Você está na página 1de 430

FESTIVAL INTERNACIONAL

DE DANÇA CONTEMPORÂNEA

10 A N O S
EM ENCONTROS

ORGANIZ AÇ ÃO
JUSSAR A X AVIER E
MARTA CESAR
FESTIVAL INTERNACIONAL
DE DANÇA CONTEMPORÂNEA

10 A N O S
EM ENCONTROS

ORGANIZ AÇ ÃO
JUSSAR A X AVIER E
MARTA CESAR
Para Neiva Ortega
(in memoriam)
© Jussara Xavier e Marta Cesar (organizadoras)

Coordenação executiva e editorial: Jussara Xavier


Organização: Jussara Xavier e Marta Cesar
Projeto gráfico e diagramação: Paula Albuquerque
Capa: Paula Albuquerque sobre ilustração de Fabio Dudas (Espetáculo
Céu na Boca, Quasar Cia. de Dança (GO), fotografia de Cristiano Prim)
Revisão: Taciana Innocente
Assessoria de comunicação e imprensa: Néri Pedroso
Autores dos textos: Ana Maria Alonso Krischke, Ana Luiza Ciscato, Andréa
Scansani, Claudia Muller, Cristiano Prim, Ida Mara Freire, Inês Bogéa, Isabel
Marques, Jussara Xavier, Lilian Vilela, Manoel J. de Souza Neto, Marila Velloso,
Marta Cesar, Néri Pedroso, Olga Gutiérrez, Paula Albuquerque, Rui Moreira,
Sandra Meyer, Thembi Rosa, Vanilton Lakka
Imagens: Cristiano Prim
Edição: Múltipla Dança

Os comentários e opiniões emitidos pelos autores


são de sua inteira responsabilidade.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Múltipla Dança : festival internacional de dança contemporânea [livro eletrônico] :


10 anos em encontros / Ana Maria Alonso Krischke ... [et al.] ; organização Marta
Cesar , Jussara Xavier; coordenação Jussara Xavier ; ilustração Fabio Dudas. -- 1. ed.
-- Florianópolis, SC : Jussara Xavier, 2020.
PDF

Vários autores.
ISBN 978-65-993431-0-0

1. Artes 2. Cultura 3. Dança 4. Fotografias I. Krischke, Ana Maria Alonso. II. Cesar,
Marta. III. Xavier, Jussara. IV. Xavier, Jussara. V. Dudas, Fabio. VI. Título.

20-53349 CDD-792.8

Índices para catálogo sistemático:


1. Dança : Artes 792.8

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129


Projeto realizado pelo Governo do Estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Catarinense de
Cultura (FCC), com recursos do Prêmio Elisabete Anderle de Apoio à Cultura ∕ Artes – Edição 2019.
APRESENTAÇÃO Jussara Xavier e Marta Cesar | 11

CURADORIA DE DANÇA COMO ABERTURA AO DIÁLOGO Jussara Xavier | 26

POR UMA ARTE ACESA E RESISTENTE Inês Bogéa | 48

TRIUNFO DO ETERNO RECOMEÇO Néri Pedroso | 56

MÚLTIPLAS DANÇAS | MÚLTIPLAS CRÍTICAS | MÚLTIPLAS ESCRITAS Sandra Meyer | 84

ALGUMAS LETRAS DO ALFABETO DO MÚLTIPLA DANÇA Ida Mara Freire | 102

DANÇANDO COMO ARTISTA-ETC. Cláudia Müller | 134

HISTÓRIAS DE VIDA EM DANÇA Lilian Vilela | 146

O CORPO COMO MORADA DO TEMPO Andréa C. Scansani | 162

MÚLTIPLAS IMAGENS Cristiano Prim | 184

PARÂMETROS EM MOVIMENTO . 2.0.1.6 _ Thembi Rosa | 210

BLOCO DE NOTAS DE MONO-BLOCOS: ANOTAÇÕES DE UM CORPO QUE FOI À RUA EM BUSCA


DA FRICÇÃO COM A CIDADE Vanilton Lakka | 228
A DANÇA COMO ENCONTRO Ana Maria Alonso Krischke | 248

DANÇAR, UM FIO CONDUTOR PARA A INCLUSÃO Ana Luiza Ciscato | 276

CALENDÁRIO DE ENCONTROS: DANÇA E TRANSFORMAÇÃO Isabel Marques | 290

GESTÃO PÚBLICA EM CULTURA E DANÇA: APONTAMENTOS INICIAIS PARA UMA REFLEXÃO


SOBRE CONTRADIÇÕES ENTRE DISCURSO E PRÁTICA Marila Velloso e
Manoel J. de Souza Neto | 306

VAMOS FALAR SOBRE DANÇAS NEGRAS Rui Moreira | 332

ESTO NO ES UN TEXTO, ES UN CUERPO Olga Gutiérrez | 356

ISTO NÃO É UM TEXTO, É UM CORPO Olga Gutiérrez (versão em português) | 380

CARTA DE AMOR A FLORIANÓPOLIS Marta Cesar | 404

EPÍLOGO: UMA HOMENAGEM A NEIVA ORTEGA | 418

LÍRIO DA PAZ, O GESTO DA DELICADEZA Néri Pedroso | 422

PRESENTE Paula Albuquerque | 425


APRESENTAÇÃO
DANÇA E MULTIPLICIDADE.
DANÇA É MULTIPLICIDADE.
MÚLTIPL A DANÇA.

A
palavra múltipla serve para designar algo que abrange
muitas partes e é dotado de complexidade. Por isso, o ter-
mo foi escolhido para reforçar a heterogeneidade como
traço próprio da dança. Por outro lado, ainda que dança seja um
substantivo regularmente pronunciado no singular, trata-se de
uma palavra que abraça uma variedade de técnicas e jeitos de dan-
çar: balé clássico, moderno, sapateado, jazz, dança popular, de
salão, de rua... Ou seja, o termo dança é, nele mesmo, um ele-
mento carregado de pluralidade. De maneira especial, o conceito
de multiplicidade colabora para olhar e discutir uma produção de
dança que denominamos como contemporânea: sistema específico
organizado a partir de diferentes modos de pensar, criar, prati-
car e experimentar dança. Simultaneamente singular e múltipla,
a dança contemporânea oferece discursos polissêmicos, multipli-
ca imagens e sentidos, forja diferenças e possibilidades, evidencia
uma variedade de usos do corpo e da cena. Interessa-nos, acima de
tudo, a perspectiva dialógica implicada em sua constituição. É com
essa visão e a partir das considerações acima que surge o Múltipla
Dança – festival e livro. Ambos lançam um olhar para uma diver-
sidade de corpos, contextos e propósitos, buscando compreender
a integração da qual emerge uma dança múltipla. Por ser múltipla,
escapa de qualquer tentativa de ser reduzida.

SEMINÁRIO, FESTIVAL, ENCONTRO

O projeto Múltipla Dança nasce de inúmeras inquietações,


dentre as quais a de buscar uma articulação entre aqueles que

11
compartilham o interesse pela dança contemporânea enquanto
proposta de produção do conhecimento; bem como, conceder es-
paço à ocorrência de diferentes modos de diálogo, procurando
aproximar sempre o pensar e o fazer dança. Com essas intenções,
buscamos desenhar um programa regular de integração, ou seja,
uma ação voltada ao compartilhamento de ideias, a difusão da in-
formação e de incentivo à transformação da dança contemporânea
como arte acessível a um público mais vasto. Múltipla, portanto,
porque também capaz de alcançar um número cada vez maior de
pessoas, sejam criadores, intérpretes, críticos, gestores, apreciado-
res ou formadores de opinião.

Inaugurado em 2006 como seminário, sendo mais tarde


denominado como festival, Múltipla Dança acontece anualmen-
te durante o período de uma semana em diversos espaços de
Florianópolis, capital de Santa Catarina, Brasil. Trata-se de um
programa de ações dedicado a promover a criação e difusão da
dança e arte contemporânea, tecido na articulação de artistas
profissionais, convidados e público. A programação prevê a ofer-
ta de espetáculos, oficinas, palestras, diálogos, mostra de video-
dança, conferências, ensaios abertos, exercícios de escrita crítica
e performances. De âmbito internacional, o encontro firmou-se
no calendário cultural da cidade, e recebeu, inclusive, o Prêmio
Cultura 2008, oferecido pela Prefeitura Municipal de Florianó-
polis e Fundação Franklin Cascaes para projetos de destaque na
área cultural. Ano após ano, o encontro ganha projeção nacional
e internacional, fato atestado por meio das significativas matérias
publicadas na imprensa.

Como o próprio nome afirma, concepção e programa são


calcados na multiplicidade. Afinal, assim funciona o campo de
interesse fundamental do festival: a dança e arte contemporânea,
território de conexões singulares entre corpos, movimentos e con-
textos diversos. Múltipla Dança vai além da perspectiva de exi-
bição de trabalhos artísticos. Seu programa é pautado em ações

12
de complementaridade entre criação, difusão e reflexão. Planeja
atividades que facilitem e fomentem o acesso a diferentes canais
de distribuição (teatros, espaços alternativos ou mesmo a rua), o
acesso do público em termos físicos (variedade de localidade geo-
gráfica, gratuidade de ingresso), o acesso intelectual (organização
de oficinas, palestras, diálogos, publicação de programa, lança-
mento de livros, entre outras). O interesse é ampliar o intercâmbio
e a troca de informações por meio de propostas que contemplem
a diversidade nacional e internacional. Além de mostrar traba-
lhos artísticos, os convidados ministram oficinas, palestras e/ou
participam dos diálogos temáticos entrando em contato com um
público variado, alunos e profissionais da dança local. Ou seja,
Múltipla Dança está focado na dança como experiência produtora
de conhecimentos e acontecimentos.

Além de considerar a variedade de pontos de vista como


motor do desenvolvimento da dança, o projeto Múltipla Dança
surgiu apostando nos encontros interpessoais e na tessitura de re-
des de contatos. Com efeito, sua viabilização sempre ocorreu via
apoio e parcerias locais, nacionais e internacionais. Instituições
como Aliança Francesa de Florianópolis, Sesc-SC Universidade do
Estado de Santa Catarina (Udesc), Universidade Federal de San-
ta Catarina (UFSC) e Fundação Cultural Badesc; projetos como
Tubo de Ensaio, Entrando em Contato e Acervo Mariposa; festi-
vais como o Dança em Foco; patrocinadores como Caixa, Funar-
te e Governo Federal, estiveram unidos ao projeto, colaborando
para viabilizar sua programação e continuidade. De fato, uma das
grandes dificuldades do mercado da dança é garantir a permanên-
cia de suas ações, frequentemente ameaçadas de extinção por mo-
tivos que vão da carência de apoio financeiro até a falta de cone-
xão entre seus participantes. Para nós, realizar o Múltipla Dança
é um permanente desafio, o qual coincide com nosso compromisso
de gerar condições de existência à própria dança. Julgamos que a
perseverança é uma forma eficaz de fomento.

13
Acreditamos, também, que qualquer tentativa de compreen-
são do momento atual passa pelo reconhecimento de uma história
que, mesmo sendo um passado, vive e opera no presente. Compro-
metido com a disseminação de informações de importância histó-
rica, especialmente àquelas associadas ao estado de Santa Catari-
na, homenageamos e celebramos importantes nomes, como Ana
Luiza Ciscato, Anderson Gonçalves (1964-2010), Diana Gilarden-
ghi, Ida Mara Freire, Renée Wells (1925–2007), Sandra Meyer e
Grupo Cena 11 Cia. de Dança.

O propósito do Múltipla Dança é o de buscar e organizar en-


contros, pois entendemos que eles levam-nos a pensar-criar. Sendo
assim, cada edição procurou construir diferentes oportunidades
de interação, de exercício e aprofundamento de nossa capacidade
relacional. Cabe considerar, a exemplo, que para além dos espetá-
culos, a programação sempre inclui aulas práticas e conversas com
os criadores convidados. Ao longo do tempo; perseguindo o pro-
pósito de sobrepor diferentes práticas e discursos, privilegiando a
aventura do conhecimento e a diferença como potencial instaura-
dora de novas perspectivas; o festival Múltipla Dança firmou-se
como um espaço favorável a uma variedade de falas e proposições
para se aproximar da dança. E, ainda, constituiu-se como uma es-
pécie de rede potente para firmar encontros e reencontros, criando
um ambiente de familiaridade entre artistas e a comunidade de
Florianópolis.

Na origem da palavra festival, encontramos os termos ce-


lebração e integração, os quais explicam nosso desejo de orga-
nização e continuidade do evento. Queremos ver e experimentar
dança, registrar e falar sobre o que retemos, entrar em acordo
e desacordo. Múltipla Dança valoriza um contexto artístico que
está sempre em processo e recusa um único padrão de existência,
um modo que escolhe o risco e, com coragem, insiste na necessi-
dade urgente de (re)descoberta. Um encontro que investiga alguns
dos infinitos possíveis que nascem do e no dançar.

14
LIVRO, REGISTROS, REL ATOS, TESTEMUNHOS

Na esteira da manutenção de sua função primordial – insti-


tuir espaços de troca, sensibilizar o público em geral para a dança
e arte contemporânea, favorecer a profissionalização de artistas e
gestores – propomos a publicação desta edição comemorativa aos
10 anos de realização do festival Múltipla Dança.

Este livro assume significação pelo ponto de vista da memória


e do arquivo. A publicação pretende demonstrar como o projeto atua
na construção do circuito de dança contemporânea em Santa Ca-
tarina, como estimula trajetórias, pesquisas e atua no índice de de-
senvolvimento humano. Vale ressaltar que a noção de arquivo aqui
mencionada está em sintonia com o desejo de inaugurar diálogos
com diferentes temporalidades. O livro representa a possibilidade de
arquivar pensamentos no desdobramento de itens distintos – histó-
ria, criação, crítica, pesquisa, inclusão e gestão; que se conectam com
noções e afinidades do presente a-histórico, ou seja, a publicação não
aposta no cronológico, mas no anacrônico, um viés significativo do
discurso contemporâneo. Enquanto gesto crítico-criativo de reco-
nhecimento de trajetórias, a publicação lida com memórias e modos
de dançar, atravessando, sempre, outros importantes universos: o
cultural, o social, o político, o econômico e o da comunicação1.

1
Desde o início, Múltipla Dança investe na execução de um plano de comunicação consis-
tente e fundamentado em duas bases: 1) Uma assessoria de imprensa profissionalizada, sob
a responsabilidade da jornalista Néri Pedroso. Tal aspecto é significativo, configurando-se
como importante potência do projeto, posto que assegura, inclusive, a visibilidade em outras
geografias. O investimento em uma assessoria de imprensa de qualidade alinha-se à ideia de
produzir pensamento e sensibilizar diferentes públicos. O conteúdo adquire força estética
com as imagens de Cristiano Prim, fotógrafo profissional especializado em dança, que regis-
tra as ações do festival desde a primeira edição. 2) A criação de um design gráfico eficiente,
capaz de conjugar os aspectos visuais e funcionais de modo a comunicar a qualidade e o
diferencial do Múltipla Dança. A designer Paula Albuquerque comanda a campanha e cria as
peças gráficas do festival.

15
Além disto, trata-se de um dispositivo capaz de fortale-
cimento e qualificação dos debates travados nas edições reali-
zadas do festival Múltipla Dança. E, ainda, de uma excelente
ferramenta para produção de novas narrativas sobre as realida-
des vivenciadas. O livro propõe um entrelaçamento de olhares
e uma multiplicidade de vozes relacionadas ao evento e suas re-
percussões, com o objetivo de constituir-se enquanto operador
significativo de mudanças e transformações em seu ambiente de
realização. A publicação segue algumas das metas do evento:
abrir possibilidades de criação e circulação do pensamento espe-
cializado além do ambiente acadêmico; colaborar com a forma-
ção de plateias e leitores da dança; ampliar conexões com outros
artistas do país e do mundo; promover a articulação entre dança
e cidade.

Os escritores convidados a compor este livro são artistas,


professores, críticos, pesquisadores, enfim, profissionais conec-
tados a área da dança que participaram, pelo menos, de uma
edição do festival Múltipla Dança. Ou seja, são pessoas que de
algum modo vivenciaram o encontro, em suas diferentes oportu-
nidades de ação, e que agora ou refletem sobre o próprio Múlti-
pla e seu contexto, ou apresentam pensamentos voltados a cam-
pos específicos de conhecimento, a exemplo da crítica, criação,
história, pesquisa, inclusão, gestão e política da dança.

No texto “Curadoria de dança como abertura ao diálo-


go”, Jussara Xavier discute possíveis funções de um curador e
revela especificidades dos processos e práticas curatoriais de-
senvolvidas nas edições do Múltipla Dança. Sua hipótese afir-
ma a curadoria de dança como proposição dialógica, aberta a
diferentes posições e pontos de vista, incentivadora de leituras e
perguntas distintas. Ao fazer escolhas, o curador assume riscos
e considera, inclusive, que nem todos os públicos estão dispostos
ao diálogo. Para a autora, o diálogo requer o estabelecimento de
um ambiente de cooperação, esforço de compreensão e interesse

16
em fomentar conhecimento. A riqueza de um diálogo estaria
exatamente no contato entre diferenças e não entre iguais.

O texto de Inês Bogéa contextualiza os 10 anos do Múltipla


Dança no Brasil e reflete sobre a importância de encontros simi-
lares para o fomento e a difusão da dança nesse país. A autora
reconhece que mesmo na aridez de recursos e no deparar-se com
muitos desafios, o evento configura-se “como um espaço movente
de aproximações singulares e reconfigurações do próprio espaço
da dança, que leva em conta a resistência do mundo para encon-
trar fluidez e sustentabilidade artística”.

Néri Pedroso amplia o olhar sobre o Múltipla Dança, ao


analisar seu contexto de ocorrência: o circuito de dança contem-
porânea em Santa Catarina. Ao observar esse ambiente, a jor-
nalista aponta diversas debilidades - como a aridez de verbas, a
ausência de políticas públicas, o descaso empresarial; mas tam-
bém vitalidades – como a qualidade dos profissionais atuantes, a
riqueza e ressonância de seus trabalhos. Sem fixar-se nos lamen-
tos, oferece uma perspectiva otimista acerca do circuito investiga-
do, apontando que, paradoxalmente, a falta de apoio é capaz de
“moldar novos modos de criar e produzir pensamento”. Ela diz:
“Embora vitimado pelas descontinuidades, se não robusto, o mo-
vimento existe. Informe, tem riqueza, produz texturas, ocupa um
espaço social público. Os artistas da dança produzem arte como
um ato de resistência”. Nunca desistimos de acreditar.

A crítica e seus movimentos: tal é o mote do texto de San-


dra Meyer, que expõe ideias sobre escrita crítica em dança na ca-
pital do estado de Santa Catarina, incluindo os escritos que se
desdobraram a partir da programação do Múltipla Dança. Segun-
do a autora, textos críticos podem revelar aspectos da dança que
aqui se produz e que por aqui circula, bem como, evocar dizeres
próprios das danças. Meyer chama atenção ao fato de que novos
modos de se fazer arte demandam novas práticas de escrita. No

17
entrelaçamento de múltiplas danças, críticas e escritas, distingue a
colaboração do Múltipla Dança “para diminuir a acrisia presente
em grande parte dos festivais de dança catarinenses”, bem como,
para permitir “que a contemporaneidade da dança (que inclui a
dança contemporânea) aqui circule e ganhe vigor”.

Ida Mara Freire, que acompanha e escreve sobre o Múltipla


Dança desde a primeira edição, compôs um alfabeto para indexar
suas anotações, escritas e críticas publicadas no Caderno Plural do
Jornal Notícias do Dia. O resultado é um mosaico de memórias e
afetos, que remetem a um universo de artistas, histórias, espetácu-
los, práticas, diálogos, encontros, homenagens e perguntas. Poesia
e informação de A à Z.

Cláudia Müller distingue a noção de artista-etc.; termo


cunhado pelo artista, professor e crítico Ricardo Basbaum; para
questionar a natureza e função do artista. Para facilitar seu reco-
nhecimento enquanto uma artista-etc., a autora recorda e proble-
matiza importantes trabalhos de sua trajetória, como o projeto
Dança Contemporânea em Domicílio e a ação Precisa-se Públi-
co. Longe de ocupar-se apenas com a produção de suas próprias
obras, o artista-etc. deseja “imaginar e construir circuitos férteis,
gerar contextos e pontos de contato, tecendo possíveis redes que
engendrem possibilidades de existência, de visibilidade, de debate
e de construção de espaços para produções artísticas. A artista-e-
tc. emite, portanto, discursos no plural e se afeta por êxitos e fra-
cassos que não os seus”. Estamos convictas que o Múltipla Dança
nasceu como possibilidade de encontro e geração de “artistas-etc”.

“Quantas pessoas conhecem histórias pelos/dos/com corpos


que dançam?”. Na esteira dessa pergunta, Lilian Vilela desco-
bre Denise Stutz e esclarece a pesquisa biográfica em dança. Um
modo de investigação atravessado por processos de transformação
e criação, muito além da mera coleta de dados. De acordo com
a autora, produzir memórias é fundamental para o aprendizado

18
individual e coletivo, dado que pode constituir um acervo de refe-
rências para a interpretação do presente e para a antecipação de
futuros possíveis. Ela elucida: “Aprendi que as narrações têm a
possibilidade de modificar nossas ideias e conceitos sobre o que foi
vivido, ressignificando o presente e modificando o que está por vir.
É o futuro que nos interessa quando lidamos com as memórias. É
“para o que virá” que existem pesquisas históricas, para iluminar
nossa ação no mundo ao nos projetarmos sobre o que foi vivido”.
Vale sublinhar que tal é o propósito do Múltipla Dança ao definir
homenageados em suas edições, divulgando pedaços da história
da dança local, desejando despertar investigações deste teor.

“O corpo como morada do tempo” é o título do texto de


Andréa C. Scansani, também conhecida como Daraca. Recorren-
do a poesia e filosofia, a autora desenha encontros entre a imagem,
o movimento e o tempo. Um texto que transborda a força e a
delicadeza próprias de um ato cinematográfico e de uma ação de
dança. Daraca anuncia: “A dança, bem como a imagem cinemato-
gráfica, teria então como matéria-prima o próprio tempo inscrito
no corpo”. Sua reflexão passeia por um corpo-imagem em movi-
mento e transformação no e com o tempo.

Thembi Rosa cria um tempo próprio “sem começo meio e


fim”, para continuar dançando ou buscando “sempre e de novo,
de novo, e de novo”. Em seu relato, ela testemunha escolhas, sen-
sações e impressões de alguns de seus trabalhos criativos na dança,
como as intervenções urbanas parquear e parquear bando, a ins-
talação parâmetros em movimento, a performance perceptrum,
o espetáculo 1331” e a instalação coreográfica verdades inven-
tadas. Ao revelar estratégias inventivas, a autora expõe a riqueza
que nasce do entrelaçamento entre dança, música, sons, softwares,
imagens, ambientes, companhias, etc. Para ela, “a rádio, a rua, as
intervenções, as redes, as publicações, os encontros corpo a corpo,
tudo isso está para mostrar que a dança, os processos de criação
não se resumem a um fórmula única de existir, vai além, vai para

19
as situações que nos impulsionam a criar novos lampejos de con-
tinuidade”.

Criar novas situações e problemas para o corpo que dança


é uma das preferências criativas de Vanilton Lakka. Ele escreve
sobre a trajetória que o levou a desenvolver conceitos e práticas
focados na relação entre corpo, dança e cidade. Para abordar a
formação do artista cênico em sua relação com a arquitetura da
cidade, o autor reflete sobre diferentes aspectos e etapas da pes-
quisa, elaboração e realização do projeto Mono-Blocos. Segundo
Lakka, Mono-Blocos resulta de um estudo que iniciou com a ne-
cessidade de “dançar na cidade, rolar no piso duro, experimentar
os volumes e texturas da praça, negociar com a horizontalidade e
com a verticalidade do urbano. Negociar também as dimensões
histórica, técnica, política e social presentes no corpo de cada
um, bem como verificar as possibilidades de convivência e sobre-
vivência de um corpo na interação com a arquitetura física e so-
cial das praças ocupadas em festivais e programas artísticos”. O
trabalho cênico é organizado por meio de uma lógica de jogos e
envolve diversos modos de interação com o público.

Assim como Lakka, Ana Alonso também aborda uma


dança sempre fruto do encontro. Ela concentra-se na prática e
pesquisa da técnica Contato Improvisação (CI), para tratar da
dança como experiência de encontro e o encontro na vivência da
dança. Neste contexto, a relação interpessoal implica em apro-
ximação, compartilhamento, colaboração, crença, liberdade e
responsabilidade. Na esteira do pensamento da autora, CI en-
globa um processo capaz de gerar ruído e desacordo e, por isto,
prioriza aspectos como confiança, segurança e escuta, de modo a
desenhar um campo que permita expressar diferenças e exercitar
a coexistência. Tal exercício é caro à manutenção dos princípios
que regem a composição de cada programa e edição do festival
Múltipla Dança. A construção deste espaço supõe um perseguir
a possibilidade da coexistência de diferentes, o que, por sua vez,

20
implica em acolher simultaneamente artistas e públicos diversos
entre si.

Encontrar e reunir projetos artísticos com pensamentos di-


versificados nem sempre é fácil. O texto de Ana Luiza Ciscato
trata exatamente do desenvolvimento de um trabalho artístico in-
clusivo, realizado a partir de uma visão abrangente de mundo.
Ela propõe pensar a inclusão por meio da conscientização de que
todos temos reconhecimentos, inteligências, formas de expressão,
aprendizados e capacidades diferentes. A autora relata sua expe-
riência profissional em dança: mais de 25 anos de trabalho junto
a pessoas com deficiências. Sem ditar modelos de ensino-apren-
dizagem, Ana Luiza Ciscato permite vislumbrar o que significa
transformar restrições em possibilidades criativas.

Convidamos Isabel Marques para escrever sobre possíveis


transformações humanas e sociais por intermédio da dança. Ela
inicia seu texto dizendo voltar-se “às memórias presentes de en-
contros que me fazem refletir sobre a dança em tempos e espaços
de educação e arte. Comemoro 10 anos de verdadeiros encontros
proporcionados pelo Múltipla Dança”. Marques acredita que a ex-
periência da dança é capaz de inaugurar espaços para a imaginação
e criação e, assim sendo, de transformar pessoas e contextos sociais.
Ela critica o hiperindividualismo da sociedade atual que inviabiliza
encontros e diálogos, ao mesmo tempo em que enaltece a improvi-
sação enquanto estratégia de dança e arte compartilhada.

Marila Velloso e Manoel J. de Souza Neto escrevem em in-


terlocução com autores da dança, do direito e da política, de modo
específico das políticas culturais. O texto revela contradições entre
o que é dito e o que é praticado nas gestões culturais do Estado,
no Brasil, as quais afetam a gestão pública e a implementação de
qualquer programa setorial. O artigo é oportuno para fundamen-
tar estudos na área da gestão em dança e de outros setoriais, tendo
em vista a carência de publicações que apresentem as dimensões

21
e as relações entre os setores e a estrutura do Estado. A hipótese
dos autores é de que a burocracia do Estado moderno é o que de-
limita o que é ou não possível em uma gestão pública de cultura
e de dança.

“Isto não é um texto, é um corpo”. Sob esta afirmação/pro-


vocação, a criadora mexicana Olga Gutiérrez reúne escritos pro-
duzidos em diferentes ocasiões de sua trajetória profissional: situ-
ações de residência, colaboração artística, criação de espetáculos e
até momentos de ócio em países como México, Espanha, Alema-
nha e Argentina. Suas reflexões circulam em torna das perguntas:
“O que pode um corpo?”, “O que é um artista-gestor?”, “Que
tipo de trabalho realiza?”. Interessada em investigações em torno
da singularidade do corpo conectado com a arte e o político, Olga
busca desenhar outros modos de mover, novos espaços e imaginá-
rios acerca da construção de coletividades. Aqui cabe sublinhar e
agradecer a tradução do espanhol para o português realizada pela
artista e professora de dança, argentina radicada em Florianópo-
lis, Diana Gilardenghi. Sendo assim, o texto de Olga Gutiérrez é
publicado em sua língua original – espanhol, acompanhado da
tradução em português.

Rui Moreira faz um texto-convite intitulado “Vamos falar


sobre as danças negras”, apontando pensamentos e ações de dança
alçados no universo da produção cultural negra. Seu escrito in-
clui uma lista de pessoas e de iniciativas referências neste contex-
to, destacando os encontros da Rede Terreiro Contemporâneo de
Dança. O autor conclui com um chamado à valorização dos “po-
vos afrodescendentes”, os quais “representam um grupo distinto
cujos direitos humanos precisam ser promovidos e protegidos”.

Marta Cesar escreve sua “carta de amor” para a cidade de


Florianópolis, onde residiu de 2001 a 2017, quando retornou à
capital São Paulo, sua terra natal. A narrativa concentra-se em sua
trajetória profissional, passeando por encontros pessoais e funções

22
exercidas: bailarina, pesquisadora, professora, diretora e produto-
ra em diferentes espaços artísticos (Centro Integrado de Cultura,
Ateliê Cia. de Dança, Cravo-da-Terra, dentre outros); gestora de
artes e cultura em instituições privadas (Aliança Francesa), públi-
cas (Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes) e no
terceiro setor (ONG Arte Movimenta); colaboradora em associa-
ções e comissões da classe da dança (Aprodança, Colegiado Seto-
rial de Dança). O escrito destaca o momento de criação e manu-
tenção do festival Múltipla Dança. Com ele, Marta Cesar registra
sua gratidão pelo tempo vivido na capital catarinense, brindando,
de modo especial ao seu encontro com Neiva Ortega, a quem esta
publicação é dedicada.

O livro inclui, ainda, um texto imagético do fotógrafo Cris-


tiano Prim, profissional com uma trajetória de mais de 20 anos
na cidade de Florianópolis, especializado em retratar o movimento
evidenciado na dança de Santa Catarina. Prim veicula parte do tra-
balho realizado no festival Múltipla Dança, ao captar seus momen-
tos e criar novos olhares e temáticas em torno do vivido. Seu texto
veicula fotografias de espetáculos, performances e conferências
dançadas captadas em várias edições do evento. Além disso, repre-
senta uma oportunidade de conhecimento e interrogação acerca da
dança, apontando questões poéticas, históricas, sociais, políticas,
tecnológicas e econômicas, vislumbradas em suas imagens.

Acreditamos que leituras sobre dança contemporânea levam


o leitor a uma melhor percepção e compreensão do assunto. É
uma rica possibilidade de obter informação, ter contato com uma
cultura especializada, acessar seus comportamentos e histórias e,
consequentemente, lidar melhor com aquilo que é “diferente”. Tra-
ta-se da possibilidade de exercitar a formulação de reflexões sobre
a dança, ou seja, de encaminhar-se para formar ideias próprias
e maduras dos fatos. Por fim, registramos nossos sinceros agra-
decimentos aos autores dos textos deste livro por suas valiosas
contribuições.

23
Esta publicação deseja sublinhar o compromisso de forma-
ção abraçado pelo festival Múltipla Dança em todas as suas edi-
ções. Disseminar conhecimento em dança. Construir relaciona-
mentos. Gerar diálogos e pensamento crítico. Múltipla Dança é
um espaço aberto para.

Boa leitura!
Jussara Xavier e Marta Cesar

24
JUSSARA XAVIER atua como crítica de dança,
diretora de espetáculos de dança e teatro, pes-
quisadora, professora, gestora, coordenadora
e parecerista de projetos culturais. Pós-dou-
tora em Filosofia (UFSC), doutora em Tea-
tro (Udesc), mestre em Artes, Comunicação
e Semiótica (PUC/SP), especialista em Dança
Cênica (Udesc). Professora dos cursos de Licen-
ciatura em Dança, em Teatro e em Música da
Universidade Regional de Blumenau (FURB).
Publicou os livros Grupo Cena 11. Dançar é
conhecer (2015) e Acontecimentos de dança:
corporeidades e teatralidades contemporâneas
(2013). Coorganizadora dos livros Tubo de En-
saio. Composição [Intervenções + Interseções]
(2016); Histórias da Dança (2011); Pesquisas
em Dança (2008); Tubo de Ensaio. Experiên-
cias em Dança e Arte Contemporânea (2006).
Responsável pela pesquisa, realização e direção
do Documentário Ballet Desterro: Contempo-
raneidade na Dança Catarinense (2010). Na
função de coordenadora dos Seminários de
Dança do Festival de Dança de Joinville, orga-
nizou os livros 1, 2, 3 e já! A criança pinta,
borda e dança (2018) e Dança não é (só) coreo-
grafia (2017). O site Midiateca de Dança (midia-
tecadedanca.com) disponibiliza gratuitamente
livros, textos e vídeos de sua autoria, além de
reunir um acervo documental relacionado à his-
tória e memória da dança catarinense.

26
CUR ADORIA DE DANÇA COMO
ABERTUR A AO DIÁLOGO
Jussara Xavier

A
o desenhar o projeto de um seminário, festival e/ou encon-
tro de dança (três designações que costumamos usar para
denominar o Múltipla Dança), uma das funções exercidas
é a de curadoria. Num primeiro momento, este texto busca pensar
acerca de tal encargo. Encargo porque trata-se de um compromis-
so, quer dizer, do exercício de uma responsabilidade pessoal que
considera e deseja modificar o campo em que se atua profissional-
mente: dança, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Num segundo
momento, o texto reflete sobre uma ação específica dentro do Múl-
tipla Dança: os diálogos, ou seja, espaços planejados para a realiza-
ção de conversas acerca de assuntos específicos, definidos por nós
e inicialmente abordados por um grupo de pessoas convidadas. A
seleção desse recorte justifica-se, inicialmente, pela importância que
tanto eu quanto Marta Cesar; profissional com quem compartilhei
a curadoria das 10 edições do Múltipla; conferimos à criação de
espaços de conversa e aproximação com e entre artistas, bem como,
desses com o público. Apesar desta iniciativa, ano após ano, reunir
um número muito restrito de público, nunca abdicamos de incluir
o momento. Nele encontramos a possibilidade privilegiada de estar
com aqueles que escolhemos para arquitetar relações entre ideias e
proposições, construir e fortalecer vínculos pessoais e profissionais.
Por fim, busco pensar a curadoria como processo potencializador
de diálogos entre diferentes e diferenças.

UM COMEÇO: PROCESSO DE CUR ADORIA DE DANÇA

Na etimologia da palavra curadoria está o latim curator,


que significa aquele que administra, que tem cuidado e apreço.

27
Também quer dizer o ato de “curar” que, por sua vez, relaciona-se
com o zelo e a atenção com alguma coisa. Considero estes concei-
tos bastante apropriados, pois vão ao encontro de minha experi-
ência no papel de curadora na área da dança, prática inicialmente
exercida com base na intuição e no desejo de realizar. Mas cuidado,
apreço e zelo com o quê ou com quem? Com a cidade e o estado em
que habito, a partir da constatação de falta: muito pouca oferta de
informação especializada na minha área de trabalho em termos de
aulas, palestras, conferências e/ou espetáculos de artistas e compa-
nhias profissionais de dança provenientes de outros estados e países.
Entre ação e reclamação, abraço sempre a primeira opção, a princí-
pio rascunhando alternativas e desenhando planos. O cuidado com
meu ambiente manifestou-se na tentativa de modificar uma conjun-
tura precária e insuficiente. Tal seria o empurrão que deu início a
um processo pessoal de curadoria, realizado de modo independente
e interessado em abrir e fundar espaços de acesso à dança. A ação
de “curar”, conectada à concessão de atenção com algo, também
diz respeito ao conhecimento de uma área de interesse: a produção
profissional de dança no Brasil e no mundo. Nesse contexto, a fun-
ção de um curador passa pela compreensão do mercado, pela ma-
nutenção do interesse em seus elementos (artistas, obras, festivais,
ações, etc.) e pelo cultivo de contatos.
A falta de recursos financeiros interfere enormemente e de
diversos modos no tipo de curadoria praticada. Por vezes um cura-
dor atua como uma espécie de explorador, buscando descobrir
e gerar visibilidade para novos artistas e obras. Neste sentido, o
ideal é que ele possa viajar, circular, acessar diferentes canais de
distribuição: festivais, teatros e eventos de dança por diferentes
partes do Brasil e do mundo. Assim pode ampliar seu repertório,
suas fontes de conhecimento e possibilidades de seleção. Quando
as finanças impedem as viagens de conhecimento, cabe recorrer a
internet e aos contatos pessoais. A internet permite acessar a pro-
gramação de mostras e festivais por todo o mundo, verificar tem-
poradas de dança em teatros e demais canais de exibição, pesqui-
sar sites de instituições, artistas e companhias de dança, assistir

28
a vídeos de espetáculos, bem como, ler críticas especializadas em
jornais e revistas. Há um grande mercado virtual de dança pronto
para ser desbravado. Ao contatar um artista ou uma companhia
profissional de dança, você pode solicitar seu portfólio, requerer o
projeto de venda de algum trabalho coreográfico, questionar sobre
o repertório em exibição e até mesmo trocar ideias sobre os pa-
res, recebendo indicação de outras obras e possibilidades. De todo
modo, com ou sem dinheiro, acredito que a investigação, ainda
que mínima, é parte de todo processo de curadoria.
Se o curador é também aquele que administra, está envol-
vido em uma complexa rede de gerenciamento de recursos (finan-
ceiros, materiais e humanos) e de tomada de decisões. Ele tem o
dever de orientar suas escolhas para que suas ideias sejam efetiva-
mente implantadas e seus objetivos alcançados. Sua competência
inclui não somente saberes conectados aos artistas, espetáculos e
atividades que deseja programar, mas implica em conhecer suas
possibilidades reais de ação. No caso do Múltipla Dança, tínha-
mos como pressuposto a realização de ações em diferentes canais
de distribuição e bairros da cidade. Num primeiro momento, lis-
távamos os espaços – teatros, salas de exibição, instituições, aca-
demias, escolas e até mesmo a rua, potencialmente aptos a receber
nossas ações e/ou estabelecer parcerias. O Centro de Artes (Ceart)
da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), por exem-
plo, é um local que possui salas que servem tanto à exibição de es-
petáculos quanto à oferta de cursos de dança. Contudo, especial-
mente em relação à mostra espetacular, há restrições em termos
espaciais: as salas não são apropriadas para companhias de dança
com elenco numeroso, dificilmente atendem à montagens comple-
xas em termos técnicos e não comportam um público numeroso.
Ou seja, tanto esse quanto outros espaços possuem limites e pos-
sibilidades que devem ser analisados: características e tamanho
do palco (italiano, arena, multiuso, etc.), equipamentos (som, luz,
vídeo), recursos (equipe de limpeza, banheiros, linóleo, técnicos,
cadeiras, etc.) disponíveis e capacidade de abrigar o público (em
termos quantitativos e qualitativos).

29
Planejamento e organização são funções que exerci como
curadora do Múltipla. Logicamente, o volume de recursos finan-
ceiros disponível para o pagamento de cachês, despesas de trans-
porte aéreo e terrestre, hospedagem, alimentação, locação de espa-
ços e equipamentos, dentre outros itens, determinavam as escolhas
curatoriais. Neste sentido, permanecemos distantes de incluir na
programação muitos nomes e obras internacionais que desejáva-
mos ter nas edições. Para atender nossa dimensão orçamentária e
operacional, optamos majoritariamente por trabalhos coreográfi-
cos no formato solo e duo ou grupos com equipe e elenco reduzi-
dos. Isto mostra que o curador como administrador deve ter uma
visão integrada das diferentes etapas e necessidades envolvidas
no processo de realização de um festival ou evento de dança. A
concretização de um projeto curatorial envolve constante adapta-
ção e negociação, inclui a avaliação das alternativas disponíveis, a
antecipação de possíveis consequências e o controle de atividades
gerenciais, processo que vai muito além da escolha isolada de ar-
tistas, grupos, trabalhos, espetáculos e ações de dança.
Um ponto definido em nosso esforço de curadoria para o
Múltipla Dança é o de aproveitar ao máximo os convidados. De
fato, em nossas convocações, costumávamos brincar dizendo que
“explorávamos” as pessoas que trazíamos para Florianópolis. As-
sim, por exemplo, o artista apresentava seu solo de dança, partici-
pava de um diálogo, ministrava uma oficina e era levado a acom-
panhar toda a programação do encontro. Este seria, talvez, um
traço curatorial do Múltipla Dança: incluir pessoas interessadas
em trocar experiências, em conhecer o outro. Nunca foi nosso
propósito programar apenas profissionais e trabalhos que já co-
nhecíamos, ao contrário, escolhíamos aqueles pelos quais éramos
atraídas, que nos geravam curiosidade, com os quais desejávamos
criar proximidade. Foi uma espécie de risco assumido, pois al-
guns (muito poucos, diga-se de passagem e de modo agradecido)
convidados concordavam com nossa proposta de imersão e parti-
cipação ampliada de modo puramente formal, permanecendo no
Festival com uma atitude solene e distanciada. Em nossas reuniões

30
de avaliação, concordávamos exatamente sobre aqueles que não
deveriam retornar tão cedo (ainda que seu trabalho artístico fosse
excelente).
Um curador de dança assume a tarefa de intervir no mercado
do micro ao macro. Em nosso caso: Florianópolis, Santa Catarina,
Brasil e mundo. Nossa cidade e estado por serem a sede do festival
e, sendo assim, os ambientes que impactamos mais diretamente.
Mas também nosso país e os demais, posto que construímos pon-
tes com diversas localidades e oportunizamos trabalho para pro-
fissionais de várias regiões. Oguibe (2004, p. 11) distingue como
um dos tipos de curador o “corretor cultural”, apontando-o como
aquele que “emprega seus conhecimentos, autoridade e contatos
direcionando-os à arte e aos artistas, que podem não ter acesso
imediato [...] ao público, de modo a fixar-se no papel de agencia-
dor cultural intermediário”. Como mediador, o curador promove
o acesso do artista a plateia, aproximando-os. Assim, atua como
um facilitador capaz de gerar visibilidade e reconhecimento para
determinados profissionais e obras. Indo mais fundo, buscamos,
no Múltipla, não apenas possibilitar mero contato entre dança e
público, mas ofertar alternativas capazes de auxiliar a fruição e
leitura das obras veiculadas. De encontro a tal propósito, progra-
mamos ações como oficinas, palestras, conferências e diálogos.
A palavra curadoria vem das artes visuais, o que talvez sirva
para justificar uma produção considerável de textos acadêmicos e
livros sobre o assunto nessa área. A abordagem nas artes cênicas
é ainda tímida, especialmente na dança. Neste contexto, destaco
a dissertação de Rolim (2015), que investiga o pensamento cura-
torial orientador de três importantes festivais de artes cênicas no
Brasil, a partir de depoimentos de seus curadores: Luciano Ala-
barse, do Porto Alegre em Cena – Festival Internacional de Ar-
tes Cênicas; Guilherme Reis, do Cena Contemporânea – Festival
Internacional de Teatro de Brasília, e Antônio Araújo, da Mostra
Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp. Ressalto em segui-
da falas de cada um destes profissionais, pois dizem pensamentos
e práticas também vivos no Múltipla Dança.

31
[...] não gosto dessa ideia de uma curadoria conceitual. Eu sou
bem Millôr Fernandes, que tinha uma coluna muitos anos na Veja
e ele assinava assim: “Millôr, enfim, um escritor sem estilo”. Lu-
ciano, enfim, um curador sem estilo. O que é que eu quero dizer
com isso? Que eu não gosto de um só teatro, eu acho isso uma
prisão, eu gosto dos teatros. Então eu sou capaz de admirar um
teatrão muito bem feito ou uma peça experimental; eu sou capaz
de ver um solo de um ator que se joga nesse solo; e o que me atrai
é um trabalho que prenda a atenção. Para começar, é a minha
atenção. [...] a minha curadoria mostra um consumidor ávido, um
consumidor que não quer um só tipo de teatro, um consumidor
que não tem preconceito contra nada, né? Contra comédia, contra
tragédia, contra drama, contra teatro de mágica. (ALABARSE
apud ROLIM, 2015, p. 66)

Talvez eu adorasse ter um coordenador-geral que me contratasse


para fazer o que eu faço. Para não perder tanto tempo em plani-
lhas e coisas que me dão dor de cabeça. Mas não é a nossa realida-
de. A outra coisa que impacta com essas decisões e que tem a ver
com tudo isso é que o nosso festival é um festival privado feito por
artistas: não tenho respaldo do Estado. Se a gente errar nas contas
e ficar uma dívida, isso não vai ser pago por uma secretaria ou
por uma prefeitura. Então a gente tem que ter um cuidado muito
grande quando a gente olha do ponto de vista econômico e finan-
ceiro do festival. E isso condiciona escolhas. Parece que sempre o
curador do festival é o cara que livremente escolhe o que ele quer.
Só se ele tiver rios de dinheiro, ou sacos de dinheiro sem fundo.
Não é o nosso caso. (REIS apud ROLIM, 2015, p. 90)

Fazer a curadoria de uma mostra é tarefa ao mesmo tempo desa-


fiadora e ingrata. O abismo entre o projeto inicial e as possibilida-
des reais – decorrentes de restrições econômicas ou de agenda dos
artistas convidados – exige plasticidade e um grau de adaptação
que, muitas vezes, parecem desvirtuar ou trair o desejo original.
Por outro lado, o imperativo do possível também vai configu-

32
rando novos desenhos e inesperadas soluções, além de auxiliar a
compreensão daquilo que, na gênese do projeto, ainda era vago e
disforme. Ou seja, nada muito diferente de qualquer outra práti-
ca performativa, como, por exemplo, dirigir uma peça de teatro.
(ARAÚJO apud ROLIM, 2015, p. 109)

De modo análogo à fala de Luciano Alabarse, consideramos


a curadoria que exercemos no Múltipla Dança bastante aberta e
inclusiva. Não definimos um conceito e buscamos encaixar obras
em torno do mesmo. Nem estamos interessadas num modo úni-
co de dança (ainda que explicitamente o foco seja a contempora-
neidade): do modo experimental ao “clássico”, a diversidade da
dança é o que interessa. Guilherme Reis enfatiza o que foi dito
anteriormente: todo o processo de seleção e formatação de um
programa obedece ao quadro orçamentário, levando em conta
possíveis parcerias e apoios. Por fim, Antônio Araújo chama aten-
ção à adequação permanente que ocorre na trajetória que vai do
desenho à execução de um projeto curatorial. A flexibilidade para
resolver imprevistos indesejáveis e formular soluções pertinentes
é indispensável. A posição de curador pode ser bastante descon-
fortável. Afinal, você responde ao público (formado também por
seus pares de profissão) sobre o funcionamento ou não do festival,
constata erros e acertos. Cada edição é um aprendizado, o que
considero muito estimulante.

33
UM FIM: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

Dois monólogos não fazem um diálogo.
_Edward Murphy

O que é um diálogo? Como ele se efetua? Quem fala? Quem


é autorizado a falar e sobre o quê?
Em uma acepção habitual, diálogo é uma conversa, é uma
discussão oral que se desenvolve com a manifestação de pontos
de vista sobre determinado assunto entre duas ou mais pessoas,
que explicitam suas ideias de forma alternativa. Acredito que para
um bom diálogo ocorrer, é necessário estabelecer um ambiente de
cooperação, reciprocidade, esforço de compreensão e interesse em
fomentar o conhecimento sem preconceitos. Tal sistema de con-
versação requer o estabelecimento de uma relação entre iguais, os
quais dirigem aos interlocutores seus próprios pensamentos, sejam
eles semelhantes ou diferentes do outro. Neste caminho de troca
constrói-se um mundo comum de percepções, sublinhe-se: con-
traditórias ou não. O propósito de um diálogo é ampliar a esfera
de nossos conhecimentos, não manipular opiniões para convencer
o outro acerca do próprio ideário. Ao meu ver, a riqueza de um
diálogo está exatamente no contato entre diferenças, no encontro
com o díspar. Qual seria a graça de colocar num diálogo pessoas
que pensam e agem exatamente do mesmo modo, compondo uma
troca de falas concentrada em salientar o mesmo? Na contramão
dos processos de comunicação enfadonhos e redundantes, a cura-
doria do Múltipla Dança estipulou preceitos e ações que revelaram
um interesse em ouvir, saber mais e melhor, compreender e fecun-
dar pensamentos diversos, enriquecer formulações conceituais e
experimentais. Essa postura estende-se à composição deste livro,
cujas ideias de diferentes autores são ofertadas aos leitores para
que dialoguem, concordando ou não com suas declarações.
As dez edições do Múltipla Dança incluíram “Diálogos” em
sua programação: tempos e espaços organizados para conversação

34
sobre algum tema pré-determinado com convidados considerados
a partir de uma afinidade e/ou interesse no assunto. Estabelecido
um tema como foco da conversa, selecionávamos criteriosamente
um grupo de profissionais para trocar informações, inicialmente
entre si mesmos e, num segundo momento, incluindo o público
presente como interlocutor. Para convocar um profissional, pon-
derávamos sobre sua trajetória profissional no campo da dança,
seu conhecimento e experiência no contexto do assunto escolhido
para o debate.

Na inauguração do Múltipla, em 2006, realizamos dois mo-


mentos: o primeiro designado “Diálogos Brasil-França: produção
e contexto da dança contemporânea” com a participação de Inês
Bogéa (SP), Osman Khelili (França) e Sandra Meyer (SC); e o se-
gundo denominado “Experiências interdisciplinares em dança”,
envolvendo Ângelo Madureira (SP), Ana Catarina Vieira (SP), Ale-
jandro Ahmed (SC), Eva Schull (RS) e Zilá Muniz (SC).

Em 2007, o primeiro diálogo teve como foco a “Gestão


da dança: novos modos de produção e distribuição”. Reunimos
Elke Siedler (SC), Florencia Olivieri (Argentina), Neto Machado
(PR), Rui Moreira (MG) e Stéphany Mattanó (PR) para pensar
possibilidades criativas eficientes de sobrevivência no mercado da
dança. O segundo foi uma conversa sobre criação, com enfoque
nos trabalhos colaborativos realizados entre pessoas de diferentes
vivências, bem como, nas relações que surgem entre a pesquisa
em dança contemporânea e o produto artístico gerado. Intitulado
“Trabalhos colaborativos em dança: procedimento investigativo
x produto artístico”, juntou os artistas Alejandro Ahmed (SC),
Clara Trigo (BA), Cláudia Müller (RJ) e Thembi Rosa (MG).

A terceira edição, em 2008, promoveu uma conversa entre


curadores e programadores para (re)pensar alternativas de acesso
à dança, o fluxo das informações no setor e a descentralização
dos circuitos de dança. “Difusão da dança” contou com a par-

35
ticipação de Nayse Lopes (do Festival Panorama de Dança, RJ),
Sacha Witkowski (Festival Diagnóstico da Dança, GO) e Simo-
ne Avancini (Sesc/SP). As perguntas: Como fortalecer o mercado
da dança? Qual o papel da educação, da política e das mídias?
Quais as responsabilidades dos profissionais da área para superar
a invisibilidade social?, instigaram Armando Menicacci (França),
Sandra Meyer (SC) e Sonja Gradel (RJ) a pensar sobre possibili-
dades capazes de gerar “Visibilidade à dança” (título do diálogo
em questão).

“Política e economia da dança” foi o tema de um dos diálo-


gos programados na edição de 2009. Ao considerar que a economia
da cultura envolve produção, circulação e consumo de produtos e
serviços culturais, respondendo por cerca de 7% do PIB mundial,
o diálogo desejou tratar das ações políticas que consideram a dan-
ça como fonte geradora de renda e emprego, bem como, vetor de
desenvolvimento humano na sociedade. Para discutir o assunto,
reuniu Christophe Martin (França), Ernesto Gadelha (CE) e Ma-
rila Velloso (PR). Outro diálogo - “Dramaturgia da dança”-, ques-
tionou os convidados Márcia Milhazes (RJ), Milton de Andrade
(SC) e Sandra Meyer (SC) a tratar de modos e processos particula-
res de organizar material criativo no corpo e na cena.

2010. “Improvisação em espetáculos de dança”, com Ana


Alonso (SC), Cristina Turdo (Argentina) e Zilá Muniz (SC). Este
diálogo partiu da premissa que o ato de improvisar é usualmen-
te utilizado como recurso para composição coreográfica e prática
democrática de ensino da dança. A proposta foi a de refletir sobre
a improvisação em seu modo espetacular. Lançamos perguntas
como: Trata-se de uma dança não planejada? Um espaço para o
risco, acaso e imprevisto? Quais as consequências dessa escolha no
impacto com a plateia? Num outro momento, Ana Carla Fonseca
Reis (SP), Marcos Moraes (SP), Vanilton Lakka (MG) e Luciana
Ribeiro (GO) destrincharam o assunto “Economia da cultura: as
redes como forma de articulação solidária”. Esse diálogo promo-

36
veu a reflexão sobre a economia da cultura, a implementação de
ações integradas por meio da constituição de redes de parceria
para a profissionalização do trabalho artístico. Também propôs a
disseminação de conhecimentos sobre a aplicação de métodos, ín-
dices, processos e ferramentas da economia na área da gestão cul-
tural. Nesse ano organizamos um terceiro diálogo: “SIM > Ações
integradas de consentimento para ocupação e resistência”, foi uma
conversa orientada sobre a pesquisa coreográfica do Grupo Cena
11 Cia. de Dança (o nome do trabalho da companhia coincidiu
com o título do diálogo). Fabiana Dultra Britto (SP) como inter-
locutora do grupo guiou a proposta, que também contou com a
participação dos integrantes da companhia catarinense.

Foram 3 os diálogos programados em 2013: “Políticas pú-


blicas e a Aprodança – Associação dos profissionais de dança de
Santa Catarina” com Lisa Jaworski (SC), Bia Mattar (SC) e Marta
Cesar (SC); “Como se constrói uma dramaturgia de afetos?” com
Andrea Bardawil (CE), Alejandro Ahmed (SC) e Sandra Meyer
(SC); e “Dança, memória e história: pesquisas em dança nos esta-
dos de Santa Catarina e Rio Grande do Sul” com Vera Torres (SC)
e Mônica Dantas (RS).

Em 2014: “Pesquisa biográfica em dança” com Alejandro


Ahmed (SC), Denise Stutz (RJ) e Lilian Vilela (SP); e “Fomento à
dança: ações de sustentabilidade”, com Ana Francisca Ponzio (SP),
Bia Mattar (SC) e Marcelo Leal (RJ).

Na edição de 2015 criamos uma espécie de jogo em que


convidados e público trocaram perguntas e respostas, elegendo,
juntos, o tema da conversa. Denominado “Faça uma pergunta”, o
diálogo ocorreu com Eduardo Fukushima (SP), Elke Siedler (SC),
Fabiano Carneiro (RJ) e Marina Abib (SP). O segundo momento
sob o título “Dança e cinema e vídeo e teatro e performance e
fotografia e música”, partiu do pressuposto da dança como um
tipo de conhecimento conceitual e estético de ordem colaborativa

37
e, sendo assim, a conversa desejou aprofundar aspectos operati-
vos desta linguagem em conexão ao cinema, vídeo, teatro, artes
visuais, música e performance. Foram convidados: Andréa Scan-
sani (cinema, SC), Cristiano Prim (fotografia, SC), Maria Eugenia
Almeida (dança, SP) e Leandro Fortes (música, SC).

No ano de 2016 repetimos a proposição “Faça uma pergun-


ta”, chamando Elías Aguirre (Espanha) e Vera Torres (SC) para
dialogar. “O que você está pensando/dançando?” – questão que
juntou Alejandro Ahmed (SC), Olga Gutiérrez (México) e Them-
bi Rosa (MG) para compartilhar ideias e prenunciar comporta-
mentos no mundo artístico. Ainda tivemos um encontro com Rui
Moreira (MG) e Bia Mattar (SC) sobre a “Política Nacional de
Artes”, os quais abordaram propostas públicas à área da dança
em nível federal.

2017: “Néri Pedroso entrevista Cristiano Prim”. Diálogo ex-


clusivo atrelado à realização da exposição “O Fotógrafo também
Dança”, exibida durante o período de execução do Múltipla Dan-
ça. Assim, a jornalista Néri Pedroso, profissional reconhecida por
sua atuação no campo do jornalismo cultural em Santa Catarina,
entrevistou o autor da exposição, o fotógrafo e artista Cristiano
Prim. Em outra proposta, os convidados Jussara Belchior (SC),
Key Sawao (SP) e Marila Velloso (PR) discutiram sobre “Dança
Etc.”. O título faz referência à definição de “artista-etc.”, de Ricar-
do Basbaum. A conversa guiou-se por questionamentos acerca dos
significados do dançar, abordando conexões entre dança e vida.
Ana Alonso (SC), Mariana Pimentel (CE) e Rodolfo Lorandi (SC)
dialogaram sobre “Economia Solidária”. Nesse sentido, explici-
taram variadas práticas organizadas sob a forma de autogestão,
âmbito em que todos aqueles que integram um empreendimen-
to são, ao mesmo tempo, trabalhadores e donos. Esse momento
lançou um olhar para modos exemplares de economia solidária,
numa tentativa de pensar possibilidades de cooperação no campo
artístico.

38
(1)

(2)

39
(3)

(4)

40
(5)

(6)

41
(7)

(8)

42
LEGENDAS
(1) Inês Bogéa | Edição 2006
(2) Cláudia Müller, Jussara Xavier, Alejandro Ahmed, Thembi Rosa e Clara Trigo | Edição 2007
(3) Paulo Caldas e Marta Cesar | Edição 2009
(4) Mônica Dantas e Vera Torres | Edição 2013
(5) Alejandro Ahmed, Lilian Vilela, Denise Stutz e Jussara Xavier | Edição 2014
(6) Marcelo Leal, Ana Francisca Ponzio e Bia Mattar | Edição 2014
(7) Eduardo Fukushima. Ao seu lado: Elke Siedler e Fabiano Carneiro | Edição 2015
(8) Cristiano Prim e Néri Pedroso | Edição 2017
Todas as fotos: Cristiano Prim, exceto (8), de Gisele Martins Prim | Acervo Múltipla Dança

ENTRE O REAL E O IMAGINADO

A maioria das pessoas imagina que o mais importante no


diálogo é a palavra. Engano: o importante é a pausa. É na pau-
sa que duas pessoas se entendem e entram em comunhão.
_Nelson Rodrigues

O diálogo tem como pressuposto a capacidade de fala e de


escuta. Tendemos a participar de diálogos sobre assuntos que nos
interessam e/ou em nossos campos de atuação profissional e de
estudos. No papel de curadora, nunca me pareceu viável ou pro-
veitoso colocar um profissional, como um médico, por exemplo,
sem qualquer conhecimento sobre dança, num lugar privilegiado
de fala sobre essa arte. Considero argumento lógico e razoável,
promover um debate qualificado sobre um tema de determinada
área, selecionando profissionais com trajetória de vida, pesquisas
e realizações importantes neste mesmo campo de saber. Contudo,
para estabelecer uma conversa é necessário mais do que qualifi-
cação técnica na área: requer competência para dialogar, ou seja,
dialogar vai além de um mero discursar. “Ao contrário do que se
costuma pensar, dialogar não quer dizer criar um monólogo no

43
qual apenas um membro fala na medida em que os demais escu-
tam. Uma profusão contínua de palavras bem articuladas e em-
pregadas nunca foi, é ou será diálogo. Dialogar não é monologar”
(CAMPOS, 2010, p. 10). Tal habilidade compreende a capacidade
de colocar-se no lugar do outro, com intenção legítima de ouvir sua
perspectiva e compreender seu ponto de vista, mesmo que discor-
dante e contrário à própria posição. A postura arrogante, defensiva
e fechada é oposta à atitude de escuta rogada pelo diálogo.
O que temos hoje no Brasil? Um país dividido incapaz de
estruturar diálogos entre diferentes. Você é esquerda então é igual
a x. Você é centro, equivale a y. Direita, certamente um z. Você é
do teatro, é isto. É da dança, é aquilo. É do balé, é assim. É do con-
temporâneo, é assado. Como assim? O que dizer destes discursos
generalistas e superficiais pouco interessados em escutar o outro,
ao invés, apressados em rotulá-lo, pior, atacá-lo, diminuí-lo? Ao
invés de etiquetar uma pessoa, não seria razoável escutá-la e bus-
car compreender seus desejos e motivações? Quer dizer, dialogar?
Será que o fato dos diálogos programados nas edições do Múltipla
Dança contarem sempre com um número pequeno de participantes
é revelador do quão pouco somos disponíveis a escutar o outro?
Manifestaria também o pouco interesse despertado pelo outro em
mim?
O empreendedor paulista Edu Lyra, filho de uma diarista e
de um ex-presidiário, fundador da rede de ONGs Gerando Falcões,
arrecadou em cerca de duas semanas o valor de R$ 10,8 milhões
para beneficiar 170 mil pessoas em favelas de 14 Estados brasi-
leiros. Seu objetivo: combater a fome e a pobreza agravadas pela
crise do Coronavírus. Ao avaliar o cenário de intensa polarização
reforçado pela pandemia no Brasil, Lyra (2020) declara:

Essa polarização, a ignorância, o ódio, esses muros destroem e


matam vidas. As pessoas acham que só a corrupção mata. A falta
de pragmatismo das nossas lideranças, de proposição, de diálogo,
isso destrói as famílias nas pontas e retarda o desenvolvimento
das pessoas. Nós precisamos derrubar os muros e construir as

44
pontes. Precisamos de fazedores de pontes. Até agora, só temos
construtores de muros. Isso começa lá em cima e se reflete na
sociedade. Tudo é politizado, tudo envolve briga. [...]. Quando
eu arrecado doações, eu levo para quem votou no Lula ou no
Bolsonaro, para o homossexual, o heterossexual, o preto, o bran-
co. Estamos todos no mesmo barco e precisamos entender que só
sairemos deste labirinto juntos.

Entre o real e o imaginado há um longo caminho a enfrentar.


Na função de curadora, considerando o mercado da dança brasi-
leiro e as condições financeiras/operacionais já destacadas, acredito
que o diálogo oferece uma metodologia de ação e está no topo da
conquista como valor inegociável. Unindo esforços teórico-práti-
cos, os quais envolvem articulação conceitual e gestão executiva,
a curadoria implica em reconhecer a importância de comunicar e
fazer com o outro.
Smith (2012, p. 21) identifica elementos do pensamento cura-
torial contemporâneo como uma mistura concreta de princípios,
valores, ideias, regras práticas e necessidades éticas. O autor lista
sete componentes da prática curatorial designados pelo especialis-
ta em história da arte e curador nascido na Inglaterra e habitante
na Austrália Nick Waterlow (1941-2009), num documento intitu-
lado “A Curator’s Last Will and Testament” (O último desejo e o
testamento de um curador): 1. Paixão; 2. Olho de discernimento;
3. Um vaso vazio; 4. Uma habilidade de ser incerto; 5. Crença
na necessidade da arte e artistas; 6. Um meio de trazer, de modo
apaixonado e informado, a compreensão de obras de arte para
um público de modo que se estimulem, inspirem, questionem; 7.
Tornar possível a alteração da percepção (Ibidem, p. 21-22). Tais
pressupostos corroboram com minha hipótese de compreender
curadoria de dança como proposição dialógica, aberta a diferentes
posições e pontos de vista, incentivando leituras e perguntas dis-
tintas sobre uma mesma proposição artística. A “habilidade de ser
incerto” implica em fazer escolhas e assumir riscos, compreenden-
do, inclusive, que nem todos os públicos dispor-se-ão a dialogar.

45
Cabe dizer que, como curadora, o estar sempre certa e o agradar
a todos (até mesmo a si) é bem pouco provável.
A capacidade de colocar novos problemas condiz, também,
com o campo da dança contemporânea, foco da curadoria do
Múltipla Dança. Como afirmei em minha tese de doutorado:

O contemporâneo na dança reflete uma visão particular de mundo


e não se restringe a um único modo de composição no corpo e na
cena. Tampouco carrega a missão unívoca de negar uma técnica
ou movimento artístico qualquer. Ocupa-se em perguntar, conhe-
cer e escolher. Tal liberdade criativa permite desde a apropriação
da poética etérea da dança clássica, à qualidade expressionista
da dança moderna, à variedade das danças populares, de salão e
de rua, até o uso de gestos cotidianos e a própria recusa do mo-
vimento enunciada pela dança pós-moderna americana nos anos
1960. A função conservada se refere a de questionar, e até mesmo
demolir, suas próprias categorias de enunciação e elementos com-
positivos. Desfazer a si mesma. Não cansa de interrogar e criticar
seus contextos: arte e vida. Localizada num território sem leis
fixas, modelos e convenções imutáveis, a dança contemporânea
desenha linhas que antes de dividir, apontam outros caminhos de
pesquisa e significação. [...] Trata-se de um mapa movediço, que
não cessa de mover-se e expandir-se. [...] A dança é confirmada
como possibilidade desimpedida que preserva e enaltece a inde-
terminação e o risco, caminhos importantes para descobridores
obstinados. (XAVIER, 2012, p. 11)

O termo diálogo resulta da fusão das palavras gregas “dia”,


que significa “através”, e “logos”, “razão”. O anseio da razão
é conhecer e criar sentidos. A razão é tensão manifesta, a qual
impulsiona o homem à aventura do conhecimento, numa viagem
que nunca se esgota. Uma curadoria de dança como abertura ao
diálogo empreende um movimento que supera o limite fixado pela
falsa sabedoria e segurança opressiva. Ela instaura dinâmicas de
encontro mantendo um olhar aberto para o outro, espaço-tem-

46
po que nunca acabamos de adentrar, pois sua própria natureza é
transformação e multiplicidade.

REFERÊNCIAS

• CAMPOS, Tânia Cristina Cavalcanti. A importância do diálogo


na gestão de pessoas. 2010. Monografia (Pós-Graduação em Ges-
tão de Recursos Humanos). Faculdade Cândido Mendes. Rio de
Janeiro, 2010.
• LYRA, Edu. “Quando arrecado doações, levo para quem votou
no Lula ou no Bolsonaro”, diz Edu Lyra, da Gerando Falcões.
[Entrevista concedida a] Moacir Drska. NeoFeed. 19 abr. 2020.
Disponível em: https://neofeed.com.br/blog/home/quando-arre-
cado-doacoes-levo-para-quem-votou-no-lula-ou-no-bolsonaro-
-diz-edu-lyra-da-gerando-falcoes/
• OGUIBE, Olu. O fardo da curadoria. Revista Concinnitas. ano
5, vol. 1, n. 6, 2004. p. 7-17.
• ROLIM. Michele Bicca. Pensamento curatorial em artes cênicas:
interação entre o modelo artístico e o modelo de gestão em mos-
tras e festivais brasileiros. 2015. Dissertação (mestrado em Artes
Cênicas). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Ale-
gre, 2015.
• SMITH, Therry. Thinking Contemporary Curating. ICI Perspec-
tives in curating n.1. New York, 2012, ebook.
• XAVIER, Jussara Janning. Acontecimentos de dança: corporei-
dades e teatralidades contemporâneas. 2012. Tese (doutorado em
Teatro). Universidade do Estado de Santa Catarina. 2012.

47
INÊS BOGÉA é diretora da São Paulo Companhia
de Dança (SPCD) desde sua criação em 2008.
Doutora em Artes (Unicamp, 2007), bailarina,
documentarista, escritora e professora no cur-
so de especialização Arte na Educação: Teoria
e Prática da Universidade de São Paulo (USP).
De 1989 a 2001, foi bailarina do Grupo Cor-
po (Belo Horizonte); de 2001 a 2007, crítica
de dança da  Folha de S. Paulo. É autora dos
livros infantis:  O livro da dança, Contos do
balé e Outros Contos do balé.  Organizadora
dos livros Oito ou Nove Ensaios sobre o Gru-
po Corpo (CosacNaify, 2001), Passado-Futuro
– Textos e fotos sobre a São Paulo Companhia
de dança (Martins Fontes, 2014), entre outros.
Na área de arte-educação foi consultora da Es-
cola de Teatro e Dança Fafi (2003-2004) e con-
sultora do Programa Fábricas de Cultura da
Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo
(2007-2008). É autora de mais de quarenta
documentários sobre dança, entre eles  Renée
Gumiel, A Vida na Pele (2005), Maria Dusche-
nes – o espaço do movimento  (2006), Lenira
Borges – uma Vida para a Dança (2011) e da
série Figuras da Dança da SPCD (2008-2017).
INESBOGEA.COM.BR.

48
POR UMA ARTE ACESA E RESISTENTE
Inês Bogéa

Q uem organiza seminários internacionais de dança con-


temporânea experimenta a sensação de trabalhar ideias
e olhares distintos. Ou seja, os encontros muitas vezes
questionam entendimentos ao oferecer possibilidades infinitas de
imaginação, vivências e produções. É nesse enfrentamento que o
trabalho ganha corpo e se dá a ver. Este texto contextualiza os
10 anos do Múltipla Dança no Brasil e reflete sobre a importância
desses encontros no fomento e na difusão da dança no nosso país.
Que estradas podem ser trilhadas para se continuar fazendo
arte em Florianópolis? Como criar espaços de experiências, diálo-
gos, intercâmbios, e espetáculos numa grande ilha bem ao sul do
país? Como ampliar os espaços de interrogação, encontros e po-
tencialidades da arte da dança? Nas palavras das curadoras Marta
César e Jussara Xavier, o “Múltipla Dança surge como um progra-
ma regular de integração e uma ação cultural voltada ao compar-
tilhamento de ideias. A proposta é ainda de difusão da informação
e de incentivo à transformação da dança como arte acessível a um
público mais vasto.”1
Ao comemorar 10 anos de existência (2006-2016) o Múl-
tipla Dança mostra uma história de resistência, de tensão e ex-
pansão dos espaços da arte em diferentes dimensões e realidades.
O processo se efetivou por um trabalho incansável, enfrentando
as adversidades dos momentos de crises do país (em 2011 e 2012
ele não aconteceu), transformando a realidade, estabelecendo redes
de informações, saberes e diálogos, justapondo elementos e trans-
pondo limites pelos processos que desencadeia. Como dizem as
curadoras: “[...] um acontecimento que vinga a despeito das tantas

1 Texto do catálogo 2016

49
dificuldades implicadas na conservação de um festival cujo foco
é a dança profissional (totalmente desamarrado do mercado da
competição), com realização em Florianópolis, Santa Catarina,
Brasil. É preciso permanecer afrontando todo cansaço e adver-
sidade, converter obstáculos em potência inventiva, ir além já.”2

CONTEXTO

Perguntas feitas pelas curadoras em 2008 são ainda hoje re-


levantes para o Múltipla Dança e outros festivais e mostras que se
realizam no Brasil: Qual o significado dos festivais em seu ambien-
te? Que mudanças produz? Como contribuir com a sustentabilidade
deste mercado artístico?
No Brasil há festivais com formatos, propostas e papeis dis-
tintos na dança. O Múltipla dialoga com mostras e festivais com
ações voltadas à dança profissional que aliam apresentações com
atividades formativas e de reflexão crítica sobre essa arte produzi-
das por artistas, produtores e pesquisadores. Cada um desses festi-
vais apresenta singularidades que trazem referências do local onde
se realizam e ao mesmo tempo ampliam a troca de informações e
experiências com grupos artísticos e profissionais de outras regiões
do Brasil e do mundo. São espaços que fortalecem o desenvolvimen-
to das linguagens da dança, ampliam a circulação e o acesso a infor-
mações, em diferentes dimensões, ou seja, alguns apresentam recor-
tes mais específicos, enquanto outros buscam uma maior amplitude
na curadoria, uns têm amplo público enquanto outros trabalham na
formação de plateia. Para ilustrar essa reflexão apresentamos oito
exemplos desses festivais, criados entre os anos 1990 e 2000:
A Bienal Internacional de Dança do Ceará de Par em Par
(Fortaleza, 2008) tem direção geral de Davi Linhares e direção ar-
tística e pedagógica de Ernesto Gadelha “configura-se como um

2 Texto do catálogo 2015

50
espaço de difusão, apoio à criação, à formação e ao intercâmbio
artístico. [...]”.3
O Festival Cena CumpliCidades (Recife, 2008), com direção
artística de Arnaldo Siqueira, é “[...] uma plataforma interativa
entre artes, artistas, produtores, instituições culturais, patroci-
nadores e projetos que, articulando-se em torno de necessidades
e interesses comuns, colaboram entre si compartilhando ideias e
proposições com o intuito de criar sinergias que beneficiam a to-
dos coletivamente”.4
A Mostra Brasileira de Dança (MBD, Recife, 2003) foi cria-
da por Luis Takeji Tamashiro [conhecido como Shiro, falecido em
2004] e Paulo de Castro. Hoje é promovida por Iris Macedo e Cas-
tro e “[...] celebra a dança em suas mais distintas vertentes, abrindo
espaço para espetáculos completos e coreografias isoladas, além de
um olhar especial para a formação com oficinas de iniciação e reci-
clagem, seminários, exposições e exibição de vídeos sobre a arte do
dançar. [...]”.5
O Fórum Internacional de Dança (FID, Belo Horizonte,
1996) foi criado por Adriana Banana (hoje coordenadora geral e
diretora artística) e Carla Lobo (que permaneceu até 2014). “[...]
tem como compromisso trabalhar pela difusão, reflexão e formação
de novos públicos e criadores no campo da dança contemporânea.”6
Festival Panorama (Rio de Janeiro, 1992) criado por Lia Ro-
drigues, é dirigido, desde 2007, por Eduardo Bonito e Nayse Lopez.
“O Festival busca não somente oferecer uma programação inovado-
ra e experimental, mas também promover discussões que atinjam o
pensamento e a participação social sobre as mais variadas vertentes
performativas.”7

3 www.bienaldedanca.com/2016/main/de-par-em-par-2016.html (acesso em 05/02/2017)


4 www.facebook.com/CenaCumplicidades (acesso em 05/02/2017)
5 Catálogo de 2014
6 www.fid.com.br (acesso em 02/02/2017)
7 http://www.acpanorama.org/?page_id=9220 (acesso em 05/02/2017)

51
Festival Internacional da Novadança (Brasília, 1996) cria-
do por Giovane Aguiar, “é um projeto de comunicação e inter-
câmbio, formação de opinião e de aperfeiçoamento para dança-
rinos, coreógrafos, diretores e profissionais da dança. Durante
os últimos anos este projeto está criando uma rede de comuni-
cação entre profissionais brasileiros e estrangeiros, permitindo a
reflexão, o desenvolvimento de pesquisa e o aprimoramento de
trabalhos”.8
Paralelo 16º Sul (Goiás, 2005) é uma mostra cênica produ-
zida por Vera Bicalho. “A vontade de ser dança, de fazer dança, de
ver dança, falou muito alto e mobilizou artistas e produtores. O
palco: quente e de brisas leves. Os protagonistas: fazedores de arte
dispostos a germinar um novo cenário para a dança contemporâ-
nea. O paralelo 16º sul deixou de ser linha imaginária. Passou a
ser linha concreta. Ponto de encontro de bailarinos, coreógrafos,
pesquisadores, comunicadores, no Centro-Oeste do Brasil.”9
Festival Contemporâneo de Dança (São Paulo, 2008) tem
direção artística de Adriana Grechi e a direção geral de Amaury
Cacciaro Filho. A edição de 2016 “reuniu artistas interessados
em experimentar dança como reinvenção do espaço comum, mo-
vimentando modos de perceber e potencializar nossos campos re-
lacionais. Que alternativas de convívio, conexão e partilha pode-
mos tramar em tempos de crise? Como transformar um contexto
tão adverso para a arte e a cultura? Que outras formas de afeto
são possíveis e necessárias diante de um cenário cada vez mais
tenso, violento e voltado aos encontros efêmeros, ao êxito indi-
vidual e ao aniquilamento da arte como laboratório comum?” 10
As perguntas feitas por Marta e Jussara podem ser aplica-
das aos diferentes exemplos acima e as respostas se dão na pró-
pria realização destes encontros em distintos lugares do país e nas

8 http://festivalnovadanca.blogspot.com.br/ (acesso em 06/02/2017)


9 http://paralelo16-dancacontemporanea.blogspot.com.br/ (acesso em 07/02/2017)
10 http://www.fcdsp.com.br (acesso em 05/02/2017)

52
possibilidade de formação de redes de produção ampliando os
circuitos. No caso específico do Múltipla, o lugar onde se realiza
este encontro é Florianópolis, mas ao trazer pessoas de diferentes
países e cidades do Brasil propõe um enfrentamento de ideias, que
delineiam a natureza e o sentido da arte, identifica e promove opo-
sições ao mesmo tempo em que amplia e fortalece as inter-relações
humanas. Os desdobramentos das interrogações de uma edição
nutrirão as outras edições com a ampliação ou o redimensiona-
mento das ações. Apesar da programação ser gratuita, o público,
de maneira geral, ainda pode ser ampliado para que o Múltipla
tenha maior penetração na própria cidade.
As composições propostas ao longo dos anos pelas curado-
ras revelam um corpo prático e teórico que ao mesmo tempo busca
significação e resistência nas atividades contemporâneas da dan-
ça: “O conceito de multiplicidade colabora para olhar e discutir
a produção da dança contemporânea atual em suas diferenças e
possibilidades. Rica e dinâmica, este sistema específico organiza-
do em diferentes práticas gera significados únicos e resulta em po-
lissemia. E é nesta multiplicação de imagens e entendimentos que
se costura uma identidade. Ou várias.”11
Ao longo dos anos foram várias atividades relacionadas:
Diálogos no qual convidados de diferentes atuações no Brasil e
interessados se reúnem para problematizar temas da dança como:
produção e contexto da dança contemporânea, gestão, política e
economia, pesquisa, fomento, crítica, difusão, visibilidade, expe-
riências multidisciplinares, trabalhos colaborativos, dramaturgia,
improvisação. A cada ano aconteceram palestras, cursos, oficinas,
conferências dançadas, jam sessions, espaços para compartilhar
pesquisas coreográficas, residências com artistas do Brasil, Fran-
ça, Argentina, Portugal, México, Espanha, ampliando o espaço de
troca de experiências. Uma plataforma de produção de textos crí-
ticos “Múltiplas Escritas intensificando a proposta dialógica: en-

11 Texto do catálogo 2016

53
tendida como telefone-sem-fio conceitual, busca desencadear uma
rede de escritas a partir de um texto inaugural”. Não faltaram
homenagens, lançamentos de livros, exibição de filmes de dança,
mostras de videodança, curtas, com intuito de disseminar infor-
mações de importância histórica, ampliar o registro e reflexão da
dança e apresentar olhares de diferentes lugares do mundo pela
produção audiovisual de distintos países como Argentina, Cana-
dá, Alemanha, Itália, Espanha, Portugal, Chile, México, Bélgica,
Hong Kong, Reino Unido, Brasil. Espetáculos, mostra de bolso
com artistas catarinenses, performances e intervenções urbanas
nos palcos e nas ruas proporcionaram a variados públicos a frui-
ção da arte da dança.
Múltipla Dança revela uma relação profunda nas ativida-
des que não se esgotam no final de cada encontro. Há um esfor-
ço de estabelecer relações e desdobramentos com consequências
imprevisíveis. A própria dinâmica dos encontros marcados pela
pluralidade de atividades simboliza e solicita outros entendimen-
tos da ação da arte no país. Trocas são movimentos vitais pro-
porcionados pelo Múltipla. Na aridez de recursos ou na potência
dos mesmos o evento se configura como um espaço movente de
aproximações singulares e reconfigurações do próprio espaço da
dança, que leva em conta a resistência do mundo para encontrar
fluidez e sustentabilidade artística.
Nestes 10 anos de existência, o Múltipla Dança se depa-
rou com vários desafios e revelou uma arte acesa e resistente pela
dinâmica de suas atividades e engajamento nas suas realizações.
Não se trata só de levar o foco da dança contemporânea para essa
região do país, mas também de nutrir as carências da dança, em
contato vivo com várias plateias.

54
55
NÉRI PEDROSO – Jornalista. Desde 2013, faz
parte da equipe técnica do Múltipla Dança
– Festival Internacional de Dança Contem-
porânea como assessora de imprensa. Auto-
ra dos livros Hassis (Tempo Editorial) e Co-
letiva de Artistas de Joinville: construção
mínima de memória (FCJ) e de Superlativa
Marina (Instituto Juarez Machado). Assina
artigo nos livros Tubo de Ensaio – Compo-
sição [Interseções + Intervenções], Percurso
do Círculo – Schwanke Séries, Múltiplos e
Reflexões (Contraponto), e é uma das orga-
nizadoras do livro Interlocuções Possíveis:
Kosuth e Schwanke (Instituto Schwanke).
Integra a Associação Brasileira de Críticos
de Arte (ABCA).

56
TRIUNFO DO ETERNO RECOMEÇO
Néri Pedroso

M
istura humana, ampla rede que envolve processos, en-
contros e desencontros entre diferentes pessoas e lu-
gares, o sistema ou circuito de dança requer trabalhos
artísticos, espetáculos, pesquisas, instituições, entidades, gestores,
curadores, críticos, produtores, coreógrafos, intérpretes-criadores,
o mercado e o público. Orgânicos ou não, esses relacionamentos
pedem o tempo todo uma série de mediações. Na trama entre po-
lítica e mercado, criadores e legislação cultural, órgãos de governo
e entidades corporativas, empresas privadas e instituições de ensino
constitui-se a base de uma obra que não está, naturalmente, desgru-
dada de emoções, percalços e a experiência pessoal do bailarino.
Resultado de fluxos e descontinuidades, entrelaçamentos e ruptu-
ras, esforço e disciplina, um trabalho artístico, portanto, agrega ca-
madas investigativas, pensamento e arcabouços inventivos.
A palavra circuito deriva da cibernética,1 ciência multidis-
ciplinar que investiga os sistemas e mecanismos automáticos nos
seres vivos e nas máquinas que, em permanente movimento, por
meio de elementos regulatórios e comunicacionais, operam possi-
bilidades de retroalimentação. Aplicada em contextos físicos e so-
ciais específicos, o termo migra para outros universos, amplamente
usado na dança e nas artes visuais. Nessas relações sem fim do
circuito, em ampla fluidez, como é o panorama de dança, como os
artistas atuam e enfrentam seus impedimentos, como pensam e de-
senvolvem os projetos? Quais são as parcerias? Como fazem neste
emaranhado de interações e retroações? Qual a sua herança? Pela
complexidade e abrangência do tema, uma possível leitura sobre o

1 Cibernética surge em 1942 com os renomados cientistas Norbert Wiener (1894-1964) e


Arturo Rosenblueth (1900-1970).

57
circuito de dança contemporânea em Santa Catarina sempre será
redutora. À luz de alguns teóricos e pesquisadores, o pensamento
aqui delineado tem como base as respostas de um questionário, o
acompanhamento e registro de encontros, seminários, discussões
e cursos realizados em Florianópolis e Joinville, sobretudo entre
2015 e 2016.
Multifacetado, com entrecruzamentos de difícil descrição,
cada um dos artistas carrega em si um arquivo sobre o qual nem
todos têm plena consciência. Poucos são os que reconhecem o valor
dos interstícios entre o presente e o passado, a passagem do tempo
e as atuações dos pioneiros. A história não pode ser negligenciada.
Ninguém nasce do nada. O modernismo tardio no Brasil reflete-se
com um atraso ainda maior em Santa Catarina. As experimen-
tações e o processo modernizador, as rupturas e a renovação de
linguagem aparecem de forma extemporânea. Há defasagem no te-
atro, na literatura, nas artes visuais e na dança. As afrontas da Se-
mana da Arte Moderna em São Paulo, em 1922, só irão ressoar no
Estado em 1947, com o chamado Grupo Sul. Na dança, as novas
ideias e conceitos em torno do moderno ficam represadas no atraso
inaugural da primeira instituição de ensino de dança oficial no Bra-
sil, a Escola de Bailados do Teatro Municipal, no Rio de Janeiro,
criada em 1927.2 Na intrincada injunção entre a arqueologia do
modernismo e do contemporâneo, as inquietações de Isadora Dun-
can (1877-1927) e Martha Graham (1894-1991), entre outros pre-
cursores da dança moderna, são lentamente introduzidas no Brasil.
A incorporação de novos conceitos se dá em meio aos impactos
dos anos 1960 e 1970, ao caldeirão efervescente da contracultura,
da arte marginal, do tropicalismo e do drama da ditadura militar.
“Todo o pensamento que norteou a passagem do moderno ao con-
temporâneo advém de reformas processadas nos anos 60, e se hoje
está plenamente sedimentado é porque corresponde precisamente a

2 XAVIER, Jussara; MEYER, Sandra e TORRES, Vera (org.). Histórias da Dança. Florianópolis:
Editora da Udesc, 2012, p. 143.

58
um modo de viver, pulverizado em incontáveis e simultâneos estí-
mulos e informações”.3
Entre os fenômenos artísticos que irão configurar o espírito
contemporâneo na dança estão a música pop, os videoclipes, o
dancing days, a dança jazz. A essência do experimentalismo in-
sere a produção na esfera cotidiana, muda o modo de fazer arte
e sobretudo de ver. O espanto que desnorteia os apreciadores de
dança no fim dos anos 20 nos Estados Unidos só alcança os que
prestigiam as raras apresentações de dança em Florianópolis em
meados dos anos 1970, quando no desejo de oferecer bons espe-
táculos de música erudita, a Associação Pró-Música de Florianó-
polis, presidida por Darcy Brasiliano dos Santos, agrega em sua
programação a dança e traz o Balé Stagium a partir de 1975 para
uma apresentação no Lira Tênis Clube. O estrondoso sucesso de-
termina, até 1997, nove vindas da célebre companhia paulista que
triunfa por sua ousadia criativa e uma proposta politizada para
pensar o Brasil. Prestigiado na capital catarinense às vezes em
até duas noites consecutivas, o Stagium ajuda a moldar um outro
olhar sobre a dança que dialoga com outras possibilidades conso-
nantes com o que ocorre fora do País. Outro fato determinante,
em 1984, a criação do Ballet Desterro, instaurador de uma nova
sensibilidade e apontado como o primeiro grupo de dança inde-
pendente do Estado. O que é isso, perguntam alguns, perplexos
com “aquilo” que incorpora outros padrões, os embates políticos
e estéticos da época. Libertos, com os pés descalços, os movimen-
tos dos bailarinos ainda têm resquícios do clássico e do jazz, mas
isso pouco importa aos espectadores. Além dos aspectos formais,
a renovação introduz a criação coletiva, algo inédito na cidade
que sinaliza um novo jeito de fazer e pensar. Premiado, legitimado
pela mídia e crítica, o Desterro estende suas atividades até 1992.
Além da notoriedade e da projeção no contexto brasileiro, as co-

3 CANONGIA, Ligia. O Legado dos anos 60 e 70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2005,
p. 60.

59
reografias deixam forte influência no cenário local, ativam outra
possibilidades discursivas, temáticas e corporais.
Ainda nas referências do passado, neste breve panorama
de legados produzidos entre 1982 e 1991 estão Albertina Ganzo
(1919-2000), Ramon Jisnisky (1939-2011), Jaques Oliver, Mari-
na de Carvalho, Bila D’Avila Coimbra (1934-2011), Rennée Wells
(1925-2007), Jussara Terrats, Martha Mansinho e Sandra Nolla.
“Os construtores da dança cênica em Florianópolis”,4 segundo
Sandra Meyer.5 Outra pesquisadora sistematiza as iniciativas esta-
belecidas nos anos 1980. Jussara Xavier6 cita o Shapanã, Móbile,
Vidança, Alma Negra e Cena 11 Cia. de Dança, esse último o
único ainda existente. Com amplo repertório, ao longo dos anos,
torna-se uma das mais importantes companhias de dança con-
temporânea do Brasil. Fruto de uma iniciativa de Rosângela Mat-
tos, professora e dona da Academia Rodança, em Florianópolis, o

4 NUNES, Sandra Meyer. A dança cênica em Florianópolis. Florianópolis: Fundação Franklin


Cascaes, 1994.
5 Sandra Meyer: artista, pesquisadora e professora. Atua no programa de pós-graduação
em teatro – mestrado e doutorado do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa
Catarina (Udesc). É doutora em arte, comunicação e semiótica pela (PUC/SP). Ministra
disciplinas e realiza pesquisas, publicações e orientações na área de dança e teatro.
6 Jussara Xavier: Pós-doutorado em Filosofia (UFSC), doutorado em Teatro (Udesc), Mes-
trado em Artes, Comunicação e Semiótica (PUC/SP) e especialização em Dança Cênica
(Udesc). Publicou Grupo Cena 11. Dançar é conhecer (2015) e Acontecimentos de dança: cor-
poreidades e teatralidades contemporâneas (2013). Coorganizadora dos livros Tubo de En-
saio. Composição [Intervenções + Interseções] (2016); Tubo de Ensaio. Experiências em Dança
e Arte Contemporânea (2006); Pesquisas em Dança - Col. Dança Cênica 1 (2008) e Histórias
da Dança - Col. Dança Cênica 2 (2011). Realizou o documentário Ballet Desterro. Contempo-
raneidade na dança catarinense (2010). Coordenadora de projetos como Tubo de Ensaio,
Laboratório Corpo e Dança, Laboratório das Artes do Corpo. Coordenadora e curadora do
Festival Múltipla Dança. Foi bailarina dos grupos Cena 11 (SC) e Raça (SP); professora da
graduação em Teatro da Udesc (2011-2016); gestora de projetos, produtora e professora
na Escola do Teatro Bolshoi no Brasil (2001-2008). Atualmente é professora dos cursos de
Licenciatura em Dança, Teatro e Música na Fundação Universidade Regional de Blumenau
(FURB).

