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Revista da Biologia (2011) Vol. Esp.

Biogeografia: 18-25 Revisão

Biogeografia baseada em eventos: uma


introdução
Event-based biogeography: an introduction

Renato Recoder
Departamento de Zoologia, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, SP Brasil

Resumo. Biogeografia é um campo de estudo integrativo que procura compreender os Contato do autor:
processos responsáveis pela distribuição dos organismos no espaço, e sua mudança no tempo. renatorecoder@gmail.com
Com o desenvolvimento da disciplina, foram propostos métodos analíticos capazes de inferir a
história biogeográfica de linhagens através da reconstrução dos eventos que teriam alterado as Apoio: FAPESP
distribuições de táxons ao longo do tempo. Estes métodos baseiam-se em modelos explícitos
de custo-benefício, e são utilizados para inferir áreas ancestrais por otimização dos custos Recebido 25set10
dos eventos relacionados (vicariância, dispersão, extinção e duplicação). O desenvolvimento Aceito 10mai11
de modelos capazes de fornecer estimativas estatísticas para os resultados faz dos métodos Publicado 07nov11
baseados em eventos ferramentas interessantes para estudos em biogeografia histórica. Nesta
revisão são discutidos alguns métodos, e fornecido um exemplo de utilização com uma linhagem
de lagartos da América do Sul tropical.
Palavras–chave. Áreas ancestrais, dispersão, filogenia, vicariância.

Abstract. Biogeography is an integrative field of study, which seeks to understand the processes
responsible for the distribution of organisms in space, and its change over time. With the
development of the discipline, several analytical methods have been proposed to infer the
biogeographical history of lineages through the reconstruction of events that may have affected
distributions of taxa through time. These methods are based on explicit models of cost-benefit,
and are used to infer ancestral areas through cost optimization of related events (vicariance,
dispersal, extinction, and duplication). The development of models able to provide statistical
estimates for the results makes the event-based methods interesting tools for studies in historical
biogeography. In this review some methods are discussed, and an example of use with a lineage
of lizards from tropical South America is provided.
Key words. Ancestral areas, dispersal, phylogeny, vicariance.

Introdução compreender que as biotas evoluem, e que sua


composição muda ao longo do tempo. A partir
A biogeografia é um ramo das ciências naturais deste momento, diversos autores puderam de-
que se empenha em compreender os processos bater sobre os mecanismos envolvidos na ori-
responsáveis pela distribuição dos organismos gem e evolução das biotas (Morrone, 2009).
no espaço, e sua mudança através do tempo. É A pesquisa em biogeografia envolve a aná-
um campo de estudo integrativo, pois combi- lise de padrões complexos de distribuição das
na informações obtidas da geografia, biologia espécies. A tarefa é dificultada pelo fato de os
e geologia. Os objetivos recorrentes da discipli- padrões observados resultarem de processos
na envolvem responder perguntas sobre onde ocorridos no passado e que, desta forma, não
ocorrem as espécies, porque ocorrem onde es- podem ser diretamente observados ou testados.
tão, e como a distribuição pode se modificar no Uma abordagem para a inferência dos re-
tempo (Lomolino e col., 2005). sultados de processos evolutivos pretéritos so-
Desde o século XVII, graças ao trabalho bre padrões atuais envolve a análise espacial de
extensivo de naturalistas, tem sido reconhecido correlação entre caracteres observados dos or-
que os continentes possuem diferentes biotas, e ganismos (e.g. ocorrência, variáveis fenotípicas
que a diversidade de espécies não está homoge- contínuas), com variáveis abióticas explanató-
neamente distribuída (Posadas e col., 2006). No rias (Perez e col., 2010). Outra abordagem foca
entanto, apenas com a aceitação da teoria evo- em eventos biogeográficos para inferir padrões
lutiva proposta por Charles Darwin foi possível gerais de distribuição dos organismos, e/ou das
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relações históricas entre áreas de distribuição soma ou perda de áreas ancestrais).


