do Estado.

e) - Para ilustrar o aspecto de como a prática administrativa


legitima situações de inconstitucionalidade, vamos pegar na problemática
do ordenamento do território e do planeamento urbanístico. Este não será
um ponto em que existe um grande fosso entre o quadro constitucional
e as leis vigentes. O conjunto das leis adoptadas, quer antes, quer depois
da Independência Nacional tem potencialidades bastantes para a defesa
do território. O domínio público está mais ou menos disciplinado, a
propriedade privada está garantida, ressalvadas as situações que referi,
o domínio particular do Estado e das autarquias locais está delimitado,
temos um quadro legal em matéria de expropriação por utilidade
pública, temos um Regulamento de Construção Urbana e temos uma Lei
das Bases de Ordenamento do Território e Planeamento Urbanístico, com
os seus regulamentos que, embora ultrapassados, prevêem normas que,
devidamente aplicadas, disciplinam a utilização do espaço.
Todavia, tenho denunciando a utilização sem regras de bens
do domínio público, o corte indiscriminado de árvores e, sobretudo,
a negligência consciente na aplicação de normas legais relativas ao
ordenamento do território e planeamento urbanístico, condutas que
violam o direito das pessoas constitucionalmente reconhecidos.
Para concluir referimos que a lei não está na disponibilidade de
quem a faz.
Quem tem o poder de ditar normas, seja o Parlamento, Governo,
autarquias locais, a partir do momento em que conclui o processo de
legiferação desaparece por detrás da lei que fez aprovar e passa a estar
sujeito, em igualdade de circunstâncias com outros cidadãos, ao comando
das suas normas quer para as observar, quer para as fazer observar.
Uma Câmara Municipal ou o Governo não pode, pois, decidir sobre o
momento em que aplica ou deixa de aplicar as leis. O elemento que dá
o mote para a aplicação da lei é a concretização do facto que ela tipifica.
Este acontecimento da vida real deve desencadear, inevitavelmente, a
aplicação da lei, pois de outro modo há infracção à mesma lei.
Esta é uma ideia que normalmente é esquecida: a de que a norma
legal contém necessariamente dois comandos: um dirigido àqueles que
devem observar a lei; outro endereçado àqueles que devem fazer observar
498 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

a lei. Uns e outros infringem a norma quando não observam o comando


que contam. E a infracção destes últimos não é apenas disciplinar e não
pode envolver apenas responsabilização política. É adequada a justificar
mesmo responsabilidade civil e responsabilidade criminal.
e outros escritos jurídicos 499

2. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA EM MATÉRIA DE TAXA

I - Órgão de soberania com competência legislativa

Na nossa ordem jurídica a competência legislativa reparte-se entre


dois órgãos de soberania: a Assembleia Nacional e o Governo.
O órgão legislativo, por excelência, é a Assembleia Nacional, mas
o Governo pode igualmente funcionar como órgão legislativo, em três
situações fundamentais:
- nas situações em que recebe autorização legislativa da Assembleia
Nacional, para legislar sobre matérias que não integram a reserva absoluta
deste órgão legislativo701;
- nas situações em que o objecto da matéria seja a organização e o
funcionamento do Governo702 - note-se, aliás, que esta matéria constitui
reserva exclusiva do Governo, não podendo a Assembleia Nacional
legislar sobre ela;
- e ainda nas situações em que a matéria não foi objecto da reserva
legislativa da Assembleia Nacional, nem absoluta, nem relativa.
As matérias para as quais a Assembleia Nacional não pode conceder
autorização legislativa ao Governo para legislar sobre elas são as previstas
no artº. 175º da Constituição da República que tem precisamente por
epígrafe competência legislativa absolutamente reservada. Na sua essência esse
leque de competências integra o conjunto das matérias que constituem
a estrutura fundamental da soberania nacional, do poder politico e da
conservação dos fundamentos do Estado de direito democrático. A
Assembleia Nacional não pode, pois, autorizar o Governo a legislar sobre
matérias que, na sua essência, constituem os esteios fundamentais da
estrutura do Estado: Povo, território e Poder político.
Existem, todavia, outras matérias que, não obstante constituírem
objecto de reserva da Assembleia Nacional, a Lei fundamental atribui ao
Governo competência para legislar sobre elas. Este leque de matérias está
previsto no artº. 176º da CR que tem por epígrafe competência legislativa
relativamente reservada.

701 Nos termos do artigo 203º nº 2 al. b) da CR, “compete ainda ao Governo, no exercício
de funções legislativas fazer decretos legislativos em matérias relativamente reserva-
das à Assembleia Nacional, mediante autorização legislativa desta”.
702 Nos termos do artº. 203º nº. 1 “compete exclusivamente ao Governo, reunido em Con-
selho de Ministros, no exercício de funções legislativas, fazer e aprovar decretos-lei e
outros actos normativos sobre a sua própria organização e funcionamento.
500 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

A diferença essencial entre as matérias previstas no artº. 175º da CR e


as previstas no artº. 176º da CR está em que estas, embora não interferindo
com os esteios fundamentais da estrutura do Estado, prendem-se, todavia,
com os meandros da sua organização. Por isso, pela sua importância a
Lei Fundamental coloca estas matérias sob a competência da Assembleia
Nacional, mas permite que, sob o controlo da mesma Assembleia, o
Governo possa legislar sobre elas.
Para que o Governo possa legislar sobre essas matérias mostra-
se necessário que a Assembleia Nacional lhe confira uma autorização
legislativa, de harmonia com as condições e os procedimentos previstos no
artº. 181º da Constituição da República, em termos que não analisaremos
aqui703.
As demais matérias integram a competência residual, ou seja,
respeitam àquelas matérias que, não estando enquadradas nem na
competência absoluta da Assembleia Nacional, nem na competência
relativa da Assembleia Nacional, integram a competência concorrente
tanto da Assembleia Nacional como do Governo. Isso significa que, tanto
o Governo como a Assembleia Nacional pode ter a iniciativa de legislar
sobre elas.
Quando tenha sido a Assembleia a legislar sobre estas matérias que
integram a competência concorrente, o diploma em causa assume a forma
de Lei. Quando tenha sido o Governo a legislar sobre elas, o diploma em
causa assume a forma de Decreto-lei, de harmonia com o preceituado nos
artigos 203º nº. al a) e 257º nº 2 al. c).
Note-se, todavia, que a Constituição da República parece deixar es-
tas matérias mais no âmbito de competência do Governo do que propria-
mente no âmbito de competência da Assembleia Nacional. O legislador
constitucional terá pensado que o leque de matérias já reservado para a

703 Sob a epígrafe regime das autorizações legislativas, dispõe o artº. 181º da Constituição da
República: “
1. As leis de autorização legislativa só podem ter por objecto as matérias da competência
legislativa relativamente reservada da Assembleia Nacional e devem estabelecer o ob-
jecto, a extensão e a duração da autorização, que pode ser prorrogada.
2. As leis de autorização legislativa não podem ser utilizadas mais do que uma vez, sem
prejuízo da sua utilização parcelar.
3. As leis de autorização legislativa caducam com o termo da legislatura, com a dissolu-
ção da Assembleia Nacional ou com a demissão do Governo e podem ser revogadas
pela Assembleia Nacional.
4. O Governo deve publicar o decreto legislativo até ao último dia do prazo indicado na
lei de autorização, que começa a correr a partir da data da publicação desta.
5. As autorizações legislativas conferidas ao Governo na lei de aprovação do Orçamento
do Estado observam o disposto no presente artigo e, quando incidam sobre matéria
fiscal, caducam no termo do ano económico-fiscal a que respeitam.
e outros escritos jurídicos 501

Assembleia Nacional, quer do ponto de vista da competência absoluta-


mente reservada, quer no que concerne à competência relativamente re-
servada, já é de tal modo amplo que parece justificar que estas matérias
sejam deixadas mais para a iniciativa legislativa do Governo.
Com efeito, ao regular a forma dos actos legislativos da Assembleia
Nacional o legislador constitucional não tomou conhecimento destas
matérias que integram a competência legislativa concorrente da
Assembleia Nacional e do Governo. Na verdade, o artº. 256º da CR que
regula a forma dos actos legislativos da Assembleia Nacional estabelece
que os actos legislativos e normativos desta assumem a forma de lei e
regimento. Mais adiante no nº. 3 dispõe que “assumem a forma de lei
os actos previstos nos artigos 171º a), 174º b), c), f), g), e m), 175º, 176º
e 177º b) da Constituição”, nada dispondo sobre os actos que integram
a competência concorrente residual. Só interpretando este nº. 3 como
não tendo carácter taxativo704 chegaremos à conclusão de que também as
matérias que integram a competência concorrente devem assumir a forma
de lei.
Diferentemente aconteceu quando se tratou de atribuir a competência
ao Governo para legislar sobre estas matérias. Tanto o artº. 203º nº. 2, al. a)
como o artº. 257º nº. 2 al. c) dispõem claramente que este acto legislativo do
Governo assume a forma de decreto-lei, donde parece dever admitir-se que
a lei constitucional pensou estas matérias como integrando a competência
concorrente, porém, com primazia para a competência do Governo.

II - Competência legislativa em matéria de impostos e taxas

Delimitado em termos gerais o âmbito de competência legislativa da


Assembleia Nacional e do Governo, vejamos onde se situa a competência
legislativa para regular a matéria dos impostos e taxas.
Clarifiquemos os conceitos. Por impostos devem ser entendidas
as “prestações pecuniárias, sempre coactivas, sem carácter de sanção,
exigidas pelo Estado ou por outro ente público com vista à realização
de fins públicos”. Os impostos distinguem-se das taxas pela natureza
bilateral destas, seu carácter sinalagmático, “pois que à prestação do
particular corresponde uma contraprestação directa e específica por parte
do Estado”. Enquanto que a contrapartida que o contribuinte recebe pelo
pagamento do imposto tem natureza genérica – realização de fins públicos;

704 No nosso estudo sobre a Tipologia dos Actos Legislativos... opinamos no sentido de esta
disposição ter carácter taxativo. Todavia, o facto de não fazer referência à competência
concorrente leva a concluir em sem tido diverso.
502 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

a contrapartida que o mesmo contribuinte recebe pelo pagamento da taxa


tem natureza específica – trata-se de uma prestação concreta, dotada de
sinalagma que se exprime na ideia do utilizador-pagador.
A Constituição da República adopta regimes diferenciados em
matéria da competência para legislar sobre impostos e taxas. Importa,
todavia, esclarecer que a CR distingue as taxas das taxas dos impostos. Estas
constituem os valores específicos das prestações pecuniárias em que o
imposto de traduz. Nada têm que ver com as taxas em sentido próprio.
As taxas dos impostos constituem um elemento da estrutura do imposto,
ao passo que as taxas em sentido próprio constituem a contrapartida
pecuniária de uma prestação feita pelo Estado ou outro ente público.

a) Impostos

À luz da Constituição actual tem-se entendido que a criação de


impostos e das taxas dos impostos constitui objecto de leis reforçadas705.
Trata-se de leis que além de se situarem no âmbito da reserva absoluta
da Assembleia Nacional e que, portanto, não poderão ser objecto de
autorização legislativa, são leis para as quais a Constituição exige maiorias
especiais.
As leis desta natureza fixam as balizas dentro das quais podem
mover-se outras leis, constituindo, por isso, leis das bases ou leis –quadro
e são obrigatoriamente votadas na especialidade. Encontram-se nestas
circunstâncias algumas das leis relativas a matérias da competência
legislativa exclusivamente reservada da Assembleia Nacional, previstas
no artº. 175º da CR, tais como sejam as leis relativas à a) aquisição e perda
da cidadania; b) regime dos referendos nacional e local; c) processo de fiscalização
da constitucionalidade das leis; d) Organização e competência dos Tribunais e
do Ministério Público; e) Estatuto dos Magistrados Judiciais e do Ministério
Público; f) Organização da defesa nacional; g) Regimes do estado de sítio e do
estado de emergência; h) Partidos políticos e estatuto da oposição; i) Eleições e
estatuto dos titulares dos órgãos de soberania e das autarquias locais, bem como
dos restantes órgãos constitucionais ou eleitos por sufrágio directo e universal; j)
Criação, modificação e extinção de autarquias locais; k) Restrições ao exercício de
direitos; n) Bases dos orçamentos do Estado e das autarquias locais; o) Regime do
indulto e comutação de penas; p) Definição dos limites das águas territoriais, da
zona económica exclusiva e dos leitos e subsolos marinhos; e q) Bases do sistema
fiscal bem como criação, incidência e taxas de impostos e o regime das garantias
dos contribuintes.

705 Sobre as leis reforçadas o estudo mais completo corresponde à tese de Carlos Branco
de MORAIS, As leis Reforçadas, Lisboa, 1998.
e outros escritos jurídicos 503

Temo-nos posicionado contra a consideração dos impostos como


integrando as leis de carácter reforçado - al. q) do artº. 175º da CR. Os
nossos argumentos contra essa inclusão, várias vezes repisados, são os
seguintes:
“O nosso sistema de governo está assente na maioria absoluta. Esta
base material – maioria de votos expressos nas urnas – faz desencadear
um conjunto significativo de consequências no plano jurídico, como seja,
a nomeação do Primeiro-Ministro e a constituição do Governo no seio da
maioria parlamentar. Estas consequências formam no seu todo o sistema
de governo constitucional. No nosso sistema de governo só os partidos
que não tenham alcançado a maioria absoluta e mesmo assim tenham sido
convidados a formar Governo necessitam do concurso de outras forças
políticas para governar. Por isso, formam coligações ou alianças quando
não tenham maioria absoluta (cf. artº. 193º da Constituição), para que
possam governar com tranquilidade, como aconteceu recentemente em
Portugal. O orçamento é o elemento chave de qualquer país e de qualquer
sistema de Governo, tanto assim que a não aprovação do Orçamento leva,
e tem levado, em muitos casos, à queda de governos. O artigo 175º al. q)
altera um elemento chave do sistema, sem reconverter todo o sistema, ao
condicionar a aprovação de elementos dos Orçamento por uma maioria
de 2/3. Esta reconversão implicaria elevar igualmente para 2/3 a maioria
necessária para formar Governo. Como isto não foi feito, a alínea ficou,
pois, em antinomia com os demais elementos do sistema, nomeadamente,
aquele que diz que quem tem maioria absoluta pode governar com
tranquilidade. Para resolvermos a antinomia preconizamos o recurso ao
mecanismo da adaptação, instrumento técnico importante para realizar a
congruência entre normas e entre normas e princípios jurídicos desavindos.
A busca dessa congruência passa pela cedência da norma da alínea q) do
artº. 175º da CR, pois, contradiz um princípio fundamental”706..
Assim, do nosso ponto de vista a competência para criar impostos e
fixar as taxas de impostos é da Assembleia Nacional, mas esta competência
não pode ser enquadrada no domínio das leis reforçadas. Não é necessária
uma maioria especial.
Como é sabido, não foi este o entendimento do Supremo Tribunal
de Justiça, enquanto Tribunal Constitucional, que no seu Acórdão 5/2002
se pronunciou em termos que mereceram críticas da nossa parte e do
Professor Jorge Miranda. Também este ilustre constitucionalista português

706 Para maiores desenvolvimentos, cf. o nosso estudo A tipologia dos Actos Legislativos,
Jornadas Parlamentares, 2003, nesta colectânea.
504 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

é da opinião que a alínea q) do artº. 175º da Constituição está em antinomia


no quadro constitucional, carecendo, portanto, de ajustamento por via
interpretativa.

b) Taxas

Diferentemente da competência para fixar as taxas dos impostos


é a competência legislativa para regular as taxas enquanto prestações
sinalagmáticas, com natureza de contrapartidas de um serviço prestado.
A Constituição da República só sem ocupa da matéria das taxas
num único momento:
- tratando-se de fixar o regime geral das taxas e demais contribuições
financeiras a favor das entidades públicas, a Lei Fundamental deixa esta
competência no quadro da reserva relativa da Assembleia Nacional – artº.
176º nº. 1. al. i). Isso significa que a Assembleia Nacional pode autorizar
o Governo a legislar sobre esta matéria de harmonia com as condições
fixadas no artº. 181º da CR. Daí resulta que só o quadro geral das taxas
foi objecto da reserva relativa de parlamento, estando as demais matérias
sobre taxas, como seja a definição de uma taxa específica pela prestação de
um serviço específico fora da reserva legislativa da Assembleia Nacional,
tanto absoluta, como relativa.
Como consequência, deve-se concluir que a matéria em questão
se situa no âmbito da competência concorrente da Assembleia Nacional
e do Governo, pelo que o Governo pode legislar sobre esta matéria
independentemente de autorização legislativa.
Esta opinião pode ser igualmente extraída do pensamento dos
constitucionalistas VITAL MOREIRA E GOMES CANOTILHO. Na tese
destes autores a delimitação extensional da competência legislativa
concorrente do Governo obtém-se a partir das normas constitucionais que
estabelecem a reserva de parlamento, tanto a absoluta como a relativa707.
A competência do Governo delimita-se, assim, por exclusão de partes:
ele pode legislar sobre todas as matérias que não tenham sido objecto
de reserva de parlamento. Trata-se de uma competência autónoma, que,
do ponto de vista jurídico-material permite ao Governo veicular normas
primárias708 com aptidão para alterar ou mesmo revogar leis da Assembleia
Nacional.

707 In Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª edição, revista, Coimbra Editora,


1993, pp. 776-777.
708 Cf. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ob. Cit. pp. 776.
e outros escritos jurídicos 505

E note-se que a competência autónoma concedida ao Governo


nestas matérias que não constituem objecto de reserva de parlamento não
está sequer sujeita ao processo de ratificação, pois, no quadro da nossa
Constituição, diferentemente do que acontece com a Constituição da
República portuguesa, só os decretos-legislativos, isto é, aqueles que
versam sobre matérias objecto de autorização legislativa, estão sujeitos a
ratificação. Na verdade, o artº. 167º al. c) da CR só confere aos deputados
competência para requerer a ratificação dos decretos-legislativos. Do
mesmo passo, o artº. 179º al. f) que regula a competência de fiscalização
política da Assembleia Nacional só se reporta à ratificação de decretos
legislativos, nada referindo quanto aos decretos-leis adoptados no uso de
competência legislativa concorrente. É, aliás, sobre os decretos-legislativos
que versa o artº. 182º da CR que regula o processo de ratificação709.
Isso significa que os decretos-leis do Governo adoptados no uso
da competência concorrente encontram-se ao mesmo nível que as demais
leis adoptadas pela Assembleia Nacional no uso da mesma competência.
Assim, em termos de precedência de uma lei sobre a outra não se coloca
um problema de precedência hierárquica ou mesmo orgânica, mas tão
somente cronológica ou temporal, o que coloca especiais problemas de
harmonização que não serão analisados aqui.
Não estando a taxa específica contrapartida de uma prestação
específica reservada para o Parlamento, seja em termos absolutos, seja em
termos relativos, deve seguir-se que o Governo pode legislar sobre esta
matéria, independentemente de qualquer autorização.
A taxa encontra-se abrangida no âmbito da competência legislativa
concorrente, pelo que esta competência está constitucionalmente
assegurada pelo artº. 203º nº. 2, al. a) da CR.
É este o ponto de vista do Tribunal Constitucional português que,
em situações semelhantes, se tem pronunciado no mesmo sentido. A
propósito do imposto de justiça que na verdade, corresponde a uma taxa,
dada a sua natureza bilateral sinalagmática, o Tribunal Constitucional
português, no seu acórdão nº. 6/90, de 14 de Março considerou que “ao
editar as normas que substituíram o «imposto de justiça» pela «taxa de justiça», o
Governo fez uso da sua competência própria, pelo que tais normas não enfermam

709 Dispõe este artigo: 1. Nos sessenta dias seguintes à publicação de qualquer decre-
to legislativo podem cinco Deputados, pelo menos, ou qualquer Grupo Parlamentar,
requerer a sua sujeição à ratificação da Assembleia Nacional para efeitos de cessação
de vigência ou de alteração. 2. A Assembleia Nacional não pode suspender o decreto
legislativo objecto do requerimento de ratificação.
506 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

do vício de inconstitucionalidade orgânica710. Pode-se, aliás, dizer que esta


jurisprudência é pacífica e tem sido emitida, por exemplo, a propósito
das portagens, das taxas de saneamento, taxas de urbanização, adoptadas
pelas autarquias, no quadro do seu poder regulamentar próprio.