60
Cena 11 surge para dar visibilidade à escola em mostras e festivais.
Onze bailarinos são selecionados por meio de audição realizada
em janeiro de 1986. “O primeiro trabalho, assinado por Ander-
son Gonçalves (1965-2010), chamava-se O importante é começar
(1987) e, na época, o estilo de dança escolhido foi o jazz”.7 Dirigi-
da por Alejandro Ahmed8 desde 1993, a companhia constrói uma
poética marcada por singularidades. “A dança do Cena 11 é de
risco”,9 legitima a crítica Helena Katz. Com forte carga inovadora,
os espetáculos mexem com a percepção de uma plateia com baixa
informação sobre os desafios e linguagens contemporâneas em que
a arte se situa em campo ampliado,10 pede interdisciplinaridade,
entrelaçamento de saberes, justaposição de discursos e práticas,
além de outras possibilidades. Ahmed apresenta um novo corpo,
um corpo imperfeito em movimentos e quedas jamais vistos. Suas
coreografias embaralham informações, aproximam dança, ciência
e tecnologia, demandam capacidade cognitiva, impõem reflexões e
múltiplas incertezas. Alijado da dança certinha e da aura autoral,
sem entender quase nada, o espectador é arremessado para dentro
ou fora da cena, chacoalhado em suas convicções e passividade.

7 SPANGHERO, Maíra. A dança dos encéfalos acesos. São Paulo: Itaú Cultural, 2003, p. 16.
8 Alejandro Ahmed: diretor, coreógrafo, professor e bailarino do Grupo Cena 11 Cia. de
Dança desde 1993, com o qual recebeu premiações, entre elas: Ordem do Mérito Cultu-
ral 2014 do Ministério da Cultura; Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia (2007); Prê-
mio Bravo! Prime de Cultura (melhor espetáculo de dança de 2007); Prêmio Mambembe
(melhor coreógrafo 1998); prêmios da Associação Paulista dos Críticos de Arte (melhor
criação em dança 2014; melhor concepção cênica 1997); Prêmio Mérito Cultural Cruz e
Sousa (destaque na área cultural catarinense em 1997). O grupo foi contemplado pelo
Programa Petrobras Cultural 2007/2008.
9 KATZ, Helena. A dança de risco do Cena 11. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 12 ab. 2000,
Caderno 2, p. D26.
10 Expanded field (campo ampliado), conceito de Rosalind Krauss, crítica e teórica da arte
norte-americana. Ao analisar a escultura, discute os procedimentos estéticos contempo-
râneos, nos quais os artistas adotam diferentes meios. Ela cria um diagrama de relações
e distinções que coloca a escultura em relação a outras linguagens, como a paisagem e a
arquitetura.

61
Fora da zona de conforto, soterrado de ruína, ninguém sai ileso
de uma dança apresentada como experiência e numa configuração
até então inclassificável.
Na arquitetura dessa “revolução”, o amplo esgarçamento
dos limites entre as linguagens artísticas, entre dança e tecnologia.
Sem temer o silêncio e o inacabado, o coreógrafo discute tempo e
espaço, corpo e contexto, mostra que dança é produção de pen-
samento, um amplo processo de conhecimento que se transfor-
ma nas contingências da realidade. Audaz, profundo pesquisador,
radical em suas experimentações, desde o início de sua carreira
Ahmed associa arte e ética, um conceito raramente comentado
pela imensa maioria dos artistas em Santa Catarina. Quase um
solitário nessa interlocução, adota o binômio sempre mencionado
em suas falas públicas e entrevistas. Tema de livros e pesquisas,
convidado a ministrar oficinas, participa de agendas internacio-
nais, capitaliza respeito pelo mundo. Suas ações, extremamente
refinadas, são reconhecidas de modo incontestável.
A legitimidade do Cena 11 estimula outras iniciativas im-
portantes desenvolvidas ao longo dos anos 1990, como o Maha-
bhutas, o Voga Companhia de Dança, o Khala Grupo de Dança,
Grupo Patibiribia, o Kaiowas Grupo de Dança e o Ronda Grupo
de Dança e Teatro, esse último o único ainda existente. No novo
século, na chamada Geração 2000, surgem o Aplysia Grupo de
Dança, a Octus Companhia de Atos, a Siedler Cia. de Dança e a
Andras Cia. de Dança-Teatro.11
Em permanente transformação, o circuito está respaldado
por uma história cultural e sujeito a diferentes tensões de caráter
público ou privado. Dinâmico, pede decisões, posturas, ativações,
diálogo, iniciativas individuais e coletivas. Em reflexões sobre o
tema, feitas em diferentes encontros e conversas, sobressai o de-
salento com a descontinuidade de projetos e companhias. “Neste

11 XAVIER, Jussara; MEYER, Sandra e TORRES (org.). Histórias da Dança. Florianópolis: Edi-
tora da Udesc, 2012, p. 146.

62
ambiente peculiar e instável, estamos sempre (re) começando”,12
escreve Xavier na apresentação do livro Grupo Cena 11. Dançar
é conhecer. Em depoimento, ela lamenta que as iniciativas sejam
estanques, circunscritas à mostras e festivais, a maioria deles com
caráter competitivo.
Conversas sobre o circuito de dança contemporânea em San-
ta Catarina jamais deixam de mencionar o Cena 11, assim como
outro fato nunca esquecido. Por disseminar um modelo no Estado,
o Festival de Dança de Joinville sempre é fonte de análise e ponto
de partida de algumas falas. Criado no Norte do Estado em 1983,
é considerado pelo Guinness dos Recordes, o maior do mundo
com cerca de 4,5 mil bailarinos participantes numa agenda que se
estende por 15 dias. A edição de 2016 bate recorde de inscrições:
3.068 coreografias de 678 grupos do Brasil, Argentina, Estados
Unidos, Paraguai e Uruguai.
Realizado anualmente, em julho, promove as chamadas
coreografias de dez minutos. Escolas, academias, grupos, compa-
nhias e bailarinos enfrentam uma seletiva para uma apresenta-
ção que garanta prêmio e visibilidade. Em permanente aprimora-
mento, os organizadores oferecem oficinas, mostras, seminário,
intercâmbio e asseguram uma valiosa vitrine na história de alguns
consagrados, os chamados campeões. Enquanto o público delira
com as apresentações competitivas à noite, durante o dia se tenta
pensar a dança. A lotada plateia do 10º Seminários de Dança, em
2016, revela o interesse no encontro de dois dias para discutir o
tema Dança não é (só) coreografia. Na abertura, Ely Diniz, pre-
sidente do Instituto Festival de Dança de Joinville, diz que a ideia
é provocar “uma reflexão no meio acadêmico para que a arte do
corpo em movimento se renove continuamente”. Pela importância
da iniciativa, cabe expor a defesa de Jussara Xavier, coordenadora
da edição: “Dentro de um festival especialmente dedicado à expo-
sição de coreografias, os Seminários pretendem colaborar, por um

12 XAVIER, Jussara. Grupo Cena 11: dançar é conhecer. São Paulo: Annablume, 2015, p. 12.

63
lado, para que coreógrafos repensem suas práticas, ou seja, ava-
liem e aprimorem suas escolhas compositivas e, por outro, para a
formação de um público mais crítico e perceptivo. Os Seminários
propõem uma jornada questionadora para que a dança não caia
na inércia e redundância formal, não siga operando na mera repe-
tição de modelos consagrados, fórmulas fáceis e jargões. Ao con-
trário, que a dança trabalhe num modo de (re)descoberta, como
possibilidade de avivamento de si e da realidade, como produtora
de acontecimentos”.13
Ano a ano, nas edições dos Seminários, a partilha teórica
de convidados, que entrecruzam falas multidisciplinares, memória
pessoal e a história da dança do Brasil, atende uma reivindicação
sustentada nos anseios de conhecimento e intercâmbio em torno
de abordagens contemporâneas. O programa de 2016 oferece uma
conferência, dois fóruns, 12 comunicações orais, duas conferên-
cias dançadas, duas vídeo-palestras e uma mostra de pôsteres,
conversas e atividades que os participantes incorporam no pen-
samento para renovar as práticas e os processos criativos futuros.
Apesar dos surpreendentes números, da contribuição no
contexto da dança, do extraordinário retorno midiático e da ca-
pacidade de mudar a rotina da cidade, o Festival de Dança de
Joinville não está imune à críticas. Uma delas se associa ao fato de
que, por suas múltiplas articulações políticas e econômicas, se or-
ganiza mais como um evento/produto turístico do que um projeto
ou programa capaz de produzir continuidades no âmbito coletivo,
estimulando e apoiando o desenvolvimento da dança em Santa
Catarina. Alguns produtores culturais veem Joinville como lugar
privilegiado que recebe expressivo montante dos escassos recursos
públicos da área cultural sem dar a devida contrapartida ao Esta-
do, à cidade ou à região. Na 34ª edição, a seletiva da Mostra Com-
petitiva e Meia Ponta reúne 101 coreografias inscritas nos gêneros
balé clássico de repertório, balé neoclássico, dança contemporâ-

13 Catálogo X Seminários de Dança de Joinville Dança não é só coreografia. Joinville, 2016.

64
nea, danças populares, danças urbanas e jazz. Sob a ótica do local,
18 trabalhos selecionados representam 12 grupos formados em
Joinville, entre os quais estão nomes de profissionais qualificados
e reconhecidos por sua contribuição. Não se ignora nesse contexto
a atuação de companhias, entidades e instituições, como Patrícia
Dalchau, Amarildo Cassiano, Claudia Maiole, Marcos Sage, Ama
Cia. de Dança, Cia. Didois, Associação de Grupos de Dança (Ana-
cã/Joinville), entre outros, a Escola Municipal de Ballet de Join-
ville ou o Núcleo de Dança Contemporânea da Escola do Teatro
Bolshoi no Brasil, Letícia de Souza e Erika Rosendo.
Inegável, no entanto, que bailarinos e coreógrafos enfren-
tam dificuldades, não alcançam a amplitude desejada para os seus
trabalhos quase restritos, em se tratando de plateias, a um contex-
to regional. Circunscrito na realidade de seus cerca de 15 dias, o
festival não se projeta para fora de si mesmo. Nos meses e dias res-
tantes, o palco está vazio, a cidade não consegue sequer acolher a
agenda das grandes companhias brasileiras que só eventualmente
aparecem como convidadas do Festival de Dança. Anual, a edição
não assegura de modo sistemático os aspectos de formação, de
estímulo ou continuidade. Essa dicotomia incomoda a bailarina
Letícia de Souza,14 que vive em Joinville. Para ela, a maior fragili-
dade do circuito é “a falta de abertura para um pensamento além
da dança-competição, além do que já está enraizado”. A questão,
de tão relevante, se introjeta no seu projeto Processo Criativo em
Dança e Montagem do Espetáculo Sobre Anseios e Vontades que,
legitimado pelo Prêmio Klauss Vianna 2014, resulta em Frágil,

14 Letícia de Souza: artista e produtora. É bacharel em artes cênicas pela UEL. Entre 2009
a 2014 atuou como professora no Bom Jesus/IELUSC, Sesc Joinville e Escola do Teatro
Bolshoi no Brasil. Desde 2009 acumula prêmios no Edital de Apoio à Cultura de Joinville.
Produziu e interpretou os espetáculos de dança de Por um Percurso... e Interferências dos
Encontros - em parceria com os artistas Maria Carolina Vieira e Adilso Machado. Foi con-
templada com o Prêmio Klauss Vianna de Dança 2014 e estreou o espetáculo solo Frágil
com direção de Anderson do Carmo em 2016. Em 2017 estreia a performance Esboço de
Memórias - parceria com o ilustrador Rodrigo Ascenção, contemplada no Edital de Joinville.

65
ou, essa dança é 30 minutos mais longa do que poderia ser para
competir. Provocador, o espetáculo pontua as contradições do pa-
norama. Dança-protesto, extrai da própria existência as tessituras
de uma poética encharcada de política e indignação.
O pensamento de Milene Duenha15 transita pela mesma
zona de desconforto. “Salvo por algumas iniciativas pontuais de
realização de festivais e projetos que buscam verba via governo
federal e iniciativa privada, o circuito de Santa Catarina se resume
em uma infinidade de festivais competitivos que mandam para as
cucuias aspectos pedagógicos importantes na formação do sujeito
ante uma pronta adesão à lógica da competitividade, ao mérito
individual – tão condizente ao desenvolvimento de uma sociedade
sem empatia –; e ante o não reconhecimento da arte como área de
conhecimento, como modo a provocar pensamento, mantendo a
dança como enfeite, como aquilo que precisa ser bonito e acrítico”.
Críticas e tensões não se restringem ao Norte do Estado.
Elas transparecem no doutorado de Elke Siedler,16 cuja tese Re-
desenhos políticos do corpo: uma análise do modo de circula-
ção e concepção da dança on e off-line, defendida em 2016 na
Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), situa a própria traje-
tória e o drama de viver de dança em Florianópolis. “Além de ser

15 Milene Duenha: bailarina, atriz, performer e arte educadora, graduada em Artes Cêni-
cas pela Universidade Estadual de Londrina/PR e pós-graduação em Artes Visuais/Arte
Educação pela mesma universidade. É mestre e doutora em Teatro pela Universidade do
Estado de Santa Catarina, e atualmente realiza uma pesquisa de doutorado no mesmo
programa de pós-graduação. Pesquisa noções de presença em relação na experiência
artística, e tem como objeto de investigação possibilidades compositivas em arte com
foco na presença do artista e suas implicações ético/estéticas. Interessa-se por questões
ligadas ao corpo e seus modos de estar/fazer como potência de afeto. Atua na inter-
secção entre as linguagens da dança, da performance e do teatro, desenvolvendo uma
pesquisa artística no Coletivo Mapas e Hipertextos de Florianópolis (SC) desde 2012.
16 Elke Siedler: doutora em Comunicação e Semiótica (PUC/SP). Mestre em Dança e espe-
cialista em Estudos Contemporâneos em Dança pela UFBA. Diretora e dançarina da Siedler
Cia. de Dança.

66
literalmente uma ilha também o é metaforicamente, no sentido
de que há poucas pontes de contato com a produção de danças
concebidas para serem apresentadas no aqui e agora. A especifici-
dade local é tecida em relações de poder que dificultam a existên-
cia de ambientes onde se possa desenvolver o exercício da criação
de configurações de dança, bem como há poucos espaços cênicos
disponíveis para a realização de apresentações. A política dos se-
tores públicos de cultura, voltada para as artes, é inconsistente, e,
consequentemente, os parcos recursos estruturais e econômicos
dificultam a viabilização da produção contínua e da difusão de
ações artísticas”,17 escreve.
“Como posso sobreviver como bailarina?” A pergunta,
formulada em agosto de 2016 por Elke num outro contexto, no
encontro de retomada do projeto Café com Dança, sensibiliza
a plateia que lota um dos auditórios da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, porque abarca uma das
maiores aflições, uma angústia coletiva que está no cerne quan-
do se discute o circuito de dança no Estado. Ninguém escapa da
questão, um drama para jovens que sonham com a profissionaliza-
ção nesse campo de saber. Realizado para possibilitar intercâmbio
entre artistas, professores, pesquisadores, coreógrafos, estudantes
da área artística e interessados na reflexão sobre dança na con-
temporaneidade, o evento tem como tema o livro Grupo Cena 11.
Dançar é conhecer, escrito por Jussara Xavier. Para enriquecer a
conversa, a autora chama outras pessoas envolvidas na história da
prestigiada companhia. A dinâmica propõe uma abordagem sobre
vidas e trajetórias, sobre o que é fazer dança em Santa Catarina
a partir de um roteiro de interrogações, entre elas como a dança
contemporânea pode enfrentar o desafio de inventar experiências
e modos de operar? Como se constrói um corpo disponível à inves-

17 SIEDLER, Elke. Redesenhos políticos do corpo: uma análise do modo de circulação e con-
cepção da dança on e of-line. P. 14. Disponível em <https://sapientia.pucsp.br/bitstream/
handle/19137/2/Elke%20Siedler.pdf>. Acesso em: 27.1.2017.

67
tigação em dança? Afinal, o que é dança? Elke atua por seis anos
e meio no Cena 11, período que define como “estruturante para
pensar o mundo a partir da arte contemporânea”.
Vera Torres,18 anfitriã do Café com Dança, expõe as inten-
ções do projeto que são consoantes com anseios coletivos de co-
nhecimento, encontros e diálogo. A ideia é promover ações ligadas
à dança na UFSC, como a organização de palestras, mesas de dis-
cussão, projeções de videodança, vídeo-documentários, conferên-
cias dançadas, vídeo-palestras, ações performáticas e atividades
afins, ou seja, “debates qualificados sobre questões relevantes e
atuais envolvendo a dança em suas perspectivas pedagógica, histó-
rica, sociopolítica e artística; assim como contribuir para a forma-
ção de um público crítico e receptivo a questões relativas à dança
e à arte contemporânea”.
Iniciado em 2013 por iniciativa da Secretaria de Cultura
(Secult) da UFSC, o programa também sofre descontinuidade. No
começo, realiza encontros com assuntos e grupos de diferentes
áreas, abertos à comunidade com debates seguidos de um café.
Na ocasião, Vera Torres coordena o tema sobre dança na UFSC,
cria o nome Café com Dança, assim como o conceito e a progra-
mação das atividades. “Antes do final daquela gestão da Secult,
com trocas de coordenação na esfera da cultura na instituição,
o projeto foi acabando”, lastima. Entre 2014 e meados de 2016,
ela se envolve com as atividades do Tubo de Ensaio,19 não sendo
possível conciliar a realização de outros projetos e as atividades
acadêmicas. Em 2016, em reflexões sobre as possibilidades de for-

18 Vera Torres: professora adjunta aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina


(UFSC) - DEF/CDS. Doutora em estética, ciências e tecnologia das artes: teatro e dança
- Universidade Paris 8, França (2012); mestre em artes: dança (Master 2) - Universidade
Paris 8, França (2006); mestre em artes, comunicação e semiótica - PUC/SP (2000).
19 Projeto criado por Jussara Xavier, Sandra Meyer e Vera Torres, desenvolvido em Floria-
nópolis em maio de 2001 que se estende até 2005 com a proposta de oferecer apresenta-
ções artísticas que constroem poéticas com o corpo e o movimento, em especial a dança
contemporânea, seguidas de debate. A iniciativa ganha nova edição em 2015.

68
talecimento da dança na universidade e da qualificação dos profis-
sionais, reafirma a importância de manter uma programação que
alie reflexão, informação e realização em dança. Assim, retoma
o Café com Dança com o apoio da atual gestão da Secretaria de
Cultura e Arte (SecArte) da UFSC. Ou seja, a volta do projeto se
dá de forma inversa: em vez de uma participante, Vera torna-se
uma proponente legitimada pela instituição.
As descontinuidades, situa ela, estão relacionadas às mudan-
ças de gestão que, em geral, têm visões e interesses distintos rela-
cionados à arte, mas também depende da disponibilidade daqueles
que concebem e realizam projetos de dança associados a uma aná-
lise do contexto da cidade. “Somos poucos e temos que batalhar
por apoios, pensar em modelos diferentes e mais apropriados para
o nosso contexto, geralmente nos desdobramos. Provavelmente
um modelo formatado, que reproduz algumas visões de dança, as
quais eu faço críticas, teriam uma aceitação melhor. Entretanto,
no atual contexto, creio que até mesmo essas propostas encontram
dificuldades. O projeto só se realiza quando se torna viável em ter-
mos de condições mínimas (materiais e humanas) e, no meu caso,
quando é possível conciliar a realização com as demais atividades
profissionais”, pontua a coordenadora do Café com Dança.
Os aspectos apontados – a preocupação de Elke Siedler com
a sobrevivência no universo da dança e a questão da descontinui-
dade de um projeto na análise de Vera Torres – situam parte das
debilidades da cena contemporânea de dança em Santa Catarina.
Enfim, a vitalidade de um processo cultural artístico não depende
apenas de inquietudes. Subordinado à infraestrutura de um deter-
minado lugar, corporifica dimensões de poder, além de questões
estruturais, geográficas e pessoais.
O circuito, na concepção de Sandra Meyer, equivale a um
sistema político amplo que envolve formação, criação, produção,
circulação, economia, entre outros aspectos, “em uma perspectiva
de continuidade e acessibilidade”. A dinâmica contínua, o fluxo e
a busca de espectadores não pode ser circunstancial. Para a pes-
quisadora, não há outro caminho que não seja o investimento em

69
formação que “deságua numa melhoria no ensino e aprendizagem
em dança, o que por sua vez, incita a criação de novas linguagens”.
Num cenário em que as oportunidades de profissionalização são
escassas, ela menciona como cruciais e urgentes “as políticas de
formação, pois não temos instâncias públicas que abarquem di-
ferentes estágios pedagógicos, seja em nível técnico ou universi-
tário”.
Na escuta dos bailarinos mais atuantes sobressai o unânime
lamento sobre a inexistência de políticas públicas no plano mu-
nicipal, estadual e federal. Sem defender um Estado-previdência,
contrários a uma visão paternalista do Estado, a maioria classifica
as escassas interlocuções com o poder público como um descaso
não só com relação à dança mas com a arte e a cultura de modo
generalizado. O ponto mais nevrálgico é o não atendimento de
uma reivindicação que se estende há mais de dez anos, com uma
luta permanente que envolve diferentes articulações, como mani-
festações, passeatas, reuniões, debates, artigos, correspondências,
etc. O anseio da implantação do curso de licenciatura em dança,
elaborada pelo Centro de Artes (Ceart) da Universidade do Esta-
do de Santa Catarina (Udesc), contempla os campus das cidades
de Joinville e Florianópolis. Solenemente ignorado, resulta como
vã promessa de sucessivos secretários estaduais de educação, a
quem compete o assunto. Não há vontade política naquilo que
os pesquisadores entendem como o mais relevante para o setor.
“Descaso do Estado com a formação de uma área tão importante
para o exercício de cidadania como as artes do corpo. O apoio
permite a possibilidade de circulação de bens culturais”, define
Sandra Meyer. Sem alternativas, muitos entram no programa de
pós-graduação em Teatro – mestrado e doutorado do Ceart, da
Udesc, onde se gestam trabalhos acadêmicos, espetáculos, mani-
festos, grupos ou coletivos de dança.
Nessas discussões em que se faz uma clara distinção entre
bem e produto cultural ou se lamenta a postura dos gestores públi-
cos que ludibriam a defesa do curso de licenciatura, alguns pontos

70
são repetidos por sua relevância. Os bailarinos Marcos Klann20 e
Diana Gilardenghi21 advogam a ampla circulação dos trabalhos e
um programa de formação de público. A dificuldade de se manter
o circuito, no entendimento de Klann, passa em primeiro lugar na
formação de plateia com a criação de interesse, ampliando o en-
tendimento sobre a arte e a dança. A continuidade desses projetos
e a circulação pontual em cidades de Santa Catarina está ainda
mais comprometida em 2016 em razão da traumática mudança
ocorrida na política nacional e que vem contaminando a organi-
zação nos Estados com o corte de verbas ou o não cumprimento
de editais, como o Prêmio de Estímulo Cultural Elisabete Anderle,
descumpridos no Estado em 2015 e 2016. “Uma possibilidade de
circulação dos trabalhos, que vinha se solidificando e permitindo
conhecer melhor a produção, se rompe pela irresponsabilidade do
governo estadual no esclarecimento do seu não cumprimento.”
Crise estrutural e política – um dos nós da questão tam-
bém deplorada por Diana Gilardenghi. “A cada dia minguam as
poucas possibilidades de sobrevivência já existentes, recursos e in-

20 Marcos Klann: pesquisador, tem como foco as relações entre memória e coletivida-
de. Nesta procura, seu interesse é também atravessado pela necessidade de propor diálo-
go entre público e artista, tendo a obra como mediadora. Reaproximar o público da arte,
gerando tensões mobilizadoras. Tem dois trabalhos solos O que antecede a morte (2010),
selecionado no Programa Rumos Itaú Cultural Dança, daquele ano e  Werwolf, pesquisa
sobre a solidão que teve sua estreia em 2012. Também é integrante do Grupo Cena 11 Cia.
de Dança, no qual atua como bailarino desde 2006, participando, desde então, de todas
as suas produções.
21 Diana Gilardenghi: professora, bailarina e coreógrafa. Atua profissionalmente desde
1978. Integrou os grupos Duggandanza, Plastercaster, Potlach e Ronda. Em 2000 foi con-
templada pelo programa Rumos do Itaú Cultural com o trabalho Crosta. Recebeu o Prêmio
Klauss Vianna 2008 para a realização de Um Duplo e Klauss Vianna 2011 para o espetáculo
Em Constante. Tem extensa atuação como docente, ministra cursos em escolas, centros de
cultura, academias e eventos. Atualmente leciona dança contemporânea em Florianópolis
e integra o coletivo de pesquisa e criação Mapas e Hipertextos.

71
vestimentos são reduzidos e presenciamos o desmonte da cultura
nacional. Os efeitos da descontinuidade trazem grandes perdas
para a criação e a formação de plateias. A circulação, sumamente
importante, possibilita um intercâmbio formador entre público,
artistas e instituições, onde espaços de arte e governos estaduais e
municipais deveriam atuar juntos”. Novas e urgentes estratégias se
fazem necessárias, defende ela.
Outro dado singular do circuito está na centralidade da pro-
dução, numa concentração geográfica de atividades na Capital,
com clara diferenciação quantitativa - em alguns casos qualitativa -,
entre o que se faz em outras cidades, como Itajaí e Balneário Cam-
boriú, no Vale do Itajaí, onde o jazz e o hip-hop são bem fortes.
Concórdia, Chapecó e Xanxerê, no Meio-oeste, e Jaraguá do Sul,
no Norte, têm um movimento, porém tímido em ressonâncias. Em
Garopaba, no Sul do Estado, desponta a Atitude Cia. de Dança de
Garopaba. Fundada em 2006, participa de festivais competitivos
pelo Brasil, nos quais conquista premiações. A partir de 2011, fora
das competições, busca inserção no mercado profissional. Realiza
participações especiais num percurso que dá breve noção do ro-
teiro também feito por outros grupos: Bienal de Dança de Floria-
nópolis, Festival Internacional de Hip-hop, Mostra Internacional
de Dança, Festival Nacional de Jaraguá do Sul, Festival Unesc em
Dança, Fórum Municipal de Dança de Camboriú, Festival Brasil
Vem Dançar e Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança
Contemporânea 2016.22
Se o foco em Joinville converge para o mercado competi-
tivo, em Florianópolis a linha é outra. Com recursos surpreen-
dentemente baixos, geralmente ancorados em editais ou prêmios,
aposta-se num recorte bem delineado, voltado à dança contempo-
rânea e numa possível construção de conhecimento. Mais do que

22 Evento criado em Florianópolis, em 2006, por Jussara Xavier e Marta Cesar. Realizado
até 2010, sofre uma interrupção até ser retomado em 2013. Além de espetáculos, o projeto
oferece oficinas, intercâmbio e debates.

72
espetáculos, encontros de discussão e reflexão, oficinas e inter-
câmbio entre artistas.
O Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança Con-
temporânea, e o Tubo de Ensaio, organizados e produzidos em
Florianópolis por profissionais locais na dependência de editais
e patrocínios, atuam na perspectiva de atenuar a lacuna formati-
va. Jussara Belchior23 lembra também a recente Bienal de Dança,
evento organizado na esfera pública municipal mas desativado
após a segunda edição, e o Palco Giratório do Serviço Social do
Comércio (Sesc), que traz à cidade atrações de dança. Nesses
eventos, diz ela, fomenta-se um campo de experiência dos faze-
res artísticos e formativos que sempre deixa um gosto de “quero
mais”. Restrito aos profissionais da área, ela entende que essas
iniciativas são as poucas possibilidades existentes para explorar
um espaço de ação de interesse não só aos pesquisadores das artes
mas “a um público que possa descobrir na dança algo que seja
compatível com o modo como percebemos o estar no mundo”.
O EmCenaCatarina, não citado por Belchior, é outro pro-
grama de circulação do Sesc que abarca o teatro e a dança criados
por grupos catarinenses que, submetidos a um processo de seleção,
recebem logística técnica e operacional para percorrer as regiões do
Estado. Enquanto o Palco Giratório engloba espetáculos e artistas
do Brasil, o EmCenaCatarina mantém o recorte estadual.
Outra profissional que avalia o cenário é Paloma Bian-
chi. Numa análise comparativa, configura o Tubo de Ensaio
24

23 Jussara Belchior: artista da dança. Mestre em teatro no programa de pós-graduação da


Udesc. Atua no elenco do Grupo Cena 11 Cia. de Dança desde outubro de 2007. Partici-
pou do projeto de crítica em dança Múltiplas Escritas dentro do Múltipla Dança – Festival
Internacional de Dança Contemporânea. Em parcerias criativas trabalhou como diretora
no espetáculo Pedaços de Vontade (2013), dançado por Cristina Schmitt; assistente de
direção em Werwolf (2012), de Marcos Klann e co-diretora em Direção Múltipla (2014), de
Daniela Alves. Estuda e pratica dança desde os seis anos.
24 Paloma Bianchi: dançarina, performer, professora e pesquisadora. Graduada na faculda-
de de Comunicação das Artes do Corpo pela PUC/SP, com especialização em performance,

73
como um espaço de discussão e aprendizado importante para
Florianópolis. Não se trata exatamente de um festival de dança,
segundo ela, mas sim de um evento que enfoca a formação dos
artistas locais com a oferta de oficinas extensas com profissionais
relevantes da cena contemporânea. Já o Múltipla, um projeto anu-
al que oferece gratuitamente trabalhos nacionais e internacionais,
assegura visibilidade ao que se tem feito e pensado em relação à
dança contemporânea em diferentes países. Se considerado o ta-
manho e a dimensão da capital do Estado, lastima que as duas
ações não consigam “suprir o buraco cultural que há em relação à
dança contemporânea na cidade”.
Nessa escritura, agora em comparação ao universo das artes
visuais em Florianópolis, é possível diferenciar os dois contextos.
Na dança, as relações se circunscrevem por dispositivos de solida-
riedade que levam um observador a falar em engajamento e parti-
cipação afetiva. A agenda de eventos mobiliza o conjunto dos intér-
pretes criadores que lembra o comportamento de uma comunidade,
pessoas associadas pela cultura, interesses e tradições comuns. As
fragilidades do setor e o descrédito da ação pública não turvam
o sentido coletivo. Agregação social, sentimento de compromisso
e adesão caracterizam esse panorama. Não há guetos. Ranços e
arrogâncias não impedem que um determinado grupo participe das
iniciativas de um outro. Um, entre possíveis fatores, se atribui às
atuações diferenciadas com o corpo, uma ferramenta imprescindí-
vel para a dança capaz de forjar subjetividades mais agregadoras.
O filósofo Vladimir Safatle propõe no seu último livro uma
reflexão sobre os afetos como transformadores de corpos políti-
cos, individuais e coletivos. “Há uma adesão social construída

atualmente é doutoranda em teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina. For-


mada como educadora do movimento pelo método Reeducação do Movimento de Ivaldo
Bertazzo e em Bharathanatyam pela filial brasileira da Natyalaya School of Classical Dan-
ces. Como artista-pesquisadora participa, desde 2013, do coletivo de pesquisa e criação
em artes presenciais Mapas e Hipertextos.

74
através das afecções. Nesse sentido, quando sociedades se trans-
formam, abrindo-se à produção de formas singulares de vida, os
afetos começam a circular de outra forma, a agenciar-se de ma-
neira a produzir outros objetos e efeitos.”25 Ao abordar o que se
chama de “produtividade do desamparo”, diz que as metáforas do
corpo político não indicam só a busca de um coesão social orgâ-
nica, mas também a natureza do regime de afecção que sustenta
as adesões sociais. “Um corpo não é apenas o espaço no qual as
afecções são produzidas, ele também é produto de afecções. As
afecções constroem o corpo em sua geografia, em suas regiões de
intensidade, em sua responsividade.”26 Além de Safatle, as ciências
cognitivas, a psicologia e outros estudos multidisciplinares facili-
tam uma compreensão em torno de tema tão complexo.
Embora não esteja focando no circuito dos afetos, Marta
Cesar, 27 idealizadora e coordenadora do Múltipla Dança, tangen-
cia a análise de como se desenrolam algumas questões. O evento,
em sua concepção, ocupa um espaço inquestionável, salutar e be-
néfico ao circuito. Para ela, a “suspensão momentânea do festival

25 SAFATLE, Vladimir. Circuito dos Afetos. Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo.
Belo Horizonte: Autêntica editora, 2016, p. 16.
26 SAFATLE, Vladimir. Circuito dos Afetos. Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo.
Belo Horizonte: Autêntica editora, 2016, p. 20.
27 Marta Cesar: graduada em direito pela Faculdade de Direito da USP em 1985, seguiu
a carreira artística que já desenvolvia como bailarina do Balé da Cidade de São Paulo no
qual permaneceu até 1994. Especialista em dança cênica pelo Centro de Artes da Udesc,
atuou em diferentes funções na área cultural, especialmente na área da dança e da mú-
sica na esfera nacional e internacional. Desde 1998 em Santa Catarina, desenvolveu fun-
ções na área da produção cultural, atividades pedagógicas, acadêmicas e artísticas, assim
como na área política, como representante de Santa Catarina no Colegiado Setorial de
Dança (2005-2011), vice-presidente da Associação dos Profissionais de Dança de Santa
Catarina (Aprodança-2010/2011) e presidiu o Conselho Municipal de Políticas Culturais
de Florianópolis (2010/2011). Ocupou o cargo de diretora de artes da Fundação Cultural
de Florianópolis Franklin Cascaes (01/2013 a 05/2016). Dirige o Múltipla Dança – Festival
Internacional de Dança Contemporânea - desde sua criação em 2006, além da curadoria
deste e outros festivais.

75
em 2011 e 2012 comprova a importância da sua realização, para
além de desejos pessoais, vaidades ou interesses institucionais”. A
continuidade do evento, além de propiciar satisfação, confere senti-
mentos de integridade. Ela se sente parte de um programa que “pas-
sa por um profundo respeito e pela generosa inteligência da valoro-
sa equipe entrelaçada com parceiros, participantes e simpatizantes”.
Outra configuração do circuito, que não pode ser diferente
porque afinal o pano de fundo desse panorama se dá no triunfo
da era neoliberal, no qual as relações socioprofissionais estão na
sombra da ameaça de desemprego, o drama enfrentado em am-
plos setores no contexto brasileiro e internacional. A globaliza-
ção da economia impõe profundas transformações das relações
humanas, no âmbito individual, familiar e profissional. A falácia
dos anos 1980 de que as novas tecnologias diminuiriam a carga
de trabalho não se sustenta na crua realidade da segunda década
do século 21. Bem distanciados das possibilidades do chamado
ócio criativo, 28 as dolorosas implicações estão na carne e nos ele-
vados índices de doenças associadas ao estresse que envenena o
corpo com depressão, gestos suicidas e atitudes violentas. Como
fazer, como sobreviver num contexto desumanizado? Cá estamos,
de volta à pergunta inicial formulada por Elke Siedler. Não só o
bailarino, mas outros artistas são obrigados a assumir múltiplas
tarefas ao mesmo tempo: além da criação propriamente dita, do
pensamento em torno do espetáculo, da disciplina e treinamento,
dos estudos e viagens, precisam produzir, tecer as relações institu-
cionais e empresariais, fazer curadorias, negociar patrocínios, ela-
borar projetos para editais, cuidar de figurino, cenário, contratos,
enfim toda a logística e demanda de um bem cultural.
Nessa rede de acontecimentos, muita tensão e cansaço. Ri-
cardo Basbaum, pesquisador das artes visuais, situa as práticas
desse universo que se aplica a muitos outros. Fora da “formação

28 Título de um livro do cientista e sociólogo italiano Domenico De Masi. O ócio, segundo


ele, seria positivo para a criatividade.

76
de si como artista”, há ainda outras demandas como “escrever,
falar e conversar, procurar constituir-se em grupo, publicar e edi-
tar”.29 Agenciador de eventos e fomentador de produções, o artis-
ta, segundo ele, precisa produzir discursos, ocupar um espaço pú-
blico, ter jogo de cintura para marcar posições, provocar questões,
configurar polêmicas, problematizar, intervir, mediar interesses,
criar mecanismos de circulação. “Esta movimentação para fora
de si não deixa de ser uma condição do próprio exercício do gesto
poético, que foge do loop narcísico e busca hospedagem no corpo
do outro – espectador, audiência, público...”30
Cena de combate sem sangue, na resistência os intérpretes
criadores se moldam e modelam agendas significativas em Floria-
nópolis. No fim de 2016, uma breve sistematização resulta num
conjunto de profissionais com pesquisa e trabalhos, quer envol-
vidos com companhias ou em apresentações solo, eles ora são
bailarinos, coreógrafos, diretores, dramaturgistas, ora diretores,
cenógrafos, figurinistas, produtores ou articuladores. Tiram leite
das pedras. O Grupo Cena 11 Cia. de Dança desponta ao lado de
Siedler Cia. de Dança, Ronda Grupo de Dança e Teatro, Lucas
Gabriel Viapiana e Thaina Gasparotto, Letícia de Souza e Ander-
son de Souza, Sandra Meyer e Diana Gilardenghi, Grupo Laut!, o
coletivo Mapa e Hipertextos, além das atuações de Karina Colla-
ço, Mônica Siedler, Marcos Klann, Karin Serafin, Elisa Schmidt,
Jussara Belchior, Jussara Xavier, Daniela Alves, Ana Alonso, Ana
Luiza Ciscato com a sua Companhia Lápis de Seda, Maria Clau-
dia Reginato e Rodolfo Lorandi.
Pertinente registrar dois fatos recentes relevantes para o cir-
cuito. Um deles, a legitimação pelo programa Rumos Itaú Cultu-
ral 2015/2016 do solo Peso Bruto da bailarina Jussara Belchior,
cuja montagem questiona o estranhamento do corpo gordo na

29 BASBAUM, Ricardo Roclaw. Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue,


2013, p. 22.
30 Idem, p. 69.

77
dança, explora questões de beleza e sensualidade, tabus e preconcei-
tos. O trabalho atende as cidades de Florianópolis e Teresina (PI),
onde vive a pesquisadora Soraya Portela, interlocutora convidada
do projeto. Outra repercussão celebrada coletivamente é o convite
internacional para um diálogo acadêmico sobre o projeto Corpo,
Tempo e Movimento em Seis Ações de Dança. Realizado em 2016
em Florianópolis, ele estabelece uma potente aliança entre a cidade,
a história e o movimento. Após 40 anos de atuação, Sandra Meyer
e Diana Gilardenghi, intérpretes e pesquisadoras de dança, “se en-
contram para entrelaçar a trajetória pessoal, o contexto social e
o passado da dança em composições que produzem gestos e falas
permeadas pelo corpo de uma e de outra. A proposta é investigar
como as duas profissionais atuantes e com trajetórias próximas,
porém diferenciadas, criam contrastes, oposições e dissonâncias
em uma exploração de certos espaços de uma ilha ‘mito-mágica’
constantemente agredida por movimentos de especulação”.31 Em
Lisboa (Portugal), na Faculdade de Motricidade Humana, Sandra
Meyer participa do seminário Corpo e Imaginário na Cena Con-
temporânea com uma abordagem sobre Imagens Políticas no Pro-
jeto Corpo, Tempo e Movimento em Seis Ações de Dança.
A política impregna o campo imagético da dança contem-
porânea de Santa Catarina. As poéticas, saturadas de mal-estar,
fragmentação e jogos interdiscursivos, criam rupturas no cotidiano
e nas sensibilidades. No palco ou na rua, se assentam no desejo de
problematizar tudo o que envolve a vida humana e a cidade. “Nós
artistas não somos dependentes dos editais, nós somos dependen-
tes da troca das nossas pesquisas com os outros. No entanto, para
gerar tais encontros, é preciso compreender que estes são mesmo
necessários, ou estaremos sempre produzindo num ambiente frágil,
flertando com a extinção”, situa com propriedade Jussara Belchior.
Diante da aridez de verbas, da insensibilidade empresarial e
da ausência de vontade política das gestões públicas no campo da

31 Texto do projeto elaborado por Paloma Bianchi e Milene Duenha.

78
cultura, o montante de profissionais atuantes no Estado e as resso-
nâncias dos trabalhos alcançadas em nível nacional e internacional
não são inexpressivos. Falta muito, sabe-se, para alcançar tratamen-
to digno e um efetivo patamar de reconhecimento. Independente
das instabilidades e avanços necessários, um caminho possível para
ultrapassar o muro de lamentações seria reconhecer, de modo mais
otimista, o que há no panorama. A falta de apoio acaba por moldar
novos modos de criar e produzir pensamento. Embora vitimado pe-
las descontinuidades, se não robusto, o movimento existe. Informe,
tem riqueza, produz texturas, ocupa um espaço social público. Os
artistas da dança produzem arte como um ato de resistência. Com
atuações distintas, em palcos, nas ruas e nas praças, trabalham as
diferenças, criam fissuras, suspendem o fluxo humano para instau-
rar momentos de reflexão, inventam parcerias e, ao final das contas,
representam um núcleo que ninguém pode ignorar. A maioria dos
“espetáculos” confunde-se com ações culturais, aqui numa formu-
lação do estudioso Teixeira Coelho. Ao reunir procedimentos no
fazer-cultural - administração, animação, arte-ação, arte educação,
circuito, fabricação, mediação, transmissão e sistema de produção
cultural -, o teórico define ação cultural como “o processo de cria-
ção ou organização das condições necessárias para que as pessoas e
grupos inventem seus próprios fins no universo da cultura”.32 Con-
junto de atividades que afetam outros universos, o cultural, o so-
cial, o político e o econômico, uma ação cultural é diferente de um
evento. Distanciada da noção de festa, espetáculo, comemoração,
solenidade, mais complexa, ela transita pela construção simbólica e,
como tal, amplia consciência, possibilita mudar o homem e o mun-
do, “resume-se na criação e organização das condições necessárias
para que as pessoas inventem seus próprios fins e se tornem assim
sujeitos – sujeitos da cultura”.33

32 COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo: Fapesp e Iluminuras,
1997, p.33.
33 COELHO, Teixeira. O que é ação cultural. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 14.

79
Os impactos da política e da economia, como já se disse,
obrigam a mudar crenças e modos de operação. A maioria cuida
da própria produção, agencia eventos, pesquisa, atua em múltiplas
funções. Independentes, os artistas suplantam lacunas. Apesar do
desamparo financeiro, numa profusão de técnicas e referências,
diferentes tendências de movimento e abordagens, delineiam cam-
pos autônomos. Conscientes das precariedades, com pesquisas e
discursos curatoriais distintos, chamam a atenção para trajetórias
e a força da produção. Vitalidade mais do que quantidade.
Em se tratando de ajustes operativos e conceituais, Alejan-
dro Ahmed ensina quando decide ficar na Ilha de Santa Catarina,
lugar isolado, limitador para a maioria. Sem se ater ao dilema ge-
ográfico, conectado com os ditames da globalização ou hipermo-
dernidade,34 estabelece trocas regionais, transnacionais e interna-
cionais. No contexto local, de Florianópolis, o coreógrafo defende
o valor do pensamento interdisciplinar e da circulação de infor-
mações. Em maio de 2016, integra um dos Diálogos proposto no
Múltipla Dança. Na Associação Cultural Arte.Dança, ao lado das
pesquisadoras Olga Gutiérrez e Thembi Rosa, ele tenta responder
a pergunta proposta: O que você está pensando/dançando?
Ao condensar a história da companhia, numa perspectiva
cronológica das coreografias criadas pelo Cena 11, Ahmed situa o
significado operacional de uma estrutura de quatro toneladas para
a produção do espetáculo Violência (2000) ou das 1,5 toneladas
para In’Perfeito (1997). O coreógrafo contextualiza as mudanças
mundiais com a crescente necessidade de práticas sustentáveis e
como o seu pensamento de dança aos poucos agrega possibilida-
des mais adequadas às demandas ambientais. Assim, a companhia
alcança resultados econômicos mais viáveis. “Máximo de precisão
e simplicidade possíveis”, diz.

34 Termo criado pelo francês Gilles Lipovetsky que situa o atual momento da humanidade,
ou seja, um tempo de enorme fluidez, de progresso técnico científico de individualismo
exacerbado.

80
Com lucidez extraordinária e exuberância verbal, ele está
convicto de que o momento atual exige pensar a sustentabili-
dade, a natureza das coisas e sobre as múltiplas camadas que
constituem a realidade. “As coisas nunca são uma coisa só. Além
da autonomia, é preciso entender os outros e a si mesmo.” Para
ele, não importa quem é o melhor, o mais belo, o mais forte, se o
Estado só funciona como fomentador de um único modelo, se a
natureza é participar de Joinville. Cabe a cada um incorporar ou
não no desejo de mercado. Importa separar a ficção e a realidade,
estar consciente, reconhecer que tudo se dá de modo paralelo,
sem exclusões. Importa sair do neocolonialismo cultural, buscar
autonomia, escapar das armadilhas, saber o que é natural, “olhar
para si mesmo estando em outros lugares e em diálogo com os
outros”. Atento, não está indiferente às mudanças mundiais no
campo da ecologia e do consumo. “Cidadão geográfico”, como
se define às vezes, afirma como ambição seguir com ética, simpli-
ficações e coerente com o seu desejo artístico.
A crise, sabe-se, é também um discurso da modernidade e
do contemporâneo. O fim do poço, como se diz, sempre é mais
fundo. A crise não se esgota, assim como a necessidade de eterno
recomeço. Para muitos há mais fragilidades do que êxito. No
entanto, na oposição do discurso sombrio há a clarividência de
Ahmed que põe a dança também na rota da sustentabilidade.
Ou, nesse movediço território, quem sabe reafirmar o valor da
ancestralidade, reconhecer os chamados “construtores” que, ao
enfrentar terrenos inóspitos, deixam trabalho relevante no ensi-
no e na preparação dos bailarinos – como já é o caso do próprio
Cena 11.
No contemporâneo, a cena em Santa Catarina segue mar-
cada pelo distanciamento da rota de circulação de espetáculos
nacionais e internacionais, pela completa ausência do Estado
como possível gestor ou norteador de uma política pública; por
uma produção centralizada na Capital, por ações culturais e pos-
turas de artista-etc. Há afetividade, engajamento e resistência.
Trata-se de uma dança valente, como define a jornalista Luciana

81
de Moraes, 35 porque supera “os desafios, além dos habituais em
qualquer área, porque é uma arte pouco compreendida e fun-
damental para o desenvolvimento humano”. Se não grandilo-
quente, o cenário é vitalizador. Com mais indagações do que
respostas, a maioria dos espetáculos tem qualidade artística, é
politicamente desestabilizadora, alinha corpo e linguagem com
implicações antropológicas e sociais. Com múltiplos atravessa-
mentos no cotidiano da cidade e das pessoas, se impõe inventiva
no discurso da crise.

AGR ADECIMENTO:

Alejandro Ahmed, Diana Gilardenghi, Iraci Seefeldt, Jussara


Belchior, Jussara Xavier, Letícia de Souza, Luciana de Moraes,
Marta Cesar, Marcos Klann, Milene Duenha, Neiva Ortega,
Paloma Bianchi, Sandra Meyer e Vera Torres.

35 Luciana de Moraes: jornalista que trabalha com comunicação na área de dança, além
das áreas de arquitetura e design. “A dança sempre esteve no meu foco de interesse, diz
ela. Danço desde pequena e o movimento permanentemente foi a forma de me entender,
organizar e também (des)estabilizar.”

82
83
SANDRA MEYER é artista, pesquisadora e pro-
fessora titular aposentada da Universidade do
Estado de Santa Catarina (Udesc). É doutora
em Comunicação e Semiótica pela PUC – São
Paulo. Escreveu A Dança Cênica em Florianó-
polis (FFC, Florianópolis: 1994) e As metáfo-
ras do corpo em cena (AnnaBlume, São Paulo:
2009, 2011). É co-autora dos livros Tubo de
Ensaio - experiências em arte e dança contem-
porânea (Florianópolis, edição de autor, 2006);
Tubo de Ensaio – Composição [Intervenções
e Interseções](Florianópolis, Instituto Meyer
Filho; Itaú Cultural (2016); Seminários de
Dança I e II (Joinville, 2008 e 2009); Coleção
Dança Cênica – Pesquisas em Dança, Volume
1 (Joinville, Letra d’Água, 2008) e Coleção
Dança Cênica – Histórias de Dança, Volume
II (Florianópolis, Editora Udesc, 2012). Integra
o Projeto Corpo, Tempo e movimento.

84
MÚLTIPLAS DANÇAS
MÚLTIPLAS CRÍTICAS
MÚLTIPLAS ESCRITAS
Sandra Meyer

MÚLTIPL AS DANÇAS

O
convite para escrever sobre crítica de dança em Florianó-
polis foi aceito, e decerto o assunto poderia render mui-
tas linhas, por incrível que pareça a uma cidade que não
possui tradição em crítica. A proposta aqui é expor algumas ideias
sobre escrita crítica em dança nos últimos anos na capital do esta-
do de Santa Catarina, coincidindo com a época do surgimento do
Múltipla Dança. Não sendo a relação entre crítica e mídia estável,
no sentido de continuidade de espaço para veiculação de textos
em jornais e outras plataformas, os escritos que se desdobraram
a partir da programação do Múltipla Dança podem nos revelar
aspectos da dança que aqui se fez/faz e a que por aqui circulou/
circula, bem como os discursos que elas têm evocado.
A escolha inicial do nome, Múltipla Dança, expunha o de-
sejo de suas mentoras, Marta Cesar e Jussara Xavier, de abrir-se à
multiplicidade da dança contemporânea e, ao mesmo tempo, res-
ponder à urgência de instaurar outros modos de fruição de dança
que não somente a amostragem de espetáculos, comum a dezenas
de festivais em Santa Catarina surgidos desde os anos 1980. O
subtítulo do evento em 2006, em seu ano inaugural – Seminário
Internacional de Dança Contemporânea –, bem como a ausência
do nome festival já demonstrava um interesse de diferenciação,
distante do formato de apresentação de festivais com curtas core-
ografias de grupos e escolas de dança. Para tanto, espetáculos pro-
fissionais, debates e oficinas foram introduzidos na programação,
permitindo outras formas de circulação de saberes numa perspec-
tiva mais crítica.

85
O surgimento do Múltipla Dança está inserido num contex-
to de tentativas para repensar o papel de um evento de dança; e
algumas delas tiveram êxito, embora por pouco tempo. Voltemos
ao passado. Numa crítica intitulada Mais que Festival, publicada
em 1998 no Jornal A Notícia, de Florianópolis, chamei a atenção
para o fato de que os festivais e as mostras de dança começavam
a firmar seu gênero em Santa Catarina, entretanto, sua vitalidade
dependeria de uma abertura a mudanças e uma troca eficaz com o
seu meio. Com o intuito de discutir o perfil da recém criada Mos-
tra de Dança de Florianópolis, organizada pela hoje Fundação
Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes, elaborei uma escrita
crítica salientando que esta teria surgido a partir da Mostra de
Novos Coreógrafos1, mas que, contudo, perdera um importante
diferencial presente na mostra anterior: o de incentivo à pesquisa
de linguagem. Transcrevo aqui um trecho:

Mas, a Mostra de Dança de Florianópolis, ao aproximar-se de-


masiadamente do formato comum aos festivais, embora diferen-
cie-se por não ser competitiva, perdeu um interessante foco: o de
investir em novos coreógrafos e em uma possível inovação estética
que poderia emergir deste investimento. O enfoque na pesquisa e
criação de novas linguagens para a dança mudou de eixo e passou
a ser quase um adereço (MEYER, 1998, p. C 2).

Após a realização da segunda mostra voltada aos novos co-


reógrafos, a Folha da Cultura, jornal da Fundação Franklin Cas-
caes, na matéria intitulada Sul em Movimento, de 1994, publica

1 A primeira edição, ocorrida de 13 a 16 de setembro de 1988, intitulava-se I Mostra de


Novos Coreógrafos do Sul Cidade de Florianópolis, e foi coordenada por Martha Mansinho.
A segunda, realizada de 23 a 26 de junho de 1994, tem o nome alterado para II Mostra de
Novos Coreógrafos da Região Sul, sob direção de Simone Simon. A Mostra de Dança de
Florianópolis também foi extinta, bem como a Bienal de Dança, iniciativa que sucedeu a
antiga mostra, que por sua vez pouco acrescentou para o contexto local, além da mudança
do nome.

86
o depoimento de Cássia Navas, uma das palestrantes convidadas
para o evento2. A pesquisadora paulista elege em seu depoimento
a não competitividade como uma marca de diferença da II Mostra
de Novos Coreógrafos da Região Sul, reforçando-a como um novo
modelo de encontro entre artistas dos três estados do sul com foco
na criação artística destes. Infelizmente, estas iniciativas voltadas
à criação em dança tiveram curto fôlego.
Diante do contexto acima exposto, fica evidente o papel do
Múltipla Dança enquanto evento endereçado à arte contemporâ-
nea, em seus desdobramentos e continuidades. O perfil curatorial
buscou investir cada vez mais nesses dez anos em uma dança que
prima pela pesquisa, provocando desta forma discursos outros
provenientes de corpos críticos - como o assim denominou Lauren-
ce Louppe (2012) àqueles que produzem dança contemporânea. Se
concordarmos que o corpo da dança contemporânea é um corpo
crítico, seu fazer “coloca em crise” [Krinein]3 não somente a sua
constituição poética e estética, em confronto com o seu ambiente,
mas o entendimento da atividade de escrever criticamente sobre
estas danças como “juízo e julgamento” [Kritikis]4, evocando aqui
as raízes etimológicas grega e latina do termo crítica. Neste sen-
tido, considero a escrita crítica não como a escrita valorativa ou
imperativa a posteriori de um espetáculo, tampouco como a tradu-
ção do significado de uma do obra a fim de ser compreendida pelo
espectador, mas uma tentativa de articulação de fazeres, saberes e
dizeres envolvidos numa ação em arte (MEYER, 2016).
Nos apropriamos aqui da perspectiva de Claire Bishop
(2012, p. 131), ao comentar sobre a participação do observador e

2 Cássia Navas falou sobre a dança no Brasil, Eva Schul sobre a dança no sul e Sandra
Meyer expôs sua pesquisa que culminou no livro A dança cênica em Florianópolis, publicado
em 1994 e lançado no evento.
3 A palavra grega krinein, que significa “separar, quebrar”, levou ao entendimento da pala-
vra “crise”, ou seja, “por em crise” uma obra pela sua separação em partes.
4 A tradução latina de kritikê levou o termo para a ideia de julgamento e apreciação.

87
da ativação do público, de que “toda arte – seja imersiva ou não –
pode ser uma força crítica que se apropria de valores e os redistri-
bui, distanciando nossos pensamentos do consenso predominante
preexistente”. Em se tratando de um evento, como instaurar uma
força crítica? O que seria crítico, ou criticado? E mais especifica-
mente, quais os dispositivos elaborados pelo Múltipla Dança para
lidar com a ideia de crítica?

MÚLTIPL AS CRÍTICAS

Iniciativas implementadas pela curadoria do Múltipla Dan-


ça, formada por Marta Cesar e Jussara Xavier têm instaurado
nesses dez anos um ambiente favorável para o exercício crítico (e
da crítica) de artistas e de públicos, após ajustes em suas primei-
ras edições, posto que a programação passou a incluir espetácu-
los mais dissensuais e intempestivos. Mostra de Bolso, de 2008,
apresentava a produção local para curadores e programadores de
outras regiões do país, propiciando o contato entre ambos. Com a
proposta Ensaios Abertos – Trânsitos, Teoria e Prática, de 2010,
foi instaurado um espaço para exibição e discussão de trabalhos
coreográficos de grupos catarinenses, promovendo o encontro en-
tre eles, com a participação de pesquisadores convidados como
debatedores5. Ao longo destes anos, projetos diferenciados como o
Acervo Mariposa (SP), Dança em Foco (RJ), Rumos Dança do Ins-
tituto Itaú Cultural (SP) e Tubo de Ensaio (SC) uniram-se ao Múl-
tipla Dança para viabilizar a programação, permitindo o aden-
samento de instâncias críticas. Somadas às demais palestras e
debates, tais iniciativas propiciaram oportunidades de abertura
a novas percepções e redistribuição de valores e sensibilidades,
envolvendo as poéticas, os discursos e as escritas.

5 Oportunidade em que pude, junto à Christine Greiner (SP), refletir sobre algumas pro-
posições de dança.

88
Quanto à escrita crítica, as primeiras investidas publica-
das em jornais da cidade relacionadas ao MD foram elaboradas
por jornalistas não especialistas em dança, a exemplo do texto
Propositalmente fora do compasso de Ainá Vietro, publicado
em 2007 para o Caderno cultural Anexo. Ao comentar sobre
Dança Contemporânea em Domicílio, da bailarina e coreógra-
fa Cláudia Müller (RJ), Vietro ressalta o fato de que se poderia
ligar e encomendar alguns minutos de dança contemporânea
em um endereço solicitado, destacando que o trabalho “desfaz
a ideia de que a performance deve ser obrigatoriamente feita
no palco de um teatro. Esse é um dos trabalhos (diferenciados)
que está na programação do Múltipla Dança 2007 – Seminário
Internacional de Dança Contemporânea, que começa hoje em
Florianópolis” (grifo nosso). A questão da diferença apontada
no texto da jornalista – não esmiuçada e posta entre parênteses
– convida o leitor a presenciar outros modos de perceber um
espetáculo. A dança-delivery que Müller oferece a pessoas que
lhe solicitam desempenha um papel de disparador da atitude
suspensiva em relação a uma normatividade estética, crucial
para uma experiência em arte e dança diferenciada.
A presença de jornalistas sensíveis à dança vem garan-
tindo a veiculação desta arte nos jornais locais, e o fato não
se restringe ao contexto do Múltipla Dança. Desde a década
de 1970 há registros de escritos que permitem aferir os modos
como a dança moderna ia sendo reconhecida e percebida como
uma arte de seu tempo. O Jornal O Estado, o mais importante
veículo na época, em matéria intitulada Balé: o mundo na pon-
ta dos pés, de 1973, destacou a evolução da dança clássica em
Santa Catarina, notadamente em Florianópolis, considerando a
frequência de alunos nas academias, num quadro estimado na
época de 400 bailarinas (a matéria aponta a falta de homens na
dança). O longo texto não assinado ressalta a incipiente pre-
sença da modernidade da dança na cidade: “Dançando mais
o balé, pois que o moderno ainda não conseguiu sua perfeita
integração no contexto da dança florianopolitana, sendo ape-

89
nas lecionado na Escola de Balé do Teatro Álvaro de Carvalho”
(1973, p. 9)6.
Com o surgimento do Studio de Dança, dirigido por Jus-
sara Terrats (hoje Zerbino) a mídia impressa passa a reconhecer
os primeiros espetáculos de dança moderna, momento em que se
percebe um olhar atento ao contexto e aos movimentos críticos
provocados por estas novas danças. O Jornal O Estado, de 19 de
dezembro de 1978 sublinha a liberdade de movimentos dos corpos
aos acordes do jazz e “da difícil dança contemporânea que, para
sua fluidez e destreza exigem um trabalho pequeno e quase obscu-
ro do dia a dia” (grifo nosso), e “é por isso que aplaudimos antes,
desde hoje, estas criaturas que unem saúde à beleza, de modo in-
defectível e audaz”. Num convite à fruição do espetáculo, o texto
ressalta que o espetáculo Jazz (1978), com coreografias de Jussara
Terrats, Karla Prattes e Monteserat Borredá7, “[...] deve encantar
a todos, pois é feito de carne e sangue. De alma e sentimento: a
dança.” Ao mesmo tempo em que expõe uma ideia de dança como
a expressão de suaves ninfas, feita por jovens da Ilha de Santa
Catarina que se vê na escola, na praia, no cinema, a matéria jor-
nalística (não assinada) chama a atenção para uma dança custosa
que deixa a ver os esforços da carne e dos músculos do artista por
meio de um árduo e meticuloso trabalho diário, que o repórter

6 A escola era dirigida pela professora Bila D’Avila Coimbra (1934-2011), com um trabalho
baseado num programa oferecido pela Escola do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, local
onde a professora teve sua formação em balé.
7 Apresentado no Teatro Álvaro de Carvalho, em Florianópolis, em 19 de dezembro de
1978. As coreografias partiam das técnicas de jazz de Luigi, nascido Eugene Louis Faccui-
to, bailarino com passagem pelo cinema no Estados Unidos que desenvolveu sua técnica
de estudo do movimento considerada clássica e elegante, elaborada após acidente auto-
mobilístico que o deixou com paralisia parcial; de Matt Mattox, pioneiro do jazz que se
destacou nos anos 1950 em muitos musicais da Broadway, sendo que sua técnica utilizava
referências do balé, sobretudo nos exercícios de barra; bem como da dança moderna de
Martha Graham (Informações presentes na matéria Dança: Um Studio na Ilha, Jornal O Es-
tado, 12/03/79, p. 6).

90
descreve como “obscuro”, revelando já um certo estranhamento
provocado pela dança moderna e dança jazz do Studio de Dança.
No período de atividade do Ballet Desterro, entre 1984 e
1991, os espetáculos do grupo referência do anos 1980 (XAVIER,
2010) ganhavam o olhar de um crítico de outra área, as artes visu-
ais, com o catarinense João Otávio Neves Filho, o Janga. No texto
que consta no programa do espetáculo Em busca de um espaço
perdido (1990) ele propõe um olhar para a dança que instaura
criticidade e possibilidade de reflexão ao ressaltar a “sintoniza-
ção com a contemporaneidade” das coreografias do grupo, sendo
que seus bailarinos e coreógrafos “recusam-se a fazer da dança
mera diversão, ornamento ou passatempo social inconsequentes”
(1990, p. 2). Janga destaca ainda que as coreografias colocariam
o público “diante de seus próprios problemas interiores, buscando
aumentar os níveis de experiência do intérprete e da plateia” (p. 2).
Os exemplos acima destacados demonstram as relações que
foram se estabelecendo pouco a pouco entre arte crítica e escrita
crítica em Florianópolis, na medida que as composições em dança
propunham modos outros de lidar conceitualmente com o corpo
no mundo, bem como as críticas acerca destas danças foram dia-
logando com estas especificidades.
Os anos 1990 marcam a participação maior de críticos de
dança nos jornais locais. Foi nessa época que iniciei uma trajetória
de escrita crítica em dança de forma mais contínua no caderno
cultural Anexo, do jornal A Notícia (Joinville, SC), no período de
1998 a 20068, momento este inaugural do jornalismo cultural ca-
tarinense voltado às artes, no sentido de um investimento e conti-
nuidade de uma pauta crítica para além da cobertura jornalística,

8 Outras duas pesquisadoras da área de dança também contribuíram na época para este
contexto ao publicarem críticas no jornal A Notícia: Jussara Xavier, de 2001 a 2010, tendo
assinado cerca de 25 críticas, algumas delas com autoria compartilhada comigo e com
Vera Torres.

91
por meio da manutenção de pesquisadores no quadro editorial9.
A elaboração das escritas em dança coincidiu com o período de
meu doutoramento10, instigando-me a um olhar contaminado por
epistemologias do corpo provenientes da arte, da semiótica, da
filosofia contemporânea a das ciências cognitivas. Esta experiência
foi fundamental para o entendimento da crítica como um cons-
tante exercício de percepção atenta às questões que as próprias
criações de dança apresentavam e o modo como convocavam um
texto próprio. A proposta era a de abdicar de uma crítica mais for-
malista para poder “dialogar com as inflexões que cada dança im-
primia (ou não) aos modos de criação, percepção e circulação da
arte, especialmente em Santa Catarina, incluindo o leitor” (Meyer,
2016, p. 56). Sendo que a composição em dança, a “coreo-grafia”,
“situada entre evanescência e escrita”, como salienta Marie Bardet
(2014, p. 151), já é uma escrita no espaço/tempo.
O mais livre possível (2009), de Ida Mara Freire, publicada
no Caderno Plural do Jornal Notícias do Dia inaugura o espaço de
escrita referente ao Múltipla Dança por pesquisadores de dança.
O escrito convida o público à fruição dos espetáculos, sem ater-se
demasiado a uma leitura especulativa dos aspectos poéticos das
obras. “Você tem que ser crítico com o seu movimento!” Com
esta fala contundente da coreógrafa francesa Nathalie Pubellier
na ocasião de sua oficina no MD Freire inicia o texto O mais livre
possível, demonstrando que a perspectiva crítica está implicada
desde o processo de formação e de criação de um artista.
O texto que encerra o circuito de escritas críticas da edição
de 2016 do Múltipla Dança no Jornal Notícias do Dia traz o se-

9 Eliane Lisboa e Edelcio Mostaço escreviam sobre teatro, Lola Aronovich sobre cinema,
Wladimir Soares sobre música e Charles Narloch sobre artes visuais.
10 Cursado no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pon-
tifícia Universidade Católica de São Paulo (2002-2006), aliado aos encontros de pesquisa
no Centro de Estudos em Dança, vinculado à PUC/SP, sob coordenação da professora e
crítica de dança Helena Katz, uma das referências nacionais no campo da crítica e do
jornalismo cultural.

92
guinte título: CRÍTICA: Múltipla Dança terminou no domingo
enfatizando que dançar é também um ato político11 . O termo crí-
tica, em caixa alta, chama a atenção do leitor. O texto ressalta a
pluralidade do festival ao apostar na ocupação de vários pontos
da cidade, alcançando cerca de 1500 espectadores, e na visibili-
dade da dança inclusiva ministrada pela professora e artista Ana
Luiza Ciscato, a homenageada do evento em 2016. No final do
texto, Ida Mara convoca o leitor para observar as relações entre
memória e esquecimento: “Leitora e Leitor,  percebo que  vocês 
não se esqueceram  que  dançar é também  um ato político. E isso
é memorável...”
Elke Siedler, outra artista que colaborou com o MD escre-
vendo críticas, também enfatiza a dimensão política do evento
na resenha 7o Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança
(2014), uma vez que este “se presta a dinamizar, local e nacional-
mente, a expansão da dança cênica. Numa tentativa de contribuir
para a fertilização do campo da produção em arte contemporâ-
nea, destaca-se o esforço pela formação de plateia e, também, a
colaboração na formação, profissionalização e divulgação de ar-
tistas residentes na cidade” (2014, p. 123). Siedler descreve ainda
a presença crescente de uma plateia interessada em manifestações
distintas e plurais em dança que “‘fogem’ de modos hegemônicos
de produções criadas para e na indústria lucrativa da dança de en-
tretenimento, vinculadas a eventos de competição” (2014, p. 125).
Desta forma reforça com seu discurso a atitude de resistência que
o Múltipla Dança tem sustentado nesses dez anos, e que não pode
perder-se de vista nos tempos de hoje.

11 Disponível em: http://ndonline.com.br/florianopolis/plural/critica-multipla-danca-ter-


minou-no-domingo-enfatizando-que-dancar-e-tambem-um-ato-politico

93
MÚLTIPL AS ESCRITAS

Além da ampla cobertura da imprensa local, com críticas


publicadas pelo jornal Notícias do Dia, de Florianópolis, a sétima
edição do MD, que aconteceu de 20 a 25 de maio de 2014, marca
o surgimento do projeto Múltiplas Escritas, a primeira ação do
evento voltada especificamente à problematização da crítica. Con-
cebido por Anderson do Carmo e coordenado pelo mesmo (e por
mim nessa edição), a proposta alinha-se a outras iniciativas que
tencionam arte, crítica, criação e escrita12.
Múltiplas Escritas acontece com o propósito de experimen-
tar outras possibilidades de relacionar arte e crítica não restritas
ao procedimento especialista de escrever de modo analítico sobre
um espetáculo após a sua apreciação. Neste propósito, cabe repen-
sar a própria crítica em sua tradição especulativa e valorativa, para
adensar outros discursos atentos aos fazeres e dizeres das múltiplas
danças curadas na programação do MD, incluindo a fala crítica de
artistas, esses que são comumente alvo do discurso de especialistas
em crítica. Leia-se nesta proposta de agenciar escritas múltiplas o
desejo de “entender o acontecimento crítico como uma das possíveis
versões da dança que se frui e não como sua inquestionável tradu-
ção”, como ressalta Anderson do Carmo (2016). Para este inten-
to, foram convidados artistas de diferentes áreas e entendimentos
acerca da arte para escrever sobre as atividades do Múltipla Dança
2014, incluindo oficinas, mostras de vídeo, debates e espetáculos. O
interesse era o de que cada texto, em sua singularidade, tencionasse
o evento como um todo, formando um mapa não unificado, sujeito
a fissuras, diferenças e assimetrias. Os textos emergiam feito um te-
lefone sem fio, pois cada um deles carregava alguma informação do
texto precedente, para abrir-se inevitavelmente à sua diferença. Vale
ressaltar que o texto era produzido para ser publicado no página do

12 Tais como 7x7 (SP), Precisa-se público (MG), Crítica com dança (CE/PR) e CTRL+ALT+DANÇA
(RJ).

94
MD no dia seguinte, levando em conta o calor da experiência recém
vivida pelos artistas convidados a escrever, o que incluía outros in-
teressados em cooperar com o projeto13. Vale ressaltar que alguns
dos textos produzidos para a primeira edição do Múltiplas Escritas
foram publicados na InterArtive14, que funciona como uma revista
digital internacional de publicação mensal e como uma associação
cultural que realiza projetos em outros espaços.
Em 2016 o projeto retorna ao Múltipla Dança com uma pro-
posta mais intensiva. Múltiplas Escritas: reinventando a pertinên-
cia crítica aconteceu em parceria com o website Conectedance,
criado e coordenado pela jornalista e crítica Ana Francisca Ponzio.
Além de constar no Facebook do evento15 e no Jornal A Notícia,
de Florianópolis, todos os textos passaram a ser publicados no
Conectedance, considerando que as redes sociais cada vez mais
vem ocupando espaços de articulação crítica, restritos antes aos
jornais impressos.
A segunda edição do Múltiplas Escritas atuou na tentativa
de “deslocar o protagonismo da opinião do autor para o aconte-
cimento crítico em si”, guiado pela percepção de uma “perigosa
tendência nas estruturas acadêmicas e jornalísticas da reflexão”16.
Segundo o coordenador Anderson do Carmo: “fazer uso das obras
de dança para dar a ver ideários previamente instituídos que –
concretamente – não pensam arte, mas parasitam suas discussões
para delas servirem-se” (2016).17

13 Textos de autoria de Anderson do Carmo, Jussara Belchior, Oto Henrique, Luana Leite,
Daniela Alves, Sandra Meyer, Kamilla Nunes, Vicente Concílio, Maria Carolina Vieira, Pedro
Coimbra, Sarah Ferreira, Elke Siedler, Oberdan Piantino, dentre outros.
14 Surgiu em 2008 e é coordenada por Herman Bashiron Mendolicchio, Modesta Di Paola,
Marisa Gómez Martínez, Christina Grammatikopoulou e a brasileira Lucila Vilela. 
15 https://www.facebook.com/festivalmultipladanca/
16 http://www.conectedance.com.br/ponto-de-vista/multiplas-escritas-reinventando-a-per-
tinencia-critica/
17 Idem.

95
Arte versus universidade: uma relação delicada que merece
atenção. Com o aumento do ingresso de artistas da dança na uni-
versidade, especialmente em programas de pós-graduação de áre-
as afins, incluindo artes cênicas18, a articulação de saberes trans-
versais é inevitável e, sob muitos pontos de vista, imprescindível, a
fim de que a dança não se feche em si mesma. Contudo, há que se
pensar em uma ética e uma política de boa vizinhança para cons-
truir intercessores. Com a ideia de intercessão, Deleuze tenta des-
fazer o primado da filosofia fazendo a mesma relacionar-se com a
arte e a ciência, promovendo desta forma um atravessamento da
filosofia pelo que não é filosófico. O movimento de perceber a dan-
ça pelo que não é dancístico19 (ou que comumente seja considerado
como dança) pode ser profícuo. A filosofia, a arte e a ciência, em
seu exemplo, entram em relações de ressonância mútua e em rela-
ções de troca, mas a cada vez por razões intrínsecas, sendo o mo-
vimento próprio de cada área o que permite repercutir umas nas
outras, para que não haja parasitas obstaculizando a percepção
do que da dança emerge como acontecimento, em sua múltiplas
conexões com o mundo.

Uma disciplina que se desse por missão seguir um movimento


criador vindo de outro lugar abandonaria ela mesma todo papel
criador. O importante nunca foi acompanhar o movimento do
vizinho, mas fazer seu próprio movimento. Se ninguém começa,
ninguém se mexe. As interferências também não são trocas: tudo
acontece por dom ou captura. O essencial são os intercessores. A
criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pes-
soas - para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista,

18 Até 2020, o Brasil conta com cursos de pós-graduação em Teatro (Udesc), Artes Cênicas
(tais como UNIRIO, UFBA, UFRGS, UFRN) e Artes da Cena (Unicamp) cujas linhas de pes-
quisa contemplam a dança e um programa de doutorado e mestrado em dança (UFBA).
19 Aproprio-me aqui do termo em espanhol, no sentido de gêneros dancísticos, ou seja,
formas de classificar a dança por suas características e estilos.

96
filósofos ou artistas - mas também coisas, plantas, até animais,
como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados,
é preciso fabricar seus próprios intercessores. (DELEUZE, 2013,
p. 45).

De modo sagaz, o formato experimental da plataforma


Múltiplas Escritas buscou repensar a fisiologia da crítica em dan-
ça a partir do movimento próprio da dança. Neste sentido, Ander-
son do Carmo propôs uma desafiadora “inversão epistemológica”,
sempre atento às possibilidades da reflexão escrita, que “não refle-
te as obras de dança a partir dos parâmetros críticos, mas sobre
o fazer crítico a partir dos parâmetros das obras de dança [...].
Se a arte se tornou crítica, talvez seja proveitoso que a crítica se
estetize”20.
O desafio parece estar na percepção de que certas obras
contemporâneas de dança que circularam no Múltipla Dança nos
anos 2014 e 2016, citadas no Múltiplas Escritas, tais como Fole,
de Michelle Moura (SC/PR), Sobre expectativas e promessas, de
Alejandro Ahmed (SC) e Finita, de Denize Stutz (MG/RJ) pro-
põem seus próprios parâmetros críticos, desafiando com sua po-
ética e estética a percepção crítica do outro e, consequentemente,
tencionando o que se escreve sobre elas.
Em Bio+grafia = tensão entre corpo e escrita, (2016) um dos
textos do Múltiplas Escritas publicado na Revista Interative, apre-
sento uma perspectiva crítica do que seja autobiografia na dança
a partir do solo Sobre expectativas e promessas. Para o diretor do
Grupo Cena 11 Cia. de Dança, Alejandro Ahmed, a biografia é
feito “vestígio”, uma espécie de “genealogia não narrativa”21, ou

20 Disponível em: http://www.conectedance.com.br/ponto-de-vista/multiplas-escritas-


-reinventando-a-pertinencia-critica/. Acesso em: 15 de Fevereiro de 2017.
21 Durante a mesa de debate “Pesquisa biográfica em dança”, realizada na edição de 2014,
Ahmed expôs sua concepção de autobiografia como uma “genealogia da experiência” do
corpo no tempo e no espaço.

97
seja, o artista agencia a ideia de memória como modulável, sem
identidade fixa, que não apresenta garantias de sua sobrevivência.
O seu corpo em cena, inquieto e vibrátil, intensifica sobremaneira
esta perspectiva crítica não narrativa.
No texto Temporalidade Amplificada, publicado no Múlti-
plas Escritas de 201422 , o bailarino e pesquisador Oberdan Pian-
tino inicia assim sua crítica: “– Diante de um testemunho vivo,
em que momento escolho fechar os olhos? [..] seu nome é Michelle
Moura; nos quarenta minutos de apresentação do espetáculo Fole,
posso chamá-la Sobrevivência, Rasura, Reminiscência e Contes-
tação. Neste momento de escrita, procuro alguma fala conforta-
velmente autoral que possa sintetizar as diversas impressões que
ainda pulsam na mente”. Este não saber, promotor de instabili-
dade do sensível e do controle sobre a autoria textual resvalou da
apreciação da dança vigorosa de Michelle Moura para o ato da es-
crita, posto que os afetos que a obra Fole convoca provocaram em
Piantino estados de crise - portanto críticos - que desestabilizam
pré-julgamentos e discursos especializados pré-elaborados.
Já o olhar de Vicente Concílio para Finita, de Denise Stutz,
aponta para a cumplicidade entre artista e plateia, sendo essa
“sempre convidada a refletir sobre as lacunas criadas pela dinâ-
mica entre ausência e presença propostas pelo espetáculo”. No
texto Luz…luz…mais luz! Considerações entorno de Finita, de
Denise Stutz 23 o ator e diretor teatral expõe suas considerações
de modo afetivo: “Não sei bem por que razões me vieram à men-
te, e depois aos dedos que digitam este texto, as últimas palavras
de Goethe. É bem conhecida a história (ou lenda, ou anedota,
ou mentira das boas, sabe-se lá….) que antes de falecer o au-
tor de Fausto teria sussurrado (ou gritado, ou simplesmente dito,

22 Disponível em: https://www.facebook.com/festivalmultipladanca/


posts/248504248683687. (Acesso em: 21 de fevereiro de 2017)
23 Disponível em: http://interartive.org/2014/06/denise-stutz/. (Acesso em: 22 de feve-
reiro de 2017)

98
sabe-se lá…) a frase “Luz… luz… mais luz”. Concílio se deixa
atravessar por associações que desviam sua escrita de um com-
promisso meramente analítico. Na continuidade do seu texto,
declara: “Depois de ontem, se eu estivesse ao lado de Goethe,
teria satisfeito seu pedido oferecendo a ele uma sessão do espe-
táculo Finita. Sua autora, Denise Stutz, sabe produzir clarões,
tanto em cena como em nossa percepção”.
A fala de Bishop (2012) assinalada no início deste texto é
aqui relembrada. A força crítica de performances como Finita,
Fole e Sobre expectativas e promessas conduz a percepção tanto
do artista quanto de seu espectador a lugares ainda inexplora-
dos. Se as danças contemporâneas aqui referenciadas são danças
críticas, posto que o movimento crítico já se encontra em curso
nas obras, as escritas que a elas se referirem não poderiam tra-
í-las em sua ontologia. O que não pode ser perdido de vista é a
atenção aos novos modos de se fazer arte, que por sua vez de-
mandam novas práticas de escrita, e assim por diante. E é com
o entrelaçamento de múltiplas danças, críticas e escritas que o
Múltipla Dança vem colaborando nos últimos dez anos para di-
minuir a acrisia presente em grande parte dos festivais de dança
catarinenses, bem como vem permitindo que a contemporanei-
dade da dança (que inclui a dança contemporânea) aqui circule
e ganhe vigor.

REFERÊNCIAS

• BARDET, Marie. Filosofia da dança. Um encontro entre


dança e filosofia. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2014.
• BISHOP, Claire. Antagonismo e Estética Relacional. Tradu-
ção: Milena Durante. Revista Tatuí. Recife: n.12, 2011, pp.
109-132. www.revistatatui.com
• DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pel-
bart. São Paulo: Editora 34, 2013.

99
• DO CARMO, Anderson. 5 variações sobre crítica. In: DOS
SANTOS, Carlos Alberto Pereira. Húmus 5. Caxias do Sul:
Lorigraf, 2016.
• FREIRE, Ida Mara. O mais livre possível. Jornal No-
tícias do Dia - Caderno Plural, Cobertura Especial, 26 e
27/05/2009.
• ______________. CRÍTICA: Múltipla Dança terminou no
domingo enfatizando que dançar é também um ato político.
Jornal Notícias do Dia, 31/05/2016. Disponível em: http://
ndonline.com.br/florianopolis/plural/critica-multipla-danca-
-terminou-no-domingo-enfatizando-que-dancar-e-tambem-
-um-ato-politico. Acesso em: 10 fev. 2017.
• FOLHA DA CULTURA. Sul em Movimento, Jornal da Fun-
dação Fundação Franklin Cascaes. Prefeitura Municipal de
Florianópolis, Ano 2, n. 6, Julho/Agosto 1994, p. 13.
• JORNAL O ESTADO. Balé: o mundo na ponta dos pés. Co-
luna Cidade. Florianópolis, 03/06/1973, p.9.
• ________________. Dança e Harmonia no TAC. Coluna
Teatro. Florianópolis, 19/12/1978, s/p.
• ________________. Dança: Um Studio na Ilha. Florianópo-
lis, 12/03/1979, p. 6.
• LOUPPE, Laurence. A poética da dança contemporânea. Lis-
boa: Orfeu Negro, 2012.
• MEYER, Sandra. Corpos e livros abertos em situação crítica.
In: DOS SANTOS, Carlos Alberto Pereira (Org.). Húmus 5.
Caxias do Sul: Lorigraf, 2016.
• ______________. Mais que Festival. Jornal A Notícia. Flo-
rianópolis: 1998, p. C 2.
• ______________. Bio+grafia = tensão entre corpo e escrita.
InterAtive. Disponível em: http://interartive.org/2014/06/cor-
po-escrita/. Acesso em: 22 de fevereiro de 2017.
• NEVES FILHO, João Otávio (Janga). Ballet Desterro. Pro-
grama do espetáculo Em busca de um espaço perdido. Flo-
rianópolis, 1990.
• PIANTINO, Oberdan. Temporalidade Amplificada. Múl-

100
tiplas Escritas 2014. Disponível em: https://www.facebook.
com/festivalmultipladanca/posts/248504248683687. Acesso
em: 21 de fevereiro de 2017.
• SIEDLER, Elke. 7o Múltipla Dança - Festival Internacional de
Dança. Revista Dança. Salvador, v. 3, n. 1, Janeiro/julho 2014,
p. 122-125. Disponível em: https://www.portalseer.ufba.br/
index.php/revistadanca/article/download/11295/9322.
• VIETRO, Ainá. Propositalmente fora do compasso. Caderno
cultural Anexo. Jornal A Notícia, Florianópolis, 02/10/2007.
• XAVIER, Jussara. Ballet Desterro: contemporaneidade na
dança catarinense. In: XAVIER, Jussara; MEYER, Sandra;
TORRES, Vera (Org.). Histórias da Dança: Coleção Dança
Cênica, volume 2. Florianópolis: Editora Udesc, 2010, pp.
137-167.

101
IDA MARA FREIRE – Pós-doutorado em Dança,
University of Cape Town, África do Sul, 2012.
Professora associada aposentada da Universi-
dade Federal de Santa Catarina. Atualmente
dedica-se à escrita e também ao projeto Jor-
nadas Criativas, no qual encoraja pessoas a
dançarem suas histórias. Membro do Conse-
lho Editorial do periódico Research in Dance
Education. Textos publicados: To see or not
to see: Dance as Perceptive Journey, e-book,
2017; Toyi-Toyi: a dança sul africana entre a
memória e o perdão, Revista Alegrar, 2016;
Merleau-Ponty and Buber on seeing and not
seeing the Other: inclusion and exclusion in
education, co-autoria Alexandre Guilherme,
International Journal of Inclusive Education,
2015; Toyi-toyi: a dança de uma nação e a no-
ção de liberdade em Merleau-Ponty, capítulo
de livro, Editora Fi, 2015; Tecelãs da Existên-
cia, Revista Estudos Feministas, 2014; Dança
e Cegueira: a criação no lugar da falta, Revista
Dança UFBA, 2014. Autora do site Danças In-
visíveis e Outras Corpografias:
WWW.IDAMARAFREIRE.COM.BR
IDAMARA@IDAMARAFREIRE.COM.BR

102
ALGUMAS LETR AS DO ALFABETO
DO MÚLTIPLA DANÇA
Ida Mara Freire

“O
corpo, a dança, a política, estamos aqui: parque,
praia, teatro, universidade, Iphan… Que governo é
possível? Quem aprecia a dança poderá responder,
escrever, observar as possibilidades dessa questão de Olga Gutiér-
rez, que ecoa nas proposições do Múltipla Dança. A começar por
imaginar, com Elías Aguirre, um pássaro que não voa. Reconhe-
cer as memórias vivas narradas e cantadas nas danças de Diana
Gilardenghi e Sandra Nunes. A Atitude Cia. de Dança atenta se
estamos cimentando sensibilidades ou encorajando a desesperan-
ça. Será que estamos com eles? Rui Moreira explora ações cênicas
da dança negra aqui e em Dakar. Elke Siedler sinaliza com ver-
melho a fragilidade on-off-line das relações afetivas. Marta Ce-
sar e Jussara Xavier celebram a 9a edição do festival, valorizando
o contexto artístico em constante mudança que recusa o padrão
único e abraça a inclusão ao homenagear a professora Ana Lúcia
Ciscato. A cena se completa com a participação: leitor, leitora que
arriscam com coragem fazer parte dessa múltipla dança” Publica-
do em 24/05/2016. Uma década do Múltipla Dança. Leio, reviso,
atualizo: as notações, a escrita da dança, as conversas dançadas.
São tantas pessoas, movimentos, palavras e nomes, que embora
presentes em meu coração, mas nesse texto impresso tenho que
pedir desculpas pelas omissões, pois, menciono aqui somente as
resenhas críticas de minha autoria, publicadas em sua maioria no
Caderno Plural do Jornal Notícias do Dia, nas generosas edições
de Néri Pedroso e Dariene Pasternak, com as belas e surpreenden-
tes imagens de Cristiano Prim.

