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Senhores de fé e de escravos:

a escravidão nas fazendas jesuíticas do Espírito Santo

Bruno Santos Conde1

1. Aspectos preliminares

A análise do passado colonial capixaba é mais uma daquelas tarefas complexas que tantas
vezes são colocadas ao historiador. O estado das fontes, escassas e mal organizadas, resulta
em uma produção intelectual bastante restrita sobre os mais longínquos capítulos da história
do Espírito Santo. E este não é um quadro que se resume a um ou outro tema específico.
Muitos são os aspectos dos primeiros séculos da colonização local que carecem de estudos a
fim de uma melhor compreensão de seu cenário.

A escravidão faz parte desse grupo de temas ainda muito incógnitos do período colonial
espírito-santense. É certo que nos últimos anos vem ocorrendo a multiplicação dos estudos
sobre o cativeiro em terras capixabas, notadamente no que tange ao século XIX. A descoberta
e o manuseio de manuscritos até pouco tempo inéditos tem sido fundamental nessa elucidação
da sociedade escravista dos Oitocentos.

Mesmo integrando este grupo de pesquisadores que têm o olhar direcionado para o século
XIX, proponho no presente trabalho deslocar o meu enfoque sobre a escravidão para uma fase
anterior de nossa história, que é o período colonial. Mais que um mero recuo temporal, as
próximas páginas versarão sobre uma temática bastante específica, que é a do cativeiro em
propriedades pertencentes a religiosos no Espírito Santo.

É fato que o título deste trabalho restringe a abordagem às fazendas jesuíticas. Entretanto,
para efeito de análise, tomei a liberdade de inserir neste artigo as terras do arcediago Antonio
Siqueira de Quental, um homem pertencente aos quadros da Igreja, porém não jesuíta. Suas
fazendas eram grandiosas para a realidade capixaba e revelam marcas que de antemão
imaginei só existir nas propriedades jesuíticas. Além delas, as fazendas de Muribeca e
Araçatiba, estas sim pertencentes aos jesuítas, também serão analisadas nas páginas que
seguem.

1
Mestrando em História social das relações políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
2

Existiram ainda, entre fazendas e aldeamentos, outras importantes propriedades de religiosos


no Espírito Santo. Entretanto, são as aqui abordadas as que estão presentes de maneira mais
constante nos esparsos indícios fornecidos pelas fontes e escritos disponíveis. Os séculos
XVII e, principalmente, XVIII compõem os limites temporais da temática aqui proposta,
conforme veremos a seguir.

O objetivo é apontar elementos que caracterizem o cotidiano dos escravos destas fazendas.
Grosso modo, a grande questão a permear estas páginas é: quais seriam as especificidades
mais visíveis desse tipo de cativeiro? Por se tratar de uma pesquisa em curso, a argumentação
se baseará em alguns aspectos ainda preliminares, porém já elucidativos, sobre a escravidão
em terras de religiosos no Espírito Santo.

Sabe-se que questões como a acima exposta costumam ser de difícil resolução. Da mesma
maneira, também parece claro que, se as dúvidas não podem ser dissipadas em sua totalidade,
é plausível elevá-las ao plano de análise e manusear indícios que possam esclarecer
determinadas marcas do passado. Mas vamos agora aos dados.

2. Fé, terras e escravidão: uma junção nada incomum

Tanto no Espírito Santo quanto em outras capitanias brasileiras, religiosos como padres e
jesuítas instalaram-se nos mais variados pontos a fim de difundir a fé católica no Novo
Mundo. Apesar dos esforços, o Espírito Santo, de acordo Jose Teixeira de Oliveira (2008, p.
77), sofria com a falta de igrejas e religiosos para a prática da fé de colonizadores e nativos.
Dessa maneira, a instalação dos jesuítas em Vitória no ano de 1551 representou o marco de
uma sensível mutação na conduta moral dos habitantes locais. Os conflitos entre ambos
diminuíram e o processo de colonização pôde se desenrolar com uma maior estabilidade.
Entretanto, a presença mais marcante de catequizadores não foi crucial apenas do ponto de
vista religioso.