710 Bol. do Min. da Just., 395, 106.


e outros escritos jurídicos 507

3. SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR ACTOS


DE GESTÃO PÚBLICA711

I - OS FACTOS

A. intentou acção de indemnização cível contra o Estado português


e mais dois réus, X e Y alegando, sumariamente, o que se segue:
Na sequência de denúncias, X e Y invadiram o domicílio do A.,
numa altura em que este dormia, prenderam-no e levaram-no ao Posto da
GNR onde foi submetido a torturas, caracterizadas por injúrias, chutos,
pontapés e coronhadas, com vista a fazê-lo confessar que furtara objectos
de uma casa contígua. O A. nunca aceitou as acusações que reputou
sempre falsas. Apesar disso, foi mantido em prisão preventiva, validada
pelo Juiz de Instrução, durante quase um ano. O Tribunal de Círculo de
Portimão, onde o A. viria a ser julgado, o absolveria por evidente falta de
provas.
Por estas razões pretende o A. que seja indemnizado pelo Estado e
pelos demais RR por considerar que se verificam os pressupostos legais
da responsabilidade civil.
Que direitos assistem ao A?

I
O PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO.
SUA CONSAGRAÇÃO NO ACTUAL DIREITO PORTUGUÊS

Como observam alguns autores712, a responsabilidade713 do Estado


pelos danos causados aos particulares não se impôs imediatamente. Pode

711 Nota redigida em 1994. Recentemente foram alteradas as regras da responsabilidade


civil do Estado e outras pessoas colectivas públicas, no direito português.
712 Cf. ALESSI, in Instituciones de Derecho Administrativo, tomo II, tradução castelhana de
Buenaventura Pelisse PRATS, Barcelona, 1970, pp. 505 e segs; L. DELPINO e F. del
GIUDICE, in Diritto amministrativo, VII edizione, Napoli, 1990, ps. 566 e segs.
713 Sobre a noção de responsabilidade, cf. ALESSI, que a define como “dever imposto
por lei de ressarcir, mediante o equivalente patrimonial, o dano económico produzido
como consequência de uma violação subjectivamente imputável de uma esfera jurídica
protegida” (ob. cit. pp. 505). Ver, igualmente, Marcelo CAETANO, que, referindo-se
especificamente à responsabilidade da Administração a define como a obrigação de
uma pessoa colectiva de direito público de proceder à reparação pecuniária dos pre-
juízos causados a outrem por facto dos seus órgãos ou agentes - in Manual de Direito
Administrativo, 10ª edição, reimpressão, Tomo II, ps. 1220. Cf., igualmente. DELPINO/
DEL GIUDICE, ob. cit. pp. 565.
508 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

mesmo dizer-se que a regra foi durante muito tempo a da irresponsabilidade


do Estado pelos actos e omissões praticados pelos seus órgãos ou agentes,
regra que ficaria consubstanciada na máxima inglesa “the king can do
no wrong” 714. Foi o advento do Estado de Direito que veio provocar a
inversão deste ponto de vista715 . O princípio da irresponsabilidade da
Administração foi substituído pelo princípio da responsabilidade não apenas
pelos actos ilícitos, culposos e causais, mas também, em certos casos, por
actos lícitos716.
O direito português contemporâneo orienta-se igualmente pelo
princípio da responsabilidade do Estado pelos actos praticados pelos
seus órgãos ou agentes. Vários diplomas legais consubstanciaram este
princípio. Desde logo o Código Civil de 1867, cujos art. 2397º, 2399º e
2400º disciplinaram a matéria. A Reforma Administrativa Ultramarina -
RAU - tinha igualmente uma secção - Parte III, Cap. I, Secção VII - sobre a
responsabilidade pelos actos e deliberações dos corpos administrativos717
e o actual Código Administrativo disciplinou a matéria nos artºs. 366º,
367º, 678º 700º e 702º. Com a aprovação do Código Civil de 1966 a
responsabilidade civil do Estado foi regulada apenas quanto aos actos de
gestão privada (artº. 501º), abrindo-se uma lacuna que viria a ser colmatada
no ano seguinte com a publicação do DL nº 48.051, de 21 de Novembro de
1967 que regulou a responsabilidade extracontratual do Estado e demais
pessoas colectivas de direito público, por actos de gestão pública718.

714 DELPINO/DEL GIUDICE procuram temperar o rigor desta máxima observando que
ela operava em absoluto nas relações de direito público, o mesmo já não acontecendo
nas relações de direito privado, ob. cit. pp. 566.

715 Sobre este ponto cf. Diogo Freitas do AMARAL, in A responsabilidade da Administração
no Direito Português, Lisboa, 1973, pp. 10 e segs e ainda Estado, Enciclopédia Pólis,
vol. 2, cols. 1143 e segs e em particular, cols. 1147-1148.
716 Sobre este ponto e nomeadamente sobre os arestos que conduziram à afirmação do
princípio, em particular o caso Blanco ver, entre outros, Claude BLUMANN, in Régles
générales de la responsabilité de la puissance publique État et collectivités publiques Juris
Classeur Responsabilité Civile, 6, 1983, Fasc. 370, pp. 14; Jean RIVERO, in Direito Ad-
ministrativo, tradução portuguesa de Rogério Ehrhardt SOARES, Coimbra, 1981, pp.
307 e segs; Freitas do AMARAL, in Estado cit. cols. 1147. Sobre o conteúdo do ares-
to Blanco ver Georges VEDEL/Pierre DELVOLVÉ, in Droit Administratif, 8e édiction,
Paris, 1982, pp. 128 129. Para um resumo da evolução da responsabilidade civil do
Estado no Direito Português, cfr. José Luis da Silva Resende MOREIRA, in Da respon-
sabilidade da Administração Pública por actos ilícitos (no âmbito do exercício da actividade de
gesto pública), policopiado, Faculdade de Direito de Lisboa (1989), pp. 7 e segs.
717 Cf. artºs. 464º e 465º deste diploma.
718 Sobre estes aspectos cfr. Marcelo CAETANO, ob. cit. pp. 1220-1221.
e outros escritos jurídicos 509

Existem ainda outros diplomas que importa referir como seja


o DL 100/84, de 29 de Março que regulou a responsabilidade civil das
autarquias locais (artºs. 90º e 91º)719 e o DL 267/85, de 16 de Julho que
aprovou a Lei do Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais e
regulou alguns aspectos de natureza processual relativos as acções de
responsabilidade (artº. 71º nº 2 prescrição; artº. 72º nº 1 - forma do processo).
O princípio da responsabilidade da Administração encontra-se
hoje consagrado expressamente no art. 22º 720 da CR, e se estende aos
funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas pelas
acções e omissões de que resulte violação de direitos ou dos interesses
legítimos dos cidadãos (artº. 271º).

II
ESPÉCIES DE RESPONSABILIDADE. SUA DISCIPLINA JURIDICA.

O quadro legal assim delineado não se aplica indiferentemente


a quaisquer actos da Administração ou dos seus agentes susceptíveis
de gerar responsabilidade. A doutrina jurídica, tanto nacional como
estrangeira, é unânime em operar a distinção entre a responsabilidade
contratual do Estado que, por definição, resulta do não cumprimento
de um contrato, e a responsabilidade extracontratual do Estado que ocorre
nos demais casos. Prescindiremos dos aspectos relacionados com a
responsabilidade contratual por não respeitarem ao objecto destas notas
que se prendem unicamente com a responsabilidade extracontratual
do Estado. Neste particular, a doutrina e a jurisprudência distinguem
ainda consoante a responsabilidade decorre dos actos de gestão privada,
aquelas que no dizer do Prof. Marcelo CAETANO são reguladas por
normas de direito privado, ou dos actos de gestão pública, aquelas que
são disciplinadas por normas que conferem poderes de autoridade,
destinados ao prosseguimento do interesse público721. A responsabilidade
extracontratual do Estado por actos de gestão pública é disciplinada pelo já

719 Cf. ainda a Portaria nº. 360/71, de 21 de Agosto, que obriga à prova de garantia de
responsabilidade civil por acidentes para concessão de licenças para obras.
720 Sobre a aplicabilidade directa do artº. 22º da CR, cf. Moreira da SILVA, ob. cit. pp. 29.
721 Ob. cit. pp. 1222. Sobre a distinção entre gestão pública e gestão privada existe uma
copiosa literatura. Cfr. a este respeito Georges VEDEL/Pierre DEVOLVÉ, in Droit
Administratif, cit. pp. 128; Jean RIVERO, in Direito Administrativo cit. pp. 189 e segs,
entre outros. O Tribunal de Conflitos tem vindo amiúde a pronunciar-se, sobre esta
matéria. Ver, por todos, o Ac. de 10 de Dezembro de 1987, publicado em Acórdãos
Doutrinários do STA, ano XXVII, nº 317, ps. 671 e segs e Ac. de 7 de Julho de 1988,
publicado nos Acórdãos Doutrinários do STA, ano XXVIII, nº 327, pp. 387 e segs.
510 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

referido Decreto-lei nº. 48.051, cujo art. 2º dispõe nos seguintes termos:
“O Estado e as demais pessoas colectivas públicas respondem
civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das
disposições destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de
actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou
agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse
exercício”722.

III
SUBSUNÇÃO DOS FACTO AO DIREITO

Pretende o A. tornar o Estado português civilmente responsável por


torturas de que terá sido vítima num Posto da GNR, levadas a cabo por
dois agentes desse mesmo Posto com vista a extorquir-lhe uma confissão
no sentido de que teria furtado alguns objectos de uma barraca contígua
à sua casa de habitação. A. pretende ainda responsabilizar o Estado pela
manutenção em prisão preventiva ilegal durante quase um ano.
Afigura-se-nos que os factos descritos caracterizam actos ilícitos
susceptíveis de serem enquadrados no disposto no artº. 6º. do DL nº. 48
051, de 21 de Novembro de 1967, segundo o qual “consideram-se ilícitos
os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os
princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam as normas e
princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum, que
devam ser tidas em atenção”. Neste particular a ilicitude é caracterizada
pela inobservância das normas legais que proíbem a invasão domiciliária
e a extorsão da confissão sob coacção física e pela detenção ou prisão
preventiva ilegal. Tais factos, porque praticados no exercício da função
pública e por causa desse exercício, caracterizam manifestamente actos
de gestão pública, cuja disciplina se enquadra no já muitas vezes referido
DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967. Por tais actos são solidariamente
responsável o Estado, enquanto pessoa colectiva pública, e os agentes da
GNR referidos no cabeçalho deste parecer. Afigura-se-nos assim que bem

722 Cf. igualmente o artº. 3º quanto à responsabilidade dos titulares dos órgãos e dos
agentes. A doutrina é unânime no sentido de que o sistema acolhido neste diploma
corresponde ao francês, em que a responsabilidade dos titulares dos órgãos ou agentes
se encontrava limitada às situações em que tivessem agido com culpa. Este sistema foi
porém substituído pelo sistema anglo-americano “segundo o qual os funcionários ou
agentes do Estado devem ser inteiramente responsabilizados pelos actos praticados no
exercício das suas funções”. Neste sentido cfr. as. do STJ de 6 de Maio de 1986, publi-
cado no BMJ nº 357 (1986), pp. 392 e segs, nos termos do qual o DL nº. 48 051, de 21 de
Novembro de 1967 caducou na parte em que limitava a responsabilidade dos mesmos
titulares dos órgãos ou agentes.
e outros escritos jurídicos 511

andou o Autor ao propor a acção contra os três primeiros RR citados, só


sendo de lamentar que não tenha sido igualmente accionado o magistrado
que validou a prisão preventiva ilegal723.

IV
DOS PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL

A responsabilidade civil do Estado e de outras pessoas colectivas


públicas, por actos de gestão pública, efectiva-se mediante a verificação
dos pressupostos normais da responsabilidade civil. Ou seja, para
que surja a obrigação de indemnizar é necessário que o acto ou actos
que fundam essa obrigação sejam ilícitos, no sentido que fixamos
anteriormente; que tais actos tenham sido praticados com culpa; que deles
tenha resultado um prejuízo e que exista a necessária conexão (nexo de
causalidade) entre os factos ilícitos e o prejuízo. A petição do autor não
identificou estes pressupostos com a necessária clareza, mas como se
observa, pertinentemente, no Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 7 de
Julho de 1988, já citado, “nem por isso o tribunal está dispensado de lhes
atribuir ou ligar o relevo jurídico adequado, de acordo com o conhecido
princípio de que o juiz não tem de cingir-se às alegações das partes no
que toca à indagação, interpretação e aplicação do direito” - iura novit
curia724. Impõe-se, portanto, averiguar em que se traduzem, no caso em
apreço, cada um dos referidos pressupostos.

a) - ILICITUDE

Como já foi referido a matéria de facto trazida à nossa apreciação


invasão de domicílio, sem mandado, interrogatório sob coacção, insultos,
humilhações, diminuição física, fome, frio, miséria é susceptível de
se enquadrar na ilicitude prevista no artº. 6º do DL nº 48.051, de 21 de
Novembro de 1967, porque praticados no exercício da função pública,
por causa desse exercício e no uso de poderes de autoridade. As acções
supra referidas violam um número significativo de disposições legais.

723 No sentido de que a acção judicial deve ser igualmente proposta contra o magistrado
que validou a prisão preventiva, cfr. Boaventura DUMANGANE, ob. cit. pp. 123.
724 Sobre este princípio cfr. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Ci-
vil, Coimbra, 1989, pp. 195; Giovanni Verde in Prova (dir. proc. civ), Enciclopedia del
Diritto, vol. XXX, ps. 623. Em particular no confronto deste princípio com o direito
estrangeiro, ver Geraldo da Cruz ALMEIDA in O ónus da prova em direito internacional
privado (nesta colectânea, pp. 71 e segs.) Alexandro Tomaso DI VIGNANI, in Lex Fori
e diritto straniero, Pavoda, 1964, pp. 51 e segs.
512 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Desde logo os artºs 25º, 27º, 28º, 32º nºs 2 e 6, todos da CR que reconhecem
o direito à integridade moral e física, proíbem a tortura e o tratamento
cruéis, degradantes ou desumanos, reconhecem o direito à liberdade e
segurança, proíbem a privação total ou parcial da liberdade, disciplinam
a prisão preventiva, asseguram a presunção da inocência até ao trânsito
em julgado da sentença de condenação e declaram nulas todas as provas
obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral
da pessoa. Resultam igualmente violados pelos referidos actos o art. 12º
da Declaração Universal dos Direitos do Homem DUDH725 que proíbe
intromissões arbitrárias na vida privada, na família, no domicílio e ataques
à honra e reputação e bem assim os artºs 9º e 11º que reafirmam o princípio
da presunção de inocência e proíbem a detenção e prisão arbitrárias.
Idênticas proibições resultam igualmente do Pacto Internacional sobre os
Direitos Civis e Políticos PIDCP726 e bem assim da Convenção Europeia
dos Direitos do Homem CEDH727. A proibição de tais actos encontrou
ainda ampla consagração na legislação ordinária portuguesa que ora
sujeita a uma reparação de natureza penal, ora estabelece providências
extraordinárias, como a medida de habeas corpus, no caso de detenção

725 Cf. art. 16º nº 2 da CR que manda interpretar e integrar os preceitos constitucionais e
legais relativos aos direitos fundamentais de harmonia com esta Declaração. Cfr. Jorge
Miranda in Estudos sobre a Constituição (A Declaração Universal dos Direitos do Homem),
vol. I, Lisboa, 1977, pp. 180 e segs e ainda A Constituição de 1976 Formação, Estrutura,
Princípios fundamentais, Lisboa, 1978, pp, 180 e segs; J.J. Gomes CANOTILHO e Vital
MOREIRA, in Constituição da República portuguesa (anotada), 2ª edição, Coimbra, 1984,
vol. 1º, anotação ao art. 16º, pp. 158 e segs.
726 Sobre o conteúdo e a situação jurídica deste tratado ver Jorge Miranda in Direitos
do Homem, principais textos internacionais, Lisboa, 1989, pp. 31 e segs. Ver artºs 7º que
proíbe a tortura e tratamentos cruéis, inumanos ou degradantes; artº. 9º que reconhe-
ce o direito à liberdade e segurança e proíbe a prisão ou detenção arbitrária e o artº.
10º que, de forma positiva, obriga ao tratamento humano e ao respeito da dignidade
inerente à pessoa humana a todos os indivíduos privados da liberdade. Quanto ao
regime de recepção deste e outros instrumentos internacionais no direito interno por-
tuguês, ver artº. 8º da CR.
727 Sobre este texto ver Pinheiro FARINHA, in Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
anotada, Lisboa, 1980. Ver ainda Jorge MIRANDA, in Direitos do Homem, cit.pp. 209 e
segs. Cf. artºs. 3º que proíbe a tortura, penas e tratamentos cruéis e degradantes; artº. 5º
que reconhece o direito à liberdade e segurança; artº. 8º que obriga ao respeito da vida
privada e familiar e qualquer ingerência da autoridade pública no exercício desse direito.
Observe se que o artº F do Tratado de Maastricht que institui a Comunidade Europeia,
já ratificada por Portugal (10.12.92), estabelece que “a União respeitará os direitos fun-
damentais tal como os garante a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do
Homem e das Liberdades Fundamentais...”. Quanto a este Tratado cfr. igualmente o artº.
130U. 1 e Tit. V, J 1.2..
e outros escritos jurídicos 513

ilegal (artº. 220º do CPP) com vista a reparar ou tornar efectivo o exercício
dos referidos direitos.
Vimos também que a detenção ou prisão preventiva ilegais
caracterizam esse tipo de ilicitude. Na verdade, tendo o A. sido detido
e preso preventivamente sob a alegação de ter furtado objectos de uma
casa contígua e tendo ficado provado posteriormente que nada furtou,
estes factos tornam a prisão preventiva manifestamente ilegal, podendo
fundar a indemnização prevista no artº. 225º do CPP728.

b) - CULPA

De harmonia com a doutrina e jurisprudência unânimes a culpa é


apreciada segundo o padrão bonus pater famílias729 ou seja, só está isento
de culpa aquele que agiu nos termos em que agiria um homem médio
colocado na oposição do agente730. O princípio da culpa encontra-se
consagrado no artº. 2º do DL nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967 e
abrange as modalidades de dolo, culpa grave e culpa leve731 .
Ao A. compete fazer a prova de culpa dos RR segundo o princípio
actori incumbit probatio (artº. 487º do CC). Observe-se, todavia, que, neste
particular, a jurisprudência francesa tem vindo a reconhecer presunções
de culpa que conduzem à inversão do ónus da prova. No que respeita
aos actos jurídicos atente-se na observação de RIVERO, segundo a qual
“a ilegalidade que os vicia é em princípio constitutiva de culpa, mesmo
quando provém de um erro na apreciação dos factos”732 .