ARTISTAS. Adilso Machado, Al Crisppinn, Alejandro Ahmed,


Alex Sander dos Santos, Alexandre Bhering, Alexandre Veras,

103
Aline Blasius, Álvaro Dantas, Ana Alonso, Ana Amélia Vianna,
Ana Carla Reis, Ana Francisca Ponzio, Ana Lúcia Ciscato, Ander-
son do Carmo, Anderson Gonçalves, Andréa Bardawil, Andrea
Elias, Beatriz Milhazes, Bia Mattar,  Camilo Chapela, Carolina
Ribeiro, Cássio Brasil, Christianne Galdino, Christine Greiner,
Cláudia Shimura, Clébio Oliveira, Cristina Turdo, Daniela Al-
ves, Deivison Garcia, Denise Stutz, Diana Gilardenghi, Dorothé
Depeauw, Eduardo Maggiolo, Elías Aguirre, Elke Siedler, Erika
Rosendo, Esther Weitzman, Fabiana Dultra Britto, Felipe Padilha,
Fernanda Eugénio, Fernanda Reis, Fernando Martins, Florencia
Vecino, Glauce Milhazes, Goldie, Heder Magalhães, Hedra Ro-
ckenbach, Hendrik Lorenzen, Henrique Rodovalho, Irani Apoli-
nário, Jânia Santos, Jean Jacques Lemêtre, João Paulo Gross, João
Fiadeiro, José Geraldo Furtado, Joselma Soares, Joubert Arrais,
Jussara Belchior, Jussara Xavier, Kaká Antunes, Karin Serafin,
Karina Collaço, Leo Bungarten, Leticia Lamela, Letícia Sekito,
Lincon Soares, Lisa Jaworski, Luis Garay, Marc Leclair, Lilian Vi-
lela, Marcela Reichelt, Marcelo Lopes, Marcia Milhazes, Marco-
ni Araújo, Marcos Buiati, Marcos Klann, Margô Assis, Mariana
Romagnani, Marta Cesar, Martha Cano, Mauro Ariel Panzillo,
Mayara Costa, Michele Moura, Michelle Pereira, Mônnica Emi-
lio, Nastaja Brehsan, Nathalie Pubellier, Nelson D, Nina, Néri
Pedroso, Olga Gutiérrez, PC Castilho, Pedro Paulo Rosa, Peter
Mark, Porter Ricks, Ray Conniff, Rodrigo Lemos, Rodrigo Mi-
notti, Rogério Almeida, Rozeane Oliveira, Rui Moreira, Sandra
Meyer Nunes, Sarah Ferreira, Stacey Kent, Suely Machado, Tânia
Ikeoka, Taylor Deupree, Telli Narcizo, Thembi Rosa, Thiago Sch-
mitz, Tom Monteiro, Umebayashi Shigeru, Valeska Figueiredo,
Valeska Gonçalves, Vandré Vitorino, Vera Torres, Zilá Muniz.

BALÉ DESTERRO. 27/05/2010. “Como se chamava a sensação flui-


da de todo final de tarde? O sopro escorrendo pelo estômago sem
desenlace seguro, o que era? Estava sentado num café, absorto
nesse laivo de instante. E isso lhe deixaria aquele sumidouro de
lembrança cada vez mais distantes de uma nascente precisa...”

104
Eis um fragmento de um instante ficcional de João Gilberto Noll
que nos sugere indagar como o olhar, o escrever, o mover-se, re-
velam gestos instantâneos cujo entrelaçamento forjam o vídeo, o
livro, e a dança. Podem nossos olhos interrogar o mundo e, através
deles, o mundo apresentar-se a nós? Ballet Desterro: contempora-
neidade na dança catarinense, dirigido por Jussara Xavier, regis-
tra em voz e imagens a trajetória pioneira de um grupo que, como
relata a arguta diretora, realizou experiências inovadoras ao ado-
tar procedimentos criativos diferenciados do padrão e provocar a
percepção do público. Identifica em seus espetáculos: a articula-
ção inédita de diferentes linguagens e mídias, a simultaneidade de
ações na cena, a valorização da singularidade, a experimentação
coreográfica, a diversidade de motivações e as tentativas de dirigir
a dança às infinitas coisas do mundo. Seria a escrita da dança um
mapeamento e codificação literários das regiões do corpo? O livro
As metáforas do corpo em cena de autoria de Sandra Meyer é re-
sultante da sua tese de doutorado e relaciona o método das ações
físicas com estudos do corpo na contemporaneidade. Os processos
cognitivos que envolvem a formação do ator e do bailarino são
discutidos no âmbito das ciências, da filosofia e das artes, a partir
do problema corpo-mente. Como o gesto daquilo que fica em
suspenso em cada ação busca um sentido? Anderson Gonçalves
(1964-2010) bailarino, dançou em grupos como Desterro (SC),
Cia. Jazz Brasil (SP), Vacilou Dançou (RJ). Foi professor e coreó-
grafo de diversas escolas e grupos nacionais. Integrou o Cena 11
como intérprete e figurinista. A maneira de Clarice Lispector, ele
interrompe a dança com silêncio espaçoso, e deixa o corpo num
feixe de atenção intensa e muda. Ficamos à espreita de nada. Dan-
cemos. Seu silêncio não é o vazio, é a plenitude.

COMPREENSÃO. 28/05/2010. Na noite de quinta-feira ocorreu a


conversa orientada sobre a nova pesquisa coreográfica do Grupo
Cena 11 Cia. de Dança, intitulada: SIM > ações integradas de
consentimento para ocupação e resistência, mediada pela profes-
sora Fabiana Dultra Britto (BA) e tendo como participantes o dire-

105
tor e coreógrafo Alejandro Ahmed, o elenco composto por: Adilso
Machado, Aline Blasius, Cláudia Shimura, Jussara Belchior, Karin
Serafin, Leticia Lamela, Marcos Klann, Mariana Romagnani e,
a plateia do Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança
Contemporânea. Uma tarefa foi solicitada: que formássemos três
grupos para descrever a experiência de compreensão e o sentimen-
to do SIM. Tal ação me pôs a pensar acerca da compreensão, que
na concepção de Hannah Arendt é interminável, começa com o
nascimento e termina com a morte, é a maneira especificamente
humana de estar vivo. Como plateia “teste” escolhi ficar no grupo
para descrever a compreensão da coisa. Em três começamos a ta-
refa, descrevendo a nossa atitude frente à coisa: distanciamento de
uma, aproximação de outra. Mas, o que é descrever a compreen-
são de uma experiência vivida acerca de ocupação de espaço e re-
sistência num ambiente cênico? Mediante a resignação, a atividade
da compreensão é necessária, por conferir sentido e produzir uma
nova desenvoltura no espírito e no coração humanos. Faltou-nos
tempo para cruzar o abismo entre experiência e a compreensão
dela. Nessa ausência notamos a essência do interrogar-se. O re-
sultado da compreensão é o significado, que produzimos em nosso
próprio processo de vida, à medida que tentamos nos reconciliar
com o que fazemos e com que o sofremos. Neste último dia do
Múltipla Dança, a quem interessa buscar uma compreensão da
dança enquanto processo, recomendo os Ensaios Abertos, que se
inicia com o Projeto Açúcar, Fel e Afeto que apresenta Apenas
Espécie dirigido por Diana Gilardenghi (Florianópolis) e tendo
como intérpretes-criadoras: Michelle Pereira e Nastaja Brehsan.
Noto que uma experiência mais profunda com a dança demonstra
que um coração compreensivo e não a mera reflexão ou o mero
sentimento, torna suportável para nós a convivência com outro.

DIANA GILARDENGHI. 02/06/2015. Começa o Múltipla Dança e a


estrela é Diana Gilardenghi. Em 1993 apareceu uma supernova
que é chamada estrela companheira, pois duas estrelas interagem
e causam uma explosão cósmica. A dançarina, coreógrafa, pro-

106
fessora Diana Gilardenghi é uma dessas estrelas, ela apareceu em
nossa galáxia dançante causando uma explosão criativa que re-
verbera na vida de quem dela se avizinha e, consequentemente, 
se sente tocado por sua inconfundível delicadeza e sua admirável
disposição. Diana é uma incansável descobridora de talentos; não,
mais do que isso. Ela é uma mestre em desvelar o que há de melhor
nas pessoas. Experiente, ela arrisca, confia no processo e não se
apega no produto. Nos descaminhos da dança, na insegurança
dos passos, na incerteza do gesto – dela se ouvirá: Erra! Mas, não
duvida! Grata Diana, por tornar nossos dias mais belos pela luz
amistosa que sua vida irradia. Cantemos com Juanca Tavera: “[...]
vamos, todavía, que en la vida hay un cacho de alegria para ser
feliz.”

DUAL. 26/05/2010. A dualidade é um conceito definido pela


geometria em que são chamadas de ‘duais’ duas figuras que podem
ser obtidas uma da outra, refere-se a relação que une dois objetos
quaisquer, de tal modo que um pode transformar-se no outro me-
diante operações oportunas. Camilo Chapela, Carolina Ribeiro,
Fernando Martins, João Paulo Gross, Kaká Antunes, Marcos
Buiati, Martha Cano e Valeska Gonçalves, elenco da Quasar Cia.
de Dança (GO), rastejam, se arrastam, caminham, se abraçam, se
afastam, se falam, se beijam: desenham acontecimentos de dança
em busca da felicidade. Durante 70 minutos seus gestos gotejam
risos, alfinetam surpresas e sugerem sensações na plateia presen-
te no espetáculo Céu na Boca, dirigido por Henrique Rodovalho
e apresentado na noite de terça-feira no Múltipla Dança – Festi-
val Internacional de Dança Contemporânea. A musicalidade de
Hendrik Lorenzen, Taylor Deupree, Marc Leclair, Goldie, Stacey
Kent, Umebayashi Shigeru, Porter Ricks, Ray Conniff, dilatam o
estado de espírito, nos colocando reféns dos desejos alheios mani-
festos num contato aparentemente absurdo, numa comunicação
estranhada, num deslocamento horizontal. Impulsionam-nos a re-
conhecermos numa atitude epicurista que o conhecimento seguro
dos desejos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a

107
saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que esta é a
finalidade da vida feliz. A movimentação de um corpo intenso e
presente é vestida por Cássio Brasil. Camuflagem desnudada em
cena com o intuito de assumirmos como nossas as ações de tecer,
em duo, em trio, trançar fios existenciais que nos afaste da dor e
do medo. A ausência de cenário metaforiza o outro como o céu, o
ideal inatingível; e o corpo-próprio como a boca, a realidade pala-
tável. Nessa atmosfera difusa, a iluminação faz nascer o corpo de
outrem no tempo/espaço daquele que vê. Nas pausas contornadas
pelo silêncio, noto que não só o uso das palavras, mas também o
movimento, o gesto, o tocar e o sorrir nos fazem singulares, neste
desenho que é a pluralidade humana.

ENTRE LINHAS E IMAGENS. 28/05/2009. Como um dançarino


se recorda de uma coreografia? A dança é uma arte efêmera. E,
nesse sentido, o registro em texto escrito ou em imagem se faz
necessário. A escrita da dança é uma atividade fascinante, pois
é muito difícil separar o corpo que dança do gesto que escreve.
Muitas vezes uma pessoa que dança pode ser afetada pelo seu
modo de escrever sobre a dança, de maneira que essa escrita altera
sua maneira de dançar e consequentemente o seu jeito de apreciar.
“Estudiosos, pesquisadores, curiosos e até mesmo os mais distra-
ídos habitantes permanentes ou provisórios podem constatar que
o Recife é uma cidade que dança.” Essa é a frase introdutória do
livro Balé Popular do Recife: a escrita de uma dança, autoria de
Christianne Galdino lançado na noite de abertura do Múltipla
Dança. A autora pauta-se na trajetória dos 32 anos desse Balé
para entender o diálogo entre a tradição e a contemporaneidade,
considerando a recuperação da memória da dança cênica local.
A dança que assistimos ontem será igual a que veremos hoje? A
coreografia poderá ser a mesma, mas os dançarinos e a plateia não
serão. Eles terão tido vivências diferentes que alterarão seus gestos,
poderão estar mais atentos, talvez, uma pessoa tenha torcido o
tornozelo e toda vez que faz um determinado gesto sente dor. Por
o corpo não ser mais o mesmo de ontem à noite, então, filmamos e

108
fotografamos. Cristalizamos no tempo-espaço a dança que vemos
agora para recordar depois o corpo em movimento, acessível para
todos que se interessem por conhecer a história da dança. Esse
é um dos objetivos do Acervo Mariposa, uma videoteca pública
especializada em dança que gerencia o acesso gratuito de vídeos
digitalizados de dança. As relações entre o gesto e imagem que
incitam nossas noções de tempo e a memória são desveladas nas
proposições do videodança. Fronteiras são rompidas, propõe-se
uma dilatação dos sentidos: ver o que não se mostra facilmente,
vivenciar um alargamento sensorial ao ser tocado pelo olhar atra-
vessado do outro sobre si mesmo. O Dança em Foco ocupa-se des-
tes “entre-lugares” que surgem do encontro da dança com as ima-
gens virtuais. Notavelmente, para você que se interessa pelas entre
linhas e cultiva a imagin-ação são várias as opções de se envolver
com a dança. Agende: será exibida uma série de documentários da
dança francesa na Fundação Badesc de maio e novembro de 2009.

ESCRITURAS COREOGRÁFICAS. 28/05/2014. A chuva e o frio não


foram impedimentos para plateia do Múltipla Dança participar
assiduamente das oficinas, dos diálogos e dos espetáculos e escre-
ver suas “corpografias”: uma escrita movente, articulada no des-
locamento do gesto que escreve para o gesto que dança, notações
das marcas de passos, lapsos e lampejos da memória intercorpo-
ral entre o dançarino e a plateia. Experimentação identificada nas
proposição das Múltiplas Escritas, coordenado por Anderson do
Carmo e Sandra Meyer Nunes, cujo procedimento para os interes-
sados em escrever um texto sobre as atividades da programação
deixavam uma pista de pensamento para quem escrevesse o pró-
ximo texto. Com isso se pratica a reflexão na dança, enfatizada
na contaminação mútua de quem escreve e lê acerca da experiên-
cia do dançar, presente no exercício crítico debatido na tarde de
quarta-feira no Centro de Desportos da UFSC, no Diálogo entre
Ana Francisca Ponzio, Joubert Arrais e Sandra Meyer, no qual a
jornalista Néri Pedroso tematizou a importância do discurso crí-
tico como ponte e não como barreira entre a obra do artista e o

109
público. Escrituras que o leitor e a leitora espero terem tido duran-
te a semana a oportunidade de apreender, seja ao testemunhar no
solo Solidão Pública de Adilso Machado, um partir de si mesmo
em direção a um outro que nunca se alcança, sensação desértica da
afetividade aterrissada pelas composições de Tom Monteiro. Tal-
vez, no trabalho da dançarina Michele Moura, Fole, a percepção
de vocês tenha se alterado, por segundos, quem não notou em
seu próprio corpo o eco dos vocalizes amplificados por Rodrigo
Lemos, ou como as reverberações dos intensos movimentos criam
histórias de corpos desnudos, destituídos de um querer que nem
todos querem ver. O solo de Alejandro Ahmed, Sobre Expectati-
vas e Promessas se instala em uma vontade de desaparecimento.
Acompanhado de Hedra Rockenbach, ocupam o espaço vital dei-
xando rastros sonoros e luminosos de seus movimentos que de-
safiam o espectador em busca de autoria. Dilema contemporâneo
que junto com Ítalo Calvino nos induz desvendar quem é cada um
de nós senão uma combinatória de experiências, de leituras, de
imaginações, de movimentos. Maneries, espetáculo que encerrou
o Múltipla Dança no domingo, dirigido por Luis Garay, expõe o
corpo como produtor e receptor de possibilidades linguísticas,
que a dançarina Florencia Vecino, banhada pela luz de Eduardo
Maggiolo, forma e, com a música de Mauro Ariel Panzillo, trans-
forma diante do nosso olhar contemplativo. O Múltipla Dança,
confirmando aposta inicial da curadoria, apresentou em sua diver-
sa programação a dança para além de um eu individual, a dança
que dá lugar para a ausência, a dessemelhança, ao que está só, que
abre espaço para a descontinuidade e promove uma escrita crítica
e criativa para fazer falar o que não tem palavra: o ninho de João-
-de-Barro na sacada, os utensílios de uma bolsa alheia, o pescar a
luz com paciência no poço da escuridão...

FRASES DE MOVIMENTO. 27/05/2009. “Você tem que ser crítico


com o seu movimento!”, alerta a dançarina Nathalie Pubellier
com a turma de dançarinos que buscava seguir com afinco suas
sugestões de ações. Afunda, corta, toca, alonga, desenvolve... O

110
exercício sugerido: fazer as ações compostas em três frases de mo-
vimento, acompanhadas com a nossa própria voz. Sim, tínhamos
que nos convencer que a nossa fala correspondia exatamente à
intensidade da realização da nossa ação. O grupo de alunas do
curso de pedagogia que estava assistindo a aula pode perceber
que reflexão e linguagem podem ser lições de um corpo em movi-
mento. A masterclass de dança contemporânea ocorreu na sala de
dança CDS/UFSC e foi promovida pelo Projeto Tubo de Ensaio,
em parceria com o Múltipla Dança. Se por um lado a experiência
com dança das 25 pessoas participantes era variada, por outro, a
unidade do grupo no transcorrer da atividade é meritória da co-
reógrafa francesa Nathalie Pubellier, acompanhada de perto pelo
assistente e tradutor Alex Sander dos Santos. Como trazer mais
liberdade para o corpo do dançarino? Essa indagação motivou
a coreógrafa a buscar uma formação polivalente, que inclui balé
clássico, dança moderna, jazz, tai chi, bem como estudos cientí-
ficos em medicina e biologia celular. Na perspectiva de Nathalie,
o dançarino deve ser disponível e bem preparado corporalmente,
para ser o mais livre possível. Durante sua aula, ela apresentava
os princípios básicos de sua pedagogia composta por exercícios de
respiração, alongamentos, deslocamentos no solo, fazendo uso de
brinquedos, tais como um palhaço de madeira e bolas; cada gesto
era descrito, enfatizado com intuito de despertar a sua corporei-
dade. A cada variação da frase de movimento se esculpia no corpo
níveis profundos de sensações. Fazer novamente uma sequência
de movimentos não tinha como meta somente um refinamento
técnico, mas juntamente com a prática evocar no dançarino uma
consciência corporal. Instigava-se àquele que dança a perceber o
jogo lúdico sensorial, que começa no centro do corpo e expande
para as partes periféricas. Poderia se dizer que ação e percepção
se apresentavam numa relação de figura e fundo. Ao terminar as
atividades acrescentei essa simples notação: quem participou ou
assistiu essa aula, além de aprender um pouco de francês, talvez
tenha tido a sensação que a liberdade é azul.

111
GINGA. O Múltipla Dança no ano da França no Brasil, além
de destacar a dança francesa, acerta em mostrar a contribuição
da dança brasileira no contexto francês, ao divulgar o trabalho de
Pedro Rosa, dançarino brasileiro, que escolheu fazer sua carreira
no exterior. Em 13/10/2009, ele apresentou o monólogo inspirado
do texto Quase do escritor Luís Fernando Veríssimo, um estudo
dos movimentos e das expressões que, através da dança, exploram
o “quase” – a fragilidade humana, as lembranças, o equilíbrio e
o desequilíbrio, o esgotamento físico e o reencontro com a leveza.
Quasi aponta para uma quase-resposta, um questionamento do
caminho percorrido e do que está pra nascer. Pedro Rosa é brasi-
leiro radicado em Rennes, dançarino, com formação em balé clás-
sico, dança contemporânea, dança afro-brasileira, jazz e teatro.
Pedro Rosa dançou para vários coreógrafos tanto no Brasil como
no exterior. Desde da década de 90 reside na França, em Ren-
nes, onde consolidou uma sólida carreira como professor, dan-
çarino e coreógrafo, e atualmente dirige a Companhia de Dança
OCHOSSI. Na entrevista realizada em Rennes 16/07/2014, Pedro
Rosa conversa acerca de sua proposta de criação vinculada à dan-
ça afro-brasileira contemporânea, presente no teatro, na capoeira,
no samba, no candomblé e no carnaval brasileiro. Ele encontrou
em Rennes o ambiente propício para desenvolver-se como dan-
çarino de dança contemporânea afro-brasileira. Em contato per-
manente com o Brasil, e em contato com artistas e coreógrafos
brasileiros, ele busca as origens e o fortalecimento da sua dança.
Alimentado por suas convicções políticas, Pedro tem como inspi-
ração a canção de Milton Nascimento, que diz: “todo artista tem
que ir aonde o povo está, se foi assim, assim será...”. Reconhece,
que é muito difícil sustentar uma carreira independente, em suas
palavras: “...é com muito suor”. Ele constata que é necessário so-
mar forças. E assim, ele formou o Coletivo Brasil, compostos de
artistas, professores universitários e suas famílias. Após mais de
24 anos morando e atuando na Bretanha, seu trabalho conseguiu
trazer o Brasil para Rennes, a partir da criação da sua companhia
de dança foram criadas escolas de percussão, escolas de capoeira,

112
etc. Pedro convida: “As portas do coletivo estão abertas para to-
das as pessoas que tem interesse em fazer um intercâmbio por uma
semana, fazer uma residência... É aberto para uma pesquisa, um
processo de criação, um estágio, uma pesquisa sobre os brasileiros
que vivem no exterior...” Pedro Rosa, que traz o samba na ponta
do pé, protegido pelos Orixás, dança o tempo menino. Celebra
ao som do maracatu, seus 60 anos de vida, 40 deles dedicados à
dança, no seu falar vem o movimento de uma ginga brasileira com
um sotaque francês.

HEDRA ROCKENBACH. 30/05/2009. O Guia de Ideias Correlatas


não se trata de uma aula, tampouco de um espetáculo, esclarece
o diretor e coreógrafo Alejandro Ahmed. Coerentemente, o core-
ógrafo apresenta assim a sua cartografia, indicando nas marcas
projetadas na pele trilhas de acesso à informação. O grupo com-
posto por Adilso Machado, Aline Blasius, Cláudia Shimura, He-
dra Rockenbach, Jussara Belchior, Karin Serafin, Leticia Lamela,
Marcela Reichelt, Marcos Klann, Mariana Romagnani e Nina, a
cachorra, recorre às ações de Skinnerbox e Pequenas frestas de
ficção sobre realidade insistente, revelando ao público algumas
cenas que sustentam a proposição da dança como estratégia cog-
nitiva. Com a sonoridade de Hedra Rockenbach e a interface in-
terativa de Telli Narcizo o Cena 11 decompõe diante de todos as
ideias que estruturam as definições de corpo, investigadas com a
interlocução da crítica de dança Fabiana Britto, para tornar dança
as questões propostas a cada trabalho. Assim, se apresenta um
verbete na tela. A dançarina em cena faz uma demonstração de
uma queda. Escuto alguém da plateia dizer: dor. “O que os nossos
corpos dizem? E o que eles estão nos contando? A imaginação hu-
mana está enraizada nas energias do corpo. E os órgãos do corpo
são determinantes dessas energias e dos conflitos entre os sistemas
de impulso dos órgãos e a harmonização desses conflitos, escreve
Joseph Campbell. A noção de corpo que vivenciei enquanto espec-
tadora dessa leitura demonstrativa, foi a do corpo próprio como
rito de iniciação onde fui convocada a renunciar pré-conceitos e

113
submeter-me a uma prova do olhar. Percebi que devo aceitar essa
prova sem esperança de obter sucesso, ou seja, de conhecer tudo,
porque sempre algo do outro me escapa. Na verdade, devo me
preparar para uma abertura diante da provação da imagem espe-
lhada, destituída de sentidos para mim. Ao escrever esta última
notação sobre o Múltipla Dança 2009 faço votos que se mantenha
viva a prioridade “de conceder espaço à ocorrência de diferentes
modos de diálogo, procurando aproximar sempre mais o pensar e
o fazer dança” assinalada pelas organizadoras do evento. Espero,
leitor, que as minhas intenções de proporcionar algumas razões
para apreciar a dança tenham tido êxito. Ainda há tempo de con-
ferir suas noções de corpo no espetáculo Quinteto da Staccato
Cia. de Dança.

INFINITA. 26/05/2014. Na noite de quarta-feira, no teatro da


UBRO, o Múltipla Dança apresentou o solo Finita, dirigido e in-
terpretado por Denise Stutz, dedicado à sua mãe. Surgido da ne-
cessidade de compreender a falta, o que se vivenciou durante o
espetáculo foi o exercício de equilíbrio sutil entre a lembrança e o
esquecimento. Enquanto a plateia buscava um lugar para assistir
a dança, ao fundo do lado esquerdo palco, ainda em penumbra,
Denise Stutz já estava a se movimentar. Ela caminha para a frente
do palco, agora um pouco mais iluminado, conta estalando os
dedos, anda em direção, ao que faz imaginar ser uma vitrola, e a
sonoridade de Prelúdio e Fuga em Dó Maior de J.S.Bach invade
o ar, vai para trás das cortinas. No palco, a cadeira vazia preen-
che-se com os pensamentos da plateia. Vestida com uma bermuda
xadrez, camiseta e um calçado confortável, ela se mostra à vonta-
de com o corpo, com a dança, e com o lugar onde está: o teatro.
Não se trata de um texto decorado, nem de passos demarcados,
mas de um degustado trabalho de memória viva. Narra para a sua
mãe ausente como que a vida de uma bailarina é sustentada por
um infinito contar: um, dois, três, quatro... Desfia como contas de
um colar, fragmentos de uma vida permeada pela ausência e pelo
desaparecimento de alguém que se ama; pérolas que a plateia, sen-

114
sivelmente deslocada entre sorrisos e lágrimas, colhe para si. “A
vida vai depressa e devagar. Mas a todo momento penso que posso
acabar.” Cecília Meireles com seus poemas enraíza nossa finitude
em nossa mente. Similarmente, Denize Stutz ao dançar faz que o
espectador escave para além dos tecidos de sua pele suas memórias
corporais. Ambas nos oferecem o cálice da demora da ausência
em nosso próprio ser, essa despedida pronta a cumprir-se. Diante
do aplauso dá-se o sinal que o espetáculo acabou, desconfiado o
público não sabe como se comportar ao ver que a bailarina Denise
Stutz não para de dançar. “Meu processo de criação me ocupa o
dia todo. Às vezes estou na rua, e não estou enxergando, acordo
a noite para resolver um problema. Porque são problemas ou re-
soluções. É muito interessante quando estou nesse estado de cria-
ção que é necessário dizer. Você tem a sensação da necessidade
de falar e você começa a construir. A construção e desconstrução
de um material de criação é quase matemática. A criação é uma
desorganização.” Essa escrita de Denise Stutz está impressa no
livro de Lilian Vilela intitulado Uma vida em dança: movimentos
e percursos de Denise Stutz, lançado na noite de quinta-feira na
Fundação Badesc, juntamente com o filme Limiares, dirigido por
Sandra Meyer, sobre a vida do dançarino Anderson João Gonçal-
ves. Mais um momento que fomos suspensos pela percepção que o
corpo é finito, mas a dança é eterna.

LIVRE PARA TODOS. 27/05/2016. O Festival Múltipla Dança apre-


sentou no feriado de quinta-feira, 26 de maio, intervenções e espe-
táculos livres para todos os públicos, demonstrando também seu
compromisso de ir ao encontro do espectador. Pela manhã o sol
aquece o corpo e traz vivacidade à paisagem outonal do Parque
de Coqueiros. As dançarinas Margô Assis, Thembi Rosa, Karina
Collaço e Dorothé Depeauw da Dança Multiplex ora são seguidas
por uma plateia, ora o espectador compõe a cena da dança oriun-
da de um trabalho cuidadoso com o corpo, com o lugar e com os
objetos – bambus, tecidos e outras delicadezas, retiradas da aba
de um chapéu ou escondidas dentro da meia – que conduzem os

115
participantes à leveza, à delicadeza e ao lirismo interno e externo.
Em conversa com a dançarina belga Dorothé Depeauw acerca da
intervenção, ela comenta que a experiência de dançar num parque
se distingue de um teatro, principalmente pela proximidade entre
o dançarino e o público, sem a elevação de um palco percebe-
-se com nitidez a humanidade de cada comum. No período da
tarde, na praia do Campeche, em frente ao rancho da canoa, os
movimentos da dança breaking do grupo Atitude Cia. de Dança
de Garopaba, prendem a atenção da plateia de aproximadamente
180 pessoas. O conhecido pescador sr. Getúlio, assegura que todo
artista deve ir aonde o povo está. Trazer para a comunidade o que
não está visível na comunidade. As crianças  atentam-se para o
figurino cujas cores preta e terracota mesclam com a areia umede-
cida que exige dos dançarinos destreza e resistência para controlar
o gesto dançante, ritmado pela a composição musical de Davide
“Nelson D” Merra e o som das ondas do mar. Outro morador
da região, sr. Osmar João da Cunha, surpreende-se com os movi-
mentos de defesa e a escalada de um dançarino nas costas de um
outro, para saltar mais alto. Mas, alto está a plateia dos prédios
ao redor do pátio do TAC que testemunha de longe, o tempo que
o corpo de Elías Aguirre leva para desfigurar-se em movimentos,
manifestando em essência e em aparência um conflito interno de
alguém que aprende a viver envenenado. A noite chega, em um
clima de contação de história, Rui Moreira habita o espaço entre
o desejo de partir sem saber ao certo que destino seguir, interage
com o público indagando sobre a juventude aos muitos jovens que
assim se apresentam, e também às crianças de colo, que durante o
espetáculo seus choros, balbucios, por alguns momentos chamam
a atenção da plateia. Para Rui, nada atrapalha, pelo contrário, a
ação cênica criada numa atmosfera ritualística em meio de mulhe-
res anciãs de um vilarejo em Senegal, as crianças estão presentes.
Coerente com seu trabalho intitulado Co Ês (com eles),  elas: as
pessoas comuns, as mulheres, as crianças, não ficam do lado de
fora. E assim, o Múltipla convida: vamos todos parquear e notar o
que acontece no corpo ao equilibrar um bambu no topo da própria

116
cabeça?  As crianças respondem: concentração! Os adultos cons-
tatam: contemplação. Perceber que quando não fazemos nada, o
silêncio faz tudo dentro de nós. Essa é uma dança livre para todos
os públicos.

MEU PRAZER. 29/05/2009. O espetáculo Meu Prazer, encenado


por Marcia Milhazes Cia. de Dança. “Saber que não escrevemos
para o outro, saber que essas coisas que vou escrever jamais me fa-
rão amado de quem amo, saber que a escrita não compensa nada,
não sublima nada, que ela está precisamente ali onde você não está
– é o começo da escrita.” Os fragmentos do discurso amoroso de
Barthes parecem-me oportunos para introduzir meus comentários
acerca do espetáculo Meu Prazer dirigido por Marcia Milhazes,
apresentado na noite de quarta-feira no Múltipla Dança. Os bai-
larinos Al Crisppinn, Ana Amélia Vianna, Felipe Padilha e Fer-
nanda Reis escrevem cartas de amor gestuais que revelam desejos
de proximidade e intimidade. A solidão se espessa quando aquilo
que nos é íntimo está certo de se alcançar, contudo um gesto es-
trangeiro nos faz duvidar e põe fim na estória antes mesmo dessa
começar. O cenário, criação de Beatriz Milhazes, é um jardim de
flores agigantadas que subverte o espaço e acolhe os movimentos
de suspensão. O espectador é convidado adentrar neste pequeno
universo, perceber como seu o frêmito do corpo da dançarina e
surpreso constatar uma esquisita alegria. O gesto do outro nos
aproxima, porém sem intimidade. São como os grandes círculos
vazados, lembrando-nos dos espaços vazios ao nosso redor. Pode
a textura, a cor de uma vestimenta tecer intuições? Demonstrar
leveza, transparência, maleabilidade e com isso demarcar seme-
lhanças e distinções nas tramas e nos dramas existenciais de cada
um? A iluminação de Glauce Milhazes endereça a mensagem. Ple-
na, denuncia que andamos a procura do desconhecido. Generosa,
nos permite perceber o aqui e o agora. Convergente, irradia o só
ser e o seu reverso: o ser só. A sonoridade de Francisco Alves, as
composições de Francisco Mignone, Henrique Oswald, Ernesto
Nazareth e Maria Kalaniemi, prenhas de sentidos nos constran-

117
ge admitir as ausências. O silêncio intimida ao desnudar nossa
presença no simples ato de respirar. O espetáculo da Marcia Mi-
lhazes Companhia de Dança pode ser lido como uma carta que
deseja, como toda a mensagem de amor, uma resposta. E assim,
diante dessa imposição implícita o outro responde. Como espec-
tadora, talvez seja essa minha simples notação uma retribuição,
porém reconheço de antemão que o amor pode estar precisamente
ali onde não parece por inteiro, mas apenas num fragmento de um
gesto... amoroso.

MULTIPLICIDADE. 06/2010. A quinta edição do Múltipla Dan-


ça: Seminário Internacional de Dança Contemporânea, uma re-
alização da Aliança Francesa de Florianópolis, Santa Catarina,
ocorreu de 25 a 29 de março de 2010, tendo como participantes
aproximadamente 900 pessoas. As organizadoras, Marta Cesar
e Jussara Xavier, mais uma vez se desdobraram para colocar em
foco uma programação diversa e aguardada pelo público de dan-
ça catarinense. O Múltipla Dança, semelhante à web, pareceu-me
ser uma fonte de inúmeras informações. Mas, as sugestões de ra-
pidez, exatidão, multiplicidade, consistência, leveza, visibilidade,
descritas por Ítalo Calvino me ajudaram a traçar um caminho,
provocando as notas aqui expressas. Neste caso, a ação de anotar
é destacada do saber como modelo, coisa para copiar, imitar. Ela
é escritura, não memória; está na produção, diríamos, na criação
e não na representação. Os artistas e os trabalhos da dança catari-
nense foram o destaque do seminário, indicou a curadora Jussara
Xavier: Anderson Gonçalves (1964-2010) foi homenageado; houve
o lançamento do livro As metáforas do corpo em cena, de Sandra
Meyer, e a estreia do documentário Ballet Desterro: contempora-
neidade na dança catarinense, dirigido pela curadora; o Cena 11
compartilhou seu processo criativo com o público por meio de
uma ação no palco e de uma conversa no dia seguinte; em en-
saios abertos com discussão sobre dramaturgia, grupos e artistas
de Florianópolis e Jaraguá do Sul conversaram com as professoras
Christine Greiner e Sandra Meyer; foram promovidas atividades

118
em parceria com o projeto Entrando em Contato, desenvolvido
por Ana Alonso aqui na cidade; os videodanças de Sarah Ferreira
foram exibidos. Outros destaques do seminário incluiu: o diálogo
sobre economia da cultura com Ana Carla Reis. A presença da
Quasar Cia. de Dança (GO), uma das mais importantes compa-
nhias brasileiras. A performance de Letícia Sekito, da Companhia
Flutuante (SP) no Jivago Lounge, local que enfatizou o interesse do
Múltipla em ocupar outros espaços, alcançar novos públicos, en-
fim, não perder de vista a multiplicidade, foco do encontro desde
seu surgimento. A dança aconteceu novamente na cidade múltipla
e variada: muitas danças em contraposição a “uma”. Mas, não
se trata de dispersão ilimitada, mas de número: quando a dança
que se aprecia é uma e, ao mesmo tempo, múltipla. Mas, inde-
pendentemente da ordem e da unidade que a dança receba, seja
da sensibilidade e do intelecto, o espectador ao se deparar com
a multiplicidade de conhecimento acerca da dança apresentada
nas propostas, nos espetáculos, nas oficinas, nos debates e ensaios
abertos do Múltipla Dança, sentiu-se desafiado a buscar sentido
para tal experiência em todo esse conteúdo sensível. Neste estado
aparentemente desconexo ou bruto, instaura uma experiência es-
tética da dança que convida: aprecie com compreensão.

NÓS. 30/05/2013. Afeto, diz respeito a tudo que nos afeta e que
nos faz existir, explicita Sandra Meyer ao participar juntamente
com  Andréa Bardawil e Alejandro Ahmed no Diálogo ocorrido
em 28 de maio no Múltipla Dança. Sandra Meyer, professora dou-
tora do Ceart/Udesc, inicia a conversa reconhecendo que não há
como não  pensar uma dramaturgia do afeto. Menciona a noção
de afeto de Espinosa que ajuda perceber como nossa existência
manifesta em nossos encontros com os outros, é permeada de re-
lações impressas no afeto. E o espetáculo Nós apresentado a noite
pela intérprete-criadora Erika Rosendo, concebido e dirigido por
Jussara Xavier, pode ser um belo exemplo das noções desveladas
na conversa. Andréa Bardawil, coreógrafa e diretora da Cia. da
Arte Andanças, indaga com Espinosa: que afetos você é capaz de

119
criar ao interagir com o mundo? Afetos ternos ou tristes? A lei-
tora e o leitor podem prestar atenção no afeto como intensidade.
Pensar como seus afetos  aumentam a capacidade de agir ou nos
afetos que reduzem as ações ao nada. O vídeo que inicia o espetá-
culo Nós projeta ao mesmo tempo o rosto da artista, falando de
seu processo criativo e sobre as suas performances em Joinville.
Erika narra que um certo dia ao dançar no centro da cidade, uma
voz vinda do outro lado da rua lembra a ela que o festival de dança
já havia acabado. Ela, por sua vez pergunta ao transeunte se não
era ali a capital da dança? Suas intervenções dançantes no centro
de Joinville tornam-se um jogo de afetações entre o que percebe
e o que é percebido. Convida assim o espectador a exercitar a to-
lerância estética forjada na escolha de se dedicar um tempo para
investigar o que não se gosta, como nos ensina Alejandro Ahmed,
diretor e coreógrafo Grupo Cena 11. Em suas proposições, como
os espetáculos Violência, SIM, e Carta de amor ao inimigo, o co-
reógrafo busca com esmero alterar a percepção do espectador ao
problematizar a atitude contemplativa na relação público e dança-
rino e ao explorar, na perspectiva de Hannah Arendt, a noção de
aparência como responsabilidade e não como crosta representativa
na comunicação com o outro. Ele, que minutos antes estava senta-
do na plateia, aceitou o convite para dançar com Erika. Observo-o
parado no centro do palco, segurando  em suas mãos a roupa e os
sapatos dela. Ao fundo a tela projetava as sombras dela a dançar
em meio à manchas multicoloridas, que se misturavam as sombras
dele ali presente e estático. Compartilho a teoria do convite de
Wladimir Garcia que acena para a uma ética e uma estética em
torno do outro e das políticas de amizade e da hospitalidade. Ob-
servo que quando Erika Rosendo, convida um a um para dançar,
o seu convite efetua uma estética imprevisível e movente. E todos
ali presentes  são esteticamente afetados. As noções e as filosofias
que ancoram essas investigações dramatúrgicas são introduzidas
na conversa não com o intuito de se fundar uma Filosofia da Dan-
ça, mas, para experimentar, degustar a dança em sua filosofia pri-
meira: o movimento em direção ao outro sustentado na ética do

120
acolhimento. Assim, quando o diferente aparece o corpo não mais
se retrai, mas se expande.

OBSERVAR. 27/05/2013. O Festival Internacional Múltipla Dança


está de volta. Dirigido por Marta Cesar e com curadoria compar-
tilhada com Jussara Xavier, mantém a sua principal característica
– a multiplicidade de possibilidades do espectador interagir com
o mundo da dança: espetáculos, diálogos, oficinas, vídeos, jam
session, residência, conferência-demonstração, ensaio aberto. No
transcorrer desta semana estarei aqui a escrever para ti amante ou
quem sabe inimigo da dança. Ao ler estas palavras, vocês poderão
reconhecer que elas guardam uma estreita relação com o trabalho
atual da companhia de Dança Cena 11, intitulado Carta de amor
ao inimigo. E a 6ª edição do Múltipla ao homenagear os 20 anos
do Cena 11, sugere que arrisquemos o estilo epistolar e tentamos
estabelecer uma correspondência, palavra bonita, mas bem fora
de moda em um tempo de e-mails, Facebook, Twitter e Instagram.
Por conseguinte, uma carta evoca uma exposição de si, sugere
um reconhecimento do outro. E ao endereçado cabe a atenção, o
acolhimento das palavras gestuais, dançadas, o envolvimento nas
proposições, e quem sabe responder em seu tempo com sua pró-
pria corporeidade palavras amistosas, intuitivas, reflexivas, inda-
gativas. Dançar pode ser escrever uma ação amorosa – convencer
com arte e beleza que vale o risco de estar vivo. Como Sherazade,
ao narrar as mil e uma noites, criar, inventar razões para amar a
vida independente da possibilidade da morte à deriva, da violência
à espreita, ou da dor que se avizinha. Escrevemos todos  cartas de
amor à vida que inspira nossa dança de cada dia.

PERGUNTAS. 20/05/2014. “O que ou quem te move? Por quais


forças você é tomado?”, perguntam Jussara Xavier e Marta Cesar,
curadoras do Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança
Contemporânea, premiado pela Funarte, que hoje volta à cena ca-
tarinense em seu sétimo ano. Ao sustentar a experimentação de
um eu que não vive só para si, mas também para os outros, o Múl-

121
tipla esse ano oportuniza ao espectador a experiência biográfica
na área da dança, seja ela escrita, dançada, falada ou filmada. E
talvez, o enigma que caberá o leitor e a leitora decifrarem será: o
que faz a dança se entrelaçar com a vida ao ponto de desconhe-
cermos se é a vida dedicada à dança, ou se a dança que é dedicada
à própria vida? O filósofo grego Epicuro (341 a.C.) ensina que a
felicidade está sustentada em três elementos essenciais para a vida
humana: a liberdade, a vida analisada e a amizade. Pensar a felici-
dade na dança está em descobrir um tempo e um lugar para ela em
nosso corpo. Isso favorece investigar como o ato de dançar susten-
ta a minha liberdade. O segundo elemento, uma vida analisada,
corresponde a ocupação de um campo perceptivo na dança para
refletir sobre a própria existência. Por fim, a amizade, o encontro
inspirado pela dança explicita como quem dança partilha sua vida
com os outros. Vamos atentar para quem nos move. E o Múltipla
acerta ao homenagear Sandra Meyer Nunes. Dançarina, professo-
ra, doutora, pesquisadora, crítica de dança, palavras insuficientes
para inventariar sua contribuição para a Dança em Santa Catari-
na. Muitas são as funções que têm desempenhado para responder
as perguntas feitas por Jussara Xavier no dia mundial da dança à
comunidade dos profissionais de dança: “Dançar? Para que estu-
dar dança? Para que ensinar dança? Para que uma faculdade de
dança? Para que investir dinheiro em dança? Para que dançar?”
E quem é afetado pela vida de Sandra Nunes, pode arriscar uma
resposta: para ser feliz! Pois, Sandra com sua amizade acolhe o
que é singular na pluralidade mundana, escreve para não esquecer
a quem se ama, e ensina que a dramaturgia de um corpo manifesta
uma estética e também uma ética. O Múltipla Dança, ao sobre-
por diferentes práticas e discursos, privilegiando a aventura do
conhecimento e a diferença como potencial instauradora de novas
perspectivas, desafia manter viva a vontade de perguntar. E numa
atmosfera do jardim epicurista oferece para quem aprecia a dança,
encontros oportunos para cultivar as amizades e criar dança com
liberdade, e diálogos para analisar a vida. Estarei por aqui nos
próximos dias para descrever, narrar como a vida dos profissio-

12 2
nais de dança, vivida em busca da sustentação do próprio gesto,
pode nos provocar a indagar acerca de uma existência livre e feliz.
Eis a proposição: escreva, dance e pergunte: dançar para quem?

QUEM PODE APRECIAR A DANÇA? 26/05/2009. A palavra apreciar


está associada ao ato de dar valor a, ter em apreço, estimar, pre-
zar, ter consideração por. O Múltipla Dança está repleto de ativi-
dades para o espectador vivenciar a experiência estética, que pode
ser um deleite para uns e desafios para outros, só não vale a in-
diferença. Chega o mês de maio e a quarta edição do Seminário
Internacional de Dança Contemporânea propõe uma programa-
ção com o intuito de deixar na agenda cultural de Florianópolis
uma marca indelével. As organizadoras do evento, Marta Cesar e
Jussara Xavier, convictas de que o encontro é de relevância para
a profissionalização da dança local, salientam na página de aber-
tura do site (www.multipladanca.webnode.com): “Nosso convi-
te é quase um apelo: aproveitem este tempo-espaço. Construam
conosco uma história que deseja manter a dança, possibilidade
humana de conhecimento e comunicação, viva.” É atenta a esse
convite desejoso de receptividade que busco oferecer aqui algu-
mas razões para que a pessoa que aprecia ou quer apreciar ou
que atua na criação, interpretação, crítica dessa experiência tão
peculiar que é a dança, participe, desfrute desse evento que resis-
te brava e criativamente às intempéries econômicas, políticas e
culturais. Durante essa semana estarei colaborando com o Jornal
Notícias do Dia, neste caderno Plural, comentando o Múltipla.
Vale salientar que esse espaço é compreendido pelos profissionais
da área da dança de Florianópolis como um reconhecimento e
incentivo ao trabalho do artista que em vários momentos de sua
carreira não encontra um meio de interlocução com o público.
Então, aproveite e desperte a sua curiosidade para a diversidade de
contextos, imagens, diálogos e dança. O Múltipla vai apresentar
uma série de atividades relacionadas ao Ano da França no Brasil,
com a presença de convidados franceses, como também do dan-
çarino Pedro Rosa, brasileiro que reside em Rennes/França, que

123
o público poderá conferir mesmo depois do Múltipla, inclusive
uma mostra de documentários da dança contemporânea francesa.
Aguce sua percepção. Atente-se para um gesto sutil, o figurino, a
iluminação, a cenografia dos distintos espetáculos de dança que
ocorreram durante o Seminário. Veja, escute, cheire, prove, sabo-
reie, toque, perceba como essas sensações podem ser elementos da
composição coreográfica ao participar das aulas teóricas e práti-
cas ministradas por Nathalie Pubellier (Paris/França). Esteja aber-
to para aprender. A dança contemporânea é uma oportunidade
para conhecermos novas possibilidades de comunicação em uma
profusão de linguagens, tais como as disponibilizados no Lounge
do Acervo Mariposa. Aprofunde seus conhecimentos acerca do
vídeo dança ao participar da Mostra Sul Americana do Dança em
Foco. Compreenda ao prestigiar os Diálogos como a ação política
e a economia afetam a dança, e como ocorre o processo individual
de criação que vai do corpo à cena. A dança é sempre um convite
para a criatividade de ver movimentos comuns em contextos dis-
tintos e criar movimentos originais em lugares comuns. Mas isso
só tem graça se for compartilhado, a dança sem a sua presença
não acontece, seu olhar interior e exterior é que sustenta o gesto
do artista. Apreciar a dança demanda uma disposição de buscar
compreender o como, o para onde e com quem, bem isso já é as-
sunto para outra notação.

REC(L)USADX. 31/05/2016. O lembrar e o esquecer nos tornam


humanos, ensina as leituras de Paul Ricoeur. O tempo vivido em
lutas, doenças, feridas, traumas cravam na memória corporal po-
voando-a de lembranças. A recordação, os graus de rememoração
vão pouco a pouco preparando a narração a ser escrita, dançada,
e por que não gritada. Grito diante da plateia paciente a esperar
o espetáculo começar… como provoca Olga Gutiérrez ao encerrar
ontem à noite, no Ceart/Udesc, o Festival Internacional Múltipla
Dança, que neste ano apostou na ocupação de vários pontos da
cidade, alcançando assim um número aproximado de 1500 espec-
tadores. Como no sábado, dia 28 de maio, a contemplação de dife-

124
rentes lugares da Ponta do Coral, sugerida na intervenção urbana,
as dançarinas Diana Gilardenghi e Sandra Nunes, compõem com
um coral silencioso uma caminhada, a mostrar que nos movemos
dentro de uma realidade impregnada de um passado exuberante
e de um futuro obscuro, revelado no contraste de cada passo do
momento atual, pois, embora não se possa negar a beleza da pai-
sagem, é necessário o uso de máscaras para não se intoxicar com
o cheiro ao redor e, o uso de luvas para não se contaminar com
aquilo que está a alcance das mãos. Na noite de sábado, no teatro
do Sesc Prainha, estreia no Múltipla o espetáculo Rec(L)usadx,
que se mostra como uma memória episódica dos eventos que es-
cancaram a vulnerável condição feminina que deixa qualquer me-
nina amedrontada. Tendo como espaço de ensaio a sala de sua
casa, a dançarina Elke Siedler compõe seu solo para guitarra em
Sol Maior, sua dança soçobra a plateia na fragilidade nua de ser
humana. O tecido vermelho que no início da cena desenha um
círculo imperfeito no chão, em um tempo ritual, veste o corpo com
requintada fatalidade e dor. A luz que inebria, de súbito estoura,
abrindo os olhos do espectador que já não vê mais a dança, mais lê
no programa que: “A intervenção estética pela metáfora do exces-
so de derramamento de sangue expõe a urgência em ressignificar
experiências relacionais intersubjetivas.” No círculo das memórias
internas e externas proposto por Rui Moreira, na oficina Danças
Negras Contemporâneas, no Studio Afrika, localizado no Canto
da Lagoa, na sexta-feira pela manhã, a simplicidade tem o seu
lugar garantido, a busca do prazer pela dança é questionada e am-
pliada pelo compromisso consigo e com o outro. Jussara Belchior,
participante da oficina e integrante do Múltipla Escrita, descreve
que: “Compartilhar as sensações e reflexões advindas da prática é
um jeito de dilatar a memória. No início, Rui Moreira mencionou
que o trabalho da memória contava com um pouco de imagina-
ção, ao fim, a imaginação concretiza-se como uma experiência-
-convite da partilha. Essa experiência, de “danças negras contem-
porâneas” é, sobretudo, um chamado a refletir sobre as bagagens,
os cruzamentos e as potências nas histórias dos corpos.” Homena-

125
gear é também um ato de rememorar, nas palavras de Ana Luiza
Ciscato “receber uma homenagem é sempre muito bom. Reafirma
uma trajetória e traz estímulo para a continuação da mesma. Um
festival que tem como objetivo a visualização da Pluralidade da
dança, homenageando um trabalho que busca a profissionalização
de bailarinos considerados com deficiência, mostra que um espaço
para dança inclusiva está sendo aberto.” Leitora e leitor, percebo
que vocês não se esqueceram que dançar é também um ato políti-
co. E isso é memorável…

SENSÍVEL. 31/05/2013. “É sempre bom lembrar que um corpo


está cheio de ar.” Altero a canção de Gilberto Gil para comen-
tar os espetáculos de dança Transborda de Valeska Figueiredo, na
noite de terça dia 28 e o Um banho de Água Fria de Elke Siedler,
no fim de tarde de quarta, dia 29, apresentados no Múltipla Dan-
ça. Valeska Figueiredo explora a sensação de não se conter às ex-
periências circunscritas no cotidiano. Investiga o cheio e o vazio
de si convidando o espectador a respirar junto,  gestar um gesto
sustentado pelo som e pela luz. A sonoridade criada por Rogério
Almeida favorece perceber com nitidez o rastro do deslocamento
sonoro vibrante e descontínuo. A luz de Irani Apolinário desenha
com a sombra um cenário imaginário. Sutileza. Uma atenção deli-
cada é o que se vai exigir do espectador. Procurar no corpo o ca-
minho percorrido pelo ar inalado. Atentar para o que não é dito,
mas é dado pela expressão facial, pelos gestos, pelos movimentos
do corpo, pela voz que surge do ato de respirar. Fiona Ross, pes-
quisadora sul-africana, observa a inter-relação entre as palavras e
o silêncio, e constata como um pensamento criativo diante daquilo
que se vê e se ouve contribui para novos modos de lidar com o con-
flito e a diferença. Enquanto conversávamos no calçadão da Felipe
Schmidt, demoramos alguns segundos para percebemos a ocupa-
ção silenciosa da dançarina Elke Siedler e de Thiago Schmitz. A
performance que leva para o meio da rua as incertezas presentes
nas relações interpessoais. A vulnerabilidade e a falta de controle
vividas intimamente entre quatro paredes são expostas a todos

126
que ousam parar um minuto para ver aquela que trajava um ves-
tido preto com rendas e de alças, e seus pés calçados  com uma
sandália de salto alto e fino, que desafiavam sorrateiramente a
gravidade, o esmalte vermelho das unhas se destacavam tanto nos
pés como nas mãos. A cabeça era coberta com um capuz de couro
preto, com orifícios nos olhos, nariz e boca. As pessoas passavam,
olhavam, aproximavam, se afastavam. Chegam até comentar o
uso da água e do dinheiro público. Uma menina buscava entender
com seu olhar sincero o drama ali proposto pelo casal, manifesto
na  ausência de comunicação.  Na hora do banho, escuto comen-
tário: “mas não estão jogando água nela? Ah, agora estão”; Olho
o balde de água sendo jogado no corpo da dançarina encharcado.
Presenciar Um banho de água fria ali no calçadão, faz pensar que
a negação da dor do outro não é uma falha intelectual, mas uma
falha na sensibilidade. Espetáculos como os de Valeska e de Elke
podem nos auxiliar a exercitarmos a atenção sensível e habitarmos
o próprio constrangimento de testemunharmos a dor do outro.
Percebermos como o ato de constranger e ser constrangido  opera
na constituição da nossa própria fala e também do nosso silêncio.
Atentar é um ato sutil e delicado. Pode ser um esforço profundo
compreender a si mesmo e essas pessoas que dançam num palco
sem cenário ou no calçadão da Felipe Schmidt. Eis o exercício de
transbordamento ofertado pela alteridade, que aprofunda a noção
de empatia, pois não exige que calcemos os sapatos do outro, mas
que fiquemos descalços em sua presença.

TEMPO. 27/05/2014. O Festival Internacional Múltipla Dança,


na tarde de terça-feira, iniciou-se com um diálogo entre o Alejan-
dro Ahmed, Lilian Vilela e Denise Stutz, acerca da pesquisa bio-
gráfica em dança. No auditório do Centro de Desportos da UFSC,
um público de estudantes, dançarinos, pesquisadores e professores
tiveram a oportunidade de ouvir, conversar sobre a articulação
da narrativa com o tempo e explorar como uma escrita biográfica
auxilia a dar forma à experiência humana. A pesquisadora Lilian
Vilela descreve seu processo de escrita biográfica sobre a dança-

127
rina Denise Stutz, registrando uma intrincada teia textual entre
memória, corpo e escritura. A composição do diálogo coloca lado
a lado aquela que escreve a respeito da vida daquela que dança.
E Denise Stutz, também presente na conversação, desvela que sua
história e sua memória estão presentes mais em seu corpo que
em suas palavras. O coreógrafo e dançarino Alejandro Ahmed,
permite que sua trajetória de vida embaralhe-se com a da Com-
panhia de Dança Cena 11, busca apreender a biografia como co-
municação de ideias do corpo presente no tempo e no mundo. Por
conseguinte, a narrativa no contexto da dança expõe os eventos
dentro de uma ordem particular e nos faz perguntar: como o cor-
po lembra? Ao trazer à cena a biografia no contexto da dança, seja
ela escrita na carne, ou palavras verbalizadas, o Múltipla Dança
sugere o exercício de vasculharmos nossa atitude perceptiva e ten-
tarmos identificar como o tempo afeta a nossa compreensão de
nós mesmos. Essa busca da temporalidade ancorada na interroga-
ção prioriza a descrição da experiência vivida. Tal conhecimento
incentiva a leitora e o leitor a contar diferentes estórias sobre si
mesmo no transcorrer da vida. Surpreendentemente, a narrativa
sobre a vida de cada um de nós mudará durante o tempo que es-
tivermos vivos. O que se mantém, o que se modifica na existência,
e no corpo, que cria a sensação dessa dança escorrendo entre os
dedos do tempo vivido? Indagação essa que Alexandre Bhering,
Marcelo Lopes, Mônnica Emilio, Peter Mark, Vandré Vitorino,
elenco da Companhia de dança Esther Weitzman, encorajou a pla-
teia a pensar ao apresentar a coreografia intitulada O Tempo do
Meio. Dirigido por Esther Weitzman, o espetáculo de abertura do
Múltipla enfatiza a valorização do movimento como um aconte-
cimento único e inusitado, chamando atenção, por exemplo, para
o instante entre o passo e o estalar dos dedos do dançarino, na
composição do silêncio circunscrito na musicalidade de Jean Ja-
cques Lemêtre, no qual o tempo nunca passa. A pausa revestida
pela luminosidade impressionista de José Geraldo Furtado e as
transposições do movimento entre os corpos que ali no cenário de
Leo Bungarten são traduzidas na leveza e no vazio, descortinam

128
um esperar para compreender. Para o corpo que dança, o instante
não é uma ficção, e sim, o ponto em que um gesto se acaba e um
outro começa.

UNIVERSAL. 03/06/2013. Como viver juntos? Recebo o e-mail: A


cidade em estado de Múltipla Dança. Belo modo de ocupar o es-
paço público. Marta Cesar, coordenadora geral, agradece as par-
cerias institucionais, representadas pelas professoras Vera Torres
da UFSC e Sandra Meyer da Udesc, e a curadoria compartilhada
com Jussara Xavier, o apoio do Edital da CAIXA, dentre outros.
E agradeço aqui você, leitor e leitora que apreciaram ao seu modo
as proposições do Múltipla. E no abrir e no fechar dos olhos des-
crevo brevemente algumas atividades. Cubra os seus olhos com as
mãos e conte até dez. E lá estamos todos nós, mães, pais, filhas e
filhos, acompanhando, rindo, cantando, dançando entrelaçando
no corpo o passado, o presente e o futuro, por sugestão do espe-
táculo Entrelace do Teatro Xirê apresentado no Múltipla Dança.
A plateia busca perceber espaços sutis de encontro e convivência
durante a performance coreografada e dirigida por Andrea Elias.
No brincar entre crianças e adultos, entre cantos e parlendas mu-
sicados por PC Castilho, identificamos nos passos das dançarinas
Andrea Elias, Mayara Costa, Tânia Ikeoka e o dançarino Heder
Magalhães, os lugares do corpo que eternizam o encontro com
o outro na memória. E abrimos os olhos para contemplar as epi-
fanias visuais Partida, Marahope, O Regresso de Ulisses, e Os
Tempos apresentadas por Andréa Bardawil e Alexandre Veras, na
sessão de videodança que celebra os 10 anos do Alpendre Casa
de Arte, Pesquisa e Produção. O olhar do espectador se aproxima
para explorar e compreender o percurso do movimento antes de
ser dança, ao participar da Conferência-Demonstração resultante
do projeto Laboratório Corpo e Dança, coordenado por Jussa-
ra Xavier, que enfatiza os processos de composição desenvolvi-
dos pela dançarina Daniela Alves com a experimentação Direção
Múltipla Virtual; e pelo dançarino Lincon Soares, cuja pesquisa
parte da exaustão do corpo e do desequilíbrio em sua organiza-

129
ção, para buscar modulações da aparência. O espetáculo Proibido
Elefantes, coreografado e dirigido por Clébio Oliveira, sugere uma
experiência perceptiva para o espectador e lembra com Agnes Hel-
ler: “quem não se liberta de seus preconceitos artísticos, científicos
e políticos acaba fracassando, inclusive pessoalmente”. Quando o
elenco da companhia Gira Dança composto por Álvaro Dantas,
Jânia Santos, Joselma Soares, Marconi Araújo, Rodrigo Minotti e
Rozeane Oliveira, se coloca no palco descrevendo alternadamente
os movimentos um do outro em um microfone, põe em evidência
como o que estamos a ver, também está a nos olhar. De modo que
percebamos a diferença nos corpos que dançam, visíveis no peso e
tamanho, nos excessos e nas faltas. E faz, também, perguntarmos:
como nós, com todas essas diferenças, podemos viver juntos? Mas,
antes que você tenha alguma ideia, pare e repare. Pergunto: conhe-
ces o jogo das perguntas? Pois, o Múltipla Dança termina nesta
semana com a Residência de João Fiadeiro (Portugal) e Fernanda
Eugénio (Brasil), intitulada: Modo operativo AND, um modo de
relação composto do jogo das perguntas “como viver juntos?” e
“como não ter uma ideia? Deixo-os agora, leitor e leitora, ao sabor
dessas e outras indagações.

VOCAÇÃO E PROFISSÃO. 29/05/2013. Na manhã de segunda-feira,


dia 27 de maio, uma brisa fria no ar, o sol ainda se escondia detrás
das nuvens, acompanhada com a pequena, nos deslocamos para
a Casa das Máquinas no centrinho da Lagoa, para observarmos
a primeira atividade do Festival Internacional Múltipla Dança,
a saber, a oficina Criação do Gesto. Chegamos lá, notamos os
participantes deitados no assoalho movendo-se de acordo com as
instruções da bailarina e coreógrafa Suely Machado: “...Olha a
sua mão, foca a sua mão... deite-se como se tivesse deitado em sua
cama. Calma. Calma, a gente não vai chegar  em lugar nenhum
com essa pressa. Perceba novamente a sua mão, o contato com
o chão, perceba como vai usar a articulação, o lado que apoia e
o lado que é apoiado...” Tornar-se um dançarino leva-se muito
tempo. Muitos anos de muita prática. Quando algum jovem es-

130
tudante perguntava à Martha Graham (1894-1991) se ela achava
que ele poderia ser um dançarino? Ela respondia: Se você tem dú-
vida, a resposta é não. E aconselhava: Somente embarque numa
carreira como a dança se ela é um caminho que torne a vida mais
vívida para você e para os outros. Dançar é uma vocação ou uma
profissão? O Múltipla Dança contribui para aprofundar esse de-
bate na cena pública quando inclui na programação um espaço
para o dançarino aperfeiçoar o seu gesto enquanto artista, ao
mesmo tempo que oferece diálogos acerca da profissionalização
da dança tendo como tema as Políticas públicas e a Aprodança –
Associação dos Profissionais de Dança de Santa Catarina. Na
tarde de segunda-feira, a fala de Lisa Jaworski, como presiden-
te dessa entidade informa sobre as ações que se tem realizado
com intuito de agregar os associados: um exemplo é a criação
do fórum de dança. Bia Mattar, representante da região sul no
Colegiado Setorial de Dança, vinculado ao MinC, traz infor-
mes dos desdobramentos das ações do Plano Nacional de Dan-
ça. Os relatos de Deivison Garcia, representante da entidade no
Conselho Estadual da Cultura, tornam evidente a necessidade
de mais recursos para área da Dança. Suely Machado, com sua
experiência como diretora do Grupo de Dança Primeiro Ato, na
conversa, lembra que ao se colocar dançarinos no palco, estamos
gerando empregos não só para aqueles que dançam, mas para
o marceneiro que faz o cenário, a costureira que confecciona o
figurino. Deve-se levar em conta  também editais diferenciados
para grupos iniciantes e grupos com muitos anos  de experiência.
No final deste painel, ficamos com a questão sobre como chamar
o dançarino para participar desse diálogo? A vocação, nos pare-
ce no caso da dança, exige que se pratique não só o movimento
no corpo singular, mas também exige-se praticar o movimento
no corpo social, que inclui, dentre outras ações, associar-se a
uma entidade de profissionais da dança e perceber que dançar
também é um ato político. Lições bem assimiladas e  praticadas
pelos dançarinos sul-africanos, lá onde você dança, com quem
você dança, e que tipo de dança você executa e, sua atitude frente

131
à dança dirá alguma coisa sobre você, como uma pessoa política,
bem como sobre você como artista.

ZILÁ MUNIZ. Diz que um objeto está presente quando é vis-


to ou é dado a qualquer forma de intuição ou de conhecimento
imediato. O que é a presença na dança? Na tarde de quarta-feira
a coreógrafa Zilá Muniz (Florianópolis/SC) mediou o Diálogo en-
tre Ana Alonso (Florianópolis/SC) e Cristina Turdo (Argentina),
sobre a improvisação em seu modo espetacular, e comentam se a
improvisação seria uma dança não planejada, um espaço para o
risco, acaso e imprevisto; e quais seriam as consequências desta
escolha no impacto com a plateia. Um público composto por dan-
çarinas, coreógrafos, produtoras culturais, professoras e pesqui-
sadoras universitárias participantes do Múltipla Dança – Festival
Internacional de Dança Contemporânea, contribuíram para enri-
quecer o debate. A mediadora Zilá Muniz inicia o debate ao fazer
referência à composição instantânea como um processo presente
na dança contemporânea, e ao destacar sua natureza experimen-
tal. Esclarece que não se trata de um trabalho sem rigor, mas pelo
contrário, exige olhar crítico de quem dança, tão necessário para
não se correr o risco de não aprofundar na pesquisa do movimen-
to. Ana Alonso indaga “se é necessário buscar sempre o novo?”.
Ela percebe a improvisação como comunicação. Defende a impor-
tância da presença na cena, mais do que o movimento inovador.
Afirma o corpo como presença: o aqui e o agora. A improvisação
é um grande tema na vida para Cristina Turdo. Para a profes-
sora improvisação é sua vida. Um caminho de crescimento. Se a
arte não é crescimento não é arte. Apresenta a improvisação como
paradoxal e revolucionária. Ao improvisar, busca o suporte, um
lugar para voltar, uma âncora que assegure não nos perder nas
múltiplas possibilidades que esse processo propicia. Observa que
sem a censura de um juízo de certo e errado, as crianças são as
melhores improvisadoras. Noto que há na improvisação uma in-
teração de presença e ausência que merece ser investigada, tende-
mos enfatizar a presença na dança, mas a ausência também requer

132
atenção. Deveras, a improvisação proporciona uma experiência
mais interativa com a dança que desvela algumas intuições acerca
desse tema instigante.

133
CLÁUDIA MÜLLER é artista-etc com projetos de-
senvolvidos em dança, performance e vídeo.
Investiga as poéticas e políticas do encontro,
as margens dos espaços tradicionalmente des-
tinados à arte, a crítica institucional e o binô-
mio visibilidade-invisibilidade nos processos
artísticos. Doutoranda e mestre em Artes pela
UERJ (2012). Professora do curso de Dança
da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Atuou em companhias de dança em SP, RJ e
na Alemanha (1990-2000). Em 2000 começou
a desenvolver seus próprios trabalhos, apre-
sentados em festivais e centros de arte no Bra-
sil (Palco Giratório, Panorama de Dança/RJ,
Mostra Sesc de Artes/SP), Argentina (Festival
de Danza de Buenos Aires), Chile (Escena Do-
méstica, Festival UARCIS/Santiago), Colômbia
(Festival de Danza Contemporánea/Bogotá),
Espanha (In-Presentable/Madrid, BAD/Bilbao,
La Laboral Escena/Gijón, ARTIUM/Vitoria),
Marrocos (On Marche/Marraquexe), e Portu-
gal (Festival Al Kantara/Lisboa), entre outros.
Em 2017 fez parte da equipe de curadoria da
Bienal Sesc de Dança, sendo responsável pelas
ações formativas do evento.

13 4
DANÇANDO COMO ARTISTA-ETC.
Cláudia Müller

E
nquanto rascunho este texto, faço uma pausa e reabro o
livro que me acompanha do lado esquerdo da escrivaninha:
Leer es respirar es devenir do artista dinamarquês Olafur
Eliasson1. Na página 11, sublinho:

Se eu fosse uma obra de arte, não me sentiria autossuficiente. [...]


seria uma rede de lugares, agentes e intenções inextricavelmente
conectados e sempre em um movimento correlacionado. Esta rede
consistiria em uma instalação experimental (aquilo que se cos-
tuma chamar “a obra de arte em si”), os visitantes ou usuários,
o lugar onde se apresenta – o museu, a galeria de arte, a casa do
colecionista, o espaço público etc -, o sistema de comunicação que
rodeia a instalação e a sociedade. 2

No fazer desse artista e no modo de funcionamento de seu


estúdio (do qual participam dezenas de profissionais dos mais di-
versos campos da arte e da ciência), destacam-se o interesse pelas
relações entre os projetos desenvolvidos e o contexto onde se rea-
lizam ou são expostos, o desenvolvimento de atividades diversas
que não se limitam à produção de obras, bem como as estreitas
conexões entre os trabalhos e o público. Seus projetos fundam-se,
sobretudo, em experiências relacionadas à exploração dos senti-

1 Olafur Eliasson (Copenhague, 1967) é artista visual. Seu trabalho caracteriza-se pela ex-
ploração de modos de percepção materializada em filmes, instalações, fotografias, vídeos
e esculturas em projetos realizados em locais diversos: galerias, museus, espaços públicos
e intervenções na arquitetura.
2 Olafur Eliasson, Leer es respirar es devenir: escritos de Olafur Eliasson. Barcelona: Edito-
rial Gustavo Gili, 2012, p. 11.

135
dos e visam o diálogo com o público, convidando o espectador
a construir conjuntamente a obra. Seu estúdio é uma espécie de
laboratório destinado não só a produzir ou instalar projetos de
arte e exposições, mas também a realizar pesquisas, publicações,
workshops e projetos pedagógicos. No mesmo endereço, funciona
também, desde 2009, o Institut für Raumexperiment3, fundado
em parceria com Christina Werner e Eric Ellingsen, promovendo
atividades e pesquisas relacionadas às práticas artísticas e educa-
ção experimental.
Esses múltiplos interesses e colaborações, gerando uma atu-
ação dinâmica e comprometida com seu entorno, evocam um ter-
mo do qual não sei se Eliasson já ouviu falar: artista-etc.

ARTISTA-ETC.

A próxima Documenta deveria ser curada por um artis-


ta era o título do projeto-provocação, lançado, após a abertura
da Documenta 114 em 2003, pelo curador Jens Hoffman a uma
série de artistas como Marina Abramovic, Daniel Buren, Liam
Gillick, Tino Sehgal Alfredo Jaar, Laura Belem e Ricardo Bas-
baum, entre outros5.
A proposição artista-etc., desenvolvida por Basbaum em seu
texto-resposta intitulado “Eu amo os artistas-etc.”6, alimenta as
reflexões que quero desenvolver nas próximas páginas.

3 Como professor da Universität der Kunste de Berlim, Eliasson inaugurou o instituto,


idealizando propostas e recebendo alunos em parceria com esta universidade.
4 Documenta consiste em uma exposição de arte contemporânea que acontece a cada cin-
co anos na cidade de Kassel/Alemanha. A primeira Documenta foi idealizada pelo artista
e curador Arnold Bode em 1955.
5 The next Documenta should be curated by an artist (título original) consistia em convidar
31 artistas a comentar essa proposição. As respostas foram publicadas em livro homônimo.
6 Ricardo Basbaum, Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 167.

136
Quando um artista é artista em tempo integral, nós o chamare-
mos de ‘artista-artista’; quando o artista questiona a natureza e
a função de seu papel como artista, escreveremos ‘artista-etc..’
(de modo que poderemos imaginar diversas categorias: artista-
-curador, artista-escritor, artista-ativista, artista-produtor, artis-
ta-agenciador, artista-teórico, artista-terapeuta, artista-professor,
artista-químico etc.)

A7 artista-etc. não se ocupa somente da produção de suas


próprias obras (sem menosprezar, de forma alguma, a artista que
faz essa opção, o objetivo aqui é apenas apontar as diferenças).
Uma artista assim denominada cuida de arar a terra e plantar se-
mentes num terreno muito mais amplo que o pequeno jardim onde
seus trabalhos florescem. Seu desejo é imaginar e construir circui-
tos férteis, gerar contextos e pontos de contato, tecendo possíveis
redes que engendrem possibilidades de existência, de visibilidade,
de debate e de construção de espaços para produções artísticas.
A artista-etc. emite, portanto, discursos no plural e se afeta por
êxitos e fracassos que não os seus.
A “atuação etc.” de Basbaum como artista, curador, pro-
fessor, escritor e pesquisador foi, evidentemente, determinante na
invenção da denominação. Entretanto, além desses motivos mais
óbvios, os próprios modos de construir seu fazer, muitas vezes
perpassado por ações coletivas em oficinas, conversas, debates,
textos, curadorias, publicações, na articulação de encontros e
ações com outros artistas, os espectadores e o circuito; contribuí-
ram para forjar o conceito artista-etc.
A artista-etc. está atenta aos diálogos, negociações e em-
bates com os múltiplos agentes do circuito de arte: o público, a
crítica, a curadora, o patrocinador, as instituições em suas múlti-
plas formas e contextos (festivais, teatros, centros culturais, uni-

7 O uso do termo artista-etc. no feminino é intencional e uma recusa ao automatismo do


uso dos substantivos majoritariamente no gênero masculino.

137
versidades, congressos etc.). Nessas relações, procura articular e
defender os interesses de seu campo artístico e seus trabalhos (ar-
tísticos, pedagógicos, teóricos etc.). Sabe reconhecer o movimento
das diversas instâncias que deslocam trabalhos e práticas artís-
ticas pra lá e pra cá no intuito de adequá-los a determinados es-
paços, programações e/ou preferências institucionais. Ao assumir
papeis diversos em sua atuação, a artista-etc. busca pensar e agir
de forma ampliada, compreendendo as implicações das relações
entre artista, circuito de arte e sociedade.
Atenção: esse particular afeto pela artista-etc., explicita-
do no texto de Basbaum, não se deve ao mero apreço por uma
profissional atarefada – uma espécie de “faz tudo” da arte. Esse
termo não preconiza o compromisso com inúmeras atribuições
em decorrência da precariedade da profissão e das dificuldades
de sobrevivência da artista. Não se trata de glamourizar o dito
“empreendedorismo de si” – um tipo de Uber ou Rappi8 da arte
que aceita ou mesmo defende a própria exploração, enaltecendo-a
através de discursos de superação. Seria um equívoco romantizar
o trabalho sem fim, sem garantias, sem pausas, sem nenhuma es-
pécie de contrato. Essa é uma diferenciação importante a fazer
entre a artista-etc. e a artista-faz tudo9. A artista (que eu nomeio,
num gesto provocativo, artista-faz tudo), sugere Paolo Virno, vem
sendo o modelo de grande parte das trabalhadoras e trabalhadores
no pós-fordismo: opera numa zona de indistinção entre trabalho
e vida em seu labor instável continuamente testado e exposto a
público, marcado pela insegurança, flexibilização e precariedade.

8 O Rappi é um serviço de entregas em domicílio de produtos de supermercados, restau-


rantes, farmácias, entre outros. Criado na Colômbia em 2015, alcançou rápida expansão
em todo o mundo. O Uber é uma empresa multinacional americana, prestadora de serviços
na área do transporte privado urbano, através de um aplicativo de transporte que permite
a busca por motoristas baseada na localização. Em ambos os casos, não há vínculos entre
entregadoras e empresa. Embora não trabalhem por conta própria, as funcionárias assu-
mem todos os riscos e as empresas se isentam de qualquer responsabilidade.
9 Termo cunhado por mim mesma.

138
Em rotinas regidas por projetos, deslocamentos, viagens e horá-
rios maleáveis, o trabalho da artista é considerado, atualmente,
exemplo para muitos outros setores produtivos. A criatividade, a
liberdade e a autonomia preconizadas pelos trabalhadores da arte
e da cultura passaram a ser valorizadas em vários outros segmen-
tos: da direção de empresas ao trabalho nas fábricas.

A PRECARIZAÇÃO E O ARTISTA-ETC.

Do aprendizado voltado para o “sucesso” individual na


dança – permeado pela constante disputa em aulas e festivais10 –
à profissionalização – caracterizada por audições e pela luta por
lugares de destaque nas companhias - impera a competição. Os
números de identificação afixados nas roupas de ensaio a cada tes-
te são marcas na vida de muitos dançarinos. Não se dá um passo
sem receber avaliação. Quem atua na dança habitua-se com rapi-
dez aos julgamentos constantes. E já não apenas nas audições para
escolas ou grupos profissionais: os ambientes nos quais os colegas
são quase sempre percebidos como adversários se multiplicaram
na forma de submissão às curadorias, concorrência em editais,
concursos para docência etc. etc.
A busca incessante de oportunidades e espaços de visibili-
dade não cessa ao longo da carreira. Mesmo após muitos anos de
profissão, nada está garantido. A ausência de políticas públicas
para a cultura, a incipiência do circuito, a falta de perspectivas,
de continuidade dos projetos e de garantias mínimas para sobre-
vivência imprimem suas violentas cicatrizes. A sensação de reco-
meçar a cada ano ou a cada projeto acirra, ainda mais, a disputa.

10 Impressiona a quantidade de festivais de dança competitivos no país existentes ainda


hoje. O Festival de Dança de Joinville, modelo máximo desse tipo de empreendimento,
é considerado o maior festival de dança do mundo em número de participantes e reúne,
atualmente, cerca de 6,5 mil bailarinas profissionais e amadoras.

139
Obviamente, a rivalidade não é privilégio da dança ou das áreas
artísticas. No entanto, a precariedade nas artes as tornam cam-
pos, majoritariamente, de desagregação.
Imersos nesse cenário, no melhor estilo “farinha pouca, meu
pirão primeiro”11, como os artistas se envolvem na construção de
um comum12 na dança? Como podem se deslocar da luta pelo pro-
tagonismo para a construção de um corpo coletivo?
Não tenho resposta.
Arrisco que formar outras e outros artistas ajuda. Ser do-
cente em uma universidade pública vem dimensionando meu papel
de artista-etc. por suscitar múltiplas perguntas: Para onde irão
esses alunos? O que farão? Como se profissionalizarão? Do que
viverão? Como se alimentarão?
Para responder a essas preocupações, preciso descobrir e
fabricar continuamente meios que me auxiliem na partilha de co-
nhecimentos, dúvidas e reflexões, alimentando e desafiando mi-
nhas alunas e alunos.

POR UMA ÉTICA DA PARTILHA

Sigo, consequentemente, uma “pergunta-guia”: Como con-


tribuir para a construção de políticas do comum? Minha concep-
ção de comum comunga com as reflexões do filósofo italiano An-
tonio Negri:

Onde a ordem neoliberal diz: mais competição, o comum é coo-


peração; mais independência, o comum é interdependência; mais

11 Ditado popular para se referir a quem defende unicamente seu quinhão quando a quan-
tidade não é suficiente para todos.
12 Pela impossibilidade de me aprofundar em discussões sobre o comum neste texto,
recomendo a leitura das diversas acepções dos autores italianos Antonio Negri, Roberto
Esposito e Paolo Virno.

140
autorregulação do mercado, o comum é o autogoverno pelos cida-
dãos; mais propriedade exclusiva, o comum reivindica mais bens
comuns de posse e uso coletivo; onde o neoliberalismo diz mais
investimento de si, o comum é cuidado e corresponsabilidade...”.
Nesse sentido, explicita, o comum, “como relação, é o ‘entre’, é
aquilo que produzimos entre todos, o que é de todos e ao mesmo
tempo não é de ninguém. É outro regime de participação e de
partilha13.

Nas diversas frentes artista-etc., ressalto a importância da


construção do comum através da partilha de tudo o que produzi-
mos: trabalhos artísticos em suas diversas formas, pesquisas aca-
dêmicas, organização de eventos, curadoria etc. Para quem faze-
mos? Com quem dividimos nosso fazer? Alimentamos apenas a
nós artistas, aos especialistas, aos intelectuais e aos nossos pares
ou acolhemos todo aquele que se aproxima e diz: “não entendo
nada de dança”14.
Nossos fazeres, sob a perspectiva artista-etc., precisam de
público. Precisam ser públicos. E é, sobretudo, nas formas de par-
tilha que percebemos a dimensão ética dos trabalhos artísticos.
Observando, há muitos anos, um entregador de farmácia
que atravessava a rua de bicicleta com os medicamentos numa
cestinha, tomaram corpo algumas perguntas que me inquietavam:
Como aproximar a dança do espectador em seu cotidiano? Como
levar em conta o olhar do público?
Dança Contemporânea em Domicílio, projeto criado entre
2004 e 2005, foi minha resposta a essas indagações. O trabalho
é divulgado por meio de anúncios no programa de mão do festi-

13 Antonio Negri na conferência intitulada A constituição do comum realizada em 2005, cia


no Palácio Capanema, no Rio de Janeiro.
14 A frase está entre aspas propositalmente. Discordo da afirmação absoluta de que um
espectador não habitual não entende nada de um trabalho artístico. Caberia um debate
sobre o que significa ser entendedor ou não de artes que não me é possível aqui.

141
val ou espaço que o tenha programado. O produto anunciado é a
entrega de dez minutos de dança contemporânea. A encomenda
pressupõe um dançarino que realiza seu ofício, em qualquer local
onde seja solicitado, entregando um bem não utilitário, uma mer-
cadoria não usual, cujo consumo está na fruição do espectador.
Atuando na contramão da obra de arte tradicional que exige
seu lugar sagrado e uma recepção silenciosa, Dança Contempo-
rânea em Domicílio busca integrar as práticas artísticas ao coti-
diano, perguntando-se como a arte pode fazer parte do dia a dia
de qualquer cidadão, qual seu lugar e papel nos momentos mais
ordinários da vida.
Em 2004 e 2005, enviei o material do trabalho para festivais
e espaços de arte. Poucos curadores se interessaram em programar
essa proposição artística que não seria visível no espaço do teatro.
A dificuldade inicial de circular com o trabalho me levou a ideali-
zar um vídeo para despedir-me dessa performance.
Em Fora de Campo (2007), é a ausência que dá visibilidade
a Dança Contemporânea em Domicílio. Como o título indica, o
vídeo mostra unicamente o que se passa fora do campo de ação da
obra. Em nenhum momento se assiste a uma bailarina dançando.
Ao ver o vídeo, somos espectadores dos espectadores que recebem
a dança em domicílio. Uma dança que só se dá a ver pelos gestos,
falas e olhares destes.
Sete anos mais tarde, atendendo a um convite do Semanas de
Dança 2014 – evento promovido pelo Centro Cultural São Paulo -
para realizar um trabalho artístico tendo o espectador como foco,
Clarissa Sacchelli e eu idealizamos a primeira versão de Precisa-se
Público15. Nessa ação, convidamos o público a elaborar uma crítica
em qualquer formato (texto, desenho, imagem, áudio etc.) sobre al-
gum dos trabalhos artísticos incluídos na programação do evento.

15 Esse projeto foi reinstalado, posteriormente, na Bienal de Dança do Sesc (Campinas,


2015), no FIAC-Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia (Salvador, 2016) e na cida-
de de Uberlândia por ocasião da mostra Sala Aberta UFU (2017).

142
Precisa-se público é uma ação artística na qual os especta-
dores performam, dando concretude aos afetos16 despontados no
contato com as danças que assistem. A crítica que nos interessa
não é a profissional, nem necessariamente a especializada, mas a
que parte do espectador instigado a articular seu posicionamento
diante, com e a partir de um trabalho de arte. Buscamos remexer
a hierarquia frequentemente definida pelo discurso especializado:
quem fala, quem pode falar, quem é autorizado a escrever com e
sobre trabalhos artísticos.
Trabalho normal, estreado no fim de 2018, tem como mote
embrionário a pergunta: como realizar uma prática artística que
seja, ao mesmo tempo, um “trabalho normal”? Instigava-me,
como em várias outras criações, trazer para o cerne o que parece
marginal à obra: a construção do papel do artista no âmbito so-
cial, político e nas instituições artísticas; e as articulações entre
artista, obra, instituição e sociedade. Trabalho normal dura, na
íntegra, 40h – propositalmente, o mesmo tempo de uma jorna-
da de trabalho convencional. O projeto compõe-se de cinco ações
(que acontecem uma em cada dia da semana) e cada uma delas se
prolonga por oito horas. Trabalho normal é a minha resposta a
uma pergunta que comumente se faz a certos artistas: e trabalhar,
assim, ‘normal’, você trabalha?
Enxugo gelo, assopro uma montanha de açúcar, marco os
28.800 segundos de minha jornada de trabalho, choro ou perma-
neço imóvel por oito horas. Esses são meus trabalhos em Trabalho
Normal.
Uma funcionária da área de comunicação do Sesc Campi-
nas, chora. Três senhoras, enquanto varrem a entrada da institui-
ção, me perguntam: Você vai ficar aí por quantas horas? Igual

16 Afetos são compreendidos aqui no sentido espinosista. Os afetos se referem ao modo


como um corpo é afetado por outro. Para Espinosa, a maneira como somos afetados pode
diminuir ou aumentar a nossa vontade de agir.

143
à gente. - me relatam após minha resposta. O que é isso? O que
você está fazendo? Espero que seu filho te deixe descansar quan-
do você chegar em casa, ouço. Uma moça que trabalha em outro
setor da instituição me pede um abraço, retoma seu posto no escri-
tório, volta depois de alguns minutos e me oferece uma flor. Uma
senhora me pergunta o que aconteceu. Explico, de forma simples,
o decorrer das ações. Ela me responde: Mesmo assim, se precisar
de mim, estou ali. Volto amanhã – uma outra me diz.
Esse último comentário me remete ao diálogo entre dois
amigos artistas:
– Como é o retorno do público? – diz o primeiro.
– Eles voltam.
As relações – com e entre o público, os pares e os contextos –
são os nortes da artista-etc. Suas danças se fazem coisas públicas.
Suas danças se desenham a partir desses vínculos que pressupõem
iniciativas para, com todas essas esferas, imaginar possíveis comuns.

RETR ATO CONCISO DAS DANÇAS DA ARTISTA-ETC.

As danças da artista-etc. não são ensaiadas, necessaria-


mente, em espaços amplos, vazios e protegidos, reconhecidos
como “salas de dança”. São danças que também emergem em
ambientes imperfeitos, chãos pedregosos, espaços apertados,
campos abertos, solos encardidos17. Podem ocupar ruas, livros,
palcos, ambientes online, telas de cinema, salas de aula, folhas
de papel.
As danças da artista-etc. não medem esforços para man-
ter uma relação estreita com os espaços reais ou simbólicos onde
acontecem: seu contexto social, político e histórico.

17 Essa discussão é proposta por André Lepecki, “Planos de Composição”. In: Christine
Greiner, Cristina Espírito Santo e Sonia Sobral (orgs.), Criações e Conexões. São Paulo: Itaú
Cultural, 2010.

14 4
As danças da artista-etc. complicam a vida, complicam o
ambiente, complicam o campo no qual operam. Como não se sa-
tisfazem com definições prévias, não se sabe exatamente o que
delas esperar. Assumem não só a forma de espetáculos, interven-
ções e performances, mas também de aulas, teses de doutorado,
reuniões de curadoria, encontros pedagógicos, manifestações etc.
etc.etc. São danças que rejeitam definições permanentes e inven-
tam operações diversas para se perguntarem sempre que formas de
vida estão concebendo.
A dança da artista-etc. e a artista-etc. com suas danças se
envolvem na luta contra o senso comum e o entorpecimento. Tal-
vez o que mais temam seja a confirmação da catastrófica previsão
de Lygia Clark: “...ele (o artista) será o engenheiro dos lazeres do
futuro, atividade que em nada afeta o equilíbrio das estruturas
sociais.”18
Ninguém é menos artista por não se reconhecer artista-etc.

18 Lygia Clark apud Suely Rolnik, Arquivo para uma obra-acontecimento. Ativação da memó-
ria corporal da poética de Lygia Clark e seu contexto. São Paulo: Sesc SP, 2011, p. 43.

