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Efeitos ideológicos das práticas de edição de som e mixagem

Mary Ann Doane1

As práticas de edição de som e mixagem a serem consideradas aqui são aquelas


desenvolvidas dentro do sistema dos estúdios de Hollywood. A noção de “sistema”,
rigorosamente falando, requer certa padronização (em relação às técnicas e ao
maquinário) e uma divisão do trabalho relativamente estrita. No entanto, essas práticas se
tornaram amplamente “normalizadas”, mesmo fora desse sistema – elas tiveram, por
exemplo, enorme impacto nas indústrias cinematográficas de outros países, assim como
nas atividades cinematográficas independentes. Parto da premissa de que não apenas as
técnicas de construção da trilha sonora, mas a linguagem dos técnicos e os discursos sobre
a técnica são sintomáticos a respeito de objetivos ideológicos particulares.
Tornou-se um clichê assinalar que a trilha sonora recebeu muito menos análise e
atenção teórica do que a imagem. Ainda assim, o clichê não é destituído de valor e
identifica, embora não explique, um fato verdadeiro. Essa falta de atenção indica a
eficácia de uma operação ideológica específica, que é mascarada, em certa medida, pela
ênfase dada à “ideologia do visível”. Se é verdade que comumente se fala em “ver” um
filme e não em ouvi-lo, a expressão em si mesma consiste numa afirmação da identidade
do filme (isto é, sua totalidade, sua unidade) e numa consequente negação de sua
heterogeneidade material. O som acrescenta algo à imagem e, no entanto, permanece
subordinado a ela – ele age, paradoxalmente, como um suporte “silencioso”. O
apagamento das marcas de trabalho, que caracteriza a ideologia burguesa, é altamente
bem-sucedido no que tange à trilha sonora. A invisibilidade das práticas de edição de som
e mixagem é assegurada pelas leis de construção aparentemente “naturais” que a trilha
sonora obedece.
O descaso com que a trilha sonora é tratada no âmbito da teoria, contudo, não
possui contrapartida na esfera da prática. Hollywood reconhece quão profundamente o
“suplemento” – quer dizer, o som – pode infiltrar e transformar o que é suplementado.
Numa indústria cuja regra de ouro, em termos de valor de produção, pode ser resumida
na ideia de que “quanto menos perceptível for a técnica, mais bem-sucedida ela será”, a
invisibilidade do trabalho de som é a medida da força da trilha sonora. A publicidade
concedida à filmagem das imagens é muito maior do que àquela reservada aos
“bastidores” do processo envolvido na construção da trilha.
Concentrar-se nos determinantes ideológicos das práticas de edição de som não
necessariamente implica negar o significado da “ideologia do visível”, destacado por
[Jean-Louis] Comolli e por outros. Numa cultura em que o verbo “ver” significa entender,
os poderes epistemológicos do sujeito são claramente postos como uma função da
centralidade do olho. Em uma discussão sobre a hierarquia dos sentidos estabelecida pela
civilização ocidental, Michel Marie esclareceu a que ponto o olho é postulado como o

1
DOANE, Mary Ann. “Ideology and the Practice of Sound Editing and Mixing”. In: LAURETIS, Teresa
de; HEATH, Stephen (orgs.). The Cinematic Apparatus. Londres: McMillan, 1980, p. 47-56.
solo de todo conhecimento. Marie atesta que, em tal hierarquia, a escuta não é tão
privilegiada quanto a visão – é a visão que se torna “a via régia para a apreensão do mundo
externo”.2
A ideologia burguesa, porém, não pode ser reduzida a uma ideologia monolítica
do visível. Por trás do uso histórico do cinema, jaz um complexo de determinações cuja
própria multiplicidade garante a natureza sutil e pervasiva da ideologia. Enquanto a noção
de um olho centralizado situa o sujeito numa certa posição de conhecimento, o verbo
“conhecer”, por sua vez, não esgota a função do sujeito na ideologia burguesa. Ou melhor:
o conceito de conhecimento se acha dividido desde o início. A divisão é garantida pelo
estabelecimento e manutenção de oposições ideológicas entre o inteligível e o sensível,
intelecto e emoção, fato [objetivo] e valor [subjetivo], razão e intuição. Roland Barthes
explica que:

a ideologia burguesa transita entre a modalidade cientificista e a


intuitiva: ela registra fatos ou percebe valores, mas recusa explicações;
a ordem do mundo pode ser vista como suficiente ou inefável, mas
nunca como significante.3

