Você está na página 1de 10

EDGAR MORIN

t
Isto indica-nos que as investigações sobre as representações, imagens
I'!
imaginários, símbolos, signos devem actualmente avcnturarase na enân.ci'
~ no risco. O erro capital seria crer que cada uma dispõe de um ~
trato discip~ar. ou t:ór_icC.:, ou ainda cr~r que bast~ 3onstitui~ equipas
ou asser.uble1as 1uterdiscrphnares par.a cnar as condiçoes de fiabilidade
do trabalho de investigação ...
A cn,se da cultura cultivada

A cultura cultivada

Temos agora de enfrentar os dois dragões culturais que nos barram


ia entrada dos problemas: a cultura cultivada e a cultura de massa.
! A cultura cultivada foi sempre ao mesmo tempo segunda, secundária.
I~ essencial na história da nossa sociedade. Segunda, no sentido em que
:g hierarquia cultural a faz passar depois da cultura religiosa ou nacional;
[secundária; no sentido cm que é uma cultura vivida no plano estético
)e não portadora de verdades imperiosas como as da fé ou da ciência.
JDe facto, a cultura cultivada parece ser o ornamento~ o antidoto, a
Jrnáscara na sociedade aristocrática~ burguesa~ empresarial, técnica~ guer-
jreira~ E, contudo, é ao mesmo tempo essencial: e:ra esta a cultura que
]se dispensava nos colégios aos filhos das élites dominantes, e que agora
·se pretende espalhar como se devesse ter alguma função secreta e maxa-
l
i
vilhosa no :mais íntimo da personalidade~
A cultura cultivada constitui um sistema cujos traços distintivos
!vamos tentar considerar.
O saber que a constituí é o saber das humanidades com raizes
\greco~latinas; é de carácter literário-artístico. Este saber é profa:uo~laico;
lpode ou completar o saber religioso co:m conhecimentos profanos ou

l
tornar~se u:ma base da laicidade, substituindo a teologia pelas huma.:o.i~
,dade.s. Estas hu.m.anidades constituem de facto um saber hu:man:ístico
(que se interessa ac:Una de tudo pelo destino do homem no mundo)~
húmus dos diversos hu:rnanismos. O saber greco~latino caiu progressiva~
mente em. obsolescência e foi substituído por um saber ensaísta~ sim.ul~
raneam..ente para:filosófico e paracicntifico, mas não especializado, ou seja~
~e se propunha? como o saber das antigas humanidades, prover à cultura
l~eral de um «homem honrado)). .
O código constitutivo deste saber é de natureza cognitiva c estética.
Possuir as suas humanidades não é simplesmente conhecer o que J\.fon-
IJtaigne, Pascal, La Rochcfoucauld, etc~ disseram. sohre a natureza humana
"é ta:mbém. apreciar a sua a:rte de dizer e poder exprimir-se segundo os
~tatutos de iuna linguagem literária subtilmente idêntica à linguagem
normal e 'diferente dela. Assim. 7 a posse do código estético~cognitivo

272 273
lB. U ,·39 - 18
)
EDGAR MORIN SOCIOLOGIA

confere um duplo e subtil fundamento ao elitismo (esoterismo e . Esta extren1.a valori'.r--ação é sim.ultanea:r:nente causa e consequência
• o ) ., ma,lDT
· · ou _meduos :requ~tado~ mais ou :tnen~
""xsto
0
crahtismd .?u. m.denorul.,mrus extremo elitismo da cultura cultivada. É necessária uma aprendizagem
f ec a o., 9?-e e proprro a c tura cu1_!iva a.. caracter estético do cúdig

