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GT: ESTUDIOS DE RECEPCIÓN

Multiculturalismo e esfera midiática:


a (re)descoberta dos 500 Anos na mídia brasileira
Denise Cogo1
Fabrício Silveira 2

“Os descobrimentos de Quinhentos são como que a metáfora


fundadora da negação moderna da reciprocidade. São, pois, tão
decisivos como descobrimentos quanto como encobrimentos.”
(Boaventura de Sousa Santos)

Desde abril de 1998, as comemorações dos 500 Anos da Descoberta do Brasil vêm

se convertendo em campo privilegiado de produção do sentido na esfera mídiática

brasileira. No marco do projeto intitulado Brasil 500, a Fundação Roberto Marinho e a

Rede Globo desencadearam uma programação especial, veiculada em diferentes mídias,

constituída de um amplo calendário de eventos envolvendo três esferas – a festa, a história

e a ação educacional –. culminando com o encerramento marcado para abril de 2000. 3

Os processos de produção de sentido em torno dos 500 Anos são assumidos,

posteriormente, por outras empresas de comunicação, como o Grupo Folha e o Sistema

Brasileiro de Televisão, por mídias regionais, ou, ainda, por fundações culturais,

universidades, entidades governamentais, sindicatos e ONGs, que se valem igualmente de

espaços mídiáticos como a televisão, os meios impressos e a Internet, para proporem

abordagens em torno das comemorações do Descobrimento do Brasil.

Com base na constituição de um corpus de análise com matérias sobre os 500 Anos

produzidas e veiculadas pela mídia no Brasil entre 1999 e 2000, o projeto de pesquisa

intitulado Multiculturalismo e esfera midiática: a (re)descoberta dos 500 Anos na mídia

1
Professora e pesquisadora do Curso de Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos),
em São Leopoldo, RS, Brasil, e doutoranda em Ciências da Comunicação na Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo
2
Professor e pesquisador do Curso de Ciências da Comunicação e doutorando no Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo, RS, Brasil.
2

4
brasileira tem como objeto de estudo a análise dos processos de produção de sentido

sobre os 500 Anos na esfera midiática brasileira envolvendo as interpretações dos sujeitos

produtores (jornalistas, publicitários e intelectuais) e dos receptores (distintos segmentos da

audiência brasileira) desses discursos. Em última instância, o projeto visa a compreender

como as estratégias discursivas da mídia em torno da celebração dos 500 anos

descobrimento do Brasil potencializam ressignificações dos sujeitos produtores e receptores

acerca da plural e controversa noção de identidade cultural, um dos principais eixos

conformadores do debate na esfera do multiculturalismo.

Se, no campo dos estudos de audiência, o reconhecimento da mídia como cenário

de negociação de sentidos tem sido assumido, de forma crescente, a partir dos estudos de

audiência, o mesmo não se observa no que se refere à abordagem da mídia e das

identidades culturais por muitos dos teóricos do multiculturalismo. Principalmente a

partir de um modelo denominado de Corporated, Difference ou Managed

Multiculturalism por teóricos como Henry Giroux 5, Peter McLaren6 e David Goldberg7 ,

há uma insistência em simplesmente denunciar o caráter ideológico de um tipo de

multiculturalismo que “faz da diferença o argumento de venda”, em que é criticada a

constituição do que os autores denominam de “exitosos cenários de gestão dessa

diferença”, a partir da exploração, por exemplo, de imagens envolvendo questões de

identidades e dinâmicas culturais que incluem grupos étnicos, conflitos bélicos,

3
Para maiores detalhes, ver http//:www.brasil500.com.br
4
Esse artigo resulta do projeto de pesquisa com o mesmo nome desenvolvido, desde agosto de 99, junto à linha de
pesquisa Mídia e Processos Socioculturais do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos , em
São Leopoldo, RS, Brasil, contando com a participação dos autores desse trabalho, dos professores Pedro Gilberto Gomes,
Antonio Fausto Neto, José Luis Recktiziegel e das bolsistas de iniciação científica Ana Paula Russo Dalcol e Daniele
Sinhorelli.
5
GIROUX, Henry. Um cambio social arrollador: los colores unidos de Benetton. Placeres inquietantes – aprendiendo
la cultura popular. Barcelona, Paidós, 1996.
6
McLAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. São Paulo, Cortex, 1997
3

problemas sociais, etc. O exemplo clássico é a publicidade produzida para a Benetton

pelo fotógrafo italiano Oliviero Toscani, alvo insistente das críticas de teóricos como