728 Cf. Maia GONÇALVES ob. cit. ps. 278.


729 Cf. artº. 487º CC ex. vi art. 4º nº 1 do DL nº 48 051, de 21 de Novembro. Sobre este
princípio ver, por todos, A. Menezes CORDEIRO, in Direito das Obrigações, Lisboa,
1990, vol. I, pp. 151 e segs.
730 Sobre a problemática da culpa no domínio da responsabilidade da Administração, cf.,
por todos, Marcelo CAETANO, Direito Administrativo, cit. tomo II, pp. 1225-1226; João
ALFAIA in Responsabilidade dos Funcionários e Agentes, Enc. Polis, vol. V, col. 484; Re-
nato ALESSI, in Responsabilità civile della Publica Amministrazione, Novissimo Digesto
Italiano, Torino, 1957, pp. 666 e segs e ainda Instituciones... cit. pp. 523 e segs; Filippo
SATTA, in Responsabilità della Pubblica Amministrazione, Enciclopedia del diritto, vol.
XXXIX, 1988, pp. 13761377; Jean RIVERO, Direito Administrativo, cit. pp. 317 e segs.
731 Cf. João ALFAIA, Responsabilidade... cit. pp. 484.
732 Direito Administrativo cit. pp. 321.
514 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Na determinação do grau da culpa a jurisprudência francesa


atribui relevante importância ao critério da natureza da actividade. Assim
certas actividades da polícia e os actos administrativos praticados pelo
juiz de execução criminal foram consideradas como praticados com culpa
grave733.

c) - PREJUIZO

Em virtude dos actos descritos anteriormente A. sofreu vários


prejuízos que descreve igualmente na sua petição inicial. Estes prejuízos
são de natureza patrimonial e moral. Quanto aos prejuízos de natureza
patrimonial alega o A. perda de salários correspondentes a um ano, cujo
valor avalia em 2.400 contos. O dano moral734 é na tese do autor mais
elevado e contabilizado em 12.000 contos, sendo 10.000 contos imputados
ao Estado e 2.000 contos que imputa aos segundos RR. Afigura-se-nos
que o autor caracterizou correctamente os referidos danos de modo a
fundar o direito à reparação. Segundo Marcelo CAETANO, o prejuízo
indemnizável deve apresentar a característica da especialidade no sentido
de que atinge unicamente a certa ou certas pessoas735 e não a generalidade
dos cidadãos. A esta característica RIVERO acrescenta a de que o prejuízo
deve corresponder a uma situação juridicamente protegida736 e, neste sentido,
“indemnizável é todo o prejuízo que se traduza na ofensa de direitos
subjectivos; ou na ofensa de disposições legais destinadas a proteger
interesses particulares”737. Indemnizável é, pois, a impossibilidade
física de trabalhar em virtude da detenção e prisão preventiva ilegais;
as injúrias, agressões, coronhadas, murros, pontapés, a humilhação, a
fome, o frio, a acusação sem provas e a tentativa de obtenção de confissão
mediante coacção.

d) - NEXO CAUSAL

Também no domínio da responsabilidade civil do Estado e


outras pessoas colectivas públicas o prejuízo indemnizável deverá ser

733 Cf. Claude BLUMANN, ob. cit. pp. 8.


734 A reparação do dano moral é uma realidade que não se põe em causa. Cf. RIVERO,
Direito Administrativo, cit. pp. 315-317.
735 Manual... cit. pp. 1226.
736 In Direito Administrativo, cit., pp. 314315.
737 João ALFAIA, Responsabilidade... cit. col. 484.
e outros escritos jurídicos 515

consequência directa do acto ou actos ilícitos. A disciplina desta matéria


não se afastou da disciplina geral da responsabilidade civil que segue,
neste particular, a teoria da causalidade adequada, nos termos da qual é
indemnizável o dano que inexistiria caso não se verificasse o evento738.
Esta teoria encontra-se hoje consagrada no artº. 563º do CC.
Sendo certo que o A. perdeu um ano de salários em virtude da
detenção e prisão preventiva ilegais e sofreu danos morais que não se
teriam verificado não fossem as injúrias e agressões na tentativa de
extorquir-lhe a confissão de um crime que não cometeu, parece manifesto
que se verifica a necessária conexão entre os referidos actos ilícitos e os
danos identificados739.

V
DO DIREITO À INDEMNIZAÇÃO

A verificação destes pressupostos funda o direito à reparação civil,


ao abrigo do disposto no art. 22º e 271º da CR e bem assim do artº. 2º do
DL nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967 e art. 225º do CPP português
em vigor. O dever de indemnização por privação da liberdade ilegal ou
injustificada resulta igualmente do artº. 5 nº 5 da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, aprovada pela Lei nº 65/78, de 13 de Outubro e bem
assim de outros textos internacionais de que Portugal é parte como seja o
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, cujo art. 9º nº 5 assegura
a “todo o indivíduo vítima de prisão ou detenção ilegal... (o) direito à
compensação”. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem contém
mesmo uma disposição genérica art. 50º, que permite “uma reparação
razoável” por violação de qualquer das obrigações que derivam da
referida Convenção.
O reconhecimento do direito à indemnização por detenção e
prisão preventiva ilegais tem vindo a ser amplamente reconhecido pela
jurisprudência dos países membros da Convenção e bem assim pela
jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Assim, o
Tribunal Federal de justiça alemão considerou que “o nº 5 do art. 5º concede
ao detido em situações não consentidas pela Convenção não apenas uma
satisfação equitativa, mas uma verdadeira reparação”740. Este direito à

738 Cf. Menezes CORDEIRO, Direito das Obrigações cit. vol. II, pp. 335-336.
739 Cf. O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 26 de Setembro de 1991, in
Acórdãos Doutrinais, ano XXXII, nº 377, pp. 489 e segs e, em particular, 492-493.
740 Decisão de 31 de Janeiro de 1966, Apud Pinheiro Farinha, ob. cit. pp. 23.
516 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

reparação tem vindo a ser reconhecido mesmo nas situação em que o


visado é condenado e a prisão preventiva é imputada no cumprimento
da pena, desde que se verifique violação do art. 5º da Convenção741 742.

VI
TRIBUNAL COMPETENTE

A competência do tribunal em razão da matéria afere-se em função


do pedido. São os termos como o autor recorta a causa de pedir e o pedido
que determinam a adstrição da matéria a um tribunal comum ou a um
tribunal especial. As matérias adstritas a um tribunal especial são, em
regra, definidas taxativamente, ficando as matérias adstritas aos tribunais
comuns definidas por exclusão de partes.
De harmonia com os termos da acção relatados no início deste
parecer resultam perfeitamente identificados a causa de pedir e o pedido.
Na situação em apreço aquela é integrada por um conjunto de actos
ilícitos praticados no exercício de poderes de autoridade e fundamentam
o pedido de reparação dos danos daí resultantes. Se como se caracterizou,
tais factos ilícitos se enquadram no conceito de ilicitude fixado pelo artº.
6º do DL nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967, então é competente
para apreciar o pedido de reparação dos referidos danos os tribunais
administrativos de círculo, ao abrigo do disposto no artº. 51º nº 1. al. h) do
ETAF, aprovado pelo DL nº. 129/84, de 27 de Abril. E não parece invalidar
este ponto de vista a circunstância de entre os factos que integram a causa
de pedir figurar uma situação de detenção ou prisão preventiva ilegal,
pois, se, também estes, como se viu, caracterizam actos de gestão pública,
caem na alçada do foro administrativo743.

741 Decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 22 de Junho de 1972, apud
Pinheiro Farinha, ob. cit. pp. 98.
742 No sentido do reconhecimento do direito à indemnização se orienta igualmente a ju-
risprudência do Conselho de Estado francês. Segundo Paulette Veaux FOURNERIE
“em caso de detenção provisória considerada abusiva o artº. 149 1 do CPP confia a
uma Comissão reunida junto do Tribunal de Cassação o papel de atribuir uma indem-
nização” in Régime de la réparation, Juris Classeur, responsabilité civile, Fasc. 2212, 11,
1990, pp. 3. Em França existe mesmo um Fundo de Garantia destinado a reparar as
vítimas de actos de terrorismo e outras infracções, que parece abranger as situações de
detenção e prisão ilegais.
743 No mesmo sentido, Maia GONÇALVES, ob. loc. cit. A jurisprudência não é uniforme
quanto ao Tribunal competente para conhecer do pedido de indemnização por acto li-
gado ao exercício da função jurisdicional. No sentido preconizado por nós e por Maia
GONÇALVES se pronunciaram os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de
10 de Dezembro de 1985, publicado em Acórdãos Doutrinais ano XXV, nº. 298 o qual
e outros escritos jurídicos 517

CONCLUSÃO

1. O actual direito português orienta-se pelo princípio da


responsabilidade da Administração pelos actos e omissões dos seus
órgãos e agentes, princípio amplamente consagrado, seja na Constituição
da República, seja em textos internacionais de que Portugal é parte, seja
na legislação ordinária.

2. Essa responsabilidade pode fundar-se numa situação contratual


como numa situação extracontratual e, neste último caso, por actos de
gestão privada, como por actos de gestão pública.

3. São susceptíveis de fundar a responsabilidade do Estado por


actos gestão pública torturas caracterizadas por injúrias, chutos, pontapés
e coronhadas, praticadas no exercício de autoridade e por causa desse
exercício, com vista a fazer alguém confessar um crime que não cometeu
e a manutenção em prisão preventiva ilegal pelo referido crime, durante
quase um ano do qual a vítima viria a ser absolvido por evidente falta de
provas.

4. A responsabilidade civil do Estado e outras pessoas colectivas


públicas por actos de gestão pública efectiva-se mediante a verificação
dos pressupostos normais de responsabilidade civil: ilicitude culpa,
prejuízo e nexo causal entre a ilicitude e o prejuízo. O direito português
orienta-se pela teoria da causalidade adequada que conduz à indemnização
de todos os danos que não se teriam verificado não fosse a verificação do
evento danoso.

5. O direito à reparação civil por actos de gestão pública encontra-


se amplamente reconhecido na ordem jurídica portuguesa.

6. É competente para conhecer dos pedidos de indemnização por


actos de gestão pública o tribunal administrativo.

remete igualmente para os Acordos do STA, de 14.4.83 e para o Acórdãos do Tribunal


de Conflitos de 5.11.81. Ver, em sentido contrário, o Acórdãos do STJ, de 11 de Junho
de 1987, publicado no BMJ nº 368, de Julho de 1987, pp. 494 e segs
518 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO
e outros escritos jurídicos 519

4. SOBRE O VALOR DO REGISTO PREDIAL NA PROVA DA


PROPRIEDADE (*)

1. O regime da condição jurídica das terras de Cabo Verde tem


vindo a clarificar-se. Os principais problemas que se colocam nesta matéria
foram por mim inventariados na nota introdutória ao Código da Terra –
Elementos para um debate em torno do regime jurídico das Terras de Cabo Verde,
Livraria Saber, Lda, 2002 e são no essencial os seguintes: – desorganização
manifesta dos serviços encarregados da execução da política das terras; -
inadequação da legislação, decorrente da desconformidade de muitas leis
com a Constituição da República; - incoerência entre os diversos diplomas
que concorrem para regular a questão das terras, nas suas diversas
vertentes, ambiental, urbanístico, qualificativo e classificativo; - indefinição
do âmbito de competência do Estado e das autarquias locais em matéria
de gestão das terras; - desrespeito pelo domínio público, tanto do Estado
como das autarquias locais; - abuso de autoridade, tanto da parte do
Governo Central como da Administração Local; - desrespeito manifesto
pela propriedade privada e consequente violação de direitos adquiridos
à luz da legislação antiga; - desrespeito dos direitos das comunidades de
vizinhos; - incumprimento das disposições legais relativas à prova da
propriedade; - indefinição das situações de concessão, aforamento e até
de arrendamento; - expropriações inconstitucionais e ilegais; - problemas
de gestão da orla marítima; incumprimento doloso das normas vigentes
em matéria de ordenamento do território e planeamento urbanístico e,
por último, uma deficiente vontade política de reposição dos princípios
do Estado de direito democrático no que respeita à titularidade e uso dos
solos.

2. O Código da Terra já tinha sido publicado quando nas minhas


pesquisas deparei-me com o Decreto nº. 132/71, de 6 de Abril.
Este diploma veio na sequência de diversas outras medidas que,
durante toda a metade do século XX, vinham sendo tomadas com vista à
regularização dos terrenos possuídos, sem título formal, medidas de que
dei conta no já referido estudo Elementos para um Debate em Torno do Regime
Jurídico das Terras de Cabo Verde, escrito em jeito de introdução ao referido
Código da Terra..., (cf. pp. 21-23 e ainda pp. 43 nota 2) e às quais se deverão
agora juntar as preconizadas pelo Decreto nº. 132/71, de 6 de Abril.

(*) Extracto da prelecção feita em 2004 a convite da ANMCV.


520 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Trata-se de um diploma por demais importante, senão a mais


importante, sobre esta temática. Põe termo definitivo à controvérsia relativa
à possibilidade de aquisição de terrenos por usucapião, resolvendo-a em
sentido afirmativo; estabelece o prazo para essa aquisição em 15 anos,
revogando, consequente, a legislação anterior que estabelecia prazo
diverso sobre esta matéria; confirma a ilegalidade da prática administrativa
de algumas, senão da generalidade, das câmaras consistente no não
reconhecimento do direito de propriedade sobre terrenos mesmo de casas
que tenham ruído, por insuficiência económica dos seus donos para as
manter ou recuperar; reafirma o critério do aproveitamento para efeitos
de aquisição de terrenos por usucapião; estabelece o prazo de cinco anos
para o proprietário requerer a emissão do título, prazo este que se conta a
partir do anúncio em Boletim Oficial do início das operações de cadastro
e, por último, estabelece o princípio da gratuidade para a emissão dos
títulos de propriedade perfeita.
Na sequência deste Decreto foi publicada a Portaria nº. 528/71, de
29 de Setembro que suspendeu a aplicação em Cabo Verde do Regulamento
de Ocupação e Concessão de Terrenos nas Províncias Ultramarinas, aprovado
pelo Decreto n.º 43894, de 6 de Setembro de 1961, tornado extensivo à
província de Cabo Verde pela Portaria n.º 24229, de 9 de Agosto de 1969,
mandando aplicá-lo “unicamente às áreas das freguesias em que se forem
sucessivamente iniciando as respectivas operações de cadastro a partir
das datas da publicação no Boletim Oficial do início de tais operações,
considerando-se suspensa a sua vigência nas restantes áreas da província”.
Do ponto de vista da sua importância o Decreto 132/71, de 6 de
Abril, apenas se equipara a uma medida legislativa tomada em Macau
pela chamada Lei das Terras, aprovada pela Lei nº. 6/80/M, de 5 de Julho
de 1980, na redacção que lhe foi dada pela Lei 2/94, de 4 de Julho, que, no
seu artº. 5º nº. 4 veio estabelecer o seguinte: “Não havendo título de aquisição
ou registo deste, ou prova do pagamento do foro, relativo a prédio urbano, a sua
posse por particular, há mais de 20 anos faz presumir o seu aforamento pelo
Território e que o domínio útil é adquirível por usucapião, nos termos da lei civil”
– para uma análise deste diploma cf. Antunes VARELA, in O domínio
público e o domínio privado sobre as Terras e as águas do território de Macau,
Revista Jurídica de Macau, número especial sobre a Questão das Terras
em Macau, 1997, pp. 464 e segs. Aliás, uma das recomendações saídas do
Fórum sobre a problemática das Terras de Cabo Verde foi a de que o Governo
deveria estudar a possibilidade de adoptar uma solução semelhante à
preconizada pela lei macaense para pôr termo às situações de falta de
título formal.
e outros escritos jurídicos 521

A experiência de Macau apresenta utilidade para Cabo Verde, pois,


como se sabe, praticamente os mesmos diplomas que vigoraram nesse
território estiveram em vigor em Cabo Verde, pelo que suscitaram, num e
noutro território, a mesma ordem de conflitos e problemas de interpretação
e integração.
A aplicação hoje do Decreto n.º 132/71 suscita, todavia, outros
problemas para os quais chamei igualmente a atenção no estudo já
referido. Com efeito, atribuindo o diploma competência para certificação
da posse às Juntas de Freguesias locais e, estando estas desactivadas,
coloca-se a questão de saber a quem deve competir, hoje, o exercício desta
competência? As câmaras municipais já exercem um leque significativo de
competências sobre a problemática das terras. Além disso, são as câmaras
municipais que desenvolvem as competências próprias das juntas de
freguesia. Isto torna compreensível que sejam as câmaras municipais a
emitirem o documento de prova a que o diploma se refere.
Outro problema que o Decreto n.º 132/71 de 6 de Abril suscita
é a questão de saber o que se deve entender por “terreno da Província
de Cabo Verde”? A questão afigura-se-me pertinente, pois, há uma clara
intenção do legislador de excluir os terrenos pertencentes ao Estado,
numa altura em que Estado e Província eram entidades diversas (cf.
Código da Terra..., pp. 19). Entendo, pois, que nem todos os terrenos hoje
pertencentes ao Estado e às autarquias locais estão abrangidos por este
diploma. Assim, não estão, seguramente, abrangidos os terrenos que pelo
Regulamento de Ocupação e Concessão de Terrenos ou outro diploma
legal estavam classificados como terrenos do Estado. Dito de outro
modo, todos os terrenos que vieram à posse e propriedade do Estado
de Cabo Verde pelo facto da independência nacional, originariamente
pertencentes ao Estado português, não se encontram abrangidos por este
diploma. Mas já se encontram abrangidos os terrenos que vieram à posse
e propriedade do Estado de Cabo Verde, pelo facto da independência
nacional, originariamente pertencentes à Província de Cabo Verde.
Por inerência, também não se encontram abrangidos por este diploma
os terrenos pertencentes às actuais autarquias locais em virtude de
delimitação feita posteriormente sobre terrenos do Estado, de acordo com
a primeira conclusão, mas já se encontram abrangidos por esse diploma
os terrenos pertencentes às actuais autarquias locais em virtude de
delimitação feita sobre terrenos pertencentes ao Estado, de acordo com a
segunda conclusão.
O diploma não permite, todavia, a interpretação segunda a qual
os terrenos pertencentes às autarquias criadas posteriormente à sua
entrada em vigor não se encontram sujeitos às medidas que preconiza.
522 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Na verdade, tudo depende da condição jurídica dos terrenos envolvidos,


pelo que numa autarquia criada posteriormente à entrada em vigor desse
diploma poderão coexistir terrenos sujeitos ou não ao regime previsto pelo
diploma em análise, aplicando, mutatis mutandis, a regra da inerência.
Não serão, certamente, estes os únicos problemas que a análise do
diploma suscita.