145
LILIAN FREITAS VILELA é artista da dança, pes-
quisadora e professora. Possui graduação em
Dança (bacharelado e licenciatura), mestrado
na área de Educação Motora e doutorado em
Educação, todos pela Unicamp. Tem forma-
ção como Educadora do Movimento Somático
no programa Body-Mind Centering™ (BMC)
e especialização no Sistema Laban/Bartenieff
(FAV/RJ). Possui obras artísticas premiadas
por instituições de fomento tais como: MinC,
Funarte, SEC-SP e Secretaria da Cultura de
Campinas. Escreveu artigos em periódicos e
livros, autora dos livros Metodologia SESI SP
de Dança e Uma vida em Dança: Movimen-
tos e percursos de Denise Stutz. Desde 2015 é
professora do Instituto de Artes da Unesp em
São Paulo.
LILIAN.F.VILELA@UNESP.BR
LILIANFVILELA@GMAIL.COM

146
HISTÓRIAS DE VIDA EM DANÇA
Lilian Freitas Vilela

O COMEÇO DA HISTÓRIA

Q uando criança gostava de escutar as histórias narradas


por minha avó materna Helena, histórias vindas de seu
potente imaginário de mulher goiana. Reparo assim, que
meu interesse em conhecer histórias se estende desde a infância,
abrange gerações e lugares diferentes nos quais morei e visitei. In-
teressada nesta relação gerada entre as pessoas, ao redor de fatos
imaginados ou revividos pela memória, muitas vezes me perguntei
sobre o momento em que os seres humanos começaram a contar
histórias uns para os outros, e se essa característica seria própria
da cultura humana.
Ao ler o historiador italiano Carlo Ginzburg (1989), co-
nheci sua hipótese sobre a origem da narração: iniciada na pré-
-história e nascida numa sociedade de caçadores. Estes caçadores
ordenavam os fatos em uma sequência narrativa para os outros a
fim de transmitir um evento que esses não haviam testemunhado
diretamente. Com o trabalho de Ginzburg pude perceber a im-
portância da narrativa para a humanidade, ao saber que ela per-
siste em hábitos de diferentes culturas e abarca nossa capacidade
e desejo de falarmos sobre eventos passados, e criar memórias
com fatos e experiências vividas.
Essa produção da memória foi (e é) fundamental para o
aprendizado individual e coletivo, pois trata de um acervo de re-
ferências para a interpretação do presente e para a antecipação de
futuros possíveis. A narração de memórias contribui para a orien-
tação individual no mundo ao informar sobre pessoas, lugares e
coisas, influenciando crenças e comportamentos (BOYD, 2009).
Desde a pré-história até a atualidade, vivemos imersos em
narrativas sobre pessoas e acontecimentos, e há muitos anos na

147
existência humana, a dança, a narrativa e a ficção caminham de
mãos dadas. Como desde antes de tornar-me pesquisadora aca-
dêmica já apreciava esta área, resolvi enveredar por este campo
em meu doutorado1, unindo dança, narrativas e ficção de si, ao
construir um trabalho unindo estes elementos a partir do relato
de história de vida artística 2 da bailarina Denise Stutz3.
Busquei uma maneira de poder criar com os dados, de
aprender com a experiência alheia, de buscar referências para
interpretar o presente da dança contemporânea no meu país, em
modos de viver da arte com diferentes padrões de comportamen-
to. Com o desejo de desvelar o presente pelo passado, a pesquisa
foi sendo delineada em seu próprio percurso. Fui uma pesquisa-
dora ativa (PRADO et al, 2008 in SOUZA, 2008), me inscreven-
do ao escrever a história, e ao buscar metodologias da História
Oral como possibilidade criativa para elaborar um estudo multi-
disciplinar contemporâneo.
A História Oral surgiu há muitos anos, em 1948, na Uni-
versidade de Columbia, graças ao aparecimento do gravador e
da fita magnética de áudio (ATAIDE, 2006), e até os anos 1960
não havia causado nenhum impacto especial nos estudos histó-
ricos e acadêmicos. Somente após os movimentos contestatórios
da década de 1960, essa forma de pesquisar ganhou traços de
uma nova história, não tão convencional, que incluía os excluí-

1 Doutorado intitulado: Uma vida em Dança: Movimentos e percursos de Denise Stutz, orien-
tado pela profa. Dra. Márcia Strazzacappa, finalizado em 2010, e realizado no Grupo Labo-
rarte- Laboratório de Corpo, Arte e Educação na Unicamp.
2 As narrativas de histórias de vida são fontes da biografia, gênero literário estabelecido
em finais do século XVIII, muito difundido no campo das artes em geral.
3 Denise Stutz dançou no Grupo Corpo, na Lia Rodrigues Cia. de Danças, atuou no Cole-
tivo Improviso, na Cia. Brasileira de Mysterios e Novidades, em trabalhos colaborativos,
parcerias e criou solos de dança. Com uma vida dedicada à dança, desde a década de 1970
até os dias atuais, mostra em seu percurso diversos modos de fazer, adequações e trans-
formações estéticas nos diferentes períodos de sua atuação e das escolhas traçadas em
sua própria trajetória pessoal.

14 8
dos e silenciados dos arquivos e documentos oficiais nos relatos
da História.
Em meu estudo, uma relação próxima foi construída com
a metodologia de tratar fatos não abordados nos documentos ofi-
ciais de dança. Afinal, poucos se debruçam e escrevem especifica-
mente sobre os bailarinos. E me pergunto, quantas pessoas conhe-
cem histórias narradas pelos/dos/com corpos que dançam?
A abordagem pela História Oral permitiu “a construção
histórica provisória de versões e novas formas de pensar, sentir e
conhecer, explicitadas por entrevistas produzidas conjuntamente
pelo entrevistador e entrevistado” (ATAIDE, 2006, p. 314). Em
meu caso, uma artista-pesquisadora, esta metodologia não apenas
serviu como procedimento de realização, mas era em si um propó-
sito para pesquisar.
Durante o doutorado, busquei transformar, ou trazer pro-
cessos de criação para dentro dos modos de pesquisar, em um en-
trelaçamento no qual pesquisadora e corpo-sujeito da pesquisa (eu
e Denise), revelávamos representações de nós mesmas e da realida-
de. Não me interessava apenas coletar dados, e sim, a possibilida-
de de criar dados. Busquei conteúdos históricos de dança e recolhi
materiais audiovisuais com registro coreográficos de obras artís-
ticas da trajetória de Denise e adotei procedimentos de rememo-
ração com o exercício de evocação de memórias4 (IZQUIERDO,
2002) durante a apreciação de vídeos dançados.
A evocação de memórias com a apreciação das obras teve a
intenção de que estas obras fossem (re) vistas pelo olhar do presen-
te, já que o propósito implicado “não era simplesmente restaura-
ção do passado, mas também uma transformação do presente, tal
que, o passado não fique o mesmo, mas seja, ele também, retoma-

4 Não se tem certeza do que foi e de como ficou registrado na memória, apenas sabe-se
que nos lembramos de algo quando exercitamos a evocação de memórias, ou quando ela
é vivificada por fato externo, provavelmente uma situação muito semelhante a do apren-
dizado original. (IZQUIERDO, 2002)

149
do e transformado” (GAGNEBIN, 1994, p. 17). Nestes encontros,
a apreciação dos vídeos de obras dançadas permitiu criar arquivos
orais gravados com depoimentos mais densos, espontâneos e in-
terativos, construindo entre pesquisadora e bailarina uma relação
empática estimulante para a reflexão. A escolha do material para
rememoração se deu em interação entre ambas, com intuito de
ficcionalizar um campo experimental de experiências, unindo mo-
mentos passados e presentes, atualizando sensações, afetos e fatos.
Muitas pessoas me perguntaram o motivo propulsor da
pesquisa biográfica. Uma pesquisa profunda com quatro anos de
duração deve despertar uma motivação capaz de envolver a inves-
tigação durante tão longo tempo. Analiso que minha motivação
pelo campo biográfico, já revelado anteriormente, foi intensificada
no decorrer do ato de pesquisar, com a possibilidade de me tornar
coautora de memórias, uma fabricante de fatos, “manipuladora”
de tempos passados, com certa magia artesanal de ficcionalizar a
realidade ou, de tornar fato um dado criado por nós mesmas5.
Ao realizar esta pesquisa na Faculdade de Educação da Uni-
camp, pretendia também deslocar o recorte histórico de obras e
coreógrafos para uma bailarina como corpo-sujeito da pesquisa.
Essa escolha colocou a investigação sobre um engajamento políti-
co em tripé de apoio6: 1- pela escritura de alguém que se faz “clas-
se combatente” (BENJAMIN, 1994), a classe dos bailarinos nos
quais a história grava suas inscrições e torna-se visível; 2- por uma
perspectiva feminista, que requer de nós, mulheres, uma investi-
gação de nossas biografias individuais, revisitando eventos histó-
ricos e as relações de poder que modelaram e restringiram nossas
vidas (SHAPIRO, 1998); 3- por poder problematizar a dança con-
temporânea no contexto brasileiro já que, no Brasil, temos muitas

5 Neste caso, eu e Denise Stutz, pesquisadora e corpo-sujeito da pesquisa, respectiva-


mente.
6 Em referência ao tripé de sustentação dos arcos dos pés, muito utilizado como imagem
de apoio para o movimento de bailarinos no aprendizado da dança.

150
marcas da colonização deixados por uma idealização do exterior
e do referencial estético europeu e norte-americano no campo da
dança cênica.
A escolha por ser uma bailarina a ser pesquisada também
trouxe um cruzamento com a minha própria escolha de vida: uma
bailarina falando de outra, em uma relação de identidade e alte-
ridade constante na pesquisa, em ressonância dialógica entre os
papeis. A bailarina pesquisada se cria na pesquisa, e a pesqui-
sadora que a cria, o faz para entender a si mesma no encontro
reverberado.
Outra dimensão importante da pesquisa foi a perspectiva
feminista, em que mulheres falam por si mesmas e interpretam
experiências por meio de seu próprio conhecimento (THOMAS,
1993). Com intento de examinar as forças sociais e culturais dos
discursos de poder que constroem nosso ser no mundo, a mate-
rialidade da pesquisa reflete as intenções de compreender e tornar
possível as mudanças de discursos e seus narradores. Para trans-
mitir uma proposta feminista, o conhecimento do corpo, entendi-
do no sentido de “memórias corporais”, deve ser incluído. São as
memórias corporais que guardam as experiências de vida (SHA-
PIRO, 1998, p. 39) e na dança, as memórias do corpo são, em sua
maioria, as histórias vindas de mulheres7.
Meu interesse em dança contemporânea também foi o de
escavar as referências históricas dentro do contexto brasileiro8,
não apartado das dominâncias estéticas europeias e norte-ame-

7 Um dos dados para essa constatação está no Censo do Ensino Superior, divulgado pelo
Ministério da Educação, que registra ao longo da década de 1990, cerca de 4.000 alunos
e alunas matriculados no nível superior de dança no Brasil. Na região Sudeste está con-
centrado o maior número de vagas. As mulheres predominam nesse curso. Analisando as
matrículas do curso superior de dança, pode-se afirmar que a futura bailarina é do sexo
feminino, uma vez que em cada dez alunos, nove são mulheres (SEGNINI, 2013).
8 Com o recorte no sudeste brasileiro, local de minha trajetória e de Denise Stutz, visto a
vastidão deste país continental. A história da dança contemporânea no Brasil é recente,
com os experimentos iniciais localizados na década de 1970.

151
ricana, visto que seria tarefa inexequível, mas pela compreensão
das apropriações e relações antropofágicas reveladas no calor dos
corpos tropicais. As dominâncias estéticas tão presentes no Brasil
que podemos conferir pela declaração de Paschoal Carlos Magno
para Renée Gumiel, depois de sua apresentação em Brasília, da
A Lenda do Rei Nagô, em 19639: Eu vi milhares de As bodas de
Aurora e balés clássicos, e a única coisa brasileira foi apresentada
por uma francesa.
Nesse país mestiço (não tão cordial), nossas danças cênicas
foram elaboradas com o referencial técnico do balé e da dança
moderna que chegaram pelos estrangeiros que decidiram ficar no
Brasil, os professores convidados para dar cursos aqui e pelos bra-
sileiros que deixaram o país e retornaram ensinando as técnicas
aprendidas (GREINER, C., s/d).
Com esta mistura de códigos e acessos aliada à tradição oral
desta forma de arte, identificar fontes e referências da dança que
estava sendo produzida no Brasil nunca foi simples. Saber como
foram os contágios e as reverberações do que foi visto no corpo e
se revelou nas coreografias sempre se constitui em tarefa lenta e
minuciosa.
Neste tripé de apoio, revisitar as experiências vividas por De-
nise pode funcionar como ponte para construir sentidos partilhá-
veis entre a coletividade da dança, e com isso, diferentes modos de
interpretar e atribuir sentido às questões que envolvem corpo, gê-
nero, referências culturais e atuação cênica na contemporaneidade.
Denise Stutz atuou em companhias, coletivos artísticos, par-
cerias e solos. Esqueceu e relembrou sua própria história algumas
vezes durante a pesquisa, recriou fatos e recontextualizou outros.

9 As bodas de Aurora é um trecho da obra clássica A bela adormecida de Marius Petipa. Car-
los Magno foi dramaturgo e crítico teatral. Renée Gumiel (1913-2006) foi bailarina, coreó-
grafa e atriz francesa radicada no Brasil e considerada a precursora da dança moderna no
Brasil. A citação apresentada pertence ao século XX, período de formação da bailarina
Denise Stutz e, segundo Benjamin, a época está conservada na obra de uma vida e faz-se
necessário trazê-la junto para entender o curso da história.

152
Eu, durante todo este mergulho em percurso alheio, também revi-
sitei minha formação: meus estudos, criações, temática, estética;
em aproximações e desencontros com as trajetórias de Denise. Seu
mundo penetrou o meu e, neste múltiplo caleidoscópio, nós nos
transformamos com a atualização de fatos e afetos. Conhecendo
seu percurso pude também rever o meu próprio.
Durante quatro anos, a pesquisa ganhou forma e volume,
neste texto pretendo relatar algumas reverberações do tempo após
à conclusão, e trazer uma passagem vivida para mostrar parte de
um processo biográfico de investigação em dança.

MARIA, MARIA

“Nossas memórias são diferentes...”10


São as reticências da fala que trago como lembrança do en-
contro com Denise, em agosto de 2008. Ela havia assistido a es-
treia de Breu, espetáculo do Grupo Corpo no Teatro Municipal
do Rio de Janeiro, e após a apresentação recebeu das mãos de
Rodrigo Pederneiras, seu livro biográfico Rodrigo Pederneiras e o
Grupo Corpo. Assim que chegou em casa, Denise leu o livro com
a história contada por Rodrigo, escrita pelo jornalista Sérgio Reis.
Ao ler, percebeu que suas memórias do período que dançaram
Maria, Maria eram diferentes das memórias dele. Teria o tempo
as transformado ou teriam convivido histórias pessoais distintas
dentro de uma coletividade partilhada?
O texto literário oriundo de fontes biográficas é constru-
ído sobre aquilo que foi rememorado, ressignificado, transfor-
mado, alterado pelo tempo e a percepção dele. A leitura do
texto a surpreendeu, atiçou suas próprias lembranças e as atua-
lizou para o presente, e o que havia vivido há mais de 20 anos.

10 Fala de Denise retirada de diário de campo de agosto de 2008.

153
Na juventude, Denise tinha o desejo de dançar em uma gran-
de companhia de dança, de estar-junto criando artisticamente
entre amigos. Para ela, sua memória era de uma comunidade
artística “meio Hippie”, uma proposta colaborativa entre pares
que se envolviam na dança e entre si, em relacionamentos entre-
cruzados entre afetividade e profissionalismo. Para ela, a união
do grupo havia sido feita pelos relacionamentos afetivos: eram
todos amigos, Milton Nascimento, Oscar Araiz, os “Pedernei-
ras”, as bailarinas...
Para Rodrigo, relatado em seu livro, a composição de Ma-
ria, Maria foi pensada, planejada para fazer sucesso e atender os
anseios de brasilidade que o público desejava na época.

A intenção para nossa estreia era criar um grande balé, uma su-
perprodução que causasse impacto. Sabíamos que precisávamos
de algo que marcasse a nossa chegada e decidimos convidar uma
equipe de peso, liderada pelo coreógrafo argentino Oscar Araiz,
Milton Nascimento e Fernando Brant (REIS, 2008, p. 45).

Era o ano de 1976 e o ambiente de criação de Maria, Ma-


ria estava cercado de censura e medos do regime militar instaura-
do no país desde 196411. Todas as obras artísticas passavam pela
aprovação da censura, e na dança deveriam ser apresentadas para
averiguação. Maria, Maria não só passou pela censura como se
tornou um “mini emblema” (KATZ, 1995) do Brasil no exterior12.
Reuniu as misturas de códigos da dança moderna trazidos pelo

11 A Ditadura militar no Brasil teve seu início com o golpe militar de 31 de março de 1964,
resultando no afastamento do Presidente da República, João Goulart, e tomando o poder
o Marechal Castelo Branco. O regime militar durou até a eleição de Tancredo Neves, em
1985. Os militares na época justificaram o golpe sob a alegação de que havia uma ameaça
comunista no país.
12 Para colocar em relação com produções internacionais podemos considerar que em
1976, estreou Einstein on the beach, de Robert Wilson e Philip Glass, em 1977, Kazuo Ohno
dançou La Argentina, e em 1978, Pina Bausch criou Café Muller.

15 4
argentino Oscar Araiz com a música brasileira em uma represen-
tação do Brasil com a história de vida de duas Marias negras: a
Maria, ex-escrava, e Maria Tatão, jovem que morreu aos 20 anos
de idade.
O teatro dançado, musical ou dança dramática Maria, Ma-
ria (Jornal O Globo, 07-04-1976) com plumas, santos católicos
e candomblé, foi definido como um marco “de novo posiciona-
mento em relação à dança por incorporar os temas populares à
dança, retirando-a da postura elitista, ao mesmo tempo que uniu
de maneira feliz o texto ao balé” (Jornal Estado de Minas, 15-01-
1980)13.
Com aproximadamente dez anos de circulação, o espetáculo
consagrou a estreia do Grupo Corpo. Foi o primeiro espetáculo
brasileiro a se apresentar no Théâtre de la Ville em Paris, realizan-
do 18 apresentações lotadas. A música tema composta original-
mente para o espetáculo por Milton Nascimento e Fernando Brant
sobrevive atualizada até os dias de hoje.

Maria, Maria,
É o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri
Quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta14

Este marco brasileiro na dança, entre laços de união entre


popular e erudito, com misticismo cultural, atravessou montanhas
e mares. Dançar as músicas de Milton Nascimento era a tendência

13 Nesse período os artigos de jornais não eram necessariamente assinados por seus au-
tores, o que nos impede de conhecer a identidade e história dos críticos de arte nos textos
apresentados.
14 Trecho da letra da música Maria, Maria, composição de Milton Nascimento e Fernando
Brant, 1976.

155
mais engajada daquele momento, e essa proposta reverberou tam-
bém pelo interior de Minas Gerais, no desejo de brasilidade dos
corpos que dançavam.
Na década de 1980, eu fazia aulas de dança no Conservató-
rio Municipal de Poços de Caldas, em Minas Gerais. Minha pro-
fessora de dança chamava-se Rosana, era uma mulher negra alta,
de pernas grossas e braços fortes. Seu biótipo não era o que tradi-
cionalmente se encaixava no estereótipo de professores de dança:
era grande, musculosa e mantinha seus cabelos crespos soltos na
altura do ombro.
Nas aulas, gostava de ouvir e dançar músicas de Milton
Nascimento. Lembro de uma sequência em cânone que realizáva-
mos atravessando o palco alternando as diagonais do espaço cêni-
co ao som de Travessia. Nunca havia assistido Maria, Maria, mas,
de certa forma, a produção (e tudo que essa carregava de códigos
e estética) havia soprado nas Gerais para dentro das salas de aula,
ao significar, ainda que de modo ingênuo, um novo posicionamen-
to em relação à dança cênica.
Na tradição oral da dança, e na época sem internet, YouTube
ou Google, os compartilhamentos eram ventanias que nos chega-
vam sem que soubéssemos por quem e de onde, mas chegavam e
contagiavam corpos, movimentos e comportamentos. Dancei ao
som de Milton Nascimento por alguns anos de minha vida sem
saber de qualquer relação com o sucesso de Maria, Maria do Gru-
po Corpo. Como aluna, com 15 anos, produzimos um espetáculo
chamado Brasil Exportação, com músicas de Milton Nascimento,
e rodamos estradas apresentando no sul de Minas com uma Kom-
bi branca. Logo depois, decidi me tornar bailarina profissional,
mudei com 17 anos para Belo Horizonte, onde fui estudar na Es-
cola de Dança Corpo15.

15 A família Pederneiras inaugurou sua própria escola de dança que gestou a criação do
grupo Corpo, no ano de 1975. A Escola de dança existe até os dias atuais, no bairro das
Mangabeiras em Belo Horizonte, com o nome de Corpo Escola de dança.

156
Conheci Denise Stutz um ano depois, como professora de
balé em um curso intensivo. Nós nos reencontramos muitos anos
depois no Festival Internacional de Dança de Araraquara, ela apre-
sentava Absolutamente Só e eu, Rodapé com a Balangandança
Cia16 . Mais adiante, nos revimos em Campinas, em um curso de
BMC™17, durante o Feverestival18. Nesse encontro, marcamos
para conversar sobre o Coletivo Improviso e minha pesquisa de
doutorado, e ainda alguns anos depois sentamos juntas para assis-
tir à gravação filmada de Maria, Maria19.
Fazia parte de meu doutorado a investigação de histórias
dançadas e a rememoração de fatos. Sentar com Denise, para as-
sistir uma cópia gravada do espetáculo Maria, Maria causou emo-
ções diversas. Para mim, era o primeiro contato com a obra, re-
cheado de impressões imaginadas do que poderia ser; para Denise,
um reencontro com as imagens de sua juventude.
Denise cantava as músicas do espetáculo Decor, eu também
as conhecia muito. Denise ficou com as mãos úmidas e o coração
batendo forte, me mostrava isto no corpo e se admirava em cons-
tatar fisicamente como as lembranças ainda estavam encarnadas
em sua fisicalidade. Eu fiquei emocionada em estar participando
daquele momento. No quarto, em frente ao computador, estáva-
mos nós duas paradas e um tempo estendido de muitos e muitos
anos trazidos por giros, saias brancas, coroas e canções.
Os sentimentos eram muito distintos, mas de certa forma,
estávamos as duas revisitando passados, aparentemente sem co-

16 Fui uma das fundadoras e bailarina da Balangandança Cia. por 8 anos.


17 BMC™ é a sigla para Body-Mind Centering, uma abordagem somática criada por Bonnie
Brainbridge Cohen muito utilizada como prática investigativa expressiva por bailarinos e
artistas na área de artes cênicas.
18 Feverestival é o Festival de Teatro de Campinas que acontece no mês de fevereiro.
Desde sua primeira edição em 2004, organiza cursos e apresentações nacionais e interna-
cionais na área de artes cênicas.
19 Esse encontro de rememoração com Maria, Maria aconteceu em 2009.

157
nexão, porém interligados. Assistimos do começo ao fim sentadas
em frente à tela. Nós rimos juntas, silenciamos e cantamos.
Maria, Maria acabava de entrar também para minha histó-
ria naquele dia.

CONCLUSÕES

Meu interesse pelo campo biográfico cresceu ainda mais


após a finalização do doutorado, ao constatar que abordagens
biográficas possibilitam a produção de conhecimento pela história
vivida. E, por certificar que, no campo da pesquisa biográfica,
“todas as vidas são importantes e merecedoras de atenção” (DE-
MARTINI, 2008, p. 46), um certo alento para aqueles que se sen-
tem “outsiders” da história formal.
Denise me ensinou com sua história encarnada: o poder da
resiliência, do movimento de busca pelos seus próprios interesses
sem cair na tentação de permanecer na “zona de conforto” dos
locais estabelecidos. Foi perseverante em abraçar o inusitado em
cada mudança (dançou vários anos com o Grupo Corpo, vários
anos com Lia Rodrigues Cia. de Danças, dançou solos, fez parce-
rias e colaborações diversas), e com elas me fez repensar a emanci-
pação da bailarina em novas formas de produzir danças.
O que aprendi com sua história de dança vai além de dados
da informação de fatos, nomes, períodos, tendências e estéticas.
Aprendi que a história é viva, multifacetada e construída também
pelo seu registro. Aprendi que as verdades são mutantes e variá-
veis, dependem da perspectiva vivida pelo narrador, do momento
que as narrações foram coletadas e o modo como foram registra-
das. O registro dá contorno nas formas elásticas da história vivida
e encarnada nos corpos de dançarinos.
Aprendi que as narrações têm a possibilidade de modificar
nossas ideias e conceitos sobre o que foi vivido, ressignificando o
presente e modificando o que está por vir. É o futuro que nos inte-
ressa quando lidamos com as memórias. É “para o que virá” que

158
existem pesquisas históricas, para iluminar nossa ação no mundo
ao nos projetarmos sobre o que foi vivido.
Segundo Ivan Izquierdo (2004, p. 22), “cada um de nós é
quem é porque tem suas próprias memórias”, e para mim, hoje,
cada um pode se tornar aquilo que projetar para seu futuro a par-
tir das múltiplas percepções do que foi vivido.

REFERÊNCIAS

• ATAIDE, Yara Dulce Bandeira. História Oral e construção


da história de vida. In SOUZA & ABRAHÃO (orgs.) Tem-
pos, narrativas e ficções: a invenção de si. Porto Alegre: EDI-
PUCRS, 2006.
• BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra
de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,
1994, p. 197-221.
• BOYD, Brian. On the origin of stories. 1. ed. Cambridge:
Harvard University Press, 2009. 540p.
• GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em W. Ben-
jamin. São Paulo: Editora Perspectiva: FAPESP: Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 1994. – Coleção Estudos: 142.
• GINZBRUG, C. Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e his-
tória. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
• GREINER, Christine. Revista Dançar 10 anos. São Paulo:
Dançar editorial, s/d.
• IZQUIERDO, Iván. Memória. Porto Alegre: Artmed, 2002.
• _______________. A arte de esquecer: cérebro, memória e
esquecimento. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2004.
• JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação.
São Paulo: Cortez, 2004.
• KATZ, Helena (texto). Grupo Corpo - Companhia de dança.
Rio de Janeiro: Salamandra, 1995.

159
• MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. 5a
edição. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
• PRADO, Guilherme V. T. et al. GEPEC: da educação con-
tinuada ao desenvolvimento pessoal e profissional em uma
perspectiva narrativa. IN SOUZA, Elizeu et al. (orgs.) Pesqui-
sa (auto) biográfica e práticas de formação. Vol. 04. Natal:
EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008.
• REIS, Sérgio Rodrigo. Rodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo.
Coleção Aplauso Dança. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008.
• SEGNINI, Liliana Rolfsen Petrilli. Formação profissional
de artistas: além dos números, experiências vividas. Artigo
ComCiência no 148. Campinas mai/2013.
• SHAPIRO, Sherry. Em direção a professores transformado-
res: perspectivas feminista e crítica no ensino da dança. Pro-
-posições, Campinas, v. 9, n. 2, p. 35-53, jun. 1998.
• THOMAS, H. Do you want to join the dance? Postmoder-
nism/Poststructuralism, the body, and dance. In: MORRIS,
G. (Org.). Moving words: re-writing dance. Londres/New
York: Routledge, 1996. p. 63-87.
• VILELA, Lilian F. Uma vida em Dança: Movimentos e Per-
cursos de Denise Stutz. São Paulo: Annablume editora, 2013.

160
161
ANDRÉA C. SCANSANI – Professora do curso de
Cinema da Universidade Federal de Santa Ca-
tarina (UFSC) e coordenadora do grupo de
pesquisa Fotocrias; doutora pelo programa
em Meios e Processos Audiovisuais da ECA/
USP com período sanduíche (bolsista CA-
PES) no Institute du recherche sur le cinema
et l’audiovisuel da Sorbonne Nouvelle/Paris 3;
mestre em Cinema pelo Instituto de Artes da
Unicamp; especializada em Fotografia Cinema-
tográfica pela Academia de Cinema e Drama de
Budapeste/Hungria; graduada em Cinema com
especialização em Fotografia Cinematográfica
pela ECA/USP. Área de pesquisa e atuação:
teoria do cinema e da imagem, cinematografia,
processos foto-cinematográficos.
DARACA1@GMAIL.COM

162
O CORPO COMO MOR ADA DO TEMPO
Andréa C. Scansani

Ora, a Dança engendra toda uma plástica: o prazer de


dançar irradia ao seu redor o prazer de ver dançar
_Paul Valéry

IMAGEM E CORPO

C
hamado por Andrei Levinson (1887-1933) de filósofo da
dança, Paul Valéry (1871-1945) dedicou parte de sua vas-
ta obra à sua apreciação. São seus os textos A alma e a
dança, Filosofia da dança e Degas dança desenho (publicados em
1921, 1936 e 1938, respectivamente). Menos impressionado com
as complexidades do desenrolar de passos e gestos, Valéry dia-
loga com a dança através dos mistérios que emanam dos corpos
em movimento e, a partir de uma conexão, segundo ele, volátil,
empenha-se em sondar suas potencialidades no desenvolvimento
do pensamento de sua, por quê não dizer, filosofia. Quando o po-
eta escreve “Ora, a Dança engendra toda uma plástica: o prazer
de dançar irradia ao seu redor o prazer de ver dançar” (2012, p.
30), ele nos coloca frente aos processos de composição, decompo-
sição e recomposição dos corpos em movimentos que formariam,
a seu ver, ornamentos de duração – dados pelo ritmo dos traços
desenhados no espaço –, e ornamentos de extensão - criados a
partir da repetição desses mesmos traços no tempo. Ao colocar a
duração (tempo) e a extensão (espaço) como elementos inerentes
à dança e à observação da dança, Valéry expande os corpos que
dançam e nos chama a atenção para a materialidade pulsante dos
músculos no ar que ressoa e se faz sentir nos corpos dos especta-
dores. A própria ação de observar reverbera imagens em nossas
mentes e estas ondas de imagens (sempre carregadas de tempo)

163
acionam outras sensações que expandem o ato de olhar para todo
o corpo. “As imagens exteriores influem sobre a imagem que cha-
mo meu corpo: elas lhe transmitem movimento. [...] este corpo in-
flui sobre as imagens exteriores: ele lhes restitui movimento. Meu
corpo é, portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem
que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movi-
mento” (BERGSON, 1999, p. 14).
Se pensarmos o corpo como imagem, tal como proposto por
Henri Bergson em Matéria e memória (publicado pela primeira
vez em 1896), veremos que a associação feita entre os pensamen-
tos do poeta e os do filósofo1 parece oportuna. E a partir do ca-
minho intrincado entre imagens que transmitem e/ou restituem
movimento e onde a duração se faz presente no desenho que os
corpos esboçam no espaço, podemos pensar outro tipo de corpo:
o corpo fílmico. Um corpo constituído por imagens (e sons), cuja
impressão de movimento oferece a quem o assiste, outros tipos de
ornamentos de duração, outras formas temporais. Portanto, nos-
so percurso nas próximas páginas têm como meta pensar a dan-
ça como ondas corporais de imagens em movimento ao mesmo
tempo em que olharemos para o cinema como uma dança entre
corpos que filmam, corpos filmados e o próprio corpo fílmico ma-
terializado em película (ou dígitos) que quando projetado afeta
os corpos que os assiste tal qual os espectadores extasiados pela
dança como aponta o poeta.

1 Como não faz parte de nossos objetivos nos aprofundarmos nas relações entre Paul
Valéry e Henri Bergson, recomendamos a leitura da obra que inaugura uma reflexão sobre
esta aproximação: Paul Valéry de Albert Thibaudet, Paris: Grasset, 1923 e também o ótimo
artigo de Judith Robinson que apresenta as críticas do próprio Valéry sobre essa influência:
“Valéry, critique de Bergson”. In Cahiers de l’Association internationale des études françaises,
1965, n. 17, p. 203-215, doi : https://doi.org/10.3406/caief.1965.2288

16 4
MOVIMENTO E PAUSA

“Como pode uma imagem carregar-se de tempo?”, indaga


Giorgio Agamben (1942 – ) em Ninfas: uma reflexão sobre a na-
tureza da imagem (2012) baseada no painel homônimo de número
46, constituinte do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg2. O autor
(que também aproxima tempo, dança e imagem), na tentativa de
esboçar uma resposta a tal pergunta, inicia seu percurso através
do Tratado da arte de bailar e dançar3 (ca. 1455) do coreógra-
fo renascentista Domenico de Piacenza, onde esse enumera seis
elementos fundamentais da arte da dança, sendo a fantasmata o
elemento “absolutamente central”:

Digo a ti, que quer aprender o ofício, é necessário “dançar por


fantasmata”, e nota que fantasmata é uma presteza corporal [...]
“parando de vez em quando como se tivesse visto a cabeça da
medusa [...] isto é, uma vez feito o movimento, sê todo de pedra
naquele instante, e no instante seguinte cria asas como o falcão
que tenha se movido pela fome”.

Segundo Agamben o termo fantasmata é usado por Aristó-


teles para pensar a conexão entre tempo, memória e imaginação,
pois apenas os seres que percebem o tempo, podem recordar. E para
recordar, para perceber o tempo, a imaginação se faz necessária. “A
memória, segundo o pensador grego, não é possível sem imagens
(sem ‘fantasmata’). E essas imagens, acrescenta, podem chegar a
mover o corpo” (AGAMBEN, 2004). Desta forma, a fantasmata

2 Para outros desdobramentos sobre a obra de Aby Warburg (1866-1929) e sua relação
com o cinema ver SCANSANI, 2019.
3 O título aqui mencionado é o utilizado por Agamben (2012). Segundo PONTREMOLI
apud FERNÁNDEZ, 2013, p. 40, a obra original é duplamente nomeada sendo o primeiro
nome em italiano: De la arte di ballare et danzare; e o segundo em latim: De arte saltandi et
choreas ducendi, sendo esse último o mais utilizado.

165
seria uma espécie de pausa dinâmica atrelada não apenas à imagi-
nação (às imagens) mas repleta de movimento latente. Sendo assim,
a proposta de abordar a dança como imagem ou a imagem como
um corpo que dança, estaria na latência de seu movimento, em sua
vital pausa dinâmica: “A dança [...] é para Domenico, [...] uma com-
posição dos fantasmas - das imagens - [...]. O verdadeiro lugar do
dançarino não está no corpo e em seu movimento, mas na imagem
[...] como pausa não imóvel, carregada, ao mesmo tempo, de memó-
ria e de energia dinâmica” (AGAMBEN, 2012, p. 23-25).
Sendo assim, a fantasmata corrobora com a ideia de que
a imagem encerra em si uma pausa dinâmica.4 Essa imobilidade
apenas aparente abriga desde imperceptíveis movimentos físicos
em seus componentes materiais a mobilizações da memória, asso-
ciações de formas, signos e sentimentos que se cruzam no tempo.
É sabido, por exemplo, que a imagem cinematográfica é composta
por imagens fixas cuja origem remonta à fotografia. Todo meca-
nismo de retenção da imagem cinematográfica pressupõe um ou
mais movimentos intercalados a momentos de extrema fixidez do
suporte. Algo semelhante ocorre em nossa visão, onde a sensação
de movimento é causada por uma sucessão de imagens fixas (fe-

4 Uma outra maneira de pensar a pausa dinâmica - que foge ao escopo deste texto mas
que, no entanto, pode contribuir para o aprofundamento da questão - encontra-se no
conceito de dialética na imobilidade de Walter Benjamin (1892-1940) [quem, para Theodor
Adorno (1903-1969), é possuidor do ‘olhar de Medusa’]: “Não é que o passado lance luz
sobre o presente ou que o presente lance luz sobre o passado; mas a imagem é o ponto
em que o ocorrido encontra, num lampejo, o agora formando uma constelação. Em outras
palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com
o passado é puramente temporal, contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética:
não é progressão, mas imagem, repentinamente emergente” (Benjamin, 1999, p. 462 [N2a,
3], tradução nossa).
Original inglês: “It’s not that what is past casts its light on what is present, or what is present
its light on what is past; rather, image is that wherein what has been comes together in a ash
with the now to form a constellation. In other words, image is dialectics at a standstill. For
while the relation of the present to the past is a purely temporal, continuous one, the relation
of what has been to the now is dialectical: is not progression but image, suddenly emergent.”

166
nômeno phi em combinação com o movimento beta)5 para a qual
o intervalo é absolutamente imprescindível. Todos os mecanismos
proto-cinematográficos praticaram esse conhecimento mesmo
quando a ciência ainda apostava na persistência retiniana como o
único elemento responsável por nossa capacidade de acompanhar
visualmente o movimento. A apreensão do movimento pelo olho
– ou pela câmera – necessita da pausa. A dança da película cine-
matográfica, no passo de vinte e quatro quadros por segundo ou o
movimento dos fótons varrendo o sensor eletrônico de uma câme-
ra, pixel a pixel, só é capaz de produzir imagens discerníveis como
semelhantes àquelas vistas pelo olho se efetuar pausas de duração
constante nos intervalos de seu movimento. Portanto, a formação
da imagem cinematográfica depende do movimento e também do
absoluto repouso; da observação e da latência; da continuidade e
da descontinuidade. É o que o cineasta Jean Epstein (1897-1953)
problematiza de maneira exaustiva em seu capítulo “O quiproquó
do contínuo e do descontínuo”, escrito originalmente em 1946, em
A inteligência de uma máquina (2015):

Certas análises da luz fazem aparecer uma estrutura granular,


descontínua. [...]. Outros fenômenos luminosos só se explicam
admitindo que a luz é, não uma descontinuidade de projéteis, se-
não um fluxo ininterrupto de ondas. A mecânica ondulatória não
chega a dissipar totalmente esta incompreensível contradição, ao
supor em um raio luminoso uma natureza dupla, imaterialmente
contínua e materialmente descontínua, formada por um corpús-
culo e por uma onda piloto6 [...]. Diante de um problema insolú-

5 Fenômeno descrito pela primeira vez por Max Wertheimer (1880-1943), um dos funda-
dores da Teoria da Gestalt, em seu artigo Experimental Studies on the Perception of Motion
(1912).
6 Em artigo publicado em março de 2015 pela Nature Communications temos, pela primeira
vez, uma única imagem da luz como partícula e onda. Disponível em:
http://www.nature.com/ncomms/2015/150302/ncomms7407/full/ncomms7407.html,
acesso em maio 2020.

167
vel, diante de uma contradição inconciliável, com frequência há
motivos para suspeitar que, na realidade, não há nem problema
nem contradição. O cinematógrafo nos indica que o contínuo e
o descontínuo, o repouso e o movimento, longe de serem duas
formas incompatíveis de realidade, são duas formas de irrealida-
de facilmente intercambiáveis, dois destes ‘fantasmas do espírito’
[...]. Não há nada de excludente entre elas como não há entre as
cores de um disco em repouso e o branco que forma este mesmo
disco em rotação. Contínuo e descontínuo, cor e branco tomam
alternadamente o papel de realidade (EPSTEIN, 2015, p. 19-20,
tradução e grifo nossos).

Se a pausa contém o movimento e o movimento é composto


de pausa dinâmica, o corpo que dança (quer seja ele um corpo
humano ou um corpo fílmico) carrega em suas entranhas os com-
passos desse fluxo temporal que se apresenta aos olhos numa con-
tinuidade aparentemente contraditória.

Explorar todas as maneiras possíveis de dar forma a uma tensão


contraditória, (pausa e movimento, peso e leveza, matéria e es-
pírito) como se as imagens [...] tivessem precisamente a virtude
– talvez a função - de conferir plasticidade, intensidade ou redu-
ção da intensidade às coisas mais opostas da existência [...]. Seu
próprio movimento - seu ciclo, sua vibração - pressupõe a coexis-
tência dinâmica, não resolvida, dos polos opostos. Estes nunca
são eliminados um pelo outro, nem tampouco por uma terceira
entidade superior que os ‘harmonize’, que os abarque e que apazi-
gue qualquer tensão: eles persistem em suas contrariedades postas
em movimento, ou melhor, em vibração. (DIDI-HUBERMAN,
2013, p. 159-161)

Não estariam as vibrações que emanam da plasticidade das


imagens no mesmo ciclo em que se encontram os impulsos muscu-
lares na dança? Os “membros podem executar uma sequência de
figuras que se encadeiam umas às outras, e cuja frequência produz

168
uma espécie de embriaguez que vai do langor ao delírio, de uma
espécie de abandono hipnótico a uma espécie de furor.” (VALÉRY,
2012 p. 29). O estado da dança, nas palavras de Paul Valéry, é
criado a partir desta dupla via entre a hipnose e o delírio, entre o
transe e a atenção plena, onde nem o repouso nem o movimento
podem se expressar isoladamente, pois a dança é da ordem da res-
sonância, da reverberação, da vibração. No afã de descortinar os
mistérios dos movimentos, os estudos proto-cinematográficos de
Étienne-Jules Marey (1830-1904) trazem visibilidade aos impulsos
dos corpos e suas vibrações, através da captura dos desenhos for-
mados por seus trajetos, via de regra, curvilíneos (figura 1):

Etienne-Jules Marey - Le Mouvement (1894)

Como vimos, a percepção da imagem é dependente do mo-


vimento e, paradoxalmente, não nos parece possível haver uma
imagem estrita ‘do’ movimento, apenas notações especulativas,
mais ou menos bem elaboradas, do deslocamento dos corpos em
movimento. Mesmo o trabalho meticuloso e muito inspirado de

169
Etienne-Jules Marey parece ladear o movimento. O que elas nos
mostram são as posições relativas desses corpos no decorrer do
tempo: uma notação coreográfica do movimento em fotografias.
Se o movimento pode ser entendido como o deslocamento de um
corpo no espaço físico durante um espaço de tempo – ou mesmo o
deslocamento da imagem deste corpo como mostram as cronofo-
tografias (figura 2) do pesquisador – este mesmo corpo criará uma
relação (e uma duração) com estes objetos concretos e, quiçá, com
outros corpos. O movimento de um corpo (ou da sua imagem)
em interação com outros corpos ou outras matérias (ou imagens
desses) poderia, desta forma, ser descrito como uma dança. Assim
como nas fotos de Marey, a imagem desse movimento se dá como
notação coreográfica e não como captação integral de um fluxo
inalcançável. A dança, bem como a imagem cinematográfica, teria
então como matéria-prima o próprio tempo inscrito no corpo.

CORPO-CÂMER A

O estado de dança que, segundo Valéry, reverbera no espaço


as vibrações dos corpos em movimento, sua duração e sua decom-
posição, aproxima-se, a nosso ver, de maneira íntima ao cinema,
desde a execução dos planos filmados à projeção da obra sobre os
corpos dos espectadores. A imagem vista abaixo é um fotograma
da abertura de Decasia (2001), filme de Bill Morrison (1965- )
criado para uma apresentação multimídia da sinfonia de Michael
Gordon7. Uma potente experiência da tênue, talvez ilusória, fron-
teira entre os aspectos materiais e imateriais da arte cinematográ-
fica8. Ao compor, por aglutinação, as palavras em inglês decay

7 Primeira exibição em tela tripla numa performance da Basel Sintonietta em novembro


de 2001.
8 Uma pequena parte do que aqui se apresenta foi desenvolvida com outros fins no artigo
“A dança dos fotogramas: o corpo da imagem em Decasia” (SCANSANI, A.C., 2016)

170
(decomposição, degradação, decadência) com a palavra fantasia, o
vínculo entre os desejos intangíveis e as suscetibilidades orgânicas
dos corpos é estabelecido (além de ressoar a decomposição dos
membros em ornamentos de duração do nosso poeta e a fantas-
mata do tratado da dança de Domenico de Piacenza).

Fotograma de Decasia (2001) de Bill Morrison


(fotograma do filme capturado pela autora)

O filme é emoldurado – plano inicial e final – pela dança sufi


(figura 3) que convida o espectador à entrega, por que não dizer, espi-
ritual na vivência da obra multimídia. O ritual executado pela ordem
dos dervixes tem como objetivo a meditação ativa onde, através do
giro, o corpo suspende sua materialidade, sua densidade, para des-
frutar da unidade do Ser. Durante essa cerimônia solene, acredita-se
que o poder sagrado entra pela palma da mão direita, apontada para
cima, passa pelo corpo e sai pela palma da mão esquerda, apontada
em direção à terra. O dervixe, deste modo, não retém energia, muito
menos a direciona. Ele aceita ser um instrumento da potência divina
que supõe atravessá-lo numa reticência do tempo.
Esse estado espiritual buscado pelos dervixes assemelha-se
às circunstâncias da própria realização e experiência cinematográ-

17 1
ficas. Quer seja pela predisposição do espectador em render-se à
obra ou pela sintonia de uma equipe no momento da filmagem. É
pela suspensão da matéria e sua relação direta com o corpo que a
abriga que Decasia inicia seu projeto. Essa condição fluida do giro
– que aparece nos primeiros fotogramas do filme - muitas vezes é
incorporada pelo operador de câmera e já foi descrita pelo docu-
mentarista Jean Rouch (1917-2004) em seu Cine-transe (2003). Um
estado criativo especial, induzido pela lente da câmera, que envolve
tanto o que está sendo filmado, o corpo que filma e os espectadores.
Uma dança entre o corpo que empunha a câmera e o que por ela
é capturado. O encontro cinematográfico, um acontecimento pre-
ponderantemente intangível, é o exato momento onde a câmera é
movida por seu completo estado de presença e por sua consonância
com o entorno. Mesmo que possa soar paradoxal, o transe poten-
cializa o encontro, a confluência de corpos e estratos de tempo. Nas
palavras de Rouch: “quando estou com a câmera (...), não sou o que
normalmente sou, fico num estado estranho, num cine-transe. Este
é o tipo de objetividade que podemos esperar, a total consciência
da presença da câmera por todos os envolvidos. Deste momento em
diante, vivemos em uma galáxia audiovisual” (ROUCH in YAKIR,
1978, p. 07).
Essa conexão imaterial produz a matéria-prima que conce-
berá o corpo fílmico que, ao ser projetado, criará novos momen-
tos de suspensão, novas camadas temporais no espectador, outros
transes. O filme é matéria viva e abre-se à percepção de outros cor-
pos formando um corpo único e em constante transformação. A
realização cinematográfica, como forma artística, não é construída
através de um ideal pré-estabelecido, mas através de uma experi-
ência sensorial, onde o mais abstrato e o mais concreto se unem.
Onde a parafernália técnica corrobora com as sutilezas da criação.
Independentemente do tipo de produção, do tamanho da equipe,
ou mesmo da finalidade da criação, a câmera – elemento técnico
central – se transforma no agente de uma força centrípeta para o
qual convergem todos os gestos, físicos e mentais dos sujeitos envol-
vidos. Saberes, sensações, estímulos de toda sorte lhe são oferecidos

17 2
como a uma espécie de catalisadora do cinema. No momento em
que a câmera é acionada um estado criativo especial – que envolve
tanto o que está sendo filmado e o corpo que filma – é estabelecido.
Esse vínculo criado entre os gestos da câmera cinematográfica e os
gestos dos atores no momento da filmagem guarda seus mistérios e
transforma-se numa espécie de comunhão.
Podemos evocar outro testemunho, aqui do cineasta e fotó-
grafo Artur Omar (1948-) que em seu texto Foto-gnose, publicado
no livro A antropologia da face gloriosa de 1997, proclama que
estar com uma câmera

torna-se uma ação, um agir em si mesmo e dentro de si mesmo [...].


Na reposturação indispensável e inevitável, na relação entre pensa-
mento e luz, na alteração de ser que ocorre quando o pensamento
e a luz se encontram no interior de uma câmera, [...] uma máquina:
um aparelho em que se dá a união ou a interseção entre a luz exte-
rior e a luz interior. Na outra ponta do iceberg está o [...] [o câmera]
velocíssimas operações de [...] discriminação sensorial são exigidas
pela câmera [...] e esta lhe faculta, esse pequeno estar fora de si, esse
pequeno êxtase, quando a pulsão fotográfica o transforma numa
espécie de caçador feroz e puramente instintivo, um animal fótico.
[...]. As narinas latejam, e ele avança com sua ativíssima, especialís-
sima e secreta passividade. [...]. Não se trata de captar a realidade.
É apenas o ato que está circulando em suas veias (OMAR, 1997,
p. 30-32).

O ato cinematográfico convida-nos a refletir sobre essa ‘re-


alidade’ que circula nas veias, sobre essa comunhão, esse gesto,
esse mistério, essa hora mágica entre o lobo e o cão na qual não
distinguimos com clareza o corpo humano e o corpo técnico e
sobre a qual “nunca seremos capazes de reivindicar (qualquer) co-
nhecimento final [...] salvo o que for descrito em carne e osso”9.

9 “Digamos que a verdade significaria uma correspondência precisa entre nossa descrição

17 3
CINEMA: UMA FORMA TEMPOR AL

No cinema, o transcorrer do tempo parece ser seu código ini-


cial. Nele coabitam tempos de diferentes naturezas como o tempo
histórico de suas determinantes técnicas, o tempo imediato captu-
rado em filme, o tempo ritmado na montagem, o tempo diegético, o
tempo da idade da obra, o tempo de sua reflexão teórica e as infin-
dáveis sensações temporais ativadas no corpo do espectador. Tem-
pos mensuráveis e tempos efêmeros. A repercussão das durações
cinematográficas encerra essa multiplicidade temporal e, a cada
novo plano assistido, uma relação (e uma duração) com as imagens
é criada. Há, a cada nova posição dos objetos e corpos filmados,
a memória e o envelhecimento do instante anterior, criando uma
nova presença e a antecipação do momento seguinte como latência.
Não é de hoje que o cinema tem sido pensado como uma
expressão do tempo. Em sua conferência “O cinema e a nova
psicologia” proferida na Escola de altos estudos cinematográfi-
cos (IDHEC)10 em 13 de março de 1945, Maurice Merleau-Ponty
(1908-1961) afirma: “digamos primeiramente que um filme não
é uma soma de imagens, mas uma forma temporal” (2009). Ao
trazer a percepção para o centro da questão cinematográfica (são
dele as palavras “o filme não se pensa, ele se percebe”), Merleau-
-Ponty nos chama a atenção para o tempo de cada plano, para o
encadeamento de imagens e sons, suas durações, seus desassosse-
gos internos e nos lembra do conselho do realizador Roger Lee-

e o que descrevemos ou entre nossa rede total de abstrações e deduções e certo enten-
dimento total do mundo externo. Verdade neste sentido não seria alcançável. E mesmo
se ignorarmos os obstáculos da codificação, as circunstâncias nas quais nossas descrições
serão em palavras ou figuras, salvo o que for descrito em carne e osso e ação - mesmo
desconsiderando as barreiras da tradução, nunca seremos capazes de reivindicar o conhe-
cimento final sobre o que quer que seja” (BATESON, 2002, p. 26, grifo nosso).
10 Fundado em 1943 por Marcel L’Herbier e hoje conhecido como La Fémis (École nationale
supérieure des métiers de l’image et du son que guarda a antiga sigla derivada da Fondation
européenne des métiers de l’image et du son).

174
nhardt11: “aprenda a sentir a inquietação interior que produz uma
tomada ou um plano tão longo que freia o movimento ou esta
deliciosa aquiescência íntima em cujo manto passa-se de um plano
ao outro”. O ritmo do cinema, para o filósofo, está “apto a fazer
aparecer a união do espírito e do corpo, do espírito e do mundo e
a expressão de um no outro.” Se Merleau-Ponty toma seu tempo
para pensar o cinema é porque para ele “a filosofia contemporânea
não consiste em encadear conceitos, mas em descrever a mescla
da consciência com o mundo, seu engajamento em um corpo, sua
coexistência com os outros, e este assunto é cinematográfico por
excelência” (MERLEAU-PONTY, 2009).
Seguindo a ideia de Merleau-Ponty, na qual a descrição da
“mescla da consciência do mundo” é um atributo do cinema “por
excelência”, podemos nos perguntar de qual instrumento a ex-
pressão cinematográfica se vale para desenvolver tal tarefa. Nossa
aposta se volta para o que o próprio Merleau-Ponty chama de
intercorporalidade12.

Há uma relação do meu corpo consigo mesmo que o converte no


vinculum entre o eu e as coisas. Quando minha mão direita toca mi-
nha mão esquerda, sinto-a como uma “coisa física”, mas no mesmo
momento, se eu quiser, ocorrerá um acontecimento extraordinário:
eis que a mão esquerda também começará a sentir a mão direita [...].
Logo, toco-me tocante, meu corpo efetua “uma, espécie de reflexão”.
Nele, por ele, não há somente relação em sentido único daquele que
sente com aquilo que sente: a relação inverte-se, a mão tocada torna-
-se tocante, e sou obrigado a dizer que o tato está espalhado em meu
corpo, que o corpo é “coisa que sente”, “sujeito-objeto”.
[...]

11 Cineasta e ator francês que realizou o curta-metragem Paul Valéry (1960) com textos do
poeta lidos por seu filho Claude Valéry.
12 Nas traduções do termo em francês, intercorporalité, encontramos duas versões: inter-
corporeidade e intercorporalidade, utilizamos a segunda.

175
Não é de modo diferente que o corpo do outro anima-se diante
de mim, quando aperto a mão de outro homem ou quando sim-
plesmente a olho. [...] Minhas duas mãos são “co-presentes” ou
“coexistem” porque são as mãos de um único corpo: o outro apa-
rece por extensão dessa co-presença , ele e eu somos como que os
órgãos de uma única intercorporalidade (MERLEAU-PONTY,
1991, p. 183-186, grifo nosso).

A co-presença entre a ação e a percepção desta mesma ação


num único corpo faz com que não haja uma “relação em sentido
único daquele que sente com aquilo que sente: a relação inverte-
-se, a mão tocada torna-se tocante, e sou obrigado a dizer que
o tato está espalhado em meu corpo, que o corpo é ‘coisa que
sente’” (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 184). Essa espécie de re-
flexão através do corpo também se manifesta, como nos atenta
Merleau-Ponty, com o simples olhar, o que coloca a visão numa
dimensão táctil (como veremos logo à frente). Sendo assim, para
além da reciprocidade das sensações, o que o filósofo chama de
intercorporalidade tem a faculdade de reformular nossa concep-
ção sobre a percepção. Esta deixa de ser fruto de um estímulo,
dentro de uma sequência lógica que parte da ação e termina com
a percepção desta mesma ação, e passa a compor um outro tipo
de tempo, uma duração não linear, onde passado e futuro coabi-
tam em um só toque. Para compreendermos um pouco mais os
liames desses nossos caminhos, voltemos brevemente ao nosso
poeta, Paul Valéry. Para ele, a dança seria uma evidência plástica
do tempo desenhado nos corpos em movimento configurando-se
em “uma forma de tempo” (nos mesmos moldes em que Merleau-
-Ponty pensa o cinema), uma “criação de um certo tipo de tempo,
de um tipo completamente distinto e singular” (VALÉRY, 2015, p.
8). Não estariam as palavras do poeta nos trazendo a visibilidade
da duração inscrita nos corpos?

Precisamos nos habituar a pensar que todo visível é talhado no


tangível, todo ser tátil prometido de certo modo à visibilidade,

176
e que há invasão, encavalgamento, não apenas entre o tocado e
quem toca, mas também entre o tangível e o visível que está in-
crustado nele [...]. Toda visão efetua-se algures no espaço tátil
(MERLEAU-PONTY apud DIDI-HUBERMAN 2010 p. 31)

Relembrando que para o poeta o prazer de dançar irradia


o prazer de ver dançar, podemos agora sentir com maior clareza
sua afirmação, pois ao assistirmos a dança, ela literalmente nos
toca e o outro (o ser que dança) “aparece por extensão dessa co-
-presença, ele e eu somos como que os órgãos de uma única inter-
corporalidade” (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 186). Deste modo,
enquanto Merleau-Ponty nos mostra a natureza táctil da visão e
suas dobras no tempo, Valéry, ao pensar nesse tempo singular que
configura a dança, olha para os “membros compondo, decompon-
do e recompondo as suas figuras” (VALÉRY, 2012, p. 30) numa
espécie de ornamento da duração que, ao estender-se nos ritmos
e repetições de seu próprio corpo, na coreografia que executa
com outros corpos e sua reverberação nos corpos que assistem,
são criados os ornamentos de extensão, algo muito próximo ao
que Merleau-Ponty descreve como intercorporalidade. A dança,
a nosso ver, encarna essa outra forma de tempo na sua evidência
plástica e, no desejo de trazer visibilidade a esse tempo encrustado
nos corpos que dançam, escolhemos dois cineastas que criam di-
ferentes maneiras de expressar a extensão e a duração dos (e nos)
corpos em movimento.

Pas de deux (1968), de Norman McLAren (fonte: montagem feita pela autora a partir de
fotogramas do filme)

17 7
Acima vemos alguns fotogramas do curta-metragem de Nor-
man McLaren (1914-1987), Pas de deux (1968) (figura 4), produ-
zido pelo National Film Board do Canadá onde Margaret Mercier
dança com imagens de si mesma antes de se unir a Vincent Warren
numa coreografia de Ludmilla Chiriaeff. Em seus 13 minutos e
pouco, vemos a composição, decomposição e recomposição dos
membros de um único corpo que, ao expandir-se, funde-se com
o outro, tornando-se uno no desenho do movimento e na plástica
de sua duração. A dança é acolhida pela câmera que transforma o
movimento em camadas do tempo, onde a reverberação dos cor-
pos inscreve-se na na película. Deste modo, somos convidados a
participar do eco desses corpos, a tocá-los com os olhos, com nos-
so próprio corpo movido pelo prazer de ver o enlace do tempo na
dança. Ou, nas palavras de Maya Deren (1917-1961)13 (que fazem
coro às de Merleau-Ponty e Valéry): “A ação criativa no filme [...]
ocorre em sua dimensão temporal; e por esta razão o cinema, mui-
to embora composto por imagens espaciais, é basicamente uma
forma de tempo.” (DEREN, 2012, p. 145). Talvez esse seja um
atributo da imagem, de todas as imagens: “a imagem não é o cam-
po de um saber fechado. É um campo turbilhonante e centrífugo.
Talvez nem sequer seja um “campo do saber” como outros. É um
movimento que requer todas as dimensões antropológicas de ser
no tempo (DIDI-HUBERMAN in MICHAUD, 2013, p. 21, grifo
nosso).
Sem dúvidas que a natureza da imagem é vasta e escapa a
delimitações de um único campo do saber. O fato dela parecer fu-
gir a qualquer tipo de cerceamento, nos diz muito sobre sua sorte
da qual emana um constante movimento. A imagem do cinema,
por sua vez, através de suas diversas técnicas, pode nos colocar em
contato com aquilo que os olhos não chegam a conceber, abrindo
outros modos de percepção e afecção, outras dimensões de ser no
tempo (como nos diz Didi-Huberman).

13 Cineasta estadunidense cujo trabalho está intimamente ligado à dança.

178
Unfolding (2002), de Egbert Mittelstädt (fonte: montagem feita pela autora a partir de
fotogramas da obra)

A obra de Egbert Mittelstädt (1963-), Unfolding (2002)14,


como o próprio nome sugere, se concentra em dar visibilidade a
essas dobras do tempo. A nosso ver, o trabalho de Mittelstädt
(figura 5) corporifica a lacuna temporal inacessível à nossa per-
cepção visual e cuja vibração acreditamos ser sentida por nossas
moléculas. Filmado em split-scan15, vemos em seu curto vídeo
uma mulher (não creditada) mergulhar em sua própria figura di-
latada no tempo. O corpo que dança parece fundir-se à própria
matéria do vídeo e devido a isso presenciamos o prolongamento
não apenas do tempo, mas da carne deste corpo espichado, der-
retido, liberto das amarras de sua própria figura. Unfolding nos
faz imergir na natureza do tempo e a partir de nossa permanên-
cia distendida nesta camada habitualmente intangível, as imagens
parecem desenredar as tramas dos ornamentos de duração, tal
qual propostos por Valéry. Aqui não estamos mais diante de uma
decomposição e recomposição de membros e sim de sua própria
dissolução, como se movimento e tempo se unissem em uma outra
dimensão, quiçá, a mesma onde a imagem faz sua morada.
Para concluir, salientamos que tanto em Pas de deux quan-
to em Unfolding podemos testemunhar, com nossos corpos, que

14 Disponível em http://www.atelier-fuer-medienprojekte.de/video.html, último acesso


em maio 2020.
15 Para um maior aprofundamento sobre a técnica e seus exemplos na história da fotogra-
fia e do cinema sugerimos o sítio Flong, disponível em http://www.flong.com/texts/lists/
slit_scan/, último acesso em maio de 2020.

179
“de todas as artes, a dança se revela a mais material e também
a mais abstrata. Ela soluciona a antítese da carne e do espírito;
este é seu milagre”16 (LEVINSON, 1927, tradução nossa). No
percurso que passa pela fantasmata - proposta por Domenico
de Piacenza, ainda no século XV, como um lugar da dança que
está fora do corpo e se apresenta como imagem através de sua
pausa dinâmica-, e culmina no desenrolar dos corpos em dan-
ça encarnados nos corpos dos próprios filmes aqui enunciados,
pudemos aproximar as naturezas da dança e da imagem, mais
particularmente da imagem cinematográfica, como expressões
que têm como matéria-prima o próprio tempo inscrito no corpo
que se move, se transforma e se consome. Um corpo que, mesmo
múltiplo, se torna uno na co-presença de outros corpos e do tem-
po expandido pelo cinema.

REFERÊNCIAS

• AGAMBEN, G. “Creación de un lugar donde el baile pue-


de ocurrir” in Flamenco, un arte popular moderno. Sevilla:
2004.
• AGAMBEN, G. Ninfas. São Paulo: Editora Hedra, 2012. Co-
leção Bienal.
• AGOSTINHO, H. Confissões. Petrópolis: Vozes, 2011.
• BATESON, G. Mind and Nature: a necessary unity. Cres-
skill: Hampton Press, 2002.
• BENJAMIN, W. The Arcade Project. Cambridge: Harvard
University Press, 2002. (edição brasileira: Passagens. Belo
Horizonte/São Paulo: Editora UFMG/Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2006).

16 Original francês: “De tous les arts, la danse se révèle le plus matériel mais aussi le plus
abstrait. Elle résout l’antithèse de la chair et de l’esprit ; c’est là son miracle”.

180
• BERGSON, H. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação
do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
• DIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: história da
arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2013.
• EPSTEIN, J. La inteligencia de una máquina - una filosofía
del cine. Buenos Aires: Cactus, 2015.
• FERNÁNDEZ, Zoa Alonso. “Vocabulario latino de la danza
en los tratados del Quattrocento italiano: De arte saltandi et
choreas ducendi y De pratica seu arte tripudii vulgare opus-
culum” in ActaLauris, n.1, 2013, p. 37-56.
• LEVINSON, A. I. Paul Valéry: philosophe de la danse. Paris:
La tour d’ivoire, 1927 (Les Cahiers Valéry/exemplaire no. 458).
• MAREY, E. Le Mouvement. Paris: G. Masson, 1894.
• MERLEAU-PONTY, M. Signos. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
• MERLEAU-PONTY, M. Le cinéma et la nouvelle psycholo-
gie: dossier. Paris: Gallimard, 2009.
• MERLEAU-PONTY, M. O Visível e o Invisível. São Paulo:
Perspectiva, 2012.
• MICHAUD, P. Aby Warburg e a imagem em movimento.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
• OMAR, A. “Foto-Gnose” in A Antropologia da Face Glorio-
sa. São Paulo: Cosac & Naify, 1997.
• ROUCH, J. “The camera and man”. In: FELD, S. Ciné-Eth-
nography: Jean Rouch. Minneapolis: University of Minneso-
ta Press, 2003. p. 29-46.
• ROUCH, J.; YAKIR, D. “Cine-Trance: the vision of Jean
Rouch” in Film Quaterly, Oakland, XXI, n. 3, primavera
1978, p. 29-46.
• SCANSANI, A. C. “A dança dos fotogramas: o corpo da imagem
em Decasia” in Imagofagia, Buenos Aires, 14, outubro 2016.
• SCANSANI, A.C., “Tempo e cinema: um diálogo entre Aby
Warburg e Bill Morrison in Revista Famecos, v. 26, n. 2,
2019 (no prelo).

181
• VALÉRY, P. “L’âme et la danse” in La revue musicale, de-
zembro 1921.
• VALÉRY, P. Degas dança desenho. Cosac Naify, 2012. (ori-
ginal francês: 1938).
• VALÉRY, P. Philosophie de la danse. Paris: Éditions Allia,
2015.
• WALL-ROMANA, Christophe (org). Jean Epstein: Corpo-
real Cinema and Film Philosophy. Manchester University
Press, 2016.
• WERTHEIMER, M. “Experimental Studies on Seeing of
Motion” in: On Perceived Motion and Figural Organization.
Cambridge: MIT Press, 2012.

182
183
CRISTIANO PRIM é especializado em retratar o
movimento evidenciado na dança de Santa Cata-
rina, com uma trajetória profissional de mais de
20 anos na cidade de Florianópolis. Seu trabalho
representa uma oportunidade de conhecimento
e interrogação acerca da dança, apontando
questões poéticas, históricas, sociais, políticas,
tecnológicas e econômicas, vislumbradas em
suas imagens. Realizou a exposição autoral O
Fotógrafo também Dança, veiculada no Floripa
Shopping (2017) e na Galeria Municipal de Arte
Pedro Paulo Vecchietti (2016), em Florianópolis
(SC). Fotógrafo do teatro Ballhaus Naunyns-
traße em Berlim/Alemanha (2016). Fotografou o
Grupo Cena 11, Eduardo Fukushima e Michelle
Moura no evento The Sky Is Already Falling –
HAU, em Berlim e Düsseldorf. Integrante do
Grupo Cena 11 Cia. de Dança como fotógrafo
e cenotécnico (1995-2014), atualmente realiza
trabalhos de foto e vídeo para o grupo. Fotógra-
fo das principais escolas de dança de Florianó-
polis, como Arte.Dança, Bia Vilela e Garagem
da Dança. Fotógrafo de shows nacionais como
Elza Soares, João Bosco, Ney Matogrosso, Pau-
linho Moska, Ivete Sangalo, Arnaldo Antunes e
o uruguaio Jorge Drexler. Fotógrafo de festivais,
como o Festival Internacional de Música Con-
temporânea, Fita Floripa, Múltipla Dança, Baila
Floripa, Palco Giratório e Floripa TAP. Coorde-
nador da equipe fotográfica responsável pela co-
bertura da Maratona Cultural de Florianópolis.
Licenciado em Educação Artística pela Udesc.
CRISTIANOPRIM.COM.BR

18 4
MÚLTIPLAS
IMAGENS
Cristiano Prim

(1)

(1) Solidão Pública


Adilso Machado (Florianópolis/SC)
Edição 2014

185
(2)

(3)
(2) Sobre Expectativas e
Promessas
Grupo Cena 11 Cia. de Dança
(Florianópolis/SC)
Edição 2014

(3) Möbius
Aplysia Grupo de Dança
(Florianópolis/SC)
Edição 2007

(4) Clandestino
Ângelo Madureira e Ana
Catarina (São Paulo/SP)
(4)
Edição 2006

187
(5)

(6)
(7)

(5) Guia de ideias correlatas


Grupo Cena 11 Cia. de Dança
(Florianópolis/SC)
Edição 2009

(6) Protocolo Elefante


Grupo Cena 11 Cia. de Dança
(Florianópolis/SC)
Edição 2017

(7) Rétrospective
Cie à fleur de peau
(Paris/França)
Edição 2007

189
(8)

(9)

190
(10)

(8) Dança contemporânea


em domicílio
Claudia Müller
(Rio de Janeiro/RJ)
Edição 2007

(9) O passar em branco:


poemas urbanos
Daggi Dornelles
(Porto Alegre/RS)
Edição 2007

(10) Tudo que se espera...


Cia Clébio Oliveira
(Rio de Janeiro/RJ)
Edição 2008

(11) Deslimites
Clara Trigo (Salvador/BA)
Edição 2007 (11)

191
(12)

(13)

192
(14)

(12) Entrelace
Teatro Xirê
(Rio de Janeiro/RJ)
Edição 2013

(13) “ninhos” - performance para


grandes pequenos
Balangandança Cia.
(São Paulo/SP)
Edição 2014

(14) Finita
Denise Stutz (Rio de Janeiro/RJ)
Edição 2014

193
(15)

(16)

(15) Direção Múltipla


Daniela Alves (Florianópolis/SC)
Edição 2015

(16) Solução para todos os problemas do mundo


Couve Flor Minicomunidade Artística Mundial (Curitiba/PR)
Edição 2007

194
(17)

(17) Nós
Erika Rosendo (Joinville/SC)
Edição 2013

195
(18)

(19)
(20)

[18] O Tempo do Meio


Esther Weitzman
Companhia de Dança
(Rio de Janeiro/RJ)
Edição 2014

[19] Homem Torto


Eduardo Fukushima
(São Paulo/SP)
Edição 2015

[20] Vistas I + II
Florencia Olivieri
(La Plata/Argentina)
Edição 2007 (21)

[21] Um banho de água fria


Siedler Cia. de Dança
(Florianópolis/SC)
Edição 2013

197
(22)

(23)

198
(24)

[22] Proibido Elefantes


Gira Dança (Natal/RN)
Edição 2013

[23] Ensaio para Algo


que Não Sabemos –
Protótipo 1: construção
Daniela Alves e Karina Collaço
(Florianópolis/SC)
Edição 2017

[24] O Jogo das Perguntas


Fernanda Eugénio (Brasil) e
João Fiadeiro (Portugal)
Edição 2013
(25)

[25] Guia Improvável para


Corpos Mutantes
(Porto Alegre/RS)
Edição 2015

199
(26)

(27)

200
(28)

[26] Experiência 4
Key Sawao (São Paulo/SP)
Edição 2017

[27] Convite ao olhar


Cia. de Dança Lápis de Seda
(Florianópolis/SC)
Edição 2017

[28] Para Todos os Seguintes


Key Zetta e Cia.
(São Paulo/SP)
Edição 2017

[29] O corpo é a mídia da


dança? Outras partes
Vanilton Lakka
(Uberlândia/MG)
Edição 2010
(29)

201
(30)

[30] Meu Prazer


Marcia Milhazes Cia. de Dança (Rio de Janeiro/RJ)
Edição 2009

202
(31)

(32)

[31] Werwolf [32] Experimento portátil, uma ação sob encomenda


Marcos Klann (Florianópolis/SC) Companhia Flutuante (SP)
Edição 2013 Edição 2010

203
(33)

(3 4)

204
(35)

[33] Quinteto
Staccato (Rio de Janeiro/RJ)
Edição 2009

[34] Rinha
Entropia Experiências
Artísticas (Florianópolis/SC)
Edição 2017

[35] Perception of the other


Siedler Cia. de Dança e
Stormental
(Florianópolis/SC)
Edição 2008

[36] O fio das miçangas


Otávio Bastos (Recife/PE)
Edição 2013

(36)

205
(37)

(38)

[37] Estratégia [38] A Última Estrada


Ronda Grupo (Florianópolis/SC) Cia. Soma (São Paulo/SP)
Edição 2013 Edição 2015

206
(39)

[39] Vi-vidas
Sônia Mota (Brasil|Alemanha)
Edição 2008

207
(40)

(41)
(42)
[40] Céu na Boca
Quasar Cia. de Dança
(Goiânia/GO)
Edição 2010

[41] Confluir
Thembi Rosa
(Belo Horizonte/MG)
Edição 2007

[42] Receita
Rui Moreira
(Belo Horizonte/MG)
Edição 2007

209
THEMBI ROSA é artista, pesquisadora e pro-
dutora. Doutora em Artes na linha de pes-
quisa Poéticas Tecnológicas da Escola de Be-
las Artes da UFMG (PROEX/CAPES), com
orientação do Prof. Dr. Carlos Falci. Mes-
tre em Dança pelo PPG-Dança da UFBA
(2010); graduada em Letras pela FALE |
UFMG (2002). Integra o Dança Multiplex e
a CasaManga. Produziu o Motion Bank Lab
Brasil (2019), o CCL7 (2016), ambos com Scott
deLahunta; o Interferencias Brasil (2013), resi-
dência da Alma Quintana; dentre outras. Seus
trabalhos são apresentados em festivais de dan-
ça no Brasil, Sesc, File, Inhotim, participou de
residências em Portugal, Viena, Bruxelas, Mé-
xico, Uruguai e Portugal. Foi contemplada pe-
los editais Rumos Dança, Funarte, Filme Mi-
nas e Cena Minas.
THEMBIROSA@GMAIL.COM
WWW.DANCAMULTIPLEX.COM.BR

210
PAR ÂMETROS EM MOVIMENTO . 2.0.1.6 _
Thembi Rosa

um começo
uma imagem
um gesto
um som
um espaço
um fluxo
um estado
uma continuidade daquilo que vem sendo feito

A
juntamento . confluir . regra de dois . verdades inventadas
. dança: modos de estar princípios organizativos do mo-
vimento . lugar I . parâmetros em movimento . jam mul-
tiplex . 1331” . escada adentro . cada começo é só continuação
. perceptrum . parquear . parquear bando . jazz_tracker . dese-
nhador_tracker . kubrickianas . dança: arquivos como invenções
corpo dança memória tecnologia

em novembro de 2016, apresentei no festival internacional de


dança, fid, em belo horizonte, uma demonstração de alguns dos meus
trabalhos, e para isso selecionei algumas ações e princípios de movi-
mentos que o público pudesse experienciar ao longo da conversa.

no início, foram os bambus, dispositivo de desaceleração que


estamos usando desde 2011, com a intervenção urbana, parquear1.

1 Parquear – trabalho de intervenção urbana com Margô Assis, Renata Ferreira, Thembi
Rosa e Kênia Dias contemplado na carteira infantil pelo Rumos Dança Itaú Cultural (2012).
Posteriormente, integraram o Parquear Heloisa Domingues e Dorothé Depeauw, e em

211
começamos no jardim do palácio das artes, na entrada da sala ju-
venal dias em cuja palestra anterior, a pesquisadora tereza rocha
havia acabado de fazer a sua fala em diálogo com a “sobrevivência
dos vagalumes”2 , livro de didi huberman, que lança luz ao peso
sombrio da noção da expropriação da experiência, tema também
debatido no livro “infância e história”3, de giorgio agamben.

para começar, ainda não tinha a certeza se iniciaria ou ter-


minaria com a prática dos bambus, eles estavam à mão, ao lado
da entrada do teatro, onde tem um jardim interligado ao parque
municipal de belo horizonte, que naquela mesma tarde acabara de
acontecer a passagem de som do show do ney matogrosso. estáva-
mos ao lado do festival sarará com a presença de ney, criolo, tulipa
ruiz, dentro outros ícones da mpb. os bambus e o show - ainda
não sabia bem como conjugar as duas experiências. pois os bam-
bus, sugerem o silêncio, a dilatação do tempo, a contemplação,
o desafio de enraizar-se, e mantermos o equilíbrio do bambu na
cabeça, à escuta do corpo, do espaço. todavia, do outro lado, bem
próximo, estava a euforia, a efervescência do festival de música
dentro do parque, separando-nos apenas por uma grade de ferro.
ainda reverberava-se o fervor do momento político em pleno no-

2015, no FID – BH tivemos a estreia do Parquear Bando, com direção de Margô Assis e
Thembi Rosa e com até 20 participantes mediante inscrição.
2 A experiência estaria para o saber assim como uma dança na noite profunda está para uma
estase na luz imóvel. Ora, na noite, nem o olhar nem o desejo cessam, capazes de aí encontrar
lampejos inesperados: o sujeito da experiência, afirma Bataille, [...] é um espectador, são olhos
que procuram o foco, ou pelo menos, nessa operação, a existência espectadora se condensa nos
olhos. Esse caráter não acaba se a noite cai. O que se encontra, então, na escuridão profunda é
um áspero desejo de ver, quando diante desse desejo, tudo escapa. Mas o desejo da existência
assim dissipada na noite recai sobre um objeto de êxtase. (BATAILLE (1973) Apud DIDI-HU-
BERMAN, 2011, p. 144)
3 Porém, nós hoje sabemos que, para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de
modo algum necessária, e que a pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é, para
esse fim, perfeitamente suficiente. (AGAMBEN, 2005, p. 21)

212
vembro de 2016, após o impeachment da presidente dilma roussef,
ouvia-se um gigante #foratemer, ecoando e reverberando por vá-
rios lugares de resistência no país, e inclusive, ali, no parque.

concatenando com a fala anterior da tereza, relacionando


com questões acerca da experiência, além da sua ação proposta ao
público na qual sugeria um caminhar pelo palco com a interferên-
cia dos movimentos de bolas de gude lançadas ao chão. situação
que instigava outros modos de lidarmos com o chão, com o equilí-
brio, com a nossa percepção do caminhar, ou seja, pisávamos com
obstáculos moventes... tanto a sua fala, como esse despertar para
à atenção ao corpo, também ancoradas às referências suscitadas
por tereza em relação ao trabalho do klauss vianna ressaltando as
observações referente aos pés, as espirais, e a coluna vertebral, fez
com que me parecesse urgente a experimentação com os bambus.
era parte de um fluxo, estava em um nexo de histórias de vida, de
dança, nas quais as ações do parquear bando pareciam emergir
como um chamado, um acontecimento para aquele instante. os
bambus já estavam ali, na porta da entrada da sala juvenal dias,
em frente ao jardim. ultimamente, prefiro as ações do lado de fora
da caixa preta, ao ar livre. assim, começamos com essa ação pro-
posta no fid-bh 2016 enquanto no parque tocava um reggae mixa-
do ao burburinho da entrada para os shows, havia o lançamento
do livro da tereza rocha, “o que é dança contemporânea”, além do
fórum doc, festival de cinema na sala humberto mauro, que não
fica distante do jardim. ou seja, uma simultaneidade de aconteci-
mentos naquele instante em que dávamos início as partituras e as
experimentações com os bambus.

213
parquear bando (margô assis, thembi rosa e convidados) foto: guto muniz

esse relato surge como testemunha, tentativa de descrever


escolhas, sensações e impressões do processo de criação, da com-
posição da versão parâmetros em movimento 2.0.1.6, realizada no
fid no dia 19 de novembro de 2016 na sala juvenal dias.

na primeira parte, realizada com os bambus na área externa


estabelecemos uma relação direta com as tomadas de decisões no
instante. na estrutura do parquear bando4 , assim como em demais
ações de intervenções urbanas, costumamos lidar constantemente
com o acaso, com as instabilidades, as variações de cada espaço
público, àquilo que acontece a cada dia, a cada momento. são re-
lações singulares nas quais a composição no instante, à escuta do
próprio corpo, dos outros, do espaço são os principais elementos

4 Parquear Bando _ registro dos workshop e entrevista sobre a partitura e intervenção


urbana Parquear Bando no Motion Bank Lab Brasil, realizado em parceria com Scott de-
Lahunta no Sesc Palladium em Maio de 2019. Motion Bank Lab Brazil. Disponível em:
<http://www.sdela.dds.nl/motionbank/brazillab2019/> Acesso em: 25 fev. 2020.

214
para a criação e improvisação. ainda que haja uma estrutura de
improvisação pré-definida.

os outros, o espaço, o tempo, a multiplicidade de interações


simultâneas, o percurso, as mudanças, o fluxo dos transeuntes,
todos esses elementos dialogam e instigam uma partitura que pre-
cisa manter-se flexível e rearranjar-se a cada instante. a vontade
de conseguir manter o bambu em equilíbrio no topo da cabeça e
caminhar, boa parte da partitura é dedicada a essa ação. há tam-
bém a sua impossibilidade, o bambu sempre cai e emergem outros
desejos de composição, outras relações despontam ao longo do
percurso, inclusive situações involuntárias que demandam por de-
cisões no momento. por mais que tenhamos estabelecido uma par-
titura inicial, ela sempre será atravessada por novas geometrias,
fluxos, trajetórias, relações, equilíbrios, instabilidade, desacelera-
ção, enraizamento, observação, composição, arquitetura, chuva,
sol, luzes, sombras só para citar alguns dos elementos imbricados
em parquear.

o início dos encontros para parquear foram em 2011, no


parque das mangabeiras, uma pequena floresta dentro da cidade,
foi onde escolhemos para trabalhar instigadas por alguns mate-
riais disponíveis no parque, dentre eles, o bambu. estar naque-
le tempo, navegar por ele, por seus hábitos e habitantes, e desse
modo surgiu a relação com os bambus, caminhando pelos bam-
buzais no parque, criando trajetórias, traçando desenhos na areia,
pescando sombras com tecidos, e em interação com as crianças
e frequentadores do parque. foram várias manhãs de sexta-feira
parqueando. deslocamos a verticalidade dos bambus plantados
na terra em direção ao céu, para a sua horizontalidade, agora,
equilibrados no topo da cabeça, solicitando ao corpo um ater-
rar, enraizar, a cabeça empurrando o topo, com leveza e com os
pensamentos mais soltos. firmeza e flexibilidade para caminhar
com o bambu na horizontal. palavra, hoje, que denota posição de
insurgência política, modo, método, modelo de gestão, ainda que,

215
nem sempre, seja bem assim. tentativas de se estabelecer outras co-
nectividades e apropriações dos nossos espaços públicos, dos nos-
sos modos relacionais, de apontarmos e estarmos produzindo arte
independente de sistemas fortemente estabelecidos de arte. princi-
palmente, na rua, nos espaços públicos das cidades, transeuntes e
performer ampliam a chance em mesclarem-se, o ambiente sempre
interfere nas nossas ações e as nossas ações são também acopladas
e atuam como ignições para modificações dos ambientes nos quais
estamos e dos quais somos parte.

diferente da caixa preta, do cubo branco, as ruas, praças,


parques são lugares comuns e específicos para cada um, pleno de
memórias, histórias, permeáveis e em constante construção.

poder estar em qualquer lugar, relacionar-se com qualquer


pessoa, e não apenas com um público específico de dança, de arte
tem sido instigante nas experiências em parquear por diversas ci-
dades e países. alguém que possa ter ido para ver a intervenção
urbana; ou aqueles que estejam passando ao acaso e surpreen-
dem-se, ou simplesmente ignoraram. isto não importa; interagir
ou não é uma escolha, algumas pessoas simplesmente passam pela
intervenção quase sem se aterem. tal reação é também instigante e
coloca em questão o recorrente narcisismo vigente na dança. como
é dançar e não ser visto? a chance de sermos ignoradas nas mais
diversas esferas, tal como, ao aplicarmos uma, duas, três vezes
para editais de manutenção, circulação, e não sermos aprovadas
e, ainda assim, continuarmos. não ter verba para manutenção,
ensaios, e às vezes, nem para apresentar e dar oficinas, mas se-
guirmos fazendo por necessidade maior de mover, trocar, tocar
outros corpos e ocupar espaços onde sabemos que precisamos de
mais movimento. não abandonar as proposições e sentir o modo
como tais ações acabam por ressoar nos encontros, facilitando o
eixo, desanuviando pensamentos, promovendo novas circulações
nos nossos fazeres, e nas vias públicas das cidades. ao escrever
e tentar fixar em texto algumas dessas sensações pode soar um

216
tanto quanto romântico algo que, por muitas vezes, é também in-
dignação e frustração. faz parte da performance não dar certo,
não cumprir às expectativas, ser um fracasso, não conectar-se com
nada, nem com quase ninguém. ainda que seja um dos trabalhos
mais vivos e atuantes com os quais estou envolvida desde 2011.

Em última instância, os artistas dedicam-se à sua profissão não


com o intuito de contar alguma coisa a alguém, mas como uma
afirmação da sua vontade de servir as pessoas. Fico chocado com
artistas que supõem que criam livremente a si mesmos, que su-
põem que isso seja realmente possível; pois cabe ao artista aceitar
que ele é criação do seu tempo e das pessoas em meio às quais
vive. Como disse Pasternak:

Alerta, artista, alerta,


Não te entregues ao sono...
És refém da eternidade
E prisioneiro do tempo.

E estou convencido de que, se um artista consegue realizar algu-


ma coisa, isso só acontece porque é disso que os outros precisam
– mesmo que não saibam naquele momento. E assim, a vitória é
sempre do público, é ele quem ganha alguma coisa, enquanto o
artista perde, e paga.

Não posso imaginar minha vida de tal forma livre que me fos-
se dado fazer qualquer coisa que eu quisesse; tenho de fazer
o que parece importante e necessário nas condições dadas.
Além do mais, a comunicação com o público só é possível se
ignorarmos os oitenta por cento de pessoas que, por algum
motivo, acham que nossa função é diverti-las. (TARKOVSKI:
1998, p. 218-219)

eterno retorno é o nome da mostra do cineasta russo andrei


tarkovski realizada em janeiro de 2017, em belo horizonte, no cine

217
humberto mauro, reunindo os seus sete filmes, além de várias re-
ferências que dialogam com a sua filmografia.

rever, reatar-me com a sua obra foi tão impactante naquele


momento que fez reacender questionamentos sobre por que, como,
e para quem fazemos arte. talvez explicite um perguntar-se sobre
por que continuar, ou a busca por buscar sempre de novo, citando
uma das premissas que está em seu livro Esculpir o Tempo.

continuar e buscar sempre e de novo, de novo, e de novo.


até poder ver ou desaparecer. ainda sem saber por que continuar...
buscarei expandir essas questões compartilhando algumas
das partituras e imagens relacionadas a busca por ver, mover,
mover com algo novo, em comum, elas redimem a importância
do foco no performer, espraiam o movimento em outras mídias.
aqui está um divagar nas relações, nas mediações e nos rastros e
vestígios que uma dança, uma experiência podem gerar. são par-
tituras, ideias, mapas, princípios organizativos de movimentos
que estiveram presentes em alguns dos meus processos de criação
com o dança multiplex, com o grivo, com a instalação parâmetros
em movimento, e certamente em tantas outras experiências que
sempre ao tentarmos nomear, listar, serão sempre deslizantes. por
isso proponho algumas imagens, partituras a fim de se mantenha
alguns destes arquivos vivos, dinamizá-los. ou seja, sugestões a
serem colocadas em movimento.

218
essa primeira imagem foi uma partitura inicial para o de-
senvolvimento do software desenhador_tracker utilizado nas per-
formances cada começo é só continuação realizada com o dança
multiplex, e na performance perceptrum5, desenvolvida com ma-
nuel guerra, matemático e artista digital, o grivo, lucas sander e
dorothé depeauw, projeto contemplado pelo rumos itaú cultural
dança 2012-2104.

o mapa do jazz surgiu quase como sonho, ainda bem antes


de saber como poderia ser realizado com dispositivos e interfaces
digitais. nesse período trabalhávamos com câmeras e kinects para
capturas de movimentos, e com o desenvolvimento softwares para
interações entre sons, imagens e movimentos. a intenção era que

5 O Registro da performance Perceptrum está disponível em: <http://cargocollective.com/


multiplex/filter/thembi/Perceptrum-2013-1> Acesso em: 20 fev. 2020.