Henry Giroux. 8

Embora a mídia seja uma referência permanente em textos e reflexões sobre

multiculturalismo, não há preocupação em estudar o papel desempenhado pelos meios

de comunicação como os lugares onde cada vez mais se elaboram, se negociam e se

difundem os discursos, os valores e as identidades. Faltam estudos que busquem

compreender o que se preocupa enfatizar o pesquisador Andrea Semprini 9: que o atual

aprofundamento dos conflitos culturais, objeto privilegiado nas análise do

multiculturalismo, deriva, em grande medida, das possibilidades de maior circulação

social e de um crescimento da comunicação entre grupos, indivíduos e sistemas de

valores, sobretudo via esfera midiática.

Os estudos dos processos de produção de sentido entre produtores e receptores da

comunicação podem enriquecer o debate multicultural no que se refere tanto à relativização

do poder da mídia como à compreensão do caráter político que assumem as

ressignificações dos discursos no âmbito do debate pós-colonial sobre as identidades

culturais e a diferença. 10 Ao não permitir a separação entre passado colonial e presente pós-

colonial, os pesquisadores dos estudos pós-coloniais empenham-se em examinar os

processos de reconfiguração dos encontros coloniais após os períodos de colonização,

enfatizando “a multiciplicidade de maneiras pelas quais as relações coloniais são mantidas

7
GOLDBERG, David Theo. Introduction: Multicultural conditions. In: GOLDBERG, David Theo. Multiculturalism - a
critical reader. Bacwell, Oxford, 1997.
8
GIROUX, Henry. Op. cit., . p. 17-47.
9
SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Bauru, EDUSC, 1999.
10
A produção de sentido dos 500 Anos na mídia brasileira do projeto de pesquisa em questão vincula-se ao debate pós-
colonial ao discutir, desde a perspectiva dos contextos de produção e do consumo de textos midiáticos, as releituras e
reatualizações sobre os contatos culturais desencadeados no marco do processo colonizador envolvendo Brasil e Portugal.
4

e reprocessadas enquanto relações materiais e discursivas de antagonismo e resistência, de

penetração e distanciamento, e como isso afeta constitucionalmente as formas de vida e de


11
convivência humana em escala global”

Além disso, se a emergência de um paradigma multicultural, no marco do qual se

situa esse projeto, deriva da conversão crescente do espaço público em um espaço

sociocultural, as reconfigurações desses espaço merecem ser estudadas do ponto de vista

dos diferentes atores ou das múltiplas “vozes” que o ocupam, o disputam, o reconfiguram

e, enfim, se encarregam de sua gestão (jornalistas, publicitários, intelectuais, receptores).

Dos “modos de narrar” os 500 Anos às múltiplas vozes enunciadoras do nacional

Mapeamento e análise preliminar do material disponibilizado pela mídia até o

momento permite localizar, no âmbito do projeto de pesquisa, seis grandes “modos de

narrar” o Brasil e as comemorações do descobrimento e em torno das quais se constróem as

abordagens dos 500 Anos e das identidades culturais. Mais do que um modelo rígido ou um

conjunto formal e acabado de explicações, as identidades são entendidas como “uma

construção que se relata”, segundo as palavras do argentino Néstor García Canclini 12, ou,

ainda, como representação social que, na visão da historiadora Sandra Pesavento “formula

uma maneira de ser que é inventada ou importada, mas é assumida e consentida, o que

implica sempre sedução e convencimento. É uma forma imaginária de conceber-se a si


13
próprio que conforta, que dá segurança, marca presença no espaço e no tempo.”