3. Hoje, todavia, gostaria de discorrer um pouco sobre o valor do


registo matricial para efeitos de prova da propriedade, pois, aquando da
realização do Fórum Nacional sobre as Terras de Cabo Verde, não ficou
inteiramente clarificado que papel pode o registo matricial desempenhar
neste particular.
As opiniões então apresentadas, não se fundaram numa base
científica. Afirmou-se, nomeadamente, que o registo matricial é um nada
jurídico, servindo-se, apenas como elemento de natureza fiscal.
Entendo que é preciso algum cuidado nessas afirmações. A
problemática da prova do direito, maxime da prova do direito de
propriedade, tem que se fundar nas ilustrações de uma determinada
comunidade. Não se pode exigir, sob pena de o direito se situar à margem
das relações sociais que pretende regular, meios de prova que não se
encontram ao alcance das populações. E, neste particular, o modo como se
procedeu à constituição do direito da propriedade no ultramar português
é demonstrativo desta verdade.
Até 1811 a Coroa portuguesa não se ocupou da questão das
terras do Ultramar. Todavia, incentivava a ocupação selvagem, pois,
como todos sabemos um dos grandes problemas que Portugal teve com
as terras de África foi precisamente o problema de ocupação. O século
XIX terá sido, aliás, um dos mais conturbados e complexos do ponto de
vista das relações entre Portugal e as suas colónias do Ultramar por esta
razão. Como referimos noutro lugar, outras potências mundiais como
a Alemanha, a França e, sobretudo, a Inglaterra vinham manifestando
interesse nas possessões ultramarinas e acusando Portugal de não ocupar
efectivamente as suas colónias, facto devia impedi-lo, igualmente, de
reclamar direitos sobre elas. Pelo menos em dois casos Portugal teve a
necessidade de recorrer à arbitragem internacional para fazer valer os
seus direitos, por um lado, sobre a baía de Lourenço Marques, que, em
1823, os régulos locais haviam cedido à Inglaterra, e sobre Bolama que,
em finais do século XVIII, tinha sido vendida também pelos régulos locais
à mesma Inglaterra que, por conseguinte, reclamava direitos sobre essas
possessões ultramarinas. Ambos os conflitos foram decididos a favor de
e outros escritos jurídicos 523

Portugal, mas estas decisões só terão servido para estimular as ambições


da Inglaterra que culminariam no Ultimatum de 11 de Janeiro de 1890 .
O ambiente internacional empurrava Portugal para tomar medidas
efectivas de ocupação das terras. Por isso, uma das medidas tomadas
a partir do momento em que se deu a abolição da escravatura foi a
distribuição de terras pelos libertos. Na sequência desse processo, foi
aprovado o Regulamento de 1899 diploma que, não obstante estar todo
ele orientado para a ideia fundamental da obrigação de trabalhar, adoptou
normas sobre a colonização de terras – o contrato de colónia (sobre este
conceito, cfr. Joaquim Lopes da SILVA in Repertório Jurídico portuguez,
Tomo II, Coimbra 1887, pp. 208-209, vb. Colónia) - seu cultivo, regras
sobre a enfiteuse, sobre a usucapião de imóveis, ao lado de normas sobre o
contrato de trabalho.
Assim, os terrenos ocupados pelos colonos libertos podiam atingir
l hectare, mas estes não ficavam imediatamente propriedade do colono
ocupante. Deviam cultivá-lo em não menos de duas terças partes da
área total, nele construir a sua residência e não ausentar-se dele por mais
de um ano, sob pena de ser expulso pela autoridade administrativa.
Porém, se persistissem nessa situação pelo período de 20 anos adquiriam
a propriedade plena do prédio. Em caso de morte do colono, antes de
completados 20 anos de ocupação legítima, não se dava a interrupção do
prazo de prescrição aquisitiva, mas sim a sua suspensão. Ou seja, para
efeitos da aquisição da propriedade ocupada por parte dos herdeiros, o
prazo não recomeçava a contar com a entrada do novo ocupante, mas
prosseguia como se se tratasse do mesmo ocupante. Por conseguinte,
os direitos adquiridos pelo anterior ocupante transmitiam-se aos seus
herdeiros, descendentes ou ascendentes.
Este aspecto não pode deixar de ser tomado em consideração no
momento de averiguar a questão da prova da propriedade. É que, na
verdade, há um prazo longo que se verifica entre o momento em que se
dá a entrega do terreno para exploração e o momento em que se tem a
propriedade por constituída. Este prazo é no mínimo de 20 anos e ainda
susceptível de atravessar gerações. Exigir de um proprietário nestas
circunstâncias que prove a sua propriedade por documento escrito ou por
registo predial pode corresponder a uma tremenda injustiça.
Por isso, questionamos hoje: que valor tem o registo matricial ou,
dito de outra maneira, que valor se pode atribuir ao registo matricial para
efeitos de prova da propriedade?
Dado que nos governamos fundamentalmente por leis que
vigoraram igualmente em Portugal, grande parte dos conflitos com
que os tribunais portugueses se têm confrontado nesta matéria também
524 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

se colocam em Cabo Verde. Isto torna a jurisprudência portuguesa


particularmente importante para o tratamento desta matéria.
4. O primeiro valor que a lei atribui ao registo matricial é o valor
fiscal. O contribuinte inscreve o prédio na matriz para comprimento
das suas obrigações fiscais. Mas no estádio actual da nossa organização
tributária, temos que perguntar se o contribuinte, ao fazer a declaração,
não tem em vista a obtenção de outros resultados. A resposta deve ser
afirmativa.
Outro valor que a jurisprudência portuguesa tem atribuído ao
registo matricial é precisamente o de constituir prova implícita do direito
de propriedade. A questão tem-se colocado, nomeadamente, em matéria
de expropriação por utilidade pública em que ao proprietário que tenha
apenas o registo matricial é reconhecido o direito à indemnização (cf. Ac.
da Relação de Lisboa, de 26 de Junho de 1997), mas também a propósito
do direito do colono de remir a terra onde tenha implantado benfeitorias.
Trata-se de um direito que assiste ao colono de adquirir a propriedade
do solo, contra a vontade do verdadeiro proprietário, desde que tenha
feito nele benfeitorias, mediante a atribuição de uma indemnização ao
proprietário. Tem-se entendido que este direito de remir e adquirir a
propriedade que, no caso, é um direito potestativo, pode ser exercido quer
contra quem tenha um registo predial da propriedade, quer contra quem
tenha um registo matricial (cf. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de
29 de Outubro de 1991).
A jurisprudência portuguesa tem igualmente reconhecido que sem
registo matricial não pode haver lugar à transferência da propriedade.
Mais uma vez são interesses fiscais que se encontram por detrás desta
exigência (cf. Ac. da Relação de Lisboa, de 12 de Dezembro de 1991). Os
Tribunais têm igualmente reconhecido validade ao contrato promessa de
compra e venda de imóveis unicamente inscritos na matriz (cf. Ac. da
Relação de Lisboa, de 23 de Março, 2000) e nas acções de demarcação tem-
se socorrido do registo matricial, entre outros meios, para fazer prova da
área da propriedade (cf. Ac. da Relação de Coimbra de 20 de Novembro
de 2001). Os contratos de arrendamento celebrados sobre imóveis
unicamente inscritos na matriz predial têm sido igualmente considerados
válidos (cf. Ac. da Relação de Lisboa, de 29 de Janeiro de 1999).
Um prédio unicamente inscrito no registo matricial pode ser
penhorado para pagamento de dívidas de que o seu proprietário seja
titular (Ac. da Relação de Lisboa de 29 de Janeiro de 1991 e ainda Ac. da
Relação de Lisboa de 18 de Março de 1991).
e outros escritos jurídicos 525

5. Por último gostaria de referir-me à relação que a jurisprudência


portuguesa tem vindo a fazer entre o registo matricial e a justificação
notarial.
As notas jurídicas que caracterizam esta figura são as seguintes:
A justificação notarial consiste na declaração feita pelo interessado,
para os fins previstos no artigo 204º do CRP, e confirmada por três
testemunhas, arrogando a qualidade de proprietário, com exclusão de
outrem e especificando a causa da aquisição e as circunstâncias que o
impossibilitam de o comprovar pelos meios normais (artº. 100º do CN).
Nos termos do nº. 2 deste artigo, compete ao notário decidir, em cada
caso, se as circunstâncias alegadas impossibilitam, de facto, o justificante
de comprovar a causa da aquisição do direito pelos meios extrajudiciais
normais.
Tem legitimidade activa para fazer a justificação notarial aquele em
nome de quem o prédio se encontrar inscrito na matriz predial ou quem
tiver dele adquirido por sucessão ou por actos entre vivos (artº. 102º nº. 2
do CN).
A justificação notarial deverá ser instruída com os seguintes
elementos: a) certidão comprovativa de omissão dos prédios no registo
predial ou, quando se trate de prédios já descritos, certidão de teor da
respectiva descrição e de todas as inscrições e averbamentos em vigor,
que lhes digam respeito; b) certidão de teor da inscrição matricial dos
mesmos prédios, todas passadas com uma antecedência não superior a
três meses (artº. 105º nº. 3 do CN).
Deverá ser objecto de publicidade num dos jornais mais lidos do
concelho da situação do prédio (artº. 108º CN) e poderá ser impugnada
em juízo por algum interessado (artº. 109º do CN).
Deste regime a doutrina e a jurisprudência têm extraído o seguinte:
a justificação notarial tem a natureza jurídica de quase contrato ao qual
são aplicáveis por analogia as normas reguladoras do negócio jurídico (cf.
Ac. do Tribunal de Relação de Coimbra de 13 de Abril de 1999, Col. Jur. III,
5); tratando-se de justificação notarial que tenha por objecto um terreno
baldio só as compartes poderão impugnar o facto justificado ou o direito
invocado (Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 2 de Dezembro
de 1992, Col. Jur. V, 67); verificando-se impugnação dá-se a inversão
do ónus da prova. Competirá, pois, ao justificante, réu no processo de
impugnação, fazer a prova do direito que alega. A acção competente é a
declarativa de simples apreciação negativa e não tem que ser interposta
antes de decorridos 30 dias sobre a publicidade do acto justificado. Este
prazo constitui apenas condição de emissão da certidão da escritura de
justificação e o justificante não beneficia da presunção de registo lavrado
526 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

com base em tal escritura (cf. Ac. da RC de 17-3-1998, Col. Jur. 1998, 2,22).
Estes pressupostos são igualmente válidos quando o facto justificado
é a usucapião. Assim, se uma pessoa faz uma escritura de justificação
notarial alegando que adquiriu o prédio por usucapião, pelo simples
facto da justificação notarial ele não adquire o direito de propriedade. Só
adquire o direito de propriedade sobre o imóvel se conseguir fazer prova
dos elementos demonstrativos da aquisição por usucapião (cf. Ac. da
Relação do Porto de 8 de Maio de 2000). De igual modo a jurisprudência
portuguesa tem vindo a recusar valor jurídico à justificação notarial sobre
prédios que não estejam inscritos na matriz predial, particularmente
quando se trata de primeira inscrição. Assim, um acórdão da Relação de
Coimbra de 13 de Abril de 1999 diz o seguinte: “Em sede de justificação
notarial, pretendendo-se a primeira inscrição, atestante da dominialidade
do prédio, tem-se como razoável que a lei exija como condição essencial
a existência de inscrição matricial, certificativa da existência do prédio,
para efeitos de segurança e dignidade dos registos. IV – Por conseguinte,
deve considerar-se nula a escritura de justificação notarial a que se
procedeu para justificação de aquisição por usucapião do prédio omisso
na matriz, mesmo que feita a participação na repartição de finanças para
a sua inscrição. V – E por isso, deve o Conservador recusar o registo sob
apresentação de escritura solenizada nessas condições. VI – Não aproveita
ao justificante o facto de, em momento posterior, obter a inscrição matricial
do prédio registando”. Ou seja, não só é necessário a inscrição matricial
para efeitos de justificação notarial, mas não basta um registo matricial
actual. Mostra-se necessário que esse registo matricial preencha condições
tais que titulem a propriedade do imóvel.
As justificações notariais a que faltem os pressupostos legais são
nulas e de nenhum efeito. A nulidade é a mais grave forma de invalidade
dos actos jurídicos. Por isso, pode ser invocada a todo o tempo.

ANEXO
Decreto n.º 132/71 de 6 de Abril

O Regulamento da Ocupação e Concessões de Terrenos nas Províncias


Ultramarinas, aprovado pelo Decreto n.º 43894, de 6 de Setembro de 1961,
foi inicialmente aplicado à Guiné, Angola e Moçambique, e posteriormente
à província de Cabo Verde, pela Portaria n.º 24229. de 9 de Agosto de 1969;
Tal como sucedeu com a publicação do Decreto n.º 47486, de 6 de Janeiro de
1967, relativamente a outras províncias, as circunstâncias locais em Cabo Verde
recomendam medidas transitórias idênticas àquelas que foram contempladas
neste diploma;
e outros escritos jurídicos 527

Por proposta do Governo de Cabo Verde;


Nos termos do § 1.º do artigo 150.º da Constituição, por motivo de urgência;
Usando da faculdade conferida pelo n.º 3.º do artigo 150.º da Constituição, o
Ministro do Ultramar decreta e eu promulgo o seguinte:
Artigo 1.º - 1. Os possuidores de terrenos da província de Cabo Verde
ou das suas autarquias locais que não tenham oportunamente cumprido as
formalidades requeridas para a regularização dos seus direitos, mas ocupem esses
terrenos realizando o respectivo aproveitamento, como se proprietários fossem,
numa posse pública, pacífica e contínua de mais de quinze anos, devem, invocando
esta, solicitar aos serviços competentes, no prazo de cinco anos, a partir da data
em que for anunciado no Boletim Oficial o início das operações de cadastro na
área ocupada, que lhes sejam conferidos, gratuitamente, títulos de propriedade
perfeita.
2. A prova da posse referida no número anterior é feita por documento
passado a solicitação do interessado pela junta de freguesia da área onde se
situam os terrenos, mediante o depoimento de, pelo menos, duas testemunhas
de reconhecida idoneidade, de preferência proprietários de terrenos confinantes
com aqueles cuja legalização se pretende, e confirmado pelo conhecimento da
autoridade administrativa local.
Art. 2.º O título de propriedade perfeita só será concedido após a
prova de aproveitamento e demais requisitos exigidos no corpo do artigo 197.
º do Regulamento de Ocupação e Concessão de Terrenos nas Províncias
Ultramarinas, aprovado pelo Decreto n.º 43894, de 6 de Setembro de 1961.
Marcello Caetano - Joaquim Moreira da Silva Cunha.
Promulgado em 26 de Março de 1971.
Publique-se.
O Presidente da República, AMÉRICO DEUS RODRIGUES THOMAZ.

Para ser publicado no Boletim Oficial de Cabo Verde. - J. da Silva Cunha.


528 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO
e outros escritos jurídicos 529

5. LICENÇA SEM VENCIMENTO. REGIME JURÍDICO GERAL DAS


RELAÇÕES DE TRABALHO. ESTATUTO DO PESSOAL DO
BANCO DE CABO VERDE.

§ 1º

I - A Lei de aprovação do RJGRT, o DL 62/87, de 30 de Junho, previu


no seu artigo 8º que o Governo adoptaria os regulamentos necessários
à execução desse diploma, nomeadamente, no que respeita “à previsão
de outras situações que podem dar lugar à suspensão do contrato de
trabalho”. Quanto seja do nosso conhecimento, os regulamentos previstos
no artigo 8º desse diploma nunca foram aprovados.
Assim, a lei actual não regula a suspensão do contrato de trabalho
por acordo entre a entidade empregadora e o trabalhador, permanecendo,
portanto, uma lacuna nesta matéria.

II - Não se trata, todavia, de uma lacuna que ofereça graves


dificuldades em ser colmatada. O contrato de trabalho é um acordo
de vontades, regulado pelo direito privado. Afora as situações
imperativamente disciplinadas por lei, domina-o o primado da autonomia
da vontade. As partes são, portanto, livres de fixarem nos contratos as
cláusulas que aprouverem e, dentro dos limites estabelecidos por lei, são
livres de modificarem os acordos anteriormente celebrados, revogando
umas cláusulas, adicionando outras, suspendendo umas, modificando os
seus efeitos, desde que sejam respeitadas as balizas imperativas.
A lei manda cotejar, nesta matéria, o princípio da autonomia da
vontade com o princípio da protecção da parte débil, na fixação das referidas
balizas de modo a evitar que a entidade patronal utilize a sua supremacia
contra o trabalhador e o force a aceitar cláusulas que prejudiquem a sua
autonomia ou os direitos adquiridos.
Na falta da referida intervenção legislativa, compete ao aplicador da
lei preencher a referida lacuna, com os recursos metodológicos colocados
à sua disposição.

III – Três vias se apresentam com virtualidade nesta matéria:


a via do contrato de trabalho – na fixação das suas cláusulas as partes
podem estabelecer, para vigorar nas suas relações, um regime especial
de exercício de licença sem vencimento – procedimento pouco usual,
com repercussões negativas na gestão do pessoal; a via da convenção
colectiva e a via regulamentar ou estatutária, estas últimas com maiores
virtualidades, pelo carácter de generalidade das suas normas.
530 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

§ 2º

I - Avisadamente os Estatutos do Banco de Cabo Verde se preca-


veram nesta matéria, regulando-a no artigo 66º sob a epígrafe “licença sem
retribuição”. Vejamos o alcance deste regime.
Tratando-se de um regime estatutário, portanto, fixado unilate-
ralmente por uma das partes, no caso a entidade empregadora, a que os
trabalhadores posteriormente aderiram, nos termos do art. 2º do mesmo
Estatuto, deve-se questionar, antes de mais a sua legalidade.

II - A lei vigente, o RJGRT, pouco adianta nesta matéria. Deixa no


critério da entidade empregadora o poder de conceder ou não aos seus
trabalhadores licenças sem vencimento, a pedido destes, e estabelece que,
durante a licença cessam os direitos e as obrigações das partes, na medida
em que pressuponham a efectiva prestação do trabalho (artº. 109º).
A atribuição da licença sem vencimento e a consequente suspensão
do contrato de trabalho configura-se, portanto, como um poder
discricionário da entidade empregadora que, de acordo com a organização
e os interesses da empresa pode conceder ou não a licença; fixar-lhe o
respectivo período e as demais condições do seu exercício.
Embora a lei não o refira, tendo em conta a amplitude dos poderes
conferidos ao empregador nesta matéria, nada impede que a entidade
empregadora fixe entre as condições do exercício da licença a possibilidade
da sua cessação antecipada, com ou sem intervalos, de acordo com os
interesses da empresa. Também não está proibida a concessão de licenças
com retribuição, total ou parcial, quando a entidade empregadora
considere que os motivos invocados pelo trabalhador para a obtenção da
licença são igualmente vantajosos para a empresa e de tal ordem que se
justifica a contribuição desta.

§ 3º

I - O Estatuto dos Trabalhadores do Banco de Cabo Verde desenvolve


substancialmente este regime legal criando duas categorias de licença sem
retribuição: a que chamou de licença registada e a que denominou de licença
ilimitada.
Tendo em conta que a lei vigente coloca na dependência da
entidade empregadora a fixação das condições de exercício da licença, o
regime adoptado pelo Estatuto afigura-se-nos conforme com a lei, apesar
do desenvolvimento atribuído. Ou seja, a entidade empregadora, no caso
o Banco de Cabo Verde, socorrendo-se do seu poder regulamentar e do
e outros escritos jurídicos 531

poder conformativo da prestação e tendo em conta a prerrogativa fixada


no artigo 109º do RJGRT, deu a esta matéria o desenvolvimento adequado
aos interesses da instituição, fixando-lhe as referidas balizas omissas na lei.

II - Refira-se, aliás, que esse desenvolvimento se apresenta mais


favorável para o trabalhador do Banco de Cabo Verde do que o exíguo
regime fixado no RJGRT, pois, fixa os requisitos que o trabalhador
deve preencher para ter direito a gozar uma ou outra das modalidades
da licença; fixa as condições do exercício da licença, nomeadamente,
os direitos, deveres e garantias do trabalhador durante o período de
licença; e fixa ainda as condições de cessação da licença e de reingresso
do trabalhador.
Analisemos, pois, cada uma das modalidades de licença referidas.

III - Devem ser apontados aspectos comuns e aspectos particulares.


No que respeita aos aspectos comuns refira-se, na sequência da lei,
que a licença sem retribuição é vista como uma concessão da entidade
empregadora, no uso do seu poder discricionário. Neste sentido, a licença
sem retribuição não é um direito do trabalhador, mas apenas um interesse
legitimamente protegido744. A atribuição da licença depende de uma
avaliação unilateral da entidade empregadora, embora seja desencadeada
a instâncias do trabalhador interessado. Por isso, a licença só é viável
quando da sua concessão não resulte inconveniente para o serviço.
A inexistência de inconveniente para o serviço é uma novidade do
estatuto face à lei que, na verdade, nada diz a este propósito. Trata-se de
um conceito propositadamente vago que visa manter a discricionariedade
da entidade empregadora na avaliação das condições de atribuição da
licença.

IV - A licença registada apresenta a seguinte configuração:

- tem duração não superior a um ano;


- para o trabalhador ter direito a esta licença é necessário que tenha
completado três anos ao serviço do Banco;

744 O Ac. da Rel. de Lisboa de 11-3-1998 que diz a este propósito: “O facto de num acordo
colectivo de trabalho estar previsto que «ao trabalhador pode ser concedida, a seu pe-
dido, licença sem retribuição, por período determinado», autoriza a concluir com segu-
rança que a respectiva cláusula do acordo colectivo de trabalho não confere àquele um
direito potestativo ao gozo dessa licença. Não é legítimo, por isso, que o trabalhador
entre em regime de «licença sem retribuição» a partir de certa data por si escolhida, e
pelo período máximo fixado na cláusula do acordo colectivo de trabalho, limitando-se
a notificar a entidade patronal de que assim procedia por imperativos de ordem pesso-
al e familiar”. BMJ, 475, 762.
532 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

- completado o período de licença o trabalhador deverá apresentar-


se nos serviços de pessoal do Banco no primeiro dia útil seguinte
ao termo da licença.

