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Resumo
A ida da criança para o centro de educação infantil pode ser considerada como um momento
de ruptura do laço estabelecido entre o bebê e a sua mãe, causando um desconforto e um
estranhamento perante este novo ambiente por parte de ambos. No momento da separação
entra em cena a figura do educador, que desempenhará a função até então exercida pela
cuidadora natural, a mãe. O vínculo que se forma entre as partes envolve fatores como
autonomia, afetividade e segurança emocional, facilitando a entrada e permanência da criança
na instituição.Deste modo, o ambiente da creche passa a ser um lugar de existência do bebê e
por isso, torna-se também espaço para a detecção de riscos psíquicos precoces em bebês de
zero a dezoito meses. Este trabalho decorre de 03 pesquisas realizadas, uma em âmbito
nacional e as outras duas de caráter regional. Desenvolvida pelo Grupo Nacional de Pesquisa,
sob a chancela do Ministério da Saúde e da Fapesp, a Pesquisa Multicêntrica de Indicadores
Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil (IRDI), desenvolvida no período de 2001 a
2008, fundamentou-se em pressupostos teóricos psicanalíticos sobre a constituição psíquica
de crianças de 0 a 36 meses para elaborar e validar indicadores clínicos para a detecção
precoce de transtornos psíquicos do desenvolvimento infantil, observáveis nos primeiros
dezoito meses de vida da criança. Um projeto piloto, de aplicação do IRDI em ambiente de
educação infantil, foi realizado em 2007 num Centro Municipal de Educação Infantil,
indicando a viabilidade e a relevância desta iniciativa (Bernardino, Vaz, Quadros & Vaz,
2008), já verificada em outra pesquisa conduzida por Mariotto (2007). Discutiremos neste
trabalho os principais resultados obtidos, buscando localizar as particularidades dos laços
entre cuidador e bebê, pela verificação de fenômenos cotidianos presentes nas creches, com
destaque sobre a posição que o educador ocupa nessa relação.
Introdução
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Desenvolvimento
A pesquisa IRDI foi realizada no período 2000-2008 pelo GNP que desenvolveu um
instrumento composto por 31 indicadores clínicos de risco psíquico ou de problemas de
desenvolvimento infantil observáveis nos primeiros 18 meses de vida da criança: o IRDI
(tabela 1). O estudo utilizou um desenho de corte transversal seguido por estudo longitudinal.
A amostra foi composta por 727 crianças nas faixas etárias de 0 a 4 meses incompletos, 4 a 8
meses incompletos, 8 a 12 meses incompletos e 12 a 18 meses, randomicamente selecionada
entre aquelas que procuraram as consultas pediátricas de rotina em 11 serviços de saúde de
nove cidades brasileiras (Belém do Pará, Brasília, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife,
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Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo com 3 centros). Os pediatras que aplicaram o protocolo
IRDI foram treinados para esse fim.
Durante os exames, foram anotados os indicadores clínicos (IRDI) presentes, ausentes
e não verificados. Nesta pesquisa, é a ausência de indicadores que sugere um risco para o
desenvolvimento da criança. Assim, os IRDIS, quando presentes, são indicadores de
desenvolvimento, e quando ausentes, são indicadores de risco para o desenvolvimento.
Estes indicadores foram concebidos segundo os pressupostos teóricos da pesquisa
IRDI (KUPFER ET AL., 2005), constituídos por quatro eixos que a mãe (ou seu substituto)
deverá sustentar para que ocorra a instalação da subjetividade do bebê para que se instale no
bebê esse circuito de satisfação em seu enlace com o Outro e se organize o seu
desenvolvimento, quais sejam: estabelecimento da demanda da criança; suposição de um
sujeito; alternância presença-ausência; e função paterna – eixos direcionadores na elaboração
dos indicadores clínicos.
O eixo “suposição do sujeito” (SS) supõe, por parte da mãe ou cuidador uma
antecipação da presença de um sujeito psíquico no bebê, que ainda não se encontra, porém,
constituída. Determinadas manifestações do bebê serão interpretados pelo agente cuidador
como atos de intencionalidade. É supor um sujeito no interior de um aparelho reflexo.
