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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS


DEPARTAMENTO DE DIREITO PÚBLICO

JADE DUARTE DO EGITO THIAGO

O EPISÓDIO DO ÔNIBUS:
UMA ANÁLISE DA TIPICIDADE À LUZ DOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E
PROPORCIONALIDADE

MARINGÁ
2017
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
DEPARTAMENTO DE DIREITO PÚBLICO

JADE DUARTE DO EGITO THIAGO

O EPISÓDIO DO ÔNIBUS:
UMA ANÁLISE DA TIPICIDADE À LUZ DOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E
PROPORCIONALIDADE

Monografia apresentada à Banca Examinadora da Universidade Estadual de


Maringá, como exigência parcial para
obtenção do título de bacharel em Direito,
sob a orientação do Prof. Me. Gerson
Faustino Rosa.

MARINGÁ
2017
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
DEPARTAMENTO DE DIREITO PÚBLICO

JADE DUARTE DO EGITO THIAGO

O EPISÓDIO DO ÔNIBUS:
UMA ANÁLISE DA TIPICIDADE À LUZ DOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E
PROPORCIONALIDADE

Monografia apresentada à Banca Examinadora da Universidade Estadual de


Maringá, como exigência parcial para
obtenção do título de bacharel em Direito,
sob a orientação do Prof. Me. Gerson
Faustino Rosa.

Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA

_______________________________

_______________________________

_______________________________

MARINGÁ, ____DE _____________ DE 2017


À minha mãe, Meire Duarte da Costa, que é meu incentivo, apoio e abrigo.
AGRADECIMENTOS

Aos professores, que me ajudaram e orientaram nesta caminhada de aprendizado e


crescimento.
Ao querido Professor e Orientador Gerson Rosa Faustino, pelo auxílio e paciência.
À querida amiga de trabalho Maria Gabriella Manchini que me ajudou na conclusão
da pesquisa e trouxe luz para o meu dia a dia.
Ao meu namorado Dener de Souza que me deu suporte e me incentivou a não
desistir.
À minha família pelo apoio e incentivo e todos aqueles que de uma ou outra maneira
contribuíram para meu crescimento acadêmico e profissional.
“Nós percebemos a importância da nossa voz quando somos silenciados.” Malala
Yousafzai
RESUMO

Como vítima recorrente do crime de estupro, a mulher acabou por enfrentar diversos
conflitos ao longo do tempo apenas para que o direito à proteção de sua dignidade e
liberdade sexual lhe fosse assegurado. Na antiguidade, vemos surgir leis que
objetivam punir o agressor, entretanto, apesar de sangrentas e baseadas em um
sistema conhecido pela expressão “olho por olho” tais leis não são efetivas, já que
objetivam apenas proteger o valor moral ou econômico da virgindade feminina. Com
a chegada da idade média, o sistema cristão prevalece e a mulher alvo de tal
proteção ainda é aquela detentora de bens significativos e parte da nobreza
medieval. Acontece que mesmo esta mulher acabava tendo sua liberdade sexual
tolhida, pois havia possibilidade de que seu agressor lhe oferecesse casamento ou
lhe constituísse dote. Atualmente, após a vigência do direito constitucional no estado
democrático de direito, tanto as concepções de “mulher honesta” como a ideia de
que somente a mulher é vítima de estupro foram rechaçadas e o rol de crimes contra
a dignidade sexual foi modificado pela Lei 12.015/2009, implicando em mudanças
significativas no cenário legislativo brasileiro. Entretanto, conforme se pode observar
pela análise do caso ocorrido em um ônibus em São Paulo, no qual o agressor teria
ejaculado sobre o pescoço e braços de uma mulher durante o trajeto, ainda restam
dúvidas quanto a tipificação de condutas que atentam contra a liberdade sexual
individual. Isto porque o juiz competente, ao julgar o caso, entendeu mais adequado
enquadrá-lo como uma importunação ofensiva ao pudor, crime de menor potencial
ofensivo ao invés de algum dos diversos crimes que protegem o bem-jurídico da
liberdade e dignidade sexual. Assim, cumpre indagar qual seria a melhor
classificação para o delito em questão, dentro do rol dos crimes contra a liberdade
sexual, levando em consideração os princípios da igualdade, da dignidade humana e
da liberdade sexual, além do essencial princípio da proporcionalidade, de forma a
compreender qual seria medida mais justa, neste e em outros casos semelhantes.

Palavras-chave: Crimes contra a dignidade sexual. Importunação ofensiva ao pudor.


Estupro. Violação sexual mediante fraude
ABSTRACT

As a recurring victim of the crime of rape, women ended up facing various conflicts
over time so that the right to the protection of their dignity and sexual freedom was
assured. In antiquity, we have seen laws that aim to punish the aggressor; however,
they were bloody and based on a system known by the term "eye for an eye,"
therefore ineffective, since they only aimed to protect the moral or economic value of
female virginity. With the advent of the Middle Age, the Christian system prevailed
and the woman who used to be the target of such protection is still the possessor of
significant goods and part of the medieval nobility. It turns out that even this woman
ended up having her sexual freedom blocked, since it was possible that her
aggressor offered her marriage or made her a dowry. Nowadays, with the insurance
of constitutional law in the democratic state of law, both the concepts of "honest
woman" and the idea that only women are rape victims have been rejected and the
list of crimes against sexual dignity was modified by Law 12,015 / 2009, implying
significant changes in the Brazilian legislative scenario. However, as can be noticed
from the analysis of the case that occurred on a bus in São Paulo, in which the
aggressor ejaculated on the neck and arms of a woman during the journey, there are
still doubts as to the type of conduct that go against individual sexual freedom.
Especially because the competent judge, when judging the case, considered it more
appropriate to frame it as an offense to offense to modesty, a crime with less
offensive potential rather than some of the various crimes that protect the legal good
of sexual freedom and dignity. It is therefore necessary to ask what would be the best
classification for the offense in question, within the framework of crimes against
sexual freedom, taking into account the principles of equality, human dignity and
sexual freedom, in addition to the essential principle of proportionality, to understand
what would be the most just measure in this and similar cases.

Keywords: Crimes against sexual dignity. Offensive offense to modesty. Sexual


violence by fraud.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................11

CAPÍTULO I – A HISTÓRIA DOS CRIMES SEXUAIS


1.1 Origens................................................................................................................12
1.2 Na Idade Antiga..................................................................................................13
1.3 Na bíblia cristã....................................................................................................13
1.4 Na Idade Média....................................................................... ...........................00
1.5 Da Idade Moderna ao momento atual...............................................................00

CAPÍTULO II – O EPISÓDIO DO ÔNIBUS...............................................................00


2.1 Decisão do magistrado......................................................................................00

CAPÍTULO III - OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS RELACIONADOS À


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E CONTROLE DO PODER PUNITIVO
ESTATAL
3.1 Princípio da dignidade humana........................................................................00
3.2 Princípio da igualdade.......................................................................................00
3.3 Da liberdade sexual............................................................................................00
3.4 Princípio da legalidade......................................................................................00
3.5 Princípio da proporcionalidade.........................................................................00

CAPÍTULO IV – O ART. 61 DA LEI DE CONTRAVENÇÕES PENAIS


4.1 Art. 61 da Lei de Contravenções Penais.........................................................00
4.1.1 Bem jurídico ................................................................................................00
4.1.2Sujeito ativo e Passivo.................................................................................00
4.1.3 Tipicidade....................................................................................................00
4.1.4 Consumação e tentativa..............................................................................00

CAPÍTULO V – A LEI 12.215/2009 – DOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE


SEXUAL
5.1 Art. 213 - Estupro...............................................................................................00
5.1.1 Bem jurídico ..................................................................................................00
5.1.2 Sujeito ativo e Passivo..................................................................................00
5.1.3 Tipo objetivo e subjetivo................................................................................00
5.1.4 Forma qualificada..........................................................................................00
5.1.5 Pena e Ação Penal........................................................................................00
5.2 Art. 215 – Estupro mediante fraude..................................................................00
5.2.1 Bem jurídico ..................................................................................................00
5.2.2 Sujeito ativo e Passivo..................................................................................00
5.2.3 Tipo objetivo e subjetivo................................................................................00
5.2.4 Consumação e Tentativa...............................................................................00
5.2.5 Pena e ação Penal........................................................................................00

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................00
REFERÊNCIAS..........................................................................................................00
INTRODUÇÃO

Desde o início da história da humanidade as mulheres têm sido vítimas


recorrentes do crime de estupro e abuso sexual, antes mesmo que tais crimes
fossem categorizados como dignos de punição. Passaram-se dois milênios para que
finalmente os crimes sexuais tivessem punição equitativa aplicada aos agressores.
Entretanto, a classificação das condutas que ferem a dignidade sexual do indivíduo
ainda gera dúvidas e revolta.
No primeiro capítulo do presente trabalho, narra-se que a partir do início do
sistema de comunidades, a humanidade transitou de uma configuração matriarcal,
na qual as mulheres eram chefes de seus próprios clãs para uma configuração
patriarcal, com a figura do homem como chefe de família e a mulher como mera
propriedade. Assim, mesmo que os crimes sexuais remontem ao início da
humanidade, foi somente em tal cenário que surgiram as leis que punem o agente
do estupro e abuso sexual, ainda que naquele momento a punição consistisse em
uma recompensa ou vingança destinada ao possuidor da mulher, ou seja, seu pai ou
marido.
Com a evolução do pensamento legal, a tutela dos crimes sexuais passou a
compreender a moral e os bons costumes como bem jurídico a ser protegido. Ou
seja: não era correto estuprar ou abusar sexualmente de uma mulher. Entretanto,
tendo em vista que a sociedade ainda se voltava ao sistema canônico e cristão, a
mulher a ser protegida ainda era aquela considerada digna e de boa índole perante
sociedade, porquanto ainda não se protegia a liberdade sexual e a dignidade do
indivíduo, apenas se repudiava o ato, oferecendo ao agressor, caso de origem
nobre, a possibilidade de se casar com a vítima ou pagar-lhe um dote como espécie
de multa.
Para a análise do caso concreto, temos no segundo capítulo um caso recente,
que chamou a atenção tanto dos operadores do direito quanto do senso comum.
Ocorreu na cidade de São Paulo, onde, em um ônibus da grande metrópole, um
homem, aproveitando-se da distração da vítima (mulher) se masturbou e ejaculou
em seu pescoço e braço. Apesar de se tratar de uma situação corriqueira em virtude
da violência conhecida da cidade, chamou a atenção a decisão do magistrado, que
entendeu por classificar a conduta como importunação ofensiva ao pudor,
contravenção penal passível apenas de multa, gerando revolta e comoção social,
além de inúmeras dúvidas naqueles que estudam e/ou operam o direito penal
cotidianamente.
É apenas após o início do constitucionalismo a nível mundial que o
movimento de busca pela dignidade humana, igualdade e liberdade sexual passa a
ser considerado pelos legisladores. Assim, no segundo capítulo passa-se a
conceituação dos princípios que regem tanto a punição adequada do acusado
quanto o bem jurídico alvo de proteção, sendo os primeiros a legalidade e
proporcionalidade e os últimos a dignidade humana e a liberdade sexual.
É a partir do reconhecimento da dignidade humana como direito universal que
a tutela dos crimes sexuais se desvincula da moral e bons costumes. Entretanto,
ainda que diante de grande evolução no cenário legislativo, o rol de crimes sexuais
alterados pela Lei 12.015/2009, que tutela o bem jurídico da dignidade sexual ainda
sofre problemas na interpretação e enquadramento de condutas delitivas, momento
no qual cabe ao operador do direito, observados os princípios da legalidade e
proporcionalidade, resolver qual seria a classificação mais adequada para cada
delito.
Apesar da compreensão geral de que aplicar ao réu de tal caso apenas a
pena de multa e considerar sua conduta como infringente ao pudor público seria
desproporcional, pretende-se no quarto capítulo analisar detidamente o que dispõe o
art. 61 da Lei de Contravenções Penais e com a análise do bem jurídico, sujeitos e
elemento subjetivo e objetivo, compreender sua adequação ou inadequação ao caso
concreto.
Por fim, no quinto capítulo, pode-se analisar outros artigos dispostos na Lei
12.015/2009 que provavelmente se enquadrariam melhor na conduta do agente em
questão, buscando analisar o bem jurídico, sujeitos e elementos subjetivos e
objetivos dos crimes constantes nos artigos 213 e 215 do Código Penal, buscando
solucionar a problemática gerada e encontrar o melhor enquadramento jurídico para
o caso, observando os princípios constitucionais aplicáveis.
CAPÍTULO I – A HISTÓRIA DOS CRIMES SEXUAIS