V - A licença ilimitada apresenta a seguinte conformação:

- tem duração indeterminada, mas nunca inferior a um ano;


- só podem gozar a licença os trabalhadores com pelo menos 5 anos
de serviço prestados ao Banco;
- o reingresso do trabalhador depende de aprovação em exame
médico comprovativo de robustez física;
- existência de vaga na categoria ou classe do interessado.

§ 4º

I - Em face das duas categorias de licenças e da conformação jurídica


que lhes está associada, vejamos quais são os seus efeitos. Também aqui
devem ser distinguidos os efeitos gerais e os efeitos particulares da licença
sem vencimento.
Os efeitos gerais são aqueles que decorrem indistintamente das duas
modalidades de licença. Aplicam-se, portanto, quer à licença registada,
quer à licença ilimitada.
Um primeiro efeito geral da licença sem vencimento é o da suspensão
da prestação de trabalho745. O Estatuto do Pessoal do Banco de Cabo Verde
prefere a expressão “suspensão da relação de trabalho”, mas afigura-se-
nos mais correcto falar-se em suspensão da prestação do trabalho, pois,
a relação jurídico-laboral mantém-se, com todos os direitos que não
pressuponham a efectiva prestação de trabalho.
Segue-se, em consequência, que todos aqueles direitos, deveres e
garantias das partes que pressuponham a efectiva prestação do trabalho
suspendem-se por efeito da licença.

II - A determinação de quais sejam estes direitos e deveres que


se mantêm ou se suspendem faz-se por exclusão de partes. O ponto de
referência poderá ser, indistintamente, o daqueles direitos e deveres que
se conservam, como o daqueles direitos e deveres que se suspendem.

745 A. Menezes Cordeiro chama a atenção para esta precisão terminológica: “a suspensão
é, em si, um efeito jurídico, dependente da verificação de um facto: o facto suspensivo. A
suspensão distingue-se da licença que traduz apenas uma categoria de factos suspen-
sivos” – in Manual de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 1994, pp. 768.
e outros escritos jurídicos 533

Visto que grande parte dos direitos e deveres das partes na relação
de trabalho estão ligados à prestação efectiva do trabalho, determinare-
mos os direitos e deveres que se conservam, ficando os suspensos deter-
minados por exclusão de partes. Além disso, o importante para as partes
é conhecerem em cada momento quais os direitos e deveres que se conser-
vam para que possam acautelar o seu exercício ou a sua observância.
Também mencionaremos só os direitos e deveres do trabalhador,
sendo certo que, correspectivamente, ficam determinados os deveres e
direitos da entidade empregadora que se conservam.

III - Um direito que seguramente se mantém é o direito ao contrato


de trabalho. Um trabalhador na situação de licença sem vencimento não se
desvincula da empresa. Conserva o vínculo jurídico-laboral com aqueles
direitos, deveres e regalias que não pressuponham a efectiva prestação de
trabalho. É para todos os efeitos um trabalhador da empresa.
De par com o direito ao contrato de trabalho o trabalhador conserva
ainda o direito à liberdade de contratação, sem prejuízo das limitações que
referiremos a seguir. Portanto, um trabalhador pode obter licença sem
vencimento para prestar a sua actividade a outra entidade patronal,
criando, assim, uma duplicidade de vínculos. O trabalhador passa a estar
vinculado a dois contrato de trabalho.
Compreende-se que os dois vínculos hão-de ser compatíveis entre
si, sob pena de gerarem situações de mútua exclusão.
A ideia de uma duplicidade de vínculos não deve causar estranheza.
Como assegura MENEZES CORDEIRO, o moderno Direito do trabalho
preconiza que a celebração de um contrato de trabalho não implica a
alienação a favor do empregador de toda a força de trabalho do trabalhador;
este apenas se obriga na precisa medida do contrato celebrado, dentro
de certos limites temporais746. O trabalhador não perde legitimidade para
exercer outras ocupações profissionais, inclusive recorrendo à celebração
de contratos de trabalho laterais747.
Trata-se, porém, de uma ideia que apresenta limitações legais e
contratuais, fundadas em razões de interesse público e razões de interesse
particular.

IV - De entre as razões de interesse público que interferem no


exercício da liberdade de pluricontratação estão as fundadas numa política
de emprego e em razões de ordem deontológica.

746 Manual... cit. pp. 549.


747 Ibidem.
534 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

O ponto é controverso na doutrina laborista que oscila entre a


posição daqueles que admitem uma ampla liberdade de contratação, por
conseguinte, sustentando que a politica de emprego não deve interferir
na liberdade de celebrar contratos de trabalho, e aqueles que fazem
prevalecer o ponto de vista segundo o qual a pluricontratação inviabiliza
a prossecução de uma política de pleno emprego.
Não desenvolveremos este ponto pelo seu desinteresse para o
tratamento do tema. Referimos tão somente que o modo como o direito à
pluricontratação tem sido utilizado, nos leva a inclinar para a defesa do
ponto de vista que privilegia uma política tendente à protecção do pleno
emprego.
As limitações fundadas em razões de ordem deontológica situam-
se na zona de confluência entre o interesse público e o interesse privado
em termos que torna difícil a sua separação.
Além das razões fundadas no interesse público há-as ainda
fundadas em interesses particulares, como seja, a necessidade de evitar
a concorrência desleal. A pluricontratação poderá, na verdade, constituir
uma importante fonte de revelação de segredos industriais ou de métodos
de fabrico748, violando o dever de lealdade devido pelo trabalhador à sua
entidade empregadora.

V - Como decorre do artº. 66º nº. 3 do Estatuto, o trabalhador na


situação de licença sem vencimento conserva igualmente o direito à
categoria e classe profissionais que possuía na data do início da licença.
Tal significa que no momento do seu reingresso na empresa o trabalhador
tem direito a ser recolocado na categoria profissional que corresponde ao
leque de funções, à natureza e espécie de tarefas que desempenhava no
momento em que iniciou o gozo da licença sem vencimento.
Refira-se, todavia, que, particularmente na situação de licença
ilimitada o trabalhador regressado deve adaptar-se à dinâmica da
empresa, pelo que poderão ser necessários ajustamentos no seu conteúdo
profissional que serão tanto mais exigentes quanto maior for o período de
licença sem vencimento decorrido.

748 Assim, o Ac. do S.T.J. (Portugal) de 3-7-1991 considerou que “constitui justa causa
de despedimento, a violação com dolo ou com culpa grave, por parte do trabalhador,
do dever de guardar segredo, ou dever de sigilo, quando a sua actividade profissional
estiver ligada a segredos industriais, ou de métodos de fabrico de objectos ou produ-
tos, se tais factos revelarem que se tornou impossível a subsistência da relação laboral”
- Acs. Dout. do STA, 360, 1421. Idêntica solução seria justificada relativamente ao tra-
balhador na situação de licença sem vencimento que violasse, com culpa grave, o dever
de sigilo relativamente a segredos industriais ou a métodos de fabrico.
e outros escritos jurídicos 535

VI - O trabalhador conserva ainda o direito à antiguidade na


empresa. Ou seja, continua a poder exercer os direitos que se fundam
no tempo de serviço prestado à empresa. Deve-se, todavia, distinguir o
direito à antiguidade do direito à contagem do tempo de licença para
efeitos de antiguidade que o trabalhador não tem. Nos termos do artº.
66º nº. 4 do Estatuto do Banco “o período de licença não se conta para
efeitos de antiguidade”, donde resulta que a suspensão da prestação do
trabalho implica igualmente a suspensão da contagem da antiguidade do
trabalhador.

VII - Um dever que seguramente se mantém durante a suspensão


do contrato de trabalho por efeito da licença sem vencimento é o dever
de lealdade. A lealdade exprime-se numa relação de confiança entre o
trabalhador e a entidade empregadora que impede o trabalhador de
praticar determinados actos, nomeadamente, exercer a sua actividade
a favor de empresa concorrente. Neste particular, a jurisprudência tem
entendido que para que haja violação deste dever não é necessário que o
comportamento desleal cause prejuízos à entidade empregadora. Basta
que objectivamente seja tido como um comportamento desleal para com o
seu empregador749.
O Tribunal Constitucional português considerou que uma norma
legal que estabelece, “para os trabalhadores de seguros no activo ou em
situação de reforma ou pré-reforma auferindo pensão complementar
de reforma, a proibição de se inscreverem como agentes de seguros de
pessoa singular ou de serem, directamente ou por interposta pessoa,
sócios de pessoas colectivas mediadoras de seguros” não está ferida de
inconstitucionalidade porque se trata de restrições ou condicionamen-
tos fundados no dever de lealdade que caracteriza o trabalho subor-
dinado750.

VIII - Admite-se igualmente que o trabalhador na situação


de licença sem vencimento conserva também os deveres de respeito e
urbanidade. Um acórdão da RL de 24 de Outubro de 1984 considerou
legítimo o despedimento de um trabalhador na situação de licença sem
vencimento que faltou ao respeito e urbanidade devido aos elementos dos
corpos sociais da empresa751.

749 Cf. neste sentido Ac. do S.T.J. de 1-4-1998, Acs. Dout. do STA, 442, 1343.
750 Ac. do Trib. Const. nº 474/89 de 12-7-1989 (P. 248/85) 12-Jul-1989, BMJ, 389, 214
751 www.dgsi.pt/jtrl.
536 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

IX - Estes e outros efeitos têm merecido a atenção da jurisprudência


portuguesa, como decorre da listagem seguinte:
- Despedimento de trabalhador na situação de licença sem
vencimento – Ac. da RL de 24 de Outubro de 1984, www.dgsi.
pt/jrl.
- Um trabalhador em situação de licença sem vencimento não
responde à convocação para retomar o serviço e é despedido
– Ac. da RL de 6 de Outubro de 1993, www.dgsi.pt/jrl.
- Licença sem vencimento ou em alternativa a rescisão do contrato
de trabalho – Ac. da RL de 1 de Janeiro de 1995 e ainda Ac. da RL
de 17 de Maio de 1995, www.dgsi.pt/jrl.
- licença concedida a um pai para cuidar de um filho menor – Ac.
do STJ (Portugal) de 1.4.1998, BMJ 476, 216752.
- Um trabalhador entra em regime de licença em data por ele
escolhida, alegando motivos de ordem pessoal e familiar – Ac. da
RL de 11 de Março de 1998, BMJ 475, 762.
- Um trabalhador em regime de licença é punido por abandono de
lugar – Ac. da RL (Portugal) de 17 de Maio de 2000, www.dgsi.
pt.
- Licença para efeito de estudos, seguido de abandono de lugar
– Ac. da RL de 2 de Abril de 2003, http://www.dgsi.pt/jtrl.
- Licença sem vencimento seguida de rescisão do contrato – Ac. da
RL de 16 de Junho de 2004, www.dgsi.pt/jrl.

§ 5º

I - Além dos efeitos gerais referidos, o Estatuto do Banco de Cabo


Verde prevê, no que respeita a cada uma das modalidades de licença,
efeitos particulares que referiremos sumariamente.
Assim, decorrido o período de licença registada reactiva-se a
relação laboral e o trabalhador deverá apresentar-se perante os serviços
do pessoal do Banco ou no estabelecimento em que prestava trabalho para

752 Neste acórdão discutiu-se a situação de um trabalhador bancário que, ao abrigo da


cláusula 91ª, ns. 1 e 4, do acordo colectivo de trabalho de 1992 para o sector bancário
requereu e foi-lhe concedida licença para cuidar de um filho menor. Todavia, duran-
te o período de licença o trabalhador leccionou algumas horas num estabelecimento
de ensino. A entidade bancária considerando que o trabalhador tinha desvirtuado o
objectivo pelo qual requereu a licença, considerou injustificadas as faltas dadas ao tra-
balho. Submetido o caso a julgamento o tribunal desatendeu a pretensão da entidade
empregadora, considerando essas ausências não podiam ser imputadas ao trabalhador
a título de faltas, dado que a licença importa a paralisia dos efeitos do contrato de tra-
balho no que respeita à prestação do trabalho.
e outros escritos jurídicos 537

retomar o serviço (artº. 66º nº. 5). Isso significa que a licença registada
produz o efeito particular do direito à conservação do lugar na empresa.
Decorre igualmente desse regime que, concluído o período de
licença, se o trabalhador não se apresentar para retomar o trabalho incorre
em faltas não justificadas e poderá ser despedido por abandono do lugar.

II - Diversos são os efeitos particulares da licença ilimitada. Nesta


modalidade de licença o trabalhador não conserva o direito ao lugar e só
poderá reingressar ao Banco mediante a existência de vagas na sua classe
ou categoria (artº. 66º nº. 6 al. b) do Estatuto) e desde que seja aprovado
em exame médico (artº. 66º nº. 6 al. a) do Estatuto). Se o trabalhador não
for aprovado no exame médico será passado à reforma, se for considerado
permanentemente incapaz para o serviço. Portanto, um outro efeito
particular da licença ilimitada é a reforma antecipada do trabalhador. Se
a incapacidade for temporária o trabalhador manter-se-á na condição de
licença ilimitada até que cesse a incapacidade.

§ 7º

I - Tendo em conta a natureza institucional do Banco de Cabo


Verde, confluem na regulação do estatuto jurídico dos seus trabalhadores
normas de direito público e normas de direito privado, cuja coordenação
se revela melindrosa.
Como afirmam Vital Moreira e Gomes Canotilho, a propósito do
Banco de Portugal, trata-se do banco central do país que desempenha
nessa qualidade as funções de banco emissor, banco de reservas (de ouro
e divisas) banco do Estado, banco dos outros bancos, autoridade cambial
e assume ainda um papel de relevo na definição e implementação da
política monetária e financeira na respectiva fiscalização”753. Isto confere
a este organismo o carácter de instituição pública com competência para
supervisionar as empresas e instituições financeiras, emanar directivas,
fazer recomendações, aplicar sanções754.
Com MENEZES CORDEIRO, podemos afirmar que, enquanto
autoridade supervisora e fiscalizadora, detém um autêntico poder
normativo, através da publicação de directivas fonte de verdadeiras
normas jurídicas”755.

753 In Constituição da República portuguesa, anotada, 1993, pp. 455 e 456.


754 Sobre os poderes de um banco central, cf. Vasco Soares da VEIGA, in Direito Bancário,
Coimbra, Almedina, 1997, pp. 66.
755 In Direito Bancário – Actas do Congresso Comemorativo do 150º aniversário do Banco de
538 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

II - Todavia, ao mandar regular o Estatuto do Pessoal do Banco de


Cabo Verde pelas regras do RJGRT obriga a um esforço de compatibilização
entre as normas de direito público que protegem a instituição e as normas
de direito privado que regulam as relações entre o Banco e os seus
trabalhadores.
Cremos que essa harmonização poderá ser feita tomando em
consideração o seguinte: as normas de polícia económica, incluindo
aquelas que se traduzem em deveres estatutários para os trabalhadores,
são de aplicação imediata, quer porque actuam sobre o conteúdo de uma
relação jurídica, sem atender ao facto que lhe deu origem (artº. 12º nº. 2
do CC), quer porque disciplinam aspectos de ordem pública económica
e monetária. Assim, apesar de os trabalhadores do Banco Central se
regerem pelo RJGRT, por força do nº. 1 do artº. 54º da Lei Orgânica do
Banco de Cabo Verde, aprovada pela Lei 10/VI/2002, de 15 de Julho,
nada impede que outras leis, em nome do interesse público, afastem o
mesmo regime naquelas situações em que não se mostre adequado para
proteger o interesse público. Por isso, a fórmula prevista no nº 1 do artº
54º da Lei Orgânica do Banco de Cabo Verde, deve ser lida “sem prejuízo
das normas de direito público aplicáveis”.

III - A lei orgânica do Banco de Cabo Verde fixa, em nome do


interesse público, um conjunto de incompatibilidades que vinculam os
trabalhadores do Banco de Cabo Verde. Antes de mais estes trabalhadores
não poderão fazer parte dos órgãos sociais de entidades sujeitas à
supervisão do Banco, entendendo como tais as previstas nas alíneas d) e
e) do nº. 2 do artigo 22º. Ou seja, nenhum trabalhador do Banco de Cabo
Verde poderá fazer parte dos órgãos sociais de instituições de crédito e
parabancárias e bem assim de empresas ligadas à actividade seguradora
e resseguradora, de mediação de seguros, de fundo de pensões ou outras
actividades conexas e complementares.
Do mesmo passo, aos trabalhadores do Banco de Cabo Verde é
vedado exercer a favor das referidas entidades “quaisquer funções” (artº.
54º nº. 3 da Lei Orgânica do Banco).

IV - É vasto o alcance desta disposição. A referência a “quaisquer


funções” respeita a funções correspondentes a qualquer categoria
profissional; sejam remuneradas ou não; a tempo inteiro ou a tempo
parcial; mediante contrato de trabalho, de prestação de serviço, de
empreitada, de tarefa, à jornada ou outra. Dir-se-á que a Lei Orgânica do

Portugal (22-25 de Outubro de 1996) Direito Bancário Privado, Coimbra Editora, 1997, pp.
23.
e outros escritos jurídicos 539

Banco de Cabo Verde quer distância dos seus trabalhadores relativamente


às instituições de crédito, parabancárias, seguradoras ou conexas, quer
para a prestação de trabalho remunerado, quer para a prestação de
trabalho não remunerado.
É uma incompatibilidade fortíssima que roça as fronteiras da
autonomia pessoal, quando tende a atingir a própria actividade não
remunerada. Compreende-se, todavia, a preocupação do legislador:
pretende evitar que a confusão entre uma eventual actividade remunerada
e uma actividade não remunerada enfraqueça ou ponha em perigo
preocupações fiscalizadoras que para a Lei Orgânica devem prevalecer.

V - De entre os trabalhadores do Banco, a Lei Orgânica fixa


incompatibilidades específicas para aqueles que exerçam funções de
gestão, consultadoria ou assessoria que só poderão exercer fora do Banco
funções ligadas à docência e à investigação (artº. 54º nº 4). Para estas
categorias profissionais está vedado o exercício de toda e qualquer outra
função fora do Banco. Trata-se de uma incompatibilidade absoluta que
não poderá sequer ser ultrapassada mediante autorização do Conselho
da Administração, à semelhança do que acontece com os demais
trabalhadores.
Note-se a similitude estabelecida pela Lei Orgânica entre a condição
jurídica dos gestores, assessores e consultores com a do Governador e
Administradores do Banco. Também estes não poderão desempenhar
qualquer função pública ou privada, remunerada ou não, salvo as funções
de docente do ensino superior ou de investigação, não remunerada nos
termos da lei (artº. 34º nº. 1 al c)).
Esta similitude buscada pela Lei Orgânica prende-se com a
proximidade com que os órgãos do governo do Banco e aquelas categorias
profissionais desempenham as suas funções. O que a lei pretende
é que essa proximidade seja igualmente protegida pelo regime das
incompatibilidades.
Todavia, a última parte da alínea c) do nº. 1 do artigo 34º ou deve
ser entendida como estabelecendo uma proibição e não uma excepção, ou
no sentido de que contém uma norma inconstitucional, por violação do
princípio da autonomia privada, traduzida na expropriação do tempo do
trabalhador. Na verdade, faz parte da autonomia privada do trabalhador
decidir se presta uma determinada actividade mediante remuneração ou
não. Ultrapassa os limites dessa autonomia a lei que fixa imperativamente
uma actividade como não remunerada. O que a lei pode fazer é vedar
ou não o exercício daquela actividade porque incompatível com outra.
Mas uma vez permitido o seu exercício compete ao trabalhador, no seu
540 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

livre arbítrio, decidir se deverá ser remunerada ou não. Por conseguinte,


ou reputamos a norma inconstitucional ou temos que fazer dela uma
interpretação restritiva para salvar o respectivo conteúdo.