da biota, baseados em um panorama evolutivo Em biogeografia histórica há diferentes
de relação entre os táxons. Esta última é deno- abordagens para inferências dos resultados de
minada por alguns autores de biogeografia his- processos históricos comuns sobre os padrões
tórica (Crisci, 2001; Posadas e col., 2006). atuais de distribuição dos organismos, e os mé-
Um passo fundamental para as análises todos empregados variam dependendo da per-
em biogeografia é a determinação de áreas de gunta a ser explorada (Crisci e col., 2003; Posa-
distribuição das espécies, através de informa- das e col., 2006; Morrone, 2009).
ções geográficas (pontos de ocorrência), e assim Uma das abordagens se baseia na identifi-
permitir o reconhecimento de padrões indivi- cação de padrões generalizados de distribuição
duais de distribuição. Através destes, é possível dos organismos, através da congruência entre
determinar áreas de endemismo, ou seja, áreas de padrões individuais de distribuição. Como
congruência espacial não-aleatória da distribui- exemplos, podem ser citados os métodos para
ção de diferentes táxons (Morrone, 2009; Carva- determinação de áreas de endemismo através
lho, 2011). de parcimônia como na análise de parcimônia
Para as análises em biogeografia histórica de áreas de endemismos (PAE), ou o delinea-
são também necessários panoramas históricos mento de regiões de convergência na distribui-
sobre o qual são feitas as inferências (Crisci e ção da biota (traços generalizados) por métodos
col., 2003). Estes são obtidos através das filoge- como pan-biogeografia (Crisci e col., 2003; Mor-
nias das linhagens, representadas por cladogra- rone, 2009; Carvalho, 2011).
mas. O cladograma (ou árvore filogenética) re- Outra abordagem procura testar a congru-
presenta uma hipótese de relação de parentesco ência entre os diferentes padrões de distribui-
entre os táxons de uma linhagem, que resgatam ção de organismos, a fim de se obter um padrão
a hierarquia histórica de separação dos mesmos geral de relação entre áreas. Por exemplo, se um
(Amorim, 2002). evento geológico causou a ruptura na distribui-
A partir da distribuição de uma linha- ção de uma biota (como na separação de massas
gem, e de uma hipótese filogenética, é possível de terra por deriva continental) é de se esperar
reconstruir as áreas ancestrais para os nós de que eventos similares de diferenciação de espé-
uma filogenia. Área ancestral é a estimativa da cies ocorram nas diferentes áreas resultantes.
área de maior probabilidade de ocorrência do Esta é abordada principalmente pelos métodos
ancestral comum a um grupo de táxons (Crisci de biogeografia cladística (Crisci e col., 2003;
e col., 2003). A estimativa de áreas ancestrais é Nihei, 2011).
um passo fundamental em muitos métodos em Outra abordagem envolve a criação de um
biogeografia histórica, para inferências sobre a modelo de funcionamento dos processos bioge-
evolução dos padrões de distribuição dos orga- ográficos que afetam a distribuição das espécies
nismos (Lamm e Redelings 2009). (Sanmartín, 2007; Almeida, 2011). Desta forma,
Também é necessária a identificação dos podem-se criar cenários sobre os quais é possí-
processos biogeográficos envolvidos na distri- vel testar a hipótese nula de distribuição atual
buição atual da biota. São reconhecidos prin- filogeneticamente conservada, ou seja, causada
cipalmente o papel de especiação, dispersão e apenas por eventos de especiação (cladogêne-
extinção como processos determinantes da al- se). Se o pesquisador baseado em informações
teração das distribuições de linhagens ao longo empíricas assume que os processos históricos
do tempo. A especiação de uma linhagem pode contribuem de forma diferencial para a histó-
ocorrer por vicariância, ou seja, pelo isolamen- ria biogeográfica de um grupo (e.g. especiação
to geográfico de populações de um táxon que ocorre com mais freqüência que dispersão, pois
se diferenciam nas áreas derivadas, ou por du- a espécie é má dispersora), este pode atribuir
plicação, ou seja, especiação de uma linhagem pesos diferenciais aos eventos. Assim, pode-se
dentro de uma área sem que haja a necessidade obter uma hipótese de distribuição ancestral
da partição geográfica em áreas isoladas (Lo- para a linhagem levando em conta a priori os
molino e col., 2005). Dispersão e extinção são diferentes processos. Ao contrário das aborda-
consideradas processos que causam reticulação gens anteriores, que são baseadas em padrões,
biogeográfica, pois incorrem em incongruência nesta, as metodologias são focadas na recons-
na distribuição atual de uma linhagem em rela- trução dos eventos que teriam alterado os pa-
ção à distribuição ancestral (i.e. convergência, drões de distribuição (Sanmartín, 2007; Almei-
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da, 2011). tos biogeográficos na história do grupo. Desta