219
todo o movimento gerado na área mapeada pelas câmeras pudes-
sem gerar e interferir nas sonoridades. assim, decidimos gravar
alguns sons de sopro, bateria, harpa de piano e baixo formando e
um banco de dados sonoro que interagia com a movimentação nas
áreas em que esses sons eram acionados a partir dos movimentos.
a ideia de uma banda de jazz; de modo a improvisarmos com es-
truturas de sons e movimentos. a vontade de trabalhar com o jazz
vem também da origem do meu nome, pois thembi é o nome de
um disco e de uma música de jazz do compositor e músico esta-
dunidense pharoa sanders. é também o nome da sua companheira
para quem ele dedicou o disco e a música. em dialeto africano
thembi é uma abreviação de nomathemba que significa esperança,
fé e amor. sempre ouvi essa música e quis experimentar um pro-
cesso de criação mediado pela tecnologia no qual pudéssemos ter
uma interação mais estreita entre dança e sons. tivemos algumas
versões de performances utilizando o software jazz_tracker; a pri-
meira delas com o dança multiplex6 com cinco dançarinas e sem a
projeção do mapeamento sonoro; perceptrum7, com duas dançari-
nas e o grivo tocando ao vivo bateria, violão e sopro; e outra ver-
são parâmetros em movimento8 e desenhador_tracker apenas com
uma dançarina, um músico e a projeção sendo desenhada ao vivo,
determinando as áreas selecionadas onde os sons são disparados.

antecedeu aos projetos citados o 1331”9 (2012), primeiro


trabalho no qual dediquei-me às relações com dispositivos e cria-
ções de softwares, realizada por manuel guerra; esta pesquisa, por
sua vez, ampliava todo um campo sonoro, que no solo anterior,

6 Cada começo é só continuação _<https://cargocollective.com/multiplex/Cada-comeco-e-


-so-continuacao-2013>
7 Perceptrum _<https://cargocollective.com/multiplex/Perceptrum-2013-1>
8 Parâmetros em Movimento _<https://vimeo.com/109379352>
9 1331” _ < https://vimeo.com/51821197>

2 20
verdades inventadas10 (2008-2011) a interação entre sons e mo-
vimentos centrava-se ao som produzido de um modo mecânico,
analógico, apenas pela fricção do movimento do corpo, da distri-
buição do peso em contato com as tábuas de pinus e os seus meca-
nismos sonoros atrelados na parte debaixo das tábuas.

verdades inventadas. foto: renato paschoaleto

ao findar as performances com o verdades inventadas e ex-


pandir e complexificar as relações entre sons e movimentos, pas-
sando, então, a ser gerado pelo mapeamento de todo o corpo, pela
definição de diversos parâmetros de deslocamento, velocidade, e
outros, expandíamos a sensação de tocar por todo o espaço, mo-
dificando as frequências sonoras, alterando o volume dos sons,
provocando outros, dentre tantos efeitos sonoros possíveis de se-
rem feitos ao estreitarmos os envios de sinais midi interconectados
aos movimentos. a sensação de interagir com estes softwares e
sistemas de trackeamento traz como referência o theremin, instru-
mento que sempre me fascinou, cuja uma das vertentes das pesqui-
sas foi justamente com o therpistone, pesquisa de leon theremin,
e clara rockmore, uma das principais theremistas no início dessa
invenção. em 1932, ambos criaram uma plataforma com antenas

10 Verdades Inventadas _<https://vimeo.com/28834241>

2 21
que captavam os movimentos dos dançarinos e geravam os sons pelas
relações de proximidade e distâncias. (SANTANA, 2006, p. 118).

são mágicas as possibilidades de interações entre corpo,


som, movimentos e imagens, e os processos para o desenvolvimen-
to de tais projetos demandam por tempo, especificidades técnicas
e artísticas, além de financiamentos que permitam a viabilidade e
continuidade de tais investigações. portanto quase inviável seguir
adiante com tais projetos frente ao nosso atual panorama cultural
e educacional. são ferramentas que ao serem inventadas ativam
a nossa sensibilidade para a escuta, composição, e para o jogo.
são interfaces de conexões instigantes para as sensações corporais
e suas diversas interconexões com a virtualidade, com os dispo-
sitivos tecnológicos, a ubiquidade, a extensão da presença, além
de tantos outros elementos que referem-se diretamente ao nosso
modo atual de ser e agir no mundo. assim, investigar e aprofundar
com tais dispositivos implica em tocar sinestesicamente, encontrar
novos modos de agir e expandir potencialidades a serem instaura-
das. não apenas ser o usuário que desconhece a caixa preta, mas
adentrar-se nessa escuridão a fim de lançar novas luzes e experiên-
cias. pois, apesar de tudo, a expropriação da experiência não pode
ser normatizada, nem normalizada, ela é tédio e morte.

parâmetros em movimento. mis–sp. foto: letícia godoy

222
em 1331” assim como no jazz_tracker iniciamos com uma
partitura, uma proposta de aquecimento baseada no tempo e em
qualidades específicas de movimentos. em geral, para cada pesqui-
sa estabeleço um tipo de aquecimento que acaba por adentrar-se
nas performances. pode ser uma proposta nova ou uma conti-
nuidade relacionada às questões específicas em cada trabalho. ou,
simplesmente àquilo que sinto vontade de fazer, e seguir fazen-
do, a rotina de uma prática corporal que se dá ao longo de um
processo de criação. a partitura do 1331” foi uma proposta que
surgiu na residência que fizemos na bélgica, em 2012, com a cia
mangrove tentactille, a convite de dorothé depeauw e com a par-
ticipação do o grivo, e manuel guerra que, então, dedicava-se ao
desenvolvimento de um software para a interação entre dança,
som e imagem. a partitura era realizada com um cronômetro, que
estabelecia o tempo com as seguintes ações:

1331”

0 - 1” – Pausa
1” - 3” – Pêndulos - velocidade normal
3” - 4” – Pausa - mudanças de direções
4” - 6” – Movimentos rápidos – cortados
6” - 9” – Movimentos lentos - redondos
9” - 11” – Caminhadas - velocidade normal
11” - 12” – Movimentos rápidos - cabeça
12” - 13” – Movimentos lentos - quadril
13” - 13”31’ – Pausa

o título 1331” permaneceu por ser um palíndromo, uma su-


gestão da cia mangrove tentactille, que na época tinha um projeto
no qual os títulos dos trabalhos eram definidos por um site que
fornece várias opções de palíndromos, anagramas dentre outras
combinações formadas por jogos de palavras. !Co LAPse koDe,
foi uma residência artística do grupo da qual participei em belo
horizonte, no marginália, em 2011. o título da residência era uma

2 23
da variações da palavra kaleidoscopio, uma das combinações ge-
rada por esse site. pois, a cada etapa do projeto, decidiam estabe-
lecer um novo título baseado nesse sistema.

gráfico do software 1331” _ manuel guerra

com a prática de experimentações a partir dessa partitura,


manuel guerra propôs o software 1331” que pode ser visualizado
no gráfico acima e demonstra três dos cinco parâmetros de movi-
mento que atuam na interação com os sons, são eles:

1 – velocidade da área (expansão e contração do movimento do


corpo) _ linha verde
2 - velocidade centro (locomoção medida pelo centro do corpo) _
linha vermelha
3 – balance (número de pixels em determinada área do corpo) _ |
4 – posição x (deslocamento do corpo no eixo x) _não está de-
monstrado no gráfico
5 – posição y (deslocamento do corpo no eixo y) _ a sombra do
corpo em amarelo que amplia e diminui

em uma outra versão com o uso dessa partitura, porém sem


o software, fizemos quatro sessões de improvisação no sesc pinhei-
ros em são paulo, em 2012. na jam mulptiplex eu e renata ferrei-
ra improvisamos com o músico ricardo carioba, expandindo tais
proposições para a participação do público. havia uma projeção

2 24
com um timer com os tempos e as sugestões das movimentações. a
trilha sonora, utilizada nessas jams está disponibilizada online11.
https://soundcloud.com/user6378793/1331_partitura-jam-multi-
plex_ricardo-carioba-thembi-rosa

a última partitura trazida para esse ensaio faz parte do solo


verdades inventadas, realizado com o grivo na instalação alarm
floor de rivane neunschwander. nessa partitura temos um pulso
e uma sugestão de início de movimento por uma parte específica
do corpo, ao fim do texto segue a partitura e o link da gravação
sonora para quem quiser experimentar. https://soundcloud.com/
user6378793

em 2014, à convite de elisabete finger gravei com o marcos


moreira marcos do o grivo uma conversa para a série discoreogra-
fia, música, dança e blá blá blá12 , da rádio itaú cultural. dispo-
nibilizo o link como sugestão quem queira adentrar-se mais nos
processos de criação e nas relações musicais estabelecidas pelos
coreógrafos. inventar arquivos em dança, tocar na rádio, dançar
nas ruas são modos peculiares de estabelecer redes, mover os ar-
quivos, instigar publicações, promover encontros corpo a corpo, e
todas as demais ações que ressaltam os diversos modos de existir
em dança, e instigam situações a fim de impulsionar e criar novos
lampejos de continuidade.

11 Jam Multiplex com Renata Ferreira e Ricardo Carioba. Disponível em: < https://sou-
ndcloud.com/user6378793/1331_partitura-jam-multiplex_ricardo-carioba-thembi-rosa>
12 Discoreografia, música, dança e blá blá, blá. Programa 9 <http://www.itaucultural.org.
br/explore/canal/detalhe/discoreografia-musica-danca-e-bla-bla-bla-programa-9/>

2 25
Verdades Inventadas (2008) Princípios de movimento

números naturais

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9
(pausa) (olho) (ombro) (passo) (quadril) (joelhos) (braço) (eleve) (cabeça) (escápula)

1-0 1-1 1-2 1-3 1-4 1-5 1-6 1-7 1-8 1-9
(olho-pausa) (olho – olho) (olho-ombro) (olho-passo) (olho-quadril) (olho-joelhos) (olho-braço) (olho-eleve) (olho-cabeça) (olhoescápula)

2-0 2-1 2-2 2-3 2-4 2-5 2-6 2-7 2-8 2-9
(ombro-pausa) (ombro-olho) (ombro-ombro) (ombro-passo) (ombro-quadril) (ombro-joelhos) (ombro-braço) (ombro-eleve) (ombro-cabeça) (ombro-escápula)

3-0 3-1 3-2 3-3 3-4 3-5 3-6 3-7 3-8 3-9
(passo-pausa) (passo-olho) (passo-ombro) (passo-passo) (passo-quadril) (passo-joelhos) (passo-braço) (passo-eleve) (passo-cabeça) (passo-escápula)

4-0 4-1 4-2 4-3 4-4 4-5 4-6 4-7 4-8 4-9
(quadril-pausa) (quadril-olho) (quadril-ombro) (quadril-passo) (quadril-quadril)(quadril-joelhos) (quadril-braço) (quadril-eleve) (quadril-cabeça) (quadril-escápula)

2 26
5-0 5-1 5-2 5-3 5-4 5-5 5-6 5-7 5-8 5-9
(joelhos-pausa) ((joelhos-olho) (joelhos-ombro) (joelhos-passo) (joelhos-quadril) (joelhos-joelhos) (joelhos-braço) (joelhos-eleve) (joelhos-cabeça) (joelhosescápula)

6-0 6-1 6-2 6-3 6-4 6-5 6-6 6-7 6-8 6-9
(braço-pausa) (braço-olho) (braço-ombro) (braço-passo) (braço-quadril) (braço-joelhos) (braço-braço) (braço-quadril) (braço-cabeça) (braço-escápula)

7-0 7-1 7-2 7-3 7-4 7-5 7-6 7-7 7-8 7-9
(eleve-pausa) (eleve-olho) (eleve-ombro) (eleve-passo) (eleve-quadril) (eleve-joelhos) (eleve-braço) (eleve-quadril) (eleve-cabeça) (eleve-escápula)

8-0 8-1 8-2 8-3 8-4 8-5 8-6 8-7 8-8 8-9
(cabeça-pausa) (cabeça-olho) (cabeça-ombro)(cabeça-passo) (cabeça-quadril) (cabeça-joelhos) (cabeça-braço) (cabeça-eleve) (cabeça-cabeça) (cabeçaescapula

9-0 9-1 9-2 9-3 9-4 9-5 9-6 9-7 9-8 9-9
(escápulapausa)(escápulaolho) (escápulaombro)(escápulapasso)(escápulaquadril)(escápulajoelhos)(escápulaquadril)(escápulaeleve)(escápulacabeça)(escápulabis

1-0-0
(olho-pausa-pausa)
REFERÊNCIAS

• AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Destruição da ex-


periência e origem da história. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2012.
• DIDI-HUBERMAN, George. Sobrevivência dos vaga-lumes.
Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.
• SANTANA, Ivani. Dança na Cultura Digital. Salvador:
EDUFBA, 2006.
• TARKOVSKI. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes,
1998.

LINKS

• Partitura sonora 1331” _ Ricardo Carioba <https://sound-


cloud.com/user6378793/1331_partitura-jam-multiplex_ri-
cardo-carioba-thembi-rosa>
• Partitura sonora verdades inventadas_números naturais _ O
Grivo <https://soundcloud.com/user6378793/verdades-inven-
tadas_partitura_numeros-naturais>
• Discoreografia, música, dança e blá blá, blá. Programa 9 _
https://www.itaucultural.org.br/discoreografia-musica-dan-
ca-e-bla-bla-bla-programa-9
• Dança Multiplex https://cargocollective.com/multiplex
• Thembi Rosa Vimeo _ <https://vimeo.com/user8455027>
• Motion Bank Lab Brazil_<http://www.sdela.dds.nl/mo-
tionbank/brazillab2019/>

2 27
VANILTON LAKKA é doutorando em Artes Cê-
nicas no PPGAC-UFBA (Universidade Federal
da Bahia), professor na graduação de Dança
da UFU (Universidade Federal de Uberlândia),
mestre em Artes pelo PPGArtes-UFU e bacharel
em Ciências Sociais ambos pela UFU. Sua for-
mação é marcada pela vivência nos universos
da Dança de Rua e da Dança Contemporânea.
WWW.LAKKA.COM.BR

2 28
BLOCO DE NOTAS DE MONO-BLOCOS:
ANOTAÇÕES DE UM CORPO QUE FOI À RUA
EM BUSCA DA FRICÇÃO COM A CIDADE
Vanilton Lakka

M
ono-Blocos é resultante de uma reflexão que se iniciou
no momento em que foi necessário dançar na cidade,
rolar no piso duro, experimentar os volumes e texturas
da praça, negociar com a horizontalidade e com a verticalidade
do urbano. Negociar também as dimensões histórica, técnica, po-
lítica e social presentes no corpo de cada um, bem como verificar
as possibilidades de convivência e sobrevivência de um corpo na
interação com a arquitetura física e social das praças ocupadas em
festivais e programas artísticos. 
Abordo aqui a trajetória que me levou a refletir conceitual-
mente, e elaborar, na prática, a relação corpo-cidade-dança em
um período que vai de 2008,1 participando de festivais interes-
sados em ter em sua programação trabalhos de dança que acon-
tecessem na cidade, e já incorporavam reflexões sobre o fenôme-
no dança e cidade. Passa então pela defesa no PPGArtes-MG em
2011 da dissertação de mestrado2 Para uma Cidade Habitar um
Corpo: Proposições de uso do Espaço Urbano e Seus Acréscimos
na Formação do Artista Cênico no qual a preocupação estava
focada na questão da formação do artista cênico e da relação com
a arquitetura das cidades, e culmina na pesquisa e elaboração

1 Participação no festival Escenario Urbano na cidade de Cararas-Venezuela: https://www.


youtube.com/watch?v=H1gaDoKwA8o. Além deste, outros festivais e programações con-
vidaram para participar: é o caso de Dias de Danza Festival de Danza em Paisagens Urba-
nas Barcelona/Espanha. Ver: http://www.marato.com/lang_spa/dies.html
2 FREITAS, Vanilto Alves (Lakka). Para uma Cidade Habitar um Corpo: Proposições de Uso
do Espaço Urbano e Seus Acréscimos na Formação do Artista Cênico. Dissertação de mes-
trado PPGArtes-UFU, Uberlândia – MG, 2011. Em: http://www.lakka.com.br/?md=textos

2 29
de Mono-Blocos, projeto aprovado no edital de manutenção de
companhias de dança da Petrobras, que teve sua estreia em julho
de 2012.
Proponho aqui um exercício de resgate de questões que sur-
giram durante esse processo de busca da cidade, do espaço, do
corpo. Ele está dividido em quatro tópicos: Sugestões para um
corpo Habitar uma Cidade, propõe pensar sobre a prática/ pro-
cedimento de habitar a cidade e seus desdobramentos; Soluções
e Adequações Quanto a Variabilidade da Arquitetura Social em
uma Proposta Interativa com Perfis de Público Distintos, avalio
a criação e elaboração de uma estrutura coreográfica que dese-
ja lidar com os comportamentos, leituras e expectativas de dife-
rentes faixas de público; Sobre Técnica Corporal, Ferramentas e
Proteções resgato o workshop de Violência Cênica com Renato
Camargos, realizado durante o processo de pesquisa de Mono-
-Blocos e algumas reflexões suscitadas por esta atividade; Por fim,
em O Habitar da Cidade Comunicacional, a proposta é pensar a
respeito das interferências do desenvolvimento das tecnologias de
comunicação no habitar a cidade.
O teor do texto oscila entre um academicismo característico
de um indivíduo que possui uma carreira acadêmica como pesqui-
sador e professor universitário, ao mesmo tempo em que negocia
com a outra face, a face de um dançarino de Dança de Rua que se
aproximou da Dança Cênica e voltou à rua de mãos dadas com a
Dança Contemporânea.

Boa leitura!

230
SUGESTÕES PAR A UM CORPO HABITAR UMA CIDADE

A distinção entre as categorias de espaço e lugar é central na


discussão entre cidade e corpo. É nela que se percebem as conexões
entre uma arquitetura física e uma social, e também, onde encon-
tramos algumas pistas do diálogo entre ambiente e corpo. Vários
autores escreveram sobre esta diferença utilizando terminologias
diferentes, mas com um mesmo teor. É o caso de Merleau-Ponty,
apontado por DE CERTEAU (1998)3.
Dentre os conceitos que interferem diretamente na diferença
entre espaço e lugar está a noção de experiência, pois é o que cons-
trói o espaço “[...] O espaço é um lugar praticado” (CERTEAU,
1998, p. 202). Essa afirmação parte da compreensão de que sem o
homem, sem a prática social, sem a história, o espaço não tem ra-
zão de ser, e se torna uma palavra vazia, uma associação de letras
sem significado e, por isso, o espaço é existencial e a experiência é
espacial, porque é o uso que qualifica o espaço.
Partindo do entendimento que o uso do lugar qualifica o
espaço, e que a visão na modernidade se estabeleceu como prin-
cipal sentido de captação do espaço, Mono-Blocos propôs o
procedimento/etapa Habitar a Cidade, no qual se pretendeu pri-
vilegiar a experiência sensório-motora da cidade. Este consistiu
na ocupação de praças públicas na cidade de Uberlândia por 10
artistas de diferentes formações por um ano, na expectativa de
expor seus corpos ao ambiente praça, e a partir dessa experiên-
cia, avaliar: qual corpo resultaria dessa interação? Que cidade
emergiria desse uso? Que estrutura de obra artística resultaria
desse processo?
Junto aos conceitos de lugar, espaço e experiência, somou-se
o de ambiente, no qual buscou-se romper com a diferenciação entre
natureza e cultura, entendendo que a prática de habitar a cidade

3 DE CERTEAU, Michael. A Invenção do Cotidiano. 3ª edição. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 202.

231
resultaria em um habitar da cidade no corpo dos intérpretes. Sendo
assim, abordamos a noção de ambiente em três instâncias. Na pri-
meira, o espaço da cidade eleito, no caso a praça e suas caracterís-
ticas físicas; em segundo um grupo de princípios-técnico-corporais
que derivaram de sistemas técnicos como o Parkour, a Dança Ur-
bana B.boy e Release Technic, representante da Dança Contempo-
rânea; por fim, como terceiro ambiente, foi considerado o histórico
dos intérpretes, que apresentou uma grande diversidade represen-
tada desde indivíduos contaminados por técnicas de dança como
o jazz a praticantes de basquete, pois independente do código do-
minado, o que interessava era o histórico motor destes indivíduos.
Mono-Blocos é uma obra que tenciona a relação corpo cida-
de, considerando as dimensões arquitetônicas físicas e sociais. O
procedimento Habitar a Cidade buscou testar essa noção, o corpo
dos intérpretes resultante desta convivência, foi a matéria prima
levada posteriormente à cena.

SOLUÇÕES E ADEQUAÇÕES QUANTO À VARIABILIDADE DA


ARQUITETUR A SOCIAL EM UMA PROPOSTA INTER ATIVA
COM PERFIS DE PÚBLICO DISTINTOS

Durante o processo de montagem de Mono-Blocos decidi


por uma estrutura de composição na qual existisse interação com
o público. Aspectos interativos já estavam presentes em composi-
ções anteriores como O Corpo é a Mídia da Dança? Outras Par-
tes (2005/07)4. A escolha da interação em um espaço aberto, como
uma praça, exigia a reflexão sobre o modo de uso e convivência
característicos dessa arquitetura social e como a proposta de com-
posição dialogaria com a conduta social pertencente a esse espaço.
Considero que elaborar uma proposta de encenação para
um teatro exige menos reflexão sobre a conduta do público, já que

4 O Corpo é a Mídia da Dança? Outras Partes: http://www.lakka.com.br/?pg=midiadadanca.

232
o lugar social teatro oferece uma margem de previsibilidade maior
quanto à resposta, afinal, o público está aí para ver uma peça.
Isso acontece menos em uma encenação em espaço aberto. Não
que seja totalmente imprevisível, pois os espaços sociais guardam
propostas de comportamento, e estes são rastreáveis. É justamente
a capacidade de reconhecer regras sociais que nos possibilita viver
em sociedade.

O importante é a realidade objetiva dos fatos sociais, os quais têm


como característica a exterioridade em relação às consciências in-
dividuais e exercem ação coercitiva sobre estas. Mas uma pergun-
ta se coloca: de onde vem esta ação coercitiva? Pensemos em nossa
sociedade atual. Fomos criados, por nossos pais e pela sociedade,
com a ideia de que não podemos, em um restaurante, virar o prato
de sopa e beber de uma só vez, pois certamente as pessoas vão rir
ou talvez achar um tanto quanto estranho, já que existem talheres
para se tomar sopa. Não existem leis escritas que impeçam quem
quer que seja de virar o prato de sopa, segurando-o com as duas
mãos para beber rapidamente. No entanto, a grande maioria das
pessoas se sentiria proibida de praticar isso. Da mesma forma, por
que quando trabalhamos em um escritório ou algum lugar formal
os homens estão de terno e não de pijamas? Isso é a ação coercitiva
do fato social, é o que nos impede ou nos autoriza a praticar algo,
por exercer uma pressão em nossa consciência, dizendo o que se
pode ou não fazer. (RIBEIRO, Paulo Silvino)5

Deve haver atenção ao projeto da composição, assim como


a estruturação da mesma, buscando prever condutas sociais do
público. Esse fator adquire peso ainda maior em uma obra con-
cebido para o espaço aberto, que não está socialmente preparado

5 RIBEIRO, Paulo Silvino. “Durkheim e o Fato Social”; Brasil Escola. Disponível em http://


brasilescola.uol.com.br/sociologia/durkheim-fato-social.htm. Acesso em 17 de fevereiro
de 2017.

233
para isso, e muito menos, uma obra que contenha elementos de
interação.
Em Mono-Blocos, a reflexão sobre o público interferiu dire-
tamente nas decisões da composição. Desse modo, decidimos divi-
dir o público em 3 faixas. O primeiro é o Público da Divulgação.
Este indivíduo se desloca até o espaço onde ocorre a apresentação
sabendo com antecedência do que se trata o trabalho, possivel-
mente já saiba o nome da obra e teve contato com o histórico dos
artistas envolvidos. Ele é, por isso, o mais próximo que se pode
chegar do que seria o público que habitualmente vai ao teatro.
Elaboramos uma segunda faixa de público denominado Pú-
blico Convidado. Com o tempo, concluímos que esses indivíduos
deveriam derivar do Público da Divulgação, já que era exigido
deles disponibilidade para ter uma participação na obra diferente
dos demais. Por isso, inicialmente, era necessário detectar quem
era o público da divulgação e a partir daí, abordá-lo, e após uma
rápida conversa, pedíamos o número do telefone usado por ele
no Whatsapp e entregávamos um pequeno manual de instrução
com algumas indicações. Em resumo, era exigido desse indivíduo
disponibilidade para participar da obra lendo os códigos que lhe
eram enviados durante a apresentação da obra, fosse via celular,
bilhetes, contato tátil ou visual. Devido ao comportamento do pú-
blico convidado durante a apresentação de Mono-Blocos, com fre-
quência era gerada uma confusão quanto à indistinção entre quem
era público e quem era intérprete oficial da peça. Dessa forma, o
público convidado se situava em uma condição de público e de
intérprete, dependendo de qual posição ele era visto.
Por fim, consideramos a existência do Público Transeunte,
indivíduos que passando pela praça se deparavam com um evento
desconhecido e estranho para eles, algo que não pertence àquele
espaço e que frustra a expectativa de ocupação social. Cabe lem-
brar que Mono-Blocos utiliza movimentos virtuosos e até acro-
báticos, mas não acontece em um palco ou em uma lógica que
se assemelhe a ele. Os intérpretes não usam figurinos com o qual
possam ser identificados imediatamente, e por isso, com alguma

23 4
facilidade desaparecem na paisagem. Para esta faixa de público,
não há a expectativa que assistam toda a obra, muito menos que
cheguem no horário. Mas mesmo sem terem interação ou códigos
específicos como o Público Convidado ou as informações prévias
como o Público da Divulgação, espera-se que a força do estranho
evento detectado por ele na praça consiga capturar a sua atenção
por algum momento.
Mono-Blocos não é um trabalho que usa frontalidade, tam-
bém não depende de uma audiência organizada em uma arena,
tampouco exige que o público siga a obra pelo espaço como uma
procissão. Apesar de ser um trabalho apresentado na rua, preten-
de criar uma relação intimista com o público, buscando trazê-lo
para perto, para que possa ver detalhes e sentir aspectos que só
são possíveis com essa proximidade. A organização espacial se es-
tabelece considerando uma proposta de posicionamento do públi-
co no espaço. Há uma articulação com essa característica todo o
tempo, por vezes se produz uma concentração do público próximo
a apenas um núcleo, outras vezes os intérpretes se ausentam dessa
proximidade ao correrem para longe, mas voltando rapidamente.
A proposta não é fazer com que as pessoas sigam a obra. Há mo-
mentos ainda em que se criam vários núcleos de intérpretes, impe-
lindo o público a decidir-se a que núcleo deseja observar.
Mono-Blocos está organizado através de uma lógica de jo-
gos, dessa forma, não há uma coreografia com movimentos pré-
-determinados e em uma determinada ordem. Tão pouco há o uso
de improvisação livre. A escolha do uso de jogos (caracterizados
por terem funções e regras) em um trabalho com interação inter-
feriu diretamente na escolha dos movimentos que compunham os
jogos e a relação com o público.
Dessa forma elaborei 3 categorias de jogos: uma só para
os intérpretes, geralmente com movimentos mais arriscados e que
exigem um maior tempo de treinamento, outra categoria propu-
nha a interação entre os intérpretes e o público convidado, através
de recebimento de informações privilegiadas para participar da
obra. Essas informações não eram repassadas para outras faixas

235
de público, portanto a noção de códigos e a recepção deles era
fundamental; por fim, a terceira categoria de jogos propunha in-
serir na ação todos os públicos, os convidados, o da divulgação e
o transeunte, para isso os movimentos escolhidos eram de baixa
complexidade, com pouco risco físico e associados a uma comuni-
cação simples e direta, via repetição, contato visual e tátil.
Organizar uma proposta com diferentes faixas de público
– que implica na expectativa de diferentes comportamentos na re-
lação com a obra – exige uma maior atenção às características do
local no qual a obra é apresentada. Após a estreia de Mono-Blocos
e durante a circulação, fomos entendendo que o lugar social, o uso
que se teria desse espaço e o estado de uso desse espaço, com um
maior ou menor fluxo de pessoas por exemplo, interferia direta-
mente no sucesso da apresentação.
Nesse sentido, a experiência com as apresentações da obra
nos levou a elaborar versões de Mono-Blocos que dialogavam com
o espaço, o público e a interação de forma distinta. A primeira ver-
são, tida como o projeto oficial ou ideal, considera todas as faixas
de público mencionadas anteriormente e acontecia em um espaço
com público da divulgação e com um relativo fluxo de pessoas.
A segunda versão não conta com o público da divulgação, mas
mantém a proposta de realizar jogos interativos com todos os pre-
sentes no espaço, essa versão também exige um espaço com mais
pessoas. Por fim, a terceira versão não espera nenhuma interação
com o público, o foco é a percepção visual do trabalho.

SOBRE TÉCNICA CORPOR AL,


FERR AMENTAS E PROTEÇÕES

Durante o processo de pesquisa e elaboração da estrutura


cênica de Mono-Blocos, várias atividades foram realizadas: pales-
tras, debates e oficinas com artistas e pesquisadores convidados
que trouxeram temas e questões relevantes ao processo. Dentre as

236
atividades, foi ministrado o curso de Violência Cênica6 com Re-
nato Camargos7, um mineiro que vive em Barcelona desde os seus
16 anos de idade e que se especializou em trabalhar como Dublê
de Ação, atuando no mercado audiovisual. Sua formação mescla
inicialmente Judô, Dança de Rua, B.boy e Capoeira, e é essa for-
mação que interessa ao texto, apesar de posteriormente Camargos
ter agregado outras informações à sua trajetória mais específicas e
direcionadas às atividades como Dublê.
A oficina se concentrou em técnicas de contato e apoio entre
indivíduos de modo a simular, de forma realista, brigas e choques
resultantes da ação. O uso de quedas e saltos foi uma constante,
assim como os informes sobre as partes do corpo mais adequadas
ao toque com o solo. Ficou evidente que as técnicas de queda do
Judô eram usadas com frequência por Camargos, talvez pelo fato
de a estética das quedas propostas por ele requisitarem uma im-
pressão de descontrole do indivíduo que caia. O Judô possibilitava
a construção da imagem requisitada na ação com segurança.
Durante as aulas, Camargos desestimulava o uso das mãos
nas quedas, preferindo o uso de rolamentos. Por um lado, porque
o uso das mãos não ajudava na construção da imagem de ação
esperada por ele, e por outro, colocava em risco o ator, pois é sem-
pre grande o risco de lesão em pulsos e dedos, principalmente em
uma atividade na qual nunca se sabe onde será a próxima locação.
Ele preferia o uso de músculos grandes como o Dorsal, Deltóides
e Tríceps, encontrados respectivamente nas costas, ombros e bra-
ços, pois ao serem acionados nas quedas produziam segurança,
e ao serem associados a rolamentos, contribuíam para dissipar o
impacto.

6 Registro de oficina de Violência Cênica com Renato Camargos: https://www.youtube.


com/watch?v=nKckLZu1CFU
7 Renato Carmagos: http://www.recamstunts.com/

237
Na escrita da minha dissertação8 eu já havia detectado essa
organização ou postura corporal que denominei como Posição
Circular de Segurança. Durante o processo de estudos para Mo-
no-Blocos, percebi que além de dorsal, deltóides e tríceps, essa
posição era ampliada para outras regiões do corpo como quadril
(glúteos), lateral da coxa (vasto lateral), panturrilha (gastrocnê-
mio porção fibular). Reconheço este tipo de uso do corpo em
técnicas corporais de algumas Artes Marciais, Dança B.boy e
Parkour, além de técnicas de Dança Moderna. Também percebo
seu desdobramento em técnicas vinculadas ao universo da dança
contemporânea como o release technique e o contact improvi-
sation.
Na ocasião, algo me chamou muita atenção: como Camar-
gos trazia com ele uma sacola enorme com proteções para várias
partes do corpo, como cotoveleira, joelheiras e tornozeleiras,
além de coletes, capacetes, luvas e botas, estes quase sempre usa-
dos por motoqueiros na prática do Motocross.
Percebi que nas aulas existiam duas categorias de prote-
ção, a primeira, colocada nos joelhos, cotovelos e cabeça: esta-
vam ali para NÃO serem usadas. Ou seja, elas cobriam partes
do corpo como joelhos, cotovelos e cabeça, caracterizadas por
exporem os ossos (sem uma camada muscular que as proteja),
para o caso eventual de choque em decorrência de um acidente.
A primeira estratégia de segurança era usar bem a Posição Cir-
cular de Segurança, impedindo a ocorrência de lesões através de
choques.
Entendi que a segunda categoria de proteção apresentada
na aula tinha a função de potencializar a Posição Circular de
Segurança, pois estas proteções eram colocadas justamente em
partes do corpo com as quais se esperava ter contato com o

8 FREITAS, Vanilto Alves (Vanilton Lakka). Para uma Cidade Habitar um Corpo: Proposições
de Uso do Espaço Urbano e Seus Acréscimos na Formação do Artista Cênico. Dissertação de
mestrado PPGArtes-UFU, Uberlândia – MG, 2011. http://www.lakka.com.br/?md=textos

238
solo como as costas (dorsal), ombros (deltóides), braços (tríceps),
glúteos (quadril), vasto lateral (lateral da coxa), gastrocnêmio
porção externa (panturrilha).
Mas para que de fato essas categorias de proteções tives-
sem eficácia era necessário que antes, o indivíduo que as usasse
tivesse o domínio técnico do uso da Posição Circular de Segu-
rança. Ou seja, não bastava usar o equipamento, era necessário
antes saber usar a proposição técnico corporal requisitada.
Isso ficou evidente quando Camargos mostrou o Making
of de um comercial no qual ele era arrastado por um carro atra-
vés de um cabo de aço que estava ligado a um colete de proteção
que ele vestia. A função do colete, usado em Motocross para
proteger partes do corpo como o tronco, e com esse intuito, ele
estava posicionado nos ombros e músculos dorsais. Notei que
para conseguir ser arrastado sem se machucar Camargos expu-
nha a parte dorsal das costas em Posição Circular de Segurança
e dessa forma, apenas o colete tocava o solo. Essa técnica permi-
tiu ao mesmo realizar o movimento sem se lesionar.
Em outro momento ficou clara a ideia de potencializar o
uso da Posição Circular de Segurança, em movimentos de queda
de escada. Nesses exercícios, as principais partes do corpo usa-
das eram as costas, os braços e as laterais da coxa, essas sim,
devidamente protegidas.
Na dança é comum ver estudantes e artistas usando pro-
teções da primeira categoria (joelheiras e cotoveleiras). Para tra-
balhos que tomam a rua, principalmente propostas nas quais o
contato com a arquitetura física da cidade se dá de forma mais
intensa, é relevante pensar qual a articulação há entre corpo do
intérprete, técnica corporal, proteções e arquitetura.
Dentre os autores regularmente utilizados por pesquisa-
dores de Artes Cênicas para analisar questões referentes à téc-
nica e ao corpo, Marcel Mauss (1872-1950) ocupa um lugar de
destaque. Em 1934 ele proferiu a conferência Noções de Técni-
cas Corporais na Sociedade de Psicologia, e em 1936 a mesma
foi publicada no Journal de Psychologie. Com essa publicação,

239
Mauss inaugurou um novo campo de pesquisa denominada técni-
cas corporais, retirando esse fenômeno da categoria dos diversos.

Cometemos, e cometi durante muitos anos, o erro fundamental


de só considerar que há técnica quando há instrumento. Cumpri
voltar às noções antigas, aos dados platônicos sobre a técnica,
como Platão falava de uma técnica da música e, em particular da
dança, e estender a noção.9

Nesse fragmento, Mauss supera a questão da existência ou


não de um instrumento, e entra em um terreno arenoso (arenoso,
mas importante para o trabalho em questão), o do próprio corpo
como objeto técnico, como primeiro objeto a receber interferência
dos conhecimentos técnicos, ou seja, antes de tudo a técnica está
no corpo. Nota-se que uma das chaves para começar a pensar téc-
nica corporal é a inexistência de um instrumento fora do corpo,
e talvez por isso, o texto e o conceito inaugurado por Mauss seja
tão útil à dança.
Durante o processo de pesquisa e elaboração cênica de Mo-
no-Blocos éramos questionados com frequência sobre a necessida-
de de utilizar proteções como joelheiras e cotoveleiras. A questão
era coerente, na medida em que tínhamos como conceito central
do processo a noção de habitar a cidade, no qual o pressuposto era
a mútua interferência entre corpo e cidade em uma temporalidade.
Creio que uma das respostas seria fazer um caminho contrá-
rio do percorrido por Marcel Mauss, no qual ultrapassou a ideia
de técnica corporal sempre associada a um instrumento técnico
e foi capaz de reconhecer a existência de técnica mesmo quando
não há instrumento. Percebemos instrumentos como proteções
(cotoveleira e joelheira) como extensões do corpo e que alteram o
esquema corporal do indivíduo.

9 MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Volume 01. São Paulo: EPU/Edusp, 1974,
p. 217.

240
Algumas regiões do espaço estão perto ao alcance da mão. Os
psicólogos as denominaram de espaço peri-pessoal. As outras zo-
nas estão fora de alcance e constituem o espaço extra-pessoal. As
transformações no esquema corporal podem provocar extensões
de espaço peri-pessoal no que antes era espaço extra-pessoal. [...]
A aquisição da capacidade de usar ferramentas tem o efeito de
incrementar as extensões do espaço peri-pessoal. O que estava
longe, está perto.10

Distanciando de uma lógica instrumental na qual a técni-


ca e as proteções seriam algo que são colocados no corpo para
ser usado no espaço. Entende-se que há um contínuo entre estas
instâncias e que há uma constante troca entre elas. Sendo assim,
as proteções são usadas em diálogo com a técnica corporal, que
por sua vez entra em diálogo com o espaço no qual acontece
a ação. Mono-Blocos, portanto, é uma obra que está adequa-
da a espaços duros, ásperos e com obstáculos, pois habitamos
espaços da cidade com essa característica durante sua elabora-
ção. Há possibilidades de apresentá-lo em outros espaços, as-
sim como há possibilidade de apresentá-lo sem proteções. Mas
sempre terá que haver uma modulação e renegociação entre as
várias instâncias envolvidas do corpo, da técnica, da proteção e
do uso do espaço.

10 Tradução do autor. No original: Algunas regiones del espacio estan cerca o alcance de la
mano. Los psicólogos las denominan el espacio peripersonal. Las otras zonas están fuera del
alcance conforman el espacio extrapersonal. Las transformaciones en el esquema corporal
puedem provocar extensiones de espacio peripersonal en lo que antes era espacio extraperso-
nal. [...] La aquisición de la capacidad de usar herramientas tiene el efecto de incrementar las
extensión del espacio peropersonal. Lo que estaba lejos, está cerca. Em: NOÉ, Alva. Fuera de
la cabeza: por que no somos el cérebro y otras lecciones de la biologia de la consciência.
Barcelona: Kairós, 2010, p. 107.

241
O HABITAR DA CIDADE COMUNICACIONAL

Mono-Blocos foi a elaboração cênica das muitas aulas pre-


paradas e ministradas em espaços fechados e espaços abertos,
entendendo que ambos espaços são resultado de um pensamento
moderno de cidade. Na dissertação, a concentração se deu na ava-
liação da história do estabelecimento da cidade moderna, assim
como algumas de suas características que impactam diretamente
o corpo e a sociabilidade como o fluxo, a aceleração e o conforto.
Nesse sentido, como procedimento busquei interagir com a cidade,
experienciar a arquitetura física sempre com a expectativa de que
habitar a cidade produziria outro corpo, assim como por outro
lado também interferiria na lógica da cidade sempre em mutação.
No entanto, ao me colocar no processo de preparação cê-
nica da experiência da cidade e minha proposição formativa de
dança elaborada durante o mestrado, deparei-me com questões
relacionadas para além da arquitetura física ou social da cidade,
comecei a intuir a interferência do universo digital e o impacto
dele na relação do corpo com a cidade. A leitura de Massimo de
Felici (2009)11 foi crucial nesse momento, e me colocou em uma
posição na qual decidi considerar a experiência do habitar a cida-
de em sua dimensão comunicacional.
Na perspectiva do autor interessa o componente midiático
que molda a experiência habitativa do humano de modo a interfe-
rir no sistema sujeito-mídia-território. Nesse sentido, Felici (2000)
faz uma revisão clássica do desenvolvimento dos meios de comu-
nicação. Seu texto inicia chamando a atenção para a invenção da
escrita e como ela interferiu no modo de percepção e interação
com o espaço, já que antes da invenção da escrita, existia ape-
nas o estar no lugar e a narrativa/descrição do lugar caracterizada
pela sua instabilidade, dada a imprecisão da oralidade natural a

11 DI FELICE, Massimo. Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas


comunicativas do habitar. São Paulo: Annablume, 2009.

242
ela. Com o surgimento da escrita cria-se a possibilidade de um
registro marcado por uma maior estabilidade, de modo que era
possível reproduzir com um nível maior de precisão a descrição.
Felici (2009) defende que a escrita do lugar altera a relação que
temos com o próprio lugar, pois é bem distinto ler um texto sobre
um lugar do que escutar a descrição de um lugar, sem entrar no
mérito quanto ao ouvinte e às variações quanto à interpretação,
interessa é que a escrita se manterá a mesma produzindo um nível
maior de estabilidade.
A segunda virada na relação com o espaço através do ele-
mento técnico comunicacional, diz respeito ao surgimento da ele-
tricidade, não só pela possibilidade de convivência e sociabilida-
de nas cidades propiciada pela eletricidade, mas sobretudo, pela
invenção das mídias de massa e toda a profusão de imagens das
metrópoles modernas possibilitadas através do surgimento da fo-
tografia, do cinema e posteriormente a TV. O lugar ganha mais
autonomia no que se refere à comparação com o momento da es-
crita, mas ainda assim o sujeito continua fora da tela, ou seja, ape-
sar do denso trânsito de imagens, a relação sujeito-objeto continua
praticamente inalterada.
Por fim, Felici (2009) chama a atenção para o surgimento
das redes digitais, mídias sociais e da geolocalização. Esta nova
etapa das tecnologias de comunicação realoca o sujeito no espaço
e na relação com a paisagem, na medida em que a partir de agora
o sujeito está na imagem e também consegue tecnicamente mani-
pular a paisagem. Há portanto uma manipulação do sujeito na
paisagem via tecnologia de comunicação.
Isso fica evidente na facilidade com a qual se modifica ima-
gens através da utilização de aplicativos e softwares próprios para
a edição de fotos, vídeos de lugares e de pessoas em lugares, pro-
duzindo através disso, leituras e percepções de aspectos que ver-
dadeiramente não estão no espaço. No entanto, o que interessa é a
relação social propiciada pela imagem agora alterada.

243
O uso de recursos como o GPS12 tem causado uma grande
interferência na relação dos indivíduos com o espaço e consequen-
temente nas relações sociais, pois o sujeito sai da condição de olhar
para o mapa fora dele, e passa para a condição de estar dentro do
mapa e em movimento, o que traz implicações em campos como os
transportes e a sexualidade.
Jogos como Pokémon GO! lançado no Brasil no ano passa-
do são outro exemplo de como o universo digital tem interferido
no modo como os indivíduos têm se relacionado entre si e com o
espaço. Nesse sentido, são comuns relatos de jogadores que sofrem
acidentes e ou são assaltados em decorrência da exploração dos es-
paços reais em busca de Pokémons virtuais.
O jogo que usa tecnologia de geolocalização e realidade au-
mentada13, consegue através de aplicativo em smartphones produzir
uma justaposição entre realidade e ficção, colocando imagens virtu-
ais em sobreposição a cenários reais que podem ser detectados atra-
vés do celular. Possibilidades como essa rompem com a ideia de que
a tecnologia e a conexão com a internet obrigatoriamente colocam
o indivíduo em condição estática na frente de um computador, e por
consequência, de um corpo sedentário que é obrigado a se manter
sentado para interagir com o número de pessoas que lhe interessa no
globo. As tecnologias de comunicação têm interferido há tempos no
modo como os indivíduos habitam os espaços, no entanto, as pos-
sibilidades imersivas propiciadas pelas novas tecnologias baseadas
na internet e na popularização de plataformas como smartphones
colocam estas possibilidades em uma dimensão nova e cotidiana.

12 GPS é a sigla para Global Positioning System, que em português significa “Sistema de
Posicionamento Global”, e consiste numa tecnologia de localização por satélite.
13 Realidade Aumentada é uma técnica utilizada para unir o mundo real com o virtual,
através da utilização de um marcador, webcam ou de um smartphone (IOS ou Android), ou
seja, é a inserção de objetos virtuais no ambiente físico, mostrada ao usuário em tempo
real com o apoio de algum dispositivo tecnológico, usando a interface do ambiente real,
adaptada para visualizar e manipular os objetos reais e virtuais. http://www.agenciadda.
com.br/realidade-aumentada-ra

24 4
Em Mono-Blocos, o processo de elaboração da proposta
cênica que considerava a arquitetura das cidades como lócus de
investigação e apresentação da obra, nos pressionou a enfrentar
questões referentes a esta realidade, ou seja, passamos a consi-
derar o habitar comunicacional, buscando formas de articular a
estrutura da obra ao aspecto virtual da cidade moderna e não só à
arquitetura física e social.
As soluções encontradas durante o processo de pesquisa de
Mono-Blocos foram o uso de mensagens em celulares com aplica-
tivos como Whatsapp e sms, o estímulo ao uso de câmeras foto-
gráficas por parte do público e o uso de QR code14 para acessar
imagens das apresentações. Buscamos ainda associar códigos e
tecnologias de acesso vinculadas a aparelhos e câmeras a códigos
elaborados como contato físico entre bailarinos e público e outras
formas de comunicação como bilhetes e contato visual.
Dentre as várias questões que surgiram na execução de
uma obra que considerava a cidade comunicacional, nos depara-
mos com o fator exclusão digital, já que muitas pessoas por vezes
não possuíam smartphones com funções requisitadas na obra, ou
quando tinham, não sabiam usar.
O modo como lidamos como esse elemento foi estruturar a
obra por faixas de público distintos, no qual um núcleo de pessoas
assistia à obra mediada pelos códigos que disponibilizávamos via
smartphones e outros recursos, enquanto outro público acessava a
obra de uma forma tradicional, visualizando sua execução.
Entendíamos que ambos os públicos acessavam a mesma
obra, mas viam aspectos distintos, já que a mediação dos códigos,
fosse ele um código QR code ou um código tátil interferia na lei-
tura da obra.

14 QR code: É um código de barras em 2D que pode ser escaneado pela maioria dos apa-
relhos celulares que têm câmera fotográfica. Esse código, após a decodificação, passa a
ser um trecho de texto, um link e/ou um link que irá redirecionar o acesso ao conteúdo
publicado em algum site.

245
FINAIS

Bem, e eu continuo pensando. A noção de ambiente parece


ser cada vez mais útil. A pesquisa me levou a considerar como am-
biente o espaço (físico, social e comunicacional); o sistema técnico
corporal (hip-hop, parkour, skate, balé, não importa quais forem);
a biografia do sujeito (o seu histórico bio/psico/social). A resultan-
te dessa viagem é a corporeidade, ou seja, a historicidade do sujei-
to, pois não é possível passar ileso pela experiência da cidade, ou
melhor, do espaço. Afinal, mais do que dança e cidade, a questão
é corpo e espaço interpenetrados.

REFERÊNCIAS

• DE CERTEAU, Michael. A Invenção do Cotidiano. 3ª Ed.


Petrópolis: Vozes, 1998.
• FREITAS, Vanilto Alves (Vanilton Lakka). Para uma Cidade
Habitar um Corpo: Proposições de Uso do Espaço Urbano
e Seus Acréscimos na Formação do Artista Cênico. Disser-
tação de mestrado PPGArtes-UFU, Uberlândia – MG, 2011
http://www.lakka.com.br/?md=textos
• MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Volume 01. São
Paulo: EPU/Edusp, 1974.
• NOÉ, Alva. Fuera de la cabeza: por que no somos el cérebro
y otras lecciones de la biologia de la consciência. Barcelona:
Kairós, 2010.

LINKS

• O Corpo é a Mídia da Dança? Outras Partes – http://www.


lakka.com.br/?pg=midiadadanca

246
• Registro da oficina de Violência Cênica com Renato Camar-
gos https://www.youtube.com/watch?v=nKckLZu1CFU
• RIBEIRO, Paulo Silvino. “Durkheim e o Fato Social”; Brasil
Escola. Disponível em: http://brasilescola.uol.com.br/sociolo-
gia/durkheim-fato-social.htm. Acesso em: 17 fev. de 2017.
• Renato Carmagos – http://www.recamstunts.com/

247
ANA MARIA ALONSO KRISCHKE – Dançarina, pro-
fessora, produtora e pesquisadora, com ênfase
na dança contemporânea e improvisação. For-
mada em DanceAbility (2011). Desde 2009
dedica-se à Improvisação por Contato. Criou
e coordenou desde então o projeto Entrando
em Contato e entre 2009 e 2019, o Festival
Transformando pela Prática. Integrou o PlanoB
coletivo de experimentações em movimento
(2011-2017). Promove eventos, participa como
dançarina e professora em jams, festivais e ou-
tras ações de Contato Improvisação, Improvi-
sação e Composição no Brasil e na América
Latina. Participa da cocriação do ET – Espaço
Transformando. Investiga relações entre água e
dança desde 2013, desenvolvendo uma propos-
ta performativa chamada Visita ao Mar (desde
2016) que derivou num convite à investigação
coletiva, o Mar Aberto (2019). Pesquisadora
das relações dança e polítca, é mestra pelo Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação – UFSC
(2012) e doutora pelo Programa de Pós-Gradu-
ação em Teatro – Udesc (2019). Atualmente
trabalha na Licenciatura em Dança da UFG.
ANALONSOK@GMAIL.COM

24 8
A DANÇA COMO ENCONTRO
Ana Maria Alonso Krischke

Jamba, Buenos Aires, abril 2019. Na foto: pessoas não identificadas.


Foto e acervo: Paula Alfieri.

249
E
ste artigo trata de questões de minha pesquisa de doutora-
do1 cujo campo foi a Improvisação por Contato2 (IC) em
certos contextos da prática em alguns países da América
Latina3. Tendo em vista ser uma dança de colaboração mútua e
de grande entrega de peso e contato físico, cuja confiança e a au-
tonomia são importantes entre praticantes de IC, vou falar de al-
gumas experiências dentro da IC, que apontem para uma dança
efetivamente colaborativa e de encontro e, obviamente, suas con-
tradições. De fato o que vai se apresentando é uma necessidade
de produzir experiências que exercitem a auto referencialidade e a
corresponsabilidade como elementos de uma ética a ser continua-
mente revista, individualmente e num plano mais amplo, grupal,
social.

1 KRISCHKE, Ana Maria Alonso. Improvisação por Contato: tecendo experiências Latinoa-
mericanas. Tese. Programa de Pós Graduação em Teatro, Udesc: 2019.
2 IC é um sistema de movimento proposto inicialmente nos EUA por um grupo de bailari-
nes junto com Steve Paxton nos anos 1970. Improvisação por Contato pode ser vista como
uma prática integrativa que investiga as possibilidades de improvisação no encontro de
dois ou mais corpes tendo como marco o contato físico e as leis da física que regem o
movimento. Em geral, ocorrem agrupamentos mais ou menos temporários em torno des-
ta prática promovendo o aprendizado e as contradições relacionadas à participação, ao
acesso e à autonomia, aspectos ligados à política e à formação humana que tomam parte
nesta prática. Obs.: Estou usando o termo Improvisação por Contato em consonância com
outres autores que assumem a tradução literal do inglês: “Contact Improvisation” para o
português ‘Improvisação por Contato’ em vez do já popularizado ‘Contato Improvisação’.
Essa diferença vem de um desejo de enriquecer a conceituação desta prática e diversificar
as formas de percebê-la. Junto a isto a simpatia pela transformação do artigo e conjugação
do ‘o’ para ‘a’, saindo de lugares de conforto que vão para além do modo de perceber e no-
mear, na direção de construir/desconstruir. Para manter fidelidade na fala, na transcrição
de algumas referências, aparece como Contato Improvisação.
3 Tais contextos são: encontros, festivais, residências artísticas cuja prática da IC são cen-
trais. Intercâmbios com parceires de prática nestes espaços e 9 mulheres praticantes de IC
dos seguintes países: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai.

250
AUTORREFERENCIALIDADE, CORRESPONSABILIDADE,
MUTUALIDADE E COL ABOR AÇÃO: MOVIMENTOS DE POSIÇÃO.

Banes (1994) afirma que Paxton criou uma proposta que,


por um lado, é uma dança a respeito de um tipo de caráter, em
que colaboração e confiança são fundamentais, por outro, é uma
dança a respeito da arte da dança, no sentido de aprofundar cri-
ticamente a mesma. Segundo a autora, a necessidade de colabora-
ção e confiança para a IC acontecer oferece um tema para a arte:
valores e ética em dança.
Conforme Singer (2014) IC não é somente algo onde as pes-
soas vão para aprender a dançar ou mover-se é também algo onde
as pessoas vão questionar seus papéis cotidianos e sua percepção
de realidade, em consequência há expansão de consciência. Isso
pode ser ilustrado nas palavras de Javiera, bailarina profissional e
praticante de IC de Santiago, Chile:

Si algo hizo la danza C.I. en mí, fue justamente revolucionar sen-


sacionalmente mi mapa perceptivo e intelectual, ampliándolo y
enrareciéndolo cada vez, instalando un plano más allá del análisis
físico a uno previo, vacío de lenguaje y de significación, y ahí es-
taba yo post primera Jam, mirando los sillones, paredes, perso-
nas, luces, mesas como objetos de mi espacio cotidiano que por
primera vez desconocí, extrañe y en vez de ser mi paisaje habitual
me invitaban a tocar, rozar, posar mi cabeza, tomar el peso, rela-
cionarme no eficientemente, sensorial y absurdamente, ganas de
rodar y deslizar paredes. Apertura de la sensación. Y lo mismo a
la vida, al tocar, como un proceso constante de abrir, develar una
posibilidad hasta habituarla y pasar a otra apertura, ojalá infini-
ta4. (SANHUEZA, apud KRISCHKE, 2019, p. 92).

4 “Se alguma coisa fez a dança C.I. em mim, foi justamente revolucionar sensacionalmente
meu mapa perceptivo e intelectual, expandindo e afinando-o a cada vez, instalando um
plano além da análise física para um anterior, vazio de linguagem e significado, e lá estava

251
Pode se dizer que autorreferencialidade é uma práxis na qual
se considera e se põe em balanço a percepção sensorial, as intui-
ções, as corporeidades, as histórias (no sentido genealógico) que
ganham forma/expressão nas interações com o outro em dança e
também a invenção coletiva de contextos com permissão para criar
e encontrar-se critica e criativamente. Consideram-se confiança e
colaboração conceitos constantemente postos à prova, visto que
há interseccionalidades5, ou seja, entendendo que confiança e cola-
boração são práticas sociais, não conceitos fechados, há diferentes
instâncias de treino e experimentação dos mesmos em escalas de
experiência pessoal, interpessoal e comunitária. Nessa direção, a
corresponsabilidade6 e a coexistência7 têm sido apontadas como
conceitos e práticas na dança.

eu, depois da primeira Jam, olhando para as poltronas, paredes, pessoas, luzes, mesas
como objetos do meu espaço cotidiano que pela primeira vez desconheci, senti falta e em
vez de ser minha paisagem habitual, me convidavam para tocar, esfregar, colocar minha
cabeça, tomar o peso, me relacionar de forma ineficiente, sensorial e absurdamente, dese-
jo de rolar e deslizar paredes. Abertura da sensação. E o mesmo para a vida, ao tocar, como
um processo constante de abertura, desvelando uma possibilidade de habituá-la e passar
para outra abertura, esperançosamente infinita.” (tradução minha).
5 Interseccionalidade é um conceito criado por Crenshaw (1991) e vem sendo desenvol-
vido desde então. É uma ferramenta teórico-metodológica fundamental para ativistas e
teóricas feministas comprometidas com reflexões e análises sobre os processos de intera-
ção entre relações de poder e categorias como classe, gênero e raça em contextos indivi-
duais, práticas coletivas e arranjos culturais/institucionais. Provando que há diferenças de
relações de poder conforme as condições em que as pessoas envolvidas se encontram, ou
seja, uma mulher sofre maior discriminação do que um homem, uma mulher negra, mais
que uma mulher, e assim sucessivamente; juntando-se a isso, determinantes morais e con-
textuais, conforme a situação a opressão e os sujeitos oprimidos. Mostrando que não há
uma relação de poder generalizante na práxis, é necessário situar as pessoas envolvidas.
6 Refere-se a uma mutualidade das partes envolvidas na relação, sendo todas respon-
sáveis. Há uma diferença de cada uma ser responsável e todas serem corresponsáveis,
porque propõe um sentido de cooperação no ato de ser responsável.
7 Em minha dissertação (2012) apresento diferentes pontos de vista desse conceito. A
dançarina de IC Nancy S. Smith apresentou propostas de investigação em IC onde coexis-
tência é praticada.

252
No entanto, não é incomum reconhecermos contradições
entre os fazeres e novos caminhos e proposições que viabilizem
essas pautas de forma mais contundente e politizada, visto que o
discurso de uma integração generalizante não nos interessa se qui-
sermos politizar o debate, tampouco seria a disputa identitária ou
de outras bandeiras e slogans que o capitalismo captura e superfi-
cializa de forma tão eficaz. Ou seja, é no dissenso e na proposição
de espaços tempo cuja visibilidade e participação ocorram é que
poderemos talvez construir a dança como encontro!
Cali8 (artista trans praticante de IC em Florianópolis) fala de
a IC ser uma ferramenta importante durante a experiência de dan-
ça; mas, depois, o que cada um faz com isso nas suas vidas? Ela
afirma que segue sofrendo preconceito por ser ela mesma. Como
estas experiências tão reveladoras e de ruptura na dança segue
movendo as vidas?
Sabemos que há correlações entre o questionamento de cor-
pe , de dança e questionamento de sociedade. Apesar disso, não
9

podemos superestimar a dança no caso de construir mudanças so-


ciais conjunturais: a arte é ferramenta. Mas tampouco queremos
subestimar a dança retirando-a do contexto, repetindo esse mo-
delo alienado da cultura capitalista, devemos afirmar a arte que
pensa/pratica/afirma conjuntamente com outros fazeres sociais
um outro mundo possível!

8 Na oficina Corpos indóceis, corpos rebeldes, com Paula Alfieri no Espaço Transformando,
Florianópolis, em maio de 2019.
9 Optei por escrever a maioria das palavras relativas a pessoas com a terminação ‘e’ ou
‘a’ conforme haja necessidade para facilitar a leitura. Essa forma de escrita e fala está
se tornando usual, como tentativa de inclusão na fala e discurso escrito, em respeito a
todes aqueles que estão transitando de um gênero a outro, ou não se identificam com o
padronizado binarismo de gênero, em suma representados pelas terminações ‘a’ e ‘o’. Além
de evidenciar uma radicalização na inclusão de formas de escrita que não desvalorizem
qualquer identidade de gênero. O termo corpo vem carregado de muitas condicionantes
culturais opressoras e de controle, usar ‘corpe’ ‘corpa’ vem no sentido de afirmá-lo, consi-
derá-lo de forma libertária e mais fluída.

253
Um princípio importante da prática da IC é o de que cada
pessoa é responsável por si mesma e que a única pessoa que pode
validar melhor minha percepção sou eu mesma. Porém as rela-
ções de poder podem manipular nossa percepção, numa constante
tensão entre o proposto na exploração corporal da dança e do
jogo com es parceires enquanto autonomia/autoreferencialidade e
o culturalmente imposto em nossa sociedade onde a validação do
discurso hegemônico pode maquiar nossa percepção, confundin-
do-a. O sentido revolucionário desta prática pode ser o de tensio-
nar e reposicionar criticamente o que seria a nossa autonomia e
suas contradições na prática da dança.
Isso pode explicar, por exemplo, o fato de em um encontro
de IC com cerca de 80 pessoas10, 90% das mulheres presentes afir-
marem que sofreram algum tipo de desconforto ou abuso no início
de sua prática em IC. Ou seja, possivelmente há um aprendizado
no decorrer da prática que as faz afirmar que isto se deu no iní-
cio de sua prática e que talvez agora elas tenham ferramentas em
que são capazes de sentir e comunicar (física ou verbalmente) suas
necessidades, limites, desejos, garantindo segurança para si e sem
prejudicar aos outres. Mas, os dados devem voltar a ser olhados de
muitas outras maneiras: porque 90% daquelas mulheres iniciando
a prática de IC sofreram situações de abuso? Há então a reprodução
de violências de gênero presentes em nossa sociedade só que num
contexto que se propõe libertário e inclusivo, cujo princípio é a con-
fiança! Bastante complexo este quadro, não?
Esses dados indicam que possivelmente os princípios da au-
toresponsabilidade/corresponsabilidade estão sendo deturpados por
comportamentos e condutas que não correspondem e que podemos
afirmar que são comportamentos constantes em nossa vida societal
capitalista, machista e patriarcal. Ou seja, há espaços sendo criados

10 Férias Contateiras, fevereiro 2019, Gamboa, SC. www.facebook.com/


events/1812239295519778/. Projeto independente onde fui codiretora artística e traba-
lhei na concepção junto com Autarco Arfini.

25 4
por praticantes de IC que se deseja seguro e de investigação em dan-
ça. Tais espaços parece que contém condições favoráveis a condutas
que estão impedindo o desfrute da experiência da dança para todes
es corpes presentes. O que gera muita controvérsia e ambiguidade
para o sentido desses espaços, da participação na construção dos
mesmos e na leitura do que se está construindo, afinal. Visto que, se
silenciada a questão, há um aprendizado sobre isto também ocor-
rendo e garantindo a reprodução de situações opressoras mascara-
das de ‘experimentação segura em dança’.
Isso pode estar também sendo facilitado, na medida em que
é tratado como se não fosse assunto da dança em si, me pergunto
como. Se há o desvio de uma potência de investigação auto e corres-
ponsável sobre es corpes para uma opressão gerando outra experi-
ência de “dança”, diferente da radicalizada no seu caráter libertário
e contracultural? COMO isto não é assunto da dança?
Estamos em espaços de investigação e formação em dança e
TAMBÉM, de reprodução de modos hegemônicos de opressão...
Algumas praticantes e comunidades de IC têm debatido sobre este
assunto, com diferentes posicionamentos a respeito.
No primeiro semestre de 2019 tivemos a experiência de rea-
lizar entre oito praticantes de IC em Florianópolis, um projeto de
circulação, formação e acesso dessa dança na cidade, o projeto An-
danças Poéticas na Cidade11. Nem todes es oito da equipe convivía-
mos e/ou dançávamos entre nós, havia inclusive praticantes que não
participavam de espaços de prática ‘comum’ (Jam da Universidade
do Estado de Santa Catarina – Udesc12) por não se sentirem à von-
tade, sentirem preconceitos variados como machismo, homofobia
e gordofobia. Durante o projeto, pudemos fazer aulas entre nós,
praticar e estudar de modo a rever nossas práticas, incluir diferentes
olhares em nossas práticas, começar um processo de rever nossos
preconceitos.

11 www.facebook.com/andancaspoeticasnacidade/
12 Espaço de prática regular existente desde 2011.

255
Desde os conflitos iniciais que foram sendo explicitados até
este momento, foram quase dois anos, que correspondem ao pro-
cesso de Golpe Político ocorrido aqui no Brasil13, causando, não por
casualidade, a necessidade de tomadas de posição mais definidas e
comprometidas com pautas em defesa de direitos humanos, o que
acaba impactando todas as instâncias de convívio, grupalidades,
criação, quer queiramos ou não.
Nesse período, houve espaço, tempo e abertura de transfor-
mação entre nós deste grupo de praticantes de IC em Florianópo-
lis, mas obviamente não é um trabalho terminado, talvez tenhamos
tocado no que se poderia chamar de um início ou uma experiência
momentânea que podemos levar conosco em nossa formação. Para
isso, importa o contínuo processo de aprendizado, prática e estudo
de conceitos e valores em dança como algo a ser atualizado nas rela-
ções de dança e convívio em IC visto que há diversos descompassos
entre coexistência, participação e acesso; há pouca diversidade de
corpes, se fazem necessárias as construções de caminhos que pro-
duzam visibilidade e efetiva participação14 na experiência de dança.

13 Desde 2016 vem se configurando de forma mais contundente um processo que pode-
mos chamar de Golpe no Brasil, onde uma série de medidas vem continuamente retirando
direitos humanos e de conquistas da classe trabalhadora. Uma onda de conservadorismo
desde então vem instaurando, intensificando e reforçando opressões e violências já exis-
tentes anteriormente, mas menos explícitas e irradiadas na sociedade. Com a intensifi-
cação, produzem a necessidade de tomada de posição por parte da população nas mais
diversas instâncias, também na dança. Tomar posição seria a possibilidade de não permitir
o avanço dessa onda conservadora e neoliberal, no entanto, é sabido que esse exercício de
tomada de posição vem acompanhado da polarização e superficialização do debate, como
modo de desorientar e criar rupturas dentro da própria população, causando fragilidade
no interior das relações. Por isso nos é tão caro reconhecer a necessidade do fazer crítico
e coletivo hoje em dia.
14 Junto a esse exercício de aprendizado e transformação em grupo, percebo que nos pro-
cessos de inclusão e diversidades, o cuidado com quem incluir (quem acolher numa Jam,
num encontro, numa coletividade de IC, por exemplo), quando e como é fundamental para
garantir coerência de nosso posicionamento em dança e vida, que é no fim, nosso posicio-
namento político. Ou seja, nem todes podemos estar incluídes em caso de expressarem

256
A cultura do consentimento tem se desenvolvido especial-
mente nas relações de poder e gênero, no contexto da dança reco-
nhecemos a IC como a que se dedica de modo mais irradiado. Pos-
sivelmente outras danças que se desenvolvem por meio da partilha
(Dança de Salão15, por exemplo) também têm abordado isto. Veja
o quadro a seguir16 que nos ajuda a reconhecer posturas sociais
que podem facilitar a participação e o exercício da auto responsa-
bilidade e corresponsabilidade na dança.
Este quadro desenvolvido pela dançarina Megan Emerson
a partir de diversos anos de interação entre praticantes de dança
IC em Oregon, EUA. Parece-me que ele permite a geração de um
importante processo de autoavaliação e crítica de nossas relações
e coletividades. Percebe-se no quadro a primeira coluna (vermelha)
que seria a que conjuga mais opressão e a última (azul) que pro-
move maior inclusão e equidade. Mas é importante lembrar que
a evolução, não é uma realidade na experiência humana societal.
Entendo que não há um processo linear e crescente de experiência
social, cultural, mas sim uma diversidade de combinações e idas e
voltas, densidades e texturas que dão materialidade à práxis social
e neste caso, à experiência do consentimento na dança e da cultura
de consentimento.

preconceito, misoginia, machismo entre outros comportamentos opressores. Portanto, há


diferenças que não conjugam inclusão e que sendo assim, não devem ser incentivadas.
Pode parecer óbvio falar isso, mas é fato que muitas vezes o discurso da inclusão pode ser
incorporado contraditoriamente por modos excludentes de relação!
15 A Cia Grão (www.graodanca.com) de dança de salão, por exemplo, tem uma abordagem
contemporânea, que, entre outras coisas, discute papéis de gênero. Outres artistas dessa
dança como Débora Pazetto (SC) e Samuel Samways (MG) também tem buscado fazer a
autocrítica.
16 Publicação feita por Bruno Garrote filósofo praticante de IC e Acroyoga https://www.
facebook.com/photo.php?fbid=2316085365117142&set=gm.2183427618422400&-
type=3&theater (visita em 5/06/2019).

257
Quadro do Consentimento17.

Considero o Protocolo apresentado em anexo, outro exem-


plo de reflexão e sistematização em torno da dança e consentimen-
to e mostra-se como um primeiro documento criado mais oficial-
mente a esse respeito no contexto latinoamericano por parte de
praticantes envolvides. Ele mesmo contém breve apresentação con-
textual e des autores. Está na íntegra e sem edições18. É possível
estabelecer um diálogo entre o quadro da evolução da cultura de
consentimento e o protocolo criado na Gamboa, e creio que esta-
mos transitando entre “Criar”, “Planejar” e “Sustentar”, isso para
falar do que está escrito no protocolo Gamboa, pois se considerar-
mos as reações de muites praticantes de IC frente ao documento

17 Um relato sobre a Cultura do Consentimento pode ser encontrado aqui: Twenty Years
of Coming to Terms: Shifting from Disempowerment to Activism and Systemic Thinking
Acesso em 14/10/2019.
18 As notas de rodapé ao longo do protocolo são de minha autoria, como um pensar a
respeito do texto construído.

258
do Protocolo, talvez muitos de nós estejamos transitando mais em
“Suprimir” “Ignorar” e “Reagir”. Ou seja, há nas diversas comu-
nidades e entre diverses praticantes, diferentes percepções e modos
de lidar com a dança e os valores por ela suscitados.
Na minha experiência e percepção, há comunidades mais ou
menos temporárias de praticantes que vão gerando um aprendiza-
do, em constante mutação, visto que dependem da participação,
aprendizagem coletiva e manutenção/repasse do conhecimento de
dança bem como no que se refere a valores e éticas. Talvez por isso
estejam sendo publicadas as reflexões e experiências por meio de
registros práticos para o acesso a marcos de uma prática inclusiva
e equânime em dança. Se no quadro da cultura de consentimento
está a possibilidade de balizar e direcionar nossas práticas com
marcos que possibilitam a autocrítica; no protocolo aparecem su-
gestões de práticas e condutas mais inclusivas. Além disso, vale
lembrar o caráter ligado à tradição oral da dança em especial, ou
seja, as experiências mais ou menos coletivas impressas em cada
corporeidade vão adquirindo densidades variadas por onde elas
passam e importantes formas de transmissão da práxis. Por isso é
importante criar estratégias de avaliação, comunicação e atuação
que garantam a participação de todes; afinal, políticas por dentro
do processo devem garantir e validar uma diversidade de falas.

259
OUTROS PONTOS DE CONTATO

Andanças Poéticas na Cidade. Foto de André Olmos.


Na foto: Cali Ossani, Alejandro Lancelotti e pessoas não identificadas.
Projeto Arco Íris19, junho de 2019.

Percebo neste processo de pesquisa que o aspecto resistente/


questionador do status quo na dança é seguidamente transforma-
do e desafiado pela lógica perversa do capitalismo, estamos ato-
lados, dando voltas a modos de dialogar ou mesmo ‘raquear’20
os condicionantes que nos levam de volta, de novo, novamente a
serviço do Capital. Afinal, há como superá-lo sem destruí-lo na
raiz? Sem transformação social efetiva?

19 https://www.facebook.com/Instituto-Arco-Iris-Direitos-Humanos-815577011919857/
20 Termo raquear da língua inglesa, ocorre no sentido de entrar no sistema operacional de
computadores para romper com a configuração e lógica de funcionamento para interesses
próprios. Agora o estou usando com o mesmo sentido, para outro contexto: cultural e da
dança.

260
Acredito que para transpor a sensação de impossibilidade de
superação, um caminho seja o de reconhecer onde estão os pon-
tos de resistência, os focos e potências de resistência cultural que
a dança, mais especificamente a IC apresenta. Paradoxalmente,
percebo que nestes pontos se encontram as contradições, desafios
e muitas vezes o seu antídoto, ou seja, neles algo que ocorre como
uma apropriação superficial da potência resistente desloca seu sen-
tido transmutando sua força. Por isso é tão necessário na prática
da IC, fazermos a autocrítica e crítica rigorosas.
Em IC, por exemplo, a abordagem de corpe e de dança, o
discurso seguidamente é o de construir caminhos para a potencia-
lização de corpe e da dança. Tais caminhos se compõem pelo efei-
to do encontro e partilha próprios dessa prática e com diferentes
abordagens das práticas de educação somática num constante con-
vite à observação e autorregulação, caminhos estes que acontecem
junto com outres pares, caminhos estes que se dão na criação de
realidades em eventos pontuais pelas grupalidades mais ou menos
temporárias. Numa sociedade individualista como a nossa, a IC
pode ser um convite à experiência de partilha e de cooperação,
o que poderia representar uma prática de resistência. No entan-
to, nenhum de nós está livre dos condicionamentos e preconceitos
sociais a que estamos cotidianamente sujeitos, por isso, o convite
à cooperação em dança, não raro, vem paradoxalmente acompa-
nhado da idealização de parceiro (e até de movimentação), o que
faz apenas reforçar e frustrar nossa possibilidade de resistência, já
que pessoas fora desse escopo muitas vezes não entram na dança
ou não se sentem convidadas a entrar. Não tratar destas contradi-
ções, mantendo as afirmativas da proposta IC como dadas e não
como estando em movimento e tendo que ser validadas a cada en-
contro com cada corpe, é silenciar esses corpes e ao mesmo tempo
esvaziar o debate, despolitizando a prática. As vozes são muitas,
devemos abrir a percepção, incluindo em nosso campo sensorial as
que calam, as que habitualmente não capturam a atenção (atenção
esta que é necessariamente condicionada pelo Capital), ou seja,
vamos realmente além de nossos parâmetros alienados? Estamos

261
realmente criando políticas de dança mais justas para além das
imposições culturais?
Nos tempos atuais têm sido assunto constante a invisibilida-
de social, na IC não é diferente, um exercício permanente de obser-
vação e crítica deve ser feito nessa direção daqueles que, por exem-
plo, participam da IC, incluindo as pessoas que estão de algum
modo invisibilizadas. Na mesma direção, os assuntos conflitivos
também devem sair de baixo do tapete: questões de gênero, identi-
dade, classe social, acesso, entre outras, permeiam nossa prática e
discurso de forma a modificá-la na direção de maior equidade so-
cial e diversidade na dança? Apesar de haver alguma regularidade
em práticas de socialização de experiências, de discussões varia-
das em relação aos temas aqui abordados e IC; de haver referên-
cias práticas sobre diversidade, mediação dos conflitos; apesar de
algumas de nós estarmos discutindo e experimentando políticas
de cotas e de existirem muitas bolsas de participação em troca de
trabalho na maioria dos festivais; e apesar de existirem atividades
gratuitas de IC em grande maioria das cidades pelo mundo afora
(vide Contact Quarterly21), facilitando o acesso à prática; ainda há
um longo trabalho a ser feito.
Em Florianópolis, durante a realização do projeto Permeável
Corpo Artístico22 , em outubro de 2018, convivemos com Liana
Gesteira23 e Maria Clara Camarotti24, artistas integrantes do co-
letivo Lugar Comum 25 de Recife e que realizam bienalmente um

21 https://www.contactquarterly.com.
22 https://entraemcontato.wixsite.com/sitepca. Projeto idealizado e produzido por mim,
realizado com o Prêmio Elisabete Anderle 2017 da Fundação Catarinense de Cultura. En-
volveu as seguintes artistas convidadas: Cristina Turdo e Paula Zacharias (ARG), Iris Forelli
e Panmella Ribeiro (BR), Mariana Casares, Catalina Chouhi (URU), Javiera Sanhuesa (CHI).
23 Liana Gesteira, dançarina, praticante de IC, integra o Coletivo Lugar Comum em Recife.
24 Maria Clara Camarotti, dançarina, praticante de IC, integra o Coletivo Lugar Comum
em Recife.
25 https://www.coletivolugarcomum.com/.

262
encontro de IC26 em Pernambuco, além de desenvolverem em suas
práticas e espetáculos, estudos em IC. Numa conversa que reali-
zamos no Centro de Artes da Udesc sobre “quais corpes podem
dançar”, ambas concordaram que vivenciaram situações de gordo-
fobia e homofobia no contexto de práticas de IC. Outras partici-
pantes dessa roda de conversa consideraram a normatividade dos
corpos na IC um impedimento para participarem das jams sema-
nais oferecidas no local o que levou algumas a criarem situações
paralelas para a experimentação em IC. Por exemplo, o vez que eu
chego um projeto de montagem cênica com foco em IC e corpas
dissidentes com direção de Talita Corrêa27 e a presença do IC em
obras da Udesc como Sob Medida com direção de Gaia Colzani28,
cuja participação em ações de IC na cidade tem contribuído para
esta discussão29.
Em Buenos Aires, há três anos, oito mulheres30 entre 25 e 45
anos, praticantes de IC criaram um tempo/espaço para elas dança-
rem entre si, pois se sentiam desconfortáveis com certas situações
relacionando machismo no contexto de jams e eventos de IC. Esse
tempo/espaço onde dançavam juntas acabou gerando também se-
minários e uma jam regular na cidade pautadas nas suas experiên-
cias grupais, aberta a outres participantes.
Por um lado, se faz necessária a criação de espaços diversos
conforme os interesses e necessidades des praticantes, o que me
parece ser muito saudável. Por outro, por vezes parecem serem

26 https://www.coletivolugarcomum.com/encontro-contato-coletivo/.
27 Talita Corrêa é artista da cena, praticante de IC em Florianópolis. Mestranda no PPGT/
Udesc. Seu Trabalho de Conclusão de Curso (2019) discorre sobre corpes dissidentes em cena.
28 Gaia Colzani é artista da cena, diretora da peça teatral Sob Medida, tem contato com a
prática de IC em Florianópolis. Mestranda no PPGT/Udesc.
29 Outro exemplo é o projeto Andanças Poéticas na Cidade que produziu encontro entre
praticantes mais ou menos engajados na prática e/ou na discussão política da prática,
oferecendo atividades e reflexões em Florianópolis ao longo de três meses.
30 A grupa Mamíferas. https://www.facebook.com/mamiferasenconfusion/. Acesso em
setembro 2019.

263
um problema de quem está sensível ao mesmo (da vítima) e não
um problema existente no interior das relações ali presentes, ou
seja, de todes! Afinal, geração de uma diversidade de espaços não
significa a tomada de consciência e corresponsabilidade frente às
demandas nas comunidades de praticantes, apesar de ser uma sina-
lização dessas demandas e da valorização da autonomia e diversi-
dade de abordagens; as transformações na dança são demandas de
responsabilidade de todes!
O caráter de cooperação e improvisação no jogo da dança da
IC é, no meu entender, um convite ao exercício contínuo de atuali-
zação, ainda mais tendo decorrido mais de quarenta anos da prática
de IC, com uma irradiação geográfica e cultural imensa e havendo
vocabulários reconhecíveis, metodologias e acesso a materiais teó-
rico práticos.
Não é incomum entre os praticantes a reprodução de valores
do tipo: a atenção vai para quem dança bem, como se quem ‘domi-
na’ a dança detivesse mais direito de fala e de atenção, reproduzin-
do de algum modo, relações de poder hierarquizantes. Como se o
critério de verdade fosse ‘a dança’ num tipo de espectro alienado
de suas determinações ético políticas. Se fosse possível assim, seria
inviável a presença do machismo entre muitos praticantes ‘concei-
tuados’, já que é uma dança que, por exemplo, rompe com papéis
estereotipados de gênero31. Ao radicalizar esse tipo de proposição
crítica, o que se produz é um fenômeno que a princípio tende a
contradizer a própria dança. Ou seja, a mutualidade dos processos
sociais e da técnica/modo/dança; essa comunicação direta passa a
parecer alienada, de modo a que a crítica fique rasa e sem efetiva-

31 Na dança, se pensarmos que os portés (carregamentos), por exemplo não são exclusiva-
mente feitos por homens. O foco na dança partir das leis da física e do toque físico acabou
minando as limitações de papéis de gênero presentes na dança até então. No entanto,
contraditoriamente, a manipulação des corpes segue aparecendo a partir da força física e
nisso, os homens em geral estão favorecidos... Isso demonstra que há uma série de condi-
cionantes que precisam se desconstruídos para sairmos de relações de poder e gênero que
não sejam binárias, machistas e limitadoras.

26 4
ção na prática. Afinal, como seria a vida se a dança a inspirasse? E
como seria a dança que se inspirasse na vida que criamos enquanto
projeto utópico-político-artístico? Faz-se urgente avançar para além
dos limites impostos socialmente. Nada justifica atitudes excluden-
tes numa prática de IC.
Interessa a possibilidade constante de afirmar, afinar a radi-
calidade de resistência ao status quo com a prática na sua totalida-
de: relações em dança e na comunidade que dança que não estão
alienadas do contexto que nos cerca.
Estou considerando a dança como uma prática social e que
tem uma comunidade que a sustenta, portanto lugar de práticas
sociais variadas e contraditórias, território de disputa e criação. Em
IC podem haver mudanças nos modos de nos relacionarmos com
o toque, o peso, e as outras pessoas, visto que aparentemente se
privilegia investigar e criar em vez de controlar ou manipular; e se
prioriza construir experiências com base na autonomia criativa e
de manutenção/produção de conhecimento que são extremamente
importantes para a formação e a atuação crítica no contexto atual.
A mutualidade parece ser um princípio motriz da política da
IC. A construção de uma ética para a dança pode colaborar para
que a radicalidade da dança siga um pouco mais livre da captura
frenética do capitalismo a toda poética que rompe com suas lógicas
desumanizantes.
A dança como encontro pode ser que venha da construção
crítica de atores sociais/comunidade de dança frente a esse fenôme-
no. Uma construção que exigiria dança e encontro e diálogo e dis-
senso, sem medo de desestabilizar a aura de dança harmonizada e
romantizada que acaba por se afastar de seu caráter potencialmente
(e urgentemente!) transgressor e vitalizante e participativo e diverso!
Mesmo estando num marco de ruptura frente a papéis sociais
e hierarquias em dança; havendo estratégias de encontro e acesso
a prática da IC e uma crescente irradiação da prática na América
Latina; há muito ainda a ser construído para se alinhar com uma
crítica ao sistema capitalista, colonialista, machista e patriarcal. O
que percebo é um processo de desmistificação por parte de alguns

265
praticantes (na maioria mulheres) por meio da organização em gru-
pes, criação de encontros e diálogos que possam focalizar este deba-
te; com organização de materiais escritos (protocolo, fanzine, redes
sociais, entre outros), etc. Na minha pesquisa, foi possível verificar
que o contexto político pareceu intensificar (especialmente na Ar-
gentina, Chile e Brasil) a urgência de repensar a presença de nosses
corpes nas ruas, junto a isso, o discurso sobre a diversidade e os
movimentos feministas têm tensionado reflexões e mudanças frente
à prática e às coletividades num mundo que deve ser questionado
nos modos de ocupar e construir arte e vida. Num mundo que va-
lorize a dança como encontro enquanto um feito radical e contra
hegemônico!

REFERÊNCIAS

• AGAMBEN Giorgio. A comunidade que vem. Tradução de


Cláudio Oliveira. São Paulo: Editora Autêntica, 2013.
• BANES, Sally. Writing dancing in the age of post modernism.
New England: Wesleyan University Press, 1994.
• BOAVENTURA, S. S Meneses, M.P Epistemologias do Sul.
Coimbra. Almeidina, 2009.
• CRENSHAW, Kimberle. Mapping the Margins: Intersec-
tionality, Identity Politics, and Violence against Women of
Color. Stanford Law Review. Vol. 43, No. 6 (Jul., 1991), pp.
1241-1299
• JESUS, Jennifer Jacomini de. Ocupa MinC-SC: lugar de he-
terotopia. In: BAUMGÄRTEL, Stephan Arnulf; ENGROFF,
Luiz Gustavo Bieberbach; LIMA, Fátima Costa de ; MAT-
TIELLO, Emanuele Weber (Org.). Imagens Políticas. Florianó-
polis: Letras Contemporâneas, 1a edição, 2017, v. 01, p. 83-97.
• KRISCHKE, Ana Maria Alonso. Improvisação por Contato:
tecendo experiências Latinoamericanas. Tese. Programa de
Pós Graduação em Teatro, Udesc: 2019.
• ______________. Contato improvisação: a experiência do

266
conhecer e a presença do outro na dança. Dissertação. Pro-
grama de Pós Graduação em Educação, UFSC: 2012.
• NOVACK, Cynthia. Sharing the dance: contact improvisa-
tion and American culture. Madison, Wisconsin: The Univer-
sity of Wisconsin Press, 1990.
• QUIJANO, A. “Solidaridad” y capitalismo colonial/moder-
no. Otra Economía, v. 2, n. 2, 2008. p. 12-17. Disponível em:
http://revistas.unisinos.br/index.php/otraeconomia/article/
view/1077/269. Acesso em: 10 jun. de 2017.
• RANCIÉRE, Jacques. Política da Arte. In: Urdimento. Revis-
ta de Estudos em Artes Cênicas. n. 15, Florianópolis: Ceart/
Udesc, 2010, pp. 45 – 59.
• REA, Kathleen. Twenty Years of Coming to Terms: Shifting
from Disempowerment to Activism and Systemic Thinking.
https://contactimprovconsentculture.com /2019/08/11/
twenty-years-of-coming-to-terms-shifting-from-disem-
powerment-to-activism-and-systemic-thinking/?fbclid=-
IwAR3V15lLXvD760USphr3wp6NoQSMPy-uoyYh8gRe-
LN14LUTi1EgSQy1ibxY. Acesso em setembro 2019.
• SEGATO, Rita. Contra-pedagogías de la crueldade. Edito-
rial: Prometeo Libros. Buenos Aires. Argentina, 2018.
• SMITH, Nancy Stark. Harvest: one history of contact im-
provisation. Contact quarterly, v.32, n.2, verão-out. 2006.
• SINGER, Mariela. Contact Improvisacion el movimento em
constante presente web: http://jornadassociologia.fahce.unlp.
edu.ar 2014 (pesquisa feita em 26/04/2018).
• ______________. El cruce entre estética y política en una
práctica de danza. VIII Jornadas de Sociología de la UNLP,
3 al 5 de diciembre de 2014, Ensenada, Argentina. EN: Ac-
tas. La Plata: UNLP. FAHCE. Departamento de Sociología.
Disponible en: http://www.memoria.fahce.unlp.edu.ar/trab_
eventos/ev.4208/ev.4208.pdf. Acesso em julho 2019.
• TAMPINI, Marina. Desestabilizar la disciplina: cuerpo y
subjetividad en contact improvisation. UNA Departamento
Artes del Movimiento- Argentina, 2010.

267
ANEXO

A ideia deste protocolo surgiu em um círculo de mulheres32


durante o encontro Férias Contateiras33 (festival de contato impro-
visação na Gamboa, SC, Brasil, que investiga dança e autogestão)
em fevereiro de 2019.
Ali abriu-se um espaço de reflexão onde pudemos identificar
que muitas de nós (90% das que estávamos presentes) quando nos
iniciamos na prática de CI sofremos algum tipo de “abuso/inco-
modidade” (em relação a sexualidade, a força, a entrega de pesos,
etc.), por parte de algumas masculinidades.
Apesar de que o CI é uma dança que não pressupõe hierar-
quias de gênero nem de nenhum tipo, visualizamos que dentro
da prática se replica o que ocorre na sociedade em que vivemos,
uma sociedade neo-liberal, patriarcal que normalmente afirma
posições de poder e dominação em relação a mulheres cis, trans,
diversidades corporais e culturais.
Este “protocolo” foi elaborado como sugestões para futuros
encontros para gerar um marco de prática onde liberdade não seja
delimitada pelo domínio patriarcal e onde se respeitem os limites
de cada um assim como as diferenças.
É importante que se compartilhe tanto com participantes
como com docentes, produtores e visitantes.
Sentimos que estamos começando a dar visibilidade a situa-
ções que não eram nomeadas nem sobre as quais se refletia.
O objetivo não é estigmatizar, mas sim buscar entre todes
uma solução.

32 Círculo e encaminhamentos práticos dos quais participei.


33 Do qual participei como coprodutora/coidealizadora e dançarina.

268
PAUTAS PAR A ES PRODUTORES-ORGANIZADORES:

SUGESTÃO DE CONVITE PAR A O EVENTO:

Este é um encontro aberto a todes es que tenham interesse


na prática do Contato Improvisação com e sem experiência, se-
jam mulheres cis ou trans, homens cis ou trans, pessoas binárias
e demais interessadas, todes são bem vindes ao evento.
A diversidade cultural e corporal é importante para a cons-
trução deste evento [nome do evento]. Buscamos a presença da
diversidade de corpes e suas culturas, como negros, povos origi-
nários que brindem alteridade do posicionamento de seus corpes
tanto na pista como no espaço de convivência e autogestão.
Deixamos as portas abertas para corpos/corpas gordas, mui-
to magros, com capacidades diferentes, físicas, motoras ou afins.
Com mais diversidade crescemos todes.

NÃO TOLERAMOS PRECONCEITOS DE DISCRIMINAÇÃO DE NENHUMA ORDEM EM ES-


PECIAL A: MULHERES, HOMOFOBIAS, TRANSFOBIAS, XENOFOBIAS, LESBOFOBIA NEM
RACISMO, ENTENDENDO QUE A PRÁTICA DE CONTATO IMPROVISAÇÃO EMERGE EM UM
CONTEXTO CULTURAL QUE PRETENDE A EQÜIDADE DOS CORPOS NA DANÇA ASSIM
COMO A CRIAÇÃO DE REDES QUE TEM UMA MIRADA LIBERTÁRIA. ENTENDENDO QUE AS
“PIADAS” VINCULADAS A DISCRIMINAÇÃO SÃO “MICRO” PRÁTICAS DE DOMINAÇÃO, TÃO
POUCO SÃO BEM-VINDOS.

SUGESTÃO DE ATIVIDADES:

1 - Aulas para iniciantes onde poder visibilizar os marcos da práti-


ca desde uma perspectiva de género dentro do contexto histórico.
2 - Incorporar como atividade do evento um “círculo de mulheres
cis e trans” nos primeiros dias do festival. Seria importante tam-
bém fazer um “círculo de masculinidades”.
3 - Designar focalizadoras* que possam criar uma rede de apoio
para mulheres e corpos dissidentes.
4 - Ler o protocolo no círculo inicial do evento nomeando os ob-

269
jetivos durante a recepção, assim como apresentar as “focaliza-
doras”.
*
As focalizadoras serão praticantes de CI com experiência
na prática, estarão disponíveis34 para escutar, acompanhar as pes-
soas que se sintam abusadas no evento. Mirada aberta ao espaço
de prática.