No eixo “estabelecimento da demanda” (ED), estão reunidas as primeiras reações
involuntárias que o bebê apresenta ao nascer, tais como o choro, e que serão reconhecidas
pela mãe como um pedido que a criança dirige a ela. Esse reconhecimento permitirá a
construção de uma demanda – para a psicanálise, sempre uma demanda de amor – desse
sujeito a todos com quem vier a relacionar-se. Essa demanda estará na base de toda a
atividade posterior de linguagem e de relação com os outros. (KUPFER ET AL., 2009).
O eixo “alternância presença/ausência” (PA) se define pelas ações maternas que a
tornam alternadamente presente e ausente. A ausência materna é o que exige da criança a
desenvolver um dispositivo subjetivo para a sua simbolização. Ou seja, entre a demanda da
criança e sua satisfação é necessário que se opere um intervalo de onde poderá emergir a
resposta da criança.
Por último, define-se como o lugar de terceira instância, orientada pela dimensão
social, que vai intermediar a díade mãe-bebê. “Uma mãe que está submetida à função paterna
leva em conta, em sua relação com o bebê, os parâmetros que a cultura lhe propõe para
orientar essa relação”(KUPFER et AL., 2009, p. 53)
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Idade em Indicadores:
meses:
0 a 4 meses 1. Quando a criança chora ou grita, a educadora sabe o que ela quer.
incompletos: 2. A educadora fala com a criança num estilo particularmente dirigido a ela
(manhês).
3. A criança reage ao manhês.
4. A educadora propõe algo à criança e aguarda a sua reação.
5. Há trocas de olhares entre a criança e a educadora .
4 a 8 meses 6. A criança começa a diferenciar o dia da noite.
incompletos: 7. A criança utiliza sinais diferentes para expressar suas diferentes necessidades.
8. A criança solicita a educadora e faz um intervalo para aguardar sua resposta.
9. A cuidadora fala com a criança dirigindo-lhe pequenas frases.
10. A criança reage (sorri, vocaliza) quando a cuidadora ou outra pessoa está se
dirigindo a ela.
11. A criança procura ativamente o olhar da educadora.
12. A educadora dá suporte às iniciativas da criança sem poupar-lhe o esforço.
13. A criança pede a ajuda de outra pessoa sem ficar passiva.
8 a 12 meses 14. A cuidadora percebe que alguns pedidos da criança podem ser uma forma de
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Destacaremos aqui apenas alguns elementos para reflexão obtidos na aplicação deste
protocolo IRDI, pertinentes ao tema que anima este presente trabalho.
De 00 – 04 Meses Incompletos
Foram avaliadas 09 crianças nesta faixa etária. O indicador que teve o pior desempenho
nesta faixa etária foi o terceiro (questão 3 - A criança reage ao mamanhês), apresentando 01
resposta Ausente e 03 Não Verificado.
O mau desempenho deste indicador revela a falha na função exercida pelo educador,
que seria encarregado de interpretar o gesto da criança como apelo a ele dirigido. No encontro
do olhar e na melodia de sua voz a mãe, ou o substituto dela, transmite ao seu filho seu lugar
de sujeito, já antes inscrito em seu inconsciente, pela via do desejo. O desejo inconsciente de
filho, fruto da trama edípica, permeia o relacionamento mãe-bebê e permite à mãe dar ao seu
filho um lugar de vida, de constituição psíquica. (TIMI, 2004). Verificamos aqui como o
papel das educadoras fica à margem desta função, ao sair da singularidade do desejo materno
para o anonimato da situação social.
Interessante notar também que, apesar de lidar com um grupo de bebês, as cuidadoras
interpelam as crianças em determinadas atividades, aguardando sua resposta – referente ao
indicador 04 (a educadora propõe algo à criança e aguarda a sua reação). Observamos que em
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dias mais agitados isso diminui sensivelmente, quando, por exemplo, uma das educadoras
falta.
De 04 - 08 Meses Incompletos
Nesta faixa etária foram protocoladas 07 crianças. Neste período, o indicador que se
destacou foi o 08 - A criança solicita a educadora e faz um intervalo para aguardar sua
resposta. As crianças observadas raramente esperam para serem atendidas, já que estão numa
situação de coletividade. O que nos levou a perceber que em função disso, há momentos em
que as crianças ‘desistem’ de serem escutadas em seu pedido e partem para outra ação, ou
então começam a chorar intensamente, demonstrando urgência no atendimento. Neste sentido
também, observamos que as crianças, sem exceção, procuram ativamente o olhar das
cuidadoras, demonstrando também que, se solicitam sua ajuda isso não as impede de seguir
por conta própria a realizar suas ações, já que dificilmente as educadoras estão disponíveis, o
que faz com que raramente elas dêem suporte na realização de uma tarefa sensório–motora
que comporte alguma dificuldade (indicadores 11, 13 e 12 respectivamente). A impressão que
fica é a de uma disponibilidade indisponível. (MARIOTTO, 2007).