A qualidade inefável e intangível do som – ao qual falta a concretude tão prezada pela
ideologia do empirismo – exige que ele seja situado na ala do emocional ou do intuitivo.
Se a ideologia do visível pede que o espectador entenda a imagem como uma
representação verdadeira da realidade, a ideologia do audível pede que exista
simultaneamente outra ordem da realidade, outra verdade para o sujeito alcançar.
A frequência com que as palavras “clima” ou “atmosfera” aparecem no discurso
dos técnicos de som atesta a relevância dessa outra verdade – basta ver que as trilhas
musicais e os efeitos sonoros são constantemente usados para estabelecer um “clima”
particular para a cena. Em The Technique of the Film Cutting Room, Ernest Walter
descreve essa prática:

A música é usada para criar uma atmosfera que, de outro modo, seria
impossível... Assim como o editor de som arranja seus efeitos sonoros
para criar um efeito quase musical em algumas sequências, assim
também o compositor musical cria um pano de fundo instrumental que,
em si mesmo, torna-se às vezes um efeito sonoro adicional. Com
frequência, trata-se de um efeito incrementado, que se mistura com a
cena dialogada de modo a acrescentar valor significativo à cena, mesmo
que essa presença musical não seja percebida enquanto tal.4

2
Michel Marie, “Son, in Jean Collet et aI., Lectures du film (Paris: Albatros, 1975), p. 206.
3
Roland Barthes, Mythologies (Londres: Cape; Nova York: Hill & Wang, 1972), p. 142.
4
Ernest Walter, The Technique of the Film Cutting Room (Nova York: Focal Press, 1973), p. 212.
O “valor” aludido permanece sem explicação. Sobre essa questão, o autor se manteve
mudo, afásico – precisamente porque o conceito é inacessível à linguagem, à análise ou
à compreensão intelectual. O som carrega um sentido que é comunicável e válido, mas
não analisável. Seu reduto é o do mistério – mas um mistério sancionado por uma
ideologia que reconhece que nem todo conhecimento é subsumido pela ideologia do
visível, permitindo um vazamento, um excesso que é contido e constrangido pelo outro
polo da oposição que separa conhecimento e emoção, intuição, sentimento. Todavia, não
se pode negar os notáveis poderes de sensualidade e mistério atribuídos tanto à imagem
quanto à trilha sonora, ou o uso do diálogo para garantir inteligibilidade. A imagem e a
trilha sonora são ambas submetidas a uma sobredeterminação ideológica. No entanto, o
que o som acrescenta ao cinema não é tanto a inteligibilidade, mas, sobretudo, a presença
da fala – banindo sua ausência na forma da escrita, dos intertítulos que separam a fala de
uma personagem de sua imagem. As técnicas empregadas na construção de uma trilha
sonora não partilham da neutralidade da “ciência pura”. Mas tampouco funcionam
simplesmente para reforçar uma ideologia unitária do visível. Ao mesmo tempo em que
é introduzido, em parte, para corroborar essa ideologia, o som também traz o risco
potencial de uma crise ideológica. O risco reside na exposição da contradição implícita
na polarização ideológica do saber. Porquanto som e imagem são usados como garantias
de dois modos radicalmente diferentes de conhecimento (emoção e intelecção), sua
combinação implica a possibilidade de expor uma fissura ideológica – uma fissura que
aponta para o caráter irreconciliável de duas verdades da ideologia burguesa. As práticas
de edição de som e de mixagem são projetadas para mascarar essa contradição através da
especificação de relações admissíveis entre som e imagem. No discurso dos técnicos de
som, portanto, sincronização e totalidade são fetichizados, com a inseparabilidade entre
som e imagem sendo estabelecida como meta. A “alegria” proporcionada pela mixagem,
de acordo com um editor de som, consiste em assistir ao surgimento de “algo orgânico”.5
A montadora Helen Van Dongen reconhece a existência de objetivos similares em seu
próprio trabalho:

Imagem e trilha, em certa medida, têm uma composição própria, mas


quando combinadas formam uma nova entidade. Então a trilha se torna
não apenas um complemento harmonioso, mas também uma parte
integrante e inseparável da imagem. Imagem e trilha estão de tal
maneira fusionadas que uma funciona através da outra. Não há
separação entre o que vejo na imagem e o que ouço na trilha. Em vez
disso, há o que sinto e experencio através da totalidade da combinação
entre imagem e trilha.6

Não é coincidência que, na linguagem dos técnicos, fale-se em “casar” o som à imagem.
As práticas que asseguram o apagamento do trabalho envolvido na construção da trilha
sonora são sintomáticas dessa repressão da heterogeneidade material do filme sonoro.

5
Walter Murch em entrevista a Larry Sturhahn, “The art of the sound editor: an interview with Walter
Murch”, Filmmakers Newsletter, vol. VIII, n. 2, dez. 1974, p. 25.
6
Helen Van Dongen, citada em Karel Reisz, The Technique of the Film Editing (Londres e Nova York: Focal
Press, 1964), p. 155.
Cortes na trilha são indicadores potenciais desse trabalho. Na edição das pistas sonoras
ópticas, descobriu-se que as linhas sobrepostas nos pontos de emenda da película
provocavam um ruído agudo na gravação. A técnica do “blooping” foi desenvolvida para
ocultar o que soava tão somente como um irritante lembrete de que as relações
sintagmáticas não são “naturalmente encontradas”, mas fabricadas. O blooping consiste
no processo de pintar ou perfurar um triângulo opaco ou uma área em forma de diamante
sobre a emenda, resultando num efeito de rápido fade-in/fade-out. O paralelo dessa
técnica na edição do filme magnético é a prática de cortar na diagonal. O objetivo
ideológico dessas técnicas corrobora o da montagem em continuidade – o efeito desejado
é o de garantir fluidez e suavizar uma quebra potencial. Cortes abruptos na música ou nos
efeitos sonoros são evitados em favor dos efeitos homogeneizantes do fade e da fusão.
Sons que obviamente se repetem em ciclos são tachados de “irritantes”.7 Uma vez que a
ausência de som indicaria uma quebra de um fluxo supostamente contínuo, ela se tornou
um dos grandes tabus da construção da trilha sonora. Quando não há efeitos sonoros,
música ou diálogo, deve haver, no mínimo, espaço sonoro ou som ambiente. As
prescrições de Ernest Walter com relação às projeções-testes de filmes ainda em processo
de montagem indicam em que medida os valores de continuidade e preenchimento
governam as técnicas de som:

Para quem assiste a essas projeções, podem ser bastante incômodos os


momentos em que a trilha sonora de sequências que ainda contam com
trechos não sonorizados repentinamente emudece. É preferível
incorporar um efeito sonoro, mesmo que provisório, para cobrir esses
planos, de modo a não interromper o fluxo normal do som.8

Uma vez que a “normalidade” é concebida como um fluxo contínuo, a ausência de som,
no vocabulário dos técnicos, é considerada a “morte” dessa normalidade. Quando uma
trilha sonora “morre na montagem”, essa transgressão é considerada como de natureza
teológica. “Morte” e “vida” são metáforas consistentemente associadas ao som. Um lugar
ou um palco com baixo potencial de reverberação são considerados “mortos”, e na pós-
sincronização se deverá adicionar um pouco de reverberação para dar “vida” à gravação.
O som em si mesmo é frequentemente descrito como algo que acrescenta vida à imagem.
E a vida dada pelo som é apresentada como um fluxo natural e não codificado.
Essa ilusão de um fluxo não codificado é ainda auxiliada pela prática dos cortes
flutuantes. Apenas em casos excepcionais som e imagem são cortados exatamente no
mesmo ponto. A continuação de um som entre um plano e outro, como se pulasse por
cima do corte na imagem, desvia nossa atenção desse corte. Do mesmo modo, o processo
de mixagem é caracterizado por “um trabalho de unificação, de homogeneização, de uma
suavização e polimento de todas as partes ‘ásperas’ da pista de som”9. Todas essas
técnicas são motivadas por um desejo de apartar o filme de sua fonte, de esconder o