POSSÍVEIS ATIVIDADES PAR A TR ABALHAR DENTRO DO “CÍRCULO DE


MULHERES LÉSBICAS, TR AVESTIS, TR ANS, BISSEXUAIS, NÃO BINÁRIAS
E INTERSEX” (ESPAÇO DE CUIDADO FÍSICO E SENTIMENTAL):

• Sexualidade feminina, prazer.


• Explorar maneiras de dizer não de forma física e verbal
(tem que ser claramente explicado aos iniciantes). Vali-
dar as “sensações incômodas” para permanecer ou não
em uma dança.
• Brindar os marcos da prática.
• Aguçar a escuta*.
• Fomentar o diálogo, leituras, reflexões e massagens en-
tre nós.
• Criar rede.
• Jam.

“Quando seja que dançamos há uma prova do que é con-


*

sensual35. Vais aceitar meu peso? Podemos ir rápido? Podemos ir


bem, bem lento? Ocasionalmente me encontro com alguém e con-
sensualmente trazemos uma energia erótica ou sedutora para a
dança, provamos o que é bem vindo para ambos. Há segurança
no intercâmbio porque somos acompanhados por nossa sensação

34 Sugiro também que estejam informadas de nossas construções históricas relacionadas


ao machismo, capitalismo, colonialismo e patriarcado.
35 Creio que isso é empapado de condicionantes históricos, ou seja, há que treinar/inves-
tigar o diálogo físico com estes marcos.

270
de comportamento apropriado no meio ambiente da jam” (Martin
Keogh 101 maneiras de dizer não)36.

POSSÍVEIS ATIVIDADES PAR A TR ABALHAR


DENTRO DO “CÍRCULO DE HOMENS”:

• Brindar os marcos da prática.


• Corpo empático e sensível.
• Como tornar-nos brandos e não utilizar a força para o
contato?  
• Observa como estabeleces contato com as masculinida-
des e como com as corpas femininas, notas alguma dife-
rença? Consegue nomeá-las?
• Agudizar a escuta. Entendo os limites?
• (sugestões de jogo em uma dança: abandonar o corpo
quando te sintas poderoso)37.
• (experimentar a aproximação em diversos níveis - lento,
rápido, em silêncio).
• (afastar-se de uma dança quando te sintas poderoso e/ou
trocar de parceiro/a).
• (proposta de exercício: não tomar a decisão de iniciar
- inibir o primeiro impulso de resposta - ir fundo na es-
pera com foco na respiração enquanto dança a espera)*.

sugerido por masculinidades que assistiram ao círculo de homens.


*

36 “o que é ‘apropriado’ no meio ambiente da Jam” afirmado pelo autor, me parece indicar
que é algo construído culturalmente e que pode ser de conhecimento de todes, a media-
ção a este respeito é fundamental, especialmente para iniciantes. Entendendo que qual-
quer cultura de dança se aprende ao longo de um tempo de dedicação, mas que podemos
sim, socializar certos marcos simplificados para garantir que todes participem de forma
mais e mais auto e corresponsável.
37 A pontuação e edição foi feita pelas autores.

27 1
SUGESTÃO A PR ATICANTES:

Recém começas a bailar és mulher, lésbica, travesti, trans,


bissexual, não binárie, intersex?
• Podes pedir que te expliquem quais são os marcos da
prática.
• Contata com as “focalizadoras”.
• Assiste ao “círculo de mulheres”
• Valida tua intuição!
• Sentes que o toque está direcionado a um lugar que não
queres? Sentes que não há equidade energética, que a
manipulação não é um jogo? Abandona essa dança, bus-
ca outra. E podes comunicar a “focalizadoras” e/ou a
quem esteja perto, e/ou a pessoa com quem bailas.

LIMITES:

• Não consegues colocar o limite nem física nem verbal-


mente? Busca outro corpo dançante que te ajude ou lo-
caliza as “focalizadoras”.
• Podes aceitar ou rejeitar danças sem ter que dar expli-
cação.
• Porém se precisas estratégias, podes dizer que vais ao
banheiro, a beber agua ou que estas cansada38.
• Vieste sozinha? Pede para a organização que te contate
com a rede de apoio para mulheres.

38 Infelizmente estas não são soluções para o problema já que não responsabiliza a pes-
soa que gera as incomodidades. Creio que ainda há um processo de responsabilização na
dança a ser revisto na formação em relação à formação das masculinidades. Parece-me
que não se trata apenas de instrumentalizar as mulheres e outras dissidências, apesar de
ser muito importante. A criação de espaço e de danças seguras é de responsabilidade de
todes, em especial das pessoas com mais poder (homens cis estão no topo dessa relação,
professores e produtores mais ainda... Enfim, devemos nos reportar à noção da intersec-
cionalidade para considerar a corresponsabilidade de forma equânime.

27 2
• És praticante com experiência?
• Você gosta de investigar e explorar teus limites? Busca
corpos que compartilhem teu interesse39, agudiza tua
escuta, colabora para que o espaço de prática siga sendo
um espaço livre.

O que sucede no salão é responsabilidade de todes, é um


espaço de construção coletiva, deste modo é fundamental que te-
nhamos a “escuta” e a mirada aberta ao que acontece em nosso
espaço de prática. Em caso de ver uma situação de abuso (uma
dança onde não há reciprocidade, equidade energética, uma dança
que se mostra “incomoda”, na qual há manipulação e não é jogo,
uma em que não há liberdade) podemos aproximar-nos da dança
e se é necessário intervir com nosso corpo/a ou palavras.

SUGESTÕES E POSSÍVEIS CAMINHOS


EM CASO DE ABUSO DENTRO DO ENCONTRO:

• Escutar a pessoa abusada e mediar no processo de apren-


dizagem.
• Conversar com a pessoa que cometeu o abuso.
• Em caso de insistência na prática de abuso, a pessoa que
não entende e insiste em ultrapassar os limites que lhe
pautam, será convidada a retirar-se do encontro40 prio-
rizando que, o clima do encontro seja seguro para es
praticantes de CI.
• A prática e investigação necessita de um ambiente de
confiança, escuta e liberdade.

Gamboa, SC, fevereiro de 2019. mulheres, lésbicas, trans,


bisexuales, não binaries, intersex de Brasil, Argentina, Bolívia,

39 E que estejam aptos a acolher ou dizer não para tuas propostas.


40 Sugiro incluir a possibilidade de chamar a polícia.

27 3
Chile, Colômbia, afrodescendentes e originárias. Reeditado em
Fpolis, SC em agosto de 2019 no encontro CI Consentimento41
no Espaço Transformando42 . Participaram da releitura mulheres,
lésbicas, trans, bissexuais e homens não binaries, hetero e homos-
sexuais, todas praticantes de CI.

Fim do protocolo.

41 https://www.facebook.com/events/463827607707856/
42 https://www.facebook.com/espacotransformando

274
ANA LUIZA CISCATO – Pedagoga, arte-educadora e
professora de dança. Teve sua formação inicial
em dança clássica pela Royal Academy of Dance
(Brasil, 1985) e pela Metodologia Cubana de
Dança Clássica (Cuba, 1993). Há mais de 20
anos trabalha com a inclusão social por meio da
dança. Especializou-se em dança pelos institutos
Steps e Martha Graham School, em Nova York
e paralelamente em uma técnica de apoio às pes-
soas com deficiências através da dança conheci-
da como Psicoballet, em Cuba, 1993. Com os
conhecimentos adquiridos em Cuba, iniciou em
1995 o Projeto Criança que Dança, enquanto di-
retora do Ballet Carla Perotti de São Paulo – SP.
Em 2003 aplicou o Psicoballet na Estação Dan-
çar, escola que fundou em Florianópolis, com
foco na inclusão de pessoas consideradas com
deficiência. Desde 2006, atua como professora
e diretora artística do grupo de dança da APAE
de Florianópolis. Por este trabalho, recebeu o
Prêmio Franklin Cascaes de Cultura em 2010.
No ano seguinte, obteve certificado de professora
pelo método norte-americano DanceAbility. Em
julho de 2012, coreografou e codirigiu o espetá-
culo BREATHE – Battle of the Winds, abertura
oficial dos Jogos Náuticos na Olimpíada de Lon-
dres. Desde 2014 é diretora artística da Cia. de
Dança Lápis de Seda.

276
DANÇAR, UM FIO CONDUTOR PAR A A INCLUSÃO.
Ana Luiza Ciscato

I
nclusão é um tema muitas vezes subestimado pelo excesso de
seu uso. Incansavelmente discutido nos meios de comunica-
ção, o assunto acaba nos transportando para a escola ou para
a acessibilidade das pessoas com deficiência, mas a abrangência
da discussão da inclusão – nos meios específicos – vai muito além
do óbvio.
Para desenvolver um trabalho inclusivo é necessário abra-
çar uma visão inclusiva de mundo. Conhecer o desenvolvimento
das pessoas e acreditar nesse processo através da conscientização
de que todos temos reconhecimentos, inteligências e capacidades
diferentes. Essa soma é precisamente o que agrega interesse e um
aumento de possibilidades para a resolução de questões que dialo-
gam com a sociedade como um todo. Todos temos formas diferen-
tes de nos expressar, de aprender, de nos colocar diante da vida.
A partir do momento em que essa essência for respeitada, aceita e
valorizada, teremos uma sociedade mais justa por meio de condi-
ções igualitárias de desenvolvimento e empoderamento, seja qual
for a forma de expressão e de atuação, de identificação de gênero,
idade, etnia ou crença das pessoas.
Sob a luz de que inclusão é uma via de mão dupla – de um
lado a pessoa com deficiência e de outro toda uma sociedade com
valores e conceitos preestabelecidos historicamente a respeito da
deficiência – quando trabalhamos ou pensamos em inclusão nunca
podemos esquecer disso. O trabalho deve surtir efeito nessas duas
esferas.
Segundo Vigotsky (1924), toda deficiência afeta antes de
tudo as relações sociais da pessoa e não suas interações diretas
com o ambiente físico. O “defeito orgânico” se manifesta inevita-
velmente como uma mudança de status social. Desde muito cedo,
pais, familiares, professores e colegas dão um tratamento diferen-

27 7
ciado a essa pessoa. Ora de forma positiva, ora negativa. Mas ca-
tegoricamente diferente. Se estabelece então uma relação social
diferente. O autor acredita ser essa a principal diferença entre o
homem e os animais: um animal que apresente qualquer defici-
ência, não terá em hipótese alguma sua “personalidade” afetada.
Entre o ser humano e seu ambiente físico, encontra-se um
ambiente social: um lugar de retratação e transformação de suas
ações recíprocas com o mundo. Portanto é o problema social re-
sultante de uma deficiência que deve ser considerado principal; e
por essa razão, a educação social – baseada na compensação social
dos problemas orgânicos – deve ser o ponto forte a ser trabalhado
para proporcionar o desenvolvimento geral (intelectual, emocio-
nal, motor, sensorial) da pessoa com deficiência e, consequente-
mente, transformar não suas atitudes, mas o olhar do outro, do
normatizado. Isso contribui para a diminuição de preconceitos e
do equivocado senso comum que acredita que o deficiente intelec-
tual não possui capacidades ou habilidades.
Pensar nas artes em geral como um caminho para inclusão
social das pessoas com deficiência pareceu, para mim, uma possi-
bilidade particularmente edificante. É trilhar por onde não exista
o que é considerado “certo” e o que é considerado “errado”, como
em outras atividades sociais humanas. É, de certa forma, um ca-
minho não trilhado em toda a sua distância (apesar da vulgariza-
ção do termo). Um olhar libertador que promove não só a possibi-
lidade de uma maior expressão do que há em nós, mas também de
transformação. Quando criamos artisticamente em determinadas
condições favoráveis, estamos experimentando em nós mesmos e
criamos diferentes ângulos de contato com o mundo ao nosso re-
dor. Esse processo pode ser altamente enriquecedor e podemos, da
mesma forma, descobrir e desenvolver em nós capacidades e ob-
servações antes totalmente desconhecidas. Além de oferecer como
resultado um produto artístico e a possibilidade de compartilhar
esse ideal de transformação com o público.
Segundo Flávio Gonzales (2009, p. 4), arte e sonho abraçam
o exercício maior das possibilidades criativas. A partir deles tudo

278
é possível. No entanto, a arte leva a vantagem de necessitar de
materialidade, de concretude.

Qualquer modalidade artística pressupõe ação, seja através da


escrita, da plasticidade dos materiais, da palavra, dos sons ou
das cenas. A arte pode até nascer de um sonho, mas, para que
seja arte, pressupõe a ação do corpo, o movimento, o comparti-
lhamento entre pessoas. Sim, pois ainda que um quadro pintado
jamais seja exibido para alguém, ele pressupõe, na sua própria
essência, a presença do espectador.

A arte tem um alto poder transformador por estar direta-


mente ligada ao fazer. A pessoa com deficiência tem, especialmen-
te graças à segregação social, restritas possibilidades de fazer. Está
sempre diante do estigma da incapacidade e por essa razão, em
grande parte das vezes, tem alguém que faça por ela. Segundo
Vigotsky (1924), o ato de fazer, ao mesmo tempo que transforma
o mundo também nos transforma, numa dança dialética que im-
pulsiona a evolução humana.
A inclusão celebra a diversidade e a arte utiliza essa diversi-
dade como matéria prima para sua realização.

UM REL ATO EM PRIMEIR A PESSOA A RESPEITO DOS GRUPOS


APAEDANÇA FLORIPA E CIA. DE DANÇA L ÁPIS DE SEDA.

Relato aqui um pouco da minha experiência profissional,


sobre a qual utilizo a dança como um fio condutor para o desen-
volvimento da pessoa com deficiência. Essa experiência foi cons-
truída ao longo do dia-a-dia em mais de 25 anos de trabalho e
transcende métodos e padrões. Conforme se faz, se cria.
Partindo do princípio de ser impossível separar o cognitivo,
o físico e o emocional, ou seja: considerando o ser humano como
um todo, percebo que é no corpo que se é o que se é. Dessa manei-
ra, é nele que a individualidade e a integralidade se apresentam e,

279
portanto, convém experimentá-lo, ensiná-lo, conhecê-lo. Conhe-
cer o próprio corpo faz parte da definição da identidade. É nesse
jogo de descobertas que os outros corpos diferentes nos mostram
quem somos. A dança – fazer artístico que mantém o corpo em
movimento – possibilita tais descobertas.
A princípio, foi com base nesse entendimento que iniciei o tra-
balho com dança inclusiva: com o objetivo único de utilizar a dança
como elemento propulsor. Pautado no fato de possibilitar a exterio-
rização de potencialidades que permitem a vivência do corpo e, por
meio dele, estabelecer ligações com o mundo externo. Representar
uma forma de expressão extraverbal, isso é o que desencadeia o
equilíbrio entre corpo, emoção e razão.
Visei ampliar as capacidades das pessoas ao utilizar seus cor-
pos de forma completa, harmoniosa, respeitosa e responsável, pro-
porcionando um bem-estar físico e psíquico. Incentivar um maior
poder relacional e de comunicação. Não menos importante, mes-
mo que em segundo plano no trabalho, esse processo promove be-
nefícios mais conhecidos da prática da dança, ligados ao próprio
domínio e capacidade de orquestração estética dos movimentos. O
objetivo é, antes de mais nada, a inclusão e observação das diversi-
dades por meio das relações possíveis entre humano-corpo, suas ou-
tras dimensões e o resto do mundo, de maneira não estanque. Não
havia a preocupação com o desenvolvimento de habilidades, mas
com as inteligências que vem do corpo no sentido da construção e
sustentabilidade de processos vitais, entre eles, o sentimento de per-
tencer, a motivação e a curiosidade pelo mundo, a possibilidade de
experimentar o amor em suas relações. Construções acima de tudo
pessoais, sem as quais a vida não se estabelece nem se sustenta. Que
os “normais” vivenciam e são encorajados a vivenciar, mas que são
historicamente negadas aos “diferentes”.
Nesse ambiente, onde diferentes tipos de corpos trabalham
juntos, com suas características diversas, não cabe distinção entre
eles e podemos desconstruir conceitos como deficiência ou normali-
dade. Aqui, o que importa é o benefício da diversidade, e não o que
possa ser socialmente considerado ou entendido como deficitário.

280
Com essa visão, iniciei o trabalho na APAE de Florianópolis
em 2004. O grupo APAEDança Floripa nasceu de uma experiên-
cia de dança clássica somada ao trabalho de desenvolvimento das
pessoas com deficiência e possibilitou um ambiente onde bailari-
nos experientes e alunos do Grupo de Dança da APAE formassem
uma unidade. O foco do trabalho não deixou de ser “terapêutico”,
mas a partir dele desenvolvemos a produção artística: peças e co-
reografias, cujas criações nasceram essencialmente do trabalho em
conjunto.
Frequentar espaços sociais onde a presença de pessoas com
deficiência é tão rara – como festivais de dança, congressos de
arte e educação, hoteis e aeroportos – impulsionou nos bailarinos
um sentimento de empoderamento. Um sentimento de orgulho. O
palco e todo o seu entorno representam, agora, um lugar de reco-
nhecimento, de autoria. Um lugar de libertação.
Observei a construção desse lugar em todas as ocasiões em
que tivemos a oportunidade de dançar: por exemplo no Festival de
Dança de Joinville, nos anos de 2008 e 2009. Mais uma vez pude
presenciar a ocupação, por essas pessoas, de lugares essencialmen-
te “normais”, o ambiente da competição, da apresentação de dan-
ça, da busca por corpos “perfeitos”, esguios, brancos, definidos,
esticados. E essa observação me fez concluir que, no fundo, todos
buscamos a evolução dos nossos corpos, e o resultado é sempre
inesperado.
Em 2010, no Congresso Mundial de Artes IDEA, em Belém,
Pará, conhecemos artistas do mundo todo que desenvolviam tra-
balhos com a mesma proposta do nosso. Pela primeira vez, tínha-
mos um parâmetro real de comparação, que nos dava subsídios
para avaliar a qualidade artística/autoral do grupo. Foi um estí-
mulo para todos os envolvidos constatar que estávamos no cami-
nho certo: recebemos incentivos e aplausos de pessoas que trilham
esse caminho há muitos anos e possuem uma rica experiência em
arte e inclusão. Tony Horitz, diretor da ONG inglesa Diverse City
foi uma dessas pessoas. Depois de conhecer nosso trabalho, nos
convidou para uma parceria. No decorrer dos encontros e reu-

281
niões sobre o tal projeto, nos vimos diante de um desafio muito
maior do que imaginávamos: a participação no show de abertura
dos Jogos Náuticos nas Olimpíadas de Londres de 2012.
O trabalho começou a ser elaborado no início de 2011. Atra-
vés de encontros virtuais mensais, a criação coreográfica foi de-
senvolvida sempre em conjunto. Dividimos a direção artística eu,
Louise Katerega e Deborah Baddoo, diretoras dos grupos Foot in
Hands Dance e State of Emergency, respectivamente. Nosso gru-
po interagia com os bailarinos ingleses e conseguia se comunicar
apesar da barreira do idioma. Esses encontros tomaram vida pró-
pria, e se tornaram um grande intercâmbio cultural para todos os
envolvidos.
Em maio de 2012, recebemos em Florianópolis uma dele-
gação de aproximadamente 20 pessoas, entre elas os bailarinos, a
roteirista, o diretor, a figurinista e as duas coreógrafas parceiras.
Trabalhamos oito horas por dia durante 20 dias. O espetáculo foi
estruturado em meio a um ambiente de respeito, amabilidade e um
nível de profissionalismo absolutamente inédito para mim.
Em julho de 2012 embarcamos para o Reino Unido: Lon-
dres, Bournemouth, Weymouth e Pool, com uma delegação de 25
pessoas. Foram dias muito produtivos e de vivências inesquecíveis.
Deparamo-nos com uma realidade muito diferente da nossa em
relação à inclusão social. Essa palavra, “inclusão”, não é dita. Não
é necessária. A sociedade abraça essas pessoas e as torna parte
integrante do todo social. Todas são alfabetizadas, estão inseridas
no mercado de trabalho e, acima de tudo, têm voz no âmbito so-
cial. A pessoa com deficiência da Inglaterra continua lutando por
seus direitos, nem tanto com enfoque em sua condição, mas sim
por ser uma cidadã como qualquer outra. O Reino Unido tem se
destacado como referência em acessibilidade e equidade de direitos
das pessoas com deficiências desde o estabelecimento do Ato de
Equidade de 2010, que prevê para essas pessoas direitos trabalhis-
tas, sociais, de acesso à saúde, benefícios do governo e muito mais.
Nosso trabalho conjunto, de três diretoras artísticas e um
elenco de bailarinos-autores, culminou em Breathe – Battle of the

282
Winds, um espetáculo de dança 100% inclusivo, 100% autoral,
com um nível de diversidade visível em todos os andares da produ-
ção: o diretor, Jamie Beddard, tem diagnóstico de paralisia cere-
bral; a roteirista, Alex Bulmer, tem deficiência visual; uma equipe
rica em diversidade e que, sob um olhar menos atento, poderia
parecer não tão revolucionária assim: tudo estava tão organizado
e funcional que as diferenças de cada um não chamavam tanto a
atenção quanto às relações de equidade do conjunto. Os diferentes
tinham a mesma importância, o mesmo empoderamento que os
normais – seja como bailarinos, cargos artísticos de grande res-
ponsabilidade, ajudantes ou colaboradores na plateia.
Das lições aprendidas nesse curto período, a maior foi: a
inclusão é possível. Meu antigo sonho de profissionalizar esses
bailarinos considerados “deficientes”, já era uma realidade do ou-
tro lado do oceano. Depois de todo o caminho percorrido, o re-
conhecimento vindo do palco, do espetáculo e dos aplausos, tudo
isso era, é, uma possibilidade real na vida dessas e de incontáveis
outras pessoas.

[1]

283
[2]

Em 2014, por intermédio de leis de incentivo à cultura do


Governo Federal, foi criada a Cia. de Dança Lápis de Seda, em
parceria com o Baobah Estúdios de Autocriação e da ÁPRIKA
Cooperativa de Arte. Essa companhia, com foco inclusivo, reúne
10 bailarinos com variadas características motoras/físicas e inte-
lectuais, sendo que algumas dessas pessoas apresentam caracterís-
ticas consideradas “comprometedoras ao desenvolvimento” (um
termo desafiador, que sempre me dá vontade de subverter).
É por meio desse grupo misto e heterogêneo que se poten-
cializou uma experiência criativa nesses indivíduos. Cada um con-
tribui a sua maneira e com as possibilidades que têm a bordo. O
que falta ou o que excede, segundo modelos adotados de “norma-
lidade”, sinceramente não poderia importar menos, especialmente
depois da nossa experiência no Reino Unido.
Ao utilizar a arte como propulsora da evolução social do
grupo, surge um domínio onde não existe certo nem errado. Todos

28 4
podem criar, expressar e construir, com liberdade, individualmen-
te e em grupo. É no campo da arte, entendida como metáfora da
própria vida, que temos a possibilidade de experimentar livremen-
te, sem repressão, sem precisar ser “normal”.
Depois de um extenso período de apresentações do espetá-
culo Convite ao Olhar (2014-15), no qual embarcamos em turnês
e participamos de diversos tipos de eventos, comecei a notar nos
bailarinos aquela mesma sensação de empoderamento e autoria
que conquistamos no Breathe. Mais uma vez percebi que prevale-
ceu a química do grupo versus as disparidades corporais. Com as
questões individuais superadas, fica para trás a “auto repressão”;
vem o orgulho de si, do seu corpo, de quem nós somos. Só con-
seguimos observar essa evolução individual em sua totalidade ao
observar a evolução do grupo.

[3]

285
[4]

O processo de criação e desenvolvimento do próximo espe-


táculo, Será que é de Éter?, inspirado no trabalho de Chico Bu-
arque, levou essa evolução a um novo patamar: a rotina de pre-
paração e ensaios agora incluía novos personagens, um grupo de
músicos que se apresenta ao vivo, no palco, com os bailarinos. A
relação entre todos esses atores se aprofundou ao longo de toda a
jornada do espetáculo e, se já podia ser notada por trás das cenas
desde os primeiros momentos, hoje é perceptível para o especta-
dor, no palco. As transformações positivas em todos os envolvidos
foram impressionantes para mim, e a partir daí, sinto que a Cia.
ganhou novos membros no grupo liderado pelo diretor musical
do espetáculo, Luiz Gustavo Zago e pela cantora e parceira nesse
projeto Cláudia Passos.

286
[5]

[6]

287
Concluí que os “meus” bailarinos, sob a “minha supervi-
são”, agora são um elenco firme, autoral, empoderado, com direito
à decisões de todos os tipos e que, livres das amarras da norma-
tização social, demandam uma participação artística relevante
em toda a produção da companhia. Isso acontece porque eles são
bailarinos profissionais, remunerados, conscientes e ativos na ati-
vidade da criação. Convidam o público a olhar – não os limites
de cada um, mas o espaço que existe além. Não o que eles, nós,
temos de diferente, mas o que temos de parecido: o que não existia
e tivemos a oportunidade de criar juntos.

[7]

288
LEGENDAS
(1) Cia. de Dança Lápis de Seda | Foto: divulgação
(2) Cia. de Dança Lápis de Seda | Foto: divulgação
(3) Espetáculo Convite ao Olhar | Foto: Cristiano Prim
(4) Espetáculo Convite ao Olhar | Foto: Cristiano Prim
(5) Espetáculo Será que é de Éter? | Foto: Tóia Oliveira
(6) Espetáculo Será que é de Éter? | Foto: Tóia Oliveira
(7) Cia. de Dança Lápis de Seda | Foto: Cristiano Prim

REFERÊNCIAS

• ARANHA, Maria Salete Fábio. Integração Social do Defi-


ciente: Análise conceitual e metodologia. Temas em psicolo-
gia 2, 1995.
• ARTE SEM BARREIRAS. Educação, arte e inclusão. Edição
Especial. Anais do 1º Congresso Internacional. Ano1, nº2.
Belo Horizonte: PUC/Minas. Dezembro de 2002 a março de
2003.
• LOURO, Viviane (Organizadora). Arte e Responsabilidade
social: inclusão pelo teatro e pela música/ Viviane Louro;
Sergio Zanck; Alex de Andrade; Lisbeth Soares; Flavio Gon-
sales. Santo André: TDT Artes, 2009.
• PESSOTTI, Isaías. Deficiência Mental: da superstição à ciên-
cia. São Paulo: T. A. Queiroz.
• VYGOTSKY, Lev Semyonovitch. Estudos sobre a história do
comportamento: Símios, homem primitivo e criança. Trad.
Lólio Lourenço Oliveira. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
• ______________. Obras Completas. Tomo cinco. Cuidad
de la Habana: Editorial Pueblo u Educacion, 1995.
• Individuals with Disabilities Education Act (IDEA), pan-
fleto da American Psychological Association. Disponível em:
http://www.apa.org/about/gr/issues/disability/idea.aspx

289
ISABEL MARQUES – Diretora do Caleidos Cia. de
Dança e do Instituto Caleidos, em São Paulo,
capital. Contemplada pela Bolsa Vitae de Artes,
pelo Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna,
pelo Programa de Fomento à Dança para a Ci-
dade de São Paulo e pelo Programa de Ação
Cultural do Estado de São Paulo. Doutora em
Educação pela USP, MA in Dance Studies pelo
Laban Centre (hoje Trinity Laban, Londres)
e Pedagoga pela USP. Dedicada à pesquisa e
produção artística nas áreas de interface en-
tre dança/educação. Autora dos livros Ensino
Dança Hoje (6ª. Ed), Dançando Na Escola (6ª.
Ed), Linguagem Da Dança (Prêmio Funarte de
Dança Klauss Vianna, indicado para o Prêmio
Jabuti 2011), com Fábio Brazil publicou Arte
Em Questões (Prêmio Fomento à Dança SMC/
SP, indicado para o Prêmio Jabuti 2012).
ISABELMARQUES1964@GMAIL.COM

290
CALENDÁRIO DE ENCONTROS:
DANÇA E TR ANSFORMAÇÃO 1
Isabel Marques

E
ncontros são redes de relações que se distendem no tempo
criando calendários móveis de memórias que se presentifi-
cam nos cruzamentos de muitos espaços. Nesse artigo, me
volto às memórias presentes de encontros que me fazem refletir
sobre a dança em tempos e espaços de educação e arte. Comemo-
ro 10 anos de verdadeiros encontros proporcionados pelo Múl-
tipla Dança.

21 DE JULHO DE 2009
Proferi palestra de abertura sobre “Dança e Educação” no
Seminários de Dança 3 no Festival de Dança de Joinville.

Reencontrei Marta Cesar. Nesse encontro de profissionais


da dança, discuti com o público as diferenças entre contatos e
relações nos processos de ensino e aprendizagem na dança, tendo
como fio condutor o livro “Educação e Mudança” de Paulo Freire.
O texto desta palestra está publicado no livro verde do seminário
para o qual olho agora na prateleira da biblioteca do Instituto
Caleidos. Volto ao livro e ao texto com frequência, pois vejo elu-
cidados ali vários aspectos do que acredito ser um dos propósitos
da dança/educação: estabelecer encontros que gerem relações ( e
não somente contatos). Digo no artigo que “os contatos são refle-
xos, enquanto que as relações são reflexivas. Contatos são incon-
sequentes, já as relações, consequentes. Para Paulo Freire, os con-
tatos não transcendem, são intranscendentes; transcendentes são

1 Agradeço a Fábio Brazil pela leitura crítica e contribuições para este artigo.

291
as relações. Os contatos são intemporais ao passo que as relações
são temporais. Em suma, os contatos são unívocos, monológicos,
estáticos. As relações são plurais, dialógicas, transformadoras”.
Transformar, “fazer mudar de forma, de aspecto, qualquer alte-
ração de um sistema”, dizem os dicionários. Encontros e trans-
formação, tema que me cabe no convite desta publicação. Acho
que Marta se lembrou dessa palestra e por isso me convidou para
escrever este artigo.

01 DE DEZEMBRO DE 2015
Visitamos uma Escola de Ensino Médio ocupada
na Zona Oeste de São Paulo.

Primeiro impacto: se não fosse pela mobilização dos estu-


dantes, acreditaria estar em uma escola do século XIX. “Celular
não combina com escola”, dizia um cartaz canhestro pregado na
parede de entrada da escola. Como assim? É patente como as esco-
las públicas não estão sendo capazes de acompanhar e compreen-
der os novos encontros que se dão nos twitters, tinders, facebooks,
skypes, instagrams etc.! Essa anacronia tem desencadeado, certa-
mente, os des-encontros entre gestores, professores e estudantes
que as ocupações evidenciaram. As mobilizações dos estudantes
incluíam calendários com dança. Danças que aprendem pelos ce-
lulares, com pessoas que conhecem pela internet e que permitem
encontros de outra ordem – a ordem virtual, tão real e significativa
quanto a presencial. Assim eles aprendem suas danças. Pergunto-
-me: os professores são, então, dispensáveis? Confesso que ainda
acredito que haja espaço para o professor. Ainda acredito que pro-
fessores, conectados aos espaços tempos virtuais dos estudantes,
podem fazer e propor mediações entre as danças do mundo virtual
e o conhecimento universal em dança; acredito que encontros pre-
senciais entre professores e estudantes podem ampliar as possibili-
dades de encontro entre a dança e a educação, entre a educação e
a nossa cultura-mundo.

292
23 DE FEVEREIRO DE 2016
Ouço da janela de meu apartamento panelas batendo e
gritos de “fora vagabunda”. Ligo a TV e escuto o pronuncia-
mento da presidente Dilma Roussef.

Que país é esse em que a presidente da República é chamada


de vagabunda aos gritos pela janela de um bairro de classe média
em São Paulo? Teriam feito o mesmo se fosse um presidente ho-
mem? Fico assustada com esse comportamento misógino generali-
zado que se instaura. À misoginia alia-se a homofobia, o sexismo e
o machismo. Inevitável não me lembrar do quanto a dança, por ser
historicamente considerada “coisa de mulher”, tem também sido
excluída, desprezada, diminuída nos meios educacionais e sociais.
É no máximo um enfeite, um divertimento dominical dos famosos
que entretém as massas. Ao mesmo tempo, percebo o quanto a
dança tem, ao contrário disso, empoderado mulheres, LGBTQI+s
e crianças que sofrem constantemente a violência de batedores de
panela. Sempre acreditei que se o encontro com a dança for de fato
uma experiência, ela não só empodera ou fortalece, ela transfor-
ma as pessoas e pode também transformar contextos sociais.

05 DE MAIO DE 2016
Recebi convite para integrar a equipe de assessores do
governo Fernando Haddad na Secretaria Municipal de
Educação de São Paulo. Aceitei.

Quase 25 anos depois retorno à Secretaria de Educação


como assessora na área de Dança. 25 anos antes havia trabalhado
no Projeto de Reorientação Curricular da mesma secretaria na
gestão Paulo Freire (anos 1992-93). Uma vida se passou. Na épo-
ca, já estava cursando disciplinas no curso de doutorado na USP,
mas foi o encontro com Paulo Freire, “no chão da escola”, que me
mobilizou de fato para pensar/fazer educação e arte do ponto de
vista das relações e dos encontros que ultrapassam a perspectiva

293
individual e individualista. Sempre que escrevo sobre dança reen-
contro Paulo Freire. Ouço também vozes dissonantes em minha
cabeça, “Paulo Freire de novo/ainda, Isabel?”. Paulo Freire talvez
não saia nunca de meus textos e de meus referenciais práticos,
teóricos, artísticos e pessoais justamente por ter sido um encontro
marcante em minha trajetória de vida profissional para compreen-
der, formular e propor danças que gerem encontros entre a arte, o
ensino e a sociedade, proposta que desenvolvo há tantos anos. Pelo
menos agora que a situação política instaurada pelo golpe parla-
mentar é muito parecida com a de 1964, talvez os “acadêmicos de
plantão” não murmurem pelos cantos que estou “desatualizada”...
rs. Aliás, muitos deles estão fazendo revisão de Paulo Freire para
entender novamente o papel da educação e da arte em contextos
autoritários, para entender o sentido de pensarmos em transfor-
mação social em tempos de encontros necessários.

25 DE MAIO DE 2016
Vejo na internet a foto do Ministro da Educação, Men-
donça Filho, recebendo Alexandre Frota, ator pornô, para con-
versar sobre as propostas do Movimento Escola Sem Partido.

Que escola é essa “sem partido” afinal de contas? Talvez


queiram dizer: “sem política”? Se isso vingar, seremos proibidos de
discutir política em sala de aula (como se educar não fosse em si
um ato político); seremos proibidos de contextualizar conhecimen-
to, de aprender e compreender a dança/mundo de forma crítica e
problematizadora. É isso? Os “ratos” da época do governo mili-
tar serão agora nossos alunos com seus celulares gravando aulas e
nos denunciando por propor processos de criação em dança. Serão
eles a denunciar-nos por criarmos com dança redes de relações que
nos permitam questionar e criticar a injustiça social, as mudanças
climáticas, a colonização, o racismo? Que dureza discutir transfor-
mação frente à onda conservadora que assola o país. É possível hoje
transformar de fato? Tenho o pressentimento de que, se, no futuro,

294
a dança não for totalmente banida das escolas, ela será apresen-
tada somente como um conjunto de exercícios corporais técnicos
necessários ao aprendizado de passos e sequências de repertórios
prontos. O que se deseja são resultados previsíveis que devem ser
simplesmente copiados pelos estudantes e apresentados nas festas.
Estas propostas em geral isolam, homogeneizam corpos e pessoas,
antagonizam-se aos encontros transformadores que a dança/arte
pode proporcionar em contextos múltiplos de relações.

19 DE JUNHO DE 2016
Comecei a ler “A cultura-mundo: resposta a uma
sociedade desorientada”, livro de Gilles Lipovestsky.

A orelha o livro me pergunta: “Qual é a cultura que caracte-


riza o mundo de hoje? De que forma ela se relaciona com os princi-
pais eixos de nossa época – capitalismo globalizado, individualis-
mo, consumismo, internet?”. Tenho percebido as pessoas, diante
da crise política, econômica e social que nos assola voltando-se
para si mesmas como solução – mesmo que provisória. Diante do
desconforto que as crises instalam em nossos corpos, mergulha-
mos em nossa individualidade. Voltamos a acreditar que solistas
virtuosos e bem treinados podem vencer a avalanche social – e
isto se replica no mundo da dança e da educação de forma clara.
Lipovetsky afirma que a descrença e a impotência da esfera públi-
ca têm causado dinâmicas de individualização que geram somente
a busca do bem-estar pessoal e de consumo. Tenho percebido
que, diante das incertezas e das inseguranças, o esforço pessoal de
cada um vem se voltando cada vez mais para salvar seus confor-
tos adquiridos, seus empregos, suas danças personalizadas – cus-
tomizadas. Na página 48 de seu livro, Lipovestsky traz o termo
homoindividualis, aquele “desenquadrado, liberto das imposições
coletivas e comunitárias”. Vejo um paralelo muito claro entre essa
análise e o que tenho vivenciado entre artistas e estudantes de dan-
ça: a “minha dança”, o “meu projeto”, o “meu solo” nem sempre

295
dialogam com uma ordem democrática plural. Esse hiperindivi-
dualismo inviabiliza encontros, as pessoas não estão ancoradas
no diálogo, a necessidade de segurança se impõe e se sobrepõe à
urgência da transformação.

20 DE JULHO DE 2016
Foi aprovado o Programa de Fomento à Cultura da
Periferia de São Paulo. Lei no. 16.496/2016.

Conitnuo lendo Lipovetsky. Ele afirma na página 52 que


hoje os indivíduos reinvestem em suas comunidades particulares
imediatas, pois, “ao atomizar o social, a dinâmica de individu-
alização engendrou uma nova forma de insegurança identitária
baseada na perda das ancoragens comunitárias. Daí a necessidade
de identificar-se com comunidades particulares, étnicas, religiosas
ou infranacionais capazes de recriar um sentimento de inclusão
coletiva”. Percebo que este é um caminho de reencontro em nosso
momento sociopolítico-cultural estilhaçado e que a dança pode ter
um papel importantíssimo, diferente dos anteriormente traçados,
na reconstituição do estado de direito. Só uma coisa me preocupa:
ao (re)encontrarmos nossos nichos (periféricos, étnicos, religiosos,
educacionais, artísticos), seremos capazes também de manter diá-
logos e encontros na experiência em dança com aqueles que são e
estão diferentes de nós? Qual o próximo movimento?

10 DE AGOSTO DE 2016
Entregamos a última versão escrita e revisada do documen-
to de Arte para a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. 

Um dos pontos importantes dessa escrita foi revisitar a refle-


xão sobre a experiência em dança: “Seria interessante relembrar-
mos que ter uma experiência implica um fluxo entre fazer/pensar/
sentir, exige processos de ação/reflexão/ação sobre a linguagem; a

296
experiência nos toca, nos forma e nos transforma. A experiência
é um modo de expandir e ampliar possibilidades do ser/estar no
mundo, de perceber conscientemente, de se relacionar e de viver
em sociedade. Neste documento diferenciamos experiência de vi-
vência (embora a experiência englobe a vivência), ou seja, enten-
demos a vivência como um simples contato ou uma atividade de
Dança na escola. Por outro lado, trazemos a experiência em Dan-
ça como um direito de aprendizagem dos estudantes”. Pergunta
que não me cala: temos hoje nos preocupado – nas companhias de
dança, nos coletivos, nas escolas, nos projetos sociais, nas acade-
mias, nos festivais – em buscar/gerar experiências de fato ou temos
nos contentado como vivências em massa que mascaram tanto a
experiência quanto a ideia de coletivo transformador?

04 DE SETEMBRO DE 2016
Vamos à manifestação dos 100 mil pela
democracia, na Avenida Paulista.

Senti no corpo a “multidão” proposta por Antônio Negri


em seu trabalho, aquela que abraça o coletivo, a cooperação, a
criatividade e o compartilhamento. Multidão que se constrói a
partir do reconhecimento do outro, da singularidade. Quando
a multidão passou pelo túnel escuro entre a Av. Paulista e a Av.
Rebouças e as luzes dos celulares se acenderam acompanhando
os cânticos no eco do cimento, o tempo foi suspenso, deu-se um
encontro entre mais de 100 mil pessoas. Dou-me conta de que a
presença da Arte em todos os aspectos desta manifestação fez dela
uma multidão de fato. O que teria sido desta manifestação sem os
cartazes e faixas visual e poeticamente trabalhados? Como teria
sido essa manifestação sem o som dos tambores, das cornetas e
das vozes que cantavam? Como teria sido esta manifestação sem
os corpos que se moviam coletivamente, que dançavam, que mar-
chavam? O que teria sido desta, e de tantas outras manifestações
políticas, sem a Arte? #foratemer

297
20 DE SETEMBRO DE 2016
Recebi uma mensagem/convite de Marta Cesar e Jussara
Xavier para participar de um livro comemorativo do Festival
Múltipla Dança, em Florianópolis.

“Estamos elaborando um projeto de publicação de livro


(bilíngue português/inglês), versão impressa e digital comemorati-
vo a décima edição do Festival Múltipla Dança, com lançamento
previsto para 2017. Gostaríamos de lhe convidar para compor o
quadro de autores e escrever sobre aspectos relacionados à dança
como encontro, dentro do tema dança e transformação”. Como
sempre quando recebo convites assim, abertos, fiquei refletindo
sobre a razão de ter sido convidada para escrever nesse livro. En-
contros e a dança. Encontrei Marta pela primeira vez quando mi-
nistrei uma disciplina no Curso de Especialização em Dança na
Udesc, em 2000. Nosso encontro foi proporcionado pela dança,
pelo propósito de conhecer e aprofundar conhecimentos em dan-
ça. Sim, a relação pedagógica se configura justamente no encontro
entre professores e estudantes mediados pelo conhecimento. Nesse
sentido, o conhecimento é uma via de encontro; a dança, por ser
conhecimento, é também uma via de encontros. Nas salas de aula,
nos palcos, nas ruas, na internet.

22 DE SETEMBRO DE 2016
Recebo no grupo de Whatsapp que discute a BNCC
(Base Nacional Curricular Comum) a MP (Medida Provisória)
que retira a Arte do Ensino Médio.

Este é só o começo, penso, e justamente agora que a Lei


13.278/16 tinha sido aprovada no Senado instituindo a obrigato-
riedade das quatro linguagens artísticas em todo território nacional
(Dança, Música, Teatro e Artes Visuais). Foram tantos anos de luta
da FAEB (Federação de Arte Educadores do Brasil) para avançar na
legislação e atualizar a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação

298
Nacional) colocando o Brasil em outro patamar de compreensão da
Arte na Educação. Mas vamos refletir; de duas, uma: ou os manda-
tários do governo Temer menosprezam e ignoram a Arte e a Arte
na Educação ou, ao contrário disso, eles têm plena consciência e
temem o potencial transformador da Arte na educação de cidadãos.
Nada mais apavorante para um governo conservador do que educar
pessoas capazes de ler o mundo de vários pontos de vista e com isso
abrir espaços para escolhas indeterminadas e abertas; nada mais
assustador para um governo formado predominantemente de ho-
mens, brancos, ricos e cristãos do que educar pessoas para a plurali-
dade, para o verdadeiro e salutar encontro entre as diferenças; nada
mais ameaçador para um governo do que educar pessoas capazes
de imaginar, experienciar, e, sobretudo, de criar. É isso, a dança nas
escolas pode ser apavorante, assustadora e ameaçadora aos olhos de
quem pretende controlar, cristalizar e manter tudo como está. Ela
transforma. Transforma quando se abre para a imaginação, para
experiência, e, sobretudo, para a criação. Criar é transformar. Sa-
bemos isso em nossos corpos quando dançamos.

31 DE OUTUBRO DE 2016
Estudantes e professores da Escola de Aplicação da USP
vieram ao Instituto Caleidos dançar o espetáculo “Coreô”, que
comemora 20 anos do Caleidos Cia. de Dança.

Resolvemos, em ato de protesto, manifesto e resistência,


fazer um vídeo com os estudantes que participaram do espetá-
culo perguntando “Por que Arte no Ensino Médio?”. Foram até
agora 4061 visualizações do vídeo pelo Facebook. Lindas e po-
tentes as respostas dos estudantes: “a arte é a nossa magia”, a
Arte é importante “...para transformar e não só ficar nas mes-
mas coisas”, a Arte proporciona “... interagir com outras pesso-
as, com a cultura brasileira, com outros lugares”, afinal, “com a
arte a gente se encontra”. Quem afirma isso é porque realmente
teve uma experiência, um encontro transformador com a dança.

299
09 DE DEZEMBRO DE 2016
Nos 45 minutos do segundo tempo conseguimos ir à
32ª Bienal de São Paulo: Incerteza Viva.

O livro da Bienal já estava descansando em minha mesa


de trabalho há meses. Presente de Sonia Fernandes. O livro me
instigava pelo título, pelo formato, pelas imagens. Jochen Volz,
curador da exposição, cita Z. Bauman lembrando-nos de uma
imagem sua sobre o mundo atual: hoje caminhamos sobre “uma
fina camada de gelo, escorregadia demais para corrermos sobre e,
no entanto, tão frágil que não podemos parar”. Penso que assim
é também a arte da dança, frágil e potente, escorregadia e firme,
pausa em movimento. Assim são os encontros que ela permite e
possibilita. Assim construímos a dança/mundo: nas fragilidades e
nas incertezas do viver contemporâneo. Acho que é por isso que
dou tanto valor aos processos de improvisação em dança, para
mim eles são o nosso tempo, a nossa dança/mundo hoje. A impro-
visação é dança/arte compartilhada é a própria incerteza quando
não é compreendida como exercício ou preparação para resulta-
dos. Os processos de improvisação em dança no lembram que “a
incerteza é o abraço que damos ao futuro”, diz Mia Couto nesse
mesmo livro da Bienal. Sábio. Dançando incertezas, ou seja, im-
provisando, iremos ao encontro de um futuro melhor.

22 DE JANEIRO DE 2017
Hoje dançamos o “Coreológicas Ludus” no Sesc Osasco,
abrindo o ano de 2017 do Caleidos Cia. de Dança.

Voltei para casa e comecei a escrever esse artigo. 20 anos


dançando o Coreológicas (em suas diversas versões) e ainda me
emociono. Crianças, jovens, adultos e idosos dançando juntos suas
próprias danças com a mediação dos artistas/docentes. O que há
de especial neste espetáculo? Acima de tudo, o encontro. Encontro
entre pessoas que, na dança proposta pelos artistas, redescobrem

300
seus corpos em seu potencial de criação. Isso é absolutamente
transformador. É isso. As propostas interativas do Caleidos Cia.
de Dança geram vários tipos de encontro: encontro entre os intér-
pretes, entre os intérpretes e o público, o público consigo mesmo.
Esses encontros seriam totalmente diferentes se concebidos sob a
égide do “dançar para” e não do “dançar com” que propomos em
nossos trabalhos. Acredito que os encontros propostos pelo Ca-
leidos Cia. de Dança são singulares porque trabalhamos com um
conceito que desenvolvi já em 1996 em minha pesquisa de dou-
torado: a proposição cênica. A proposição se diferencia de uma
coreografia pronta, pois é lúdica, incerta, aberta; é um convite, e
não uma apresentação a ser cultuada, distante do público. Cada
vez que terminamos de dançar e eu, da mesa de som digo: “este es-
petáculo só se completa com a presença do público, obrigada pela
participação de todos” compreendo que a dança pode ser um elo
significativo entre pessoas que se compreendem no mundo, afinal,
Paulo Freire sempre me ensinou que “o diálogo é o encontro dos
homens [e mulheres] para a pronúncia do mundo”.

23 DE JANEIRO DE 2017
Recebo uma mensagem de Whatsapp de uma aluna/amiga
sobre seu aluno da Escola de Aplicação da USP.

“Querida Isabel, acontecem algumas faíscas na escuridão.


Acabo de saber que um dos alunos (o Pedro) foi aprovado no curso
técnico de dança. Recebi um áudio lindo de agradecimento dele
e quero retransmitir essa gratidão a você. Grande parte do que
oferto aos alunos da EA [Escola de Aplicação] está ligado ao nosso
encontro. Aprendo muito com vocês sobre como dançar e ensi-
nar dança de forma rigorosa, poética, clara e generosa. Nesse mo-
mento, com os olhos marejados, sou só gratidão por estudar com
você e trabalhar com dança na EA. Um beijo!”. Este estudante é
o mesmo que disse em nosso vídeo: “Por que não ter arte a vida
inteira?”. Há esperança no fim do túnel.

301
25 DE AGOSTO DE 2019
Recebo de Marta Cesar um e-mail perguntando se eu
toparia escrever uma nova carta de anuência para que o livro
comemorativo dos 10 anos do Múltipla Dança participasse de
um novo edital.

Anos se passaram, mas a vontade e a necessidade de encon-


tros permaneceram. O livro ao qual esse artigo/diálogo se desti-
nava não foi publicado na época por falta de apoio financeiro. Em
2019, surge uma nova esperança de publicação por via de outro
edital. Perguntam-me se ainda desejo publicar esse artigo. A res-
posta é rápida: claro. Livros geram encontros, que geram conver-
sas, que geram reflexões, que geram novos encontros. Sou de uma
geração de dança que começou a valorizar a inserção da teoria nas
práticas de dança. Tive amigas que foram ostracizadas do mundo
da dança por estarem cursando mestrado. É verdade. Mas cursos
universitários começam a surgir e as discussões sobre as relações
teoria/prática na dança se intensificaram. Hoje escrevo um artigo
para um livro na certeza de que ler e escrever sobre dança já não
é mais um divisor de águas. A história traça caminhos sem volta.
Encontros entre teoria e prática no mundo da dança nos fazem
“esperançar”, como nos convocou Paulo Freire. A esperança é em
si um ato revolucionário, dizia.

01 DE DEZEMBRO DE 2019
Em pleno domingo chuvoso, típico paulistano, sento-me
para reler esse artigo prestes a ser enviado para a editora.

Esse momento poderia ser simplesmente mais um entre mui-


tos de leitura e escrita, #sóquenão. Daqui a um mês completa-
remos um ano do governo Bolsonaro e o país entrou em queda
livre no que diz respeito à políticas públicas voltadas para cultura
e educação. Desde que escrevi esse artigo, o país foi dividido en-
tre aqueles que acreditam e lutam pela democracia, pelos direitos

302
humanos, pela justiça social e pela soberania nacional e aqueles
que apoiaram a volta das milícias, da censura, da privatização e
de projetos que desacatam a humanidade. O país se dividiu entre
aqueles acreditam nas relações humanas e no poder do encontro
e aqueles que idolatram seus próprios umbigos e suas contas ban-
cárias. Mais do que nunca temos de acreditar e fazer valer a força
da arte/dança para re-unir pessoas, re-criar e re-pensar coletivos;
esperançar dançando e educando por um planeta que encontre, na
arte, sua força de vida.

REFERÊNCIAS

• DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins


Fontes, 2010.
• FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1982.
• ___________. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1983.
• LAROSSA, Jorge. Notas sobre experiência e o saber de expe-
riência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n.19,
p.20-28, jan./abr., 2002.
• LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean. A cultura-mundo:
resposta a uma sociedade desorientada. Trad. Maria Lúcia
Machado. São Paulo: Cia das Letras, 2011.
• MARQUES, Isabel. Ensino de dança hoje. São Paulo: Cortez,
1999.
• ______________. Linguagem dança: arte e ensino. São Pau-
lo: Digitexto, 2010a.
• ______________. Dança-educação ou dança e educa-
ção? In: MARINHO, Nirvana; TOMAZZONI, Air-
ton e WOSNIAK, Cristiane (Orgs.). Seminários de Dan-
ça 3. Blumenau: Nova Letra Gráfica e Editora, 2010b.

303
• NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. Multidão: guerra e de-
mocracia na era do império. Rio de Janeiro: Record, 2005.
• SÃO PAULO, 32ª. Bienal de São Paulo. Material Educativo.
Incerteza viva. São Paulo: Fundação Bienal, 2016.
• SÃO PAULO, Secretaria Municipal de Educação. Direitos de
aprendizagem dos ciclos interdisciplinar e autoral. Arte. Co-
leção Diálogos interdisciplinares a caminho da autoria. São
Paulo: SME/DIEFEM, 2016.

LINKS

• Livro Seminários de Dança 3: http://www.ifdj.com.br/site/


wp-content/uploads/2015/10/III-Seminarios-de-Danca-Algu-
mas-Perguntas-sobre-Danca-e-Educacao.pdf
• Documento da SME São Paulo/Arte 2016 : http://portal.sme.
prefeitura.sp.gov.br/Portals/1/Files/34986.pdf
• Vídeo com estudantes do Ensino Médio da Escola de Aplica-
ção da USP, 2016: https://www.facebook.com/caleidoscia/?-
fref=ts
• Material educativo da 32ª. Bienal Incerteza Viva, 2016: http://
materialeducativo.32bienal.org.br/

304
MARILA VELLOSO é artista da dança, curitibana,
professora do colegiado de Dança do Campus
Curitiba II da UNESPAR, doutora pelo Pro-
grama de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
UFBA. Professora em Body Mind Centering™.
Co-criou o Fórum de Dança de Curitiba, além
de ter sido representante da Dança do Conse-
lho Nacional de Política Cultural/MinC (2014-
2015). Foi coordenadora de dança da Fundação
Cultural de Curitiba, entre 2005 e 2009.

MANOEL J DE SOUZA NETO, São Paulo, Curitiba.


Cientista político, pesquisador, escritor, agita-
dor cultural, defensor de direitos humanos e
culturais. Produtor musical da cena indepen-
dente dos anos 1990, foi responsável por shows,
gravadora e programas de rádio. Fundador do
MUSIN – Museu do Som Independente (2003).
Autor (org) do livro A [des]Construção da Mú-
sica na Cultura Paranaense (2004). Integrante
do Fórum Nacional de Música (2005/11), Câ-
mara/Colegiado Setorial de Música e Conse-
lho Nacional de Políticas Culturais do MinC
(2005/12 e 2015/17), contribuiu para a formu-
lação de políticas públicas de cultura, sendo re-
lator do Plano Nacional da Música do decreto
do Plano Nacional de Cultura do MinC.

306
GESTÃO PÚBLICA EM CULTUR A E DANÇA:
APONTAMENTOS INICIAIS PAR A UMA REFLEX ÃO SOBRE
CONTR ADIÇÕES ENTRE DISCURSO E PR ÁTICA
Marila Velloso
Manoel J de Souza Neto

R
esumo: parte-se da hipótese que a burocracia do Estado
Moderno é o que delimita o que é ou não possível em uma
gestão pública de cultura e de dança. O texto baseia-se em
autores do Direito e da Política articulados com autores das Polí-
ticas Culturais e da Dança e objetiva revelar contradições entre o
que é dito e o que é praticado nas gestões culturais do Estado, no
Brasil e que afetam a gestão pública e a implementação de qualquer
programa setorial. Ainda, pretende-se que este artigo fundamente
estudos na área da gestão em dança e de outros setoriais, tendo em
vista a carência em publicações que apresentem as dimensões e as
relações entre os setores e a superestrutura do Estado.

Palavras-chave: estado; burocracia; políticas públicas de


cultura; dança.

ESTADO E BUROCR ACIA

Estamos imersos em sistemas que se constituem como Esta-


dos e esses são gerenciados por governos, considerando-se, nesse
artigo, que a gestão de qualquer organização, pública ou privada,
existe para organizar os fluxos entre capitais e impostos sendo
estas controladas pela endoestrutura dos Estados.
A gestão existe para efetivar determinadas funções do Esta-
do, sendo um instrumento da administração pública dos estados
modernos, e, portanto, racionais. Nesse sentido, a exigência do
formato das gestões modernas está intimamente relacionada às

307
funções e obrigações com os Estados. E é, por essa razão que este
texto sobre gestão pública em dança inicia abordando aspectos
que constituem o Estado.
O Estado como conhecemos foi citado pela primeira vez há
2500 anos na obra A Arte da Guerra de Sun Tzu, e surge da ne-
cessidade de organizar as relações de agrupamentos de pessoas,
nas primeiras Cidades-Estado. Para alguns autores o Estado surge
como uma forma positiva e tem funções relacionadas à manuten-
ção da ordem social compromissada com a ética e a moral, o que
se manifestaria na obra de Durkheim, como um órgão de reflexão
e um instrumento racional encarregado de realizar o interesse pú-
blico, ou melhor, um órgão realizador da justiça social, organiza-
dor da vida social, etc (OLIVEIRA, 2010).
Ainda que não exista consenso absoluto entre os chamados
autores contratualistas – Locke, Rousseau, Hobbes, Tocqueville –,
que forjaram as principais teorias sobre Estados Constitucionais,
esses têm em comum a visão da necessidade de construção de có-
digos e de leis e daquilo que fundamenta o Estado Moderno, o
contrato social que resulta nos conjuntos de códigos ou constitui-
ções. Esses mecanismos foram criados, a fim de que os indivíduos
saiam do estado de natureza, no qual parte-se da prerrogativa de
que todos estão contra todos, e que a partir disso, entrem em um
estado de paz e justiça através de uma sociedade regulada pelo
interesse público. Ao menos essa parece ter sido a intenção.
Se a burocracia surge nos antigos impérios da Mesopotâmia
(Acadiano, Babilônico e Assírio), China, Grécia, Roma e antigo
Egito, somente pode ser considerado como Estado Moderno a or-
ganização burocrática que emerge na China e em Portugal – entre
os séculos XII e XIV, até a sua consolidação em diversos países
do mundo, no início da revolução industrial, como fenômenos que
forçaram a crescente burocratização do Estado e das Nações.
A construção dos Estados Modernos não se dá apenas pela
construção do capitalismo, da administração pública, da criação
de exércitos e das Constituições e, sim, pela unificação de uma
série de instrumentos que forjam este Estado, constituindo-se

308
como a unificação das forças militares, do espaço econômico,
da instituição de impostos e da formação de uma burocracia es-
pecializada. A concentração dessas forças consolidou os espaços
geográficos e, portanto os territórios, formando um acúmulo de
capitais internos e gerando informação através de recenseamento,
estatística, contabilidade nacional, cartografia, representação de
unidades padrão como o sistema métrico, a escrita, a moeda e a
criação de arquivos, especialização da comunicação, entre outras
medidas que resultaram na estratificação e monopólio dos letra-
dos que formaram os instrumentos da burocracia, criando a classe
especial de funcionários do Estado.
Portanto, o Estado é estruturado pelo pensamento da bu-
rocracia que está a serviço do próprio Estado. Essa cultura insti-
tucional - como a soma de todas essas informações têm um papel
estruturante para Bourdieu (1996), pois isso ocorre: “…ao unifi-
car todos os códigos – jurídico, linguístico, métrico – e ao realizar
a homogeneização das formas de comunicação, especialmente a
burocracia (por exemplo os formulários, os impressos etc)”. Con-
tinuando conforme Bourdieu (1996):

“nas nossas sociedades, o Estado contribui de maneira determi-


nante na produção e reprodução dos instrumentos de constru-
ção da realidade social. Enquanto estrutura organizacional e ins-
tância reguladora das práticas ele exerce permanentemente uma
ação formadora de disposições duradouras, através de todos os
constrangimentos e disciplinas corporais e mentais que impõem,
de maneira uniforme ao conjunto dos agentes”. (Pierre Bourdieu,
Razões práticas: Sobre a teoria da ação, 1996, p.116)

Neste sentido, diferentemente do que se atribui por Durke-


heim como papel do Estado de se realizar o bem comum, ou o
interesse público, o Estado apresenta muito mais a função contro-
ladora, disciplinadora e punitiva, conforme define Weber (1991)
sendo o Estado aquele que detém o legítimo monopólio do uso da
força. De outro modo, o Estado está para inibir os ímpetos do in-

309
divíduo, o que para Marx e Engels (2001) seria interpretado como
prova de que o Estado age em benefício da burguesia industrial,
portanto um organismo repressor do proletariado.
É desse modo, ainda que não seja consenso – com funções
para alguns reguladoras e para outros com funções voltadas à
realização da justiça e do bem comum –, que surgem as regras da
burocracia que forjam os Estados, como seus códigos de ética que
regem a conduta e as relações entre os agentes envolvidos.
Muitas vezes as regras de controle e práticas burocráticas
estabelecidas pelo Estado são utilizadas para constranger o ímpe-
to dos agentes em tirar vantagem para benefício próprio, ou dos
cidadãos de agirem como bem entendem. Do conjunto de normas
históricas acumuladas no tempo estruturaram-se inúmeras regras
que constituem o pesado sistema burocrático atual que se criou
para garantir as boas práticas e a ética, algo que, no entanto, apa-
rentemente não se efetivou.
Os problemas relacionados à ética, corrupção e má gestão
são notórios dentro do Estado Moderno e decorrentes da dificul-
dade em que as pessoas têm para entender a diferença entre a coisa
pública e a coisa privada.
É, portanto na divisão entre administração pública e
administração privada onde ficam mais evidentes as diferenças
entre o que é relativo ao Estado e o que é relativo à sociedade:

“Na administração, não há liberdade nem vontade pessoal. En-


quanto que na Administração Particular é lícito fazer tudo o que a
lei não proíbe, na Administração Pública é apenas permitido fazer
o que está previsto na lei. A lei para o particular significa `pode
fazer sim`, para o administrador público, por outro lado, significa
'deve fazer assim'” (MEIRELLES, 2010, p.89)

Portanto, existe aqui uma absoluta divisão entre gestão pú-


blica e gestão privada. Ficando evidente que a gestão de políticas
públicas de cultura, e neste caso-análise deste artigo com tema
de gestão da dança no setor público, se dá por força das leis

310
dentro das regras próprias da administração pública, limitadas
ao “deve ser assim”, enquanto a gestão privada tem liberdade de
agir com intenções, recursos e ética própria, desde que não viole
as leis do Estado.
No que concerne a outro componente importante nessa es-
trutura estatal, tem-se a ética no Estado que pode ser considerada
sob duas perspectivas: a descritiva e a normativa e (ou) prescritiva.
Segundo Amoedo (1997) a primeira descreve a forma como as
pessoas agem e explicam sua ação em termos de julgamento de
valor e de pressuposições e a segunda, estuda a forma como as
pessoas devem agir e analisa os julgamentos de valor e pressuposi-
ções que justificam tais ações.
Enquanto os acadêmicos no geral procuram descrever fenô-
menos ocorridos em estudos de caso, e filósofos idealistas procu-
ram apresentar como deveria ser feito, surgem descompassos entre
o “ser” e o “deve ser”, com ambas as formas de apresentação sen-
do descritivas e normativas, muitas vezes, distantes da realidade,
das práticas e das dinâmicas mutáveis dos conflitos que surgem
entre administração gerencial e administração política (BOBBIO;
MATTEUCCI; PAQUINO, p. 14-15). Disso surge a necessidade
de aproximação entre as normas e as práticas, observando-se as
diversas perspectivas para a tomada de decisões.
Portanto, o afastamento da realidade e do que ocorre nas
práticas torna-se um dos problemas para a gestão porque há um
conflito entre as regras do Estado e as ações dos indivíduos. Mui-
tas das regras são engessadas e idealizadas fora do contexto real
de como acontecem e não se efetivam na prática. Por outro lado,
a ação dos agentes também, é limitada por uma série de questões
que vão da falta de percepção, de leitura política, de compreensão
das regras do Estado e até mesmo do desconhecimento de si e do
que agencia seus desejos inconscientes.
A realização da denominada boa administração pública
passa por este conflito entre o Estado e suas normas e a ação dos
indivíduos, pois muito das iniciativas de construção de códigos
de ética, regras, leis e normas etc. e mesmo as punições não pa-

311
recem solucionar a má gestão, ao menos é essa a impressão que a
literatura crítica de clássicos das práticas políticas no Brasil vem
revelando em obras como a de Raymundo Faoro (2008) ou Vitor
Nunes Leal (2012), que falam do arcaísmo político brasileiro, bem
como aquilo que a imprensa e a justiça, de forma reincidente, nos
revela como a constante crise de ética no trato com a coisa pública.
A marca da administração pública brasileira tem sido a “clepto-
cracia”, incompetência e má gestão.

PRINCÍPIOS DE GESTÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTUR A

A gestão de políticas públicas baseia-se em um conjunto de


normas, medidas, e ações que visam efetivar as metas do Esta-
do. O ato de gerir ou administrar, quando se trata da atividade
pública, segundo Bobbio; et al (1998, p. 10), refere-se em linhas
gerais, ao conjunto das atividades diretamente destinadas à execu-
ção concreta das tarefas consideradas de interesse público numa
organização estatal. Em se tratando da administração pública há
uma enorme gama de ações que reportam ao conjunto de entes
estatais, coordenados pelos centros de tomada de decisão e aos
organismos e atividades governamentais que visam atender aos
objetivos públicos. Ainda, segundo Bobbio; et al (1998, p.14-15)
existem contradições entre os interesses políticos e a gestão:

“Enquanto se admite que a Administração pública deve atuar


imparcialmente, cumprindo, de preferência, o mandado na lei,
verifica-se, por outro lado, estar ela organizada de tal maneira
que se torna facilmente permeável à interferência de partes. Esta
profunda contradição não tardará a vir ao de cima, colocando,
em termos dramáticos, o problema da separação da esfera política
da esfera administrativa. Entretanto, se prescindir do aspecto da
tutela jurisdicional, não serão alcançadas senão soluções parciais
e impróprias, tendo em vista as causas de fundo que originaram o
problema.” (BOBBIO; MATTEUCCI; PAQUINO, p. 14-15).

312
Este conjunto de objetivos, voltados às atividades de interes-
se público, são regidos na legislação brasileira por princípios que
visam nortear as principais normas que devem reger os atos públi-
cos, em especial visam distanciar as influências políticas e pesso-
ais. O que infelizmente não parece ser eficaz quando observamos
modelos de gestão que, ainda, privilegiam uns em detrimentos de
outros visando benefício de determinados grupos ou indivíduos.
No entanto com a finalidade de combater os problemas éti-
cos que surgem na gestão pública, foram consolidadas diversas
leis que têm base na Constituição, com princípios basilares para a
prática da chamada “boa administração pública” que poderia ser
efetivada por meio de instrumentos legais contidos no Artigo 37
da Constituição Federal/CF. São eles:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer


dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Mu-
nicípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência (...)

O Artigo 37 da CF 1988 rege a base para qualquer diálogo


que vise efetivar a administração pública contendo em seus arti-
gos apontamentos sobre como devem se dar as relações éticas, os
cargos, empregos e funções públicas, concurso público, as funções
de confiança, o direito de greve, a remuneração, entre outros as-
pectos, o que se difere da gestão privada.
Enquanto a gestão pública tem seus princípios, as políti-
cas de cultura têm seu fundamento na Carta Magna, com quatro
princípios constitucionais que determinam direitos culturais, con-
forme Cunha (2000, p.44): “1. Princípio do pluralismo cultural;
2. Princípio da participação popular; 3. Princípio da atuação es-
tatal como suporte logístico; e 4. Princípio do respeito à memória
coletiva...”.
Esses quatro princípios apontados por Humberto Cunha
revelam a direção das ações que deveriam garantir um conjunto
mínimo de apontamentos do Estado para a cultura sob a lógica da

313
administração pública que se obriga a ouvir as partes interessadas,
dar espaço para todos, fomentar as políticas, bem como garantir
a memória, não se obrigando necessariamente a outras funções.
Contudo, o campo da cultura recebeu destaque próprio na
legislação, tendo dois princípios distribuídos em artigos na cons-
tituição de 1988, que orientam as políticas específicas do Estado
para a cultura conforme os artigos 215 e 216 da CF-88, que afir-
mam:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direi-


tos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e
incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

No princípio do Artigo 215 da CF-88 estão previstas a re-


alização de um Plano Nacional de Cultura, a formação de pes-
soal qualificado para a gestão e a democratização do acesso aos
bens de cultura, a valorização da diversidade étnica e regional, o
estabelecimento de formas de incentivos para a produção e o co-
nhecimento de bens e valores culturais, entre outros. E conforme
o Artigo 216 da CF-88 obriga-se a criar o Sistema Nacional de
Cultura/SNC:

Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em re-


gime de colaboração, de forma descentralizada e participativa,
institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas
públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre
os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover
o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercí-
cio dos direitos culturais.

No Artigo 216 existem determinações da forma de cons-


trução do Sistema Nacional de Cultura, que deve se pautar no
Plano Nacional de Cultura/PNC e nas suas diretrizes que são
regidas pelos seguintes princípios: diversidade, universalização
do acesso, fomento à produção, cooperação dos entes da União,

314
integração entre políticas e programas, transversalidade, autono-
mia, descentralização, ampliação dos recursos e transparência,
entre outros.
Essa base para elaboração e execução de políticas públicas
de cultura, fornece pistas do que fazer para o desenvolvimento do
setor cultural no Brasil, porém, é apenas na parte final do Artigo
216, que são apresentados mecanismos estruturantes para a gestão
de políticas culturais: I - órgãos gestores da cultura; II - conselhos
de política cultural; III - conferências de cultura; IV - comissões
intergestores; V - planos de cultura; VI - sistemas de financiamen-
to à cultura; VII - sistemas de informações e indicadores culturais;
VIII - programas de formação na área da cultura; IX - sistemas
setoriais de cultura.
Portanto, para um estudo ainda incipiente que aponte as
bases para uma gestão pública da cultura, a constituição federal
revela estes apontamentos iniciais das estruturas básicas de fun-
cionamento e que dialogam com as demais leis e princípios já apre-
sentados. Sendo, portanto, fundamentos iniciais para o conceito
de gestão pública de cultura em Dança.
Após a estrutura burocrática com o estabelecimento de leis
e normas, são feitos planos para execução das políticas públicas,
bem como programas, prêmios, editais, entre outros, estes, os ins-
trumentos da gestão pública, com vias de efetivar os direitos cul-
turais, na forma de sistemas, planos, conselhos, planos setoriais de
cultura e das artes.
Para a execução da gestão cultural, constituiu-se o Sistema
Nacional de Cultura/SNC como ferramenta fundamental que dita
as regras sobre a participação dos entes da União, Estados e Mu-
nicípios, sobre como se dariam as transferências de recursos para
estes entes federados e como seriam aplicadas estas verbas através
de fundos para atender os interesses sociais, bem como de setoriais
e suas demandas.
Com a elaboração do Plano Nacional de Cultura/PNC fo-
ram determinadas as prioridades por meio de diretrizes e linhas
de ação assim como em documentos complementares, as metas a

315
serem alcançadas. Esse grande conjunto de normas e instruções
foram construídas em negociação com a sociedade civil, através
de espaços de participação, como conferências, conselhos e fóruns
setoriais.
Esse projeto de construção de cidadania e de direitos cul-
turais, partindo das políticas gerais, alcançou planos específicos,
a exemplo do Plano Nacional de Dança. Um grande conjunto de
metas e objetivos para a realização da administração pública, ins-
trumentos que foram elaborados e desenvolvidos por mais de uma
década, e que, no entanto, ainda não foram consolidados e, do que
foi feito, pode-se afirmar que pouco foi concretizado. A maioria
do que foi proposto ainda paira no ar, esperando por recursos pú-
blicos, por vontade política e por gestão efetiva que realize aquilo
que o Estado se obriga a fazer conforme todo o conjunto de nor-
mas apresentado acima.

A GESTÃO EM DANÇA BASEADA EM REGR AS DO ESTADO:


DEMANDAS DO SETORIAL DA DANÇA

O setor de dança sendo reconhecido pela estrutura do SNC,


e do PNC, recebeu especial destaque, ao ter sido um dos primei-
ros setores contemplados com reuniões temáticas nas câmaras
setoriais, posteriormente denominadas de Colegiado Setorial de
Dança, espaço privilegiado no diálogo e na elaboração de políti-
cas para o setor, junto ao governo federal, ocorrido no âmbito do
Ministério da Cultura.
Como resultado do Colegiado Setorial de Dança, foram
construídas propostas com diretrizes e linhas de ação para a dan-
ça além de propostas de prêmios, programas, mapeamentos e ou-
tros projetos que se constituem na primeira tentativa de elabo-
ração mediada de políticas setoriais discutidas entre a sociedade
civil e o Estado brasileiro.
Seriam as principais propostas, programas e projetos da
dança que dialogam com todo o conjunto legal e normativo que

316
rege a administração pública e que visam a realização de tais po-
líticas.
A formação de um órgão consultivo de âmbito nacional, as
Câmaras/ Colegiados Setoriais, significou uma mudança impor-
tante para a construção de programas na área, pois legitimou uma
outra instância – mesmo que consultiva – para levantar critérios
e parâmetros para políticas culturais para a dança vinculado ao
Conselho Nacional de Política Cultural/MinC: “Este movimento
possibilitou o conhecimento das realidades e atitudes relaciona-
das às potencialidades e fragilidades de cada estado criando uma
articulação nacional histórica, favorecendo a descentralização e
principalmente a circulação de informações” (PND, 2010, p.11).
Porém, com uma mudança de gestão no MinC e na Funarte,
em 2015, foi-se (re) formulado, pelo Estado, que as Artes deveriam
ter um olhar particular e direcionado por sua fundação nacional.
Assim, entre 2015 e parte do ano de 2016, instituiu-se o Plano
Nacional das Artes/PNA – um outro formato para repensar e re-
elaborar diretrizes e ações para a Dança, Circo, Teatro, Música,
Artes Visuais. E toda uma nova organização foi estruturada para
escolher prioridades para o novo plano sob outros critérios e dire-
cionamento tendo-se buscado manter como fundamento o Plano
Nacional de Dança.
O PND foi estruturado inicialmente, em 2005, em seis ei-
xos: Gestão e Políticas Culturais, Economia e Financiamento da
Dança; Formação em Dança e de Público; Pesquisa, Criação e
Produção em Dança; Difusão e Circulação em Dança; Registro e
Memória da Dança com diretrizes e ações específicas.
E a metodologia incluiu, conforme o Relatório 2005, a iden-
tificação de nós críticos encontrados nos elos de cada cadeia produ-
tiva (Formação; Criação e Pesquisa; Produção; Difusão; Consumo
e Formação de Público) – para análise de contexto inicial, o levan-
tamento dos resultados almejados (que viessem a gerar mudanças
perceptíveis na realidade) e a definição de diretrizes para atingir
cada resultado. A etapa final incluiu a priorização de alguns resul-
tados estratégicos na plenária conjunta. Grupos de trabalho foram

317
constituídos a partir de cada elo da cadeia produtiva e dos elos
transversais. Ainda, debates por meio de videoconferências com
apoio da Serpro, em 11 capitais do País.
Os elos tranversais foram: Gestão Pública; Questões Traba-
lhistas; Políticas culturais/articulação Nacional. Vê-se aqui uma
similaridade com a proposição dos eixos transversais propostos
no Plano Nacional das Artes, em 2015-2016: Pacto Federativo,
Marcos Legais e Rede de Difusão das Artes.
O relatório 2006 da Câmara Setorial de Dança incluiu a
sistematização das propostas. Subdividindo-se em Financiamento
Cultural (Fomento e Circulação); Dimensão econômica da cultura
(Tributação e Legislação); Gestão Pública da Cultura; Dimensão
simbólica da Cultura (Registro e Memória; Difusão e Formação
de Público); Cultura e Educação: Diretrizes e Metas. Já os Grupos
de Trabalho foram subdivididos da seguinte forma:

Grupo 1: Fomento, financiamento e difusão;


Grupo 2: Questões trabalhistas, formação e profissionalização.

Sendo que surgiram duas prioridades nos grupos: Questões


trabalhistas e formação; e Economia e Fomento.
Outros grupos foram constituídos para discutir: Direitos
Autorais; Fomação – MinC e MEC; Economia da Cultura; Memó-
ria e Patrimônio; Questões Trabalhistas e Tributação. Outros GTs
foram formados durante esses anos iniciais com reuniões que dis-
cutiam outros temas como os editais lançados pela Funarte como
o Prêmio Klauss Vianna, composição de comissões, etc.
Um dos temas de debate e reflexão crítica foi a estruturação
do Plano Nacional de Cultura que requereu a elaboração de do-
cumentos da Câmara Setorial de Dança considerando problemas
com a nomenclatura “danças brasileiras”; com a necessidade de
as decisões e os documentos desta Câmara serem legitimados em
outras instâncias e sobre a segmentação do PNC.
Sobre a demanda do Estado para que as Câmaras elaboras-
sem um diagnóstico da dança, constatou-se a inviabilidade devido

318
à falta de dados e ausência de mapeamento sobre a ampla varie-
dade da dança produzida no país. Solicitações que se repetem em
diversas instâncias do MinC:
Quanto ao Eixo I “Do Estado”, existem diretrizes e ações
propostas no sentido de articular os entes federados para o fomen-
to à produção e circulação entre outras ações visando ao processo
de colaboração e de complementaridade para atender às deman-
das do setor, o que se relacionou ao eixo transversal do PNA, do
Pacto Federativo. E estabeleceu iniciativas para capacitar gestores
públicos, privados e independentes, outro tema que é de extrema
relevância para a gestão pública de cultura conforme se encontra
em Ribugent (2016) e Barba (2009).
O Eixo II “Da Diversidade” trata de abranger a profusão da
dança por meio de diretrizes que contemplam a diversidade artís-
tica e cultural e diretrizes para registro e preservação da memória.
O Eixo III “Do Acesso” estabelece propostas de articulação
entre MinC e MEC; a criação de cursos técnicos e superiores na
área visando atender ao que já foi exposto neste relatório como
demanda recorrente quanto à formação e capacitação.
A Diretriz 3.1.1 propõe a ampliação da oferta de cursos
técnicos e a 3.1.2 tem como meta “pelo menos um curso de gra-
duação em cada estado e Distrito Federal, observando critérios
de descentralização” (PND, 2010, p.263). O que aponta para a
relevância desta demanda, ainda hoje, para que a existência de
graduações não fique vinculada apenas às capitais da maioria dos
estados. E para que cursos técnicos sejam criados em todo territó-
rio nacional.
Quanto ao Eixo IV “Do Desenvolvimento Sustentável”, a
diretriz 4.2 propõe a realização de um Mapeamento para levan-
tamento de dados e indicadores. Sendo que o Colegiado Setorial
de Dança (2013-2014) impulsionou o início desse mapeamento em
oito capitais brasileiras, em virtude da redução dos valores libe-
rados, inicialmente, em 2014 frente ao orçamento original. Nesse
sentido, cabe a continuidade de investimento para o desenvolvi-
mento desse e de outros projetos não apenas para mapear todas

319
as capitais no país, mas também os municípios brasileiros. Deven-
do-se considerar que esta foi a única ação implementada e relacio-
nada ao PND, e de modo parcial.
A ação, 4.2.1, do mesmo eixo, propõe o cadastramento de
acervos e mapeamentos existentes e a 4.2.3 o fomento a redes digi-
tais interligadas. Neste sentido, se articulava à proposta do PNA,
de criação de uma Plataforma Digital, que poderia contar, ini-
cialmente, com os dados levantados nessa 1ª etapa do Projeto de
Mapeamento Nacional da Dança.
O Eixo IV também propõe a revisão e o aprimoramento da
legislação que atende ao profissional da área e de mecanismos le-
gais tributários e se articula ao eixo transversal do PNA, de Mar-
cos Legais.
O Eixo V “Da Participação Social” tem as diretrizes volta-
das para acompanhamento e avaliação das políticas culturais com
divulgação e análise de resultados e para assegurar representações
de dança em fundos setoriais específicos, entre outros espaços a
serem conquistados.
Na América Latina e península ibérica tem-se conhecimento
de mais dois planos setoriais de dança já implementados: o Plano
Nacional de Dança da Colômbia e o Plano Nacional de Dança da
Espanha, ambos já implementados, avaliados e reestruturados.
Outro documento importante que contribui para balizar a
seleção de demandas e a gestão no setor são as estratégias seto-
riais escolhidas durante a Pré-Conferência de Cultura, realizada
em Brasília, em 2010 e aprovadas na II Conferência Nacional de
Cultura:

320
QUA DRO 4 – ES TR ATÉGIA S SE TORIAIS PRIORITÁ RIA S
DANÇA

EIXO 1: PRODUÇÃO SIMBÓLICA E DIVERSIDADE CULTURAL

Criar, sistematizar e efetivar programas e projetos para a formação de profis-


sionais na área, fomentando e facilitando a abertura de cursos de licenciatura
e (ou) bacharelado em dança nas universidades públicas brasileiras, além de
outros mecanismos de reconhecimento e (ou) qualificação para o ensino não
formal.

EIXO 2: CULTURA, CIDADE E CIDADANIA

Garantir a criação de uma Diretoria de Dança na Funarte e a implantação de


Diretorias e (ou) Coordenações de Dança na estrutura organizativa dos muni-
cípios, estados e Distrito Federal, com cargos ocupados por profissionais da
área com reconhecida atuação no campo da dança.

EIXO 3: CULTURA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Criar marcos regulatórios – Lei da Dança – articulando ações entre o Minis-


tério do Trabalho e Emprego – MTE, Ministério da Cultura - MinC e Ministério
da Educação – MEC que assegurem o pleno exercício dessa profissão, estabe-
lecendo pontes entre esses e as instâncias estaduais, distrital e municipais.

EIXO 4: CULTURA E ECONOMIA CRIATIVA

Criar e implementar leis de fomento e fundos setoriais para a dança nas esfe-
ras federal, estadual, municipal e distrital, com dotação orçamentária defini-
da, critérios transparentes de seleção e distribuição de valores.

EIXO 5: GESTÃO E INSTITUCIONALIDADE DA CULTURA

Assegurar que a versão completa do Plano Setorial da Dança, elaborado pelo


Colegiado Setorial em 2009, seja disponibilizada por um prazo mínimo de 45
dias para consulta pública, e que todas as sugestões e alterações sejam con-
sideradas pela nova composição do Colegiado Setorial de Dança, e sua versão
final seja legitimada pelas instâncias legislativas em caráter de urgência.

Fonte: II Conferência Nacional de Cultura – Estratégias Setoriais (2010)

321
Quer destacar-se, ainda, quando se analisam demandas na
área da Dança, tanto o aumento da atividade da dança que está
presente, segundo resultados da Munic de 2014, em 68,5% das
cidades, tendo aumentado em 22,1%, desde o levantamento de
2006, pelo IBGE (que era de 56,1%); quanto o fato de que a dança
ainda não é computada nesses números já que está também in-
cluída nas manifestações tradicionais populares, que ficaram em
segundo lugar com 71,9%, logo atrás do artesanato (64,3%). Isso
apenas reitera a importância do setor e a necessidade tanto de
autonomia para diretrizes e ações específicas da dança como de
maior integração com os setores culturais com os quais a dança
tem qualquer tipo de integração.
Várias demandas foram aqui apresentadas na tentativa de
elucidar por meio de um contexto histórico e documental alguns
limites de análise e de gestão das necessidades do setor.

CONTR ADIÇÃO ENTRE O FOI DEMANDADO,


PROMETIDO E O QUE NÃO FOI ALCANÇADO

Dentre todas as demandas, diretrizes e ações, após a aprova-


ção do Plano Nacional de Dança, em 2010 apenas o início de um
mapeamento foi feito. Além disso, houve essa alteração na organi-
zação da gestão política das Artes com a proposta de uma Política
Nacional das Artes, em 2015 onde foram reelaboradas diretrizes
e prioridades que não tiveram tempo de serem implementadas por
todo processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff.
Essa mudança de percurso que houve com o PNA já demons-
tra as contradições e falta de um real planejamento pautado por
indicadores e informações que contribuíssem com um diagnóstico
eficaz da área, que não deixasse dúvidas sobre as prioridades ou
sobre o próprio Plano Nacional de Dança, como marco e formato
que sintetizava as demandas da sociedade civil que chegou a ser
consultada. Mais do que isso, demonstrava que a própria política
que abarcou conceitos ampliados de Cultura – que justificaram a

32 2
ampliação do número de setoriais no CNPC – não dava conta de
um planejamento que abarcasse a história, a potência e as parti-
cularidades das Artes, a ponto de ter sido cogitado anteriormente,
nas instâncias do CNPC, que as Artes deveriam ter seu sistema
próprio, após a elaboração do PND.
No vai e vem de iniciativas e direcionamentos políticos, mes-
mo quando bem intencionados, porém regrados pela burocracia
de Estado sem o concreto apoio das outras instâncias de Estado e
sem suporte de dados, mapeamentos e indicadores vê-se uma con-
tradição que vai além do que aquela até aqui mencionada: o Es-
tado permite que gestões dentro de seu sistema elaborem políticas
que respeitam suas regras e trâmites (que são deveras lentos) e as
financia na elaboração, porém não implementa nem tampouco se-
gue os processos de acompanhamento e avaliação plurianual dos
planos criados. Tampouco aprova legislações de recursos e fomen-
to em outras instâncias, demonstrando que não há priorização -
não apenas da Cultura e das Artes – mas de todo um conjunto de
gestão e de políticas onde investiu. Todo o aparelhamento de Esta-
do mostra-se além de contraditório, ineficaz. E a gestão em cultura
ou em dança, deve trazer à luz essa análise quando for propor ou
elaborar estruturas de continuidade, além de outras reflexões mais
radicais que tornam-se praticamente obrigatórias neste contexto.
Sem dúvida, a formulação do Plano Nacional das Artes,
apesar de todas as restrições e incômodos que gerou, especialmen-
te entre artistas e militantes da Cultura e mesmo da Dança, de-
monstrou ter lacunas na estruturação dos Planos setoriais (muitos
planos já eram questionados pelos próprios setoriais – algo que
não ocorreu com a área da Dança). E o alinhamento entre esses
planos e direcionamentos pode ser uma articulação importante
para uma próxima gestão que venha a efetivar os planejamentos
em implementações concretas.
Parece ainda importante ampliar o espectro decisório sobre
os desenhos das políticas, e vincular as demandas setoriais aos
editais e a outros mecanismos de fomento ora existentes e a essa
compreensão ampliada da dança que é vivenciada e produzida no

323
Brasil, para desenhar uma orientação técnica para essas políticas
gerais e transversais que se pretendeu no PNA.
Portanto, existem uma série de questões pendentes, que re-
velam contradições na elaboração, bem como execução e gestão
das políticas da dança, crítica que foi identificada anteriormente
em VELLOZO (2011) e também no caso do setorial de música,
por SOUZA NETO (2014), o que introduz pela semelhança dos
casos, sugere ser problema recorrente nas demais setoriais, limi-
tando as leis, normas, planos e metas a meras intenções, cheias de
descontinuidades1 e parca efetividade.

MEDIAÇÕES - ALTERNATIVAS EM GESTÃO, NOVOS DIÁLOGOS

A medição das políticas, e diálogo entre Estado e Sociedade


Civil, para desenvolvimento de planos e gestão pública do setor da
dança, requer uma nova abordagem.
Do latim gerire, gestão pode estar relacionada ao ato de gerir
e gerenciar, de digerir incluindo ser digesto ou indigesto, e de gestar.
Desse modo, os significados possíveis permitem ampliar a noção do
que pode vir a ser uma gestão, especialmente a gestão privada, já que
este artigo enfatiza os limites e dificuldades que a burocracia gera
para o gestor público de cultura e de dança. O que mais se percebe
nas gestões públicas são as consequências da gestão limitada pela
burocracia e pela falta de prioridade e de recursos públicos que aca-
ba se tornando um processo “digestório” lento e difícil.
De outro modo, há consequências a todo e qualquer processo
de gestar, de gerenciar e de digerir o que quer que se planeje ou não
no campo da gestão, especialmente quando isso parte da burocracia

1 Lembrando, que após a escrita deste artigo em 2017, ocorreu enorme desmonte das polí-
ticas setoriais e do próprio Ministério da Cultura, inviabilizando totalmente essas políticas
setoriais, que esperam retomada em um futuro em que a nação brasileira se encontre em
situação melhor.