1.1 Na idade antiga

O crimes sexuais, principalmente no que se diz respeito ao estupro e abuso


sexual da mulher, tem sua ocorrência relatada desde o início da história humana,
perpassando a pré-história, idade antiga, idade média, renascimento, até a
contemporaneidade.
Susan Brown Miller1 consigna que por ser normalmente dotada de menor
capacidade física, a mulher tem sido vítima de ataques por parte dos homens desde
o período pré-histórico. Desta forma, acabou por se associar a um homem ou clã
que lhe disponibilizasse proteção, mesmo que desta associação tivesse que
subjugar sua liberdade a apenas um homem, tornando-se por consequência, uma
verdadeira propriedade deste indivíduo.
Entretanto, a tentativa de punir o estupro através de leis escritas, só se inicia
na idade antiga, por meio do icônico código de Hamurabi, que traçava leis e
punições baseadas em castigos físicos ao criminoso, que poderiam chegar até a
pena de morte.
Assim, conforme ressalta a autora2, vemos surgir leis que protegem, não a
liberdade feminina, mas a propriedade de seu provedor ou protetor sobre seu corpo,
não importando se o dono daquela propriedade também a tomou a força, como nos

1
BROWNMILLER, Susan. Against our will. Men, women and Rape. Estados Unidos: Simon &
Schuster, 1945. Disponível em:
https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=jaWqAAAAQBAJ&oi=fnd&pg=PT5&dq=against+
our+will+susan+brownmiller&ots=IJc1tCPx7m&sig=YG1_wgYfqZVWu3aowRJLn7MEA48#v=onepage
&q=against%20our%20will%20susan%20brownmiller&f=false. Acesso em: 15/05/2017.
2
Ibidem
casos de roubo à mulheres em períodos de guerra, saques e o chamado roubo a
noiva que surgiria tempos depois.
O primeiro aparecimento do estupro como crime ocorre nos códigos de lei da
antiga babilônia. A exemplo, o código de Hamurabi, que se fundamenta na lei de
talião e na máxima do um olho por olho. No período em questão, a mulher era
tratada como propriedade de seus guardiões, sejam eles pais, maridos ou senhores
de escravos, punindo-se primordialmente o estupro que envolvesse a violação de tal
propriedade.
D. Smith3 aponta que no código de Hamurabi, o estupro da virgem consistia
na violação de uma filha ainda não casada, considerando-se que o ato desvalorizava
o possível valor que seria obtido pelo pai em um futuro casamento da virgem. Como
exemplo de que antes do casamento a filha era considerada propriedade do pai, o
código exprimia a irrisória pena de expulsão dos muros da cidade para o pai que
“conhecesse” a própria filha.
D. Smith4 destaca que o Código, datado de 1780 a.c., considerava inocente a
virgem submetida ao estupro, enquanto seus agressores seriam executados.
Entretanto, uma mulher casada, caso sofresse tal agressão, era considerada
adúltera e poderia ser jogada junto ao seu estuprador no rio. Ainda sob tal
perspectiva, o marido poderia, se assim desejasse, salvar a esposa atirada ao rio,
deixando a cargo do esponsal traído a escolha sobre a vida da mulher.
Browmiller5 aponta ainda que no Código de Nesilim, considerava-se culpada a
mulher que sofresse estupro dentro de sua casa. Presumia-se, neste mesmo código,
que a mulher que não gritasse por socorro ou resistisse fortemente ao ato havia
demonstrado consentimento e, portanto, era considerada igualmente culpada.

1.2 Na bíblia cristã

3
D. SMITH. Merril. Encyclopedia of Rape. London: Greenwood Publishing Group, 2004. Disponível
em: https://archive.org/stream/EncyclopediaOfRape/EncyclopediaOfRape_djvu.txt. Acesso em
20/05/2017. Sem paginação.
4
Idem. Sem paginação.
5
BROWNMILLER, Susan. Against our will. Men, women and Rape. Estados Unidos: Simon &
Schuster, 1945. Disponível em:
https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=jaWqAAAAQBAJ&oi=fnd&pg=PT5&dq=against+
our+will+susan+brownmiller&ots=IJc1tCPx7m&sig=YG1_wgYfqZVWu3aowRJLn7MEA48#v=onepage
&q=against%20our%20will%20susan%20brownmiller&f=false. Acesso em: 15/05/2017. Sem
paginação.
Outra interessante compilação de leis e casos de estupro pode ser
encontrada na bíblia cristã, especialmente no velho testamento, que de acordo com
a autora Susan Brownmiller6 reúne leis inequívocas do período. Entre tais histórias,
ocorridas a partir de 1400 a.c., podemos citar o estupro da concubina na cidade de
Gideão, episódio que teria sido causa de uma guerra entre os povos israelitas, além
do estupro da filha do rei David pelo próprio irmão.7
Browmiller8 assevera que tais narrativas envolvem tribos distintas, guerras e
violência sexual, nas quais o papel da mulher como vítima é constantemente
ignorado. A história é narrada primordialmente sob a ótica masculina, e envolve a
história de intrigas e guerras do povo judaico, sua organização política e sistema de
classes.
Um exemplo da pouca importância dada aos crimes sexuais no período antes
de Cristo se encontra na narrativa dos dez mandamentos enviados por Jeová à
Moisés, no livro de Êxodo 20:3-17, considerado um código de conduta para o povo
Israelita. Pode-se observar da transcrição dos ditos mandamentos que em nenhum
deles há menção de qualquer impedimento ao que seria considerado crime sexual,
visto que ainda se tinha uma noção da mulher como propriedade de seu senhor, seja
ele seu marido, pai, ou dono.
A seguir:
“1º “Não terás outros deuses diante de mim.”
2º “Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem
em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te
encurvarás diante delas, nem as servirás; porque eu, o Senhor teu
Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até
a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam e uso de
misericórdia com milhares dos que me amam e guardam os meus
mandamentos.”
3º “Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não terá por
inocente aquele que tomar o seu nome em vão.”

6
BROWNMILLER, Susan. Against our will. Men, women and Rape. Estados Unidos: Simon &
Schuster, 1945. Disponível em:
https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=jaWqAAAAQBAJ&oi=fnd&pg=PT5&dq=against+
our+will+susan+brownmiller&ots=IJc1tCPx7m&sig=YG1_wgYfqZVWu3aowRJLn7MEA48#v=onepage
&q=against%20our%20will%20susan%20brownmiller&f=false. Acesso em: 15/05/2017. Sem
paginação.
7
Idem. Sem paginação.
8
Idem. Sem paginação.
4º “Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás, e farás todo o teu
trabalho; “mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus. Nesse
dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha,
nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o
estrangeiro que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias fez
o Senhor o céu e a terra, o mar e tudo o que neles há, e ao sétimo
dia descansou; por isso o Senhor abençoou o dia do sábado, e o
santificou.”
5º “Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor
teu Deus te dá.”
6º “Não matarás.”
7º “Não adulterarás.”
8º “Não furtarás.”
9º “Não dirás falso testemunho contra o teu próximo.”
10º “Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o
seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem
coisa alguma do teu próximo.”9

Ou seja, conforme explicito no décimo mandamento, a mulher era equiparada


aos servos, animais e coisas pertencentes ao homem israelita, sendo que por este
motivo não poderia ser cobiçada, mas ainda durante tal período histórico a mulher
estaria longe de ser considerada como indivíduo que valesse proteção de sua
dignidade

1.3 No Império Romano

Já no período de 510-509 A.C., em Roma, é narrado o estupro de Lucrécia.


Smith10 conta que um ataque dos romanos a uma cidade vizinha, Ardea,
rapidamente se transforma em um saque.
Neste cenário, um grupo de príncipes se reúne para beber e o príncipe
Collantinus Tertius se gaba de possuir a mulher mais virtuosa. Em uma aposta, o
grupo decide ir até as casas um dos outros e descobrir o que suas esposas estariam
fazendo. Acabam por encontrar a esposa de Collantius, Lucrécia, tecendo, atividade

9
A Bíblia Cristã. Os dez mandamentos. Êxodo 20:3-17.

10
D. SMITH. Merril. Encyclopedia of Rape. London: Greenwood Publishing Group, 2004. Disponível
em: https://archive.org/stream/EncyclopediaOfRape/EncyclopediaOfRape_djvu.txt. Acesso em
20/05/2017. Sem paginação.
considerada virtuosa para uma mulher, enquanto as outras esposas nobres se
encontravam bebendo vinho e participando de jogos. 11
Por desejo a Lucrécia ou talvez ressentido por ter perdido a aposta, o príncipe
Tarquinus retorna à casa de Collantinus, é recebido como convidado por Lucrécia e
após ameaças consuma o ato de estupro. Lucrécia recorre à família e marido para
vingança, mas eles recusam.12
Assim, diante da recusa e para preservar sua moral, Lucrécia tira a própria
vida. Ultrajados, Brutus, outro príncipe, e Collantinus resolvem depor o rei, no que
acredita-se ser a primeira formação de uma república romana, com Brutus e
Collantinus como primeiros cônsules.13
Apesar de todo o cenário político e edílico que envolve o estupro de Lucrécia,
a autora14 aponta que o estupro estava constantemente trajado junto à cultura
romana, sendo que a mulher era muitas vezes usada como vítima em planos
políticos dos homens e ainda, como no caso de Lucrécia, tratada como mártir.
Como se observa da narrativa era incentivo comum que uma mulher de boa
moral não aceitasse um estupro, chegando a se matar como maneira de purificação,
ou seja, seria mais digno de uma mulher de boa moral tirar sua própria vida do que
conviver diariamente com a agressão.
Depreende-se que a mulher romana, ainda considerada propriedade do chefe
da família e mesmo não sendo tratada de forma que valorizasse sua dignidade já
era vista como independente no quesito de que, ao menos aquelas pertencentes à
alta nobreza poderiam influenciar na decisão de suas familiares quanto à punição do
agressor, mas ainda não se verificava na mulher romana o tratamento como vítima
individualizada, digna de reparação.