forma, as inferências são feitas por métodos de
Métodos em biogeografia baseada em eventos reconciliação de árvores, neste caso entre um
cladograma geral de áreas e cladograma de tá-
Os métodos de biogeografia baseada em even- xons (Sanmartín e Ronquist, 2004; Sanmartín,
tos basicamente produzem modelos dos pro- 2007). Outros métodos reconstroem cenários
cessos (eventos históricos) que podem causar biogeográficos de grupos de organismos sem a
alterações na distribuição geográfica dos or- necessidade de uma hipótese geral de relacio-
ganismos ao longo do tempo (Ronquist, 1997). namento histórico entre as áreas de ocorrência
Nesta abordagem, os diferentes tipos de pro- (Ronquist, 1997; Ree e col., 2005).
cessos ou eventos são identificados (dispersão, Entre os métodos disponíveis podem ser
vicariância, duplicação e extinção) e são atri- citados: maximum cospeciation ou máxima vica-
buídos valores de custo–benefício, sobre um riância (Page, 1994); dispersal-vicariance analy-
modelo explícito (porém não probabilístico) de sis ou análise de dispersão–vicariância, DIVA
funcionamento desses (Ronquist, 1997; Crisci e (Ronquist, 1997; Sanmartín e col., 2001;); par-
col., 2003). Ou seja, é assumido que os diferen- simony-based tree fitting (Sanmartín e Ronquist,
tes processos ocorrem em freqüências dissimi- 2004); dispersal–extinction–cladogenesis, DEC
lares na história biogeográfica dos organismos, (Ree e col., 2005; Ree e Smith, 2008); Bayes-
e são atribuídos custos inversamente propor- -DIVA (Nylander e col., 2008) e S-DIVA (Yu e
cionais a sua probabilidade de ocorrência no col., 2010). Nesta revisão vou explorar apenas
passado. Desta forma, a história da distribuição os métodos de reconstrução de cenários bioge-
geográfica dos táxons é inferida sobre a topo- ográficos baseados em eventos sem o uso de hi-
logia de uma hipótese filogenética por técnicas pótese prévia de relação entre áreas. Discutirei
de otimização, sendo aplicados os critérios de sobre o método mais utilizado, e brevemente
máximo benefício e mínimo custo dos eventos suas implementações mais recentes. Outras me-
biogeográficos capazes de produzir o padrão todologias e exemplos podem ser encontrados
observado, em geral maximizando vicariância e nas referências citadas.
minimizando extinções e dispersões (Ronquist,
1997; Sanmartín, 2007). Análise de Dispersão–Vicariância (DIVA)
O método permite a ocorrência de reti- DIVA (Ronquist, 1997; 2001) é um dos mé-
culações (presença de táxons amplilocados, todos mais utilizados para a inferência de cená-
distribuições redundantes ou áreas ausentes) rios biogeográficos baseados em eventos. Basi-
e relações complexas entre as áreas em um ce- camente, DIVA reconstrói a distribuição ances-
nário biogeográfico. Pela simplicidade de suas tral para cada nó de uma filogenia, através da
premissas, é possível reconstruir a história bio- otimização de uma matriz tri–dimensional de
geográfica individual de uma linhagem sem a custos, produzida por meio de um conjunto de
necessidade de hipótese prévia de relação en- regras em que os eventos recebem custos rela-
tre as áreas (Sanmartín, 2007; Almeida, 2011). tivos, inversamente proporcionais à chance de
É também útil para inferir relações gerais en- ocorrência dos mesmos no passado.
tre áreas, quando não há conformação com um Para a análise, a distribuição das espécies
padrão hierárquico de relação entre as mesmas atuais e de seus ancestrais é descrita em termos
(Ronquist, 1997; Sanmartín e col., 2001). de um conjunto de áreas pré-definidas, e cada
Diferentes métodos foram propostos para táxon pode ocorrer em uma ou múltiplas áreas.
inferências em biogeografia baseada em even- Na implementação mais simples, a DIVA
tos. Inicialmente, estes derivaram de métodos atribui para o evento de dispersão o custo de
utilizados em problemas de co-evolução, como um, devido à adição de uma área na distribui-
entre parasitas e seus hospedeiros, baseados ção de um táxon em relação ao seu ancestral
em cladogramas dos grupos (Ronquist e Nylin, (Ronquist, 1997). Para o evento de extinção,
1990). Estes modelos simples foram adaptados também é atribuído custo um, devido à perda
para expressar as relações entre os táxons e suas de uma área na distribuição de um táxon em
áreas de ocorrência. relação ao seu ancestral. O evento de especiação
Os métodos baseados em eventos podem recebe custo zero tanto para vicariância, quanto
incorporar uma hipótese prévia de relação entre para distribuição redundante (duplicação), pois
as áreas para estimar a importância dos even- não há alteração na soma das distribuições dos
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táxons em relação ao ancestral comum. Deste tes processos de forma mais livre e permite a
modo, DIVA favorece reconstruções embasadas incorporação de informação prévia ao modelo,
em vicariância, pois este evento recebe um cus- e avaliações estatísticas sobre os resultados (Ree
to relativo mais baixo que dispersões e extin- e Smith, 2008).