Em tais formas de narrar as identidades articulam-se, ainda, uma multiplicidade de

registros que, suporta o fenômeno identitário, podendo se superpor em um mesmo

11
PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da diferença. São Paulo, Editora 34, 1999.
12
GARCIA CANCLINI, Nestor. Cultura y comunicación: entre lo global y lo local. La Plata, Faculdadede Periodismo
y Comunicación Social – Universidad Nacional de la Plata, 1997 (Ediciones de Periodismo y Comunicación nº 9).
13
PESAVENTO, Sandra Jatahy. A cor da alma: ambivalências e ambigüidades da identidade nacional. Ensaios FEE.
Porto Alegre, v. 20, nº 1, p. 125.
5

indivíduo recortes que abarcam, por um lado, o continental, o nacional, o regional, o local

e, por outro, estabelecem distinções de ordem do etário, da classe, do gênero, do étnico, do

racial, do profissional, etc. 14

Os seguintes “modos de narrar” as identidades culturais aparecem articulados nos

textos midiáticos sobre os 500 Anos mapeados até o momento:

1. As (re)leituras históricas das relações com o Outro colonizador

2. O Brasil pluriétnico, como resultado dos processos de colonização e das migrações, que

culminaram com a configuração de uma nação mestiça ou morena e de lugar

privilegiado para a convivência multicultural.

3. A identidade nacional como paradigma exportável: o lúdico, o estético e o exótico na

correspondência entre identidade construída e alteridade atribuída ao Brasil pelo

estrangeiro.

4. Os Outros internos: as ambigüidades nas combinações/exclusões do regional na

conformação identitária brasileira.

5. O Brasil “global” e seu (re)posicionamento no marco das redefinições dos vínculo entre

“nações” ou territórios, em que a educação desponta como a principal via de acesso ao

status primeiro mundista, mesmo que sua conquista seja jogada para um futuro

distante.15

Essas “formas de dizer” as identidades permite afirmar, ainda, que as narrativas dos

500 Anos da mídia brasileira são herdeiras das formas modernas de comemoração que

emergem no final do século XVIII, cujos principais beneficiários são o estado nacional, o

nacionalismo e as identidades, conduzindo ao que o pesquisador brasileiro Jobson Arruda

14
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. cit.
15
Do corpus de matérias midiáticas mapeadas até o momento, já constam elencados e analisados vários exemplos
representativos de cada uma dessas “formas de narrar” que não serão, contudo, detalhados nesse paper.
6

define como “adensamento da comunhão de sentimentos e ideais, passo decisivo na

constituição da comunidade imaginária, pelo reforço da noção de pertencimento.” 16

É nessa perspectiva de reafirmação do sentido de pertencimento à nação como

“comunidade imaginada”, segundo a concepção inaugurada por Benedict Anderson 17, que

se insere, em grande medida, a ênfase discursiva no nacional como posição identitária nos

processos de produção de sentido sobre os 500 Anos no cenário midiático brasileiro.

Paradoxalmente, tal ênfase coincide com um momento em que se assinala a debilidade

crescente dos estados-nação frente à emergência da sociedade global e ao mesmo tempo a

renúncia de um projeto nacional, a partir, sobretudo, do aprofundamento dos processos de

privatização no marco de políticas de cunho neoliberal adotadas por países latino-

americanos, dentre os quais o Brasil.