1.4 Na Idade Média

11
D. SMITH. Merril. Encyclopedia of Rape. London: Greenwood Publishing Group, 2004. Disponível
em: https://archive.org/stream/EncyclopediaOfRape/EncyclopediaOfRape_djvu.txt. Acesso em
20/05/2017. Sem paginação.
12
Idem. Sem paginação.
13
Idem. Sem paginação.
14
Idem. Sem paginação.
No início da idade média, mais especificamente no feudalismo, a terra como
propriedade rural era o sustentáculo da sociedade e, como a mulher também
herdava a propriedade, era costume que seu casamento fosse tratado como
verdadeiro negócio para obtenção ou manutenção de uma propriedade nobre.
Tendo em vista que a herdeira só poderia se casar com a autorização de seu
patrono, era costume que a herdeira fosse estuprada para garantir o direito de
casamento do interessado naquela herança, uma vez que perdida a virgindade da
noiva o ofensor deveria se casar com a mulher.15 Brownmiller pontua que apesar do
enfoque patrimonial das relações maritais/sexuais do período, o chamado roubo de
herança só foi categorizado como crime no século XV, por édito de Henry XVII.16
Outra prática comum consistia no fato de que na primeira noite de núpcias
dos recém-casados a mulher deveria deitar-se primeiramente com o pai do noivo ou
com o senhor feudal. Tal costume era tido como um verdadeiro presente e prova de
subserviência do noivo àquele senhor, além do que, acreditava-se que tal ato
ajudaria o noivo com o seu desempenho sexual mais tarde.17
A título de ilustração quanto às penas aplicadas no período, sabe-se que no
século dez, sob o reinado de Althestan a pena para o homem que violentasse uma
virgem seria o desmembramento e morte. Não bastando, o estuprador teria seu
escroto retirado. Suas posses e terra seriam entregues a virgem violentada.
Entretanto, como forma de redenção, o estuprador poderia, com autorização da
vítima, do rei e da igreja se casar com aquela moça. Assim, conforme narra a autora,
é fácil perceber que a aceitação do estuprador como marido dependia

15
BROWNMILLER, Susan. Against our will. Men, women and Rape. Estados Unidos: Simon &
Schuster, 1945. Disponível em:
https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=jaWqAAAAQBAJ&oi=fnd&pg=PT5&dq=against+
our+will+susan+brownmiller&ots=IJc1tCPx7m&sig=YG1_wgYfqZVWu3aowRJLn7MEA48#v=onepage
&q=against%20our%20will%20susan%20brownmiller&f=false. Acesso em: 15 de maio 2017. Sem
paginação.
16
BROWNMILLER, Susan. Against our will. Men, women and Rape. Estados Unidos: Simon &
Schuster, 1945. Disponível em:
https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=jaWqAAAAQBAJ&oi=fnd&pg=PT5&dq=against+
our+will+susan+brownmiller&ots=IJc1tCPx7m&sig=YG1_wgYfqZVWu3aowRJLn7MEA48#v=onepage
&q=against%20our%20will%20susan%20brownmiller&f=false. Acesso em: 15 de maio 2017. Sem
paginação.
17
D. SMITH. Merril. Encyclopedia of Rape. London: Greenwood Publishing Group, 2004. Disponível
em: https://archive.org/stream/EncyclopediaOfRape/EncyclopediaOfRape_djvu.txt. Acesso em 20 de
maio 2017. Sem paginação.
principalmente da conveniência do rei e da igreja, ou seja, estava intrinsecamente
relacionada à posses e influência política.18
Brownmiller19 afirma ainda que levando em conta o procedimento de tais
cortes de julgamento, parecia impossível que um nobre fosse julgado culpado do
estupro de uma pessoa comum, já que a palavra de um nobre ou um cavaleiro era
altamente valorizada. Assim o direito estava relacionado à nobreza, ao patrimônio e
status social, existindo mínimos relatos de cortes que julgassem crimes sexuais
contra a mulher plebeia ou à população considerada comum.

1.5 No antigo regime até a atualidade

Tempos após, surgem os chamados Estatutos de Westminster,


implementados por Edward I que representam o que Brownmiller20 considera um
avanço nos estatutos legais vigentes, já que a Coroa passou a se interessar pelo
estupro além da virgindade, como por exemplo o estupro de uma criança, que passa
a ser tratado de forma independente ao consentimento e o estupro de mulheres já
casadas.
Neste período, a autora21 relata que prisão e multa (à conveniência do rei)
eram aplicadas ao agressor), o que aponta, se tratava de mais uma maneira de
transferir poder à Monarquia. Mais tarde, na segunda edição dos estatutos,
passou-se a aplicar a pena de morte. Brownmiller22 aponta que dos séculos treze ao
vinte, pouco mudou, já que continuavam-se a ter dedos apontados para o
comportamento da vítima e preocupação com sua reputação e credibilidade como
ofendida.

18
BROWNMILLER, Susan. Against our will. Men, women and Rape. Estados Unidos: Simon &
Schuster, 1945. Disponível em:
https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=jaWqAAAAQBAJ&oi=fnd&pg=PT5&dq=against+
our+will+susan+brownmiller&ots=IJc1tCPx7m&sig=YG1_wgYfqZVWu3aowRJLn7MEA48#v=onepage
&q=against%20our%20will%20susan%20brownmiller&f=false. Acesso em: 15 de maio 2017. Sem
paginação.
19
Idem. Sem paginação.
20
Idem. Sem paginação.

21
Idem. Sem paginação.
22
Idem. Sem paginação.
Com a retomada do pensamento antropocêntrico que marcou a ascensão da
burguesia nas sociedades do ocidente, passou-se à desvalorização do direito
intrinsicamente canônico. Surgem novamente escolas nas quais a racionalidade é
medida maior de busca para o conhecimento. Como o direito é movido pela
sociedade, os pensadores de tal período buscaram fundamentar o direito de forma
universal, dando início aos direitos humanos de primeira geração.
Entretanto, somente se abrigavam em tais direitos a figura masculina,
enquanto o estupro à mulher ainda se encontrava mistificado em crenças
características da idade média e antiga, como quando acreditava-se que a mulher
poderia livrar-se do ataque de um homem com apenas alguns movimentos da região
pélvica, de um lado para outro.
O autor Georges Vigarello, cita como exemplo esta passagem de Fournel:23

“Qualquer que seja a superioridade das forças de um homem sobre as de uma mulher, a
natureza forneceu a esta inumeráveis recursos para evitar o triunfo
de seu adversário.”

É fácil perceber o tom dos julgamentos de casos de estupro no período que


narra o autor, quando avanços na legislação rapidamente retroagiam a
questionamentos pautados no esforço de resistência depreendido pela vítima, a
suas práticas e costumes perante a sociedade.
Mesmo na França, berço da Revolução que marcou uma significativa
mudança no patamar histórico do ocidente, Vigarello pontua que raramente casos de
estupro contra mulheres comuns eram punidos, não havendo registros de
julgamentos que envolvessem mulheres do povo.24
No século XIX, com o aprofundamento nos estudos voltados à humanidade e
racionalidade, além do despontamento dos estudos criminológicos, pautados na
biologia e sociologia, cria-se um conceito de criminoso nato, uma pessoa caricata de
e degenerada, ou seja, o pai de família, o cidadão da alta sociedade não era
considerado um potencial estuprador.25

23
FOURNEL, 1775, p. 82-83 apud VIGARELLO. Georges. A History of Rape: Sexual Violence in
France from the 16th to the 20th Century, trans. J. Birrell. Cambridge: Polity, 2000. Pg. 47-48.
24
Idem. Pg. 47-48.
25
GONÇALVES, Karolyne Ongaro; NOLLI, Lucas Romano. Uma análise sobre a teoria do criminoso
nato. Dísponivel em:
Somente no século XX, com a intensificação dos estudos relacionados à
psiquiatria, surge o conceito de pedofilia e é consolidado o entendimento de que o
agressor pode ser qualquer homem, inclusive membros da própria família da vítima.
Também aqui se iniciam os estudos voltados à vítima, que enumeram as
consequências do crime. 26
No século XXI a eclosão do movimento feminista e a expansão do
constitucionalismo também contribuem para uma tipificação mais concreta e
humanitária, que levou em conta a dignidade da pessoa humana e que décadas
depois iniciou um direito que não é somente centrado no patriarcalismo e na figura
masculina, ou seja, como veremos a seguir, o século XXI passou a considerar a
mulher como sujeita autônoma de sua sexualidade e liberdade sexual e assim, digna
de proteção.
Entrementes, a legislação brasileira, em seu atraso histórico como país
colonial, só edita normas com referencial feminista e humanitário a partir do final da
primeira década do século XXI, conforme será ulteriormente exemplificado.

1.6 A evolução legislativa brasileira

O doutrinador Luiz Regis Prado27 consigna que durante o Brasil Imperial o


país regia-se pelas Ordenações Filipinas. O documento, em seu Livro V, Título XXIII
regulamentava o estupro contra a mulher virgem, dispondo que o estuprador deveria
para redimir-se casar com a donzela violada, ou constituir lhe dote.
Tal medida claramente demonstrava que a real preocupação no período era a
honra da mulher e a possibilidade de casamento desta, não a sua dignidade,
integridade psíquica ou liberdade sexual. Ainda ressalta, ao criminoso sem bens
caberia a pena de açoitamento e degredo. Aos membros da nobreza, caberia

http://www.salacriminal.com/home/-uma-analise-sobre-a-teoria-do-criminoso-nato. Acesso em 29 de
outubro de 2017. Sem paginação.
26
LOWENKRON, Laura. A emergência da pedofilia no final do século XX: deslocamentos históricos
no emaranhado da “violência sexual” e seus atores. Contemporânea. v. 4, n. 1 p. 231-255. Jan.–Jun.
2014. Sem paginação.
27
PRADO. Luiz Regis.Curso de Direito Penal Brasileiro.2ª ed. São Paulo: RT, 2003. p.596-597.
apenas o degredo28. Aqui, portanto, a pena é semelhante às aplicadas ainda no
período feudal, partindo do referencial europeu e demonstram ainda o caráter
patrimonial da dignidade sexual humana.
Como outro exemplo do período, Luiz Regis Prado aponta o chamado
“estupro violento”, capitulado no Título XVIII, no qual punia-se com pena de morte a
qualquer um que se forçasse sobre uma mulher, seja ela escrava ou que vendesse
seu corpo por dinheiro. No estupro violento classificado pelas Ordenações Filipinas,
subentende-se que, apesar de dar maior gravidade ao estupro realizado mediante
violência, ainda havia grande distinção entre a mulher considerada digna e indigna,
incluindo no rol das mulheres indignas para o legislador, aquelas tomadas para
escravidão.29
No Código Criminal brasileiro de 183030, narra o autor31 que era definia-se o
crime de estupro no artigo 222, que estipulava a pena de 3 a 12 anos somada a
constituição de um dote à ofendida. Caso a ofendida fosse prostituta, a pena
reduzia-se de um mês a dois anos de prisão.
Posteriormente, no Código Penal de 1890, intitulou-se como estupro a “cópula
violenta”, com as penas correspondentes trazidas ao rol do art. 268. Sem embargo,
a grande inovação do período coube ao art. 266 do Código Penal, que tratou do
atentado violento ao pudor contra qualquer indivíduo, aí incluídos homens ou
mulheres. No art. 267, foi delineado que pode-se considerar como um esboço para o
estupro de vulnerável. Vejamos:

“CAPITULO I

DA VIOLENCIA CARNAL

Art. 266. Attentar contra o pudor de pessoa de um, ou de outro sexo, por meio de violencias
ou ameaças, com o fim de saciar paixões lascivas ou por depravação
moral:

Pena - de prisão cellular por um a seis annos.