ções. No entanto o método compartilha algumas
Dessa forma, DIVA otimiza os diferentes limitações com a DIVA, como a tendência em
eventos na árvore filogenética de forma a re- estimar áreas ancestrais amplas, e a impossi-
construir uma topologia de distribuições ances- bilidade de lidar com incertezas filogenéticas
trais com o menor custo. na topologia selecionada (Lamm e Redelings,
Um dos problemas na DIVA é que ao re- 2009; Kodandaramaiah, 2010).
construir as áreas ancestrais, o método tende
a incluir todas as áreas ocupadas pelos táxons Bayes–DIVA e S–DIVA
terminais, tornando a otimização pouco confiá- Os métodos Bayes-DIVA (Nylander e col.,
vel na medida em que se aproxima do nó basal 2008) e S-Diva (Yu e col., 2010) foram desenvol-
(Ronquist, 1997). Para amenizar o problema, foi vidos para contornar a impossibilidade da im-
sugerido que sejam utilizados grupos externos, plementação dos métodos anteriores de lidar
ou que o número máximo de áreas ancestrais com incertezas filogenéticas. Ao lidar com dife-
seja restringido (Ronquist, 1997). Outra opção rentes topologias simultaneamente, as recons-
é restringir a distribuição possível de um an- truções de áreas ancestrais são acompanhadas
cestral amplilocado (com distribuição ampla), de suportes estatísticos baseados nas frequên-
especificando os processo explanatórios (centro cias das diferentes alternativas. Esses métodos
de origem com dispersões recentes, distribui- representam, portanto, complementos das for-
ção expandida antiga, ou distribuição aleató- mas anteriores da DIVA, e no caso do S-DIVA,
ria) envolvidos na origem da distribuição basal proporciona também uma nova interface de fá-
(Sanmartín e Ronquist, 2002) . cil configuração das opções de análise e produz
Outro problema potencial com a imple- resultados gráficos.
mentação original da DIVA é que as análises
resultam em reconstruções de distribuições an- Exemplo de emprego do método
cestrais em uma árvore filogenética com topo-
Para exemplificar o uso dos métodos baseados
logia fixa, ou seja, desconsidera as incertezas da
em eventos, utilizei um modelo simples de dis-
inferência filogenética (Yu e col., 2010). Outra
persão–vicariância (DIVA: Ronquist, 1997). Para
limitação do método decorre da otimização das
a análise, foram seguidos os passos: 1) escolha
áreas ancestrais, pois a presença de múltiplas
de um grupo de estudo; 2) seleção de uma hipó-
reconstruções igualmente otimizadas, em ge-
tese filogenética (cladograma) de relações entre
ral resulta em áreas ancestrais com distribuição
os táxons; 3) delimitação das áreas biogeográ-
ampla (Lamm e Redelings, 2009).
ficas; e 4) escolha de um método de análise e
No entanto, apesar das reconhecidas limi-
configurações que sejam adequadas ao modelo.
tações, DIVA se manteve muito popular, pois
Exemplo: História biogeográfica dos la-
é um método de fácil implementação, produz
gartos microteídeos da tribo Gymnophthalmini
resultados rápidos, as premissas são simples e
(Squamata, Gymnophthalmidae) na América
requer pouca informação prévia sobre a histó-
do Sul tropical.
ria biogeográfica da área e/ou dos táxons.
Grupo de estudo
Dispersal–Extinction–Cladogenesis (DEC)
Os lagartos microteídeos da tribo Gym-
O DEC (Ree e col., 2005; Ree e Smith, 2008)
nophthalmini representam uma radiação evo-
é um método de análise que se baseia em um
lutiva com exemplos notáveis de adaptações
modelo estocástico de evolução da distribui-
morfológicas para a vida fossorial (Rodrigues,
ção geográfica, ocorrentes nos ramos (mudança
1995). A tribo é composta por nove gêneros dis-
sem especiação) e nós (mudança com especia-
tribuídos ao longo de formações abertas e flo-
ção) das filogenias. O método difere da DIVA
restais da América do Sul cis-andina e América
por estimar como que as áreas ancestrais são
Central, sendo um grupo exclusivamente Neo-
herdadas pelos táxons, ao invés de reconstruir
tropical. Nas formações abertas da América do
diretamente as áreas. Por ser mais flexível, o
Sul, em especial na região Caatinga, o grupo so-
modelo permite a parametrização dos diferen-
freu uma grande diversificação de formas (Ro-
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drigues, 1995; 1996). Apesar da ampla distribui- ne (2006), porém com a sub-região Chaquenha
ção do grupo em geral, e de algumas de suas representada por suas províncias. Desta forma,
espécies, há numerosos casos de endemismos e/ as áreas utilizadas são: [A] Região Amazônica;
ou espécies de distribuição restrita (Rodrigues, [B] Cerrado; [C] Caatinga; [D] Chaco; [E] Re-
2003). Desta forma, é interessante inferir quais gião das Florestas Atlânticas do Paraná; e [F]
eventos biogeográficos estão relacionados com Região Caribenha (Fig. 1). Nenhum dos táxons
a ocorrência de espécies de áreas abertas com tem ocorrência na província dos Pampas.
ampla distribuição no continente (e.g. gêneros Análise
Micrablepharus, Vanzosaura), enquanto outras
apresentam distribuição restrita (e.g. gêneros
Calyptommatus, Notobachia, Procellosaurinus).

