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Radis 112 • dez/2011

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Saúde sem fronteiras

Brics, os países da vez


Grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África
do Sul assemelha-se no ritmo de crescimento econômico,
mas diverge na concepção de seus sistemas de Saúde

pacote de serviços gratuitos a toda população e


Bruno Dominguez
a China está levando à frente uma reforma para
atingir status similar.

A
pesar de recente, a sigla Brics é cada vez O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH),
mais falada — especialmente no noticiário divulgado pelo Programa das Nações Unidas para
internacional. Formulada pelo economis- o Desenvolvimento em novembro (ver Súmula, na
ta Jim O’Neil em 2001 para designar o pág. 5), aponta que entre os Brics o país mais de-
grupo de países emergentes formado por Brasil, senvolvido é a Rússia (66º), seguido de Brasil (84º),
Rússia, Índia e China, essa expressão incorporou, China (101º), África do Sul (123°) e Índia (134º).
em 2010, a África do Sul. O que une os cinco é o O IDH considera três dimensões: o conhecimento,
fato de crescerem rapidamente: em 2010, o Pro- medido por indicadores de educação; o padrão de
duto Interno Bruto do grupo somou US$ 11 trilhões, vida digno, medido pela renda; e a saúde, medida
o equivalente a 18% da economia mundial. Mas, pela longevidade.
se os aspectos financeiros são semelhantes, em No texto A saúde nos Brics — Progresso e
muitas outras áreas esses países têm condições perspectivas para 2011, o economista André Cezar
divergentes — inclusive na concepção de seus Medici, especializado em Economia da Saúde, ava-
sistemas de saúde. lia que os cinco países têm desafios comuns a en-
Radis pesquisou a realidade do setor na Rús- frentar. Primeiro, promover a equidade: diminuir
sia, Índia, China e África do Sul e constatou que o a pobreza e a desigualdade social. Segundo, ser
bom desempenho econômico não necessariamente mais eficiente na prestação de serviços de saúde.
se reflete na qualidade de vida da população. En- Terceiro, lidar com o envelhecimento da população
quanto o Brasil tem um sistema universal e integral e o aumento das doenças crônicas não transmis-
de saúde, na Índia e na África do Sul o acesso é síveis. E, finalmente, levar à frente mecanismos
marcado pela iniquidade. Já a Rússia oferece um para tornar seus sistemas de saúde sustentáveis.

II, foi criado um serviço público de balhadores da indústria (Bismarckian).


saúde para as áreas rurais (Zemstvo), Mas o foco da atuação do Estado era
Rússia financiado pelo recolhimento de im- a saúde pública, o saneamento e o
postos e livre de cobrança nos pontos controle de doenças infecciosas — em
de atendimento. Dali saiu a certeza detrimento do tratamento médico.
de que era possível oferecer atenção No começo do século 20, o país
atenção à saúde
à saúde por meio de serviços públicos teve de lidar com as consequências da
pública e gratuita
e gratuitos, como lembra o relatório Primeira Guerra Mundial e da guerra
As bases do sistema de saúde Health Care Systems in Transition civil, com a fome e com epidemias,
russo foram construídas ainda na Rús- (Ellie Tragakes, Suszy Lessof). que praticamente destruíram toda
sia czarista. Em 1864, como parte das Com a industrialização, criou-se a infraestrutura de saúde. A Rússia
reformas liberais do Czar Alexandre outro seguro de saúde, voltado aos tra- então desenvolveu um sistema úni-
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co de saúde, a partir dos seguintes enquanto na França era de 59 centrados na necessidade e não
princípios: responsabilidade do anos e nos Estados Unidos, de 63. na capacidade de pagamento do
Estado pela saúde, acesso universal Nos quinze anos seguintes, o país paciente. Mas os mecanismos de
a serviços gratuitos, abordagem investiu em prevenção das doenças financiamento da saúde foram
preventiva das doenças, atenção infecciosas para mudar esse quadro alvo de grande reforma recente:
profissional de qualidade, relação — em 1965, a expectativa de vida os impostos deixaram de ser o
estreita entre ciência e prática chegou a 64,3, ante 67,5 da França único meio de sustentar o setor,
médica e conexão entre promoção e 66,8 dos Estados Unidos. O país, depois de criado um sistema de
da saúde, tratamento e reabilitação. porém, não foi capaz de responder seguro social.
Em 1937, hospitais, farmácias adequadamente à transição epide- André Cezar Medici destaca
e outros estabelecimentos de saúde miológica e ao crescimento das do- o fato de a expectativa de vida
foram nacionalizados e todos os enças crônicas não transmissíveis, na Rússia ser 11 anos mais baixa
profissionais do setor tornaram-se nas décadas seguintes. do que a média da União Europeia
funcionários do Estado. Essa orga- O sistema também sofreu com (62 anos para homens e 74 para
nização resistiu à Segunda Guerra os cortes de gastos durante a Guer- mulheres), principalmente pela
Mundial, conseguindo oferecer ra Fria e com o isolamento de sua mortalidade precoce masculina
atenção à saúde adequada e evitar ciência, diz o documento. provocada por fatores de risco
grandes epidemias. Hoje, avaliam os pesquisa- como alcoolismo, tabagismo e cau-
Em 1938, a expectativa de dores, a base do sistema conti- sas externas (incluindo violência,
vida na Rússia era de 43 anos, nua a mesma: serviços de saúde acidentes de trânsito e suicídio).