28
In: GOOGLE. Degredo ê/ substantivo masculino 1.jur pena de desterro ou exílio imposta
judicialmente em caráter excepcional como punição de um crime grave, constituindo uma forma de
banimento. 2. p.ext. afastamento voluntário ou compulsório de um contexto social.
29
PRADO. Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro.2ª ed. São Paulo: RT, 2003. p.596-597.
30
BRASIL. Código Criminal do Império, de 16 de dezembro de 1830. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm>. Acesso em: 20 de outubro de 2017.
31
Ibidem.
Paragrapho unico. Na mesma pena incorrerá aquelle que corromper pessoa de menor
idade, praticando com ella ou contra ella actos de libidinagem.

Art. 267. Deflorar mulher de menor idade, empregando seducção, engano ou fraude:

Pena - de prisão cellular por um a quatro annos.

 Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:


 Pena - de prisão cellular por um a seis annos.
 § 1º Si a estuprada for mulher publica ou prostituta:
 Pena - de prisão cellular por seis mezes a dous annos.
 § 2º Si o crime for praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a pena será
augmentada da quarta parte.

Art. 269. Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa com violencia de uma mulher,
seja virgem ou não.
Por violencia entende-se não só o emprego da força physica, como o de meios que privarem
a mulher de suas faculdades psychicas, e assim da possibilidade de
resistir e defender-se, como sejam o hypnotismo, o chloroformio, o
ether, e em geral os anesthesicos e narcoticos.”32

Apesar de antiquado, é possível reconhecer ainda no Código Penal em


questão grande parte do direcionamento jurídico que resultaria no atual rol dos
crimes contra a dignidade sexual, afinal, como será demonstrado, a mudança mais
significativa se relaciona ao bem jurídico alvo de proteção e a concepção de “mulher
honesta” que afastava um grande número de mulheres da proteção estatal.
O Código Penal de 1940, de acordo com Luiz Regis Prado33 não trouxe
mudanças significativas quanto ao Código anterior, mas previa os delitos de estupro
e atentado violento ao pudor em forma de artigos penais independentes, no Art. 213
e 214 respectivamente.
Trazia, por sua vez, como herança do Código Penal anterior, a expressão
“mulher honesta”, mais especificamente nos Art. 215 e 216, termo de cunho
machista e que ainda refletia uma sociedade patriarcal, mais interessada na
proteção “dos bons costumes” do que na liberdade e dignidade de seus cidadãos.

32
BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Disponível em:
<http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=847&tipo_norma=DEC&data=1890
1011&link=s>. Acesso em: 20 de outubro de 2017. Sem paginação.
33
PRADO. Luiz Regis.Curso de Direito Penal Brasileiro.2ª ed. São Paulo: RT, 2003. Pg. 598
Apesar da guarita dos Princípios dispostos na Constituição de 1988, que
passa a dispor que é princípio fundamental do ordenamento jurídico brasileiro a
igualdade entre todos, independentemente de sexo, cor ou etnia, além da dignidade
da pessoa humana, o Código Penal Brasileiro, na parte que trata dos crimes
sexuais, só vem a trazer mudanças significativas que abarcam a fundamentação
Constitucional a partir da Lei 12.015/2009, conforme será exposto.
A partir da adoção de tais princípios, a proteção quanto aos crimes contra a
dignidade sexual revestiu-se de um viés mais humanista, já que passa-se a tutelar
primordialmente a liberdade e dignidade sexual humana, não relacionada ao gênero,
sexualidade e moralidade, ou seja, desassociada aos costumes e caráter da vítima.

CAPÍTULO II - OS PRÍNCIPIOS PENAIS DE GARANTIA EM FACE DO PODER


PUNITIVO ESTATAL

2.1 O princípio da dignidade humana

O princípio da dignidade da pessoa humana fundamenta todo o ordenamento


jurídico brasileiro e é considerado norma maior, que deve ser considerada tanto na
interpretação das normas jurídicas quanto na consideração entre Princípios
fundamentais diversos. 34
Conforme o art. 1º inc. III da Constituição Federal: 35

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;

Como definição comum, vale ressaltar o conceito cunhado pelo filósofo


Immanuel Kant em A metafísica dos costumes: 36

“No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um
preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente;

34
7 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo, SP: Cia das Letras, 1988,
p. 78.
35
BRASIL, República Federativa do. Constituição Federal. 1988.
36
KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes. Petrópolis: Editora Vozes. 2005. Pg.77.
mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não
permite equivalente, então tem ela dignidade. O que se relaciona
com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço
venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade, é
conforme a um certo gosto, isto é a uma satisfação no jogo livre e
sem finalidade das nossas faculdades anímicas, tem um preço de
afeição ou de sentimento (Affektionspreis); aquilo porém que constitui
a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si
mesma, não tem somente um valor relativo, isto é um preço, mas um
valor íntimo, isto é dignidade.”37

É possível assim entender que a dignidade configura valor íntimo e essencial


humano, na medida em que não pode ser disposta por outrem além do próprio
indivíduo, não pode ser quantificada, apreçada ou vendida e constitui parâmetro
para interpretação jurídica e aplicação de normas no caso concreto, sem o qual a
expressão estado democrático de direito perderia seu valor real.
De acordo com Maria Carmem Rocha Lúcia38, a dignidade está relacionada
com o conceito de bem estar, geral e individual, e acrescenta que se considera
impossível que o homem socialmente inserido conviva com a infelicidade e miséria
do próximo sem se sentir individualmente afetado. Ou seja, para a autora39, a
violação do bem estar e dignidade do próximo deve nos afetar, na medida em que se
articula com o nosso próprio conceito de humanidade.
A necessidade humana de proteção da dignidade foi ao longo da história
registrada em diversos códices, sendo, portanto, a base da formação da sociedade
40
contemporânea. Isto ocorreu porque, conforme afirma Maria Carmen Lúcia o
século XX demonstrou que é possível extinguir a humanidade sem extinguir a vida.
Narra a autora que o holocausto, conhecido como maior genocídio da história da
humanidade, não gerou comoção apenas pela morte de milhões, mas marcou pela
existência de verdadeiros antros de degradação humana, onde a dignidade humana,
aquele aspecto íntimo do ser que envolve tanto o respeito próprio quanto ao
próximo, foi severa e continuamente violada. 41

37
KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes. Petrópolis: Editora Vozes. 2005. Pg.77.
38
LÚCIA. Maria Carmen Rocha. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social.
Disponível em: http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/32229-38415-1-PB.pdf. Acesso em
02 de setembro de 2017. Sem paginação.
39
Idem. Sem paginação.
40
Idem. Sem paginação.
41
Idem. Sem paginação.
Outrossim, entende-se porque a dignidade da pessoa humana tornou-se
princípio base do constitucionalismo contemporâneo, e seja por sua necessidade
histórica ou pelo retorno do antropocentrismo, não se pode mais falar em sociedade
desenvolvida sem que esta possua a dignidade como princípio constitucional.42
Portanto, o legislador, apesar do evidente atraso em implementar a proteção a
dignidade da pessoa humana buscou inseri-lo de maneira eficaz também no título
que trata dos crimes sexuais, agora intitulados “Crimes contra a dignidade sexual”
em obediência a tal princípio. Deveras sua importância para a sociedade atual, o
princípio da dignidade humana, aliado ao Princípio da Igualdade, deve ser lembrado
na interpretação individual de casos do cotidiano como Princípio maior, de forma a
evitar conflitos de normas e uma especulação jurídica ineficaz.
No caso em análise, é evidente que a vítima teve sua dignidade, não somente
o decoro violado, já que uma ação grave quanto a empreendida pelo autor tem o
caráter de violar acima de tudo o respeito próprio da vítima, além do caráter íntimo e
pessoal que é a sexualidade, que envolve acima de tudo a capacidade de escolha e
autodeterminação do sujeito.

2.2 Princípio da Igualdade

Aliado ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o princípio que institui a


igualdade entre os seres humanos foi destacado como princípio fundamental vigente
na Constituição Federal de 1988, a seguir:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;”43

42
LÚCIA. Maria Carmen Rocha. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social.
Disponível em: http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/32229-38415-1-PB.pdf. Acesso em
02 de setembro de 2017. Sem paginação.
43
LÚCIA. Maria Carmen Rocha. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social.
Disponível em: http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/32229-38415-1-PB.pdf. Acesso em
02 de setembro de 2017. Sem paginação.
Porquanto impossível que a dignidade seja compreendida e protegida de
forma universal caso exista diferenciação entre seres humanos, o princípio da
dignidade atesta que homens e mulheres são considerados iguais em direitos e
obrigações, sendo que a Constituição baseia-se na busca da verdadeira igualdade,
aquela que leva em conta as diferenças e particularidades de cada indivíduo.
Tal conceito de igualdade advém da noção de Aristóteles, que considera a
igualdade como “tratar igualmente os iguais, e desigualmente os desiguais na
medida de suas desigualdades”, o que, de acordo com Graciela Peripolli Oliveira e
44
Marcelo Lasperg de Andrade consiste numa espécie de igualdade distributiva,
que confere a cada um o que lhe é devido e tomou a forma de cláusula pétrea em
nossa Constituição Federal.
O conceito de igualdade Aristotélico se distingue da igualdade absoluta e
entende que o ser humano é naturalmente desigual e provido de particularidades.
Desta forma, a mulher é interpelada pelos mesmo deveres que os homens,
enquanto provida de maior proteção em razão de ter sido vítima de violência ao
longo da história e agredida de forma física e psicológica desde o início dos tempos.
45

Aplicadas a redação do Código Penal, tal princípio implica na universalização


do sujeito passivo do crime, não importando sua classe social, gênero, atividade
profissional ou orientação sexual, porém, considerando que tais fatores e outras
características podem prejudicar a vítima ou favorecer o agressor, conforme o caso
concreto.
Neste quesito, as modificações trazidas ao rol de crimes contra a dignidade
sexual, principalmente a maior abrangência das classificações do sujeito ativo e
passivo, a desvinculação da moralidade da vítima, e a autorização do aborto em
casos de estupro, são reflexos primordiais do princípio da igualdade.
Entrementes considerada cláusula pétrea no ordenamento jurídico, a
aplicação prática do princípio em questão muitas vezes inobserva tais requisitos,
deixando de punir de forma equânime aqueles que praticam delitos de estupro ou

44
OLIVEIRA, Graciela Peripolli. ANDRADE, Marcelo Lasperg. A igualdade Aristotélica na ordem
constitucionalbrasileira.Disponívelem:www.santacruz.br/ojs/index.php/JICEX/article/download/501/691
. Acesso em: 10 de agosto de 2017. Sem paginação.
45
Idem. Sem paginação.
abuso sexual, tratando de forma preconceituosa vítimas consideradas de pouca
moral pela sociedade ou julgadores e assim interferindo na liberdade sexual e
dignidade da população em geral.
Na aplicação prática do princípio, é necessário observar que não podem
existir discrepâncias nos julgamentos de autores dos crimes contra a dignidade
sexual, aplicando ao mesmo tipo de conduta penalidades diferentes. Assim, é
impensável que um juiz, diante de um caso como o ocorrido em São Paulo
considere que se trata de uma violação ao pudor, enquanto outro e outra parte do
país considere a mesma conduta como estupro.
Para evitar tais irregularidades que ferem o Princípio Constitucional da
Igualdade, é deve-se observar todos os princípios que os dispositivos legais
abrangem, como o da liberdade sexual, que tutela a capacidade de escolha de todo
o ser humano, em participar ou não de qualquer ato sexual.