A identidade nacional retorna, assim, convertida na grande epopéia fundante da

narrativa dos 500 Anos da mídia brasileira, numa espécie de recomposição do ideário de

nação promovido no âmbito do projeto desenvolvimentista dos anos 60 18. Duas óticas – a

cultura nacional popular e o patrimônio – herdeiras do ideário de construção da nação

brasileira da década de 60 19, aparecem (re) enunciadas hoje, de forma articulada, na

programação dos 500 Anos, quando, por exemplo, o Canal Futura 20, leva ao ar a série

Identidade Brasil, um telecurso com 15 programas cuja proposta é “revelar o patrimônio

material e imaterial do Brasil, através das diversas manifestações culturais que formam a

16
ARRUDA, José Jobson de Andrade. O Trágico 5º Centenário do Descobrimento do Brasil – comemorar, celebrar,
refletir. Bauru. EDUSC, 1999Op. cit., p. 10.
17
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas – reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo.
Mexico, Fondo de Cultura Económica, 1997.
18
A construção de Brasília ou, ainda, a estética do cinema novo de Glauber Rocha despontam como exemplos desse
ideário.
19
Segundo o pesquisador brasileiro José Teixeira Coelho, os intelectuais de esquerda empenham-se em fundar a idéia de
nação em cima do popular ou de uma cultura nacional popular (cultura popular voltada à integração de todas as classes),
ao passo que “direita” se mobiliza em constituir a nação a partir da noção de patrimônio nacional como preservação da
idéia de passado e como orientadora da idéia de país.
20
Emissora a cabo de caráter educativo pertencente ao sistema Globosat
7

identidade do país.” 21 Nessa convergência entre patrimônio histórico e cultura nacional

popular insere-se, ainda, a polêmica protagonizada na mídia em torno do lançamento do

hino dos 500 Anos encomendado pelo Ministro do Esporte e Turismo, Rafael Greca, aos

cantores sertanejos Chitãozinho e Chororó e celebrado ao estilo do “Eu te amo meu Brasil”

do governo militar.

Na perspectiva da nacionalidade, são as vozes dos intelectuais (historiadores,

cientistas políticos, escritores, etc) 22, sobretudo nos espaços de opinião da mídia brasileira,

que tratam de enfatizar a renúncia a um projeto nacional em suas reflexões sobre os 500

Anos de descobrimento do Brasil, seja enfatizando as distintas temporalidades ou as

lógicas da inclusão/exclusão que configuram nossa comunidade nacional, seja denunciando

a opção por um projeto de nação pautado no consentimento de uma inserção desordenada

no mercado global e a manutenção das desigualdades sociais. Tais reflexões emergem

como uma espécie de memória residual do fracasso de um imaginário desenvolvimentista

que se encarregou de manter o Primeiro Mundo como alteridade,.

Aponta para isso a crítica formulada pelo jornalista Clóvis Rossi na Folha de São

Paulo acerca do lançamento da bolsa latino-americana em Madri, onde, segundo enfatiza no

artigo, “serão cotadas as ações de empresas do subcontinente (na verdade, muito mais as de

empresas espanholas instaladas no subcontinente do que outra coisa).”23 Ao enfatizar que

não é pretensão excessiva imaginar que, por sua extensão territorial e abundância de

riquezas naturais, é o Brasil que deveria estar usando a Espanha como ponte para atingir a

Europa, Rossi reafirma justamente do que carece o Brasil:

21
Ver http://www.futura.org.br/site/home/01.htm
22
Aqui também enquadram-se alguns jornalistas (articulistas) que têm privilegiado em suas trajetórias reflexões mais
aprofundadas sobre a sociedade brasileira, como é o caso de Clóvis Rossi.
23
ROSSI, Clóvis. Caravelas de papéis. Folha de São Paulo. 06 de novembro de 1999, p. 2.
8

[...] Falta-lhe, é claro, história. Mesmo assim, 500 anos já deveria ter sido tempo suficiente
para que o país produzisse algo mais consistente, em matéria de economia, do que o que
tem hoje. Mais que história, portanto, parece faltar ao país, desde sempre, um projeto
nacional.24