VI - Além das restrições anteriormente referidas, os trabalhadores


do Banco de Cabo Verde que não sejam gestores, consultores ou assessores,
só poderão exercer uma actividade remunerada fora do Banco, mediante
autorização expressa do Conselho da Administração (artº. 54º nº. 5) e
desde que não sejam incompatíveis com as que o trabalhador desempenha
no Banco.
É uma disciplina severa que quase se confunde com um regime
de exclusividade de que muito se aproxima. Tão severo que enfraquece
fortemente as normas estatutárias que permitem a obtenção de licença sem
vencimento, quando interpretadas no sentido de que tal licença poderá
ser igualmente concedida para a prestação de uma diferente actividade
laborativa.
Este regime se justifica, todavia, em virtude do entendimento já
sufragado de que a Lei Orgânica do Banco de Cabo Verde quer ver os
trabalhadores da instituição longe dos organismos sujeitos ao seu controlo
e fiscalização e, já agora, longe de outras actividades económicas que não
sejam de investigação e de ensino.
Do nosso ponto de vista, a lei foi longe demais.
e outros escritos jurídicos 541

6. SOBRE A REVISÃO DO PROCESSO DISCIPLINAR

1. PRESSUPOSTOS

I - Os processo de revisão das decisões, sejam judiciais ou


administrativas, têm a sua base no princípio da racionalidade do direito
que admite não apenas a possibilidade de erro – erarum humanum est – e
a faculdade de o corrigir, seja em sede do processo gracioso, como em
sede do processo contencioso756, mas também o ponto de vista de que a
alteração das circunstâncias que rodeiam os processos de decisão devem
igualmente implicar a modificação das mesmas decisões. Os processos
de revisão exprimem, pois, esta ideia de racionalidade e ocorre em razão
da errada determinação da norma aplicável, o que dá lugar à revisão
dos processos de decisão por violação de lei, em regra substantiva757;
da interpretação da norma aplicável, que fundamenta igual recurso por
violação de lei substantiva; da avaliação dos factos, permitindo-se uma
nova apreciação do seu conjunto, quando colocado em presença de um
facto novo relevante; como em sede da causa impulsiva determinante,
permitindo-se a reavaliação desta. O princípio da racionalidade do direito
viabiliza igualmente a reapreciação dos processos decisórios num novo
momento temporal e circunstancial, esvaziando-os das condicionantes
de ordem psicológica, processos de intenções ou reservas mentais que os
condicionaram.
Este é o momento da exaltação do que há de superior na natureza
humana. Do ponto de vista de quem tem o poder de decidir, ele traduz-se
na superação da mediocridade e no crescimento espiritual. Do ponto de
vista de quem sofre a medida decisória, traduz-se na garantia de alcançar,
a todo o tempo, melhor justiça. No plano social, dá melhor segurança aos
cidadãos e reforça a imagem pública de quem tem o poder de decidir.

II - Podia-se pensar que os processos de revisão contenderiam com


o princípio do caso julgado. A coisa julgada tem-se por verdadeira (res
judicata pro veritatem habetur) sob pena de se pôr em causa a segurança

756 A argumentação jurídica com base no discurso racional foi desenvolvida nomeada-
mente por Robert ALEXY. Cf. a sua Teoria da Argumentação Jurídica – a teoria do discurso
racional como teoria da justificação jurídica, tradução portuguesa, por Zilda Hutchinson
Schild SILVA, S. Paulo Brasil, 2001.
757 Cf. Artº 721º do CPC.
542 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

do direito. Todavia, não é assim. Os processos de revisão pretendem,


precisamente, pôr em causa a base ou aspectos da base fáctica ou jurídica
em que assentou o processo decisório. Não há contradição, mas sim
complementaridade entre o processo julgado e o processo de revisão,
pois, ambos concorrem para a busca de melhor justiça.
Por isso, a generalidade das ordens jurídicas acolhe processos de
revisão, seja em sede penal, civil ou disciplinar. No plano penal é admissível
a revisão da sentença condenatória em pena de prisão transitada em
julgado; a revisão de medidas de internamento e a revisão de sentenças
inconciliáveis. No plano civil, é admitida a revisão de medidas tutelares
e outras medidas de protecção de menores. O recurso extraordinário de
revisão em Processo Civil previsto no artº. 721º do respectivo Código, é
igualmente uma medida importante neste sector. A reclamação, amplamente
permitida, tanto no processo criminal, como no civil ou administrativo
enquadra-se nesta ideia de revisão das decisões. No domínio da função
pública são permitidos processos de revisão em matéria de prestação de
informações anuais; de avaliação em concurso público; de aplicação de penas
disciplinares. Sendo a reparação de injustiças o fundamento último dos
processos de revisão, não está afastada a possibilidade de recurso a esse
processo sempre que um condenado em processo disciplinar reputar
injusta a pena aplicada ou sempre que qualquer decisão administrativa
afectar de forma injusta o funcionário, como será, a preterição relativa ou
absoluta na atribuição de cargos de responsabilidade ou na distribuição
do serviço758; incumprimento de normas legais na concretização de
transferências com prejuízo para o funcionário e para a sua família;
iniquidade; violação de direitos, liberdades e garantias dos funcionários.
Podem assim considerar-se três modalidades de processos de
revisão, consoante o momento temporal em que se suscitam: a revisão

758 A preterição relativa traduz-se no favorecimento do funcionário ou agente menos qua-


lificado face ao funcionário ou agente mais qualificado, na atribuição de cargos de
responsabilidade ou na distribuição do serviço. A preterição absoluta consiste em igno-
rar o funcionário na atribuição de cargos de responsabilidade ou na distribuição de
serviço. Na gíria popular a preterição absoluta é referida como “colocação do funcio-
nário na prateleira”. Tanto a preterição absoluta, como a relativa são medidas ilegais.
Violam o direito e o correspondente dever de ocupação efectiva que se traduz não apenas
na faculdade que o funcionário ou agente tem de exercer uma função, mas também,
e sobretudo, de exercer a função para que está melhor qualificado. Entendido neste
sentido, o cumprimento do dever de ocupação efectiva traduz-se num acréscimo de
qualidade da prestação dos diversos serviços públicos, globalmente considerados. Há
um evidente interesse público em que o funcionário seja efectivamente ocupado e seja
efectivamente melhor ocupado. Este interesse público pode, nalguns casos, justificar
a intervenção do Ministério Público, particularmente quando a violação do direito de
ocupação efectiva não sejam objecto de reparação em sede graciosa.
e outros escritos jurídicos 543

de decisões processuais interlocutórias; a revisão de decisões processuais


definitivas, que resolvem a relação material controvertida em sede do
processo gracioso e a revisão do caso julgado.
Os processos de revisão têm em vista a confirmação, modificação
ou revogação da decisão submetida a um novo julgamento. Mas alguns
aspectos devem ser desde já referidos: se é certo que no que respeita a
medidas de internamento ou a medidas tutelares ou outras de protecção de
menores os processos de revisão poderão conduzir a um agravamento das
decisões, no que respeita às decisões condenatórias estas jamais poderão
ser alteradas no sentido do agravamento da pena aplicada. Assim, em sede
disciplinar, um processo de revisão não poderá implicar a elevação de
uma sanção disciplinar de suspensão ou uma pena de multa. Com efeito,
em sede penal e disciplinar os processos de revisão são estabelecidos a
favor do condenado que é a única pessoa com legitimidade para, por si ou
seu representante, os desencadear.

2. REGIME ACTUAL. EVOLUÇÃO

I - No direito da função pública cabo-verdiano a faculdade


reconhecida ao condenado numa pena disciplinar de obter a revisão da
pena aplicada antecedeu o próprio Estatuto do Funcionalismo Ultramarino.
Assim, nos termos do artigo 264º e segs. da Reforma Administrativa
Ultramarina759, aprovada pelo Decreto nº. 23.229, de 15 de Novembro de
1933, todo o funcionário que tivesse sofrido uma punição disciplinar podia
requerer ao Governador a sua revisão, com base em elementos de prova
“ainda não examinados no processo e susceptíveis de fazerem acreditar
na inocência do condenado” (artº. 264º corpo). O pedido era submetido
ao Conselho Disciplinar que lavrava um acórdão propondo ou não a
revisão (§ 2º do artº. 264º). Concedida a revisão o Governador nomeava
um sindicante ou inquiridor para proceder à instrução do processo, mas
a decisão final competia ao Ministro das Colónias que, avaliando a prova
produzida, decidia como julgasse de justiça, não só quanto à manutenção,
modificação ou revogação do castigo imposto, como quanto aos direitos
do funcionário, nomeadamente, do ponto de vista do vencimentos a que
tinha direito como consequência da revisão (artº. 265º da RAU)760.

759 Adiante RAU.


760 Sobre os processos de revisão desencadeados na vigência da RAU, ver, entre outros,
Ac. do Conselho Superior de Disciplina das Colónias, adiante, CSDC, de 13.11.1936; Ac.
do Conselho Superior do Império Colonial, de 20.5.1937; Ac. do CSDC de 14.5.1937;
544 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

II - A matéria foi retomada no Estatuto do Funcionalismo


Ultramarino, aprovado pelo Decreto nº. 46 982, de 27 de Abril de 1966, que
entrou em vigor a 1 de Agosto do mesmo ano, que, entre outras alterações,
face à RAU, veio estabelecer um prazo de 180 dias “contados da data em
que o funcionário obteve a possibilidade de invocar as circunstâncias
ou os meios de prova alegados como fundamento de revisão” (artº.
420º § 1º) e a especificação de que nem a violação de lei, nem a amnistia,
nem a prescrição ou a absolvição em processo crime podiam servir de
fundamento à revisão (§ único do artigo 421º). O estabelecimento desse
prazo legal para requerer a revisão das decisões tomadas em processo
disciplinar, possibilitou a Marcelo CAETANO criticar esta disposição
que, do seu ponto de vista, não apresentava nenhuma vantagem para a
Administração, além de que dificultava a reabilitação do condenado sobre
quem passaria a impender o ónus inútil de provar a data em que obteve a
possibilidade de invocar os novos elementos761.

III - O regime jurídico da revisão das decisões tomadas em processo


disciplinar está amplamente tratado na doutrina estrangeira762. Aqui só
referiremos os seus traços essenciais.
O fundamento último do processo de revisão disciplinar é
a correcção de uma injustiça. Mas aqui surge imediatamente uma
divergência doutrinária quanto ao objecto do processo de revisão: ele
deverá fundar-se só e unicamente num novo julgamento dos factos, tendo
em conta a presença de um facto novo, ou deverá proceder à reavaliação
do direito aplicado?
Marcelo CAETANO sustentou o ponto de vista segundo o qual a
revisão da decisão disciplinar só poderia fundar-se num novo julgamento
da matéria de facto. Excluída estaria a revisão da decisão disciplinar com
fundamento em violação de lei, pois, como justificou o autor, havendo
violação de lei e o interessado não tenha dela interposto recurso, podendo
fazê-lo, por via graciosa ou por contenciosa, caducou o direito, sanou-se o
vício e o acto tornou-se legal763.

Ac. do CSDC de 16.6.1937; Ac. do CSDC de 22.10.1937; Ac. do Supremo Tribunal


Administrativo, adiante, STA, de 24.6.1938, entre outros.

761 Manual... cit., vol. II, pp. 871.


762 O regime jurídico dos processos de revisão varia consoante a sua natureza.
763 Manual..., vol. II, cit. pp. 876. Segundo este autor “o fundamento do pedido só pode ser
a injustiça da pena aplicada, nunca a ilegalidade desta ou do processo, pois os vícios do
acto devem ser discutidos por via contenciosa na altura própria” – ob. cit. pp. 870.
e outros escritos jurídicos 545

Neste sentido decidiram vários acórdãos do Conselho Superior de


Disciplina do Ultramar764, na vigência da RAU que fundava a revisão em
“elementos de prova ainda não examinados” (artº. 264º e § 1º).

IV - Esta doutrina merece reparos, como, aliás, assinalou André


Gonçalves PEREIRA765. Se a decisão revidenda se fundou num erro de
julgamento dos factos, o erro de facto origina violação de lei. Logo, a decisão
a revogar era ilegal. A estes argumentos deve-se acrescentar o seguinte:
por identidade de razão, não parece fazer sentido admitir, em sede de
processo penal, a revisão das sentenças condenatórias e não consentir
igual faculdade em sede de processo disciplinar, dado que militam as
mesmas razões. É esta identidade de razões que fundamenta a aplicação
subsidiária ao processo disciplinar das normas que regulam o processo
penal. Por maioria de razão, não parece fazer sentido admitir-se a revisão
da decisão cível fundada em violação de lei substantiva e não admitir-
se igual possibilidade em sede disciplinar, tendo em conta a natureza da
matéria sujeita a julgamento. Na verdade, a matéria disciplinar interfere
muitas vezes com direitos indisponíveis, tais como o direito à honra e
consideração, o direito à intimidade e outros direitos de personalidade,
e interfere, sobretudo, com o direito ao trabalho, considerado por alguns
autores corolário do direito à vida766. Ora, não é curial aceitar-se a revisão
de sentenças judiciais sobre obrigações decorrentes de um contrato
de fornecimento de mercadorias, v. gr., fundada em violação de lei
substantiva, e não se aceitar igual revisão quando se trata do exercício de
direitos de personalidade. Mas há mais: a decisão em processo disciplinar
visa avaliar a responsabilidade pessoal do funcionário ou agente. O
princípio da dignidade da pessoa humana obriga inelutavelmente que a
responsabilidade imputada ao funcionário ou agente possa ser sempre
reparada em caso de erro de julgamento da matéria de facto ou violação

764 Cf., entre outros, Acórdão de 15 de Janeiro de 1952 nos termos do qual “a ilegalidade
do acto condenatório não é fundamento de revisão, mas sim de recurso” – in Colecção
de Acórdãos Doutrinários do Conselho Superior de Disciplina do Ultramar – 1951-1952-1953,
Agência Geral do Ultramar, MCMLX, pp. 203 e segs. Em sentido semelhante, cfr. Ac.
do CSDU de 4 de Março de 1953, Colecção... pp. 379 e segs.
765 In Erro e Ilegalidade no acto administrativo, pp. 72, cit. por Marcelo CAETANO, ob. loc.
cit..
766 Ver, neste sentido, VITAL MOREIRA e GOMES CANOTILHO, Constituição da Repú-
blica portuguesa, anotada, 3ª edição, Coimbra Editora, 1993, pp. 176. Na tese destes
autores o direito à vida significa também o direito à sobrevivência e o direito a dispor
de condições de subsistência mínimas, integrando, designadamente, o direito ao traba-
lho.
546 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

de lei, maxime, substantiva. Há um valor claramente superior que obriga


à revisão, senão por identidade, por maioria de razão.

V - A revisão das decisões coloca, pois, um problema de igualdade


no acesso ao direito e à justiça que a Constituição da República reconhece a
todos, sem excepção (artº. 21º da CR). O acesso à justiça não se esgota no
direito à acção e no direito ao recurso. Impõe o direito à revisão de qualquer
decisão injusta, particularmente quando se trata de responsabilidade
pessoal. Por isso, a revisão em processo penal é mais frequentemente
aceitável do que a revisão em processo civil. E a circunstância de a
decisão disciplinar ter sido apreciada e confirmada em sede de recurso
contencioso não contende com este ponto de vista, já que militam as
mesmas razões que fundamentam a revisão em processo penal e, em
alguns casos, militam razões superiores às que justificam a revisão em
processo civil, por violação de lei substantiva.
A doutrina de Marcelo CAETANO não tem hoje apoio nem
na Constituição da República portuguesa767, nem na Constituição da
República Cabo-verdiana. Por isso, se estranha que o nosso actual Estatuto
Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Pública768 a
tenha acolhido, na sequência, aliás, do EDFAACRL português. O nº. 2
do artigo 90º desse EDAAP afigura-se-nos inconstitucional pelas razões
expostas, cujo desenvolvimento não se compaginam com os limites da
presente nota.

3. FACTO NOVO

Essencial ao actual processo de revisão da pena disciplinar


é o conceito de facto novo. Por facto novo não deve entender-se nem o
acontecimento ocorrido posteriormente à avaliação dos factos que
deram lugar à punição disciplinar, nem o acontecimento de que o
interessado tenha tido conhecimento em momento posterior à referida
decisão. Por facto novo deve entender-se o acontecimento não tomado em
consideração no momento de decidir, ainda que o interessado tenha tido

767 Deve, pois, estranhar-se que o actual Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes
da Administração Central, Regional e Local aprovado pelo Decreto-Lei nº. 24/84, de
16 de Janeiro, de ora em diante, EDFAACRL, tenha acolhido esta tese manifestamente
inconstitucional. Dispõe, com efeito, o nº. 3 do artigo 79º deste EDFAACRL que “a
simples alegação de ilegalidade, de forma ou de fundo, do processo e da decisão disciplinar não
constitui fundamento para a revisão”.
768 Adiante EDAAP.
e outros escritos jurídicos 547

dele conhecimento e ainda que tenha sido mencionado no processo. Este


conceito requer alguma explicação. O facto ocorrido posteriormente pode
fundar a revisão dos processos por alteração das circunstâncias, mas nunca
por injustiça da decisão tomada, pois, se ocorreu em momento posterior
à prática dos factos que deram lugar à punição, esta não se fundou,
seguramente, no dito facto superveniente. O facto de que o interessado
tenha tido conhecimento em momento posterior à decisão pode fundar a
modificação ou revogação desta, com fundamento em injustiça, pois, sendo
decisivo, ao não ser tomado em consideração, permitiu uma avaliação dos
factos na sua globalidade de forma errada ou distorcida. Ele integra, na
verdade, o conceito de facto novo, mas trata-se de um conceito insuficiente,
pois, pode acontecer que, embora o interessado tenha tido conhecimento
de determinado facto e ele tenha sido mencionado no processo, o mesmo
não foi tomado em consideração por erro de julgamento da matéria de
facto. Mas há ainda um outro aspecto que deve ser referido. Tratando-se
de factos a que competiria ao interessado demonstrar a sua veracidade,
recaindo, portanto, sobre ele o ónus da prova, pode acontecer que até ao
momento de decidir não pôde reunir os elementos demonstrativos da
veracidade do facto que alegou e, por isso, apesar da sua menção no
processo, não foi tido em consideração, no momento de decidir769 por
impossibilidade, naquele momento concreto, de demonstrar a respectiva
veracidade.

4. LEGITIMIDADE

Os processo de revisão de decisões disciplinares são em regra


desencadeados pelo funcionário ou agente que sofreu a punição
disciplinar.
Tendo em conta a importância da relação de trabalho não só para
o trabalhador e para a sua família, quando a punição disciplinar põe em
causa a subsistência da relação laboral com o consequente prejuízo para
os membros do agregado familiar, não está inviabilizada a possibilidade
de o cônjuge ou convivente de facto poder pedir a revisão do processo
disciplinar.

769 No sentido referido, ver Ac. do STJ (Portugal) de 22 de Outubro de 1998 que reza as-
sim: “são considerados novos factos ou novos meios de prova aqueles que não tenham
sido apreciados no processo que levou à condenação, embora não fossem ignorados
pelo arguido na ocasião em que se realizou o julgamento”.
548 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

5. TRÂMITES SUBSEQUENTES

I - O processo de revisão disciplinar tem dois momentos


perfeitamente diferenciados. O primeiro é aquele em que a Administração
aceita a reabertura do processo. O seu ponto de partida é o requerimento do
interessado, indicando as circunstâncias ou meios de prova que justificam
o processo de revisão; o seu termo é o despacho que dá provimento ou
indefere o mesmo pedido de revisão. A lei coloca este primeiro momento
inteiramente nas mãos da Administração que tem o poder discricionário
de decidir, inapelavelmente, se deve conceder ou não a revisão. É uma
posição tradicional que vem desde a RAU mas que não pode deixar de
suscitar objecções pelas razões que referimos quanto à possibilidade de
abertura do processo de revisão com fundamento em violação de lei.
O segundo momento é aquele em que se nomeia um instrutor para
proceder à reavaliação dos factos novos aduzidos pelo interessado na
revisão do processo. Como se compreende, este segundo momento só tem
lugar quando seja positiva a apreciação do pedido do requerente.
II - Como já se referiu, da revisão do processo poderá resultar
a revogação, alteração ou confirmação da pena aplicada. A lei não
esclarece se, havendo confirmação da pena, o interessado poderá ou
não desencadear sucessivos processos de revisão. Entendemos que esta
possibilidade não está inviabilizada desde que os pressupostos em que
assenta o novo processo de revisão sejam igualmente novos, no sentido
que referimos atrás.