~~
A.
ais ou menos longa e qualidades :mais .ou menos subtis para se apro~
I?errrute ligar a . su_a
. posse ao gosto c a qualidade pessoal do seu detent 0 'ar elo seu código cujos últimos a:rcanos estão reserv~dos apenas aos
O uso m.onopolístwo aparece aos seus beneficiários da intelligcntsia, o:r. ~utíssim.os mandarins ou aos génios da expressão. A:sim'1 vemos ?itida-
das classes superiores, não como um privilégio socíológico mas c 01110 ou
= nte: 1) 1..nna distinção global e brutal opor os cultivados .aos barbares
ll,(~ceÕcios, plouks, filistinos, b. o. f., p~rte1"r)os, etc. ): aos q~aís_ está iti~ter~
2
dom pessoal.
Os padrões-modelos desta cultura conjugam~se para formar a · ~lo 0 acesso aos campos elísios cu~urars;. 1..:ma 1n~rarqurza~o con nua
gem ideal _do . J::ome~ cultivado: a qual passa do contexto a:ristocr:~ 41; .seio da cultura, desde os escaloe~ :r::a1s baixos '::te aos mars altos, q::c
10
para o d.o Indi-.;'ldualismo burgues. Trata-se não só de esquemas estéticos n<~ntêm a sua margem de superrondade atraves de uma renova_çao
de . gosto e de esquemas cognitivos humanisticos mas também d t'l.lnstante da z.ona esotérica do código (com a vanguarda, a arte viva,
patterns culturais no pleno sentido do termo~ que determinam e o:rient e l~ cultura viva~ etc.). São praticamente os mes:mos processos que os da
a formação, a estruturação e a eJ:..-pressão das percepções, dos sentimen: Jrooda, em que a élite mantém., ~a . rer:_ovação das formas, uns meses de
- nomeada1n.ente o amor - r y numa palavra e 0alobalmente: da sensih· hranço sob :r e as co.ortes que assrmrlarao as novas f?rmas no momento
lidade e da pe:rsonalidade. Ao mes.tp.o tempo, esta cultura cultivad~ ~~ que a élite tiver adoptado out::ras. Além disso, o culto da originalidade
garante e proporciona um.a ampla e profu.n.da esteticização da vida· :1 da unicidade (hipertrofiado nomeadan.1.ente no domínio da pintura en1.

dispõe aos prazeres de análise-gozo na relação vivida com os outros ~ !que, entre dois quadros idênticos, o original v~le uma for~;?-a e a ?ópia
eom <: n;:u~do; afirma que a relação com o Belo é uma verdade profunda
da cx1stenoa e que a obra de arte é depositária, sob uma forma embrio. I
ii preço de um objecto manufacturado) permite a uma ehte restnta 8.
loropriação dos objectos originais e o convívio c.om os artistas.
j~ A bern dizer~ há dois elitism.os q.ue se disputam e partilham a cul-
náxia e residual? daqu.:ilo que aparece co:tno sagrado na religião.
hura cu,ltivada: o da intelligentsia criativo-crítica (que cria os valores
Assim., a cultura cultivada é plenamente uma cultura no sentido ~~ as hierarquias) e o das classes privilegiadas (que se apropriam da
c.m que opera uma dialéctica comunicante, estruturante e orientante I
!fortuna cultural)~
entre um saber e uma participação no mundo; mas é restringida tanto A relação entre os dois elitismos é extremamente am.bivalente.
pelo campo social da sua extensão -limitada a uma élite- colllo pelo jO elitismo burguês apropria-se, através da cultura, não só da espiritua-
.seu papel parcial junto desta élite~ -cujos 1ne:mbros .obedecem de facto ]lidade mas também do at.istoc:ratisrno no sentido em que, colonizando
quando se trata dos seus interesses ou das suas paD;::ões, a outras incita~ ltnecenalm.ente a cultura, assume a fulJ.Ção dos príncipes ou dos senhores.
ções culturais ou pulsionais. A m.cnor querela com um critico ou com jReciprocamente~ a bu:tgucsia oferece à cultura não só o fundamento
a mullier, .o escritor refinado torna-se urn. carroceiro ou um automo~ !individualista que pennjtirá a admiração dos talentos originais e a cultura
J.úJista. Ido génio n1.as também o fundamento económico que identifica valor
A cu.ltu:ra cultivada aparece como uma espec:te de sohrecultura /e raridade.
qu.i.nt~~ess:n~iada; como o suco mais subtil que a sociedade pode produzir. ! O elitisn1.o burguês colonÜ>.;a a instituição cultural 1 e _não é :neces-
Dac_rur~ ate as cnscs recentes~ a sua extrema valorização aos olhos tanto j>á:rio efectuar investigaçÕE'. .<>. gigantescas nos concertos, museus, galerias
dos seu.s detentores como dos que são destituídos dela. Com efeito~ parece jde pjntura~ para verificar que as classes populares estão ausentes. A colo-
conter ao :m.esmo tempo uma u:n:iveTsalidade essencial (uma verdade ,!nização cultural faz-se, evidentemente, por assimilação do código cuja
superior e geral sob:re o homem no mundo) 1 ~ um refinamento essencial hpropl:"iação se torna um teste social: dado que ser cultivado é pertence1·
-]a élite, as classes superiores :rechaçadas pelas classes ascendentes, para .as
(pela~ sua ~atu.reza artistico-liteJ"á:ria), e por isso :mes.mo a espiritualidade
!quais a cultura é o sinal da elevação social, :refugian1 o seu elitismo
que e a mascara, a falta, o oxuamento, a necessidade d.e uma civilização
lnas últimas trincheiras do snobismo e da 1noda.
da força, do poder e da riqueza. 1 Posto isto, não pode reduzir-se a cultura cultivada n sim.ples apro-
!priação elitista de u.m código. No núcleo da cultura cultivada está a
.
1
Constituí.:1 para o <'homem. honrado», no seu humanismo u.nificador e sinte·
jintelligentsia que reivindica a propriedade cu1tura.I porque assegura <:~
ti.z.ador de tod~ ? snber, uma. verdadeira. cultura. .antropocosrnológica que continha as :ma criatividade.
verdades ontologlcas e normatlvas sobre. a natureza humana e as interr.oo-ações neces·
sárias e suficientes sobre a natureza do mundo. e · IJ