2005, o governo investia 0,9% do algumas regiões conseguem imple-


Produto Interno Bruto no setor. A mentar programas bem sucedidos,
Índia maior parte do gasto com saúde mas a diversidade é enorme”, diz.
vinha dos pagamentos diretos por Os serviços públicos de saúde
atendimento, o equivalente a 4,3% foram considerados inadequados e
do PIB — ou seja, 80% do montante de baixa qualidade. O atendimento
destinado à área saíam diretamente no setor privado, por outro lado, tem
TAxa de mortalidade
do bolso dos indianos. A meta do repercussão no acesso e no empobre-
ainda é alta
governo é aumentar o gasto público cimento dos indianos: o quintil (um
Está na Constituição da Índia: “é para 2% ou 3% do PIB até 2012, mas, quintil é qualquer um dos valores de
dever do Estado elevar os níveis de de acordo com o artigo Government uma variável cujo conjunto divide-se
nutrição e de habitação adequada e Health Spending in India (Peter Ber- em cinco partes iguais) mais pobre da
melhorar a saúde pública”. Mas o país man e Rajeev Ahuja), dificilmente população acessa seis vezes menos
com a segunda maior população do será atingida. serviços hospitalares do que o quintil
mundo (1,2 bilhão) tem indicadores “O gasto em saúde na Índia é mais rico; entre os hospitalizados,
não compatíveis com o que estabe- quase 16 vezes menor do que o do 24% saem empobrecidos das unidades
lece a carta: por exemplo, alta taxa Brasil e cerca de 12 vezes menor do devido aos gastos hospitalares.
de mortalidade infantil, em que 66 a que o da Rússia”, compara André Em 2005, seguros de saúde
cada mil nascidos vivos morrem antes Cezar Medici. “O gasto público em cobriam apenas 3% da população —
de completar cinco anos. A expecta- saúde na Índia é também claramente funcionários públicos ou empregados
tiva de vida ao nascer em 2009 era insuficiente: com US$ 10 per capita/ do setor formal. Nesse contexto, um
de 63 anos para os homens e de 66 ano não se pode sequer oferecer grande espaço é preenchido pela
anos para as mulheres. cuidado básico de saúde pública ação de organizações não governa-
Segundo o estudo The landscape necessário à redução da mortalidade mentais, pelo que se chama de Com-
of community health insurance in infantil e materna”, avalia. Para o munity Health Insurance, ou seguro
India: An overview based on 10 case economista, o problema não é só de de saúde comunitário, considerado
studies (Narayanan Devadasan, Kent financiamento, mas também de ges- como um passo intermediário no
Ranson, Wim Van Dammea, Akash tão. “Existe muito pouca coordena- financiamento equânime em saúde,
Acharya e Bart Criel), a causa é o ção entre os níveis central, regionais até que se disponha de um seguro
baixo investimento público. Até e locais na condução do processo; social consolidado.
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e seguros para habitantes rurais e ur- essenciais a preço acessível. A expansão