Ainda durante o século XVI os inacianos iniciaram sua difusão pelo território do Espírito
Santo, organizando aldeamentos para a catequese indígena e fazendas com produção
diversificada. (BALESTRERO, 1979, p. 38) A dinâmica local se assemelhava à existente em
outras partes da colônia, conforme se observa em pesquisas já realizadas. Analisando a
realidade do Rio de Janeiro, Márcia Amantino argumenta sobre as fazendas estabelecidas e
controladas pelos jesuítas:
3

[...] tratavam-se de gigantescas extensões de terras concedidas pelas autoridades


coloniais através de doação de sesmarias e ampliadas posteriormente graças a
compras e doações de particulares [...]. (2007, p. 2)

Assim como no Rio de Janeiro, no Espírito Santo tais possessões também eram grandiosas,
contavam com muitos escravos e geravam notável produção agropecuária. Vez ou outra, essa
forte concentração de terras nas mãos de religiosos geravam um clima de animosidade entre
estes e outros proprietários ou autoridades.2

Tais faixas de terra espelhavam uma marca habitual da ocupação do solo capixaba durante o
período colonial: a proximidade ao litoral. Não por acaso, as fazendas observadas nesta
análise situavam-se próximas a mares e a rios com possibilidade de navegação. Tal quadro
despertava a atenção especial de viajantes europeus, como o francês Saint-Hilaire, (2002, p.
16), o qual descreveu o Espírito Santo no ano de 1818 e afirmou que “[...] sua largura é, em
alguns lugares, reduzida a uma faixa estreita e arenosa [...].” Neste cenário de predomínio de
fazendas litorâneas, voltar-nos-emos agora para as primeiras terras aqui analisadas.

3. Escravidão no Engenho do Campo e no Engenho Velho

Como indicado no início, são dignas de nota as propriedades pertencentes a religiosos não
jesuítas. Reforçando tal idéia, as fontes do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) ora ou outra
exalam indícios que permitem observar esse quadro na capitania. E foi exatamente através de
consultas às fontes do AHU que tive o primeiro contato com os engenhos do arcediago
Antônio de Siqueira Quental. Trata-se de uma figura cujas informações a respeito são muito
raras e comumente desencontradas. Ainda assim, está claro que o arcediago viveu na vila de
Guarapari durante o século XVIII, falecendo em 1769. (AHU/5/2/foto 327) José Carvalho
(1982, p. 95) chega a sugerir, inclusive, a ligação entre Quental e os jesuítas, mas tal idéia não
ultrapassa o campo das cogitações.

A morte de Quental desencadeou uma prolongada disputa pela posse de suas duas
propriedades: a Fazenda de Santa Bárbara (também chamada de Engenho Velho) e o
Engenho do Campo, ambas em Guarapari. Os inventários das duas fazendas, feitos na
segunda metade do XVIII, permitem a compreensão de muitos aspectos da realidade daquelas
terras, inclusive no que tange à configuração das suas escravarias.

2
Esse clima pode ser observado em correspondências contidas no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), nas
caixas relativas ao Espírito Santo.
4

Entre os mais variados bens, como louças, dinheiro e moveis, foram inventariados um total de
151 cativos no Engenho Velho e 263 no Engenho do Campo. E a análise dos dados relativos a
cada um desses 414 escravos permite a apreensão de interessantes aspectos daqueles
cativeiros no ano de 1792, época no qual foi produzido o inventário aqui utilizado.