324
estatal que mais apresentará contradições e desvios em um mesmo
plano do que a continuidade e fluxo de desenvolvimento do mesmo.
Das diferentes fases da construção de uma política cultural, pouco
se vê das fases de implementação, acompanhamento e avaliação de
uma política posta em prática.
Sendo que é necessário considerar que quando a gestão está
atrelada a esse campo da experiência humana que são as políticas
culturais, outros aspectos vem a complexificar o perfil do que é ge-
rir, a exemplo da dimensão sensível, transitória, diversa, múltipla,
multifocada e transdisciplinar da cultura. A gestão em Dança, não
de modo diferente, chega permeada por essa amplitude direcional
e que contempla a diversidade de estilos e formatos de dança e de
entendimentos cabendo, então, repensar a função do gestor cultural,
conforme Barros (2016, p.68-69): “... não é apenas um operador de
lógicas lineares e aristotélicas voltadas para a civilização da selvage-
ria e da barbárie da cultura e seus sujeitos.” Para o autor, o gestor
cultural é um mediador entre diferentes dimensões e mais do que um
especialista em conhecimentos e práticas excludentes ou exclusivas,
este seria como um roteador de possibilidades como uma espécie
de mediador da construção do que é provável e, também, do que é
utópico.

ATUALIZANDO TEMAS E DESAFIOS DA


GESTÃO PÚBLICA DE CULTUR A

Um dos importantes desafios da gestão pública de cultura


no Brasil é o criar modos de gerir a partir de estruturas de pensa-
mento que se diferenciem das costumeiramente utilizadas, e, que
viabilizem efetivamente, na prática das ações contemplar, confor-
me Calabre (2016):

• a pluralidade dos fazeres e para tanto, a necessidade de uma


visão sistêmica para atuar reconhecendo a diversidade na área
cultural;

325
• os múltiplos atores sociais por meio de diálogos menos autori-
tários e mais horizontais no que diz respeito às relações de poder
com o Estado;
• a possibilidade de reajustes em mecanismos legais e de regulação
da área cultural.

Já Barba (2016, p.18) menciona alguns dilemas que um ges-


tor cultural enfrenta por meio de uma espécie de temáticas e ações
ambivalentes:

“(...) o passado e o presente, a conservação ou a criação, a refor-


ma ou a tradição, a renovação ou a permanência, conservador ou
liberal, impulso ou freio, livre desenvolvimento e desregulamen-
tação ou regulamentação e legislação, instituições ou não insti-
tuições, instituições públicas ou organizações independentes e da
sociedade civil”.

Estes dilemas pontuados por Barba (2016) foram norteado-


res para a elaboração de um currículo de bacharelado em gestão
cultural criado no México, em 2009, pela Iteso, em Guadalajara,
Jalisco. Esta proposta formativa baseou-se em cinco eixos (BAR-
BA, 2016): Teoria da Pesquisa da Gestão Cultural; Apreciação das
manifestações artísticas e patrimoniais; Domínio das linguagens
e expressões culturais; Sistemas, instituições e políticas culturais;
Administração Cultural. Esses eixos respaldam-se na considera-
ção de que:

“(...) a vida social nos coloca permanentemente diante de dilemas


que movem mais para o equilíbrio do que para a exclusão, mais
para a convivência na diferença do que para a destruição do con-
trário no campo simbólico (...)” (BARBA, 2016, p. 19).

Assim como esse exemplo mexicano existem outras iniciati-


vas, pois a formação para gestores apresenta-se como um compo-
nente estruturador para o tema da gestão cultural, não apenas no

326
Brasil e sim, também em outros países que tomaram a importân-
cia de gerir sob pressupostos.
Entre as iniciativas em formação de gestores, menciona-se o
método de assistência remota, à distância, realizada em 439 muni-
cípios brasileiros (NETO; TELLECHEA, 2016) por meio do estu-
do de planos municipais de cultura que foi mediado por tutores e
orientadores durante o processo de formação.
Segundo Ribugent (2016, p. 79): “A paixão pelo trabalho e
a dedicação absoluta requer conhecimento profissional de ferra-
mentas e estratégias para garantir a eficácia da gestão pública e
privada da vida cultural”.
A descentralização foi foco pelo Ministério de Cultura da
Espanha, a partir de 1980. (p 74) Com políticas de aproximação –
para ampliação da democracia cultural, revelando a importância
dessa amplitude na área da cultura como estratégia para ampliar
acesso democrático de modo amplo na sociedade.
A capacitação de agentes foi foco na Catalunha e na Espa-
nha e tomou-se a responsabilidade na formação de gestores cul-
turais com a criação de centros de estudos e recursos culturais
(1984) quando jovens ativistas culturais assumiram postos de di-
reção política e técnica em prefeituras. Chama a atenção a consi-
deração desse aspecto técnico que é imprescindível para o encami-
nhamento e implementação de propostas em uma gestão. Muito
do que pode ser executado e atingido codepende da capacidade
técnica de uma equipe de gestão que torna viável um olhar e ação
direcionado a pontos fundamentais para que políticas sejam, não
apenas elaboradas, mas especialmente, implementadas.

CONCLUSÃO

A cultura – e neste caso mais específico, a gestão da dan-


ça – está sujeita às tensões políticas e interesses do Estado e de
grupos com capacidade de interferência na administração pública.
O Estado racional moderno (Weber, 1991) está de modo oposto

327
aos interesses públicos, voltado às próprias razões de manuten-
ção do poder como uma máquina repressora (Bourdieu, 1996)
selecionando políticas que serão executadas ou não, de forma às
vezes pessoal, política e partidária, de outras impessoal sem res-
peitar demandas e particularidades de diferentes setores sociais.
Essa forma de ação da máquina do Estado é definida por Bauman
(1999) como “Estado Jardineiro”. Essa visão do Estado consolida
uma visão tecnocrata, em que o Estado age como um jardineiro
que deve preservar as plantas boas e acabar com as ervas dani-
nhas. Mesmo que restem dúvidas levantadas pelo autor se o Esta-
do tem a capacidade real de afirmar o que é erva daninha e o que
é uma flor, lança-se dúvidas claras sobre as injustiças efetivadas
na prática.
No Brasil, muitas vezes o que se vê são aspectos apenas de
ordem de participação política sendo considerados em momentos
de (pseudo) decisão ou de compartilhamento público de ações ou
programas de Cultura e de Dança. Devendo-se considerar que na
maioria dos contextos de participação política, as decisões não são
levadas a cabo, configurando-se uma pseudo-participação (PATE-
MAN, 1992). Por outro lado, essa autora ressalta que a função de
participação na democracia - apesar das deficiências - é antes de
tudo educativa e por isso deve haver uma permanente capacitação
de técnicos e gestores. Pois, para além da função participativa da
sociedade na tomada de decisões, caso do Colegiado Setorial de
Dança, do CNPC e das conferências de cultura, não se efetivam
essas instâncias como reais espaços decisórios, sendo muitas vezes
estes mecanismos usados para aproximação e cooptação da socie-
dade civil, sendo na melhor das hipóteses espaços de aprendizado,
como bem frisou Pateman (1992), ao destacar a função educativa
da participação, ainda que as decisões sejam predeterminadas pe-
los gestores.
Olson (2011) demonstra que o que movimenta a sociedade
civil para a participação são razões egoístas de atendimento às
suas próprias demandas e que a lógica da ação coletiva ocorre
do diálogo entre os interesses individuais e coletivos. A tomada

328
de decisão, portanto não pode ser apenas movida pelos desejos
da sociedade civil, pelas razões do Estado ou por um tecnicismo
estéril e sim, através do permanente diálogo e aperfeiçoamento
dessas relações, de suas diferentes dimensões e dos possíveis des-
dobramentos.
Essa contradições são inerentes. Por exemplo, em momentos
de estudo de políticas setoriais se deixa de lado o trabalho técnico
que também possui um teor político, para se discutir ou apresen-
tar apenas problemas políticos partidários. Não que uma discus-
são precise anular a outra, mas torna-se frágil quando os aspectos
técnicos são reduzidos ou subestimados em relação aos aspectos
desse tipo de ordem política que serve a construção de projetos
hegemônicos (GRAMSCI, 1978). A gestão administrativa da coisa
pública, não pode se submeter demasiadamente nem aos interes-
ses privados, e muito menos, apenas ser reduzidas aos interesses
político partidários. Dosagens precisam ser feitas, acompanhadas
de preparo dos agentes públicos e privados, para lidarem de forma
ética, técnica e responsável com questões de interesse geral.

REFERÊNCIAS

• AMOEDO, Sebastião. Ética do Trabalho na era Pós-qualida-


de, Qualitymark, 1997.
• ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico,
São Paulo, Martins Fontes, 2008.
• BARBA, Alfonso Hernández. Dilemas para os gestores cultu-
rais – uma proposta formativa em cinco eixos. Rio de Janei-
ro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2009.
• BARROS, José Márcio. Processos (trans)formativos e a ges-
tão da diversidade cultural. Rio de Janeiro: Fundação Casa
de Rui Barbosa, 2009.
• BARROS, Priscila. Diagnóstico do plano setorial de dança.
Brasília: Secretaria de Políticas Culturais, 2013. Disponí-

329
vel em: <http://cultura.gov.br/documents/10907/1087438/
Plano+Dan%C3%A7a+-+Subsidios.pdf/5c6bcbf8-1b3a-
-4971-a3b0-ca6c9f42977b>. Acesso em: 09 dez. 2015.
• BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
• BRASIL. Ministério da Cultura. Comissão Permanente de Edu-
cação e Cultura da Câmara dos Deputados. Centro de Gestão
e Estudos Estratégicos – CGEE. Caderno “Diretrizes Gerais
para o Plano Nacional de Cultura”. Brasília: MinC, 2007a.
• _____. II Conferência Nacional de Cultura: estratégias seto-
riais prioritárias. Brasília: MinC, 2010.
• BRASIL. Ministério da Cultura/Funarte/CNPC. Câmara
e colegiado setorial de dança: relatório de atividades 2005-
2010. Brasília: MinC/Funarte/CNPC, 2010.
• BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PAQUINO,
Gianfranco. Dicionário de Política. Coordenação de Tradu-
ção João Ferreira. Brasília. UNB, 2007.
• BOURDIEU, P. Razões práticas sobre a teoria da ação. Cam-
pinas: Papirus, 1996.
• CUNHA, Humberto. Direitos Culturais como Direitos Fun-
damentais. Brasília, Brasília Jurídica, 2000.
• FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Editora Globo:
São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo. 1975.
• GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
• LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o muni-
cípio e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2012.
• MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido co-
munista. São Paulo: Anita Garibaldi, 2001.
• MEC/INEP – Ministério Da Educação/Instituto Nacional De
Estudos E Pesquisas Educacionais. Instituições de Educação
Superior e Cursos Cadastrados. Disponível em: <http://emec.
mec.gov.br/>. Acesso em: 10 jul. 2010.
• MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro.

330
36. ed. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010.
• MINC/FUNARTE. Cultura em números: anuário de esta-
tísticas culturais. 2.ed. Brasília: MinC, 2010. Disponivel em:
<http://www.marketingcultural.com.br/115/pdf/cultura-em-
-numeros-2010.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2015.
• OLIVEIRA, Márcio. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 18, n.
37, p. 125-135, out. 2010
• OLSON, Mancur. A Lógica da Ação Coletiva. São Paulo:
Edusp, 2011.
• PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
• POLÍTICA SETORIAL DAS ARTES. Plano setorial de dan-
ça. Disponível em: <http://culturadigital.br/pna/danca/eixo-i-
-do-estado/>. Acesso em: 09 out. 2015.
• RIBUGENT, Gemma Carbó. La cultura: sistemas políticos y
de gestión en La España democrática. Rio de Janeiro: Casa
de Rui Barbosa, 2016.
• SOUZA NETO, Manoel J. Música Brasileira. Conflitos entre
grupos políticos, sociais e econômicos na câmara setorial de
música do Ministério da Cultura, no início do século XXI.
Monografia (Ciência Política) – Universidade Internacional de
Curitiba, Curitiba, 2014
• VELLOZO, Marila Annibelli. Dança e política: organiza-
ções civis na construção de políticas públicas. 2011. Tese
(doutorado em Artes Cênicas) – Universidade Federal da
Bahia, Salvador, 2011.
• VELLOZO, Marila Annibelli; GUARATO, Rafael (Org.).
Dança e política: estudos e práticas. Curitiba: Kairós Edi-
ções, 2015.
• WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: Editora da
UNB, 1991.
• WEFFORT, C. Francisco (Org). Os Clássico da Política, São
Paulo, Ática, 2005.

331
RUI MOREIRA é bailarino, coreógrafo e investi-
gador de culturas. Atuante na dança por mais
de três décadas com atividades diversas no ce-
nário cultural. Trabalhou como bailarino intér-
prete e criador nas companhias: Cisne Negro,
Balé da Cidade de São Paulo, Grupo Corpo,
Será-Quê? e Azanie (França). Sua formação
em dança mescla as práticas: do ballet clássico,
de danças modernas, de danças populares do
mundo e de danças africanas da contempora-
neidade. Coreografou para diversos elencos de
companhias de dança, de grupos teatrais, de ci-
nema e de manifestações populares. Ministrou
aulas nos cursos de pós-graduação da Univer-
sidade de Macaé (RJ) – Corporeidades Negras
e da PUC Minas Gerais (BH) – Performance e
ritual. Sua atuação artística foi reconhecida e
premiada pela crítica especializada através dos
prêmios, Associação Paulista dos Críticos de
Arte (APCA) e pela Medalha da Inconfidência
concedida pelo governo de Minas Gerais, pela
profícua atuação artística e social em todo ter-
ritório nacional e nos países onde levou os valo-
res da cultura do Brasil. Atualmente dedica se
à Rui Moreira Cia. de Danças onde desenvol-
ve pesquisas criativas cênicas em parceria com
artistas criadores e intérpretes, está graduando
na licenciatura em dança pela Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Sul (UFRGS).

332
VAMOS FALAR SOBRE DANÇAS NEGR AS
Rui Moreira

A Dança Negra é rica, variada, complexa e impossível de definir,


pois ela é como a vida, um movimento que se inscreve além
dos olhares da humanidade e da sua história.
_Patrick Acogny

I
nshalá o presente e o passado possam servir para a leitura dos
fatos que constroem consequências. O futuro pode estar a sua
frente ou as suas costas cada vez que você der meia volta...

A expressão “Dança Negra” oferece um leque de possibili-


dades para abrir visões e estimular estudos dos vários aspectos do
pensamento contemporâneo sobre as cenas que derivam de matri-
zes culturais africanas. O termo – Dança Negra – é uma estraté-
gia e não uma definição do que são ou do que podem expressar
artisticamente os homens e mulheres de pele preta. Ao demarcar
essa denominação, os artistas da dança que militam no universo
de manifestações africanas-subsaarianas e de suas diásporas, in-
dependentemente de sua cor de pele, tomam o poder sobre o olhar
do outro. A partir daí promovem a desconstrução de uma dança
meramente étnica para expressar uma dança universal. Uma dan-
ça humana que se inscreve nas lacunas diferenciais junto a todas
as danças que são praticadas em todos e quaisquer lugares. Assu-
mindo a expressão “Dança Negra”, existe o discernimento de um
olhar sobre o termo patrimonial. “Negra” aqui designa um patri-
mônio universal explicitando cada vez mais que as questões con-
cernentes aos negros, são questões universais que tocam a todos.
Os diferentes termos: dança afro, dança negra, dança afro-
-americana, dança afro-brasileira, sugerem olhares e espaços
possíveis para a recepção de estratégias e para crítica. Essas con-
siderações gerais nos oferecem a dimensão da diversidade e das

333
questões em aliar as expressões artísticas de dança que dialogam
corporalmente e emocionalmente com as matrizes africanas sub-
saarianas e afro diaspóricas negras. A história da dança como arte
no ocidente é contada a partir da hegemonia branca eurocêntrica.
Registra os primórdios de uma dança atrelada às manifestações de
arte Romanas e Gregas, chega à corte Francesa, passa pela Rús-
sia e estabelece marcos de modernidade com o expressionismo da
Alemanha e de alguns países do leste europeu. 
A expressão de algumas danças negras, à primeira vista pode
ser percebida apenas por um olhar exótico causando a impressão
de ser acessível a qualquer corpo desde que seja negro. Isso talvez se
dê por um uso de corpo que desafia a verticalidade mais do que em
outras formas de dançar, o que muitas vezes acaba remetendo suas
imagens a uma ideia de dança primitiva, sem regras, feitas somente
de maneira espontânea, o que não é verdade. Estas características
artísticas, antropológicas e geopolíticas por muito tempo impedi-
ram que esta forma de dançar fosse considerada na narrativa da
construção da história universal da arte de dançar e de construção
de espetáculos. Isso começou a ser alterado quando as diásporas
africanas na América se manifestaram como força social significati-
va citando sua afrodescendência.
Em meados do século XIX na Europa ocidental surge o que
chamamos de Dança Contemporânea, baseada na busca da essên-
cia expressiva do homem. Na Europa, Rodolf Laban (1878-1958)
interessa-se pelo movimento e pelo  corpo  de forma holística. Seu
trabalho originou o alastramento da dança a várias dimensões: te-
rapia, educação e lazer. Na América, Isadora Duncan (1877-1927)
renova o movimento que valoriza os fenômenos naturais, sobrepon-
do-se à utilização de qualquer cenário. Também neste período nos
Estados Unidos, um dos grandes territórios diaspórico africano, no
movimento intitulado de Dança Moderna, aparecem as primeiras
rupturas deste pensamento hegemônico eurocêntrico e branco.  
O desenvolvimento de ex-colônias europeias notoriamente
diásporas africanas,  as revoluções pela independência em vários
países africanos, aliados a uma revisão material provocada pelas

33 4
guerras mundiais, revoluções industriais, somados à necessidade
de visibilidade social, levam a população negra moderna do mun-
do inteiro a acirrar seu empenho por conquista de espaços em
todas as áreas de atuação, inclusive nas artes.  
Na  América do Norte e  Caribe, artistas e danças cênicas
perpassadas por pensamentos e estética branca europeia, vão in-
corporar motricidades e plasticidades das danças africanas patri-
moniais e tradicionais e até mesmo gestos das práticas afro ritua-
lísticas. Um fato novo começa então a ganhar lugar nesta região
do planeta.
Obras coreográficas são desenvolvidas por criadores negros
para a expressão corporal e espiritual de artistas negros. Alguns
desses criadores desenvolveram métodos que são ensinados e di-
fundidos em sistemas de ensino como técnicas específicas e passa-
ram a incorporar a narrativa histórica da arte de dançar. Esse mo-
vimento afro-americano foi acolhido dentro dos signos da dança
moderna por diversos títulos. Todos explicitando características
relacionadas a questões étnicas.
O trabalho de Katherine Dunham (1909-2006), uma lendá-
ria dançarina considerada como a mãe da American Black Dance,
integrou uma onda de consciência negra antirracista. Seu pensa-
mento e produção artística e seu processo de conceituação e codi-
ficação técnica, influenciou e provocou reflexões sobre a existência
de um gesto híbrido das culturas da América.
Algumas danças do novo mundo (do sul ao norte) se origi-
naram de musicalidades afro-negras, e foram ensinadas para mui-
tos,  ultrapassando inclusive limites etnográficos.  Dentre as for-
mas variadas de dançar originadas nos ambientes de descendência
das matrizes afro podemos citar: o jazz, o sapateado americano, a
salsa cubana, a salsa porto-riquenha, a rumba, o samba, o tango,
o conjunto de danças sociais norte americanas que compõem o
variado repertório das danças de rua/ danças urbanas (street dan-
ce) e as diversas danças do folclore de cada país. As motricidades
específicas destas danças imprimem valores gestuais que aparecem
nas estéticas das danças dramáticas apresentadas em teatros, ruas

335
e que são difundidas também nas  produções  cinematográficas e
nos variados produtos midiáticos audiovisuais. 
Mercedes Baptista (1921-2014) considerada a precursora da
dança afro no Brasil (SILVA JR., 2007), foi a primeira bailari-
na negra do Balé do Theatro Municipal, em 1948. Participou do
Teatro Experimental do Negro (T.E.N.) como bailarina e core-
ógrafa. Estudou com a bailarina e antropóloga norte-americana
Katherine Dunham nos EUA em 1951. No Brasil em 1953 criou
o Ballet Folclórico Mercedes Baptista, onde desenvolveu um estilo
de dança com técnica e didática estruturadas, assimilando refe-
rências das danças rituais do candomblé, entre outras expressões
das tradições afro-brasileiras. A bailarina usou inúmeras nomen-
claturas para referir-se aos seus cursos. Além de aulas de dança
clássica, dança moderna e técnica Dunham, Mercedes também foi
professora de dança folclórica, dança étnica, dança afro-primitiva
e, por último, dança afro-brasileira. Essa variedade não somente
demonstra a versatilidade técnica da artista, mas também fornece
indícios de como as últimas denominações apontam para a cons-
trução, transformação e afirmação política de um estilo próprio.
Ao longo dos anos sua atuação ajudou a construir uma rede de
filiações, na qual os mestres não moldaram totalmente seus dis-
cípulos, mas criaram conexões e alimentam processos múltiplos.
Embora a influência mais visualmente reconhecível na pro-
dução desses grupos tenham sido as danças dos orixás em suas
mais distintas tradições, mesclam-se a elas as inúmeras variações
do samba, os passos das danças populares brasileiras e suas con-
figurações regionais, os movimentos da capoeira, as influências
da dança moderna americana e até da técnica da dança clássica,
visto que grande parte de seus criadores também teve acesso a essa
formação. Com o decorrer dos anos os produtores desta dança
afro assumiram a figura do coreógrafo criador afastando-se da
mera reprodução das danças rituais e populares. Suas criações re-
sultam de mediações entre experiências diversas, que integram sa-
beres artísticos provenientes de espaços múltiplos, como: terreiros,
estúdios de dança, bancos universitários, salas de ensaio e aula.

336
A análise da black dance americana sugere abordagens possíveis
para o estudo das danças de matrizes afro no Brasil. Se a dança
afro, enquanto linguagem constituída no imaginário de centenas
de dançarinos, incorpora abordagens coreográficas historicamen-
te determinadas no Brasil, reconfigurando fazeres de artistas como
Mercedes Baptista, Domingos Campos, Raimundo Bispo dos San-
tos e Marlene Silva (só para citar alguns) o uso do termo dança
negra, de uso mais recente entre seus produtores, adiciona novas
orientações políticas às práticas artísticas. Assim como nos Esta-
dos Unidos, a dança negra no Brasil parece englobar dimensões
estéticas diversas, constituindo um conceito elástico e caleidoscó-
pico que testa sua coerência a cada nova abordagem agregada.
Artistas bailarinos e coreógrafos, educadores e intelectuais
pensadores negros, motivados pela urgência de visibilizar e com-
partilhar informações sobre os avanços de suas pesquisas, publi-
caram tratados técnicos sobre a arte, estética, pedagogia, antropo-
logia das danças afro e africanas, expondo reflexões e ou métodos
codificadores de uma Dança Negra.  Pearl Primus,  Katherine
Dunham, Alvin Ailey, Germaine Acogny, Bill T. Jones, Inaicyra
Falcão, Renata Lima, Amélia Conrado, por exemplo, estrutura-
ram  técnicas corporais investigativas, que geraram publicações
que se tornaram referências bibliográficas para artistas interessa-
dos pelas matrizes africanas ou matrizes afro diaspóricas.

ATITUDES; SENTIMENTOS; SENSAÇÕES...

As questões negras, as questões indígenas assim como todo


o conteúdo que aborda o hibridismo identitário, no caso do Brasil
dizem respeito a toda a nação.  As discussões de identidade que
permeiam todo o planeta estão cada vez mais conduzindo as gera-
ções a buscar uma horizontalidade social para ocupar seus espa-
ços de pertencimento.
O racismo é um tema que no Brasil tem relevância de longa
data e o foco mais intensificado está no confronto de realidade

337
de ter mais de 50% da população descendente de africanos sub-
saarianos. Os negros brasileiros são resultado do hibridismo das
culturas africanas, europeias, indígenas e na atualidade de muitos
mais povos que aqui vivem.

Se tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque


elas são unificadas, mas porque seus diferentes elementos e iden-
tidades podem, sob certas circunstâncias, ser conjuntamente ar-
ticulados. Mas essa articulação é sempre parcial: a estrutura da
identidade permanece aberta. Sem isso, (...) não haveria nenhuma
história. Entretanto (...) isso não deveria nos desencorajar: o des-
locamento tem características positivas. Ele desarticula as identi-
dades estáveis do passado, mas também abre a possibilidade de
novas articulações: a criação de novas identidades, a produção de
novos sujeitos e o que ele chama de ‘recomposição da estrutura
em torno de pontos nodais particulares de articulação. Em vez de
pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-
-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa
a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas
por profundas divisões e diferenças internas, sendo ‘unificadas’
apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultu-
ral. “Entretanto – como nas fantasias do ‘eu inteiro’ de que fala
a psicanálise lacaniana – as identidades nacionais continuam a
ser representadas como unificadas.” (...) As nações modernas são,
todas, híbridos culturais. (HALL, 2003, p. 7-22)

As  múltiplas  identidades afrodescendentes são sempre te-


máticas oportunas quando se discute cultura e arte. Em geral as
manifestações de arte provenientes ou inspiradas no universo cul-
tural negro não se limitam ao espetáculo alegórico. Uma explí-
cita interferência dos processos sociais/políticos, a afirmação da
valorização de cosmovisões específicas e exposição de convicções
ideológicas, acabam desenvolvendo formas de comunicação cria-
tivas e bastante peculiares. Na contemporaneidade, identificamos
a tendência de que as matrizes culturais do Brasil sejam visitadas

338
mais fluidamente, sem as ressalvas observadas em outros perío-
dos geracionais. Isto vem proporcionando ampliação do desfrute
das nuances culturais do povo brasileiro. No universo da dança
está cada vez mais comum ver os criadores considerarem os lega-
dos culturais afrodescendentes e indígenas, mesmo que os proces-
sos de formação sejam fortemente ancorados na supervalorização
de discursos  canônicos  eurocêntricos. Sobretudo nos currículos
universitários. Ainda não é fluido o estudo do conjunto de concei-
tos e práticas corporais que dialoguem com o exercício cultural e
produção de arte nacional. 
Em função destes fatos, é muito comum ver alguns negros
convictos brasileiros incumbidos de buscar justificativas e evidên-
cias sobre os pontos de confluência dos traços de origem matricial-
mente africana na identidade cultural do país. Nem sempre de pele
preta, estes negros convictos muitas vezes são pessoas pardas ou
brancas e acabam se responsabilizando pelo encaminhamento das
discussões. Nunca deixando de destacar que dizer ser brasileiro é
também dizer ser americano do Sul; afrodescendente; ameríndio.
O exercício da arte sempre deverá significar um salvo con-
duto para a expressão, livre de qualquer tratado étnico ou social
pré-estabelecido ou não… Paradoxalmente, não se deve desconsi-
derar os aspectos culturais dos indivíduos para discorrer sobre a
manifestação das expressões artísticas.
Segue um pequeno glossário de nomes influentes e referen-
ciais quando se discorre de maneira sociológica conceitos e visões
cosmogônicas negras como a negritude; a crioulização; a afro-
descendência; a africanidade; o afrocentrismo; o quilombismo; a
ubuntuidade; o pan-africanismo. Todas visões formuladas a par-
tir dos efeitos do espalhamento da população africana pelo mun-
do e consequentemente da formação das múltiplas identidades das
novas nações:

• ACOGNY, Germaine (1944): Dançarina e coreógrafa se-


negalesa. Responsável pelo desenvolvimento da “Dança Africana”,
bem como pela criação de várias escolas de dança na França e no

339
Senegal. Ela foi condecorada por ambos os países, incluindo um
oficial da Ordre des Arts et des Lettres na França e cavaleiro da
Ordem Nacional do Leão no Senegal.

• ACOGNY, Patrick: Artista bailarino, coreógrafo e profes-


sor. Formou-se na Europa e África e especializou-se em técnicas
contemporâneas e tradicionais de danças da África. Doutor em
dança e pesquisador vinculado à Universidade Paris 8 e membro
do laboratório etnocenologia de la Maison des Sciences de l’Hom-
me de Paris Nord.

• AILEY, Alvin (5 jan. 1931 – 1 dez. 1989): Dançarino, di-


retor, coreógrafo e ativista afro-americano que fundou o Alvin Ai-
ley American Dance Theatre (AAADT). Sua afiliada Ailey School
criou meios para nutrir artistas negros e expressar a universalida-
de da experiência afro-americana através da dança. Seu trabalho
mesclou teatro, dança moderna, balé e jazz com o vernáculo ne-
gro, criando coreografias motivadas pela esperança que continu-
am a espalhar a consciência global da vida negra na América.

• BALÉ FOLCLÓRICO DA BAHIA: Companhia de dança


folclórica do Brasil. Fundada em 1988, é a única companhia fol-
clórica profissional brasileira. Está sediada em Salvador, no Tea-
tro Miguel Santana, situado no Centro Histórico. Foi reconhecida
como a “melhor companhia de dança folclórica do planeta” pela
Associação Mundial de Críticos.

• BANDO DE TEATRO OLODUM: Companhia negra


mais popular e de maior longevidade na história do teatro baiano
e uma das mais conhecidas do país. Nasceu em 17 de outubro de
1990, em Salvador, a partir de uma parceria entre o diretor Mar-
cio Meirelles e o Grupo Cultural Olodum.

• BAIRROS, Luiza Helena de (Porto Alegre, 27 mar. 1953


– Porto Alegre, 12 jul. 2016): Administradora brasileira, foi mi-

3 40
nistra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial do Brasil entre 2011 e 2014.

• CABRAL, Muniz Sodré de Araújo (São Gonçalo dos


Campos, 12 jan. 1942): Jornalista, sociólogo e tradutor brasileiro,
professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Escola de
Comunicação. É um pesquisador brasileiro e latino-americano no
campo da comunicação e do jornalismo.

• CÉSAIRE, Aimé Fernand David (Basse-Pointe, Martinica,


26 jun. 1913 — Fort-de-France, 17 abr. 2008): Poeta, dramaturgo,
ensaísta e político da negritude. Além de ser um dos mais impor-
tantes poetas surrealistas no mundo inteiro, inclusive no dizer do
líder deste movimento, Breton, Aimé Césaire teve a sua obra mar-
cada pela defesa de suas raízes africanas.

• CIA. RUBENS BARBOT TEATRO DE DANÇA: Funda-


da em 20 de agosto de 1990 no bairro de Quintino na cidade do
Rio de Janeiro, pelo coreógrafo e bailarino Rubens Barbot, natu-
ral do Rio Grande do Sul e radicado no Rio de Janeiro em 1989.
A primeira Companhia Negra de dança contemporânea, mantém
até hoje um trabalho singular. Sustentando sua linguagem numa
análise profunda dos gestos, movimentos e imagens que se des-
prendem dos corpos afro-brasileiros.

• CIA. SERÁQUÊ?: Agrupamento artístico que se expressa


através da Dança. Sua história começa em 1992, em Belo Hori-
zonte - Brasil, com o encontro de bailarinos, atores, músicos e
poetas em sua maioria negros, interessados em pensar a cena a
partir de suas referências estéticas e políticas e a partir daí, esta-
belecer diálogos com a diversidade e com a variedade de culturas
existentes no Brasil.

• CONRADO, Amélia: Doutora e mestre em Educação pela


Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Coreo-

3 41
grafia pela Escola de Dança da UFBA. Membro do Programa de
Pesquisa e Pós-Graduação em Dança (PPG Dança), do Programa
de Mestrado Profissional em Dança (PRODAN) e pesquisadora
do Grupo Internacional de Pesquisa RETINA - Recherches Es-
thétiques & Théorétiques sur les Images Nouvelles & Anciennes
sob coordenação do filósofo François Soulages. É líder do GIRA:
Grupo de Pesquisa em Culturas Indígenas, repertórios Afro-brasi-
leiros e Populares.

• CHAMOISEAU, Patrick (Fort-de-France, Martinica, 3


dez. 1953): Escritor francês autor de romances, contos e ensaios.
Também já escreveu para teatro e cinema. O Prêmio Goncourt lhe
foi concedido em 1992. Sua obra inclui os principais traços da cul-
tura da Martinica, principalmente o povo e seus combates diários.

• DAMAS, Léon-Gontran (Guiana Francesa, 28 mar. 1912


– EUA, 22 jan. 1978): Escritor, poeta e político francês. Era mes-
tiço de negro, ameríndio e branco. Foi um dos fundadores da Ne-
gritude, juntamente com Césaire e Senghor nos anos 1940.

• DUNHAM, Katherine Mary  (22 jun. 1909 – 21 mai.


2006): Dançarina afro-americana, coreógrafa, escritora, educado-
ra, antropóloga e ativista social. Dunham teve uma das carreiras
de maior sucesso no teatro afro-americano e europeu do século
XX e dirigiu sua própria companhia de dança por muitos anos. 

• FROBENIUS, Leo (Berlim, 29 jun. 1873 – Biganzolo, 9


ago. 1938): Etnólogo alemão. Através de suas pesquisas sobre a
história africana ele ainda é lembrado em muitos países africanos.
Em particular, ele influenciou os fundadores da Negritude Léopold
Sédar Senghor, que certa vez escreveu que ele “havia dado à África
sua dignidade e sua identidade”, bem como Aimé Césaire, para
cuja obra poética e ensaística também foi fundamental. Frobenius
via a cultura africana como equivalente à europeia, o que era in-
comum para um estudioso de sua época.

3 42
• FANON, Frantz Omar (Fort-de-France, Martinica, 20 jul.
1925 – Bethesda, Maryland, 6 dez. 1961): Psiquiatra, filósofo e
ensaísta marxista francês da Martinica, de ascendência francesa
e africana. Fortemente envolvido na luta pela independência da
Argélia, foi também um influente pensador do século XX sobre os
temas da descolonização e da psicopatologia da colonização.

• GILROY, Paul (16 fev. 1956): Historiador, escritor e aca-


dêmico britânico, é o diretor fundador do Centro de Estudos de
Raça e Racismo da University College London. Vencedor do prê-
mio Holberg, por suas contribuições para vários campos acadêmi-
cos, incluindo estudos culturais, sociologia, história, antropologia
e estudos afro-americanos.

• GLISSANT, Édouard (Sainte-Marie, Martinica, 21 set.


1928 – Paris, 3 fev. 2011): Escritor, poeta, romancista, teatrólo-
go e ensaísta francês. Doutor em Letras, publicou suas primeiras
obras depois de seus estudos de etnografia no Museu do Homem e
de história e filosofia na Sorbonne. No início, adepto das teses de
negritude (conceito desenvolvido por Léopold Senghor em prol de
um retorno às raízes africanas), elaborou o conceito de antilhani-
dade (valorização da cultura própria, nascida nas Antilhas, consi-
derando o povo das ilhas “autônomo” culturalmente em relação a
África) e de crioulização (valorização da cultura e língua crioula).

• GRIAULE, Marcel (16 mai. 1898 – 23 fev. 1956): Autor


e antropólogo francês conhecido por seus estudos sobre o povo
Dogon da África Ocidental e pelos pioneiros estudos de campo et-
nográfico na França. Trabalhou em conjunto com Germaine Die-
terlen e Jean Rouch em assuntos africanos.

• HALL, Stuart (Kingston, 3 fev. 1932 – Londres, 10 fev.


2014): Sociólogo marxista britânico jamaicano, teórico cultural
e ativista político. Hall, juntamente com Richard Hoggart e Ray-
mond Williams, foi uma das figuras fundadoras da escola de pen-

3 43
samento que hoje é conhecida como Estudos Culturais Britânicos
ou Escola de Estudos Culturais de Birmingham.

• HUGHES, James Mercer Langston (1 fev. 1901 – 22


mai. 1967): Poeta americano, ativista social, romancista, dra-
maturgo e colunista de Joplin, Missouri. Mudou-se para Nova
York quando jovem, onde fez sua carreira. Um dos primeiros
inovadores da então nova forma de arte literária chamada po-
esia de jazz, Hughes é mais conhecido como líder do Renasci-
mento do Harlem.

• JONES, William Tass, conhecido como Bill T. Jones, (15


fev. 1952): Coreógrafo, diretor, autor e dançarino americano. Ele
é o co-fundador da Bill T. Jones / Arnie Zane Dance Company.
Diretor artístico da New York Live Arts, a sede da empresa em
Manhattan, cujas atividades abrangem uma temporada anual de
apresentações, juntamente com programas e serviços de educação
aliada para artistas.

• LOCKE, Alain LeRoy (13 set. 1885 – 9 jun. 1954): Pro-


fessor, filósofo e escritor norte-americano. Patrono das artes e
educador, foi o primeiro negro a receber a Rhodes Scholarship,
um prêmio internacional de pós-graduação para estudantes da
Universidade Oxford. É considerado o pai do Renascimento do
Harlem.

• LOPES, Nei Braz (Irajá, Rio de Janeiro, 9 mai. 1942):


Compositor, cantor, escritor e estudioso das culturas africanas,
no continente de origem e na Diáspora africana.

• MCKAY, Festus Claudius “Claude” (15 set. 1889 – 22


mai. 1948): Escritor e poeta jamaicano, uma figura seminal no
Renascimento do Harlem. McKay floresceu como poeta durante
o Harlem Renaissance, um grande movimento literário na década
de 1920. Durante esse período, seus poemas desafiaram a autori-

344
dade branca enquanto celebravam a cultura jamaicana. Também
escreveu contos sobre as provações e tribulações da vida como
homem negro na Jamaica e na América.

• MARTINS, Leda Maria (Rio de Janeiro, 25 jun. 1955):


Poeta, ensaísta, acadêmica e dramaturga brasileira. Leda Martins
avalia que a importância dos diversos ritmos, dos tambores es-
palhados pelo país, está, justamente, nas “duas grandes matrizes
africanas civilizatórias no Brasil”, caso da Nagô-Iorubá e Banto.

• NASCIMENTO, Abdias do (Franca, 14 mar. 1914 – Rio


de Janeiro, 23 mai. 2011): Ator, poeta, escritor, dramaturgo, artis-
ta plástico, professor universitário, político e ativista dos direitos
civis e humanos das populações negras brasileiras. Considerado
um dos maiores expoentes da cultura negra e dos direitos huma-
nos no Brasil e no mundo, foi oficialmente indicado ao Prêmio No-
bel da Paz de 2010. Fundou entidades pioneiras como o Teatro Ex-
perimental do Negro (TEN), o Museu da Arte Negra (MAN) e o
Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Foi
um idealizador do Memorial Zumbi e do Movimento Negro Uni-
ficado (MNU) e atuou em movimentos nacionais e internacionais
como a Frente Negra Brasileira, a Negritude e o Pan-Africanismo.

• PRIMUS, Pearl Eileen (29 nov. 1919 – 29 out. 1994): Dan-


çarina, coreógrafa e antropóloga americana. Desempenhou um
papel importante na apresentação da dança africana ao público
americano.

• REIS, João José (Salvador, 24 jun. 1952): Um dos mais


importantes historiadores do Brasil, considerado uma referência
mundial para o estudo da história e da escravidão no século XIX.

• SANTOS, Milton Almeida dos (Brotas de Macaúbas, 3


mai. 1926 – São Paulo, 24 jun. 2001): Geógrafo. Graduado em
Direito, destacou-se por seus trabalhos em diversas áreas da geo-

3 45
grafia, em especial nos estudos de urbanização do Terceiro Mun-
do. Foi um dos grandes nomes da renovação da geografia no Brasil
ocorrida na década de 1970. Também se destacou por seus tra-
balhos sobre a globalização nos anos 1990. Sua obra de carac-
terizou-se por apresentar um posicionamento crítico ao sistema
capitalista, e seus pressupostos teóricos dominantes na geografia
de seu tempo.

• SANTOS, Inaicyra Falcão dos (Salvador, Bahia, 1958):


Cantora lírica, professora doutora e pesquisadora das tradições
africano-brasileiras, na educação e nas artes performáticas no De-
partamento de Artes Corporais da Unicamp. É filha de Mestre
Didi e neta de Mãe Senhora, Iyalorixá do Candomblé.

• SENGHOR, Léopold Sédar (9 out. 1906 – 20 dez. 2001):


Político e escritor senegalês. Foi presidente de Senegal, de 1960 a
1980. Foi, entre as duas Guerras Mundiais, juntamente ao poeta
antilhano Aimé Césaire, ideólogo do conceito de negritude.

• SILVA, Maria Aparecida da – Cidinha Silva (Belo Hori-


zonte, 1967): Escritora brasileira. Graduou-se em História pela
Universidade Federal de Minas Gerais. Presidiu o Geledés - Insti-
tuto da Mulher Negra e fundou o Instituto Kuanza, que promove
ações de educação, ações afirmativas e articulação comunitária
para a população negra.

• SILVA, Renata de Lima: Mestre e doutora em Artes pela


Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professora do
curso de Dança da Universidade Federal de Goiás – UFG e co-
ordenadora (líder) do Núcleo de Pesquisa e Investigação Cênica
Coletivo 22.

• SILVEIRA, Oliveira Ferreira (Rosário do Sul, 16 ago.


1941 – Porto Alegre, 1 jan. 2009): Poeta brasileiro, formou-se
em Letras (Português e Francês) pela Universidade Federal do Rio

3 46
Grande do Sul. Militante do Movimento Negro em Porto Alegre,
foi um dos fundadores do Grupo Palmares, sendo um dos líderes
da campanha pelo reconhecimento do Dia da Consciência Negra
em 20 de novembro.

• SOYINKA, Wole (13 jul. 1934): Escritor nigeriano que em


1986 foi agraciado com o Nobel de Literatura, sendo considerado
o dramaturgo mais notável da África.

PAR A UMA AÇÃO CONTINUADA

Rede Terreiro Contemporâneo de Dança – reflexão, prática


e troca de informações.

Fez-se um encontro com pessoas da arte, que pensam a partir


da arte, com foco na arte para pensar a diversidade da produção
de dança, cronologicamente falando, na contemporaneidade no
Brasil e o que isso significava. Naquele momento essa conversa
ressoou em várias cabeças e corpos. Essa ressonância criou em
vários pontos do Brasil a necessidade de se levantar eventos e
ações e conectar as iniciativas dessas pessoas no sentido de pensar
essa diversidade. Levando em consideração o fato do Brasil ser o
segundo país em densidade populacional negra, esse recorte da
diversidade e da cultura foi valorizado. Já era um foco e estava
sendo discutido no Fórum Nacional de Performance Negra1 e, es-
pecificamente, as ressonâncias se espalham pelo Brasil no fazer
de cada um. Como essa diversidade pode vir a somar na cultura,
no fazer e no ler desse tempo contemporâneo no Brasil? O Ter-
reiro nasce nesse contexto. Aqui em Belo Horizonte, a SeráQuê?

1 Ocorreram quatro edições do evento na Bahia entre 2005 a 2015, com a proposta de
debate sobre as políticas públicas e seus impactos no desenvolvimento das artes cênicas
negras, tendo como ponto inicial, o marco da dança e teatro negros brasileiros.

3 47
Cultural, através de um edital para Pontos de Cultura, propôs ao
Ministério da Cultura fazer um encontro. Esse primeiro encontro
aconteceu no ano de 2009 no barracão do terreiro de candomblé
Ilê Wopô Olojukan. Vieram a Belo Horizonte artistas, pensado-
res de São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Espírito Santo. E num
processo de roda, onde a circularidade e horizontalidade eram o
mote, nós trocamos pensamentos, estéticas, reflexões ao ponto
de alimentar aqueles multiplicadores daquela ideia; saindo Brasil
afora dando continuidade a esta história. Pontos luminosos de
uma grande rede: aqui em Belo Horizonte, as ações do Festival de
Arte Negra, do Coletivo Negraria, do Família de Rua. Em outros
estados, no Rio de Janeiro, a Barbot Companhia de Dança, ali-
ás, o espaço dela também se chama Terreiro Contemporâneo de
Dança; a Carmen Luz, também no Rio de Janeiro, fizeram outros
eventos, agrupando nomes e dando valor e visibilidade a este re-
corte da cultura nacional que é a cultura negra. (Depoimento de
Rui Moreira em 30/08/2012 no Auditório do Memorial Vale, em
Belo Horizonte).

A produção de eventos de dança em um país de dimensões


continentais tem muitas complexidades. Da captura de recursos
até a mobilização de público. Não existem políticas para as artes
e os recursos são sazonais, portanto, para promover ações sobre
um recorte marginalizado como é o conceito dança negra, exige
ousadia e cuidado. Por meio da Rede Terreiro Contemporâneo de
Dança ocorreram cinco encontros que teceram uma rede de teias
luminosas, reunindo produtores, artistas independentes e pensa-
dores que observam, valorizam e se inspiram em conceitos negros
diaspóricos e africanos. Esse movimento, que teve envolvimento
internacional, propôs colaborações com foco nas danças negras
contemporâneas, tradicionais e patrimoniais. Teve por objetivo
visibilizar pensamentos, espetáculos de dança e publicações pro-
duzidas com base neste universo cultural. Um evento privilegiado
abordando a multiplicidade de fazeres artísticos marginais inspi-
rados na produção negra planetária, explicitando assim, diferen-

348
tes abordagens artísticas, educacionais e de pesquisa. Fernando
Marques Camargo Ferraz2 provoca:

O que une estes produtores? Todos estão envolvidos num mesmo


gênero de dança? Quais são os pontos comuns neste fazer tão
múltiplo que autorize uma identificação comum? Se as danças
de matrizes afro percorrem diversos espaços, dos terreiros das
comunidades negras aos palcos italianos dos grandes teatros; das
vivências de fiéis das religiões afro-brasileiras aos procedimentos
coreográficos dos intérpretes criadores contemporâneos qual o
interesse em criar redes que conectem expressões tão díspares?
De acordo com o tempo histórico e contexto sociopolítico, esta
dança já foi nomeada como étnica, folclórica, primitiva, afro-
-primitiva, afro-brasileira, negra, afrodiaspórica, negra contem-
porânea, entre outras classificações. A despeito da diversidade de
nomes todas essas categorizações conectam-se através de referên-
cias compartilhadas que cruzam elementos da história de cada
criador, sua formação artística, o reconhecimento de linhagens
coreográficas construídas pelas relações com mestres e bailarinos
da velha-guarda, sua inserção no campo de produção cultural e
seus comprometimentos políticos e sociais. (FERRAZ, 2012)

No terceiro encontro da Rede, com apoio do Prêmio Funar-


te Klauss Vianna 2013, a programação destacou ações artísticas
no campo da performance e ações estratégicas de formação envol-
vendo as danças negras. Com convidados internacionais, duran-
te o evento foi lançada através de acordos de fidelidade entre os

2 Doutor em Artes e mestre em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Unesp de São
Paulo, Bacharel Licenciado em História pela FFLCH-USP-SP. Professor Adjunto da Escola
de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA), atuando nos Estudos do Corpo com
ênfase em Danças Populares, Indígenas e Afro-Brasileiras. Professor permanente do Pro-
grama de Pós-Graduação em Dança da UFBA e do Mestrado Profissional em Dança - PRO-
DAN. Coordenador do Curso de Especialização em Estudos Contemporâneos em Dança do
PPGDança/UFBA. É colaborador da Rede Terreiro Contemporâneo de Dança.

3 49
participantes, a pedra fundamental para a criação de um núcleo
de estudos, pesquisas e formação profissional em artes. A criação
da Escola Intercontinental de Formação Profissional em Artes
Negras do Brasil pretendia fomentar as possibilidades de formu-
lações de políticas de intercâmbio. A criação de um núcleo de
estudos e formação profissional focado em arte negra no Brasil
se contextualizava a época no propósito de dialogar com a im-
plementação e fortalecimento da lei 10.639/20033 que estabelece
as diretrizes para inclusão no currículo oficial da rede de ensino
a temática história e cultura afro-brasileira e africana. Ou seja,
criava interfaces entre educação, arte e cultura. Através deste nú-
cleo pretendia-se ampliar a abrangência das discussões sobre as
matrizes negras em território brasileiro, confrontando realidades
estéticas e culturais advindas das matrizes africanas e das suas
diásporas. No Brasil, um incontável número de danças e ritmos
de origem matricial africana constituem o patrimônio imaterial
da nação. Mas, por uma série de mazelas, mesmo havendo re-
conhecimento desse patrimônio, é muito difícil estabelecer um
diálogo efetivo com os sistemas educacionais vigentes.
O modelo de núcleo educacional para este projeto era a
escola de formação profissional em dança situada no Senegal, em
Toubab Dialaw (uma vila de pescadores), criada por Germaine
Acogny em parceria com seu esposo Helmut Vogt. No período de
1977 a 1985, Germaine foi assistente de Maurice Béjart (1927-
2007) no projeto Mudra Afrique e em 1994 criou a École des
Sables (Escola de Areias) – Centro de formação profissional de
Danças Africanas tradicionais e contemporâneas. Esse espaço de
formação atende a todas as regiões africanas. Mantém, também,

3 A demanda da comunidade afro-brasileira por reconhecimento, valorização e afirmação


de direitos, no que diz respeito à educação, passou a ser particularmente apoiada com a
promulgação da Lei 10.639/2003, que alterou a Lei 9.394/1996, estabelecendo a obrigato-
riedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas. (Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultu-
ra Afro-brasileira e Africana. Brasília: Ministério da Educação, 2005)

350
diferentes formas de convênios e intercâmbios com escolas e uni-
versidades da Europa, Ásia, América Central, América do Norte
e América do Sul, distribuindo seus alunos, depois de formados,
para centros de dança espalhados pelo mundo como multipli-
cadores dos procedimentos técnicos aprendidos na escola. Do
ano de 2007 a 2015 a Associação SeráQuê? Cultural4 manteve
relações de intercâmbios com este núcleo. Estabeleceu parcerias
através de projetos diplomáticos da embaixada do Brasil no Se-
negal com apoio de outras instituições de cunho governamental,
viabilizando a participação de dançarinos em processos de for-
mação junto à École des Sables.
Observando ao longo dos anos a dificuldade de reconheci-
mento das bases da mestiçagem no planeta e, ao mesmo tempo,
considerando o campo da cultura das artes como transformador
e relevante, o projeto de uma escola intercontinental de artes
negras no Brasil pretendia estabelecer-se como um espaço físico
que pudesse servir como base e antena/eixo para artistas, pes-
quisadores, pedagogos e demais interessados nos legados negros
como patrimônio e conteúdo educacional e artístico. Um local
de referência para estimular a formulação de políticas públicas e
políticas de intercâmbios nacionais e internacionais.
A França por exemplo, no escopo de suas políticas de in-
ternacionalização pelas artes, mantém um programa de inter-
câmbio de artes chamado Afrique et Caraibes en Créations, e o
Brasil é um dos países beneficiados por este programa. Poucos
projetos brasileiros participam, pois são raros os artistas que se
reconhecem neste espaço afro-francófono.

4 A SeráQuê? Cultural – criada em 2001 é uma instituição de perfil associativo de fins


humanitários, artísticos e culturais que cria condições para que processos autorais, pes-
quisas de linguagens artísticas e processos socioculturais, possam ser transformados em
projetos, ser desenvolvidos, ser apresentados e ter seus resultados difundidos. Um grande
guarda-chuva, que funciona como uma incubadora de artes e cultura que abriga ações em
várias vertentes.

351
O Centro Intercontinental de formação profissional em Dan-
ças Negras Tradicionais e Contemporâneas do Brasil pretendia fo-
mentar possibilidades de formulações de políticas de intercâmbio
com abrangência cultural e social transformadores de realidades.
Quando se fala de África e diásporas desvela-se interesses
comuns e diversos entre variados países/nações. Economia, saú-
de, cultura e ancestralidade, vindouras convivência entre gerações
africanas e afrodescendentes. Um fortalecimento identitário. Para o
desenvolvimento deste ambicioso projeto se fez a interlocução entre
associações culturais SeráQuê? Cultural/Brasil e Jant-Bi/ Senegal.
De modo geral, os encontros da Rede Terreiro Contempo-
râneo de Dança resultaram em articulações e constituição de es-
tratégias comuns para a promoção de culturas negras. Todos os
pontos luminosos dessa rede seguem circulando e criando agendas,
que se constituem em espaços de cotejo entre os tensionamentos da
arte negra na contemporaneidade, constituindo espaços de autorre-
presentação, ao mesmo tempo, que seguem questionando sobre os
limites de sua abrangência.
Existe um longo caminho a percorrer para que o povo bra-
sileiro se aproprie de sua própria trajetória. Mobilizações da socie-
dade para apreciação e reflexão sobre cultura e as abordagens múl-
tiplas dos vários conceitos concernentes à diversidade, contribuem
para o desenvolvimento do pensar e do fazer criativo. E tudo reforça
o papel da cultura das artes como uma potente ferramenta de edu-
cação holística. Avalio que estimular essa discussão é de extrema
importância para ampliar os limites das expressões da contempora-
neidade neste Brasil pós-colonial e pós-escravagista.
Ao acompanhar a Década Internacional de Afrodescenden-
tes (2015-2024)5, onde a comunidade internacional reconhece que

5 A Década Internacional de Afrodescendentes foi proclamada pela resolução 68/237 da


Assembleia Geral da ONU e será observada entre 2015 e 2024, proporcionando uma estru-
tura sólida para as Nações Unidas, os Estados-membros, a sociedade civil e todos os outros
atores relevantes para tomar medidas eficazes para a implementação de um programa de

352
os povos afrodescendentes representam um grupo distinto cujos
direitos humanos precisam ser promovidos e protegidos. E ainda,
distingue que há cerca de 200 milhões de pessoas auto-identifica-
das como afrodescendentes que vivem nas Américas e em outros
lugares do mundo, fora do continente africano. Sendo assim, re-
alizamos que o Negro não é uma questão do Negro. O Negro é
uma questão dos países e das nações. E tudo o que ajuda os povos
a assumirem seus compromissos com seu lado afrodescendente é
melhor para todos.

REFERÊNCIAS

• ACOGNY, Germaine. Danse Africaine Afrikanischer Tanz


African Dance. Frankfurt: Kunstverlag Weingarten, 1994.
• ACOGNY, Patrick. As Danças Negras ou as Veleidades para
uma Redefinição das Práticas das Danças da África. Revista
Rebento. São Paulo, n. 6, p. 131-156, maio 2017.
• BIÃO, Armindo Jorge de Carvalho (Org.). Artes do corpo e do
espetáculo: questões de etnocenologia. Salvador: P&A, 2007.
• FERRAZ, Fernando Marques Camargo. Rede Terreiro: plu-
ralidades na dança negra contemporânea. Revista Antropolí-
tica - Dossiê Dança nº 33, p.73-97, Niterói, 2ºsemestre, 2012.
• GILROY, Paul. O Atlântico Negro. São Paulo: Editora 34, 2001.
• HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.
Rio de Janeiro: Editora DP&A, 2003.
• MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória. São Paulo:
Editora Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.

atividades no espírito de reconhecimento, justiça e desenvolvimento. Uma oportunidade


para destacar a importante contribuição dada pelas e pelos afrodescendentes para nossas
sociedades e propor medidas concretas para promover a sua plena inclusão, o combate ao
racismo, à discriminação racial, à xenofobia e à intolerância.

353
• MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. O Negro no
Brasil de hoje. São Paulo: Editora Global, 2006.
• SASPORTES, José. Pensar a Dança: a reflexão estética de
Mallarmé a Cocteau. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da
Moeda, 1983.

35 4
OLGA GUTIÉRREZ – Directora artística de la
organización escénica Laboratorio puntoD
con la que realiza producción de obra, proyec-
tos de colaboración internacional, así como
el Encuentro Internacional de Arte Escénico
Contemporáneo – EINCE (https://laboratorio-
puntod.com/eince/) y la plataforma MURA en
Fresno (https://muraenelfresno.wordpress.com/)
Actualmente forma parte del Sistema Nacional
de Creadores de Arte del Fondo Nacional para
la Cultura y las Artes del Fondo Nacional para
la Cultura y las Artes. Este año realiza su segun-
da obra Monumento de la trilogía ¿Cómo po-
ner el cuerpo? en México y la obra Agotarse en
Ecuador con coproducción de IBERESCENA.
Creadora invitada para realizar su obra (RE)
POSICIÓN para la plataforma CHANGING
PLACES 2020 MÉXICO co-producida por la
Fundación Siemens, Goethe Institute Mexiko y
Secretaría de Cultura Jalisco.

356
ESTO NO ES UN TEXTO, ES UN CUERPO
Olga Gutiérrez

R
espondo a la pregunta ¿Cómo poner un cuerpo? a partir
de una larga reflexión que hago desde el 2016 hasta la
fecha.

1.
Si desde hace mucho tiempo vivimos una vida deshumani-
zada donde cosificamos ¿Cómo afecta la presencia del performer,
actor o bailarín este cuerpo a cuerpo con el espectador? ¿De qué
manera se ve afectado el acto convivial de las artes escénicas?
¿Qué reflexiones producimos lxs artistxs, investigadores, pedago-
gos, productores o gestores para pensar un arte del cuerpo crítico
a la cosificación?

Este cuerpo cosificado es un cuerpo social, es decir, es un


cuerpo que se aprende.
La palabra “aprender” proviene del latín apprehendere,
compuesto por el prefijo ad- (hacia), el prefijo prae- (antes) y el
verbo hendere (atrapar, agarrar).
Hacia – Antes – Atrapar.
Aprendizaje y aprendiz. La primera palabra conduce a la
acción, la segunda es la persona que realiza el acto de aprender. 
El aprendiz atrapa, consigue, obtiene, agarra, como la garra del
gato que coge sigilosamente un ratón o el hocico del león un ciervo.
“Todo lo que hacemos es por aprendizaje” - me decía mi
maestro de educación física en la preparatoria, seguido de: “somos
la cultura que nos vio nacer”. Esta frase lograba que consiguiese
alcanzar la meta de correr 20km.

Este cuerpo nace en esta cultura que reproduce la cosificación.


Este cuerpo se hace en esta cultura cosificada.

357
Entonces ¿no tendría que ser el arte del cuerpo una práctica
activista ante esta situación?

Para construir un activismo genuino, primero deberíamos


responder a la pregunta ¿Cómo el arte reproduce este cuerpo co-
sificado? ¿De qué manera? ¿Cómo nos encargamos de difundirlo?
¿Cómo lo reproducimos? ¿Qué instituciones lo premian? ¿Cómo
hemos creado un montón de técnicas, tecnologías, herramientas y
metodologías para sostener esta cosificación?

Pienso que seríamos más activistas si en lugar de repetir una


y otra vez que “el arte sirve para crear conciencia” reconociéramos
y escribiéramos sobre cómo cosificamos nuestro propio cuerpo en
el cotidiano y cómo reproducimos esto en escena. Esto ayudaría a
desmontar algunos escritos y teorías que circulan por ahí hablan-
do sobre la emancipación, el empoderamiento y la expansión que
supuestamente está produciendo el cuerpo en el arte.

Hagamos un acto de auto-observación de cómo somos atra-


vesados por esta cosificación en la que nacimos.

Creemos que por el hecho de “ser artistas” nos eximimos de


la violencia que producimos al cosificar y usar nuestros cuerpos,
los cuerpos de nuestrxs compañerxs, los cuerpos de lxs espectado-
res, los cuerpos de otrxs.

Hablemos de cómo los artistas nos lavamos las manos por


“ser artistas” y nos sentimos aliviados creyendo que cumplimos
nuestra cuota ética.

Por eso no nos salen las cuentas.


Por eso sentimos que seguimos en deuda.
Por eso sentimos que no llegamos.
Por eso no dejamos de sentir que necesitamos justicia.
Por eso no podemos dormir tranquilos.

358
Por eso nuestrxs cuerpxs se levantan al primer clamor para
manifestarse.
Son estertores de un cuerpo que se resiste a ser cosificado.
Hablemos de esto y quizá muy pronto a nuestros nietos les
toque un mundo más conectado.
¡Feliz día de la danza!

(Texto escrito entre febrero 2019 y marzo 2020 en México)

2.
Soy bailarina. Tengo 36 años. Hace 10 años dejé de entre-
narme en las técnicas tradicionales de danza clásica y contemporá-
nea que fomentan solamente las habilidades físicas en marcos muy
limitados. Lo hice como un acto de protesta al sistema alienante
de la danza contemporánea occidentalizada. No quiero engordar
las listas de bailarines hiperentrenados y disciplinados del régimen
de una danza que reproduce cánones de sumisión, sometimiento,
escenas de violencia femenina, ideologías de creadores misóginos
u homofóbicos que abusan del poder en un grupo de personas e
instituciones de arte que fomentan la violencia al cuerpo.

Desconfío de las técnicas occidentalizadas de adiestramien-


to del cuerpo porque terminan controlando el instinto y la percep-
ción en pro de un cuerpo amaestrado.

Me pregunto ¿cuál es la similitud entre un soldado adiestra-


do para lograr un movimiento frío y un bailarín hiperentrenado
para hacer un movimiento preciso pedido por el coreógrafo? Que
sus cuerpos están al servicio de una batalla a la que muchas veces
se entregan ingenuamente, que ponen sus cuerpos al servicio de
un sistema de violencia que desconocen y que pelean una batalla
que no les pertenece. Claro, la gran diferencia es que en una hay
cientos o miles de víctimas muertos y en la otra no, ¿cierto?

359
Creo en el movimiento que produce mi cuerpo como un acto
de nombrarme y nombrar el mundo con mi propia voz. Como una
manera de responsabilizarme de mi existencia, del tiempo en el
que vivo y de la historia que me toca escribir. Como una manera
de incitar otros escenarios más comprensibles, afectivos y poro-
sos para la humanidad, más incluyentes y respetuosos hacia la
diferencia. Como una estrategia de lo político, mover mi enojo,
mi indignación y mi inconformidad sobre los disciplinamientos
sociales. Creo en el movimiento que produce conocimiento para
mí y para todas las comunidades que conformamos esta gran co-
munidad. Creo en el cuerpo desde el instinto, la percepción y no
desde este tipo de adiestramiento. Creo en el cuerpo animal que
somos más que en el cuerpo cultural que aprendemos.
Este mi cuerpo animal sabe moverse, conoce su espacio de
movimiento, sabe qué está moviendo y hacia dónde está movién-
dose. Este cuerpo animal que gatea, camina, habla, come, corre,
caga, abraza, besa, coge, da a luz.

Este mi cuerpo animal se mueve y produce un territorio, este


territorio es una práctica política. Este mi cuerpo animal es una
micropolítica que hace estallar ese adiestramiento occidentalizado
del cuerpo, ese campo de batalla, ese batallón y esa lucha.

(Texto iniciado en mayo 2016 en Brasil y terminado en abril


2017 en Berlín)

3.
A los mexicanos nacidos en los 80 nos ha tocado vivir una
transición muy importante en la violencia de cuerpos.

A partir de 1994 recuerdo escuchar sobre el caso llamado


“las desaparecidas de Juarez”, mujeres de ciudad Juárez con cier-
tos rasgos en común, que eran desaparecidas y luego encontradas
muertas en zonas abandonadas. Recuerdo leer un libro que ha-

360
blaba de cómo el acuerdo del TLC (Tratado de Libre Comercio
de América Latina y el Caribe) permitió la entrada a industrias
extranjeras en ciudades fronterizas con Estados Unidos, provo-
cando con ello una escalada de violencia contra mujeres y niños:
violaciones, secuestros, tráfico de órganos, desapariciones y fosas
comunes.

Desde el 2006 cada día incrementan los desaparecidos, los


asesinados, los desplazados, los torturados y las fosas comunes.
Dice Luz Emilia Zinser “la organización civil mexicana Evalúa ha
denunciado que nuestro país ha tenido una intensidad de violen-
cia que es equiparable a zonas que han estado en conflicto arma-
do, por ejemplo, los Balcanes en la década de los 90 registraron
un estimado de 100mil muertes violentas; la guerra de Irak tuvo
114mil; México en el 2012 llegó a 101mil muertos.”1

Nuestras autoridades no están haciendo nada para contra-


rrestar este estado de violencia, dicen mostrarse preocupadas y
ocupadas en este tema, pero las cifras siguen aumentando. Parece
que estamos viviendo la peor crisis de violencia y lo peor, hacemos
como si no pasara nada.

Toda ésta situación me hace pensar que en mi país hay cuer-


pos que no valen, cuerpos que no son necesitados, cuerpos que es-
torban, cuerpos que nos quitan la comida; parece que la economía
no alcanza para ciertos cuerpos. Es muy duro saberlo, pero es una
realidad: en mi país, la vida no vale nada o vale muy poco sobre
todo para los que nacen en zonas de alta marginación.

Esta realidad que rebasa cualquier cosa que podamos imagi-


nar, me hace pensar que en México, las artes vivas o las artes del
cuerpo ya no pueden ser las mismas como las habíamos conocido

1 Dieguez, Ileana Cuerpos en duelo. Prólogo a cargo de Luz Emilia Aguilar Zinser.

361
hasta el momento. Frente a ésta realidad de extrema violencia de
cuerpos en México, los discursos, las estéticas, las narrativas y los
dispositivos necesitan transformarse radicalmente.

Un cuerpo en escena ya no puede decir lo mismo que hace


treinta o cincuenta años, ya no puede ser solamente un cuerpo
ficcional, ya no puede hacernos pasar bien una noche u ofrecernos
una bella imagen o una imagen conmovedora; ya no basta con
hacer una danza grácil o una actuación bien hecha.

Lo lamento pero el arte del cuerpo ya no puede ser el mismo,


simplemente porque en México, nos están matando.

Las artes vivas o las artes del cuerpo en México deberían


de reinventarse por completo. Deberíamos reventar los escenarios
con cientos o miles de cuerpos exigiendo la aparición de los cuer-
pos que nos hacen falta; o deberíamos vaciar todas las salas y tea-
tros del país como un acto de desaparición. Solo por indignación
o por tristeza o por amor a la vida.

En el 2012 comencé una investigación/obra llamada NOSO-


TROS ESTAMOS AQUÍ (NEA), una tetralogía sobre el cuerpo,
el arte y lo político. Desde un inicio lo pensé como una práctica
de investigación con producción coreográfica en diálogo con la
situación política, social y económica mexicana entre los periodos
2012-2018. Esta investigación surgió como respuesta al regreso
del partido mexicano PRI a la presidencia en el 2012 (uno de los
mayores genocidas de nuestro país), y de indagar cómo reacciona
el inconsciente colectivo a ésta situación. NEA es una producción
coreográfica de 4 obras entre éste periodo del 2012 al 2018 donde
cada dos años se realiza una entrega teniendo por títulos “2012”,
“2014”, “2016” y “2018” respectivamente bajo la pregunta: ¿Qué
estéticas, éticas y narrativas surgen al colocar en la discusión del
arte lo político de un cuerpo?

362
¿Cómo está nuestro cuerpo social? es la pregunta de la te-
tralogía a la que cada obra responde a modo de analogía entre
el cuerpo escénico/performático y el cuerpo social. La creadora
piensa cada entrega de la tetralogía a partir de una situación en
particular: 2012 es una imagen de transición social y política por
el regreso del PRI a la presidencia; 2014 es una imagen del hackeo
al sistema; 2016 es un dispositivo a modo de la pregunta ¿Qué
otra gobernabilidad podría organizarnos? y 2018 es una metarre-
presentación.

NEA es una puesta de cuerpo que hago sobre aquello que


nos despierta -consciente e inconsciente-, el vivir en uno de los
sexenios más violentos -después del 68-, producto del régimen pri-
ista, la política neoliberal y el narcotráfico.

Es en el 2014 que aparece la pregunta ¿cómo poner el cuerpo?


Si una obra es un cuerpo a cuerpo artista-espectador, por
eso su condición de “artes vivas”, por esa capacidad de colocarse
en esa fragilidad y subjetividad de “la experiencia tú a tú”, ¿Qué
sucedería si no aparece el cuerpo del artista en la obra? ¿Qué
podría sustituir la “experiencia tú a tú”? ¿Qué podría aparecer
en su lugar? ¿Qué sucede si quitamos el cuerpo ficcional en esa
“experiencia tú a tú”? ¿Qué cuerpo aparecería? ¿Cómo sería ese
cuerpo? ¿Cómo sería el encuentro? ¿Ese cuerpo instauraría otro
tipo de “experiencia tu a tu”?

Mi hipótesis es que el cuerpo que aparece en una obra debe


ser otro muy diferente al que conocemos. Necesita ser un cuerpo
que instaure otro tipo de encuentro con el espectador y entonces
nos ayudaría mucho pensar en formatos, estructuras o narrativas.

Pero también pienso que quizá este cuerpo debería no apare-


cer, rebelarse ante la obra, darle la espalda al sistema de represen-
tación, hackear la producción de narrativas, irrumpir la escena,
detener el espectáculo. Y pienso en la frase del filósofo catalán

363
Petit ¿y si dejáramos de ser ciudadanos?2

¿Y si dejamos de representar la representación dominante?


¿Y si dejamos de ser obedientes a la representación?

Definitivamente necesitamos poner el cuerpo de otra ma-


nera, bajo otra cosmovisión y otra práctica. Quizá así logremos
hacer justicia a todos estos miles de cuerpos desaparecidos.

(Texto escrito entre agosto 2016 a noviembre 2019 entre México,


Alemania, Rumania y Argentina)

L A GESTIÓN INTERNACIONAL DESDE L A FIGUR A DEL “ARTIS-


TA-GESTOR” O DEL “ARTISTA-ETCÉTER A”, CONCEPTO CREADO
(NOMBR ADO) POR EL TEÓRICO BR ASILEÑO RICARDO BASBAUM.
Olga Gutiérrez

Este es un fragmento de la ponencia presentada dentro del


marco del 1er. Coloquio Latinoamericano de Investigación y
prácticas de la danza dentro del marco del Encuentro Nacional
de Danza, México 20163.

Desde hace cinco años circulo por festivales de Europa Occi-
dental y América Latina lo cual me ha permitido observar diferen-
tes fenómenos del mundo de la gestión internacional. Pero hay uno
en específico que me ha parecido por demás fascinante, se trata de
una figura y una práctica que es socializada entre las charlas de
café y pasillos pero que no ha llegado aún a nuestros espacios aca-

2 Petit, Santiago López ¿Y si dejáramos de ser ciudadanos? Manifiesto por la desocupa-


ción del orden.
3 El texto original está publicado en https://issuu.com/interdanza/docs/interdan-
za_n___35.

36 4
démicos. Es una figura/práctica que he investigado desde el 2012:
el “artista-gestor”.

En México y en Latinoamérica existen muy pocas iniciativas


que problematicen ésta figura/práctica. Mi intención al nombrarla
y problematizarla es poder colocarla en nuestro imaginario para
comprender qué gestión está empoderando, qué es lo que está pro-
vocando en el ámbito de la creación, la producción y la gestión
local, nacional e internacional y porqué resulta ser un modelo de
estudio y trabajo para países como España y Alemania.

El campo investigador es el ámbito de la danza contemporá-


nea y las artes vivas en los países de México, Uruguay, Argentina,
Colombia y España a través de las siguientes plataformas:

• México (República Mexicana) / Red Nacional de Danza


de la Coordinación Nacional de Danza del Instituto Na-
cional de Bellas Artes.
• Uruguay (Montevideo) / Festival Internacional de Danza
Contemporánea de Uruguay FIDCU.
• Colombia (Bogotá) / Plataforma de Artes Vivas: Pliegues
y Despliegues.
• Argentina (Buenos Aires) / Festival Internacional de
Danza Emergente Buenos Aires FIDEBA.
• España (Barcelona) / Plataforma de internacionalización
de Danza Catalana FID.

El primer aspecto que me parece importante destacar de ésta


investigación es el tipo de campo en el cuál estoy investigando: es-
tos festivales y plataformas son lo que llamo “espacios vivos”, es
decir, no son “festivales vitrina” dedicados únicamente a la exhi-
bición de obra, sino que más bien son espacios para el encuentro
de agentes, contextos y prácticas. Son festivales dirigidos, curados
y gestionados por “artistas-gestores” los cuales modifican su es-
tructura de programación en cada edición, a favor de adaptarla

365
al campo curatorial de cada edición, provocando espacios oxige-
nados, porosos y vivos que dialogan con sus contextos. Salvo el
caso de Barcelona donde el FID es una iniciativa de la institución
española Mercat de les Flors, pero es coordinado, curado y orga-
nizado por un grupo de artistas catalanes seleccionados a partir
de una convocatoria.

Estos “espacios vivos” son plataformas que provocan el cru-


ce de pensamiento y contexto entre creadores, gestores y produc-
tores que nos encontramos en el campo activo de la creación, la
investigación, la producción y la gestión de artes vivas.

Definiré el concepto “artes vivas”, pues aparecerá bastante


en mi texto. Tomaré una reflexión de Rolf Abderhalde: “(este con-
cepto) ha sido necesario para la construcción de nuevos procesos
de pensamiento-creación en el arte, desde el cuerpo y con él, indi-
sociablemente. Una construcción de enunciados por fuera de su
tradicional escisión, pensamiento y/o creación, práctica pensante
y/o práctica artística.” Es decir, son aquellas prácticas y produc-
ciones hibridas que podrían encajar lo mismo en el arte visual, el
sonoro, en el teatro o la danza. Este concepto fue desarrollado en
el contexto de la agrupación Mapa Teatro y la Maestría Interdis-
ciplinaria de Teatro y Artes Vivas (en convenio con la Universidad
Nacional de Colombia) en Bogotá y ha llegado a nuestro lenguaje
vía Colombia o vía España a través del investigador José Antonio
Sánchez, quien se apropió de este concepto en sus escritos.

-------

Para problematizar el campo de la gestión internacional de-


cido hacerlo desde la figura del “artista-gestor”. Para ello, entre-
visté a cinco “artista-gestores” mexicanos a quienes conozco de
hace 5 a 10 años y quienes se encuentran laborando en distintas
zonas de la República Mexicana. Con ellos he hablado del tema,
algunos coinciden con mi postura y otros disienten; desconozco

366
si ellos se autonombran “artista-gestor”, pero según mi investiga-
ción, ellos encajan en ésta figura/práctica.

A continuación la procedencia y el nombre de las plataformas


o espacios que gestionan actualmente estos “artistas-gestores”:

• ZONA SUR / Veracruz, Jalapa / Alonso Alarcón / agru-


pación Angulo Alterno – Festival Internacional Danza
Extrema - Encuentro de Performatividad y Género en
la Coreografía Contemporánea en México.
• ZONA CENTRO OCCIDENTE / Morelia, Michoacán
/ Abdiel Villaseñor y Laura Martínez / Proyecto Ser-
piente AC - Festival Internacional de Danza Red Ser-
piente - Foro escénico “El jardín”. 
• ZONA NORTE / Tijuana, Baja California / Miroslava
Wilson / En colaboración con Carlos A. Gonzalez rea-
liza los proyectos: Agrupación Artística Péndulo Cero
con las plataformas: Salas de Urgencia (sede Tijuana)
– Modelo alternativo de producción (colaboración con
Cía. de Teatro Seres Comunes) - Plataformas de copro-
ducción Nacional e Internacional – Residencias Oscila
– Enlace Binacional de Danza.
• REPUBLICA MEXICANA / Melissa Cisneros / Plata-
forma nómada de artes vivas La Mecedora (en conjun-
to con Martha Sponzilli).

Estos cinco “artistas-gestores” tienen varias similitudes:

1. Actualmente son creadores, es decir, no han dejado la


práctica e investigación artística ni la producción de
obra por comenzar labores de gestión y producción en
sus plataformas.
2. Son directores y gestores en sus propias plataformas.
3. La mayoría han tenido experiencia de formación y pro-
fesionalización fuera de México.

367
4. Todos realizan trabajo de gestión internacional para sus
proyectos y para su trabajo artístico.
5. Pertenecen al campo de la danza contemporánea pero
desde una perspectiva de “artes vivas”.
6. La mayoría son nacidos en el año 1980.

Esto me parece importante señalarlo pues considero que


ésta dinámica de compaginar labores es un claro ejemplo de cómo
el “artista-gestor” ésta instituyendo otro imaginario en la econo-
mía del arte: el hecho de que permanezca en la creación, inves-
tigación, producción y gestión provoca una contaminación entre
los ámbitos, apareciendo por consecuencia, otras soluciones a las
problemáticas, otras relaciones laborales así como otra conceptua-
lización de nuestro quehacer.

La primera pregunta que les hago a estos cinco “artistas-ges-


tores” es ¿Qué los motivo a realizar gestión en sus comunidades
para la creación de su espacio/plataforma?

MELISSA CISNEROS: “Lo que nos impulsó a generar esta


plataforma nómada (La Mecedora) fue por un lado, el darnos
cuenta de la necesidad de crear, además de la obra artística, el
contexto donde se inserta esta pues percibíamos que el hacer la
pieza significaba también generar otros mecanismos de lectura,
de contacto con el público, formas para desmitificar el hecho es-
cénico y descontracturar un poco la escena de la danza en ese mo-
mento. Procurando una comunicación más directa en un espacio
más transdisciplinar.”

ALONSO ALARCÓN: “El impulso para generar Dan-


zaExtrema fue crear diversas plataformas para la danza contem-
poránea profesional en Xalapa, Veracruz una ciudad donde en
2004 los únicos espacios existentes eran proyectos universitarios
y escolares y donde no existía un espacio para la creación y ex-
hibición de danza contemporánea a nivel profesional. Por lo que

368
tome el liderazgo de generar un espacio que el gobierno no estaba
cubriendo para los profesionales de la danza.”

MIROSLAVA WILSON: “La gestión es una actividad inhe-


rente a dirigir una organización artística. Como organismo, una en-
tidad agrupada, se nutre, se alimenta, se educa y se estimula; en este
sentido la gestión es sana y necesaria, para desarrollarse. Mi impul-
so nace de la necesidad de abrir espacios de intercambio, de nutrir
lo que hacemos como agrupación, de compartir y expandir el nú-
cleo, de permear hacia dentro y hacia afuera de nuestro que hacer.”

ABDIEL VILLASEÑOR y LAURA MARTÍNEZ: “Nuestro


impulso viene a partir de la necesidad de crear plataformas para
la presentación de obra artística de danza desde una mirada in-
dependiente con serio interés en  mostrar trabajo dancístico na-
cional y extranjero que contribuya en la formación de públicos
para la danza en Michoacán. Antes del Festival Red Serpiente, la
danza local estaba sujeta únicamente a la oferta de programación
oficial (institucional).”

La segunda pregunta que responden: Desde tu práctica de


gestión, ¿qué consideras que genera un “artista-gestor?

MELISSA CISNEROS: “Me parece que la gestión realizada


desde los creadores cumple una doble función, por un lado genera
obra artística y por el otro crea el contexto sobre el cual se ma-
nifiesta, es decir, podemos decidir y crear los escenarios sobre los
cuales deseamos manifestar el trabajo y no solamente responder
a circunstancias predeterminadas. decidimos nuestro contenido y
creamos su infraestructura. Es más trabajo pero es también más
gratificante pues aquí se pueden pensar y plasmar otras econo-
mías del hacer creativo.”

ALONSO ALARCÓN: “La gestión realizada por creado-


res genera mucho más que buenas intenciones políticas o planes

369
de cultura de trienio que al cambio de gobierno se pierden. Ge-
neramos continuidad, generamos permanencia, generamos pen-
samiento; trascender a través de plataformas responde a nues-
tro pulso creativo como artistas y no al revés. Generalmente las
instituciones y sus burócratas piensan primero las plataformas
y los festivales y después a ver si encaja en la necesidad de la
comunidad. En DanzaExtrema partimos de la comunidad y sus
necesidades y a partir de ello cada año el festival rediseña sus pla-
taformas, así es la naturaleza del festival no es estático siempre
está en movimiento.”

MIROSLAVA WILSON: “Otra práctica importantísima


que observo es la de los “multiplicadores”, al reconocer al otro
que trabaja tanto desde lo artístico y también desde la gestión
es fácil tejer, construir, o invitar al otro a colaborar. Ese artista/
gestor comprende lo que “implica” llevar a cabo las ideas y dar-
les vida, alcance en el tiempo espacio. Una fuerte diferencia a un
gestor cultural, es la vinculación al seno artístico o creativo del
proyecto, el gestor cultural lo seguirá viendo como un bien cultu-
ral, un hecho artístico, lo cual me parece excelente, sin embargo
el artista/gestor, comprende el límite de variabilidad de tal hecho.
Veo una fuerte y necesaria mancuerna entre el gestor cultural y
el gestor-artista, creo que son alianzas que deben ser sumadas, el
gestor cultural definitivamente podrá siempre visualizar “afuera
de la caja”, otorgar perspectiva, colocar un proyecto, donde no te
lo esperarías y eso siempre puede aportar.”

ABDIEL VILLASEÑOR y LAURA MARTÍNEZ: “Más que


generar, creemos que la gestión desde los creadores permite estable-
cer prácticas de movilidad, producción y divulgación en relaciones
horizontales con otros artistas. El perfil sensible de los creadores
no se reduce a nuestros procesos creativos sino que nos acompaña
en procesos de procuración de fondos para terceros. Como creado-
res-gestores también somos sensibles a las necesidades primordia-
les de los beneficiarios de plataformas que gestionamos.”

370
Entonces ¿qué es un “artista-gestor”? y ¿qué tipo de trabajo
realiza?

• Es un gestor que trabaja a partir de la pulsión de crear


otros escenarios artísticos y laborales que impliquen la
profesionalización de una comunidad.
• Tiene una doble función: por un lado genera obra artís-
tica y por el otro crea el contexto sobre el cual se mani-
fiesta ésta, es decir, diseña, produce y gestiona escena-
rios que no responda a circunstancias predeterminadas
ni partidismos.
• Diseña otras economías del trabajo artístico.
• Diseña planes culturales que no dependen de cambios
de gobierno y que al contrario, generan continuidad y
permanencia.
• Diseña planes culturales que responden al pulso de una
comunidad, siempre en constante movimiento y que se
articulan con programas del sistema de gobierno ope-
rante en turno.
• Diseña planes culturales que promueven políticas públi-
cas relacionadas con la profesionalización de la comuni-
dad de danza contemporánea y artes vivas y la articula-
ción de lo local con lo nacional e internacional.
• Establece relaciones horizontales artista-institución en
prácticas de movilidad, producción y gestión.
• Su perfil sensible no se reduce al campo de la creación
sino también a la procuración de fondos y a las necesi-
dades primordiales del otro.
• Practican la gestión como una extensión de práctica ar-
tística en comunidad.
• Realizan trabajo etnográfico: estudiando el contexto, las
políticas culturales de la ciudad, las relaciones institu-
cionales y las pulsiones de comunidad.
• Producen un lugar de diálogo nacional e internacional
donde nutrir el imaginario de su comunidad.

37 1
• Se piensan en RED: son “multiplicadores” que tejen
prácticas artísticas, diferentes contextos y fondos pú-
blicos locales, nacionales e internacionales generando
una gestión integral.

Mi primera conclusión es que la práctica del “artista-ges-


tor” está empoderando en los últimos 15 años en México, un
imaginario de gestión internacional basado en el desarrollo de
contexto local creando otro tipo de relaciones afectivas, produc-
tivas y económicas. Esta práctica tiene un carácter micropolítico
que fisura el sistema macropolítico económico del arte de las
grandes empresas culturales y la falta de políticas públicas. Esta
práctica a su vez, provoca curiosidad en países de Europa Occi-
dental y se erige como módelo para la discusión de gestión local
e internacional en países como España y Alemania.

-------

Ahora llevaré ésta problemática al ámbito internacional.

SITUACIÓN 1
En mayo del 2014 participé en la IV edición del Festival
Internacional de Danza Contemporánea de Uruguay FIDCU
presentando una obra de mi autoría y al mismo tiempo partici-
pando en el Encuentro Internacional de Curadores de Danza
donde asistimos directores de festivales y plataformas de países
como México, Chile, Argentina, Uruguay, Venezuela, Brasil,
Colombia, España, Portugal y Suiza. Este Encuentro fue crucial
para el inicio de mi investigación, pues me permitió observar
cómo en otros contextos como Colombia, Chile, Uruguay, Bra-
sil y Argentina la figura del “artista-gestor” es una figura activa
de la misma manera que está siendo en México y que tienen las
mismas características que señalé del “artista-gestor” mexica-
no.

37 2
En el marco de ésta reunión en Montevideo, Eloísa Jarami-
llo -directora de la plataforma RED ARTES VIVAS de Bogotá-,
escribió un texto que aporta nuevas reflexiones de esta problemá-
tica en el ámbito iberoamericano, enunciando con ello la figura
del “artista etcétera”, término del teórico brasileño Ricardo Bas-
baum. A continuación su texto:

ENCUENTRO SOBRE CUR ADURIA EN EL FIDCU 2014


El Artista-etcétera, las plataformas
micropolíticas y las redes afectivas
Texto de Eloísa Jaramillo

En la versión del 2014 del Festival internacional de Danza


contemporánea del Uruguay (FIDCU), se hizo una reunión de
curadores de las Artes Escénicas de América Latina. Allí, varios
directores de plataformas diversas de México, Chile, Argentina,
Uruguay, Venezuela, Brasil, Colombia, España, Portugal y Sui-
za nos reunimos durante cinco días para reflexionar sobre nues-
tras prácticas. Tuvimos una conversación en la que se tocaron
muchos temas relacionados con el ejercicio curatorial alrededor
de las Artes Escénicas en América Latina y donde se hicieron
visibles muchas dinámicas, que muchos considerábamos aisla-
das, locales o que sólo sucedían en nuestros países. Al poner-
las en común en este encuentro, se hizo evidente que pese a las
particularidades de cada contexto, existen muchas dinámicas
y respuestas similares y que quizás ellas caracterizan nuestras
prácticas curatoriales como región. Voy a referirme aquí a tres
de ellas, que considero las más innovadoras y reveladoras de
nuestras realidades. La primera de ellas es la aparición de un
nuevo perfil profesional dentro de las Artes escénicas latinoa-
mericanas, lo que aquí voy a llamar el artista-etcétera; la se-
gunda, la dimensión micropolítica de nuestras plataformas, y la
tercera, la constatación de que nuestras redes profesionales son
fundamentalmente, afectivas.