7
Walter, op. cit., p. 208.
8
Ibid., p. 128.
9
Marie, op. cit., p. 203.
trabalho da produção. Elas promovem uma sensação de facilidade e naturalidade na
captura do real.
Oculta-se o processo altamente especializado e fragmentado, assim como o
tamanho e o custo do maquinário essencial à produção de uma trilha sonora que atinja os
padrões da indústria. O som direto, o som que é gravado durante a filmagem, consiste
apenas em diálogos e alguns efeitos sonoros. A música e a maior parte dos efeitos são
gravadas depois e necessitam do estabelecimento de departamentos especializados dentro
da estrutura do estúdio. Os diálogos que não são gravados nas locações ou que estão
estragados por barulho de fundo devem ser pós-sincronizados. A estratificação, a
contínua subdivisão a que a trilha sonora é submetida está alinhada com o objetivo de
manter uma rígida hierarquia dos sons. Porquanto o microfone, em si próprio, quer seja
onidirecional ou unidirecional, não é suficientemente seletivo, e porquanto ele não
garante que os valores ideológicos atribuídos aos sons e suas relações sejam respeitados
na gravação, padroniza-se o dispendioso aparato de mixagem, que trará de volta e
reforçará essa hierarquização. A prioridade é concedida ao diálogo, e seu volume
geralmente determina os volumes dos efeitos e da música. O diálogo é o único som que
permanece com a imagem ao longo da produção – ele é editado junto com a imagem e é
na edição que a sincronização recebe sua aprovação enquanto técnica neutra mediante a
sanção da moviola, do sincronizador, da mesa de montagem. Os efeitos sonoros e a
música são subservientes ao diálogo e, acima de tudo, é a inteligibilidade dos diálogos o
que está em jogo, junto com suas nuances de tom. A hierarquia respeitada na mixagem
reforça, nos termos de Comolli, a identificação entre “discurso e destino” nas ficções
hollywoodianas e o conceito do “indivíduo como mestre da fala”.10 A noção de que a
fusão e o fade sonoros aplicados ao diálogo são “naturais”, conforme consta num artigo
de 1931 sobre a técnica de regravação11, indica o desejo de preservar o estatuto da fala
como um direito à propriedade privada individual – sujeita somente a uma manipulação
que não seja discernível.
Tanto a necessidade de inteligibilidade quanto a prática de usar a fala como um
suporte do indivíduo são constituídas por uma demanda ideológica. No entanto, é uma
demanda ideológica que tem o potencial de prover a ideologia do visível de um lastro
fundamental. Esse potencial se expressa em argumentos concernentes à perspectiva
sonora, que aparecem regularmente nos memorandos técnicos do começo dos anos 1930.
Uma vez que é usado simplesmente para confirmar a ideologia do visível, para reiterar a
noção de que o mundo é, de fato, o que parece, o som necessariamente se intromete
naquele ato de fala que pertence ao indivíduo, que define ou expressa sua individualidade,
e que o distingue do mundo. Nos argumentos acerca da perspectiva sonora, o “realismo”
(como um efeito da ideologia do visível) é tomado em conflito com a inteligibilidade. Se
as demandas de perspectiva sonora forem respeitadas (isto é, o som em close-up
“casando” com a imagem em close-up, o som em plano geral “casando” com a imagem
em plano geral), haverá um certo ponto na distância aparente entre a câmera e o que ela
filma em que a inteligibilidade será perdida. O problema é semelhante àquele da relação
entre diálogo e sons de fundo, ou efeitos sonoros. Por exemplo, num plano envolvendo