Fica claro que, pelo menos no fim do século XVIII, as terras do arcediago seguiam a
tendência da capitania, que era a pouca ligação ao tráfico negreiro internacional. Lá parecia
predominar reprodução interna de cativos, a exemplo do que elucidou Patrícia Merlo em sua
tese. (MERLO, 2008) Derivado disso, é perceptível algumas marcas típicas desse tipo de
escravaria, como o equilíbrio entre os sexos e a existência de cativos de todas as faixas
etárias. Para o caso aqui discutido, impressiona o fato da quase totalidade dos escravos ter
uma ligação familiar como pelo menos um indivíduo da fazenda. (AHU/4/2/ foto 331-380)
Somente no Engenho do Campo são 38 casais de esposos, os quais costumavam ter um alto
número de filhos. Além disso, havia muitos viúvos e viúvas com filhos naquelas fazendas.

No Engenho Velho os casais também são muitos. Lá, o que mais chamava a atenção era o
casal formado pelos escravos Máximo (com 65 anos) e Eva (com 45 anos). Eles tinham nada
menos do que onze filhos, com idades entre 1 e 20 anos. As páginas do inventário revelam
ainda a convivência cotidiana de primos, irmãos e outros familiares. Um desses casos é o de
João, um cativo de 36 anos que não tem o nome de seus pais informados, mas que convive
com quatro irmãos no Engenho do Campo.

Havia famílias de escravos que já na estavam nas fazendas há gerações. A família de Manoel
dos Anjos e Tereza é um exemplo. Consta no inventário que seus familiares estavam no
Engenho do Campo desde os tempos da União Ibérica (1580-1640). Em 1792 ele tinha 80
anos de idade e ela 70, estando ambos impossibilitados para o trabalho. Com onze filhos
vivos e mais de trinta netos, veio o fim do martírio para o casal em questão: a alforria.

Não se menciona a data de tal alforria, mas está muito claro a ligação entre cativeiro e família
para aqueles escravos. Isso não quer dizer que tal cativeiro era melhor para se viver em
comparação com outras fazendas. O que se argumenta é o fato das duas propriedades
analisadas permitirem que irmãos, primos, pais e filhos pudessem conviver num mesmo
espaço, sem a instabilidade que as terras ligadas ao tráfico de escravos costumavam gerar.
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4. Sob a proteção de Santo Inácio: de Muribeca à Araçatiba

As terras sob administração da Companhia de Jesus tinham uma importância econômica


inegável na realidade do Espírito Santo. Se nas correspondências oficiais dos séculos XVII e
XVIII imperavam as queixas e lamentações sobre o estado econômico da capitania, o mesmo
não se pode dizer das fazendas dos jesuítas locais. Além de Muribeca e Araçatiba, poderiam
ser analisadas aqui outras propriedades dos religiosos da Companhia de Jesus, tais como
Itapoca e Carapina, ambas nas proximidades de Vitória. Mas são as duas primeiras as mais
constantes nas fontes e escritos aqui utilizados.

Formada em meados do século XVII, a Fazenda da Muribeca era mais uma daquelas
propriedades situadas não muito distantes do litoral. Mas Muribeca também possuía algumas
marcas muito específicas em meio ao cenário da capitania espírito-santense, tais como a sua
localização e a extensão. Em primeiro lugar, a fazenda estava situada no extremo sul da
capitania, abrangendo inclusive parte do território do atual Rio de Janeiro. Além disso, suas
dimensões eram bastante consideráveis: nove léguas e meia beirando a costa e oito léguas e
meia de interior pelo sertão. (LEITE, 2000, p. 153)

Situada nas proximidades da costa, mas longe da capital Vitória, Muribeca era em princípio o
centro de todas as atividades rurais da Companhia de Jesus no Espírito Santo.
(BALESTRERO, 1979, p. 67) Com o passar dos anos, entretanto, tal propriedade foi se
especializando na criação de gado e na pesca. Um olhar sobre a sua produção permite
observar que, se no ano de 1694 havia 1.639 cabeças de gado, em 1739 eram quase 2.000 mil
cabeças em Muribeca. (LEITE, 2000, p. 154)

Os escravos acabavam figurando como peças fundamentais ao funcionamento de Muribeca.