Relações filogenéticas
O grupo formado pelos lagartos microteí-
deos da tribo Gymnophthalmini possui mono-
filia (relação de parentesco baseda em ancen-
tralidade comum) bem suportada por dados
morfológicos (Rodrigues, 1995) e moleculares
(Pellegrino e col., 2001; Castoe e col., 2004). Há
disponível para o grupo uma hipótese filoge-
nética molecular ao nível de gênero (Benozzati
e Rodrigues, 2003) que é suportada por dados
morfológicos (Rodrigues, 1995). As relações en-
tre suas espécies, no entanto, são ainda pouco
compreendidas, pela baixa representatividade
de espécies do grupo nas filogenias propostas
para a família (Pellegrino e col., 2001; Castoe e
col., 2004) e pela descoberta de novas espécies
em tempos mais recentes (Rodrigues e Santos,
2008). Desta forma, a filogenia de Benozatti e
Rodrigues (2003) foi utilizada para inferir os
eventos relacionados à distribuição dos gêneros
pertencentes à tribo.
Figura 1. Áreas biogeográficas utilizadas para a análise:
A) Região Amazônica, B) Província do Cerrado, C) Pro-
Delimitação das áreas víncia da Caatinga, D) Província do Chaco, E) Região
A região Neotropical pode ser dividida das Florestas Atlânticas do Paraná, F) Região Caribe-
em quatro sub-regiões biogeográficas: a sub- nha. Mapa modificado de Morrone (2006).
-região Caribenha, que contém florestas cen- Para a reconstrução dos eventos relacio-
tro-americanas, de ilhas do Caribe, e florestas nados às alterações históricas na distribuição
baixas e sub-montanas do norte e noroeste da dos táxons de Gymnophthalmini foi utilizado o
América do Sul; a sub-região Amazônica, que programa DIVA 1.2. (Ronquist, 2001). Aos even-
inclui toda a área sob influência da bacia do rio tos biogeográficos foram utilizados os custos de
Amazonas; a sub-região do Paraná, que inclui um para dispersão e extinção, e zero para vica-
as formações florestais ombrófilas e estacionais riância ou duplicação, que é padrão da análise
com influência da costa atlântica; e a sub-região (Ronquist, 1997, 2001). Como foram utilizados
Chaquenha, que inclui a diagonal de formações gêneros como táxons terminais, o que causa
abertas da América do Sul (Morrone, 2006). perda de informação referente às dispersões
Esta última pode ainda ser dividida nas pro- na reconstrução das áreas ancestrais (Ronquist,
víncias biogeográficas do Cerrado, Caatinga, 1997), foi utilizada a opção de restrição do nú-
Chaco e Pampas (Morrone, 2006). Como o foco mero máximo de áreas ocupadas por táxon para
deste exemplo é inferir os eventos relacionados cinco (de seis possíveis). Desta forma, evita-se
à distribuição dos táxons de áreas abertas, serão também a ocorrência de um ancestral basal am-
utilizadas como áreas biogeográficas as quatro plilocado, com a conseqüente diminuição da
sub-regiões neotropicais propostas por Morro- importância de eventos basais de dispersão.
Revista da Biologia (2011) Vol. Esp. Biogeografia 23