10
Jean-Louis Comolli, “Technique et ideologie” (6), Cahiers du cinéma, n. 241, set.-out. 1972, p. 22.
11
Carl Dreher, “Recording, re-recording, and editing of sound”, Journal of the Society of Motion Picture
Engineers, vol. XVI, n. 6, jun. 1931, p. 763.
um casal conversando em meio a uma multidão, o poder mimético do barulho da turba é
geralmente reduzido em favor da inteligibilidade do diálogo. Os compromissos feitos em
prol da inteligibilidade indicam uma mudança ideológica dentro da lógica do “realismo”.
O filme sonoro hollywoodiano trabalha numa oscilação entre dois polos de realismo: o
do realismo psicológico (ou interior) e o do realismo visível (ou exterior). (Embora seja
verdade que os estados interiores são usualmente representados através da mise en scène,
assim como da expressão facial, essa representação é menos “direta” que aquela da fala
– ela deve operar um deslocamento. E é precisamente a presença-em-si da fala que é
valorizada). A verdade do indivíduo, da esfera interior do indivíduo (uma verdade que é
mais diretamente falada do que ouvida), é a verdade avalizada pela chegada do som. O
que surge em 1927 é o cinema “falado” [“talkie”], e não o cinema sonoro.
O fato de que a perspectiva sonora impõe um problema significativo no início dos
anos 1930, contudo, requer maior explicação. Apesar de o indivíduo dentro do filme ser
definido por suas palavras, isso não garante automaticamente uma posição para aquele
outro indivíduo – o espectador. A perspectiva renascentista e a visão monocular
organizam a imagem de modo a posicionar o espectador como o olho da câmera. Mas
essa posição será ameaçada e questionada caso a localização aparente do microfone não
coincida com aquela da câmera, falhando na rearticulação do espaço. Nos primeiros cinco
anos da produção de filmes sonoros, vários microfones eram espalhados pelo cenário e
seus sinais eram mixados durante a filmagem numa sala de monitoramento, para obter
qualidade consistente e inteligibilidade dos diálogos. Em 1930, um crítico reclama que
essa técnica resulta em cenas dialogadas nas quais

qualidade e volume permanecem constantes enquanto a montagem pula


para um baita close-up. Nessas horas percebemos que estamos
testemunhando um filme falado, o que significa que a ilusão foi
parcialmente destruída nesse ponto.12

O efeito de profundidade espacial fornecido pela imagem é destruído, e é essa ilusão de


uma certa perspectiva e de uma certa posição do espectador que é quebrada pelos
primeiros filmes sonoros.
A surpresa de ouvir os atores falarem e a experiência cativante da sincronização
entre palavra e imagem encobrem durante um tempo a fragmentação de uma posição, a
desagregação dos sentidos que caracteriza a recepção do espetáculo pelo espectador. Num
artigo de 1930 intitulado “A ilusão do som e da imagem”, John Cass descreve o corpo do
espectador postulado pelos primeiros filmes sonoros:

Quando vários microfones são usados, a mistura de sons resultante pode


não representar nenhum ponto de escuta discernível, mas o som que

12
John L. Cass, “The illusion of sound and picture”, Journal of the Society of Motion Picture Engineers, vol.
XIV, n. 3, mar. 1930, p. 325.
seria ouvido por uma pessoa com cinco ou seis orelhas bem compridas
e estendendo-se em várias direções.13

Essa confusão do corpo decorre de outra confusão concernente a uma outra mídia. O
universo da gravação de som, inicialmente, pertence à indústria do rádio, do telefone e
dos aparelhos elétricos. Para os técnicos e diretores de cinema do começo dos anos 1930,
o som é o reduto misterioso de um círculo de especialistas. Joe Coffman, escrevendo para
o Journal of the Society of Motion Picture Engineers, culpa a indústria do rádio pelos
complexos sistemas de microfone e pela resultante falta de perspectiva sonora:

Em alguns aspectos, é ruim que a maioria dos peritos de som da


indústria cinematográfica tenha vindo da indústria do rádio. Na
transmissão radiofônica, normalmente se deseja apresentar todos os
sons como se saíssem mais ou menos da mesma perspectiva – a do
microfone. Portanto, as subidas e descidas de volume sãs feitas de modo
a soar aproximadamente na mesma altura, com o microfone
posicionado o mais perto possível da fonte do som. Mas nas
apresentações de filmes falados, é desejável obter efeitos de espaço e
variação dramática do volume.14