2.4. Princípio da Legalidade

Além dos diversos princípios que revestem o bem jurídico protegido no rol dos
crimes contra a dignidade e liberdade sexual, há em contrapartida aqueles princípios
que limitam a punição estatal ao indivíduo que a viola, para que esta não se dê de
forma aleatória e injusta, ao bel prazer do aplicador do direito. Um deles consiste no
Princípio da Reserva Legal ou Legalidade.
Bittencourt, em o Tratado de Direito Penal46 assevera que o princípio da
legalidade consagrou-se no início do século XIX por Feuerbach, por meio da fórmula
“nullum crimen, nulla poena sine lege”, que significa, em tradução simples: no que
não há pena sem lei.
Como exemplo da gravidade da inobservância do princípio em questão na
aplicação do Direito Penal, Bittencourt cita o disposto por Claus Roxin, segundo o
qual:

“uma lei indeterminada ou imprecisa e, por isso mesmo, pouco clara não pode proteger o
cidadão da arbitrariedade, porque não implica uma autolimitação do

46
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal 2 : parte especial : dos crimes contra a
pessoa. São Paulo : Saraiva, 12. ed. rev. e ampl. — 2012. Pg. 52-56.
ius puniendi estatal ao qual se possa recorrer. Ademais, contraria o
princípio da divisão dos poderes, porque permite ao juiz realizar a
interpretação que quiser, invadindo, dessa forma, a esfera do
legislativo”.

Entretanto, o doutrinador47 reconhece que existem casos que desafiam a


interpretação jurídica, visto que um termo pode as vezes, ter mais de um significado.
Assim, afirma que durante a aplicação da norma jurídica o problema se encontra nos
extremos. Ou seja, o legislador não deve utilizar regularmente termos vagos que
dificultem a aplicação penal e exija constantemente a utilização de recursos como a
interpretação analógica, pois tal feriria o princípio da reserva legal.
Da mesma maneira, o operador do direito não pode exigir do legislador o
preciosismo legal, descrevendo inúmeras condutas criminosas do cotidiano e
gerando uma lei penal que apesar de pormenorizar todas as condutas criminosas
possíveis, não é eficaz na distribuição da justiça.48
Tal é o caso em análise, que muitos discutem se a falha está na legislação,
que ao unificar o dispositivo que tratava do abuso sexual sob a rubrica de um único
crime, o estupro, teria deixado uma lacuna na legislação ou se a falha se encontra
naqueles que aplicam a lei, que não interpretam da forma mais correta o que
pretendia o legislador.
O princípio da legalidade existe então para orientar o cidadão quanto a quais
condutas são inadequadas e suas consequências. Quanto a efetiva aplicação e
valoração da norma, afirma o doutrinador que caberá aos princípios de
interpretação.
O que ocorre diariamente em decisões apressadas de julgadores é assim
consequência da grave violação do princípio em questão, situação que não pode ser
tolerada, como reforça por fim Cezar Bittencourt ao citar Claus Roxin: “a doutrina
exige, em geral com razão, no mínimo, a fixação da modalidade de pena”.

2.5 Princípio da Proporcionalidade

47
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal 2 : parte especial : dos crimes contra a
pessoa. São Paulo : Saraiva, 12. ed. rev. e ampl. — 2012. Pg. 52-56.
48
Idem. Pg. 56.
O Princípio da proporcionalidade é um dos fundamentos de proteção do
Estado Democrático de Direito, na medida em que limita o poder punitivo do estado
e protege seus cidadãos. Assim, quando diante de um conflito aparente entre
Princípios Constitucionais, visto que os Princípios não podem ser verdadeiramente
contraditórios conforme a doutrina pátria, tal princípio deverá ser acatado para
melhor aplicação da norma constitucional. 49
Isto ocorre porque de acordo com a doutrina nacional, o Princípio da
Proporcionalidade pode ser considerado um meta-princípio, que permite, quando em
jogo mais de um princípio constitucional, decidir qual terá precedência.
Proporcionalidade relaciona-se a medida correta, a ponderação, sendo que a boa
aplicação deste princípio pode ser decisiva na interpretação legal, tendo em vista
que os direitos fundamentais não são ilimitados e absolutos.50
O que fazer quando por exemplo, um caso do cotidiano vem trazer dúvidas
sobre qual princípio deve ser protegido primordialmente? E quando a aplicação
jurídica de normas e princípios fundamentais parece desmerecer tanto o princípio da
dignidade quanto o da liberdade sexual do indivíduo? Como proceder quando diante
de um caso concreto surgem inúmeras interpretações para sua tipificação jurídica,
principalmente considerando que nos dogmas do Direito Penal não há espaço para
a analogia?
Nesse caso acredita-se que o princípio da proporcionalidade poderá servir de
métrica para a aplicação do direito no Estado democrático, juntamente ao Princípio
da Legalidade, evitando assim decisões injustas ao desprivilegio de direitos
fundamentais, como no caso ocorrido na cidade de São Paulo.
É evidente que na aplicação da referida pena, o critério da proporcionalidade
passou despercebido. Afinal, uma simples pena de multa não é suficiente para
sancionar um crime que claramente atentou contra a dignidade e liberdade da
vítima. Nem mesmo o crime de estupro, que será posteriormente analisado seria a

49
CAMPOS, Helena Nunes. Princípio da proporcionalidade: a ponderação dos direitos fundamentais.
São Paulo: Cad. de Pós-Graduação em Dir. Político e Econômico, 2004, v. 4, n. 1, p. 23-32.

50
Ibidem. p. 23-32.
medida correta para punição do agressor, por se tratar de um crime mais grave e
com pena excessiva diante do caso em discussão.
Portanto, para solucionar o caso em questão, é necessário, conforme
assevera Helena Nunes Campos51 a utilização do princípio da proporcionalidade
com a ponderação dos direitos fundamentais ou princípios constitucionais, que deve
ser feita com a observação do caso concreto, de forma a considerar todos os
princípios envolvidos e identificar qual ou quais prevalecem. Citando Bonavides,
afirma: “poder-se-á enfim dizer, a esta altura, que o princípio da proporcionalidade é
hoje axioma do Direito Constitucional, corolário da constitucionalidade e cânone do
Estado de Direito”. Ou seja, onde não há proporcionalidade não há democracia.

CAPÍTULO IV – O EPISÓDIO DO ÔNIBUS: NÃO É ESTUPRO MAS É CRIME

4.1 O caso do ônibus e aplicação indevida do Direito Penal: uma análise crítica
do equivocado juízo de subsunção e suas consequências sociais

Em 29 agosto de 2017, o juiz José Eugenio Amaral Souza Neto liberou um


homem detido por eventual prática de crime de estupro, após ejacular no pescoço
de uma passageira dentro de um ônibus que circulava na Avenida Paulista. O juiz
classificou o delito cometido Diego Ferreira Novais, de 27 anos, como “importunação
ofensiva ao pudor”, contravenção penal com pena de multa.52
Os meios de comunicação reportaram que o autor respondia a outros
processos semelhantes, entre eles um inquérito por crime contra a dignidade sexual,
datado de 2013. O juiz justificou que o caso não se enquadraria em estupro pois
Novais não foi violento ou ameaçou a vítima. Conforme trecho da decisão:

“O crime de estupro tem como núcleo típico constranger alguém


mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a
praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Na
espécie, entendo que não houve o constrangimento, tampouco

51
CAMPOS, Helena Nunes. Princípio da proporcionalidade: a ponderação dos direitos fundamentais.
São Paulo: Cad. de Pós-Graduação em Dir. Político e Econômico, 2004, v. 4, n. 1, p. 23-32.

52
Idem. P. 23-32.
violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um
banco do ônibus quando foi surpreendida pela ejaculação do
indiciado.”

Apesar da polêmica decisão, que classificou a conduta do acusado como


apenas atentatória ao pudor e não à dignidade sexual da vítima, o juiz entendeu que
se tratava de um ato grave, mas ressaltou que o autor necessita de tratamento
psiquiátrico e psicológico. Novais foi condenado às sanções do Art. 61 da Lei de
Contravenções Penais,que dispõe: “Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou
acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor: Pena – multa”
Além de desproporcional à sua conduta, que conforme o próprio juiz declinou
em sua decisão, se tratou de um ato grave que causou enorme abalo psicológico à
vítima, o art. 61 da Lei de Contravenções Penais estabelece a irrisória pena de multa
ao autor.
A polêmica gerada em torno do caso divide a opinião de juristas. Enquanto
alguns concordam com a decisão do magistrado e aceitam que não haveria outra
tipificação para a conduta de Novais, outros divergem, acatando que o bem jurídico
atacado no fato em questão não foi apenas o pudor, mas sim a dignidade sexual da
vítima, que teve seu direito de escolha, como negativa em participar do ato libidinoso
suprido, motivo pelo qual pontuam que seria mais adequado que a conduta se
enquadrasse no rol de crimes contra a dignidade sexual, punidos com reclusão.
Alguns afirmam que seria o caso de aplicar o disposto no Art. 213 do Código
Penal, enquanto outros consideram que tal aplicação se trataria de analogia, vedada
na aplicação da Lei Penal e que assim o melhor enquadramento da conduta seria
conforme o disposto no Art. 215 do Código Penal.
Cabe analisar portanto qual seria a melhor alternativa para o caso, a partir da
análise dos princípios que envolvem o bem jurídico alvo de proteção, assim como a
legalidade da aplicação penal e proporcionalidade da pena a ser aplicada, a partir do
estudo dos crimes que possibilitam (ou não) o enquadramento da conduta, como o
já questionado Art. 213 do Código Penal (estupro) e o Art. 215 (violação sexual
mediante fraude).

4.2 Importunação ofensiva ao pudor (Art. 61 da Lei de Contravenções Penais)


Conforme dito, o art. 61 da Lei de Contravenções Penais pune quem
importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao
pudor, com multa
Armando Zenon da Silveira, consigna que o art. 61 da Lei de contravenções
Penais, acima transcrito, trouxe uma figura punível estranha às legislações penais
anteriores. Acrescenta que também não se encontra correspondente nas legislações
francesa e alemã, que são modelo de base à nossa legislação penal, já que tal
conduta se encaixaria em injúria em tais códigos.53
Para o autor, tal artigo foi inspirado na legislação italiana, o Código Rocco,
que contém no artigo 660:31, que foi desdobrado nas Contravenções descritas no
art. 61 e 65 (Perturbação da tranquilidade) do Decreto-Lei.

4.1.1 Bem jurídico

Para a maioria dos doutrinadores, o bem jurídico alvo da proteção do art. 61


da Lei de Contravenções Penais é o pudor54.
Armando Zenon da Silveira ressalta que o conceito de pudor é variável e se
modifica de acordo com a sociedade e as noções do indivíduo. Para o autor portanto
o pudor está relacionado ao volátil conceito da moralidade média, mas liga-se mais
intrinsicamente ao pudor sexual.55

53
SILVEIRA. Armando Zenon da. O “pudor” perante as contravenções Penais. Disponível em:
https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/838. Acesso em 11 de novembro de
2017. Sem paginação.