Segundo Sandra Pesavento, desde a Independência do país, em 1822, são os

intelectuais brasileiros que têm se incumbido de dar respostas à ambivalência e

ambigüidade das questões identitárias básicas como imperativo para a construção da

nacionalidade ou de um projeto de nação. A principal delas faz referência à recomposição

do mito das origens, cuja mestiçagem é a metáfora definidora por excelência de um Brasil

que “já nasce como mestiço e cuja alma já vem marcada pela cor” 25

Tomando como mote os 500 Anos, sucedem-se pensadores, cujas vozes, no cenário

da mídia, assumem a tarefa de desmistificar uma mestiçagem celebrada sistematicamente

sobretudo pela retórica governamental em âmbito federal, cuja síntese é o discurso

intitulado Nossos 500 Anos proferido pelo “presidente-intelectual”, Fernando Henrique

Cardoso, na véspera da virada do ano 2000 durante a abertura oficial das comemorações

dos 500 Anos de Descoberta do Brasil.

Somos talvez a maior nação multirracial e multicultural do mundo ocidental, senão em


número de habitantes, na capacidade integradora da civilização que fundamos. Essa
diversidade e sua mestiçagem constituem a marca do nosso povo, o orgulho de nosso
país, o emblema que sustentamos no pórtico do nosso século. E essa identidade dá-nos a
base para a entrada do novo milênio, o da civilização global, nos distingüe pelos valores
da tolerância, permite que reflitamos, a partir dela, o quanto conseguimos caminhar
nesses 500 anos.26

No mesmo tom celebrativo, ancora-se a decoração do Natal 99 inspirada nos 500

Anos de Descobrimento e criada pelo carnavalesco-intelectual Joãosinho Trinta para os

shoppings centers Iguatemi em todo o Brasil 27. Os presépios e a oficina do papai noel

24
ROSSI, Clóvis. Op. cit., p. 2.
25
PESAVENTO, Sandra. Op. cit.,
26
ABERTA a festa dos 500 Anos do Brasil. Zero Hora. Porto Alegre, 02/01/2000, p. 6
27
Joãosinho Trinta é um dos mais famosos carnavelescos brasileiros. Atuou vários anos como idealizador dos desfile da
escolas de samba Beija Flor do Rio de Janeiro.
9

tomam como referência um padrão de constituição de nacionalidade “imaginada” em torno

da chamada fábula das três raças – branco, índio e negro -, deixando de fazer alusão ao

processo de mudança no sentimento de nacionalidade experimentada a partir da emergência

de uma nova geração de brasileiros descendentes de imigrantes italianos, espanhóis,

alemães e japoneses na vida econômica e social dos estados brasileiros do sudeste e sul,

como Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro. 28

A essa celebração de uma miscigenação racial ou de uma mestiçagem como

recomposição de uma gênese nacional e, agora passaporte para a sociedade global, que têm

pautado os discursos governamentais sobre os 500 Anos, se opõem os discursos de

denúncia de intelectuais engajados em movimentos sociais como o da filósofa Sueli

Carneiro, coordenadora-executiva do Programa de Direitos Humanos/SOS Racismo

Geledés Instituto da Mulher Negra. “Um projeto de hegemonia branca e exclusão e

admissão minoritária e subordinada dos negros, indígenas e não-brancos em geral” é o

projeto de nação que, segundo Sueli Carneiro, o imaginário televisivo busca consolidar para
29
o próximo milênio a partir da telenovela Terra Nostra . Carneiro alerta para o impacto

positivo que a telenovela tem tido sobre a auto-estima da comunidade ítalo-brasileira em

contraponto aos efeitos negativos sobre a população afro-brasileira. “[...] os negros, ao

contrário, permanecem se defrontando nessa novela com as questões básicas que envolvem

as suas contradições com a mídia em geral: a invisibilidade ou a visibilidade perversa,

recheada de estereótipos.” 30, denuncia a filósofa, para enfatizar o quanto a metáfora