274 275
1
EDGAR MORIN
1 !
SOCIOLOGIA

religiosa. Segrega a cultura~ segregando~ p.or um lado, os fermentos reli-


A «intelJiigentsia» fiosos ou neo~religios.os que ligam o homem à sociedade e ao mundo;
~r outro lado, os fermentos críticos, racionalistas, cépticos, .ou mesmo
_4.. própria noção ~e intel~ige__n~sia. está muito pouco tc~rizada; é UJ:na iJi_listas que corroem os sistemas religiosos, as .oxdens estabelecidas,
zona de areias movediças socJ.olog1cas. Compreende-se: a tntelligentsia é i!J.clusive a pseudo-ordem. do mundo: esta classe Janus é um classe dila-
um.a ca:nada ( ?~ social particularm.ente ambígua. Os que a caractetizmn cerada, como testemunham. as oposições banais entre intelectuais católicos
pela orxgem soc1al dos seus Jnembros retiram~lhe toda a detenninaçã 10u' comunistas, puros artistas e artistas comprometidos, etc~ A unidade
que lhe viria da sua experiência própria e esqueeem que o trânsi-u~ 111estas divisões e nestes dilacei·amentos é a procura ontológica existencial
se d:fine tanto pel~ . r~p_tura que o separa como pela ligação que 0 lque aparece ora c~mo pr_ocu.ra da beleza <:r a como procura ~a verda_d~ 1
une a sua classe .OTiginana. ;endo a beleza multo mms do crue um atnbuto de certos obJectos pnv1~
A intelliger:tsía es~á li~ada ~elas suas ..raizes às {'lasses burguesas .1\egi_ados,. a pr.~cura ?e um. segredo ontológico de harmo~ia e da ver~a~e.
m~s. ~:o:'-a frac~ao da z.,...ntellz.gentsLa pode muito bem opor-se à class~ A ~nt;l~tgentsw _esta profundamente en.1.pe:r:h~da, a traves da sua msao
o:I~naria e ate comhat:-Ia e procurar u.m. novo en:ra.izam.ento no ptin. jiOciologlCa, clencal, numa bus?a antro~o!og1ca. ~esta In::s~a das «pro~
crpro de ~ma :nova . socxedade sem. classes, à qual serviria tanto :mais j1ttX:dezas)> ~e traduz a. ~ecess1dade .rchg:tosa ou xnfra-religrosa de uma
quanto mars esta socxedad~ a libertaria- Posto isto, podemos compreend~r s~cxedade so em parte la1c1Zada: o artrsta, o pensador e sobretudo o. poeta
1
mel~or o problema do ~esenraízamento-enraizamento da intelligentsi.a ;no levados -;-:e c~~a _vez :mms_-,- ~ reenc:_o?trar um fundo arca1co, e
:onsiderando a sua _cxpcriencia~ a sua praxis:r a sua produção próprias: jassumerr: papeis feitlceuos, medxumnrcos., pxtrcos. . . _ .
e. classe que nas s_oc1edades moder~as produz e mantém, que renova nã'l I Assr~; a cultt~xa, e~ora tenha u:rn a~p~cto mu::to sof_1.sl:lcado ligado
so .a. cultura cultivada m.as tam.bem as ideologias religiosas, nacionais, ;ao seu elitlsmo ( v:u-tuoslSmo n_o uso ~o cod}-go o~ formalismo), tem ao