54
IN: GOOGLE. “pudor ô/substantivo masculino1.sentimento de vergonha, timidez, mal-estar,
causado por qualquer coisa capaz de ferir a decência, a modéstia, a inocência.2.sentimento e atitude
desenvolvidos por uma educação rígida calcada em conceitos culturais, ger. de base religiosa, que
impedem que certas partes do corpo sejam expostas com naturalidade, sem constrangimento [A
amplitude e a distribuição dessas partes variam de acordo com as culturas.3.vergonha,
constrangimento, de base ger. cultural, para falar a respeito ou praticar determinados atos ligados à
área da sexualidade, das funções fisiológicas, dos sentimentos íntimos, da afetividade etc.; recato,
decência, pudicícia, pundonor."atentado ao p."4.sentimento de vergonha com respeito a atos que
ferem as qualidades de caráter de um indivíduo, como a decência, a honestidade, a honra etc.; pejo.
"ficou rubro de p. quando suspeitaram da sua honestidade" Origem ⊙ ETIM lat. pŭdor,ōris 'vergonha,
pejo'”
55
SILVEIRA. Armando Zenon da. O “pudor” perante as contravenções Penais. Disponível em:
https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/838. Acesso em 11 de novembro de
2017. Sem paginação.
Assim, é evidente que o caso em análise não se classificaria na conduta
descrita na contravenção penal, a começar pela diversidade do bem jurídico. Isto
porque, conforme descrito, a vítima teve sua dignidade sexual ultrajada e liberdade
sexual tolhida, não se tratando de um mero ataque ao seu pudor ou inocência.
Ademais como bem destacado pelo autor, o pudor é elo ligado à moralidade
da sociedade média, conceito que vincula o Art. 61 da Lei de Contravenções Penais
ao pudor público da população que é atacada com a Contravenção do autor, mas
não se relaciona ao caráter íntimo de violação sexual da vítima atacada, motivo pelo
qual a classificação realizada pelo magistrado se tratou de uma verdadeira injustiça
com a vítima.
O sujeito ativo e passivo da contravenção penal pode ser qualquer pessoa,
homem ou mulher. No caso da vítima, entretanto, deve ser maior de 14 (quatorze
anos, pois no caso de menor de 14 se enquadraria na hipótese de estupro de
vulnerável, do art. 217-A.
A vítima do caso concreto poderia em princípio se enquadrar nas
especificações da Contravenção Penal, assim como o autor. Porém como já
descrito, houve grave erro quanto ao bem jurídico negligenciado pelo autor, caso em
que a Contravenção Penal não faz jus a conduta do agressor.
O núcleo típico do dispositivo é importunar, no sentido de perturbar a vítima
fora de seu estado comum. Silveira acrescenta que, enquanto não há dúvida quanto
à necessidade de que o ato se dê em local público ou acessível ao público, a
doutrina e jurisprudência se contradiz quanto à forma necessária a provocar à
importunação.
Como exemplos, temos os casos de “encoxada” e toques considerados
lascivos, como na região dos seios, além de verbalizações ou gestuais
pornográficos, desde que não se confundam com a injúria, ou ocorram em locais
particulares, conduta que se enquadra no art. 65 da Lei de Contravenções Penais. 56

56
SILVEIRA. Armando Zenon da. O “pudor” perante as contravenções Penais. Disponível em:
https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/838. Acesso em 11 de novembro de
2017. Sem paginação.
No caso de agressões de menor gravidade, conforme os exemplos acima, é
possível que se enquadre como contravenção penal, pois ferem apenas o recato da
vítima, ou seja, não são graves o suficiente para lhe ferir a dignidade sexual, como o
caso em que um homem ejacula sobre uma mulher, caso em que a gravidade,
mesmo para um olhar do senso comum é bem maior.
De acordo com o art. 4° da Lei de Contravenções Penais, nenhuma
contravenção admite tentativa, portanto a Contravenção se consuma no momento
em que ocorre a importunação da vítima em local público.

4.1 Estupro (art. 213 do Código Penal)

Conforme abordado anteriormente, a lei 12. 015/09 trouxe alterações que


primaram pela observância do princípio da dignidade humana e liberdade sexual.
Nucci afirma57 que uma das mais importantes alterações trazidas pela Lei
12.015/2009 é a junção em um único tipo penal, das condutas anteriormente
previstas no art. 213 e 214 do Código, que passam a funcionar em um dispositivo, o
art. 213 do Código Penal.
A redação do art. 213 passa a trazer como estupro não somente a conjunção
carnal, mas qualquer ato libidinoso relacionado. Ainda, o sujeito passivo e ativo do
crime é ampliado, possibilitando que o homem possa figurar como vítima,
possibilidade que apesar de rara no campo prático, não era protegida pelo direito
penal. A mulher também pode figurar como sujeito ativo diretamente de acordo com
a nova redação. Assim é a ampliada também a possibilidade para que todos sejam
igualmente protegidos, independente de gênero e sexualidade.
58
Nucci ressalta que o atentado violento ao pudor, crime comum regulado no
art. 214, poderia ser praticado tanto por homens como mulheres, sendo que as
definições do sujeito passivo se comportavam de forma semelhante. Para o autor,

57
NUCCI, Guilherme de Souza ; ALVES, Jamil Chaim ; BARONE, Rafael ; BURRI, Juliana ; CUNHA,
Patrícia ; ZANON, Raphael . O crime de estupro sob o prisma da Lei 12.015/2009 (arts. 213 e 217-A
do CP). Revista dos Tribunais (São Paulo. Impresso), v. 902, p. 395-422, 2010.

58
Idem. p. 395-492.
considerava-se à época que as consequências para a mulher eram mais gravosas
que ao homem. Para corroborar, cita Nelson Hungria:

“Pode-se criticar a lei porque limitou a noção de estupro (...), mas não pretender que seja aplicada ao
arrepio do seu texto (...). Mesmo a crítica, porém, não procede. O valor
social do homem é muito menos prejudicado pela violência carnal do que a
mulher, de modo que, em princípio, não se justifica, para o tratamento penal,
a equiparação dos dois casos. Quando tal violência contra mulher resulta na
cópula vagínica, e ainda que não se trate de virgo intacta, pode acarretar o
engravidamento consequência tão grave, no caso, que a lei autoriza a
prática do aborto (...), embora este represente um sério perigo à saúde,
quando não à vida da paciente”59.

Ressalta-se que o texto legal passou também a entender irrelevante a


moralidade da vítima, conforme leciona Guilherme de Souza Nucci, já que o bem
jurídico a ser protegido é a dignidade sexual da vítima, que tem o direito de dispor
livremente de seu corpo e sexualidade.
Outra mudança importante, na nova redação, considera o autor, é a
permissão do aborto nos casos de gravidez resultante de estupro, 182, inciso II, do
Código Penal, não se fazendo mais necessária a utilização de analogia. 60
Entretanto, atualmente a alteração mais polêmica é a aquela que vincula o ato
libidinoso que antecede a conjunção carnal e o classifica como estupro, já que
entende-se que o ato libidinoso também é passível de ferir fortemente a dignidade
da vítima.
Neste contexto, cabe analisar que no caso em estudo, houve assim como
disposto na classificação doutrinária, um ato libidinoso considerado grave, mas que
não se encaixa na subsunção do art. 213 do Código Penal por não se adequar ao
elemento objetivo do delito, conforme será ulteriormente analisado.
Dispõe o art. 213 do Código Penal:61

59
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. V I, Tomo II. São Paulo: Forense, 1983. p.
117-118.

60
Idem. P.117-118.

61
Brasil. Decreto Lei n° 2848 de 07 de Dezembro de 1940, modificado pela Lei 12.015/2009.
“Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal
ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
(Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18
(dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015,
de 2009)
§ 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18
(dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015,
de 2009)”
Para entender a porque o caso em análise não poderia ser classificado como
estupro é necessário analisar primeiramente o que seria o crime de estupro, seu
bem jurídico, sujeitos ativo e passivo, elemento objetivo e subjetivo entre outros
caracteres. Para o doutrinador Luiz Regis Prado, no delito de estupro tutela-se a
liberdade sexual da pessoa em sentido amplo, incluindo-se aí a integridade e
autonomia sexual. Protege-se portanto no art. 213 do Código Penal o consentimento
e a formação da vontade na relação sexual.62
Para Cezar Roberto Bittencourt tutela-se a faculdade de tanto o homem
quanto a mulher escolherem livremente seus parceiros sexuais, podendo recusar
inclusive o próprio cônjuge. Para o autor é importante reconhecer que a liberdade
sexual se aplica independente do gênero, pois para o homem sempre foi
reconhecido tal direito.63

Em síntese, conforme Bittencourt:

“protege-se, acima de tudo, a dignidade sexual individual, de homem e mulher,


indistintamente, consubstanciada na liberdade sexual e direito de
escolha. Admitimos, como limitações possíveis, somente no plano
ético-moral, o respeito mútuo e a fidelidade que os parceiros
estabelecem nas suas relações próprias de vida em comum. Enfim, o
presente tipo penal, a partir da redação determinada pela Lei n.
12.015/2009, insere-se na finalidade abrangente de garantir a todo
ser humano, que tenha capacidade de se autodeterminar
sexualmente, que o faça com liberdade de escolha e vontade
consciente; pretende-se, em outros termos, assegurar que a
atividade sexual humana seja realizada livremente por todos.”

62
PRADO. Luiz Regis.Curso de Direito Penal Brasileiro.2ª ed. São Paulo: RT, 2003. Pg. 600.
63
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 4. Dos Crimes contra a
dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. São Paulo: Saraiva. 6 edição, 2012. Pg. 92.
Ou seja, o bem jurídico tutela a capacidade de dispor livremente de seu corpo,
de decidir pela prática ou não da relação sexual e ainda decidir-se de forma
consciente por sujeitar-se ou não as vontades e desejos de seu parceiro.
A liberdade sexual consiste em parte autônoma da liberdade, que é individual
e deve ser pensada e exercida de forma livre ressalvada a apenas a liberdade
alheia, além do direito de não envolvimento ativo e passivo em atividade de cunho
sexual e ainda, conforme afirma Regis Prado, no direito de repelir agressões sexuais
de terceiros.64 Assim, divide-se em direito positivo e negativo, ou seja, de exercer ou
não exercer a sexualidade, de participar ou não participar de alguma atividade
sexual e de repelir iniciativas e agressões de terceiros.
O bem jurídico em questão é recorrente nas outras modalidade de crimes
contra a liberdade sexual e se amolda perfeitamente ao bem jurídico atacado pelo
agressor no caso em análise, motivo pelo qual sua caracterização é essencial para a
tipificação de qualquer delito no rol dos crimes contra a dignidade sexual, como no
caso em que foi tolhida a liberdade da vítima, que pega de surpresa não pode
escolher participar ou não do ato sexual.
O sujeito ativo do delito de estupro, na ótica da Lei 12.015/2009 pode ser
tanto o homem como a mulher, conforme sustenta Bitencourt, já que a mulher pode
submeter o homem à prática de ato sexual contra a sua vontade e vice-versa. O
autor ressalta que tal identificação advém do fato de que, conforme o art. 5º, I, da
CF, os direitos e obrigações das mulheres são constitucionalmente iguais, inclusive
no plano sexual. 65
De acordo com o autor, a possibilidade de que tanto o homem quanto a
mulher sejam autores ou vítimas do crime de estupro também amplia as hipóteses
de participação em sentido estrito, que são perfeitamente possíveis, incluindo aí a
presença de e mulheres em qualquer dos polos (ativo ou passivo). Afirma ainda que
ampliam também o alcance do concurso eventual de pessoas.66