28
O “embranquecimento” passou, portanto, a significar “a capacidade da nação brasileira (definida como uma extensão da
civilização européia, em que uma nova raça emergia) de absorver e integrar mestiços e pretos. O que supõe,
implicitamente, a concordância das pessoas de cor em renegar sua ancestralidade africana ou indígena.
“‟Embranquecimento‟ e „democracia racial‟ são, pois, conceitos de um novo discurso racialista. Ver GUIMARÃES,
Antonio Sergio Alfredo. Racismo e Anti-Racismo no Brasil. São Paulo, Editora 34, 1999, p. 51
1. 29 A estratégia de marketing do lançamento da telenovela Terra Nostra esteve orientado a vincular o novo produto
cultural à comemoração dos 500 Anos de Descobrimento do Brasil.
30
CARNEIRO, Sueli. “Terra Nostra” só para os italianos. Folha de São Paulo. 27 dez. 1999, p. 1-3.
10

conciliatória da identidade nacional aparece revigorada como dissimuladora da conflitiva

diversidade cultural conformadora da nação brasileira.

Na mesma perspectiva, despontam contradiscursos, nomeados Outros 500, como

aquele em construção no âmbito do projeto lançado em 15 de novembro de 1999, dia

Nacional na Consciência Negra, pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul em parceria
31
com a Prefeitura de Porto Alegre, sob a denominação de Aqui são outros 500. Com

ênfase em uma perspectiva pós-colonial, em tais discursos aparece subjacente críticas à

vigência de diferentes formas de colonialismos nos discursos celebrativos dos 500 Anos.

Em “contraposição ao discurso oficial”, intitula-se também o projeto Brasil Outros 500,

uma iniciativa de entidades ligadas aos movimentos sociais 32 e desenvolvida a partir de um

site sobre história do Brasil criado na Internet. Os 500 Anos são enunciados pelo conjunto

de entidades como polarização e como busca da “verdade” histórica em contraponto ao

Brasil 500 do governo federal que “através de recursos das áreas de educação, cultura e

comunidade solidária se une aos detentores das grandes mídias de comunicação para

capitanear um pool de iniciativas públicas e privadas.” 33

Dessas distintas posições discursivas que se confrontam no cenário da mídia em

torno de um suposto ideário nacional, a mestiçagem aparece ora para recompor o mito de

origem ora para revelar a ambigüidade identitária derivada do empreendimento inacabado

de hibridização cultural do continente latino-americano. Para Peter McLaren. 34, a

mestiçagem chegou, em alguns casos, na América Latina, a um nível de contradiscurso

31
Vale destacar que, embora esse seja também um discurso governamental, tem como especificidade ser produzido no
contexto de um governo com perfil de esquerda, como é o caso do Partido dos Trabalhadores que ocupa a Prefeitura de
Porto Alegre e o Governo do Estado do Rio Grande do Sul, que tem se configurado como oposição política ao governo
federal.
32
Ver http://www.brasil-outros500.com.br
33
Ver http://www.brasil-outros500.com.br
34
MCLAREN, Peter. Pluralidade cultural: a diversidade na educação democrática. Pátio – Revista Pedagógica, nº 6,
ago./out. 1998, p. 2.
11

verdadeiramente crítico com aspirações à práxis revolucionária ao passo que, em outros

momentos, ela foi apropriada pelos discursos e pelas práticas do Estado.

Como fruto da exigência de formatação do discurso científico como uma

imposição do campo jornalístico apontada por Pierre Bourdieu 35, emerge ainda, no campo

enunciativo dos 500 Anos, o jornalista-historiador, uma espécie de híbrido ao qual é

atribuído, de forma privilegiada, no espaço midiático, a tarefa de revitalização da

historiografia dos descobrimentos, tarefa assumida tradicionalmente por historiadores do

campo acadêmico. 36

Sobre intenções e procedimentos metodológicos

Assim, perseguir as “formas de narrar” as identidades e a nação na esfera midiática,

implica, como procedimento metodológico, mapear o próprio campo da mídia, localizando

e apresentando os textos midiáticos e os meios onde são veiculados, situando as relações

entre estes “produtores de discursos”, indicando o público a que se dirigem, os gêneros e

temáticas privilegiados, assim como as dimensões narrativas sobre as identidade mais