Resultados víncia do Cerrado e sub-região do Paraná, de


um ancestral dos táxons que mais tarde viriam
A reconstrução otimizada da história bioge- a se radiar na província da Caatinga. A ocorrên-
ográfica de Gymnophthalmini requer cinco cia de táxons de ampla distribuição nas forma-
eventos de dispersão (Fig. 2). Nesta hipótese, ções abertas pode ser explicada por dispersões
tem-se que a história biogeográfica dos táxons entre as áreas.
de áreas abertas é representada por uma vica-
riância basal, que separa Micrablepharus na pro-

Figura 2. Reconstrução otimizada dos eventos relacionados às alterações na distribuição geográfica dos gêneros de
lagartos da tribo Gymnophthalmini, que requer cinco eventos de dispersão. Os eventos de dispersão estão indicados
por setas. Foto: exemplar adulto de Vanzosaura rubricauda.
Discussão tica de um grupo, é possível discutir sobre os
processos envolvidos e sua relação com dados
No exemplo empírico apresentado para ilustrar ecológicos e/ou geográficos das espécies envol-
o uso de métodos em biogeografia baseada em vidas.
eventos, foi utilizado um modelo simples de No exemplo, é possível observar que após
dispersão-vicariância. No entanto, as inferên- um evento de vicariância basal que separou as
cias deste tipo de análise podem ser refinadas linhagens de áreas abertas do Cerrado e Flores-
com a incorporação de informações adicionais ta Atlântica, de linhagens da Caatinga e da Re-
sobre os organismos estudados e os processos gião do Caribe, houve trocas faunísticas entre as
biogeográficos envolvidos (Ree e col., 2005; Ko- províncias do Cerrado e Caatinga por meio de
dandaramaiah, 2010). Por exemplo, é possível dispersões. O gênero Micrablepharus, composto
incorporar estimativas do tempo de separa- por lagartos típicos de formações abertas (i.e.
ção entre os táxons (por métodos de datação cerrados, matas decíduas e restingas), ocorre de
molecular), ou atribuir custos diferenciais aos forma pontual na província da Caatinga, geral-
eventos de dispersão baseados em estimativas mente em vegetações menos rústicas (Vanzoli-
da capacidade relativa de uma linhagem em se ni e col., 1980; Rodrigues, 1996). A distribuição
dispersar ao longo das áreas de estudo, ou in- atual da espécie na Caatinga deve representar
formações sobre a ocorrência das espécies nas um relicto de uma distribuição pretérita mais
áreas ancestrais através de registro fóssil, etc. ampla, em um período em que condições mais
Com a reconstrução da história filogené- adequadas provavelmente permitiram a expan-
24 Recoder: Biogeografia baseada em eventos: uma introdução