6. EFEITOS

Se da revisão do processo disciplinar resultar a confirmação da


pena aplicada não se altera a condição jurídica do funcionário, agente ou
interessado. Mas se dela resultar a alteração, modificação, substituição ou
revogação da pena aplicada, desencadeia-se um conjunto de efeitos, uns
para o futuro, outros repristinatórios que não analisaremos aqui. Refira-
se, apenas, que esses efeitos produzem-se ao nível do registo disciplinar
do funcionário; da publicidade que tiver sido dada à pena aplicada; do
provimento e progressão na carreira; da antiguidade do funcionário;
da reparação de danos. A revisão do processo disciplinar pode ainda
produzir, efeitos colaterais, nomeadamente, ao nível da responsabilidade
da Administração e dos agentes que tiverem actuado em seu nome. Estes
efeitos são, globalmente considerados, os que implicam a reposição da
ordem jurídica violada, havendo violação, e a reconstituição possível
de toda a situação jurídica do funcionário, desde a data da aplicação da
e outros escritos jurídicos 549

pena revista, até ao momento da sua revisão. Tais efeitos são complexos
e variam em atenção à condição jurídica do funcionário ou agente e das
modificações (ou modificações de modificações) que se produziram na
categoria profissional do funcionário em causa no decurso da aplicação
da pena revista.
A determinação desses efeitos impõe, pois, uma análise caso a
caso.
550 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO
e outros escritos jurídicos 551

ÍNDICE IDEOGRÁFICO1

A B
Abuso do direito, 176 e segs. Baixo-Império, 141
Acção directa, 174, 184 Banco Central Europeu, 379 e segs.
Acceptilatio, 138 Bárbaros, 129
Ac. Grigorios Katsikas v. Angelos Barrigas de aluguer, 201
Konstantinidis, 451 Big brother, 191
Actio ficticia, 135 Boa fé, 138, 175, 177
Actio injuriarum, 19 Boa Razão, 176
Acto colonial, 156 Boa -Vista, 271, 300, 360, 355
Acto tácito, 233 e segs. Boletim do Conselho
Actos legislativos, 147, 158 Ultramarino, 154
Actos normativos, 160 Bom pai de família, 63
- do Governo, 168 Bona fides, 178
Adaptação, 180 Bons costumes, 176
Ágora, 130 Brasil, 177
Alienabilidade, 23 Brava, 364
Alluvio, 138 Bundesarbeitsgericht, 211
Alta Idade Média, 122 Burden of proof, 97
Alvará, 151
-de 10 de Dezembro de 1643, C
152 Cadastro industrial, 326
-de 15 de Junho de 1714, 152 Cadastro, 325, 339, 343, 366, 526,
-de Lei, 151 533,
-de loteamento, 245 Capitis deminutio, 113
Ambiente, 295, 325 Carta Constitucional, 151
American Bar Association, 310 Carta de Lei, 150, 151
Amicitia, 134 Carta Orgânica do Império
Anum, 123 Colonial português, 156
Apreciação da prova, 107 Carta Régia, 150
Assistência pública judiciária, 316 Carta Social Europeia, 151, 203
Autonomia Cartografia, 366
- da vontade, 529 Caso Longo, 237
- do Poder Local, 333 Charta donationis, 150
Awilum, 124 Charta franquitatis, 150
Charta libertatis, 150

1
Os números remetem para as páginas.
552 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Cidadania, 195 - de seguro, 203


Circuncisão, 127 - social, 199
Cláusula ne varietur, 66 Contributory negligence, 77
Clonagem, 202 Convenção de Berna para
Code du Travail, 206, 365 a protecção das Obras
Código Administrativo de 1940, Literárias e Artísticas, 21
188 Conventiones iures gentium, 138
Código Civil brasileiro, 177 Copyright Act de 1984, 17,
Código Civil de 1867, 21, 22, 81, Copyright Computer Software
105, 176
Amendment Act, 17
Código de Direito de Autor de
Corregedor, 316
1966, 22
Correio electrónico do
Código de Hammurabi, 122
trabalhador, 209
Código de Processo Civil de 1939,
Correio electrónico, 379 e segs.
82, 105, 316
Costume, 147
Código do Trabalho português,
222 Cum putuered, 67
Colisão de direitos, 182 Cum voluered, 67
Comissões de Assistência Curador dos Serviçais, 381
Judiciária, 341 CVtelecom, 453 e segs.
Commodatum, 138
Common Law, 83 D
Concessão de serviço público, 453 Da mihi factum dabo tibi jus, 78
Conferência de Berlim de 1908, 21 Dados
Conferência de Roma de 1928, - pessoais, 204
21, 26 - sensíveis, 204
Conferência Internacional dos Decisoriae litis, 99
Artistas de Veneza (1952), 65 Declaração Universal sobre
Conflito móvel, 140 o Genoma Humano e os
Conflitos inter-locais, 130 Direitos Humanos, 202
Consentimento Decreto Ditatorial de 1851, 21
- do lesado, 192 Decreto legislativo, 169
- presumido, 193 Decreto n.º 132/71 de 6 de Abril,
- putativo, 193 526
Contencioso administrativo, 251 Decreto nº 13 725, de 3 de Julho
Conteúdo do direito de de 1927, 21, 22,
propriedade, 16 Decreto Regulamentar, 170
Contra-ordenações, 293 Decreto, 169
Contrato Decreto-Lei, 169
- de colónia, 523 Decretos presidenciais, 160, 163,
- de edição, 56 Democracia electrónica, 197
e outros escritos jurídicos 553

Depositum, 138 - de reivindicar a


Descanso, 382 paternidade da obra, 48
Descentralização administrativa, - de retirada, 20, 22, 25, 28, 61,
333 67
Desequilíbrio no exercício de - de sequência, 68
posições jurídicas, 176 - de vigilância, 25
Despacho Normativo, 170 - espanhol, 244
Deuteronómio, 126 - geral da personalidade, 199
Deutsche Bank, 391 - grego, 128
Dever de lealdade, 394, 535 - intelectual, 25
Diagnóstico pré-natal, 199 - judicial formal, 102
Diploma legislativo, 156, 168 - judicial material, 102
Directiva Comunitária 91/252, 19 - moral post mortem auctoris,
Direito 65
- à acção, 103 - originário, 379,
- à antiguidade, 535 - patrimonial de autor, 23
- à habitação, 324 - pessoal de autor, 30, 31, 37,
- à historicidade pessoal, 201 - probatório formal, 101, 102,
- à honra e consideração, 28 - probatório material, 101,
- à identidade pessoal, 200 102,
- à integridade da obra, 22, 28, - Romano, 19, 132
- à integridade da obra, 54 Direitos
- à intimidade pessoal, 389 - cuneiformes, 122
- à paternidade da obra, 28, - da personalidade, 181, 199
47, - de cidadania, 195
- ao ambiente, 324 - naturais, 200
- ao descanso, 380 - personalíssimos, 204
- ao inédito, 20, 22, 25, 41, 43 Divisão administrativa, 357
- ao nome, 42, 48, 53 DL 14-A/83, de 22 de Março, 251
- de acção popular, 335 Docente universitário, 400
- de acção, 74 Droit au respect, 25, 28
- de acesso, 57 Droit moral, 25
- de autor, terminologia, 28-29
- de cidade, 142 E
- de liberdade, 379, Édicto de Caracala, 142
- de modificação, 20, 25, 40, Édito de Tolemeo Evergete II, 143
56 Empresa Franca, 252
- de petição, 335 Encargo, 462
- de primeira publicação, 43 Escola Estatutária, 145
- de propriedade, 275 Estado de necessidade, 190
554 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Estatuto do Funcionalismo Impressionismo jurídico, 181


Ultramarino, 250 Inalegabilidade formal, 178, 179,
Estrangeiro, 121 429, 438
Exceptio doli, 176 Inalienabilidade, 23, 32
Exceptio non adimpleti contratus, Incesto, 138
462 Indústria, 326
Exclusivo, 460 Infanta D. Beatriz, 152
Exercício dos direitos, 171 Infracções penais, 291
Êxodo, 126 Inseminação artificial, 201
Instituições religiosas, 490
Expropriação por utilidade
Internet Protocol, 453
pública, 276, 330
Irrenunciabilidade, 23, 34,
Isopoliteia 129
F Isotelos, 129
Facta concludentia, 234 Iura novit curia, 78, 80, 82,
Facto novo, 546 Iustae nuptiae, 138, 140
Faixa non aedificandi, 294
Foedus Latinum, 142 J
Foedus, 133 Jubileu, 128
Fogo, 359 Juizes-de-fora, 131
Formalidade ad substantiam, 90 Julgado da Ilha de S. Vicente, 154
Forum shopping, 98 Jus civile, 135
Fraude à lei, 115 Jus civile, 144
Jus conubium, 140, 141,
G Jus gentium, 135, 136, 141
Génesis, 126 Justiça senhorial, 314
Genoma humano, 202, 207 Justificação notarial, 525
Governo electrónico, 196
Grécia, 128 L
La cour sait le droit, 78
H Leges moresque peregrinorum, 138
HIV, 207 Legitima defesa, 172, 185, 187
Homologação, 275 Lei Constitucional, 158, 165
Hospitium, 134 Lei das Bases do Ordenamento
Hostil, 121, 133 do Território, 323
Lei das bases, 149
I Lei das XII Tábuas, 133, 141
Ilhéus, 348 Lei de 23 de Agosto de 1672, 152
Impostos, 502 Lei do Procedimento
Imprescritibilidade, 23, 35 Administrativo espanhol, 245
e outros escritos jurídicos 555

Lei dos solos, 343 Mosteiros, 362


Lei espanhola de Direito de autor, Mulher grávida, 423
17 Museu do Louvre, 123
Lei orgânica, 149 Muskenum, 124
Lei Sempronia, 143
Leis de valor reforçado, 166 N
Levítico, 126 Naturalis ratio, 137
Lex Canuleia, 141 Ne varietur, 66
Lex causae, 74, 92, 112 Non liquet, 112
Lex Duodecim Tabularum, 141 Normas
Lex fori, 72, 75, 94, 113 - compensatórias, 491
Licença - de decisão, 95
- para casar, 386 - de modificação, 95
- sem vencimento, 529 - de reconhecimento, 95
Licenciamento - primárias, 95
- comercial, 252 - processuais, 95
- de obras, 245 - secundárias, 95
Limiar de tolerância, 60 - substantivas, 95
Litis decisio, 71, 75, 88 Nova Reforma Judiciária, 315
Litis ordinatio, 71, 75, 88 Novíssima Reforma Judiciária,
Locus rei sitae, 143 315
Nullus videtur dolo facere qui suo
M iure utitur, 175
Maio, 357, 362 Numeratio pecunia, 138
Maiorias especiais, 502 Números, 126
Mapa Cor-de-Rosa, 155
Marduk, 123 O
Materielles justizrecht, 102 Obliegenheiten, 111
Matter of procedure, 93 Obra
Matter of remedy, 92 - cinematográfica, 37
Matter of substance, 92 - compósita, 37
Medidas preventivas, 274 - de arquitectura, 37
Mercês, 151 - de colaboração, 37, 224
Mérito, 47 - de encomenda, 37
Mesopotâmia, 123 - fonográfica, 37
Metecos, 129 - inédita, 46
Métodos de selecção, 385 - radiodifundida, 37
Modificação substancial, 448 - videográfica, 37
Modificações do projecto - genuinidade da - 38
arquitectónico, 57 - Obra colectiva, 226
556 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Obrigação potestativa, 111 Portaria Régia, 153


Omissio adquirendi, 52 Portaria, 170
Ónus da prova, 71, 94 Posse avulsa, 429
Ordem pública, 115, 175 Potestas, 137
Ordenações Praesuntions hominis, 91
- Afonsinas, 80 Praetor peregrinus, 135, 144
- do Reino, 80, 410 Praia, 360
- Filipinas, 80, 152 Prescrição dos créditos laborais,
- Manuelinas, 80, 151 409
Ordinary presumption, 92 Prescrição, 102
Ordinatoriae litis, 99 Prescrição, 74
Originalidade, 47 Prescritibilidade, 23
Orla marítima, 138 Presumptions of fact, 92
Outcome test, 98 Presumptions of law, 92
Presumptions of law, 92
Presunções
P - iuris et de jure, 91, 92, 93,
Pacto de Hospitalidade, 129, 134 - judiciais, 91
Patria potestas, 139 - juris tamtum, 91, 92, 93,
Patronato, 134 - legais, 91
Patronus, 143 Presunções, 74, 91
Paul, 358 Presuntions, 97
PDM, 359 Principio
Pentateuco, 126 - da segurança jurídica, 334
Peregrinii, 13, 143 - da aquisição processual, 86
Personalidade moral, 25 - da boa administração, 334
Personalismo ético, 173 - da boa fé, 334
Persönliche Abhängigkeit, 388 - da comunidade de direito,
Persönlichkeitrecht, 25 145
Petição de Dionísia, 140 - da confiança legítima, 334
Plano de Edificação da Povoação - da conservação da
de Ponta do Sol da Ilha de diversidade biológica, 335
Santo Antão, 332 - da descentralização, 324
Plano Director Municipal, 272, - da fundamentação dos actos
273 administrativos, 324
Plano de Acção para a Sociedade - da igualdade das partes, 89,
da Informação, 196 - da igualdade, 334
Polemarca, 130 - da imparcialidade, 334
Política legislativa, 271 - da interdisciplinaridade na
População, 349 tomada de decisões, 334
Portaria Ministerial, 156 - da justiça, 334
e outros escritos jurídicos 557

- da lealdade, 138 - do mínimo de atritos, 267-268


- da legalidade, 334 - dos efeitos transfronteiriços,
- da lex fori, 87 335
- da oficiosidade, 86 - iura novit curia, 78
- da paridade de tratamento, Procedure law, 75
113 Procurador da Coroa e Fazenda,
- da participação dos 154
cidadãos, 334 Programas de computador, 16
- da precaução, 334 Projecto arquitectónico, 57
- da preservação da Promulgação, 160
estabilidade climática, 335 Prosélito, 127
- da progressividade, 334 Protecção de dados pessoais, 204
- da proporcionalidade, 274, Proxena, 130
334 Próximo Oriente, 122
- da prossecução do interesse
público, 334 Q
- da protecção da parte Questão de direito, 79, 82
contratual mais débil, 491 Questão de facto, 79, 82,
- da responsabilidade civil, Questão prévia, 139
335
Questiones mixtae, 122
- da responsabilidade da
Qui suo iure uti neminem laedere, 177
administração e dos seus
Qui tacet neque negat utique fatetur,
agentes, 324
240
- da restrição nuclear, 335
- da sanidade do ambiente,
334
- da solidariedade dos R
sectores de maior risco, 334 Racionalidade do direito, 173, 183
- da unidade da família Racionalidade técnica, 330
humana, 202 Realities shows, 191
- da unidade do Estado, 332 Rebuttable presumptions of law, 92
- da verdade intelectual, 15, Reforma Administrativa
36 Ultramarina, 249, 250, 256,
- do desenvolvimento 508
sustentável, 334 Reforma do Processo Civil, 309
- do livre acesso à informação Regimento do Conselho Superior
ambiental, 334 das Colónias, 248
- do respeito pela palavra Regimento, 159, 162, 170
dada, 138 Registo Matricial, 519
- do respeito pelos interesses Regulamento Geral das
legítimos dos cidadãos, 332 Edificações Urbanas, 332
558 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

Regulamento Nacional do Santa Luzia, 360


Ordenamento do Território, Santiago, 356
371 Schamasch, 123
Regulamentos autónomos, 169 Serviço de rede de pacotes, 476
Regulation of Investigatory Powers Serviço de valor acrescentado,
Act, 393 475
Remedy, 75, 92, 114 Seuil de tolerance, 60
Renunciabilidade, 23 Silêncio da administração, 233
Repreensão verbal, 388 Silêncio-acolhimento, 241
Reprodução assistida, 201 Silêncio-aprovação, 241
Repúdio, 52 Silêncio-assentimento, 241
Reserva da vida privada, 204, 382 Silêncio-rejeição, 241
Residente forasteiro, 126, 129, 134 Singularidade substancial, 200
Resolução da AN, 167 Sistema de lei-direito, 81
Resolução do Governo, 170 Sistema de lei-facto, 81
Responsabilidade civil Sistema do arbítrio judicial, 81
- do Estado, 507 Sociedade da Informação, 195
- objectiva, 192
Societas, 138
Retchsanwendungbarkeitsretch, 95
Software, 16
Revisão do processo disciplinar,
Sponsio-stipulatio, 138,
540
Spung ins Dunkle, 115
Revolução Socialista de 1917, 148
Stipulatio, 138
Ribeira Grande, 358
Subordinação administrativa, 405
Right, 75, 92, 114
Subordinação jurídica, 217, 400
Rodrigo Afonso, 152
Roma, 132 Substantive law, 75, 98
Rule of substance, 77 Sujeição técnica, 405
Supressio-surrectio, 178, 179, 180,
S 429
S. Antão, 356 Sympoliteia, 129
S. Domingos, 362
S. Filipe, 363 T
S. Miguel, 363 Talião, 182
S. Nicolau, 358 Tatbestand, 107, 108
S. Vicente, 357, 361 Taxas, 499
Sal, 361 Telecom, 453 e segs.
Salina de Pedra de Lume, 357 Tele-trabalho, 209
Salmat qaqqadim, 123 Tempus regit actum, 76
Samas, 123 Teoria das três esferas, 204
Santa Catarina, 362 Território, 347
Santa Cruz, 360, 363 Thora, 126
e outros escritos jurídicos 559

Tipologia dos actos legislativos, U


147 Ultimatum de 11 de Janeiro de
Tohsháv, 126 1890, 155
Toxicodependentes, 207 UNESCO, 203
Trabalho de mulheres, 424
Traditio, 137
Transmissão de estabelecimento, V
443 Venire contra factum proprium,
Tratado de foederatio, 134 178, 179, 180, 438
Tratados judiciais, 130 Vídeo-vigilância, 208, 389
Tratados processuais, 130 Vila da Praia da Ilha de Santiago,
Tribunais arbitrais, 315 155
Tribunais de Zona, 310 Villa do Mindelo, 155
Tribunal de Contas, 250 Vindicta privada, 184
Tu quoque, 178, 180 Voz sobre IP, 472
Tutela privada, 173
Tutela Pública, 173, 381 Y
Yahveh, 126

Z
Zumutbarkeit, 59
560 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO
e outros escritos jurídicos 561