soCJ.a1s, ou seja, uma parte importante das outras cultunts. A este titul - :111esmo tempo um aspecto muxto m.·ea1co, hgado a procura do contacto
é ao mesmo te1npo alienada~ autónoma e incerta relativamente às outr~ j~stencial com as verdades antropocósmicas p:rofundas.
classes sociais. A cultura cultivada que, para as classes superiores ê j
um. ornamento, um luxo, um lazer, é para a intelligentsia a sua s~s- !
tãnci~ e a sua experiênc~a~ Daqui uma fo. nte de entendimento, de <!OD1·1
A dialéctica cultural
pronnsso, de mal-entendido ou de -conflito_ Como se verá, quando 0
c.onflito rebenta, a intelligentsia vai procurar no povo, nos revoltados 1 No que se refere ao can1.p,o propriamente dito da (<cultura cultivadmJ~
na revolução, a nova A:rca da Aliança que emanciPará a cultura e farei -~-~to é~ da literatura e das axtes 1 foi no seio da intelligentsia que se
rlcsa:-n·och~:r a sua universidade_. A intelligentsia é uma classe que se ass~iu a criação . . Desde o~ f_inais da idade clássi~a, .... a c::rltu;a _entrou
consxdera rntelectualro.o:nte superr.or e economicamente dependente. Depen- !deC).srvame~te na v1a d.a cnaçao per,::na,:=tente. A cnaçao nao e srmplesri
dente do mecenato . na ér:oca aristocrático~monárquica, actualmente !mente a lib?rdade e a arte das van.aç<:e~ em torno d~ __ norma (nor:r::a
dep:nde c<:d~- ve~ maxs do srstema de produção capitalista e tecnoburow !~orn:al da linguageU:, n~rx:r:a dos .arq:uetlpos ou estereohpos, ....etc.), nao
c:rati.Co. Ha srmhrose e conflito entre a c:riayão~ que releva dos artistas,~~- srm.ple:mente a snJ.§'ulandade de uma paJavra em relaçao a~ uma
autores~ etc., e a produção (edição, jornal? sociedades cinematográficas, bngu_a? _e ~m_a. rclaçao descstruturante-reestrutur~n:e Pa1avra~L:tngua.
pos~os de rádio e ele televisão). A i'rttelligentSÚL não é dona dos seus IA cnaçao s1gn~rca que a Palavra ~.e~estTu~ura__ o c~dlgo pa:ra ,o reestru-
m.cws ~e produção. IIá, por conseguinte, na ·intellígentsia uma dupla jturar ?e tnanen·a nova, q?~ a retonca :uao e ma1s a regra ~ que se
virtualidad.e de revolta, por u:rrt lado contra as classes dom·n t . imbo:rdinam as obras ((geniaiS))' mas a regra que mata-ressuscita-renova
a domesticam ao mesmO tempo que., a lisonJ· eiam ;ssimila~d an es que jro:nstantcmcnte a sucessão das obras geniais. A noção de génio é muito
. . . , o as suas d . - , I f .-. · ~ ~ ~ .c b
obras mas TCJC.üando os e:nzrmas· e ~ por out :ro 1a d o, contra os propne- . 1.eve1a Ola nao so pe a sua re .ere:oc:r.a a magia e as .... orças o scuras mas
1• •