Serafim Leite (2000, p. 154) nos conta que o padre Manuel da Fonseca, autor de notáveis
escritos publicados em Portugal, era um dos padres a frente da Fazenda em 1757. Segundo o
mesmo, tal padre residia em Muribeca pelo fato de objetivar elaborar uma obra consagrada
especificamente aos escravos, denominada Parochus servorum, a qual deixou inédita.

O príncipe alemão Maximiliano de Wied-Neuwied, viajante que esteve no Brasil entre 1815 e
1817, observou e escreveu sobre Muribeca. Na época, as terras em questão não mais
pertenciam aos jesuítas, mas o testemunho do príncipe elucida traços de outrora. No que
concerne à escravaria, ele aponta que:
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[...] Existem aí [em Muribeca], ainda, trezentos escravos negros, entre os quais,
porém, não há mais de cinqüenta capazes [...]. O trabalho é bastante árduo para os
escravos; consiste principalmente em derrubar as matas. Plantam-se mandioca,
milho, algodão e um pouco de café [...]. (MAXIMILIANO, 1989, p. 126)

A utilização do termo ainda pelo viajante pode ser uma interessante pista para a análise. Da
maneira como é utilizada na citação acima, a palavra expressa a idéia de uma escravaria em
decadência, num processo de diminuição em relação ao passado. Isso fica ainda mais claro
quando se percebe a existência de poucos escravos capazes, sugerindo a falta de crescimento
da escravaria. É provável que esse tom de decadência esteja tomando como parâmetro os
tempos nos quais Muribeca era uma propriedade jesuítica.

Do gado de Muribeca saía a força para puxar os carros e a carne para abastecer o Colégio de
Vitória. Cuidar do rebanho era a função principal daqueles escravos sob propriedade jesuítica.
Entretanto, tal quadro se alterou com a expulsão dos jesuítas em 1759 e a conseqüente
arrematação da Fazenda por particulares em 1777. (LEITE, 2000, p. 154) Como se nota, o
viajante não menciona as atividades com o gado, além de descrever a escravaria local com um
caráter de decadência.

Mesmo antes destas datas, porém, Muribeca já não figurava mais como centro de todas as
atividades rurais da Companhia de Jesus no Espírito Santo. Questões como o constante
alagamento das terras, fator dificultante para a agricultura, e a distância em relação à Vitória
foram dividindo a importância de Muribeca com outras fazendas. E uma dessas propriedades
que adquiriram notoriedade foi a Fazenda de Araçatiba.

Há divergências quanto à data exata da criação de Araçatiba. De qualquer modo, o fato é que
ela aparece nos registros dos jesuítas em 1716. (LEITE, 2000, p. 155) Chama a atenção de
todos a extensão da Fazenda. De acordo com a configuração territorial atual, ela ocuparia
parte dos municípios de Viana, Guarapari, Vila Velha, e Cariacica. É novamente Maximiliano
(1940, p. 146) quem subsidia a análise:

[...] Essa propriedade [Araçatiba] tem quatrocentos escravos negros e plantações


muito extensas nas cercanias, especialmente de açúcar [...]. Araçatiba foi a maior
fazenda que encontrei durante a minha viagem [...].

Assim como no caso de Muribeca, novamente desperta atenção a quantidade de escravos


observada pelo alemão. Sabe-se que os escritos de viajantes devem ser utilizados com cautela
para fins de pesquisa. Mas a ausência de fontes alternativas leva os pesquisadores a recorrer
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tal tipo de registro. Para o caso de Araçatiba, entretanto, é possível empreender uma
aproximação entre diferentes escritos, tornando mais seguras as afirmações e conclusões.

Como exemplo disso, Bazilio Daemon (1879) descreve a avaliação dos bens de Araçatiba do
ano de 1780. A variedade e a quantidade destes bens demonstram a opulência de tais terras.
São varias relíquias religiosas, jóias, construções, imensas terras, ferramentas, gado e outros
itens. Mas o que mais chama a atenção é o número de servos: havia um total de 852
trabalhadores, entre “escravos pretos, pardos e cabras”.