ÍNDICE ONOMÁSTICO1

A ANTÓNIO MARIA PEREIRA,


A. E. ANTON, 83, 88, 89, 117 23, 69
ABBRAMONTE, 243 ANTÓNIO MARTINS, 199
ACURSIO, 72 ANTONIO SCIALOJA,26,27
ADOLF DIETZ, 26 ANTUNES VARELA, 82, 111,
ADRIANO DE CUPIS, 26, 28 119
ADRIANO MENDES, 392 ARANGIO- RUIZ, 83, 129, 142,
AGO, 83 143,
ALAN LE TARNEC, 27, 69 ARIAS BUSTAMANTE, 20, 29, 89
ALBERIC ROLIN, 93 ARISTÓTELES, 137
ALBERIC ROSATE, 74 ARMAND LAINÉ, 72
ALBERTO DOS REIS, 81, 83, 86, ARMARIO, 145
87, 88, 89, 117 ARMINDO RIBEIRO MENDES,
ALMEIDA SANTOS, 22, 26, 31, 52
ALORIO, 100, 101 ARRANGIO-RUIZ, 137
ÁLVARO MOREIRA, 369 AUGUSTO RODRIGUES, 123
ALVES CORREIA, 279, 281, 305 AULETTA, 52
ALVIZ Y ARMARIO, 137, 138 AZON, 72
AMADEO GIANINNI, 26, 32, 46,
69
AMILCAR DE CASTRO, 87, 88 B
ANATOLE FRANCE, 20 BALDO, 72, 74
ANDRÉ HUET, 73, 76, 94, 95, 96, BAPTISTA MACHADO, 73, 75,
97, 98, 99, 108 83, 84, 85, 94, 95, 99, 101, 110,
ANDREA GIARDINA, 75 118
ANDRIOLI, 83 BARCELAR GOUVEIA, 204
ANSELMO DE CASTRO, 87, 88, BARRILARO RUAS, 122, 123
89, 90, 91, 92, 101, 102, 105, BATIFFOL, 74, 85 112, 117
109, 111, 117, BAYO, 29, 68
ANTOINE PILLET, 75 BEALE, 95
ANTÓNIO BRÁSIO, 312 BEAUCHET, 108
ANTÓNIO CARREIRA, 312 BERDEJO, 68
ANTÓNIO HESPANHA, 236, 311 BERNARD AMORY, 221
ANTÓNIO LOPES DA SILVA, BETTI, 136, 236
174 BLANCO DE MORAIS, 166, 502
BODIN, 227
BONFANTE, 143
1
Os números remetem para as páginas.
562 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

BOUBÉE, 304 CLAUDE BLUMANN, 499, 505,


BOUILLOT, 20 508, 514,
BRAINERD CURRIE, 75 CLAUDE COLOMBE, 61, 67
BRIGNOLA, 241 CLAUDIA MORVIDUCCI, 72, 73,
BROCHER, 93, 94 101, 110
BROGGINNI, 83 COELHO DA ROCHA, 411
BRUGI, 29 COOK, 115
BRUNO HAMMES, 20, 25, 26, 27, CORDOPATRI, 117
30, 35, 37, 63, 69 CORREIA E SILVA, 310,
BÜTLER, 71, 72 CUNHA GONÇALVES, 22, 27,
36, 69
C CYRILLE DAVID, 117
CADAMOSTO, 297 CYRILLE DAVID, 78, 79, 83, 86
CAENEGEM, 315
CALIXTO, 303 D
CAPELO DE SOUSA, 183, 185, D’ANGELI, 141
186, 205, 379 DAMBACH, 15
CARLETTI, 68 DE CASTRO, 117
CARLO CERRETI, 74 DE CUPIS, 47, 50, 51, 68
CARLO ROSSELO, 18 DE SANCTIS, 35, 50, 54, 60, 61,
CARLOS FRAGA, 371 62, 65, 65, 70
CARLOS PINTO, 236 DEBOIS, 47, 61, 68
CARLOS SANCHEZ DEL RIO, DEL GIUDICE, 241, 242, 243, 244,
132 504
CARNELUTTI, 83, 104, 129 DELPINO, 237, 241, 242, 243, 244,
CAROSONE, 68 498, 499, 504
CARRILO SALCEDO, 85 DELVOLVÉ, 239, 499, 500, 508,
CASTRO MENDES, 52, 86, 87, 89, 509
90, 99, 103, 109, 110, 111, 117, DENTI, 96,98, 117,
119, 202, 379 DESCARTES, 20
CATELLANI, 117 DI VIGNANI, 78, 80, 83, 84, 85,
CELSO FERNANDES, 337 86,111, 113, 120, 502, 511
CÉSAR DA SILVEIRA, 134, 143 DIAS FERREIRA, 36, 81, 411
CHAMBERLAYN, 96 DICEY AND MORRIS, 83
CHARMANTIER, 68 DIENA, 117
CHERPILLOD, 68 DIOGO GOMES, 297
CHESHIRE, 77, 83, 89, 95, 97, 117 DOMINGUES, 313
CHIOVENDA, 89, 103, 104, 117 DUERR, 303
CÍCERO, 132, 137 DUMANGANE, 502,
CINUS, 74 DURANTON, 412
e outros escritos jurídicos 563

E FRANCISCO REBELO, 18, 27, 50,


EÇA DE QUEIRÓS, 44 56, 64, 69
EDITE ESTRELA, 300 FRANCO CORDOPATRI, 91
EDOARDO VITTA, 84, 85, 120 FRANÇOIS DESSEMONTET, 60
FRANK, 96
EDUARDA GONÇALVES, 196
FREITAS DO AMARAL, 188, 239,
EDUARDO DE CARVALHO, 81
243, 271, 272, 305, 366, 499, 508
EHRHARDT SOARES, 508
FRIAS, 332
ELIZARI, 201
FULGENCIO, 129, 130
ELLIO FAZZALARI, 89 FUMAGALLI, 118
EMMANUEL BOUZON, 123, FURTADO DOS SANTOS, 239
124, 125
ESPERSON, 98 G
ETIENNE CEREXHE, 84 GABRIO LOMBARDI, 137, 145
ETORE GIANNANTONIO, 18 GAIO, 136, 137, 144, 175,
GALILEU, 20
F GALVÃO TELES, 277, 379
F. JAMES, 20 GARY L. MILHOLLIN, 75
F. SURVILLE, 88 GATTI, 68
F.A. PINTO, 88, 118 GAUCH, 69
F.RIGAUX, 96 GAUDEMET, 237
FALCONBRIDGE, 117 GEESTERANUS, 68
FARINHA, 503, GEORGE VEDEL, 509
FAZZALARI, 112, 113 GERALDO ALMEIDA, 205, 324,
FERNANDO ANDRADE, 119 325, 337, 361, 363, 415, 459,
460, 511
FERNANDO COUTO, 135
GIAN ANTONIO MICHELLI, 86
FERNANDO DE MIRANDA, 236
GIERKE, 26, 32
FERRARY, 143
GIERKER ZELLER, 95
FERRER CORREIA, 74, 85, 88, 95,
GIMENEZ BAYO, 20, 29
113, 118, 132, GIORGIO BALLADORE
FERRINHO, 303 PALIERI, 73
FILIPPO SATTA, 513 GIOVANNI MARIA
FIORI, 79, 84, 88, 98, 118 UBERTAZZI, 115
FOELIX, 93, 134, 138, 139 GIOVANNI VERD1, 87, 11, 511
FOURNERIE, 507 GIUDICE, 498, 499, 507, 508
FRADA, 458 GIULIO DIENA, 88
FRAGISTAS, 98 GIUSEPPE PUGLIESE, 74
FRANCESCHELLI, 68 GLORIA GARCIA, 188, 381
FRANCESCO SINI, 121 GOLDSCHMIDT, 88, 89, 93, 94,
FRANCHI, 118 96, 99, 100, 102, 103, 110, 118
564 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

GOMES CANOTILHO, 158, 169, J


332, 503, 504, 512, 537, 542, J. A. NOGUEIRA, 134
545, 550 J. ALMEIDA COSTA, 127
GOMES MACHADO, 123 J. H. C. MORRIS, 76
GONÇALVES PEREIRA, 545, 550 J. MENDES DE CASTRO, 126
GONZALEZ CAMPOS, 72, 117, J. SALDANHA SANCHES, 110
GOODRICH, 83, 92, 95, 96, 97, J. SAVATIER, 209
113, 115, 118, J.H. C. MORRIS, 88, 93
GRAVESON, 84, 97, 103, 118, JACOBUS BALDUINUS, 71, 72,
GRECO, 50 87
GUIDO LANDI, 237, 241 JACQUES DE REGYGNY, 74
GUILHERME DRAY, 193, 210,
JACQUES HERON, 107, 118
211, 212, 214, 215, 216, 380
JAVIER BARRIO, 302
GUILHERME MOREIRA, 81
JEAN CARBONNIER, 149, 311
GUILIANO, 106
JEAN FABRE, 74
GUILIO DIENA, 94
JEAN MICHEL, 72, 74
GUILLAUME DURANT, 74
JEAN RIVERO, 513
GUTIÉRREZ ALVIZ, 145
JOÃO ALFAIA, 504, 505, 513, 514
GUTZWILLER, 87, 132
JOÃO OLIVEIRA, 155
JOÃO PEREIRA SILVA, 362, 371
H
HANS LEWALD, 128, 129, 131, JOÃO SEABRA, 381
137,139, 142 JOHN GILISSEN, 122, 126, 236
HAROLDO VALLADÃO, 74 JONH DELATRE
HENRI CAPITANT, 18 FALCONBRIDGE, 88
HENRI DEBOIS, 60, 69 JORGE FONSECA, 91, 92, 118,
HENRI G. J. GEESTERANUS, 64 313
HERBERT F. GOODRICH, 88 JORGE MIRANDA,159, 160, 164,
HERMANO SARAIVA, 134 165, 503, 512
HILDING, 118 JOSÉ CASTAN, 29
HOPFFER ALMADA, 165 JOSÉ J. PINTÓ RUIZ, 135
HUARD E BRANDT, 26 JOSÉ LUIZ LACRUZ BERDEJO,
HUET, 73, 96, 103, 108, 109, 115, 36
116, 118 JOSÉ MANUEL OLIVARES
ABAD, 29
I JOSÉ MESSIAS, 83
ICHINO, 391 JOSEPH STORY, 74, 92
ILÍDIO BALENO, 312 JOSEPHUS JITTA, 73
ISTVAN SZASZY, 88 JULES VALERY, 93
IVA CABRAL, 310 JULIAN G. VERPLAETSE, 88, 98,
IVAN CHERPILLOD, 60 113
e outros escritos jurídicos 565

JULIANO, 132 LUIS DA SILVA 508,


JULIO RIBEIRO, 305 LUIS GONÇALVES FORTES, 81
LUIZ BERDEJO, 67
K LUIZ DE ALBUQUERQUE, 297,
KAROLOUS DE TOCCO, 72 312
KASPER, 305 LURASCHI, 142
KLAUER, 61 LUZZATTO, 133, 136, 141, 143
KÖHLER, 21, 26, 27 LYON-CAEN, 209
KORI, 81
M
L M. BACH, 107
L. DELPINO, 507, 508 M. CH. GUENOUX, 74
LA CHINA, 98, 99, 100, 103, 117 M. TROPLONG, 74, 412
LA MUELA, 119 MACAÍSTA MALHEIROS, 236
LAINÉ, 118 MACHADO VILELLA, 81, 85, 87,
LAMBERTERIE , 221 88, 93, 120
LANGOIS, 381, 420 MAGALHÃES COLLAÇO, 75,
LARENZ, 415, 84, 86, 121, 379, 380
LARS WELAMSON, 73, 88 MAIA GONÇALVES, 513, 516
LAUBADÉRE, 239 MANUEL DE ANDRADE, 78,
LAURENT, 93 87, 89, 90, 99,101,105, 106, 110,
LEITE DE CAMPOS, 149, 311, 112, 117, 236, 240, 511
420 MANUEL PEREIRA SILVA, 358
LEMERRE, 20 MARCELO CAETANO, 151, 240,
LEVEL, 94 249, 386, 287, 498, 500, 504,
LIBERATO, 305 505, 507, 508, 509, 513, 514,
LIEBMAN, 118 544, 546, 549, 550, 551
LIGNANI, 237 MARIA JOÃO ESTORNINHO,
LIMA PINHEIRO, 220, 221, 225 513
LINO RODRIGUEZ, 20 MARIA LUISA DUARTE, 392
LOBO XAVIER, 345,378 MÁRIO BRETONE, 136, 138, 144
LOCARDAIRE, 25 MÁRIO PINTO, 383
LOPES DA SILVA, 176, 413, 523, MARNOCO E SOUSA, 81, 121,
529 MARQUES DOS SANTOS, 132,
LOPES PRAÇA, 36 135, 218
LOPES ROCHA, 196 MARTIM DE ALBUQUERQUE,
LORENZETTI, 333 150
LOUZZATTO, 134 MAURY, 83
LUDWIG MITTEIS, 129 MAXIMILEN PHILONENKO, 74
LUIGI FUMAGALLI, 88 MAYER, 109
566 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

MCNALL BURNS, 123, 124, 125 NIBOYET-HOEGY, 74


MEIJERS, 72, 74,119 NICOLAS PEREZ SERRANO,25
MEIRELLES, 236, 237 NIKISCH, 110, 111
MENEZES CORDEIRO, 95, 117, NORBERTO BOBIO, 95, 114
145, 177, 178, 180, 181, 205, NORDEMANN 49, 69
212, 216, 220, 223, 371, 379,
380, 381, 388, 401, 406, 414, O
439, 448, 504, 506, 513, 515, OLIVEIRA ASCENSÃO, 18, 19,
532, 533, 537, 538, 543 26, 27, 30, 32, 35, 36, 40, 52, 55,
MERLIN, 74 59, 61, 62, 64, 65, 68, 83, 157,
MESSIAS, 119, 131 161, 193, 275, 281, 330, 458
MIAJA DE LA MUELA, 78, 79, 80 OLIVEIRA MARQUES, 155
MICHEL VILLEY, 135 OSVALDO GOMES, 275, 305
MICHELI, 86, 95, 102, 104, 106,
108, 109, 114, 119 P
MICHELLE TARUFFO, 111 P. ARMINJON, 74
MIGUEL SARDINHA, 303 P. AZEVEDO,25
MIRANDA DE SOUSA 281 PALMA RAMALHO, 210, 212,
MONACO, 83 214, 216, 380, 382, 395
MONTEIRO FERNANDES, 216, PANHA, 123
219, 380, 388, 401, 417 PAPINIANO, 132
MONTESQUIEU, 20 PATTI, 119
MONTEVECCHI, 138 PAUL AMSELEK, 161
MORBIDELI, 303 PAUL HERVIEU, 21,25
MOREIRA DA SILVA, 509, PAULO CUNHA, 105
MORELLI, 78, 79, 83 PAULO FURTADO, 199
MORGAN, 96, 123 PAULO MERÊA, 142
MORILLOT,25,26 PAULO, 175
MORRIS, 97, 119 PEDRO AMORIM, 196
MORVIDUCCI, 119 PEGUERO, 132
MOTA PINTO, 371 PEINADO, 123, 124, 125, 126, 128
MOUNIER, 420 PER OLÖF BOLDING, 115
MOURA RAMOS, 73, 119, 220 PER OLÖF EKELOF, 115, 116
MOURA VICENTE, 417 PEREZ SERRANO, 20, 26, 27, 28,
MOUTINHO, 155 61
PEREZNIETO CASTRO, 83, 84
N PERLINGIERI, 111
N. P. SERRANO, 26 PERRAUD-CHARMANTIER, 66,
NARANA COISSORÓ, 149, 313, 67
NEVES, 155 PERROT, 115, 119
e outros escritos jurídicos 567

PHILADELPHO AZEVEDO, 19, ROGER DAYANT, 74


21,25, 27, 68 ROGER PERROT, 73, 94
PHILLIPSON, 130 ROLIN, 92, 119
PIERRE DE BELEPERCHE, 74 ROMANO MARTINEZ, 226, 380
PIERRE KAYSER, 206, 207, 209, ROMANO, 83
382, 385, 390 RUBIER, 94
PILLET, 119 RUI ARAÚJO, 313
PINHEIRO CHAGAS, 297 RUIZ, 131
PINHEIRO FARINHA, 509 RUY DE ALBUQUERQUE, 147,
PINTÓ RUIZ, 85, 133 150, 151, 152
PIOLA CASELLI, 19, 21, 24,27,
30, 53, 63, 65, 69 S
PIRES DE LIMA, 82, 119, 183, 238
S.I. MCMILLEN, 127
PLAISANT, 69
SÁ E MELO, 22, 35, 41, 43, 44, 45,
POCAR, 119
50, 52, 61, 62, 69
POULLET, 219
SALCEDO, 83, 120
PRATS, 498, 504, 507
PREDIERI, 302 SALDANHA SANCHES, 120, 176
PUGLIATTI, 50 SALVATORE PATTI, 115, 116
PUGLIESE, 136, 137, 138 SAMPAIO E MELO,127
SANDULLI, 243
Q SANSALE, 236
QUADROS, 271, 331, 332 SATTA, 89, 103, 107, 109, 110
QUITÉRIA, 303 SAVIGNY, 74, 144
R. H. GRAVESON, 76, 94 SCHILD SILVA, 549
RAAPE, 83, 115 SCIASCIA, 141
SCOTT, 92, 99, 114, 120
R SCOZZAFAVA, 120
RAMOS PEREIRA, 211, SENNA BARCELLOS, 312
REDINHA, 210, 219, 220 SERAFINO GATTI, 17
REGGI, 91, 119 SERRANO, 25, 70
RENATO ALESSI, 507, 513, SÉRVULO CORREIA, 239
RESENDE MOREIRA, 508 SILVEIRA, 135, 136, 137, 138
RICARDO MONACO, 74, 86, 119 SOARES MARTINEZ, 155
RIDRUEJO, 132 SOARES, 508
RIVERO, 508, 509, 513, 514 SOUSA SANTOS 309, 310, 312
ROBERT LEFLAR, 94, 97, 118 STIG STRÖHMHOLM, 20, 30
ROBERT ALEXY, 541 STORY, 92, 120
ROBERTO REGGI, 91 SURVILLE, 120
ROCHA PEREIRA, 129, 132 SÜSSEKIND, 383, 418
568 ESTUDOS DE DIREITO CABO-VERDIANO

SZASZY, 120 VERDE, 120


SZLECHTER, 125 VERPLAESTSE, 120
VIEIRA, 210, 224
T VINCENZO FRANCESCHELLI,
TABORDA FERREIRA, 96 16, 18
TARUFFO, 120 VIRGA, 237
TEIXEIRA DE SOUSA 221 VIRGILIO, 20
TITO BALARINO, 90, 117 VIRIATO MONTEIRO, 506
TITO CARLETTI, 15 VISCOMI, 214
TODARO, 235, 237 VITAL MOREIRA, 158, 169, 333,
TOMASO BRUNO, 15, 28 504, 545
JAIME TOMÉ, 249 VITORIO SCIALOIA, 19
TOMMASO SCOZZAFAVA, 111 VITTORIO DENTI, 100, 101
TRIAS DE BES, 135 VOET, 74
TRIBONIANO, 132 VOLTERRA, 133, 138, 139, 140,
TRUYOL Y SERRA, 122, 123, 126, 141
129, 130, 135 VON BAR, 85, 93
TULIO LIBEMAN, 98, 99
TURGOT, 423
W
UBERTAZZI, 120
WALTER DE MORAIS, 25
WALTER MORAIS, 69
U WEIS, 93
UDINA, 83
WELAMSON, 120
ULMER, 35,48
WENCESLAO GONZALEZ
ULPIANO, 132, 136, 141, 175
OLIVEROS, 29
ULRICH HÜBER, 74
WERNER GOLDSCHMIDT, 72,
V. M. DESPAX, 209
83, 84, 87, 102
WESTLAKE, 120
V
VALERY, 120 WIEACKER, 234
VALLADÃO, 74 WILHELM NORDEMANN, 44,
VARELA, 183, 238, 520 48, 55
VASQUEZ, 237 WILLMAN, 141
VAZ SERRA, 72, 82, 98, 99 105, WILMUT, 199
106, 108, 110, 112, 120, 411 WINDSCHEID, 236
VEDEL, 239, 508, 509 WLADIMIR BRITO, 148, 149, 159,
VEIGA, 542 160, 162
VENEZIA, 239 WOLF, 76, 83, 103, 120, 417
e outros escritos jurídicos 569

Y Z
YANGUAS MESSÍA, 133 ZENO – ZENCOVICH, 70
ZILDA HUTCHINSON, 541
ZITELMAN, 109

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