'c._ L,.. I .d b l di . . . . D ·
:~WWem pe o seu senti .o so renatura
T • , • . ,

tanos dos me1os de produção e de difusão culturais. e Vlnamente cnatlvo. aqur


- d ,. . 1a estranha sorte - reconhecída como quase necessária - das obras
A secreçao a cultura que c a tarefa próp:ria da intelligen:tsia não l • • • • - · • ,.. • ·
1~ ·"·t ~ ~ • _. l b d . · ab í~eru_ru.s: pn:m.e:tro sao malditas por serem Incom.p:reensrvel.s; efeetlva-
.se . .u.m:r
,~. a a cnacao
·· c e o r as e arte . e .a e1 ora,-..ão
,. . x 'deolo'
.. . ""ca·
f:?J. ' ou ' antes I · ·
• .mente, os prrme1ros qua os dr d e T ,
urner ~ os ultimes quartetos de Beetho-
atl.a\es
h· de obrasI de. arte
. I eh d.e d densm.os
d .xdeo}OIYicos
. . .e, '
a ·Lntelho-entsia
b
desem· l.•en, as .prrmerras
· · Ill umuwtz.ons
· · d e R·--'-
ILuuau d sao- mensagens que .o co'd"1go
pen a um pape .ong1.na er a 0 os fe1t1ce:r.ros e dos _grandes sacerdotes, ~reexistente não perr:nite decifrar- são palavras com <r'ÍO"antescas h:lâncias
mas que ao mesmo ten1.po nasceu da crítica da feitiçaria e da cultura [e língua; é lentamente, graÇas' às pacientes cxcges:s :::>c mediações dos

276 277
criticas
rt•
que
d ~
se constil.ui
b .
o contacto
- ~
EDGAR MORIN

com o códicro, o
coxn a h•1o
a pa Ir al) a o raRpr1ma na o esta apenas integrada~ modifica 0 ·di ' ·Códitro
. . t:>ua, llla.s
l
A cultuxa não ê só o Código, . _,
SOCIOLOGIA

é Palavra e Existência, ou, melhor,


0 é ta:o:thém o que permite à Palavra comunicar com a existência.
torna"se p,or sua vez principio e origem. Por ísso. as obrasRprimas ~o gol ~~é....-. pode conceber~se o sistema cultural na perspectiva de uma dua~
· .. · d · · ' .~..evol !V"~'
mo~a.nas a arte ~parecen1. pnm:-uo como antiarte aos olhos dos cont u. !idade ,au de u1na contrailição principal que se repercute a todos os
por~eo~ escandahz~dos . e depo1s tornam~se fontes canónicas de etn. l 'veis. Esta dualidade repousa na dupla natureza do código, que pode ser
No limüe,. poder-se~1a dizer qu~ t~d~. a_ ~bra de ~a::te é antia:rte po~te~ ~~ropriado_ e tornar-se u:m _instrumento de p_:esti~io, m_as que t~ém _é,
escapa em algum aspecto novo a ]U:t1Sd1çao do codtg.o. qu.. ase tecmcam.ente, o medxador para a relaçao eXistencial~ a parb.mpaçao,
Assim, vê-se bem o papel essencial, e não apenas mitolóo"ico ( . 1;até o êxtase~ O códig;o detém o segredo das fórmulas encantatórias que
v_,;zes, _o m~to engloba u~a realidade) _da criação na cultu_;; cul:~: ,per~ o estado ..P-:opriamente cultural, ou seja, um prazer estético a

fa~la evolu1r por succssao de <(obras Imortais)> que a mantê:rn a. .coW.:Ltlvo-antropologrco.