64
PRADO. Luiz Regis.Curso de Direito Penal Brasileiro.2ª ed. São Paulo: RT, 2003. Pg, 600.

65
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 4. Dos Crimes contra a
dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. São Paulo: Saraiva. 6 edição, 2012. Pg. 95.
66
Ibidem. Pg. 95.
Além de crime comum, não importa ao crime de estupro a conduta da vítima,
que conforme afirma o doutrinador assegura-se a liberdade sexual de todos,
independentemente de idade, virgindade, ou aspecto moral. O sujeito passivo ou
ativo também, por não se vincular ao gênero desvincula a concepção de que só
pode haver estupro numa relação cis e heterossexual, mudança importante no
cenário dos crimes contra a liberdade sexual, já que passa a se proteger um número
maior de vítimas.
O tipo objetivo do crime de estupro, conforme afirma Luiz Regis Prado,
consiste em constranger (forçar, compelir, obrigar) a vítima, mediante violência ou
grave ameaça a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ela se
pratique outro ato libidinoso. 67

De acordo com o doutrinador a incriminação do Art. 213, por sua vez, alcança
tanto a conduta do agente que constrange a vítima a realizar o ato libidinoso de
modo ativo como o que submete a uma situação em que se permite que com ela
seja praticado o ato.68
Para caracterização do crime de estupro, basta que a vítima exprima seu não
consentimento de forma objetiva e com clareza, ou seja, não é necessário que a
vítima tente repelir fisicamente um agressor tipicamente mais forte que ela. Luiz
Regis Prado acrescenta que a violência a que se refere o tipo penal é a de cunho
físico, enquanto a grave ameaça é aquela que causa grande temor na vítima, a
ponto de realizar a conjunção carnal ou ato libidinoso ao qual a compele o agressor.
Em geral, ressalta, refere-se a um mal imediato, capaz de infligir medo e
irracionalidade a ponto da vítima se sujeitar a tais atos. 69
A ameaça, por sua vez, pode ser indireta e envolvendo terceiros, por
exemplo, se o estuprador ameaça tirar a vida do filho da vítima caso esta não
concorde em ter relações sexuais com ele.
Tal caracterização por si só exclui a possibilidade de que a conduta narrada
se enquadre como crime de estupro, já que não houve violência no ataque à vítima

67
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro.2ª ed. São Paulo: RT, 2003. Pg. 603.

68
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro.2ª ed. São Paulo: RT, 2003. Pg. 603.
69
Ibidem. Pg. 603.
durante o trajeto de ônibus na Avenida Paulista, nem houve contato suficiente para
que o autor a ameaçasse. O autor nesse caso, apenas se aproveitou da distração da
vítima para concretizar seu intuito.
Para Luiz Regis Prado, a surpresa ou destreza também consiste em violência
quando na definição de Nelson Hungria:

“a rispidez e insídia do ato, inspirados pela certeza do pleno dissentimento do sujeito


passivo e pelo propósito de satisfazer mais facilmente o desejo
lascivo, têm caráter essencial, senão formal, de violência”70

Entretanto, tal suposição se trataria de interpretação extensiva e analogia,


vedada na seara do direito penal e que implicaria em analogia em desfavor do réu,
como no caso apresentado, em que o autor do ato libidinoso contra a vítima poderia
ser incriminado pelo gravíssimo crime de estupro.
Portanto, acertadamente, Bitencourt ressalta que não é possível interpretação
no sentido de que o agente que força a vítima a praticar ato libidinoso por pegá-la de
surpresa, como no caso sob discussão, seria uma forma de violência, por se tratar
de analogia, já que não está expresso no tipo objetivo do delito de estupro a
modalidade surpresa.
O tipo subjetivo, de acordo com Luiz Regis Prado, é representado pelo dolo,
expresso pela consciência e a vontade de realizar os tipos subjetivos do injusto, ou
seja, constranger alguém a praticar e assim satisfazer desejo sexual próprio ou
alheio.71
A consumação, de acordo com o autor, se perfaz com a introdução parcial ou
completa do pênis na cavidade vaginal, ou com a prática de ato libidinoso, assim, o
doutrinador classifica o crime de estupro como delito de lesão. 72
No estupro, a tentativa é admitida, já que pode ocorrer que, por circunstâncias
alheias a vontade do agente o estupro não se consume, como por exemplo, a
interferência de um terceiro que socorre a vítima em situação de violência.73

70
CF, Hungria, Op. Cit. P. 127
71
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro.2ª ed. São Paulo: RT, 2003. Pg. 603.
72
Ibidem. Pg. 603
73
Ibidem. Pg. 603.
Luiz Regis Prado aponta ainda que a realização de vários atos com a mesma
vítima constitui um só crime, entretanto, tais circunstâncias devem ser consideradas
na dosimetria da pena, incluídas aí nas circunstâncias judicias apontadas pelo art.
59 do Código Penal. Cabem no dispositivo legal, a continuação delitiva e o concurso
quando preenchidos os requisitos dos Arts. 69,70 e 71 do Código Penal. 74
De acordo com Luiz Regis Prado75, trata-se de delito qualificado quando da
conduta (estupro) decorre lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor
de 18 e maior de 14 anos, e ainda, se resulta morte (ver art. 213 § 1o  e § 2o  CP).
Na hipótese do parágrafo primeiro, primeira parte, trata-se de um delito
classificado pelo resultado, pois o autor tem intenção/dolo na conduta antecedente
(praticar conjunção carnal ou ato libidinoso) e culpa na consequente (lesão corporal
grave ou morte da vítima). Em situação diversa, caso não se enquadre em culpa e
sim em dolo a conduta do agente, este deverá responder em concurso (art.69),
conforme aduz o autor.76As lesões leves, ou vias de fato, perfazem a exigência do
tipo objetivo (violência), sendo absorvidas pelo estupro. 77
Na hipótese em que o delito conclui-se de forma tentada, mas em razão da
conduta ocorre lesão corporal grave ou morte da vítima, há divergências na
classificação. O doutrinador afirma que para alguns haverá tentativa de estupro
qualificado, enquanto para outros, como Antônio Lopes Monteiro, caberia a tese
delito qualificado consumado. 78
Quanto ao resultado previsto no § 1o  primeira parte e no § 2o  do art. 213 do
79
Código Penal, PRADO afirma que advém da conduta do agente e não apenas da
violência que ele teria empregado para concretizar o delito, portanto, seria
qualificado se um dos dois resultados ocorrerem em decorrência da violência ou
grave ameaça.

74
Ibidem. Pg. 603.
75
Ibidem. Pg. 604.

76
PRADO. Luiz Regis.Curso de Direito Penal Brasileiro.2ª ed. São Paulo: RT, 2003.Pg.604.
77
Ibidem Pg. 604.
78
Ibidem. Pg. 604.
79
Ibidem. Pg. 605.
Já na segunda parte do § 1o, afirma o autor que se trata de situação diversa,
já que aqui a idade da vítima atua como desvalor do delito pois propicia maior
eficácia na concreção do resultado. 80
O art. 213 do Código Penal estabelece pena de 6 a 10 anos de prisão para
aqueles que cometerem o crime de estupro. Entretanto, caso a conduta resulte em
lesão corporal grave na vítima ou se a vítima for menor de 18 anos e maior de 14
anos a pena é de reclusão de 8 (oito) a 12 (doze) anos (art. 213, § 1o). Se resultar
em morte, é de 12 a 30 anos de reclusão (art. 213, § 2o, CP).81 Trata-se de ação
penal pública condicionada à representação, enquanto no caso de vítima menor de
18 anos ou vulnerável, a ação será pública incondicionada (Art. 225 CP).
Ou seja, como se pode observar trata-se de uma pena elevada, não devendo
em hipótese alguma ser aplicada analogia em desfavor do réu, já que o delito de
estupro também se reveste de maior gravidade pelo fato de que com as alterações
trazidas pela Lei de Crimes Hediondos, passou a ser insuscetível de graça, indulto,
anistia, e fiança.
A pena para o crime de estupro deve ser cumprida portanto em regime
fechado. Por se tratar de crime hediondo é cabível prisão temporária, pelo prazo de
trinta dias e prorrogável por mais 30, em caso de extrema e comprovada
necessidade (Lei 8.072/90).82

4.3 Violação sexual mediante fraude (Art. 215 do Código Penal)

Tendo em vista que incabíveis a classificação da conduta analisada sob as


imputações do Art. 61 da Lei de Contravenções Penais e ainda, do Art. 213 do
Código Penal, resta analisar, se conforme especulações da comunidade jurídica o
crime cometido por Novais seria aquele disposto no Art. 215 do Código Penal.
Conforme o Art. 215 do Código Penal:

“Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude
ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de
vontade da vítima: Pena — reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

80
PRADO. Luiz Regis.Curso de Direito Penal Brasileiro.2ª ed. São Paulo: RT, 2003.Pg. Pg. 605.
81
Ibidem. Pg. 605.
82
Ibidem. Pg. 605.
Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem
econômica, aplica-se também multa. • Caput e parágrafo único com
redação determinada pela Lei n. 12.015, de 7 de agosto de 2009.”

Bitencourt consiga que através das alterações trazidas pela Lei n°


12.015/2009, ocorreu unificação da chamada posse sexual mediante fraude e
atentado ao pudor mediante fraude em uma única figura delituosa.
Consequentemente, ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém
se resumem ao delito de violência sexual mediante fraude. Para o doutrinador, tal
unificação torna o crime em crime de ação múltipla ou tipo alternativo misto, pois
mesmo que o autor pratique uma ou duas condutas comete apenas um crime. 83
Uma das modificações trazidas pela Lei n° 12.015/2009 foi a que transformou
a posse sexual mediante fraude em crime comum, consequentemente eliminando a
tutela penal identificada apenas à mulher e à virgindade, dando-se tratamento
igualitário a homens e mulheres, como recomenda o Estado democrático de Direito.
84

Na violação sexual mediante fraude o bem jurídico protegido é a liberdade


sexual do indivíduo, que tem seu consentimento violado pelo emprego de artifício
(fraude) ou outro meio similar. O bem jurídico nesse caso é o mesmo protegido no
caso do crime de estupro, quais sejam, a liberdade individual e dignidade sexual de
todo ser humano que tenha capacidade de autodeterminar-se sexualmente.
Os sujeitos ativo e passivo deste instituto, assim como no crime de estupro
também é comum, tendo em vista que seus autores e vítimas não precisam ter
característica específica, podendo ser de qualquer gênero, desde que maiores de 14
(quatorze) anos, pois para vítimas menores de 14 o crime seria de estupro de
vulnerável.
Entretanto, conforme lembra Bitencourt tal concepção não pode retroagir para
fatos praticados por mulheres antes da vigência da Lei 12.015/2009, não se
aplicando também ao período anterior quando o sujeito passivo era homem, já que
anteriormente cunhava-se no dispositivo legal o termo “mulher” como sujeito passivo

83
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 4. Dos Crimes contra a
dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. São Paulo: Saraiva. 6 edição, 2012. Pg. 136.
84
Ibidem. Pg. 136.
e “conjunção carnal” como conduta, limitando a admissão para somente homem
como sujeito ativo.85
Tal limitação e identificação dos sujeitos ativo e passivo também não diferem
das limitações do crime de estupro, motivo pelo qual, para diferenciá-los e identificar
qual seria a melhor classificação para o delito em análise, é necessário analisar o
tipo objetivo e subjetivo da violação sexual mediante fraude.
A violação sexual mediante fraude é crime de ação múltipla que consiste em
ter e praticar conjunção carnal ou ato libidinoso com alguém. Para o doutrinador
Cezar Bitencourt a conjunção carnal se limita a introdução do pênis na vagina,
sendo portanto possível apenas entre homem e mulher. Porém, ao introduzir a
expressão “ou outro ato libidinoso” o tipo objetivo foi expandido e passou a englobar
todos os tipos de sujeito ativo e passivo, não se limitando ao homem como sujeito
ativo e mulher como passivo e assim se aproximando mais da realidade a nível de
política criminal.86
Bitencourt acrescenta que é indispensável que a vítima tenha sido ludibriada
ou iludida, para configurar a fraude, encaixando-se a hipótese de um médico que,
durante exames de rotina, pratica toques desnecessários no paciente com o objetivo
de satisfazer sua lascívia. Acrescenta ainda que não mais se exige a honestidade da
mulher para configuração da figura típica, que foi revogado a partir da edição da Lei
11.106/2005.