Até poucos anos antes da avaliação, Araçatiba era administrada pelos jesuítas, com notória
produção de açúcar, melado, aguardente e mel. (LEITE, 2000, p. 156) A quantidade de
escravos serve, inclusive, para demonstrar tal notoriedade. Quando Maximiliano passou pela
região, já no século XIX, o número de cativos era bem menor, atestando o mesmo processo
vivenciado por Muribeca. Ou seja, a aparente prosperidade dando lugar à decadência após o
afastamento dos jesuítas da administração.

5. Queremos nossos senhores!

No fim do século XVIII, mais precisamente em maio de 1800, o recém chegado governador
da capitania, Antonio Pires da Silva Pontes, escreveu uma correspondência ao Conde de
Linhares relatando uma grandiosa fuga de escravos ocorrida no Espírito Santo. (AHU/5/2/foto
394) Trata-se de um fato pouco abordado pela historiografia, sendo de Patrícia Merlo (2004) o
mérito de trazer à tona essa insurreição cativa. A carta em questão também faz parte do acervo
do Arquivo Ultramarino, contendo algumas marcas que coadunam com o trabalho aqui
apresentado.

Segundo Silva Pontes, os escravos de Francisco Pinto Homem, no passado pertencentes aos
jesuítas, não se conformavam com o novo proprietário e estavam persuadidos da esperança de
voltar aos antigos donos. Somente dele foram 113 cativos que se embrenharam entre serras
situadas a meia légua da capital Vitória. Lá, entre a antiga fazenda jesuíta de Itapoca e a serra
de Moxuara, atual cidade de Cariacica, viviam mais de trezentos escravos fugidos de diversos
senhores.

Mas aqui interessa somente os 113 cativos que empreenderam uma fuga de protesto contra a
troca de seus senhores. O movimento parece ter sido previamente planejado, visto que eles se
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instalaram numa região já ocupada por outros escravos fugidos. Eles também não se
esforçaram para esconder-se das autoridades ou de seu senhor, pois viviam em casas de palha
próximas às estradas que levavam ao sertão. (AHU/5/2/foto 394)

O movimento em questão se enquadra no grupo das chamadas fugas reivindicatórias


analisadas por autores como J. J. Reis e Eduardo Silva. (1989, p. 63) Tais fugas seriam um
componente das negociações cotidianas entre os cativos e seus senhores. Nas palavras de
Merlo,

[...] os escravos não queriam colocar-se à margem da sociedade, nem restabelecer o


modo africano de viver, mas locomover-se, ainda que implicitamente, no sentido de
tornar sua vida o melhor possível [...]. (2004, p. 146-147)

Para aqueles 113 escravos, o melhor possível em seu cativeiro parecia ser o senhorio dos
jesuítas. Mas este dado precisa ser encarado com cautela. A reivindicação dos cativos não é
suficiente para definir o caráter do cativeiro do tempo daqueles religiosos. Com o perdão pela
redundância: escravidão é sempre escravidão. Dito de outro modo, as privações, sofrimentos e
a exploração do trabalho, guardadas as peculiaridades, existem com qualquer senhor,
inclusive os jesuítas.

Ocorre que, com a arrematação dos bens dos jesuítas no Espírito Santo, no fim do século
XVIII, os seus escravos passaram a ter novos senhores. Essa transferência, muito
provavelmente, levou à mutação de determinados acordos firmados entre os cativos e os
jesuítas. A fuga para a região de Itapoca possui as marcas de um típico movimento
reivindicatório, tendo em vista aspectos como a proximidade entre a fazenda e o local de
refúgio, assim como a clareza de seus objetivos.