aparente eternidade. A cl'iação permite asse2:1ua:r de maneira o-]n~a t> A dualidade parte igualmente da coexistência complementar-antago-
a a d ap t açao - a' h.1stona,
-- ·
ou seJa~ a aculturação " das novas experiê "' onosa . ,:ni5ta em re1açao - ao co'digo..., por um lado, entre os criad ores-exegetas~
~nfi:U:, o __mito da criação permite concilia1· 0 duplo elitismo: llCl~, J.repr.oduto:res conservadores do Tesouro (autores, criticas); por outro lado,
t.n..telhg~n:sta q_ue vê coroados como quase-deuses, heróis fabuloso~. ~ jentre os utentes-~ecenas-c.onsu:mid.ore~ privilegia~~s e os produtores capi-
0
scus genxos cnadores; e o das classes superiores que~ m.eceniza d, ~ :talistas ou estatais. Daqui o antag,omsmo especiflca:n::J.ente cultural entre
apropxiando-se das obras originais, se justificam, se enobrecem n °
e 'roarginalidadc c oficialidade (o «artista)) e o <cburguês)> 7 a vanguarda
espiritualizam. e se )e 0 «pompier>)"' etc.) que é o antagonismo entre o e:nzim.a (indivíduo
ou seJ' lisoladoA
1
Lon(Tet>
de ser contrariada , a necessidade, de 0 .r1g1na • • l'd
1 ade - . .' -pequeno grupo ou escola artístico-literária, iniciador, etc-) e a
de criação a todos os níveis, desde a pequena inova~ão d f .. n l}nstJ.tniçao, a estrutura cultural.
1

A ssn:n,
. ~ ~
.
ap.a:recrmento de novas artes - foi refo:r,...ada como ::: ob a orma M ] ate ao po d e po 1ar1zar-se,
· . por um. 1a d o, um J.eno:rn.eno · · .. ·
l.lllD.OrJ.tarlo
, . s , servou o .es. no . .. • . . . .· . ,. d· 1 - · · 1
f _ 1enzunatico, evo1uci.onante-rev,o 1uc1onante~ que e o a re açao eX1stenc1a .,
mundo tccnoburocratrco moderno. A cultura tem cad
. . ,.
de senetrar a ono-m.a.trd.ade de que necessita cada
.
". .
a 'ez mms .a unçoo
, ·. . . da I
d d d d d
procura a ver a e, o sl3r., o extase e ta
, .. mb . d , . .d d
em o a negL>.tlVI a e
o o b vez mars vlta1mente I . . .d d ( d uas f·aces d o m.esmo f enomeno , ) p 1 d
um m.undo conformista que tende n1ecanicament , .· . _ e da crxati"VJ. a e
e a cax:r na :repetlçao d . f ~ . . ~ . ~ . . . ar . outro
. .., a o,
burocrática. (Daqui 0 culto ingénuo do novo que se tornou 0 novo !Po e po_1anzar~s: um. enomen: ~aiontano, est?-trstd1co, :ndi~tltuc(wna._: .. e:m
conformismo.) !que estao em JOgo as apropnaçoes, o uso soc1a1 o -co go presugro,
Assim, a cultura cultivada é? de facto, um sistema segundo o lsta:nding, aristocratismo~ etc.).
· h d - -..- ! O sistema cultural é precisamente a relação dialéctica entre estes
~~-~~=~=~d~~~:il;~r:J~~~, ~u~~e~~t:~: ~~:~::~dop~p~~!nc(if~ocsl e_quili.ldois pólos~ Não opõe os criadores e os consumidores, pelo contrário: há
1 - u· USlve a uma relação entre os c.l-iadores e os «vcrdadeir;OS)) consumidores das suas