A expressão “praticar outro ato libidinoso com alguém” se insere no tipo


objetivo do art. 215 com a redação da Lei 12.015/2009, subtraindo as definições de
atentado ao pudor e atentado ao pudor mediante fraude (antigos Artigos 214 e 216
do Código Penal) e consiste no fato do agente praticar outra espécie de ato, que não
a conjunção carnal, com a vítima. Ressalta Bitencourt que o dispositivo revogado
induzia o ofendido a agir, praticando ou submetendo-se a conjunção carnal,
retirando o animus do sujeito ativo.87

85
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 4. Dos Crimes contra a
dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. São Paulo: Saraiva. 6 edição, 2012. Pg. 137.
86
Ibidem. Pg. 137.
87
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 4. Dos Crimes contra a
dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. São Paulo: Saraiva. 6 edição, 2012. p. 138.
Portanto, para que seja caracterizada a violação sexual mediante fraude, não
pode ocorrer violência ou grave ameaça, caso ocorra, se caracteriza crime de
estupro, conforme o art. 213 do Código Penal.
Para Bitencourt, a fraude é:

“é o engodo, o ardil, o artifício que leva ao engano. A fraude deve constituir meio idôneo
para enganar o ofendido (homem ou mulher, dependendo das
demais circunstâncias) sobre a identidade pessoal do agente ou
sobre a legitimidade da conjunção carnal ou do ato libidinoso diverso
(preferíamos esta expressão, que identificava com maior clareza sua
distinção com a conjunção carnal). Contudo, a fraude não pode
anular a capacidade de entendimento ou mesmo de resistência da
vítima. Nessa linha, exemplifica Rogério Sanches Cunha, in verbis:
“A fraude utilizada na execução do crime não pode anular a
capacidade de resistência da vítima, caso em que estará configurado
o delito de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP)”6. Contudo, a
fraude deve constituir meio idôneo para enganar o ofendido — que
se encontra de boafé — sobre a identidade pessoal do agente ou
sobre a legitimidade da relação carnal.”88

Ou seja, a vítima deve ser levada a erro, sobre o caráter do agente ou sobre a
natureza da relação sexual para caracterizar a fraude. Em outros termos, a vítima
precisa ser enganada pelo agente, sob pena de não se configurar a fraude; pois no
caso de dúvida a fraude seria descaracterizada. Bitencourt cita como exemplo a
substituição de uma pessoa por outra sem que a vítima perceba.
Compreendido que a fraude é um dos meios para concretizar as condutas
previstas no dispositivo, resta analisar o segundo meio, qual seja, quando o autor ao
invés de proceder mediante fraude para executar a conduta, utiliza de outro meio
que impeça ou dificulte a livre manifestação da vítima.
Aqui, é claro que apesar do título do dispositivo legal “violação sexual
mediante fraude” a segunda parte não se limita à fraude, à enganação da vítima,
pois então seria desnecessário que o legislador escrevesse que além da violação
sexual mediante fraude é possível que o autor realize o ato de outra maneira que
dificulte ou impeça a livre manifestação da vítima.
Quanto a este outro meio, Bitencourt concorda que se trata de uma forma
genérica das condutas serem praticadas, desde tal meio de execução que não

88
Ibidem. p. 138.
impeça totalmente a manifestação de vontade da vítima, caso em que se encontraria
tipificado o crime de estupro de vulnerável, disposto no art. 217-A do Código Penal. 89
Outrossim, tendo em vista que o este outro meio é fórmula genérica,
observadas tais limitações e os princípio da proporcionalidade, essa parece ser a
melhor definição do que ocorreu no episódio do ônibus em São Paulo, já que a
surpresa com que o agente realizou o ato libidinoso dificultou a livre manifestação da
vítima contra o ato, mesmo que não impedisse totalmente sua defesa.
Para Bitencourt, o elemento subjetivo da violação sexual mediante fraude
consiste no dolo do agente, constituído por vontade consciente de ter conjunção
carnal ou praticar outro ato libidinoso contra a vítima, ou permitir com que ela se
pratique (conduta passiva) por meio do emprego de fraude ou outro meio que
dificulte ou impeça a livre manifestação de vontade da vítima, como ocorreu no caso
em questão.90
Acrescenta que o dolo deve ser atual, eminente, não admitindo a conduta
culposa por parte do autor. Em suas palavras:

“Em outras palavras, a vontade deve abranger, igualmente, a ação (a prática de conjunção
carnal ou outro ato libidinoso), o resultado (execução efetiva da ação
proibida), os meios (fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a
livre manifestação de vontade da vítima) e o nexo causal (relação de
causa e efeito). Por isso, quando o processo intelectual-volitivo não
atinge um dos componentes da ação descrita na lei, o dolo não se
aperfeiçoa, isto é, não se completa. Na realidade, o dolo somente se
configura com a presença simultânea da consciência e da vontade
de todos os elementos constitutivos do tipo penal. Com efeito,
quando o processo intelectual-volitivo não abrange qualquer dos
requisitos da ação descrita na lei, o dolo não se completa, e sem dolo
não há crime, pois não há previsão da modalidade culposa.”91

Outra necessidade do elemento subjetivo do delito, para o doutrinador,


consiste no fim especial de agir ou elemento subjetivo especial do injusto, que
consiste em forma independente do dolo e sua ausência descaracteriza o elemento

89
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 4. Dos Crimes contra a
dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. São Paulo: Saraiva. 6 ed. 2012. p. 138.
90
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 4. Dos Crimes contra a
dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. São Paulo: Saraiva. 6 edição, 2012. p. 138.

91
Ibidem. p. 139.
subjetivo. Na violação sexual mediante fraude, é necessário portanto a vontade do
agente em possuir sexualmente a vítima ou realizar outro ato libidinoso.
Aqui também coaduna a classificação do delito em análise, visto que o autor
do crime de violação sexual mediante fraude, ocorrido no ônibus em São Paulo,
possuía, o intuito de satisfazer seu desejo sexual usando a desatenção da vítima.
De acordo com o autor, o crime constitui um crime de tendência, no qual na
classificação de Welzel “a tendência especial de ação, sobretudo se trata aqui da
tendência voluptuosa nos delitos de lascívia. Ação lasciva é exclusivamente a lesão
objetiva do pudor levada a efeito com tendência subjetiva voluptuosa”.92
De acordo com o doutrinador, o crime admite tentativa, quando por razão
alheia a vontade do agente seu intuito não se consuma (seja ela a conjunção carnal
ou o ato libidinoso), quando por exemplo, a vítima percebe a fraude antes que o ato
libidinoso se consuma.93
Com pena de dois a seis anos de reclusão, o tipo penal compreende
perfeitamente os princípios da razoabilidade e proporcionalidade quanto à situação
concreta analisada, quando comparado à pena do crime de estupro, de 6 a 12 anos,
motivo pelo qual as condutas intermediárias ao crime de estupro podem
perfeitamente se encaixar no delito em questão.

92
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 4. Dos Crimes contra a
dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. São Paulo: Saraiva. 6 edição, 2012. Pg. 139.
93
Ibidem. p. 140.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após entender a história inserida no contexto dos crimes de estupro desde a


antiguidade até o momento atual, pode-se observar o caminho percorrido no
ordenamento jurídico brasileiro que culminou no atual capítulo de crimes contra a
dignidade sexual. Entre a antiga punição de morte prevista nas Ordenações
Filipinas, ainda enquanto o país se encontrava sob o jugo do Império Português,
passaram-se diversas alterações até a edição da Constituição Federal e após,
somente em 2009 o bem jurídico protegido pelo rol de tais crimes passou a ser a
dignidade sexual, considerando o princípio da dignidade e liberdade sexual do
indivíduo.
Foi através da introdução dos Princípios da Dignidade Humana, da Igualdade,
da Liberdade Sexual, da Legalidade e Proporcionalidade que se fez possível
entender melhor a temática dos crimes contra a liberdade sexual e é partir deles que
se buscou entender no presente trabalho qual seria a melhor tipificação do crime
que ocorreu na cidade de São Paulo, onde, em um ônibus da grande metrópole, um
homem, aproveitando-se da distração da vítima (mulher) se masturbou e ejaculou
em seu pescoço e braço.
A decisão do juiz competente para julgar o caso apontou que a conduta do
agressor se amolda às disposições da Lei de Contravenções Penais, mais
especificamente no Art. 61 do referido dispositivo legal, entretanto, tal classificação
se mostrou desproporcional pela pena aplicada (multa) e ainda sob a análise do bem
jurídico tutelado pelo respectivo artigo, o pudor, que passa longe da transgressão
contra a dignidade e liberdade sexual sofrida pela vítima.
Identificado que se trata portanto de um crime que fere o caráter íntimo da
liberdade sexual da vítima, analisou-se o disposto no Art. 213 do Código Penal,
apenas para descobrir que a tentativa de classificação da conduta do agressor em
tal dispositivo, feriria o Princípio da Legalidade, já que se trataria de analogia
aplicada ao tipo objetivo do crime, que não inclui a modalidade “mediante surpresa”
em seu rol.
Finalmente, com a análise do 215 do Código Penal, pôde-se observar que a
violação sexual mediante fraude, que inclui o tipo “outro meio que impeça ou dificulte
a livre manifestação da vítima” seria a melhor classificação para a conduta do autor
no caso em questão, se amoldando perfeitamente no bem jurídico transgredido,
assim como no tipo objetivo do delito, já que a vítima em questão foi pega de
surpresa pela ação do autor, que dificultou sua defesa. Tal imputação, conforme se
ressaltou, se amolda perfeitamente à conduta do acusado, obedecendo tanto aos
Princípios da Legalidade quanto à Proporcionalidade no quesito da tipicidade e pena
aplicadas.
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