De 08 – 12 Meses Incompletos
De 12 – 18 meses incompletos
Considerações Finais
Na análise dos resultados das crianças dos berçários com as respectivas educadoras
observou-se que na relação estabelecida os 4 eixos sustentados pelas funções: estabelecer a
demanda da criança; supor um sujeito; alternar presença-ausência; instalação da função
paterna; não estão bem estruturados nas faixas etárias avaliadas
Os resultados desta pesquisa mostraram como o trabalho das educadoras da creche
pesquisada, quando comparado com as funções que devem ser desempenhadas para propiciar
a constituição do psiquismo do bebê, nem sempre conseguem atingir este propósito.
Verificamos que um percentual alto desta população apresentou-se como caso, demonstrando
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concretamente que este ambiente educativo não oferece às crianças as condições necessárias
para seu bom desenvolvimento, no que se refere aos aspectos psíquicos.
Na amostra pesquisada, o alto índice de respostas não verificadas ou ausentes no IRDI
apontam para a quantidade de tempo que os bebês, neste ambiente de creche, ficam à mercê
de uma espécie de limbo subjetivo, à espera de um outro que realmente possa exercer o papel
de Outro necessário à sua constituição.
Propor que a creche seja não apenas um lugar de cuidados instrumentais, mas que se
reconheça nela o dispositivo de transmissão de saberes, afirmando sua vocação educativa –
mais do que pedagógica - é localizar também sua responsabilidade no trabalho de prevenção.
Tarefa que vai exigir da equipe não apenas um olhar diferenciado sobre a criança em
constituição, mas também uma abertura para fazer de sua prática uma interrogação
permanente capaz de provocar uma mudança de posição junto à criança que cuida e educa.
Todos estes conceitos aplicados aos bebês adquirem grande relevância na clínica e na
formação dos profissionais que têm, por sua parte, o desafio de trabalhar com a primeira
infância. Françoise Dolto foi pioneira neste campo, segundo ela, a tarefa essencial daquele
que se propõe a trabalhar com bebês e crianças pequenas é “oferecer um encontro válido para
seu psiquismo, um encontro com um outro que respeite seu ser, que mostre um desejo
diferente” (DOLTO, 1999, p.18). Ela defendia um trabalho no qual a enunciação do
profissional estava na primeira linha: “é isto que é importante na linguagem que usamos com
o bebê, por menor que seja: é de sermos verdadeiros, qualquer que seja a verdade” (DOLTO,
1999, p. 18).
Evidencia-se assim, nesta pesquisa, o alto investimento que o profissional da educação
deve fazer na execução do seu trabalho junto aos bebês, pois é convidado a se voltar para cada
bebê como sujeito único, estabelecendo com ele uma relação qualitativamente suficiente para
incidir em sua constituição subjetiva; trabalho, portanto, que lhe exige uma implicação de
desejo. Neste sentido, uma formação sólida destes profissionais deveria incluir conhecimentos
sobre a constituição do sujeito e discussões constantes de seu trabalho através da criação de
lugares de escuta no ambiente escolar.
Através da utilização do protocolo IRDI, foi possível integrar as idéias difundidas pela
psicanálise de crianças e o contexto educacional. Pode-se concluir afirmando que este
instrumento é útil para a avaliação da atuação das educadoras em sua relação com os
bebês, em seu papel de promotoras da educação. Tomamos aí o significante
“educação” no seu sentido mais amplo, como a forma princeps de inserção no campo
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simbólico, conforme as idéias de Kupfer (2000), que propõe conceber o ato de educar
como “o ato por meio do qual o Outro primordial se intromete na carne do infans,
transformando-a em linguagem” (BERNARDINO et. AL, 2008, p. 35).
REFERÊNCIAS
TIMI, Melania Salete Ribas. Um bebê não existe sozinho: considerações sobre a clínica
psicanalítica com bebês. Psicologia Argumento, Curitiba, v.22, n.36 p, 49-56, jan./mar.
2004.