são da distribuição ao longo desta província, o tados da DIVA são também sensíveis à amos-
que concorda com o modelo. tragem de grupos externos, e é ineficiente em
Da mesma forma, Vanzosaura, que ocorre modelar extinções (Ronquist, 1997; Kodandara-
amplamente na província da Caatinga, ocorre maiah, 2010).
de forma disjunta na província do Cerrado, atin- No entanto, apesar das limitações meto-
gindo a província do Chaco (Rodrigues, 1991; dológicas que as análises baseadas em eventos
Vanzolini e Carvalho, 1991; Nogueira, 2006). apresentam, destacam-se por oferecer a possi-
Sua ocorrência descontínua pode refletir even- bilidade de reconstrução de cenários biogeo-
tos pretéritos de expansão de distribuição por gráficos para linhagens individuais, conside-
corredores de hábitats favoráveis, com a manu- rando explicitamente a importância de múlti-
tenção de núcleos de ocorrência em regiões com plos eventos biogeográficos determinantes (e.g.
condições ambientais próximas à ancestral (e.g. especiação, dispersão e extinção) para os pa-
clima seco, relevos pouco acidentados, forma- drões gerais de distribuição (Sanmartín 2007).
ções vegetais abertas, presença de solos areno- Ademais, novas implementações capazes de es-
sos). Por último, a ocorrência de populações de timar valores de suporte estatístico para as infe-
Psilophthalmus na província do Cerrado é infe- rências tornam os métodos baseados em even-
rida por dispersão. A distribuição marginal no tos ferramentas interessantes e robustas para
Cerrado (Recoder e Nogueira, 2007), somada à estudos em biogeografia histórica (Nylander e
dinâmica histórica de interdigitação de habitats col., 2008; Yu e col., 2010).
e trocas faunísticas de elementos do Cerrado e
Caatinga na região (Vanzolini, 1976) apóiam o Agradecimentos
modelo.
Agradeço primeiramente ao prof. Dr. Silvio Shi-
Críticas e prospectos gueo Nihei por me convidar a participar deste
Como discutido criticamente por alguns volume especial da Revista da Biologia. Agra-
autores, os métodos de biogeografia baseada deço a Agustín Camacho e Lilian Avelar pela
em eventos apresentam limitações metodológi- leitura crítica de uma versão preliminar do ma-
cas e restrições conceituais relacionadas à sim- nuscrito, a Olívia de Mendonça-Furtado e um
plicidade de suas premissas, que podem muitas revisor anônimo pelas críticas e sugestões que
vezes resultar em reconstruções enviesadas da em muito ajudaram a melhorar a versão final
distribuição ancestral, e levar a interpretações deste artigo. Agradeço também ao prof. Dr. Mi-
de histórias biogeográficas pouco realistas guel Trefaut Rodrigues pela orientação, e à FA-
(Lamm e Redelings, 2009; Kodandaramaiah, PESP pelo apoio financeiro concedido na forma
2010). de bolsa de mestrado (2008/07598–0).
Uma das restrições de métodos como a
DIVA é a impossibilidade de distinguir expan- Bibliografia
são da distribuição de uma linhagem, de even- Almeida, E. A. B. (2011). Modelos de eventos para
tos de dispersões por sobre barreiras geográ- reconstrução biogeográfica. In Biogeografia da
ficas (Kodandaramaiah, 2010). Apesar de ser América do Sul: Padrões e Processos. Carvalho, J. B.
possível atribuir custos diferenciados aos dois de e Almeida, E. A. B. (Orgs). São Paulo: Roca. Pp.
123–136.
tipos de eventos de dispersão (Ronquist, 1997), Amorim, D. S. (2002). Fundamentos de Sistemática
a alternativa mais adequada seria a incorpora- Filogenética. Ribeirão Preto: Holos Editora.
ção no modelo de taxas de divergências por mé- Benozzati, M. L. e Rodrigues, M. T. (2003). Mitochondrial
todos de datação molecular (Kodandaramaiah, Restriction–Site Characterization of a Brazilian
Group of Eyelid–Less Gymnophthalmid Lizards.
2010).
Journal of Herpetology 37, 161–168.
Outro problema de implementações mais Carvalho, J. B. de (2011). Áreas de endemismo. In
simples é que a restrição errônea do número Biogeografia da América do Sul: Padrões e Processos.
de áreas ancestrais pode levar a inferências es- Carvalho, J. B. de e Almeida, E. A. B. (Orgs). São
púrias de eventos de dispersão ou vicariância Paulo: Roca. Pp. 41–51.
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