37 3
Uno de los hallazgos más valiosos de este encuentro fue la
identificación de un perfil profesional, bastante frecuente en Amé-
rica Latina, que consiste en artistas que actúan sobre su contexto
propiciando festivales, clubes, temporadas, espacios de reflexión,
laboratorios de creación y pensamiento, entre otras muchas plata-
formas de carácter micropolítico. Este perfil profesional combina
la práctica artística con la docencia, la investigación, la produc-
ción, la gestión y la curaduría, y pasa por una y otra sin encontrar
incompatibilidades ni buscar el camino hacia la especialización.
Como diría el teórico brasileño Ricardo Basbaum, un artista-et-
cétera. No es nueva la idea de que en América Latina los artistas
hacemos muchas cosas de forma simultánea. Lo que sí me resultó
sumamente innovador fue la postura clara de que esta posibilidad
es una característica y no una deficiencia o una situación por
mejorar. La idea de profesionales de las Artes Escénicas multifa-
céticos es, sin duda, un paradigma alternativo al de la especiali-
zación, tan común en Europa y Estados Unidos, donde el modelo
consiste en diferenciar roles y que cada cual se ocupe de lo suyo
para que la maquinaria del arte gire sin grietas ni quiebres. El
perfil del artista-etcétera, hace muchos años operante en América
Latina, ahora comienza a nombrarse como una opción válida y
a posicionarse como generadora de dinámicas particulares que
ocurren desde nuestras latitudes. Festivales curados por artistas,
plataformas que atienden las necesidades de grupos de artistas,
espacios de reflexión desde las prácticas o los territorios locales,
son tan sólo algunos ejemplos de lo que genera este nuevo perfil,
sobre el que mucho nos falta por reflexionar.
La segunda dinámica que capturó mi atención en este En-
cuentro, fue lo que llamo la dimensión micropolítica de nuestras
plataformas y que también responde a un paradigma propio de
América Latina, en el que frente a la desconfianza y descreimien-
to de nuestras instituciones macropolíticas, la verdadera trans-
formación social tiene lugar en el ámbito de lo comunitario, de lo
doméstico, de lo íntimo. Ante los macroeventos que tienen lugar
en varias ciudades de América Latina, como el Festival Santiago

374
a mil, los Festivales de Danza y Teatro de Buenos Aires, el Festival
Iberoamericano de Teatro de Bogotá, por mencionar sólo algu-
nos, los artistas-etcétera han ido reaccionando de manera simul-
tánea e incomunicada, con la creación de espacios alternativos,
que responden a otras lógicas de mercado e interacción. Estos
grandes eventos son vitrinas de grandes compañías pertenecien-
tes a un circuito internacional de las Artes Escénicas que llegan
a nuestras ciudades, hacen sus presentaciones a costos elevados
y se van sin dejar rastro en la dinámica local ni haber tenido im-
pacto alguno sobre la comunidad artística. Esto sin mencionar
que estos macroeventos utilizan un porcentaje altísimo de los es-
casos recursos que las administraciones públicas destinan para
las Artes Escénicas en nuestros países. Este es el modelo habitual
de internacionalización en nuestros contextos, que replican las
instituciones sin hacerle ningún cuestionamiento. De manera pa-
ralela a esta operación, abundan en América Latina plataformas
independientes, en forma de clubes, redes, festivales caseros, resi-
dencias, espacios de experimentación, estancias y demás, que los
artistas-etcétera, por el compromiso con sus contextos, han ido
procurándose para sí mismos y para sus comunidades inmediatas.
Esta constatación que pude hacer en el Encuentro sobre curadu-
ría del FIDCU, me hace pensar que la dimensión micropolítica
nos caracteriza como región. Que es un despropósito obviarla y
no tener en cuenta que nuestras dinámicas dependen de esta con-
dición de pequeña escala, inmediata, si se quiere íntima; que esta
es la manera en que se ha ido generando una movida cultural en
toda América Latina y que estamos en mora de comunicarnos,
de trabajar en red, en conjunto o en las colectividades que inven-
temos.
La tercera y última dinámica que quiero mencionar se re-
fiere a nuestras redes afectivas, que se han ido tejiendo a fuerza
de conocernos lentamente, de ir encontrando nuestras afinidades
y de ir aprendiendo a vivir con nuestras diferencias, como autén-
ticos otros. Esta condición hace que nuestra comunidad profe-
sional de artistas-etcétera y de plataformas independientes, como

375
región, responda tan bien a las dinámicas del encuentro personal
y tan mal a las dinámicas informativas o de negocios, como las
plataformas en la web que buscan mapeamientos o las ruedas de
negocios que buscan el intercambio de productos circulables. Estas
redes afectivas caracterizan nuestras plataformas, muchas de ellas
no formalizadas jurídicamente, pero sí continuadas a través del
tiempo en la construcción de relaciones personales y también de
vínculos afectivos con proyectos de otros que hacemos propios.
Todas estas son algunas de las reflexiones que me queda-
ron luego del nutricio encuentro sobre curaduría del FIDCU 2014.
Muchos deseos de continuar con esta reflexión colectiva, de inter-
conectarnos y de ir consolidando un pensamiento latinoamericano
fruto de las mutuas contaminaciones y antropofagias que cada vez
haga mas fuerte nuestro lugar de enunciación en el mundo.

SITUACIÓN 2
En junio del 2013 y bajo el Marco del Tercer Encuentro La-
tinoamericano de Gestores de Danza realizado en las ciudades de
Morelia y DF donde asistieron alrededor de 120 gestores de países
como España, Suiza, Uruguay, Colombia, Chile, Argentina, Perú,
San Salvador y México, estuvo presente Cristina Alonso, directo-
ra del Centro de Creación El Graner del Mercats de les Flors, de
Barcelona (España). A partir de ese momento, ella estuvo viajando
a nuestro país en diferentes momentos de ese año y del 2014. Ella
realizó un mapeo de agentes de la escena de artes vivas mexicanas
e invitó a España a un grupo de “artistas/gestores” a participar en
diferentes plataformas de pensamiento y festivales en los cuales se
nos invitaba a hablar constantemente sobre nuestra actividad como
“artista-gestor” en nuestra labor de gestión local, nacional e inter-
nacional. Constantemente en cada festival, plataforma o espacio de
pensamiento en el que fui invitada entre el 2013 y 2015, la Insti-
tución Mercats de les Flors me pedía que me presentara y hablara
de los espacios/plataformas/festivales que desde mi organización
diseño y gestiono, así como de la RED a la cual pertenezco. Cuan-

376
do realizaba la presentación y hablaba de mi labor, me presentaba
como “artista/gestor” y esto resultaba ser muy controversial para
la mayoría de los asistentes, pues veían con cierta desconfianza el
ser creadora y compaginar ésta labor con la gestión. En España la
práctica de la gestión desde el artista es sinónimo de precariedad la-
boral; más que verlo como una fortaleza, lo ven como una debilidad
para el artista, para la comunidad y la Institución.

Ante la crisis económica que España vive desde el 2012,


varias instituciones españolas como Mercats de les Flors intenta
colocar otros modelos de desarrollo económico en su comunidad
y escogió la figura/práctica del “artista-gestor” como un modelo
que puede activar otras economías locales, nacionales e interna-
cionales en España.

SITUACIÓN 3
En Marzo del 2015 el Goethe-Institut Mexiko a cargo de un
proyecto impulsado por su Coordinadora Cultural Ilona Goyene-
che convocó a un grupo de 25 “artistas-gestores” de diversos Es-
tados de la República Mexicana como Oaxaca, Mérida, Veracruz,
San Luis Potosí, DF, Tijuana, Jalisco, Michoacán y Hermosillo,
en un encuentro titulado THINK TANK donde se intentaba crear
un primer acercamiento con un grupo de directores alemanes de
las instituciones Centro Internacional de Danza y Arte del Mo-
vimiento Fabrik (Potsdam), Kampnagel Internationales Zentrum
für Schönere Künste (Hamburgo) y Centro de danza Tanzhaus
(Dusserldorf).

Fueron tres días donde por primera vez problematizamos el


concepto del “artista-gestor”, al mismo tiempo que realizamos un
mapeo de nuestra práctica en territorio mexicano lo que nos per-
mitió entender quiénes somos, qué estamos produciendo y cómo
operamos. Lo hicimos frente a una mirada extranjera: los tres di-
rectores de Alemania.

37 7
Como segundo momento, en junio de ese mismo año, un
grupo de 5 “artistas-gestores” de este primer grupo fuimos invi-
tados a un viaje de 10 días en las ciudades de Hamburgo, Berlín,
Dusseldorf, Essen, Colonia, Wuppertale y Frankfurt a conocer
otros centros de danza, artes vivas, teatros y artistas. Ese mismo
año se nos invitó a realizar articulación internacional México-Ale-
mania para la creación de una agenda de cooperación internacio-
nal entre México y Alemania a inaugurarse dentro del Marco del
Año Dual Alemania/México 2016-2017.

¿QUÉ NOS DICEN ESTAS SITUACIONES?

1. Instituciones de otros países consideran al “artista-gestor”


como importante articulador de contextos no por el tipo
de economía con el que cuentan, ni por la plataforma que
representan, sino más bien por la forma en cómo articulan
las actividades en comunidad, en red, son “multiplicadores”
que tejen prácticas artísticas, contextos diversos y fondos
públicos y privados locales, nacionales e internacionales ge-
nerando una gestión integral.
2. Instituciones de otros países consideran que la figura del “ar-
tista-gestor” es una importante potencia de articulación local;
es una figura de confianza que puede establecer un diálogo que
empodera no sólo una práctica artística o económica de coo-
peración internacional, sino que dialoga con una comunidad.
3. El tipo de relación que busca establecer este tipo de gestión
internacional es una gestión a largo plazo que implique el
conocimiento de los contextos a articularse; no se trata de
resolver una agenda de actividades sino, entender cómo es-
tos contextos podrían tejerse e incentivar relaciones produc-
tivas y económicas en diferentes momentos.
4. El interés internacional de algunas instituciones de Europa
Occidental, Canadá y América Latina está en empoderar

378
articulaciones con pares donde el interlocutor este más in-
teresado en encontrar dispositivos y prácticas de encuentro
que en llenar una agenda de actividades.
5. Esta lógica de gestión internacional responde al desgaste de
lo local por parte de los macroeventos de iniciativas interna-
cionales que usan el contexto local en vez de articularse con
él. Ante los macroeventos de las grandes compañías de cir-
cuitos internacionales que usan recursos de administraciones
públicas y que no dejan beneficio alguno a la comunidad de
artistas, los “artistas-gestores” reaccionan con la creación
de espacios alternativos, plataformas independientes; por el
compromiso con sus contextos, han ido procurando estos
espacios para sí mismos y para sus comunidades inmediatas.

Mi segunda y última conclusión es que estamos viviendo


un cambio crucial de paradigma económico dónde no sólo nos
preguntamos qué hacemos con lo poco que tenemos y cómo nos
relacionamos con las instituciones que constantemente adelgazan
sus responsabilidades. La figura del “artista-gestor” responde a
éste tiempo gestionando otros espacios productivos, económicos
y afectivos de largo aliento que no implican en el saqueo de lo
local para fines internacionales sino en el fortalecimiento de lo lo-
cal con articulación internacional. El “artista-gestor” coloca pues
otra práctica de relaciones con lo internacional.

379
OLGA GUTIÉRREZ é criadora, investigadora, per-
former e artista-gestor. A partir da pesquisa
e trabalho com o corpo, conecta linguagens
como dança, teatro, arte-ação, arte sonora e
práticas em torno do espaço público. Tem no
intercâmbio e na colaboração um esquema
contemporâneo de prática artística e social,
que gera novas reflexões na vida e na arte. Es-
tudou dança, teatro, performance e arte ur-
bana no México, Canadá, França e Polônia.
Apresentou suas obras em festivais no México,
França, Praga, Uruguai, Colômbia, Argentina,
Espanha e Brasil. Diretora artística da organi-
zação cênica Laboratório puntoD, com a qual
realiza a produção da obra, projetos de cola-
boração internacional, bem como o Encontro
Internacional de Arte Cênica Contemporânea
da EINCE (https://laboratoriopuntod.com/ein-
ce/) e a plataforma MURA em Fresno (https://
muraenelfresno.wordpress.com/). Atualmente,
faz parte do Sistema Nacional de Criadores de
Arte do Fundo Nacional da Cultura e das Ar-
tes do Fundo Nacional da Cultura e das Artes.
Este ano realiza seu segundo trabalho Monu-
mento da trilogia Como colocar o corpo? no
México e a Obra Esgotar Se no Equador com
coprodução de IBERESCENA. Criadora con-
vidada para realizar sua obra (RE) POSICI-
ÓN para a plataforma CHANGING PLACES
2020 MÉXICO, coproduzida pela Fundação
Siemens, Goethe Institute Mexiko e Ministério
da Cultura de Jalisco.

380
ISTO NÃO É UM TEXTO, É UM CORPO 1
Olga Gutiérrez

E u respondo a pergunta ‘Como colocar um corpo?’ a partir


de uma longa reflexão que faço de 2016 até hoje.

1.
Se há muito tempo vivemos uma vida desumanizada onde
coisificamos; como a presença do artista, ator ou dançarino afeta
o corpo a corpo com o espectador? Como é afetado o ato convivial
das artes do espetáculo? Que reflexões nós, artistxs, pesquisado-
res, pedagogos, produtores ou gestores produzimos para pensar
em uma arte do corpo crítico à coisificação?

Esse corpo coisificado é um corpo social, isto é, é um corpo


que é aprendido.
A palavra “aprender” vem do latim apprehendere, composto
pelo prefixo ad- (sentido), o prefixo prae- (antes) e o verbo hendere
(pegar, agarrar).
Em direção – Antes – Captura.
Aprendizagem e aprendiz. A primeira palavra conduz à
ação; a segunda é a pessoa que realiza o ato de aprender.
O aprendiz pega,segura, obtém, agarra, como a garra do gato
que pega furtivamente um rato ou o focinho do leão um cervo.

“Tudo o que fazemos é para aprender” – disse-me meu pro-


fessor de educação física no ensino médio: “somos a cultura que
nos viu nascer”. Essa frase fez com que conseguisse atingir o obje-
tivo de correr 20 km.

1 Nota das organizadoras: Este texto foi traduzido para o português por Diana Gilardenghi.

381
Este corpo nasce nesta cultura que reproduz a coisificação.
Este corpo é feito nessa cultura coisificada.
Então, a arte do corpo não deveria ser uma prática ativista
diante desta situação?

Para construir um ativismo genuíno, devemos primeiro res-


ponder à pergunta: como a arte reproduz esse corpo coisificado?
De que maneira? Como nos encarregamos da sua difusão? Como
a reproduzimos? Quais instituições a premiam? Como criamos
tantas técnicas, tecnologias, ferramentas e metodologias para sus-
tentar essa coisificação?

Acho que seríamos mais ativistas se, em vez de repetir várias


e várias vezes que, “a arte serve para criar consciência”, reconhe-
cêssemos e escrevêssemos sobre como coisificamos nosso próprio
corpo na vida cotidiana e como reproduzimos isso no palco. Isso
ajudaria a desmantelar alguns escritos e teorias que circulam por
aí falando sobre a emancipação, empoderamento e expansão que
o corpo supostamente está produzindo na arte.

Façamos um ato de auto-observação de como somos atra-


vessados por essa coisificação em que nascemos.

Acreditamos que, por “sermos artistas”, não somos isentos


da violência que produzimos coisificando e usando nossos corpos,
os corpos de nossos companheiros, os corpos dos espectadores, os
corpos dos outrxs.

Vamos falar sobre como os artistas lavamo-nos as mãos por


“ser artistas” e ficamos aliviados ao acreditar que cumprimos nos-
sa parcela ética.
Por isso as contas não dão certo.
Por isso sentimos que estamos em dívida.
por isso sentimos que não conseguimos.

382
por isso, não paramos de sentir que precisamos de justiça.
Por isso, não podemos dormir em paz.
Por isso nossos corpxs levantam-se ao primeiro clamor para
manifestar-se.
São estertores de um corpo que se recusa a ser coisificado
Vamos falar sobre isso e talvez muito em breve nossos netos
possam viver num mundo mais conectado.
Feliz dia da dança!

(Texto escrito entre fevereiro de 2019 e março de 2020 no México)

2.
Sou bailarina. Tenho 36 anos. Há dez anos, parei de trei-
nar técnicas tradicionais de dança clássica e contemporânea, que
apenas promovem habilidades físicas em ambientes muito limita-
dos. Fiz isso como um ato de protesto contra o sistema alienante
da dança contemporânea ocidentalizada. Não quero engordar as
listas de dançarinos hiper-treinados e disciplinados do regime de
uma dança que reproduz cânones de obediência, submissão , ce-
nas de violência feminina, ideologias de criadores misóginos ou
homofóbicos que abusam do poder em um grupo de pessoas e
instituições de arte que promovem violência ao corpo.

Suspeito das técnicas ocidentalizadas de treinamento corpo-


ral, porque elas acabam controlando o instinto e a percepção em
prol de um corpo adestrado.

Eu me pergunto qual é a semelhança entre um soldado trei-


nado para conseguir um movimento frio e um dançarino hiper
treinado para fazer um movimento preciso solicitado pelo core-
ógrafo? Que seus corpos estão a serviço de uma batalha à qual
muitas vezes se rendem ingenuamente, que colocam seus corpos
a serviço de um sistema de violência que eles não conhecem e que
lutam em uma batalha que não lhes pertence. Claro, a grande dife-

383
rença é que em uma delas existem centenas ou milhares de vítimas
mortas e na outra não, certo?

Acredito no movimento que meu corpo produz como um


ato de me nomear e nomear o mundo com minha própria voz.
Como forma de assumir a responsabilidade da minha existência,
do tempo em que vivo e da história que me cabe escrever. Como
forma de incitar outros cenários mais compreensíveis, afetivos e
porosos para a humanidade, mais inclusivos e respeitosos em rela-
ção às diferenças. Como uma estratégia do político, mover minha
raiva, minha indignação e insatisfação sobre os disciplinamentos
sociais. Acredito no movimento que produz conhecimento para
mim e para todas as comunidades que compõem essa grande co-
munidade. Acredito no corpo desde o instinto, a percepção e não
desde esse tipo de adestramento. Acredito no corpo animal que
somos mais do que no corpo cultural que aprendemos.

Esse meu corpo animal sabe se mover, conhece seu espaço


de movimento, sabe o que está se movendo e para onde está se
movendo. Esse corpo animal que rasteja, anda, fala, come, corre,
caga, abraça, beija, pega, dá à luz.

Esse meu corpo animal se move e produz um território, este


território é uma prática política. Esse meu corpo animal é uma
micropolítica que faz explodir este adestramento ocidentalizado
do corpo, este campo de batalha, este batalhão e esta luta.

(Texto iniciado em maio de 2016 no Brasil e terminado em abril


de 2017 em Berlim)

38 4
3.
Nós, mexicanos nascidos nos anos 80, tivemos que passar
por uma transição muito importante na violência corporal.

A partir de 1994, lembro-me de ouvir sobre o caso chamado


“as desaparecidas de Juarez”, mulheres de Ciudad Juárez com cer-
tos traços comuns, que foram desaparecidas e mais tarde encon-
tradas mortas em áreas abandonadas. Lembro-me de ler um livro
que falava sobre como o acordo do TLC (Acordo de Livre Comér-
cio da América Latina e Caribe) permitiu a entrada de indústrias
estrangeiras nas cidades limítrofes dos Estados Unidos, causando
uma escalada de violência contra mulheres e crianças: violações,
sequestros, tráfico de órgãos, desaparecimentos e valas comuns.

Desde 2006, os desaparecidos, os assassinados, os excluí-


dos, os torturados e as valas comuns aumentam todos os dias.
Luz Emilia Zinser diz que “a organização civil mexicana Evalúa
denunciou que nosso país teve uma intensidade de violência com-
parável a áreas que estiveram em conflito armado, por exemplo, os
Bálcãs nos anos 90 registraram uma estimativa de 100 mil mortes
violentas, a guerra do Iraque teve 114 mil; o México em 2012
atingiu 101 mil mortos.”2

Nossas autoridades não estão fazendo nada para combater


esse estado de violência, dizem estar preocupadas e ocupadas com
esse assunto, mas os números continuam a aumentar. Parece que
estamos enfrentando a pior crise de violência e, o pior, agimos
como se nada estivesse acontecendo.

Toda essa situação me faz pensar que no meu país existem


corpos que não valem nada, corpos que não são necessitados, cor-
pos que incomodam, corpos que tiram nossa comida; parece que

2 Dieguez, Ileana. Corpos em duelo. Prólogo de Luz Emilia Aguilar Zinser.

385
a economia não é suficiente para certos corpos. É muito difícil
sabê-lo, mas é uma realidade: no meu país, a vida não vale nada
ou vale muito pouco, especialmente para os nascidos em áreas de
alta marginalização.

Essa realidade que vai além de qualquer coisa que possa-


mos imaginar me faz pensar que, no México, as artes vivas ou
as artes do corpo não podem mais ser as mesmas que as conhe-
cíamos até agora. Diante dessa realidade de extrema violência de
corpos no México, os discursos, as estéticas, as narrativas e os
dispositivos precisam ser radicalmente transformados.

Um corpo em cena não pode mais dizer o mesmo que trin-


ta ou cinquenta anos atrás, não pode mais ser apenas um corpo
ficcional, não pode fazer-nos ter uma boa noite ou oferecer-nos
uma bela imagem ou uma imagem comovente; Já não basta fazer
uma dança graciosa ou uma apresentação bem-feita.

Desculpe, mas a arte do corpo não pode mais ser a mesma,


simplesmente porque no México eles estão nos matando.

As artes vivas ou as artes do corpo no México devem ser


completamente reinventadas. Devemos estourar os palcos com
centenas ou milhares de corpos exigindo o aparecimento dos
corpos que nos fazem falta; ou devemos esvaziar todas as salas
e teatros do país como um ato de desaparecimento. Somente por
indignação, por tristeza ou por amor à vida.

Em 2012, iniciei uma investigação/obra chamada NÓS


ESTAMOS AQUI (NEA), uma tetralogia sobre corpo, arte e
política. Desde o início, eu pensava nisso como uma prática de
pesquisa com produção coreográfica em diálogo com a situação
política, social e econômica do México entre os períodos 2012-
2018. Essa investigação surgiu em resposta ao retorno do partido
do PRI mexicano à presidência em 2012 (um dos maiores geno-

386
cidas de nosso país) e de indagar como o inconsciente coletivo
reage a essa situação. NEA é uma produção coreográfica de 4
obras entre este período de 2012 a 2018, onde a cada dois anos
é realizada uma entrega com os títulos “2012”, “2014”, “2016”
e “2018”, respectivamente, sob a pergunta: que estéticas, éticas
e narrativas surgem ao colocar o político de um corpo na discus-
são da arte?

Como está o nosso corpo social? É a questão da tetralogia


à qual cada obra responde por analogia entre o corpo cênico/per-
formático e o corpo social. A criadora pensa cada parcela da tetra-
logia a partir de uma situação particular: 2012 é uma imagem de
transição social e política devido ao retorno do PRI à presidência;
2014 é uma imagem de invasão ao sistema; 2016 é um dispositivo
a modo da pergunta: que outra governabilidade poderia nos orga-
nizar? e 2018 é uma meta-representação.

A NEA é uma apresentação corporal que faço sobre aquilo


que nos desperta - consciente e inconsciente - vivendo em um dos
sexênios mais violentos - depois dos 68 -, produto do regime PRI,
da política neoliberal e do narcotráfico.

É em 2014 que surge a pergunta: como por o corpo?


Se uma obra é um corpo a corpo artista-espectador, por esse
motivo sua condição de “artes vivas”, para que a capacidade de se
colocar nesta fragilidade e subjetividade da “experiência de você
para você”, o que aconteceria se o corpo do artista não aparece na
obra? O que poderia substituir a experiência “você a você”? O que
poderia aparecer em seu lugar? O que acontece se tiramos o corpo
ficcional dessa “experiência você a você”? Que corpo apareceria?
Como seria esse corpo? Como seria o encontro? Esse corpo esta-
beleceria outro tipo de “experiência de você para você”?

Minha hipótese é que o corpo que aparece em uma obra


deve ser outro muito diferente daquele que conhecemos. Precisa

387
ser um corpo que instaure outro tipo de encontro com o especta-
dor e, assim, nos ajudaria muito a pensar em formatos, estruturas
ou narrativas.

Mas também acho que talvez esse corpo não deva aparecer,
se rebelar perante a obra, dar as costas ao sistema de representa-
ção, hackear a produção de narrativas, irromper a cena, deter o
espetáculo. E penso na frase do filósofo catalão Petit, e se parásse-
mos de ser cidadãos?3

E se pararmos de representar a representação dominante?


E se pararmos de ser obedientes à representação?

Definitivamente, precisamos colocar o corpo de uma outra


maneira, sob outra cosmovisão e outra prática. Talvez assim pos-
samos fazer justiça a todos esses milhares de corpos desaparecidos.

(Texto escrito entre agosto 2016 a novembro 2019 entre México,


Alemanha, Romênia e Argentina)

3 Petit, Santiago López. E se parássemos de ser cidadãos? Manifesto pela desocupação da


ordem.

388
A GESTÃO INTERNACIONAL A PARTIR DA FIGUR A DO “ARTISTA-
-GESTOR” OU “ARTISTA-ETCETER A”, CONCEITO CRIADO
(NOMEADO) PELO TEÓRICO BR ASILEIRO RICARDO BASBAUM.
Olga Gutiérrez

Este é um fragmento da palestra apresentada no âmbito do


1º. Colóquio Latino-Americano de Pesquisa e Práticas de Dança
no âmbito do Encontro Nacional de Dança, México 20164 .
Há cinco anos, transito por festivais na Europa Ocidental e
na América Latina, o que me permitiu observar diferentes fenôme-
nos no mundo da gestão internacional. Mas há um em particular
que eu acho bastante fascinante: é uma figura e uma prática socia-
lizada entre os corredores e as conversas de café, mas que ainda
não alcançaram nossos espaços acadêmicos. É uma figura/prática
que tenho investigado desde 2012: o “artista-gestor”.

No México e na América Latina, existem muito poucas ini-


ciativas que problematizam essa figura/prática. Minha intenção
em nomeá-la e problematizá-la é ser capaz de colocá-la em nosso
imaginário para compreender que gestão está empoderando, o que
está causando no campo da criação, da produção e da gestão lo-
cal, nacional e internacional e por que ela se torna um modelo de
estudo e trabalho para países como Espanha e Alemanha.

O campo de pesquisa é o campo da dança contemporânea e


das artes vivas nos países do México, Uruguai, Argentina, Colôm-
bia e Espanha através das seguintes plataformas:

• México (República Mexicana) / Rede Nacional de Dan-


ça da Coordenação Nacional de Dança do Instituto Na-
cional de Belas Artes.

4 O texto original está publicado em https://issuu.com/interdanza/docs/interdan-


za_n___35.

389
• Uruguai (Montevidéu) / Festival Internacional de Dança
Contemporânea do Uruguai FIDCU.
• Colômbia (Bogotá) / Plataforma de Artes Vivas: dobras
e desdobramentos.
• Argentina (Buenos Aires) / Festival Internacional de
Dança Emergente de Buenos Aires FIDEBA.
• Espanha (Barcelona) / Plataforma de Internacionaliza-
ção da Dança Catalã do FID.

O primeiro aspecto que acho importante destacar dessa pes-


quisa é o tipo de campo em que estou pesquisando: esses festivais
e plataformas são o que chamo de “espaços vivos”, ou seja, não
são “festivais de vitrine” dedicados exclusivamente à exibição de
obras, mas são espaços para o encontro de agentes, contextos e
práticas. São festivais dirigidos, programados e geridos por “artis-
tas-gestores” que modificam sua estrutura de programação a cada
edição, a fim de adaptá-la ao campo curatorial de cada edição,
gerando espaços oxigenados, porosos e vivos que dialogam com
seus contextos. Exceto no caso de Barcelona, onde o FID é uma
iniciativa da instituição espanhola Mercat de les Flors, com coor-
denação, curadoria e organização de um grupo de artistas catalães
selecionados a partir de uma convocatória.

Esses “espaços vivos” são plataformas que provocam o


cruzamento de pensamento e contexto entre criadores, gestores e
produtores que nos encontramos no campo ativo da criação, da
pesquisa, da produção e da gestão de artes vivas.

Definirei o conceito “artes vivas”, pois ele aparecerá muito


no meu texto. Tomarei uma reflexão de Rolf Abderhalde: “(esse
conceito) foi necessário para a construção de novos processos de
pensamento-criação na arte, a partir do corpo e com ele, indis-
sociavelmente. Uma construção de enunciados fora de sua cisão
tradicional, pensamento e/ou criação, prática de pensamento e/
ou prática artística.” Ou seja, são aquelas práticas e produções

390
híbridas que podem se encaixar na arte visual, no sonoro, no te-
atro ou na dança. Esse conceito foi desenvolvido no contexto do
grupo Mapa Teatro e do Mestrado Interdisciplinar de Teatro e Ar-
tes vivas (em parceria com a Universidade Nacional da Colômbia)
em Bogotá e chegou a nossa linguagem via Colômbia ou Espanha
através do pesquisador José Antonio Sánchez, quem se apropriou
do conceito em seus escritos.

-------

Para problematizar o campo da gestão internacional, decido


fazê-lo a partir da figura do “artista-gestor”. Para isso, entrevistei
cinco “artistas-gestores” mexicanos que conheço há 5 a 10 anos e
que trabalham em diferentes zonas da República Mexicana. Com
eles, falei sobre o assunto, alguns concordam com minha posição
e outros discordam; desconheço se eles se auto-nomeiam “artis-
ta-gestor”, mas, de acordo com minha pesquisa, eles se encaixam
nessa figura / prática.

A seguir, a origem e o nome das plataformas ou espaços que


esses “artistas-gestores” gerem atualmente:

• ZONA SUL/Veracruz, Jalapa/Alonso Alarcón/grupo An-


gulo Alterno - Festival Internacional de Dança Extreme -
Encontro de Performatividade e Gênero em Coreografia
Contemporânea no México.
• ÁREA CENTRO OCCIDENTE/Morelia, Michoacán/
Abdiel Villaseñor e Laura Martínez/Projeto AC Serpent -
Festival Internacional de Dança da Serpente Vermelha - Fó-
rum Cênico “O Jardim”.
• ZONA NORTE/Tijuana, Baja California/Miroslava Wil-
son/Em colaboração com Carlos A. Gonzalez, realiza os
projetos: Agrupamento artístico do pêndulo com as plata-
formas: Salas de emergência (sede de Tijuana) - Modelo de
produção alternativo (colaboração com a Companhia de

391
Teatro Seres Comuns) - Plataformas nacionais e internacio-
nais de coprodução - Residências Oscila - Link Binacional
de Dança.
• REPÚBLICA MEXICANA/Melissa Cisneros/Plataforma
nômade La Mecedora para artes vivas (junto com Martha
Sponzilli).

Esses cinco “artistas-gestores” têm várias semelhanças:


1. Atualmente, são criadores, ou seja, não deixaram a práti-
ca e a pesquisa artística nem a produção de obra para iniciar
tarefas de gestão e produção em suas plataformas.
2. São diretores e gestores em suas próprias plataformas.
3. A maioria possui experiência de formação e profissionali-
zação fora do México.
4. Todos realizam trabalhos de gestão internacional para
seus projetos e para seu trabalho artístico.
5. Pertencem ao campo da dança contemporânea, mas da
perspectiva das “artes vivas”.
6. A maioria nasceu em 1980.

É importante para mim salientar isso, porque considero que


essa dinâmica de conciliar tarefas é um exemplo claro de como o
“artista-gestor” está instituindo outro imaginário na economia da
arte: o fato de permanecer na criação, pesquisa, produção e gestão
provoca uma contaminação entre as áreas, aparecendo como con-
seqüência, outras soluções para as problemáticas, outras relações
laborais, assim como outra conceituação do nosso fazer.

A primeira pergunta que faço a esses cinco “artistas-geren-


tes” é: “O que os motivou a gerenciar em suas comunidades para
criar seu espaço/plataforma?”

MELISSA CISNEROS: “O que nos impulsionou a gerar


essa plataforma nômade (La Mecedora) foi, por um lado, perce-
ber a necessidade de criar, além da obra artística, o contexto em

392
que está inserida, pois percebemos que o encenar a peça também
significava gerar outros mecanismos de leitura, de contato com o
público, formas de desmistificar o evento cênico e diminuir um
pouco a cena da dança naquele momento. Buscando comunicação
mais direta em um espaço mais transdisciplinar.”

ALONSO ALARCÓN: “O impulso de gerar o DanzaEx-


trema foi criar várias plataformas para a dança contemporânea
profissional em Xalapa, Veracruz, cidade onde em 2004 os únicos
espaços existentes eram projetos de universidades e escolas e onde
não havia espaço para a criação e exibição de dança contemporâ-
nea em nível profissional. Então, assumi a liderança para a criação
de um espaço que o governo não estava cobrindo para profissio-
nais de dança.”

MIROSLAVA WILSON: “A gestão é uma atividade inerente


à direção de uma organização artística. Como organismo, uma
entidade agrupada é nutrida, alimentada, educada e estimulada;
Nesse sentido, a gestão é saudável e necessária para se desenvolver.
Meu impulso decorre da necessidade de abrir espaços de troca, de
nutrir o que fazemos como grupo, de compartilhar e expandir o
núcleo, de permear dentro e fora do nosso fazer.”

ABDIEL VILLASEÑOR e LAURA MARTÍNEZ: “Nosso


impulso vem da necessidade de criar plataformas para a apresenta-
ção de obra artística de dança desde uma perspectiva independen-
te, com sério interesse em mostrar trabalhos de dança nacionais
e estrangeiros que contribuam para a formação de públicos para
a dança em Michoacán. Antes do Festival da Serpente Vermelha
Red Serpiente, a dança local estava sujeita apenas à oferta oficial
(institucional) de programação.”

A segunda pergunta que eles respondem: “Da sua prática de


gestão, o que você considera que gera um ‘artista-gestor’?”

393
MELISSA CISNEROS: “Parece-me que a gestão realizada
pelos criadores cumpre uma dupla função, por um lado gera obra
artística e, por outro, cria o contexto em que se manifesta, ou seja,
podemos decidir e criar os cenários em que desejamos manifestar
o trabalho, e não apenas responder a circunstâncias predetermi-
nadas. Decidimos nosso conteúdo e criamos sua infraestrutura. É
mais trabalho, mas também é mais gratificante, porque aqui você
pode pensar e plasmar outras economias do fazer criativo.”

ALONSO ALARCÓN: “A gestão realizada pelos criado-


res gera muito mais do que boas intenções políticas ou planos de
cultura do triênio perdidos pela mudança de governo. Geramos
continuidade, geramos permanência, geramos pensamento. Trans-
cender através de plataformas responde ao nosso pulso criativo
como artistas e não o contrário. Geralmente, as instituições e seus
burocratas pensam primeiro em plataformas e festivais e depois
veem se isso se encaixa na necessidade da comunidade. No Dan-
zaExtrema, partimos da comunidade e suas necessidades, assim, a
cada ano o festival redesenha suas plataformas, essa é a natureza
do festival, não estática, sempre está em movimento.”

MIROSLAVA WILSON: “Outra prática muito importante


que observo é a dos ‘multiplicadores’, ao reconhecer o outro que
trabalha tanto no artístico quanto na gestão, é fácil tecer, cons-
truir ou convidar o outro a colaborar. Esse artista/gestor entende
o que “implica” realizar idéias e dar-lhes vida, alcance no espaço-
-tempo. Uma forte diferença para um gestor cultural é o vínculo
com o seio artístico ou criativo do projeto, o gestor cultural conti-
nuará a vê-lo como um bem cultural, um fato artístico, o que me
parece excelente, porém o artista/gestor entende o limite da va-
riabilidade de tal fato. Eu vejo uma união forte e necessária entre
o gestor-cultural e o gestor-artista, acredito que são alianças que
devem ser somadas, o gestor cultural definitivamente sempre será
capaz de visualizar “fora da caixa”, dar perspectiva, colocar um
projeto onde você não imaginaria, e isso sempre pode contribuir.”

394
ABDIEL VILLASEÑOR e LAURA MARTÍNEZ: “Mais
do que gerar, acreditamos que a gestão que advém dos criadores
permite estabelecer práticas de mobilidade, produção e divulgação
nas relações horizontais com outros artistas. O perfil sensível dos
criadores não se limita aos nossos processos criativos, mas nos
acompanha nos processos de captação de recursos para terceiros.
Como criadores-gestores, também somos sensíveis às principais
necessidades dos beneficiários das plataformas que gerenciamos”.

Então, o que é um “artista-gestor”? E que tipo de trabalho


realiza?
• Ele é um gestor que trabalha a partir da pulsão para criar
outros cenários artísticos e laborais que impliquem a profis-
sionalização de uma comunidade.
• Tem uma dupla função: por um lado, gera obra artística
e, por outro, cria o contexto em que se manifesta, ou seja,
projeta, produz e gera cenários que não respondem a cir-
cunstâncias ou partidarismos predeterminados.
• Projeta outras economias do trabalho artístico.
• Elabora planos culturais que não dependam de mudanças
de governo e que, pelo contrário, geram continuidade e per-
manência.
• Cria planos culturais que respondam ao tempo de uma co-
munidade, sempre em movimento constante e que são arti-
culados com programas do sistema operacional do governo
atual.
• Elabora planos culturais que promovam políticas públicas
relacionadas à profissionalização da comunidade da dança
contemporânea e artes vivas e à articulação do local com o
nacional e o internacional.
• Estabelece relações horizontais artista-instituição nas prá-
ticas de mobilidade, produção e gestão.
• Seu perfil sensível não se limita ao campo da criação, mas
também à captação de recursos e às principais necessidades
do outro.

395
• Praticam a gestão como uma extensão da prática artística
em comunidade.
• Realizam trabalhos etnográficos: estudando o contexto, as
políticas culturais da cidade, as relações institucionais e as
pulsões da comunidade.
• Produzem um lugar de diálogo nacional e internacional
para nutrir o imaginário de sua comunidade.
• Eles se pensam em
​​ RED: são “multiplicadores” que tecem
práticas artísticas, diferentes contextos e fundos públicos
locais, nacionais e internacionais, gerando uma gestão in-
tegral.

Minha primeira conclusão é que a prática do “artista-ges-


tor” tem empoderado nos últimos 15 anos no México, um ima-
ginário da gestão internacional baseado no desenvolvimento do
contexto local, criando outro tipo de relações afetivas, produtivas
e econômicas. Essa prática tem um caráter micropolítico que ra-
cha o sistema macropolítico econômico da arte das grandes em-
presas culturais e a falta de políticas públicas. Essa prática, por
sua vez, provoca curiosidade nos países da Europa Ocidental e se
alça como modelo para a discussão da gestão local e internacional
em países como Espanha e Alemanha.

-------

Agora vou levar esse problema para o nível internacional.

SITUAÇÃO 1
Em maio de 2014, participei da IV edição do Festival In-
ternacional de Dança Contemporânea de Uruguai FIDCU, apre-
sentando uma obra de minha autoria e ao mesmo tempo partici-
pando do Encontro Internacional de Curadores de Dança, onde
participamos diretores de festivais e plataformas de países como
México, Chile , Argentina, Uruguai, Venezuela, Brasil, Colômbia,
Espanha, Portugal e Suíça. Esse encontro foi crucial para o início

396
de minha pesquisa, pois me permitiu observar como em outros
contextos como Colômbia, Chile, Uruguai, Brasil e Argentina a
figura do “artista-gestor” é uma figura ativa da mesma forma que
está sendo no México e que eles têm as mesmas características que
apontei para o “artista-gerente” mexicano.

No âmbito dessa reunião em Montevidéu, Eloísa Jaramillo,


diretora da plataforma RED ARTES VIVAS em Bogotá, escreveu
um texto que traz novas reflexões dessa problemática na esfera
ibero-americana, enunciando assim a figura do “artista etc.” ter-
mo do teórico brasileiro Ricardo Basbaum. Aqui está o texto:

ENCONTRO SOBRE CUR ADORIA NO FIDCU 2014


O Artista-etcetera, as plataformas
micropolíticas e as redes afetivas
Texto de Eloísa Jaramillo

Na versão de 2014 do Festival Internacional de Dança


Contemporânea do Uruguai (FIDCU), foi realizada uma reunião
de curadores das Artes Cênicas da América Latina. Lá, vários
diretores de diversas plataformas do México, Chile, Argentina,
Uruguai, Venezuela, Brasil, Colômbia, Espanha, Portugal e Suí-
ça se reuniram por cinco dias para refletir sobre nossas práticas.
Tivemos uma conversa na qual muitos tópicos relacionados ao
exercício curatorial foram discutidos em torno das artes cênicas
na América Latina e onde muitas dinâmicas - que muitos consi-
derávamos isoladas, locais ou que só aconteciam em nossos paí-
ses - se tornaram visíveis. Nesse encontro, ficou claro que, apesar
das particularidades de cada contexto, existem muitas dinâmicas
e respostas semelhantes e que talvez elas caracterizem nossas prá-
ticas curatoriais como região. Vou me referir aqui a três delas,
que considero as mais inovadoras e reveladoras de nossas realida-
des. A primeira é o surgimento de um novo perfil profissional nas
artes cênicas latino-americanas, o que aqui chamarei de artista-e-

397
tcetera; a segunda, a dimensão micropolítica de nossas platafor-
mas; e a terceira, a constatação de que nossas redes profissionais
são fundamentalmente afetivas.

Uma das descobertas mais valiosas desse encontro foi a


identificação de um perfil profissional, bastante frequente na
América Latina, composto por artistas que atuam em seu con-
texto, promovendo festivais, clubes, temporadas, espaços de re-
flexão, laboratórios de criação e pensamento, entre muitas ou-
tras plataformas de caráter micropolítico. Esse perfil profissional
combina prática artística com ensino, pesquisa, produção, gestão
e curadoria e passa por uma e outra sem encontrar incompatibi-
lidades ou buscar o caminho da especialização. Como o teórico
brasileiro Ricardo Basbaum diria, um artista-etcetera. A ideia de
que os artistas da América Latina fazem muitas coisas simulta-
neamente não é nova. O que achei extremamente inovador foi
a clara posição de que essa possibilidade é uma característica e
não uma deficiência ou uma situação a ser melhorada. A ideia
de profissionais multifacetados das artes cênicas é, sem dúvida,
um paradigma alternativo ao da especialização, tão comum na
Europa e nos Estados Unidos, onde o modelo consiste em pa-
péis diferenciados e onde cada um se ocupa do próprio, para que
a maquinaria da arte gire sem rachaduras ou quebras. O perfil
do artista-etcetera, operante há muitos anos na América Latina,
passa a se denominar como uma opção válida e a se posicionar
como gerador de dinâmicas particulares que ocorrem em nossas
latitudes. Festivais curados por artistas, plataformas que aten-
dem às necessidades de grupos de artistas, espaços de reflexão
das práticas e dos territórios locais, são apenas alguns exemplos
do que é gerado por esse novo perfil, sobre o quanto ainda preci-
samos refletir.
A segunda dinâmica que capturou minha atenção nesse
Encontro foi o que chamo de dimensão micropolítica de nossas
plataformas e que também responde a um paradigma próprio da
América Latina, no qual, diante da desconfiança e descrença em

398
nossas instituições macropolíticas, a verdadeira transformação
social ocorre no âmbito comunitário, no doméstico, no íntimo.
Diante os macroeventos que ocorrem em várias cidades da Amé-
rica Latina, como o Festival de Santiago, os Festivais de Dança
e Teatro de Buenos Aires, o Festival Ibero-Americano de Teatro
de Bogotá, para citar apenas alguns, os artistas-etcetera foram
reagindo de forma simultânea e incomunicável, com a criação de
espaços alternativos, que respondem a outras lógicas de mercado
e interação. Esses grandes eventos são vitrines de grandes empre-
sas pertencentes a um circuito internacional das artes cênicas que
chegam às nossas cidades, fazem suas apresentações com altos
custos e saem sem deixar vestígios na dinâmica local sem causar
impacto algum na comunidade artística. Sem mencionar que es-
ses macroeventos usam uma porcentagem muito alta dos escassos
recursos que as administrações públicas destinam para as Artes
Cênicas em nossos países. Esse é o modelo usual de internacio-
nalização em nossos contextos, que as instituições replicam sem
questionar. Paralelamente a essa operação, abundam plataformas
independentes na América Latina, em forma de clubes, redes, fes-
tivais, residências, espaços de experimentação, salas e outros, que
os artistas-etcetera, devido ao compromisso com o seu contexto,
têm buscado para si e para as comunidades imediatas. Esta cons-
tatação que pude fazer no Encontro sobre curadoria da FIDCU
me faz pensar que a dimensão micropolítica nos caracteriza como
região. Que é um despropósito ignorá-la e não levar em conta
que nossas dinâmicas dependem desta condição de pequena es-
cala, imediata, pode-se dizer íntima; que é dessa maneira que um
movimento cultural foi gerado em toda a América Latina e que
estamos demorando ​​para nos comunicarmos, trabalhar em rede,
em conjunto ou nas coletividades que inventamos.
A terceira e última dinâmica que quero mencionar refere-
-se às nossas redes afetivas, tecidas pela força de nos conhecer-
mos lentamente, de encontrar nossas afinidades e de aprender
a conviver com nossas diferenças, como autênticos outros. Essa
condição faz com que nossa comunidade profissional de artis-

399
tas-etcetera e das plataformas independentes, como região, res-
ponda tão bem às dinâmicas do encontro pessoal e tão mal às
dinâmicas informativas ou dos negócios, como as plataformas
da web que buscam mapear ou rodadas de negócios que buscam
a troca de produtos circuláveis. Essas redes afetivas caracterizam
nossas plataformas, muitas delas não formalizadas legalmente,
mas continuaram ao longo do tempo na construção de relações
pessoais e também de vínculos afetivos com projetos de outros
que fazemos próprios.
Todas essas são algumas das reflexões que ficaram em mim
após o consistente encontro sobre curadoria do FIDCU 2014.
Muitos desejos de continuar com esta reflexão coletiva, de inter-
conectarmos e consolidarmos um pensamento latino-americano
fruto das mútuas contaminações e antropofagias que faça cada
vez mais forte nosso lugar de enunciação no mundo.

SITUAÇÃO 2
Em junho de 2013, e no âmbito do Terceiro Encontro La-
tino-Americano de Gestores de Dança, realizado nas cidades de
Morelia e DF, onde compareceram cerca de 120 gestores de paí-
ses como Espanha, Suíça, Uruguai, Colômbia, Chile, Argentina,
Peru, San Salvador e México, esteve presente Cristina Alonso,
diretora do Centro de Criação El Graner do Mercats de les Flors,
de Barcelona (Espanha). A partir desse momento, ela viajou para
o nosso país em diferentes momentos daquele ano e de 2014. Fez
um mapeamento de agentes da cena mexicana de artes vivas e
convidou um grupo de “artistas/gestores” para a Espanha para
participar em diferentes plataformas de pensamento e festivais
em que fomos convidados a conversar constantemente sobre nos-
sa atividade como “artista-gestor” em nossa função de gestão lo-
cal, nacional e internacional. Constantemente, em cada festival,
plataforma ou espaço de pensamento para o qual fui convidada
entre 2013 e 2015, a Instituição Mercats de les Flors pediu para
me apresentar e conversar sobre os espaços/plataformas/festivais

400
que organizo, projeto e gestiono, assim como a REDE à qual
pertenço. Quando fiz a apresentação e falei sobre o meu traba-
lho, apresentei-me como “artista/gestor” e isso se mostrou muito
controverso para a maioria dos participantes, pois eles viam com
certa desconfiança o ser criadora e conciliar esse trabalho com
a gestão. Na Espanha, a prática de gestão do artista é sinônimo
de precariedade laboral; ao invés de vê-lo como fortaleza, eles
vêem isso como uma fraqueza para o artista, para a comunidade
e para a instituição.

Diante da crise econômica que a Espanha vive desde 2012,


várias instituições espanholas, como Mercats de les Flors, tentam
colocar outros modelos de desenvolvimento econômico em sua co-
munidade e escolheram a figura/prática do “artista-gestor” como
um modelo que pode ativar outras economias locais, nacionais e
internacionais na Espanha.

SITUAÇÃO 3
Em março de 2015, o Goethe-Institut Mexiko, encarrega-
do de um projeto promovido por sua coordenadora cultural Ilo-
na Goyeneche, convocou um grupo de 25 “artistas-gestores” de
vários Estados da República Mexicana, como Oaxaca, Mérida,
Veracruz, San Luis Potosí, DF, Tijuana, Jalisco, Michoacán e Her-
mosillo, em um encontro intitulado THINK TANK, onde foi feita
uma tentativa de criar uma primeira abordagem com um grupo de
diretores alemães das instituições Centro Internacional de Dança
e Arte do Movimento Fabrik (Potsdam), Kampnagel Internationa-
les Zentrum für Schönere Künste (Hamburgo) e Tanzhaus Dance
Center (Düsseldorf).

Foram três dias em que, pela primeira vez, problematizamos


o conceito de “artista-gestor”, ao mesmo tempo que realizamos
um mapeamento de nossa prática no território mexicano, o que
nos permitiu entender quem somos, o que estamos produzindo e

401
como operamos. Fizemos isso diante de um olhar estrangeiro: os
três diretores da Alemanha.

Em um segundo momento, em junho do mesmo ano, um


grupo de 5 “artistas-gestores” deste primeiro grupo foi convidado
para uma viagem de 10 dias nas cidades de Hamburgo, Berlim,
Düsseldorf, Essen, Colônia, Wuppertal e Frankfurt para conhe-
cer outros centros de dança, artes vivas, teatros e artistas. Nesse
mesmo ano, fomos convidados a realizar uma articulação interna-
cional México-Alemanha para criar uma agenda de cooperação
internacional entre o México e a Alemanha a ser inaugurada no
âmbito do Ano Dual Alemanha/México 2016-2017.

O que essas situações nos dizem?

1. Instituições de outros países consideram o “artista-gestor”


como um importante articulador de contextos, não pelo
tipo de economia que possuem, nem pela plataforma que
representam, mas pela maneira como articulam as ativida-
des em comunidade, em rede, são “multiplicadores” que te-
cem práticas artísticas, contextos diversos e fundos públicos
e privados locais, nacionais e internacionais, gerando uma
gestão integral.
2. Instituições de outros países consideram que a figura do
“artista-gestor” é uma importante potência de articulação
local; ele é uma figura confiável que pode estabelecer um
diálogo que empodera não apenas uma prática artística ou
econômica de cooperação internacional, mas também de di-
álogo com uma comunidade.
3. O tipo de relação que esse tipo de gestão internacional busca
estabelecer é uma gestão de longo prazo, que envolve o co-
nhecimento dos contextos a serem articulados; Não se trata
de resolver uma agenda de atividades, mas entender como
esses contextos podem ser tecidos e incentivar relações pro-
dutivas e econômicas em momentos diferentes.

402
4. O interesse internacional de algumas instituições na Euro-
pa Ocidental, Canadá e América Latina está no empoderar
articulações com colegas em que o interlocutor esteja mais
interessado em encontrar dispositivos e práticas de encontro
do que em preencher uma agenda de atividades.
5. Esta lógica de gestão internacional responde ao desgaste do
local pelos macroeventos de iniciativas internacionais que
usam o contexto local em vez de se articularem com ele.
Diante dos macroeventos das grandes companhias de circui-
tos internacionais que utilizam recursos de administrações
públicas e que não deixam benefício algum à comunidade
artística, os “artistas-gestores” reagem com a criação de
espaços alternativos, plataformas independentes; devido ao
compromisso com seus contextos, eles têm procurado esses
espaços para si e para suas comunidades imediatas.

Minha segunda e última conclusão é que estamos passando


por uma mudança crucial no paradigma econômico, onde não
estamos apenas nos perguntando o que fazemos com o pouco que
temos e como nos relacionamos com as instituições que constan-
temente minimizam suas responsabilidades. A figura do “artista-
-gestor” responde a esse tempo gerenciando outros espaços pro-
dutivos, econômicos e afetivos de longo prazo que não implicam
no saqueio do local para finalidades internacionais, mas no forta-
lecimento do local com articulação internacional. O “artista-ges-
tor” coloca assim outra prática de relações com o internacional.

403
MARTA CESAR é diretora e curadora das dez
edições realizadas do Festival Múltipla Dança
(2006-2017). Graduada em Direito pela Facul-
dade de Direito da USP (Largo São Francisco)
em 1985, seguiu a carreira artística que já de-
senvolvia como bailarina no Balé da Cidade
de São Paulo. Especialista em Dança Cênica
(Udesc), atuou em diversas funções na área cul-
tural, especialmente na área da dança e da mú-
sica na esfera nacional e internacional. Durante
20 anos no estado de Santa Catarina, desenvol-
veu funções na área da produção cultural, ati-
vidades pedagógicas, acadêmicas e artísticas,
atuando, inclusive, na área política. Mudou-se
para São Paulo, sua terra natal, no ano de 2017
e, desde então, atua como autônoma na forma-
tação e produção de projetos na área cultural e
social e como parecerista em projetos culturais
municipais, estaduais e nacionais.

404
CARTA DE AMOR A FLORIANÓPOLIS
Marta Cesar

E
nvio esta carta neste momento em que a pandemia de
Covid-19 nos lança na reflexão de nossos legados e desejos
futuros para a humanidade. Faço aqui uma sincera declara-
ção de amor a um período pleno de beleza e gratidão, um ciclo de
quase duas décadas a partir de minha chegada em Florianópolis
no início do século XXI. Naquele período, não tinha qualquer
ideia de um plano de nova carreira profissional, tal qual esse mo-
mento que vivemos atualmente ao tentar planejar o que será pós-
-pandemia.
Primeira menção a ser feita é o fato de ter ido a Florianópolis
em 1999, a convite de Neiva Ortega, homenageada nesta publi-
cação, e então responsável pelo Programa Bandas da Fundação
Nacional de Artes (Funarte) no Estado de Santa Catarina (SC).
Nos conhecemos quando eu ocupava o cargo de Coordenadora
da Escola de Música da Fundação Cultural de Rio do Sul, quando
me coube a alegria de montar a Banda da Fundação em parceria
com a Polícia Militar através do referido Programa. A partir do
evento de entrega dos instrumentos em Florianópolis, estreitamos
nosso relacionamento, pois Neiva Ortega acompanhava de perto o
desenvolvimento das Bandas contempladas cumprindo exemplar-
mente sua função. Aceitando seu convite de visitar Florianópolis,
ela me colocou em contato com aqueles que faziam a dança na
capital e me levou ao Centro de Artes (Ceart) da Universidade
do Estado de Santa Catarina (Udesc), onde ocorria uma reunião
da Aprodança – Associação dos Profissionais de Dança de Santa
Catarina. Hoje vejo que nesse momento se deu a virada do que
seria uma nova década para mim: desde o ingresso no Curso de
Pós-Graduação em Dança Cênica no Ceart/Udesc, assim como
o retorno a uma sala de ensaios para a tentativa de criar uma
pesquisa solo naquele mesmo ano, e corajosamente inscrevê-la no

405
Programa Rumos do Instituto Itaú Cultural. Apenas um aparte:
eu já dava como encerrada minha trajetória na Dança há alguns
anos, e no máximo acompanhava como pianista as aulas de balé
e exames da Royal Academy of Dancing em Rio do Sul, tendo,
inclusive, me inscrito na seleção de pianistas para a nova Escola
do Teatro Bolshoi no Brasil que abria em Joinville.
A escolha de ir morar em Rio do Sul (SC) no meu retorno ao
Brasil em 1997, após 3 anos de moradia na Alemanha, atendia ao
meu projeto de adotar filhos. Ana Luiza Ciscato, amiga de longa
data, havia se mudado para lá contratada como professora de balé
pela Fundação Cultural e me apresentou a simpática cidade encra-
vada no belíssimo Alto Vale do Itajaí, que parecia acolher meu pla-
nos. Naquele momento, o município vivia um importante momento
para a Cultura, pois o então Prefeito Nodgi Pellizzetti (1940-2002)
era um entusiasta das atividades artísticas e tinha inúmeros projetos
na área cultural: um dos mais importantes, a inauguração do Cen-
tro Cultural em 1998, que atualmente leva seu nome. Alegro-me
ao recordar do orgulho que ele tinha da jovem Banda formada e da
confiança que depositava em mim. Recebi muito apoio dos colegas
da Fundação, onde fiz boas amizades. Contudo, na condição de
mulher solteira, ainda me sentia solitária.

CHEGANDO EM FLORIANÓPOLIS

Mudei para Florianópolis no ano de 2001, iniciando um


novo ciclo. Já especialista em Dança Cênica pela Udesc, come-
cei a ministrar oficinas de dança no Centro Integrado de Cultura
(CIC), o que seria a abertura da porta de um enorme tesouro que
estaria por receber tanto no desenvolvimento profissional como
pessoal, pleno de relacionamentos. O campo de possibilidades que
se encontrava ali entre os que trabalhavam com arte, o espaço de
fruição da população de uma vida cultural, ou mesmo o espaço de
reclamar a insuficiência do circuito cultural e ausência de políticas
públicas foi ceifado com o fechamento do CIC para reforma em

406
2009. Nesse período, o então governador de Santa Catarina, Luiz
Henrique da Silveira (1940-2015), implementava uma proposta
declaradamente inspirada no ócio criativo do filósofo italiano Do-
menico de Masi, criando a Secretaria de Organização do Lazer
(SOL). Tal proposição desagradava o setor cultural, já descontente
com o funcionamento e processo de seleção de projetos submeti-
dos à Lei de Incentivo à Cultura Estadual e o baixo orçamento
destinado à Cultura. Em nível municipal, havia o Fórum de Ar-
tistas e Produtores Culturais de Florianópolis que reunia agentes
e simpatizantes da Cultura em Florianópolis em discussões e de-
senvolvimento de propostas ao setor. No anseio de contribuir para
construção de um sistema para a Cultura que permitisse a sobre-
vivência àqueles que trabalhavam na área, tornei-me engajada nas
discussões propositivas. Outros movimentos similares eclodiram
como o Conversas Culturais e, nesse contexto, Neiva Ortega foi
uma companhia assídua, além de personalidade atuante nestes
movimentos coletivos de combate.
Ainda neste período de funcionamento das oficinas, fui con-
templada com um grupo de alunos realmente notáveis e tive a hon-
ra de conhecer muitos colegas. Para citar aquelas das oficinas de
dança: Ana Alonso, Diana Gilardenghi, Elke Siedler e Zilá Muniz.
Nesta época contamos com o apoio e a generosidade da então res-
ponsável pelas Oficinas de Arte, Mary Garcia, que nos permitiu
colocar em prática uma série de ideias e pequenos projetos inter-
nos como o Ciclo de Audiovisual, palestras de História da Dança,
jam sessions mensais aos sábados, aulas com artistas convidados,
entre outros. Também usufruindo deste espaço, fundei a Ateliê
Cia. de Dança e criei o espetáculo Marina por meio do Prêmio II
Palco Habitasul de montagem cênica A Ateliê Cia. de Dança, para
mim uma joia bastante inusitada, ainda gerou uma segunda obra,
Ora Bolas, voltada ao público infantil, em 2006. Para a gestão
desta nova página no campo artístico, criei ao lado de Neiva Orte-
ga e outros colegas com afinidades na produção cultural, a ONG
Arte Movimenta, em 2005.

407
POLÍTICA CULTUR AL E MISSÃO DE VIDA

Dentro da Dança, continuávamos nos movendo para ali-


mentar estas discussões. Em 2003, concebido e organizado por
Vera Torres, Sandra Meyer e eu, foram realizados Seminários
para discutir a situação da arte. No segundo seminário, realizado
em sala do Ceart/Udesc, foi realizada a eleição da Aprodança
além das discussões com as palestrantes Bia Mattar e Jussara Xa-
vier. A Associação, de âmbito estadual, tinha cadeira no Con-
selho Estadual de Cultura e respondia pelo setor. No entanto,
como a diretoria era quase toda de Florianópolis, acabava por
não conseguir articular os municípios, principalmente os mais
distantes. Naquele momento, o Ministério da Cultura, através da
Funarte, buscava os dados de cada estado brasileiro para o tra-
balho das recém-criadas Câmaras Setoriais, da qual me tornei re-
presentante da Dança de Santa Catarina. No primeiro momento,
tinha que viajar a São Paulo para participar de videoconferência,
o que combinava com as visitas a minha família. Por meio da
Aprodança, com a Vice-Presidente Andreza Martins, formamos
Grupos de Trabalho voluntários para o levantamento dos dados
necessários.
Durante o Festival de Dança de Joinville de 2005, foi pro-
gramado um encontro do Fórum Estadual de Dança de Santa Ca-
tarina, onde trouxemos o representante da Funarte, Marcos Mo-
raes, para explanação do funcionamento das Câmaras Setoriais,
além da apresentação dos pré-projetos elaborados para lançamen-
to de editais para a Dança. O encontro não teve um número de
participantes suficiente para gerar um documento que oficializasse
o estado de Santa Catarina dentro da política cultural nacional do
momento. No entanto, um texto sobre o contexto da dança em
Santa Catarina foi apresentado nas Câmaras Setoriais por mim no
dia 05 de julho de 2005. Tal texto consta no relatório completo
acerca da construção do Plano Nacional de Dança, impresso em
2010. Aliás, sublinho que tenho orgulho de ter participado desse
grupo, enquanto Câmara e Colegiado Setorial de Dança. Arrisco

408
dizer que este período e a subsequente representação da Dança
junto ao Conselho Nacional de Políticas Culturais (CNPC) com
Rui Moreira, Marila Velloso e Bia Mattar, retrata um avanço his-
tórico na articulação e levantamento de um panorama da Dança
dentro de um país tão diverso e com dimensões continentais, a
despeito de ter permanecido no papel.
No referido texto é explicitado o reconhecimento da Apro-
dança e a necessidade de seu fortalecimento na representatividade
territorial, considerando os diversos municípios e a dimensão de
Santa Catarina. Tal foi o objetivo da gestão em que estive na vice-
-presidência da Aprodança, em parceria com Lisa Jaworski (2009-
2011), que foi a primeira presidente residente fora da capital, neste
caso, em Jaraguá do Sul. Ao manter a diretoria em outro municí-
pio além de Florianópolis, a associação ampliou o alcance de sua
atuação. Pessoalmente acredito termos gerado resultados positi-
vos, posto que a organização seguiu forte com Agna Muller em
Garopaba e, hoje, a associação mantém-se bastante atuante com
a representação de Maxwell Sandeer Flor, em Criciúma, junto ao
vice Marco Aurélio da Cruz, em Blumenau.

PRODUÇÃO CULTUR AL, ALIANÇA FR ANCESA


E O MÚLTIPL A DANÇA

Não há como deixar de citar um importantíssimo trabalho


na produção cultural que exerci de 2001 a 2009 com o precioso
grupo musical Cravo-da-Terra, que com sua singeleza e especialís-
sima sonoridade alimentou e incentivou um caminho de investiga-
ção na busca de estratégias de sobrevivência. Consolidado como
referência musical na cidade de Florianópolis, participei desta
trajetória na produção das turnês pelo estado de Santa Catarina
e pelo Brasil, gravação e lançamento de dois CDs, além de me
ocupar da identidade visual e do site, registro da marca e gestão
de CNPJ. Apesar de não se firmar como rendimento financeiro
imediato, sempre brincava dizendo ser o meu melhor investimento

409
para a aposentadoria, enquanto o grupo ia confirmando sua exce-
lência. O grupo participou do Projeto Prata da Casa do Sesc Pom-
peia (SP), do Programa da TV Cultura Senhor Brasil apresentado
por Rolando Boldrin e do mapeamento do Programa Rumos do
Itaú Cultural, constando da coletânea da edição 2007-2009. In-
felizmente, apesar da linda estrada, não escapou do destino fatal
de tantos outros: a dissolução. Considero Florianópolis um gran-
de celeiro musical, com muitos grupos locais de excelência. Mas
a exemplo do que ocorre na dança, lembrando o Grupo Cena 11,
tais núcleos profissionais seguem subjugados a uma eterna carên-
cia de política cultural estadual e municipal como apoio. Ainda
que o mercado da música florianopolitano esteja em crescimento,
está muito aquém ao presumido para uma capital e ao mercado
existente nos grandes centros culturais do país.
Por conta do grupo Cravo-da-Terra iniciei uma relação com
a Aliança Francesa. O grupo havia sido aprovado para um Festival
Universitário na França e necessitava de passagens aéreas interna-
cionais e, como produtora, recorri à diretora Annie Dubernet da
Aliança Francesa de Florianópolis. Nossa simpatia mútua e admi-
ração foi praticamente instantânea, e ela me propôs uma permu-
ta de trabalho para formatação dos projetos da Aliança Francesa
dentro da Lei de Incentivo à Cultura Federal em troca de uma
bolsa de estudos na própria instituição. Na época, eu trabalha-
va numa agência produtora de projetos culturais, formatava os
projetos do Cravo-da-Terra e as Oficinas de Verão da ONG Arte
Movimenta ao lado de Neiva Ortega. Aceitei a proposta.
Via de regra, o representante da França dentro da Asso-
ciação de Cultura Franco-Brasileira (essa é a natureza jurídica
das Alianças Francesas) é trocado a cada dois anos (com uma
possível prorrogação). Com a chegada do novo Diretor Frédéric
Besnard, considero que ganhei outro grande prêmio no período.
Seu perfil inovador e sua capacidade de gestão foram marcan-
tes para meu entendimento acerca de um trabalho em equipe
de forma horizontal, da importância em conhecer o papel a ser
desempenhado e seu limite e, ainda, da generosidade como chave

410
para o sucesso do trabalho. Agora contratada e participante da
equipe da Aliança Francesa, propus a realização da ação Semi-
nários de Dança Contemporânea e com seu incentivo, passamos
a trabalhar o financiamento para o projeto através da Lei Rou-
anet, captando o recurso junto à Tractebel e fechando parceria
com o Sesc-SC.
Foi a partir daí que convidei Jussara Xavier para dividir a
curadoria deste Seminário comigo, que aceitou e batizou o Múl-
tipla Dança – Seminário Internacional de Dança Contemporâ-
nea. Incluímos na programação convidados brasileiros e interna-
cionais, abrangendo companhias de dança subvencionadas pelo
governo francês, como a Cie KassenK , de Osman Kassen Khelili
em 2006, e a Cie. À Fleur de Peau, de Denise Namura e Michael
Bugdan em 2007. Também neste segundo ano recebemos Floren-
cia Olivieri da Argentina.
Após duas edições exitosas e fixando uma periodicidade
anual, fui aprovada pelo governo francês para participar do Séjour
Culture Danse, oferecido pelo Programme Courants Du Monde
em 2007. Esta oportunidade idílica foi um divisor de águas na tra-
jetória do Múltipla Dança, ao revelar a importância que ocupáva-
mos no universo da dança internacional, e que eu sequer suspeita-
va. Dentro deste novo entendimento, adequamos a denominação a
Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança Cotemporânea.
Durante 3 semanas, acompanhada de uma experiente produtora
canadense e uma artista eslovaca, conheci os mais importantes
centros de dança da França. A agenda já marcada previamente nos
dava acesso aos responsáveis pelos teatros, centros coreográficos,
centros de formação em dança e demais representantes institu-
cionais das relações internacionais francesas, com muita genero-
sidade no fornecimento de dados, que me parecia inimaginável
ao lançarmos o Múltipla Dança. Neste momento estava em curso
a organização do Ano da França no Brasil, fixada para 2009, e
então havia também uma agenda paralela ao lado de colegas par-
ticipantes brasileiros de outras instituições e áreas culturais, onde
fervilhavam contatos e articulações.

411
Como a parte financeira no co-financiamento destes eventos
internacionais depende sempre do país homenageado, na prática,
não houve aumento de recursos neste ano comemorativo de 2009,
mas contamos com os participantes franceses Christophe Martin e
Nathalie Pubelier. Já em 2008, tínhamos sofrido a perda da parceria
financeira do Sesc-SC, o que mantinha sempre o eixo curatorial em
constante alerta para a necessidade de flexibilização por conta de
orçamentos frustrados. No entanto, o rico compartilhamento que
reverberava a cada edição foi sempre muito estimulante, resultando,
inclusive, no Prêmio Cultura 2008, concedido ao Múltipla Dança
pela Fundação de Cultura de Florianópolis Franklin Cascaes.
Em 2011, por ocasião de mais uma troca de gestão da Aliança
Francesa, ocorreu minha saída da instituição e o Festival foi can-
celado, mesmo com o patrocínio da CAIXA aprovado, por não se
alinhar às diretrizes da nova direção. Um ciclo parecia estar se fe-
chando. No entanto, a vitalidade do Múltipla Dança se apresentou
com uma potência extraordinária, a demanda pela sua continuida-
de pulsava e em 2013, com a ONG Arte Movimenta, na pessoa de
Neiva Ortega na gestão administrativa, o projeto foi retomado com
muita alegria.

CONSELHO MUNICIPAL DE POLÍTICA CULTURAL


E CHEGADA DOS FILHOS

Neste período de transição, eu ocupava o honroso posto de


primeira Presidente do Conselho Municipal de Política Cultural
de Florianópolis (CMPC). O Conselho foi criado em 2010 e tinha
como representantes da Dança Sandra Meyer e eu. A este grupo
foi atribuída uma tarefa pioneira: elaborar a minuta do Plano Mu-
nicipal de Cultura a ser enviado pela Gestão Municipal à Câmara
de Vereadores. Aproveitando este processo de abertura e, acompa-
nhada de alguns conselheiros, partimos em Caravana por todos os
distritos de Florianópolis apresentando o recém-formado CMPC e
o Sistema Nacional de Cultura.

412
Tomei a tarefa com carinho, busquei cursar disciplinas
como aluna especial nas universidades: Política Cultural com Al-
fredo Manevy na graduação de Cinema da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC); Cidades: narrativas, fluxos e sentidos
no contemporâneo, ministrada pelo Prof. Dr. Emerson César de
Campos no Mestrado em História (Udesc). A comissão de reda-
ção do Plano Municipal de Cultura foi incansável neste processo
de elaboração. Também aconteceram reuniões expandidas para
a definição dos primeiros editais do Fundo Municipal de Cultu-
ra lançado em 29 de março de 2011. Por esse trabalho, recebi o
Prêmio Franklin Cascaes em 2012, e é um troféu pelo qual tenho
especial apreço.
No papel de Presidente do CMPC, também compunha a or-
ganização da III Conferência Municipal de Cultura, que se reali-
zou nos dias 19 e 20 de março de 2012, quando se deu a eleição do
novo grupo de Conselheiros. Exatamente na data de finalização
do mandato, fui brindada pelo telefonema da Vara da Infância
e Juventude da Comarca de Florianópolis, consultando-me sobre
a conveniência de acolher as crianças que eu aguardava na lista
de adoção naquele momento. Respondi prontamente que era um
ótimo momento. Na realidade, eu estava recebendo seguro desem-
prego, mas a certeza da adoção era imperativa. Naquela semana
eu também estava envolvida na Maratona Cultural de Florianó-
polis como curadora de dança, mas a ansiedade de conhecer meus
filhos era tamanha que adoeci no segundo dia do evento, temerosa
de não dar conta de aguardar três longos dias. Após duas visitas
e um final de semana, eu me tornava mãe de Alexandre e Roger
no dia 3 de abril. Confirmando o dito popular de que os “filhos
já chegam com o pão debaixo do braço”, fui abençoada também
com abundância de propostas de trabalho: Oficineira do Plano
Municipal de Cultura em São Bento do Sul; Produção da segunda
edição do evento da RBS Fronteiras do Pensamento; Palestrante
no PIQUEARTE – Encontro de Arte para crianças do SEC-ES;
Curadoria do Festival Internacional de Dança do Recife; Direção
artística do espetáculo Aratemiolé de Luis Canoa e contratada

413
temporária pela Projeta Planejamento e Marketing. Contei com
muito apoio de amigos e vizinhos e passados oito anos de mater-
nidade, compreendo a lógica perfeita do fechamento dos ciclos
anteriores para dar conta do processo de adaptação, que em todos
os casos é sempre desafiador.
O ano encerrou com o surpreendente convite para integrar
a equipe da nova gestão da Fundação Cultural de Florianópolis
Franklin Cascaes, na função de Diretora de Artes. Havia traba-
lhado com Luiz Ekke Moukarzel na Aliança Francesa de Florianó-
polis, ele na produção do Múltipla Dança e eu como produtora do
Festival de Música Contemporânea, que ele dirigia. No momento
em que ele foi convidado pelo Prefeito eleito Cesar Souza Júnior
para ocupar o cargo de Superintendente da Fundação Cultural de
Florianópolis Franklin Cascaes, apresentou como condicionante
para aceitar o convite, poder levar consigo uma equipe técnica e,
por esse motivo, apontou meu nome.

PASSAGEM PEL A GESTÃO PÚBLICA

A partir de 1o de janeiro de 2013, iniciei este novo desafio, que


eu recebia com muita gratidão por me tornar capaz de cumprir com
meu papel de mãe de dois meninos. Parecia-me coerente pelo histó-
rico recente de experiências dentro das políticas culturais, além da
simpatia pelos funcionários da Fundação, que sempre me haviam
recebido muito bem. Minhas funções abarcavam a coordenação de
equipamentos culturais – Teatro da UBRO, Centro Cultural Bento
Silvério (composto pela Casa das Máquinas e Casarão das Rendei-
ras) e Galeria Pedro Paulo Vecchietti, e das linguagens de Artes Vi-
suais, Teatro, Dança, Música e Literatura. Nesse contexto, eu con-
tava somente com técnicas de Artes Visuais e Teatro no quadro de
servidoras. A carga de trabalho estava fora de qualquer perspectiva
humana de realização e seguiria se multiplicando para sempre.
Havia uma grande expectativa por mudanças e elas rapida-
mente iniciaram pela mudança de prédio, seguida pelos choques

414
de gestão que incluíam quebras de acordos pactuados e reformu-
lação de projetos de continuidade. O impacto era forte e o estilo
de Moukarzel propunha a desconstrução do estabelecido para a
solução de antigas questões. Seu programa gestor era auspicioso
e apresentou resultados concretos, como a criação da Secretaria
Municipal de Cultura e a Escola Livre de Música. Rendo aqui
meu reconhecimento, não só por estes feitos, mas principalmente
pelo enorme aprendizado sobre gestão pública que Moukarzel me
proporcionou ao lado da advogada Dra. Eliane E. Machado Pa-
checo, que além de capaz, foi uma das pessoas mais generosas que
já conheci.
O fato é que cada novo projeto acumulava um número in-
findável de tarefas administrativas acrescidas às funções da nova
Secretaria de Cultura, sem novos funcionários. Juntava-se, por
exemplo, a constituição da nova plataforma ID Cult aos entra-
ves cotidianos de funcionamento do paquidérmico poder público,
com outras funções como a capacitação e o trabalho na comissão
de prestação de contas, a participação na Comissão Gestora do
Fundo Municipal de Cultura, a presidência nas comissões organi-
zadoras das Conferências de Cultura (2013, 2014 e 2015).
O principal conhecimento que restou da experiência foi o
desvendar do universo paralelo que constitui a esfera política den-
tro da administração pública, que suspeitamos ao ver os notici-
ários, especialmente na esfera federal. Somente na prática pude
conhecer a predominância deste sistema de negociação de cargos,
pois me descobri como única comissionada não apadrinhada por
um vereador. Aliás, me sentia realmente avis rara dentro do con-
texto, pois além de não atender este aspecto dos demais funcio-
nários ocupantes de cargos de confiança, também frustrava as
servidoras nas demandas administrativas pessoais. Sentia que não
atingia toda a eficiência que me era exigida pelo Secretário que por
sua vez, tinha uma outra infindável lista de demandas dentro do
colegiado da Prefeitura como um todo.
Não quero com este relato dar um tom dramático à experi-
ência dentro da gestão pública, mas não posso esconder a constan-

415
te angústia de estar ocupando um posto que supostamente deveria
atender a população em geral, assessorar artistas e grupos cultu-
rais, apoiar as equipes de trabalho e tramitar administrativamente
as melhorias dos equipamentos junto aos gerentes, e na realidade
sentir-se impotente para cumprir cada um desses atos, devido ao
crescente engessamento legal e os sucessivos cortes orçamentários.
Com tudo isso, tenho orgulho de ter, ao lado de Felipe Moritz,
implantado a Escola Livre de Música, que funcionou por 3 anos
trazendo muita alegria. A realização dos projetos permanentes ge-
renciados por Sandra Nunes e Sulanger Bavaresko, como o Festi-
val Isnard de Azevedo, as melhorias da Galeria Pedro Paulo Vec-
chietti também foram conquistas incontestáveis. Ainda, as pautas
da Casa das Máquinas e do Teatro da UBRO e a viabilização de
projetos dos próprios servidores no Casarão Bento Silvério foram
bem sucedidos. Ou seja, houve momentos de muita plenitude. Na
área da Dança, consegui dar continuidade à Bienal de Dança em
2014, encampando por conta, o que trazia um certo risco naquele
momento controverso politicamente. Outro grande parceiro que
tive foi o Secretário Adjunto, Pedro Almeida, que apesar de jovem,
demonstrou ser muito ético. Neste sentido, é realmente consola-
dor comprovar que indivíduos indicados politicamente para car-
gos públicos podem ser comprometidos e trabalhar coerentemente
com os propósitos para os quais foram designados.
Com tudo isto, a minha atuação no Múltipla Dança preci-
sava de ajustes para atender integralmente às suas necessidades
de realização. Com muita alegria foi se formando uma equipe
articuladora do Festival com Neiva Ortega, Néri Pedroso, Paula
Albuquerque e Jussara Xavier. Como um time, nos reuníamos pe-
riodicamente para pensar e planejar o encontro. Meu sentimento
íntimo era de que o Festival ganhara vida própria e muitas vezes
encontrava suas próprias saídas, principalmente por meio deste
fenômeno de apoio coletivo, chegando mesmo a surpreender.
Em 2016, com minha exoneração da Fundação Franklin
Cascaes, teve início a corriqueira impermanência que reina na
vida dos trabalhadores das artes e cultura em Florianópolis, por

416
conta das poucas oportunidades de trabalho. Usufruía com muita
alegria, no entanto, da deliciosa casa que habitei em companhia
dos filhos e do estilo de vida que tanto amava como moradora
do Campeche, junto à praia. Retornei à minha primeira profissão
como professora de piano (prática iniciada aos 13 anos), dando
aulas particulares e, ainda, tentei sobreviver prestando serviços
na formatação de projetos. No início do ano seguinte, com o re-
torno do meu ex-aluno de dança, que foi também protagonista do
espetáculo Marina, o qual era o proprietário da bela casa em que
morava, foi chegando o momento de deixar o quebrar das ondas e
retornar à força da cidade que “ergue e destrói coisas belas”.
Foi nesse momento que aconteceu a edição do Múltipla Dan-
ça em 2017, quando restou somente o patrocínio da CAIXA, com
um montante reduzido e, sendo assim, recorremos à prática da
economia solidária para sua realização. Se por um lado vivemos
a frustração de perda de potência enquanto atores na economia
da cultura, que é um dos objetivos dos festivais por definição, por
outro, vivenciamos o acolhimento tão especial de todos que abra-
çaram as limitações desta edição, o que foi para mim comovente.
Acredito que a permanência e longevidade do Múltipla Dança se
deve em grande parte a esta rede de afetos, que foi tecida em sua
trajetória. Lidar neste momento com todo o acervo das 10 edições
realizadas, ao organizar muitas fotos, filmagens e documentos,
compartilhar tantas vivências, só reforça o meu profundo senti-
mento de gratidão. Leio anotações do registros da última reunião
de avaliação com a equipe, onde previmos a edição de 03 a 07 de
julho de 2018, mesmo se minha partida de Florianópolis já tivesse
data marcada.
Finalizo essa carta com o coração cheio de saudades man-
dando lembranças, preciosas lembranças, recheadas de afetos co-
lecionados em todas edições, que só pedem mesmo celebração. E
estou certa de que Neiva Ortega, de onde está, brinda conosco!

417
NEIVA ORTEGA (SP, 11 ago. 1951 – SC, 23 out. 2018) exerceu os papéis de
Coordenadora administrativa e produtora executiva no Múltipla Dança
– Festival Internacional de Dança Contemporânea desde 2013. Manezi-
nha de coração, filha de pais espanhóis, 10 irmãos, dois filhos. Morou
durante 26 anos em Santa Catarina (SC), sendo 19 em Florianópolis.
Atuou como atriz, cantora, produtora e gestora organizacional cultural.
Formada como Psicóloga Organizacional, com Pós-Graduação em Tu-
rismo e Hotelaria. Foi Facilitadora Cultural Nacional pela FGV/MinC/
SEFIC e Coordenadora da Rede das Culturas Populares – Território SC.
Articulou, pela REDE Nacional Cultura Popular, a criação e instalação
do Fórum da Setorial Permanente das Culturas Populares e Tradicionais
de Florianópolis (SC). Como suplente no Conselho de Políticas Culturais,
organizou o conteúdo da Proposta de Lei relacionada aos Mestres dos
Saberes de Florianópolis. Trabalhou em empresas privadas como Rede
Globo e Beto Carrero World, e instituições públicas, como Fundação
Catarinense de Cultura (FCC). Na Gerência de Música da FCC, atuou
na Gestão do Programa Nacional de Bandas da Funarte/Ministério da
Cultura. Exerceu um papel fundamental para o desenvolvimento de po-
líticas culturais públicas no Estado. Participou na l, ll e lll Conferência
Nacional de Cultura (CNC), como delegada por SC, cooperando com
subsídios importantes na estruturação das políticas públicas municipais,
estaduais e nacional. Integrou a Equipe técnica da Comissão Executiva
Nacional da II CNC-MinC, em Brasília/DF. No Terceiro Setor, foi só-
cia-fundadora e gestora da ONG Arte Movimenta, desenvolvendo inú-
meras ações, com destaque às atividades ligadas às Culturas Populares
e Tradicionais; em grupos,como a companhia de dança Lápis de Seda; e
em eventos, como o Múltipla Dança.

418
EPÍLOGO
Uma homenagem a Neiva Ortega

[1]

419
[2]

[3]

420
[4]

(1) Neiva Ortega, 2017


Foto: Cristiano Prim

(2) Fabio Dudas, Paula


Albuquerque, Marta Cesar,
Ida Mara Freire, Neiva Ortega,
Néri Pedroso e Jussara Xavier.
Teatro Pedro Ivo, Edição 2017.
Foto: Cristiano Prim

(3) Neiva Ortega com equipe


e visitantes da exposição
O Fotógrafo Também Dança,
de Cristiano Prim. Floripa
Shopping, Edição 2017. Foto:
Gisele Martins Prim

(4) Walter Fabiano Janson,


Marta Cesar, Neiva Ortega,
Jussara Xavier, Paula
Albuquerque e Ida Mara Freire
Teatro Pedro Ivo, Edição 2017.
Foto: Cristiano Prim

421
NÉRI PEDROSO – Jornalista. Desde 2013, faz parte
da equipe técnica do Múltipla Dança – Festival
Internacional de Dança Contemporânea como
assessora de imprensa. Autora dos livros Hassis
(Tempo Editorial) e Coletiva de Artistas de Join-
ville: construção mínima de memória (FCJ) e de
Superlativa Marina (Instituto Juarez Machado).
Assina artigo nos livros Tubo de Ensaio – Com-
posição [Interseções + Intervenções], Percurso do
Círculo – Schwanke Séries, Múltiplos e Reflexões
(Contraponto), e é uma das organizadoras do li-
vro Interlocuções Possíveis: Kosuth e Schwanke
(Instituto Schwanke). Integra a Associação Brasi-
leira de Críticos de Arte (ABCA).

PAULA ALBUQUERQUE – Designer gráfica e jor-


nalista com foco em projetos culturais. Assina a
identidade visual e os materiais gráficos do Múl-
tipla Dança – Festival Internacional de Dança
Contemporânea (2007-2021), FITA – Festival In-
ternacional de Teatro de Animação (2019), Fidé
Brasil – Festival Internacional do Documentário
Estudantil (2012-2021), projeto (A)Gentes do
Riso (2016-2021), Festival de Música Contempo-
rânea Aliança Francesa (2008-2010), Orquestra
Filarmonia Santa Catarina (2010-2014), além de
projetos de livros de arte, fotografia e literatura,
revistas, catálogos de exposições, CDs, peças
gráficas para espetáculos teatrais, shows, even-
tos, entre outros. Membro do Comitê Cultural da
Aliança Francesa de Florianópolis (2005-2008) e
do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Barca dos
Livros (NEP), em Florianópolis-SC (2018-2020).

42 2
LÍRIO DA PAZ, O GESTO DA DELICADEZA
Néri Pedroso
 

Não lembro como conheci a Neiva. Não importa muito,


porque o mais relevante foi todo o resto, sobretudo o convívio e o
trabalho conjunto. No entanto, a memória mais remota que tenho
dela é quando estava envolvida na gestão pública, na gerência de
música na Fundação Catarinense de Cultura (FCC) e no extinto
Ministério da Cultura (MinC) no Programa Nacional de Bandas
da Funarte, no qual desenvolveu oficinas e cursos de gestão da
corporação musical em Santa Catarina que resultou como modelo
para criar o Painel Funarte de Bandas de Música.
Mulher de personalidade forte, muito aprendi com ela que
formulou, em 2016, o convite para integrar a equipe da Compa-
nhia de Dança Lápis de Seda, o que sempre considerei um presente
por ter resultado numa experiência transformadora. Na época já
estávamos envolvidas pelo Festival Múltipla Dança, onde comecei
em 2013.
Difícil definir alguém tão exuberante, sinto que não seria ca-
paz, razão pela qual opto aqui por um depoimento distanciado da
rica experiência profissional. Deixo a memória ao sabor de fatos
engraçados, de muita gargalhada, de discussões difíceis às vezes,
de uma mulher que sabia articular e aproximar as pessoas num
amplo espectro de atuações, múltipla que era não só no universo
cultural. Suas crenças e espiritualidade abarcam um volume sem
fim de interlocutores e admiradores.
Não nos despedimos no último encontro, às vésperas da ci-
rurgia que a levou para outro plano. Estávamos certas de breve
reencontro. Lamentei sua morte, muito, mas não há em mim o
doloroso atravessamento do luto, aquela tristeza sem fim. Sinto
sua significativa presença ainda latente nos gestos de afeto, tão
marcantes em Neiva. Certa vez, num encontro de trabalho, trou-
xe para presentear uma pequena planta, um lírio da paz branco.

423
Hoje, a plantinha bem maior, dá flores na minha sala, onde as
espécies ganham nome de gente: Neiva, Mísia, Dona Maria. Na
minha emoção, Neiva está ali, linda e muito viva em nossa comu-
nicação quase diária.

424
PRESENTE
Paula Albuquerque

A presença da Neiva sempre foi muito marcante, com aquela


sua risada superlativa maravilhosa, seus cabelos flamejantes e seu
olhar azul intenso. Me corrijo: a presença da Neiva é, no presente,
porque ela segue por perto, nas memórias e conquistas das tantas
batalhas que encampou pela cultura em Santa Catarina, nas inú-
meras realizações como produtora e gestora de cultura. 

A Neiva me foi apresentada por um amigo em comum, e


pouco tempo depois trabalhamos juntas em uma atividade do
Projeto Bandas SC, realizado pela Funarte e Ministério da Cul-
tura, que tinha como objetivo capacitar e ampliar a circulação
das bandas de música civil, militar e escolar (fanfarras) do esta-
do. Aquela pequenina se desdobrava em mil, sempre muita atenta
aos detalhes administrativos dos projetos em que estava envolvida,
mas também aos detalhes afetivos. Nos anos em que trabalha-
mos juntas no Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança
Contemporânea, sempre me cativou sua atenção para as pequenas
delicadezas, como um chocolatinho para a equipe, uma flor ou
um presente para a/o artista homenageada/o na edição do festival. 

Na cerimônia em ocasião à sua partida, realizada no Centro


Integrado de Cultura, foi lindo ver grupos tão diversos reunidos
para celebrá-la: estavam lá os companheiros da umbanda, familia-
res, amigos e colegas da dança, da música, das artes visuais. Nun-
ca me esquecerei das lágrimas e do abraço coletivo dos bailarinos
da Companhia de Dança Lápis de Seda, para quem a Neiva era
uma gestora e amiga muito especial. Todos ali vibrávamos aquela
mesma saudade e admiração. Obrigada por tudo, Neiva querida.

425
[1] [2]

[3] [4] [5]

[6] [7] [8]

[9] [10] [11]


[12] [13] [14]

[15] [16] [17]

[18] [19] [20]

[21]
LEGENDAS
(1) Jussara Xavier e Marta Cesar
(2) Cristiano Prim
(3) Rui Moreira
(4) Inês Bogéa
(5) Ana Luiza Ciscato
(6) Cláudia Müller
(7) Isabel Marques
(8) Neiva Ortega e Paula Albuquerque
(9) Marta Cesar
(10) Manoel J. de Souza Neto
(11) Andréa C. Scansani
(12) Vanilton Lakka
(13) Lilian Vilela
(14) Marila Velloso
(15) Ana Maria Alonso Krischke
(16) Olga Gutiérrez
(17) Néri Pedroso
(18) Sandra Meyer
(19) Thembi Rosa
(20) Ida Mara Freire
(21) Fabio Dudas, Paula Albuquerque, Jussara Xavier,
Neiva Ortega, Marta Cesar, Néri Pedroso e Ida Mara Freire

Todas as fotos: Cristiano Prim | Acervo Múltipla Dança,


exceto (2): Gisele Martins Prim; (8): Fabio Dudas;
(10): Digão Duarte; (14): Filipe Britto; (17): Franzoi

1a edição, 2020
Esta obra foi composta em Sabon LT Std, Ropa Sans e
PT Sans na primavera de 2020 e lançada no verão de 2021.
Projeto realizado pelo Governo do Estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Catarinense de
Cultura (FCC), com recursos do Prêmio Elisabete Anderle de Apoio à Cultura ∕ Artes – Edição 2019.

Você também pode gostar