Sabe-se que a reivindicação dos cativos não foi atendida. Mas o que haveria causado a
insatisfação dos mesmos em sua relação com o novo senhor? Seria algo relativo ao regime de
trabalho? Ou seria alguma questão concernente às famílias cativas? A ausência de fontes torna
difícil argumentar sobre esse desejo de retorno aos antigos senhores. De qualquer modo, é
inegável que as fazendas pertencentes a religiosos, como as do arcediago Antônio de Siqueira
Quental, detinha algumas marcas especificas quanto ao cativeiro. É provável que a chegada de
um novo senhor tenha suprimido ou modificado tais especificidades, levando ao movimento
aqui abordado.
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6. Conclusão

O fato da mão de obra escrava ser largamente utilizada nas fazendas jesuítas não constitui
nenhuma surpresa. Escritos e pesquisas sobre o tema vêm se multiplicando, sendo a
interessante obra Negócios Jesuíticos, de Paulo de Assunção, um bom exemplo disso. Nesse
sentido, a idéia principal aqui foi levantar a possibilidade desse tipo de abordagem para a
realidade capixaba.

E para o caso do Espírito Santo existe um componente extra. Se nas demais capitanias as
fazendas jesuíticas dividiam espaço com outras grandiosas propriedades, em terras capixabas
os padres da Companhia de Jesus constituíam os principais vultos em termos de produção
agrícola. Sem eliminar a importância das propriedades pertencentes a particulares, o fato é
que o sucesso das fazendas de religiosos, jesuítas ou não, destoavam do quadro geral de baixa
produtividade no Espírito Santo. A ruim repercussão da expulsão dos jesuítas, em 1759, sobre
a economia capixaba pode ser notada pelos escritos de alguns dos principais autores da
história local, como José Teixeira de Oliveira e Bazilio Daemon, ambos já citados neste
trabalho.

As fazendas de Araçatiba, Muribeca, Engenho do Campo e Engenho Velho, representam


palcos que permitem a observação dos cativeiros sob tutela de religiosos. Guiadas também
sob princípios econômicos, é inegável a importância de tais fazendas para a difusão da obra
religiosa católica na colônia. Com seus recursos era possível construir igrejas, colégios,
adquirir imagens e financiar as jornadas em busca de mais indignas para a catequese.

Com os casos aqui analisados, principalmente no que tange às terras do arcediago Quental, foi
possível observar a estreita ligação existente entre família e cativeiro em propriedades de
religiosos. A fuga dos escravos que queriam a volta de seus antigos senhores, os jesuítas, pode
ser um indício de que importantes marcas do cativeiro chefiado por aqueles religiosos se
deturpou após a sua expulsão. Da mesma maneira, a decadência das escravarias de Muribeca
e Araçatiba, observada pelo príncipe Maximiliano, reforça a especificidade e a eficiência
administrativa das terras de religiosos.

7. Fontes
10

AMANTINO, Márcia. Pombal e a expulsão dos jesuítas: um estudo de caso sobre as fazendas
inacianas no Rio de Janeiro setecentista. In: CONGRESSO INTERNACIONAL
UFES/UNIVERSITÉ PARIS-EST, 2007, Vitória. Anais... Impérios, religiosidades e etnias.
Vitória: GM, 2007.

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Espírito Santo: caixas 04 e 05.

BALESTRERO, Heribaldo Lopes. A obra dos jesuítas no Espírito Santo: sinopse histórica.
Viana: [s.n.], 1979.

BITTENCOURT, Gabriel Augusto de Mello. Anchieta e a obra jesuítica no Espírito Santo.


Vitória: Edit, 1999.

DAEMON, Basílio Carvalho. História e Estatística da Província do Espírito Santo.


Disponível em: <http://www. estacaocapixaba.com.br> Consulta em 19 de abril de 2006

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.

MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied. Viagem ao Brasil. São Paulo: Nacional, 1940.

MERLO, Patrícia M. da Silva. Insurreições escravas em Vitória (ES), séc. XIX: Algumas
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2004.

____. O nó e o ninho: estudo sobre a família escrava em Vitória/ES, 1800-1871. 2008. Tese
(Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. 3. ed. Vitória: Arquivo
Público do Estado do Espírito Santo: Secretaria de Estado da Cultura, 2008.

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce. Vitória: Instituto
Histórico e Geográfico do Espírito Santo: Secretaria Municipal de Cultura - PMV, 2002.

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