:u;er:Oev~rçasoe cüspe:' llca. cdom 0 socbiedade moderna) tende a perdurar e i obras, os que extraem delas prazeres profundos e que recompensam os
·· "d · . s 1s em . a eve conce er-se scoundo o u~na analoo-·, 1· ]' ·
ela J.O ogrca: ena · d ores coro o seu amor e a sua aULLLrra. -•- · ç;ao.
- E· sta re ] acao - age no Lntenor · ·
precrsa e quasc~euznnas para se :renovar e é a «cr·a 1 - d ...
penha este a ·1 · ;t. O"' . . '~ ·.. . ~ao)~ que, escm- do «consum.O)> e da criação. No seio do consumo há heterogeneidade,
. P pc enzima 100 • enznna e :tnerente e J.nd1spcnsavel ao para não dizer oposicão entre aqueles para quem a cultura é utna
SIStema, ma.s ~o dmes~o tempo ameaça-o. De facto e cada vez :mais clara- experiência e arrueles ~p~a m-rcm. ela é um ornamento~ entre a m.ulber
mente a partir o seculo XVIII o enzhna (a · .... ~ · l'd d "" "-- '
novo etc ) vem d f .. . ' ~ ~ cna~ao':: a ongl.na l a e, o í bovarista, que desejaria viver como nos romances, e que tenta :fazê-lo,
·e . a .,c"· t'- ·a d .as ron .. erras anonncas
. d ou
~
n:1arcrrna
. o ~ 1 s da 0 Tde
m socxa, e o co ecc1ona or e peças onlP-na1s, entre o. a o escente, que f'.rca per-
· 1 i 1 · d d · · · d I
-
·a 1v1
•. .da d a e. apresenta . no se1.o ~
a I>ropna . cultura" um caracte:r ,.. de . turb a d o com a desco - b. erta d e o b ras que o reve1am a Sl· propno, ' · e o
Hegaüvr a e~ pr:rmerro no sentido hecre1iano e de · · ]'t . 1 É · ·1 · · · _. · · ·
d e R ousseau e d o romantismo que aparece . '=' ' --p.ois l e:ra · .a partir 1 adulto que sahorera sem poder modifxcar-se senao rmaQ:'lllarlam.ente o
1açao - · i tempo de uma Ie1tu:ta... · " ~ ·' 10
• -
. . .; · . ,. . ) . , . a re entre a poes1n Tam.bem ha dualidade entre os art.tstas, nao
( por.e.,.s = cn.açao
-
sadol gr~n :sd "mb e ·o d deseqmhbno
51 01
os;
. ' a louc u r a1· R ousseau, H''ld I
o er1·m ' so' entre os acad-em1cos
e rgu.al modo, o contributo revolucionante da exercem a sua arte a joo-ar com o códio-o
· ·
e os m.argrnais --- '-'
mas ta.u:.u.Jem.
com a mais
·
entre os Vll"'tuosos
extrema
que
s-ubtileza
a o. escenc1a esse no man's land em . · d ,. . . . ,. . . b 0 . .
d . ' . d d d . · que arn a nao se cnstahzou e , e os vulcanrcos que destxoem as regras e, no hn:nte., se en.contra:rn fora
en u:recc~ a socr: a e a ulta7 explode com Novalis~ Chellcy, Rimbaud, da arte ...
Os . autodrdactas urompem . · como c,na · d ores cu1tura:is com Rousseau e E1 stas oposxçoes · ... estas contradicoes· -
constituem ~ dialéctica viva (e
mars tarde com os escritores aineri·canos .., " · ' um di a m..ort al) d ' 1 1 · d-
a cu tura cu. tlva a; a dinâmica da marginalidade e da
278 279
EDGAR jJJORIN