37
freqüentemente enfatizadas. Enfim, comparar a incidência de um mesmo “modo de

dizer” a brasilidade em uma em várias mídias; explorando os modos como cada mídia

compõe diversas versões temáticas do Brasil ou enfrenta cada um dos “modos narrativos”

apontados. O atual processo de segmentação do mercado comunicacional se constitui como

o contexto de análise da produção de sentido sobre os 500 Anos à medida em que se

35
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro, Zahar, 1997.
36
Exemplos de jornalistas-historiadores são Eduardo BUENO com as obras Náufragos, traficantes e degredados - as
primeiras expedições ao Brasil :1500-1531. (1ª. edição). Rio de Janeiro, Objetiva, 1998. A viagem do descobrimento –
a verdadeira história da expedição de Cabral. Rio de Janeiro, Objetiva, 1998. Capitães do Brasil. Rio de Janeiro,
Objetiva, 1999; Jorge CALDEIRA, com o obra A nação mercantilista. São Paulo, Editora 34, 1999 e CALDEIRA, Jorge
et al. Viagem pela história do Brasil. (2 ª edição). São Paulo, Cia. das Letras, 1997 e Walter GALVANI com a obra Nau
Capitânia – Pedro Álvares Cabral, como e com quem começamos. Rio de Janeiro, Record, 1998. Os historiadores de
formação acadêmica seguem, contudo, presentes na mídia, sobretudo nos espaços de opinião para proporem (re)leituras
históricas sobre as relações com o Outro colonizador, embora não alcancem o sucesso dos jornalistas-historiadores.
37
A conclusão da etapa de coleta das matérias midiáticas está prevista para abril de 2000, quando se encerra oficialmente
a programação comemorativa dos 500 Anos.
12

configura como um fenômeno ao mesmo tempo tributário e provocador das fra gmentações

identitárias.38

Os esforços de “localizar” os “modos de narrar” a brasilidade no espaço midiático

está se dando, no âmbito do projeto de pesquisa, com o auxílio de um grupo de discussão

on line batizado de “Observatório de Imprensa” e integrado por dez “observadores”

situados em várias cidades brasileiras e no exterior, que se encarregam, quinzenalmente, de

enviar e debater, via a rede, o material coletado sobre o tema nas mídias regionais 39.

O mapeamento e a análise discursiva dos textos midiáticos sobre os 500 Anos

servirá como suporte para a etapa seguinte da pesquisa, que consiste em identificar e

analisar os modos como produtores (jornalistas, publicitários, intelectuais, representantes

governamentais) e receptores se posicionam em relação a estes textos sobre os 500 Anos, a

partir de entrevistas semi-estruturadas e grupos de discussão presenciais e via internet. Em

grande medida, isso já está sendo sistematizado no contexto da atual experiência do

observatório de imprensa, em que as intervenções de cada um dos participantes estão sendo

analisadas pela equipe da pesquisa como seleções e interpretações dos discursos sobre os

500 anos mediados por recortes identitários específicos (étnico, religioso, militante, etc).

Outra experiência no campo da recepção foi experimentada, em dezembro de 1999,

através de uma intervenção etnográfica que teve como objetivo coletar as impressões dos

freqüentadores e do setor de marketing do shopping Center Iguatemi, em Porto Alegre,

sobre o Natal das três raças idealizado por Joãosinho Trinta. 40

38
O incremento significativo de publicações impressas orientadas a universos identitários específicos como negros, gays,
mulheres, terceira idade, sexualidade (inclusive, on line), no contexto brasileiro, exemplifica esse fenômeno.
39
Os “observadores”, participantes do seminário de extensão em desenvolvimento desde setembro de 1999, estão
mapeando mídias em Minas Gerais, Paraíba, Maranhão, Santa Catarina, São Leopoldo, Porto Alegre, Uruguai e Bolívia,a
partir de uma metodologia estabelecida em conjunto com a equipe de pesquisadores da Unisinos.
40
A intervenção está documentação em suporte videográfico.
13