A diferença crucial entre rádio e cinema está vinculada à imagem – isto é, à imagem que
ancora o som em determinado espaço. A sugestão de Coffman é muito próxima do que
se encontra em manuais de filmagem: use um microfone, posicione-o, estabeleça os
volumes e não os reajuste durante a gravação. Em 1930, os microfones dinâmicos da
Western Electric e os microfones de fita da RCA foram disponibilizados para a indústria,
simplificando a construção em larga escala de microfones.15 Assim, a ação no set era
seguida de forma mais simples e a manutenção da perspectiva sonora era garantida. A
apresentação de todos os sons como sendo emitidos de um único lugar não podia mais ser
sustentada. Pois o drama encenado na tela deve ser análogo ao drama vivido pelo corpo
do espectador – um corpo posicionado como unificado e não fragmentado.
A ilusão visual de espacialidade é acompanhada por uma ilusão aurática de
posição. A ideologia da sincronização é uma obsessão que atravessa a prática da
construção da pista sonora e demanda certa autenticidade da técnica. Um artigo de 1930
sobre a dublagem assegura para os espectadores que dublar não é falsear, pois não importa
quantas vezes o som seja reproduzido, ele permanece “a verdadeira voz da pessoa falando
na tela”.16 O padrão de autenticidade é aplicado com mais ênfase em relação à voz, e
diferentes prescrições restringem os usos de música e efeitos sonoros que não tenham
motivação. Sua justificativa repousa na lógica dramática. Karel Reisz descreve uma cena

13
Ibid.
14
Joe W. Coffman, “Art and science in sound film production”, Journal of the Society of Motion Picture
Engineers, vol. XIV, n. 2, fev. 1930, pp. 173-4.
15
James R. Cameron, Sound Motion Pictures (Coral Gables: Cameron Publishing Company, 1959), p. 365.
16
George Lewin, “Dubbing and its relation to sound picture production”, Journal of the Society of Motion
Picture Engineers, vol. XVI, n. 1, jan. 1931, p. 48.
de Condenado [Odd Man Out, Carol Reed, 1947] na qual os passos de homens roubando
um moinho se tornam mais altos à medida que eles se aproximam de seu objetivo – a
despeito do fato de eles estarem mais longe da câmera do que nos planos precedentes.
Reisz cita essa cena como um exemplo dos desvios da perspectiva sonora natural que
“são justificáveis uma vez que a meta principal é atingir um efeito dramático”; a batida
rítmica do moinho “faz a sequência parecer intoleravelmente prolongada, quase como se
a estivéssemos experienciando através da mente de um membro da gangue”.17 A música
também é usada para corroborar o “clima” ou a ação de uma cena. Quando o princípio da
mimese não é estritamente observado no nível do mundo representado (por exemplo, no
caso de uma música não motivada ou de efeitos sonoros não-analógicos), esse princípio
é transferido para um trabalho de combinação de diferentes materiais e camadas de
significação. Som e imagem, devidamente “casados”, propõem um drama individual em
conformidade com um realismo psicológico. O “conhecimento” da vida interior de um
indivíduo pode ser assentado mais diretamente na integridade e espontaneidade de sua
fala quando esta é reforçada por estratégias da música e dos efeitos sonoros (assim como
da mise en scène). A retórica do som é o resultado de uma técnica cujo objetivo ideológico
é esconder a enorme quantidade de trabalho necessária para transmitir um efeito de
espontaneidade e naturalidade. Nessa operação, são reprimidos os sons que indicariam a
existência do aparato. É, portanto, a oposição entre som (as vibrações audíveis do ar que
possuem um propósito comunicativo) e ruído (os sons aleatórios do maquinário – que
carecem de sentido) o que tem determinado tantos desenvolvimentos tecnológicos na
gravação de som.
As técnicas de edição de som e mixagem fazem do som o portador de um sentido
– e de um sentido que não está subsumido na ideologia do visível. A verdade ideológica
da trilha sonora disfarça aquele excesso que escapa ao olho. Pois o ouvido é precisamente
aquele órgão que se abre para a realidade interior do indivíduo – uma realidade não
exatamente invisível [un-seable], mas incognoscível na esfera do puramente visível.

17
Reisz, op. cit., p. 266.

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