banos. Mas, a partir do fim dos anos de dos seguros — de 15% em 2003 para 90%
China 1970, reformas econômicas tornaram
esses serviços inacessíveis para parte
este ano — deve ajudar a reduzir os
pagamentos diretos.
dos chineses. O pagamento direto (isto Os seguros urbano e rural são ope-
é, feito pelo próprio cidadão) por aten- rados separadamente e oferecem servi-
dimento saltou de 20% do gasto total ços diferentes. Os programas de saúde
reforma para enfrentar
em saúde em 1980 para 60% em 2000. pública também variam de acordo com
mecanismos de mercado
A reforma do sistema de saúde as regiões. O artigo Universal Coverage
A China está reformando seu chinês tem forte apoio político e finan- of Health Care in China: Challenges and
sistema de Saúde, motivada pela in- ceiro — além do orçamento regular da Opportunities (Meng, Qingyue & Tang,
satisfação dos chineses com o desem- pasta, US$ 126 bilhões foram destinados Shenglan) concluiu que há grandes
penho do setor e pela preocupação apenas entre 2009 e 2011. Um grupo disparidades na atenção à saúde entre
em torno de emergências em saúde técnico está incumbido de avaliar o pro- regiões, áreas urbana e rural e grupos
pública — por exemplo, a Síndrome cesso — dele faz parte o ex-ministro da populacionais na China. Universalizar
Respiratória Aguda Grave, que matou Saúde do Brasil, pesquisador da Escola a saúde, diz o texto, é um desafio num
centenas de habitantes em 2003. O Nacional de Saúde Pública Sergio Arou- país com 1,3 bilhão de habitantes e
governo divulgou em 2009 o plano de ca (Ensp/Fiocruz) e diretor executivo tamanha diversidade.
reforma, cuja meta é universalizar do Instituto Sul-Americano de Governo “Com um gasto em saúde quase
serviços básicos “seguros, efetivos, em Saúde (Isags), José Gomes Tempo- seis vezes menor do que o brasileiro e
convenientes e acessíveis” até 2020. rão, junto a especialistas de Tailândia, cinco vezes menor que o russo, a China
Se bem-sucedido, avalia o Rela- Inglaterra e Austrália. tem a maior expectativa de vida e a
tório Mundial da Saúde 2010, o plano A fim de atingir a cobertura uni- menor taxa de mortalidade materna
vai pôr fim a mecanismos de mercado versal, o governo chinês trabalha sobre entre os Brics”, compara André Cezar
que entraram no setor em 1978. Da quatro bases: programas públicos bá- Medici. Para o economista, esse dado
década de 1950 até então, o país havia sicos para todos os cidadãos, cuidados mostra que o país asiático consegue
estendido a cobertura básica de saúde a médicos de qualidade e eficientes, no- alcançar melhores resultados em aten-
quase toda população, via rede pública vos seguros de saúde e medicamentos ção básica com menor custo.

Depois da independência, as ini- -africano oferece serviços de saúde


quidades foram reforçadas na África do para grupos específicos, como grávidas,
crianças menores de seis anos, pessoas
África do Sul Sul pelo regime de segregação racial
conhecido como apartheid — com privi- com deficiência e idosos, isenção de pa-
légio de atendimento nas cidades e com gamento para os mais pobres e atenção
filas separadas por cor. Nessa época, básica gratuita para todos.
começaram a surgir organizações pri- Em 2009, a probabilidade de
Luta contra os males
vadas que ofereciam planos de saúde uma criança morrer na África do Sul
de um sistema desigual
para trabalhadores brancos. antes de completar cinco anos era
Durante o período colonial, gran- Nos anos 1980, o país seguiu a de 62 para cada mil nascidos vivos. A
de parte dos países da África, a África receita do Banco Mundial e do Fundo expectativa de vida ao nascer era de
do Sul incluída, organizaram seus sis- Monetário Internacional e levou à 54 anos para os homens e de 55 para
temas de saúde essencialmente para frente reforma para reduzir os gastos as mulheres. Esse dado, segundo a
beneficiar uma pequena elite — os públicos, permitindo o crescimento do OMS, tem a ver com a alta prevalên-
serviços eram oferecidos em hospitais setor privado da saúde e a fragmen- cia do vírus HIV entre sul-africanos
nas áreas urbanas, via pagamento tação do sistema. Os planos cobrem o com idade entre 15 e 49 anos (17,64%
direto pelo atendimento. O restante grupo mais rico do país enquanto exclui em 2007) e entre grávidas — apenas
da população precisava recorrer a os mais vulneráveis, que dependem dos as que fazem pré-natal e, assim, têm
curandeiros ou a missionários, como serviços públicos e pagam taxas pelo algum registro — (29,1% em 2006). O
informa o artigo Beyond fragmentation atendimento (com exceção dos serviços país também sofre com alta taxa de
and towards universal coverage: insi- de atenção básica, esses gratuitos). mortalidade materna, tuberculose,
ghts from Ghana, South Africa and the Para aliviar os males de um sis- doenças cardiovasculares, violência
United Republic of Tanzania. tema não universal, o governo sul- e acidentes de trânsito.

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