Título do trabalho: Multiculturalismo e esfera midiática: a (re) descoberta dos 500 Anos
na mídia brasileira

Autores:
1. Denise Cogo: professora e pesquisadora do Curso de Ciências da Comunicação da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo – RS – Brasil e doutoranda
em Ciências da Comunicação na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo
2. Endereço:
R. Luiz de Camões 131/202
Porto Alegre – RS – CEP 90.620-150
BRASIL
Fone: 021 51 219-5161
E-mail: denisecogo@uol.com.br
cogo@midias.unisinos.br

2. Fabrício Silveira: professor e pesquisador do Curso de Ciências da Comunicação e


doutorando em Ciências da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo –
RS – Brasil
E-mail: fabriciosilveira@zaz.com.br
fabricio@midias.unisinos.br

Linha de investigação dos autores: Mídia e processos socioculturais

GT: Estudios de Recepción

Coordenador: Prof. Dr. Guillermo Orozco Gómez

Resumo

Desde dezembro de 1998, as comemorações dos 500 Anos de “Descoberta” do


Brasil vem se convertendo em campo privilegiado de produção de sentido na esfera
midiática. No marco do projeto Brasil 500, a Fundação Roberto Marinho e Rede Globo
desencadearam uma ampla programação veiculada por emissoras de tevês aberta e a ca bo,
pela mídia impressa e pela Internet. Esse processo é assumido, posteriormente, por outros
grupos de comunicação nacionais como SBT, Grupo Folha e Editora Abril, e por
universidades, entidades governamentais e ONGs.
Esse conjunto de discursos da mídia sobre os 500 Anos sugerem pelo menos seis
modos de “narrar” a (re) descoberta do Brasil e o própria dinâmica de constituição das
identidades culturais no contexto brasileiro:
1. As (re)leituras históricas das relações com o Outro colonizador
2. O Brasil mestiço, como resultado dos processos de colonização e imigração.
3. A identidade nacional como paradigma exportável: o lúdico, o estético e o exótico na
correspondência entre identidade construída e alteridade atribuída ao Brasil pelo
estrangeiro.
14

4. A (re) atualização das tensões entre as distintas temporalidades nacionais: bárbarie e


exotismo versus “tecnologização” e sofisticação.
5. Os Outros internos: as ambigüidades nas combinações/exclusões do regional na
conformação identitária
6. Os Outros externos: o lugar do Brasil na sociedade global e as (re)definições de seus
vínculos com outras “nações”/territórios, inclusive, a (re)afirmação de sua
especificidade frente à América Latina.
Tomando como ponto de partida essas dimensões, o percurso metodológico da
pesquisa está baseado na constituição de um corpus de análise com matérias sobre os 500
Anos veiculadas pela mídia brasileira entre abril de 1999 e abril de 2000. Uma primeira
etapa consiste na análise discursiva das matérias midiáticas, e uma segunda etapa empírica
envolve o estudo da produção de sentido entre produtores (jornalistas, publicitários e
intelectuais) e receptores (distintos segmentos da audiência), buscando compreender os
processos de ressignificação das identidades culturais potencializadas pelos discursos
midiáticos sobre os 500 Anos.
A coleta de matérias midiáticas, assim como o estudo de recepção, se amparam na
implementação, em nível de extensão universitária, de um Observatório de Imprensa via
Internet, com participantes de diferentes regiões brasileiras.
O estudo da produção de sentido sobre os 500 Anos permite analisar, ainda, as
concepções de modelos multiculturais de gestão da “diferença” cultural que derivam das
perspectivas de produtores, intelectuais e receptores bem como suas repercussões na
conversão do espaço público em um espaço essencialmente sócio-cultural via intervenção
na esfera midiática.

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