oficialidade, dà desintegração e da integração é a dinâmica soei ul


turaL. . (a verdadeira) : a antiarte torna-se arte e a arte torna~se ~~- ·
l I
j,ã aão
SOCIOLOGIA

conta os mitos sobre a a~te e o génio~ SeguD;do .o. al~ance, segundo


~ tempo e o 1ugar, pode consxderar-se que um e m.aJ.S unporta:ute do
arte; o novo torna-se Modelo (pr.ovísoria~nente) eterno que os crítina? 4° e .o outro. Queremos indicar aqui que juntos constituem o princípio
- .t
v~o pen ar e a
p a I avra segrega a sua prec1.osa
. . I a que os c:citi cos
pero rsléctico não só de constituição mas também de evolução da cultura
vao depositar no tesouro. Ao longo desta dinâmiea., os processos ~s ' u}tivada. Poderemos assim descobrir o que as políticas culturais eufó-
des:struturação s~o também processos de reestxuturação e a desestru.tu~ Ócas ignoram: que a dinâmica sociocultu,.ral tende para a crise culturaL
raçao~reestruturaçao conduz de maneira am.h:ígua à revolução e à recu
-A
raçao. "
_ ss1m., o cinema e a banda desenhada, antiartes na origem, J?C· 1
I
revoluc1onam as artes no preciso momento em que~ recuperadas, se ' A crise da cultura cultivada
tornam a setu:na arte e a nona arte.
l\!Iais axuplamente, a negatividade cultural (anomia, loucu:ra., autodi-
I
l S.ob a sua aparência de unidade :t"eallzada, a cultura clássica do
dac:ismo, c.rític~ radical) ~orna~se __ p.ositiv;idadc. O conformismo precisa iséculo de Luis XIV continha já a dualidade própria da cultura cultivada
de Integrar o nao conforrnxs:ruo; ve~se ate que a revolta pode tornar~ j n:todernaA No plano da arte, a arquitectura das unidades e das regras
um jogo snob, inofensivo? que o dilaceramento vivido por Van Goo-~e iapresentava um mundo ordenado e teatral corno Versalhes, mas já era
Rimbaud~ Artaud se torna ornamental. A recuperação por despol~à: iclaro que essa ordem encerrava o underground defuante e caóticD das
rrtento, csca:moteação ou integração é -verdadeiramente um pr.ocesso vital :paixões. A intelligentsia estava domesticada e ao mesmo tempo protegida
do sistema cultul'al. Digamos até; a partir do mo:ro.ent.o em que há pelo rei mecenas, e o mesmo estatuto subjugava e libertava a Pala--vra
sistema, há recuperação. Foi o que sentiu 7 de maneira exaltada e histé. !
Je Moliere. Os elementos de integração eram manifestos, mas os
rica, mas ~ve1·dadei:amente :,_xtralúcida, Maio de 68. Mas a recuperação~ ]~lero.entos de desintegração estão latentes e vão pôr-se em movímento no
processo vual do srstema, nao esgota a naTureza do processo, nem anula J século XVIII.

a contradição fundamental do sistema; no seu seio permanece uma j A partir daí? é a explosão. Na arte) as paJXoes jorram., o caos
radioactividade criativa':" negadora, existencial, uma contradicão enb:e a J emerge, e é ,o turbilhão do romantismo~ A intelligen.:tsia parte à conquista

potencialidade da cultura e o privilé!rlo de élite que ela -constitui ~ Ida sua reivindicação social primordial, a soberania da Palavra. Da palavra
:·caliz~- ~Há_ uma luta de classes laten~e e por vezes virulenta entre a ·libertada, libertadora, nasce tanto a crítica radical de Voltaire-Diderot
j como o novo contrato social de Rousseau~ A partir daí, é a irrupção
Lntellzgentsux e os seus opresso:ees/ admiradores com os quais mantém
relações ambiguamente hipóc:ritas. ' a.criva do enzima marginal, periférico (adolescente, delirante~ no seio
Também há contradição entre <cLuzes)} e <<Trevas)>, entre a <cRazãQ))
e_ o _ «Arqué)>, que num dado momento aparece como uma hipola~
n.zaçao culturaL Por um lado, a cultuxa tornaMse o tesouro das sn-andes
I da criatividade cultural. A partir daí e ao longo de todo o seculo XIX,
, constitui-se o sistema dinâmico de formação de uma vanguarda, cm
lluta contra o acadexnismo, e depois desintegrando o velho academismo
:ideias hum.anistas~:racio:ualistas que tiveram o seu primeiro grande desenm
0
)paxa constituir um. novo. A principio, e muítas vezes até à :morte 1 os
volvi:ru.ent.o no século das Luzes. Por outro lado? mantém um contacto gen1os-enzi:mas são «malditos)). Desta imolação, verdadeiro sacrificio
serr:ú ou pÓs).:n.ágico com o mundo, vai beber às fontes arcaicas que são humano pericrístico, tira a cultura um efeito :redentor e 1·enovador e
o sonho 7 o fantasma: a infância~ procura uma verdade ontológica enter- o imolado torna-se um génio-deus para o qual dai em diante ::3e eleva
rada ou camuflada sob o tecido artificial do mundo moderno- tornaRse .o culto.
pois~ ao mesmo tempo qu.e a procu:ra do progresso, a do :re-torno ' e do
' Todavia, desde o fim do século XIX e na p:rimeixa metade do
recurso ao arqué. , século x..x, vêem-se· aparecer elementos de crise no seio da rotação dia~
léctica do sistema .
. O carác~er
j

funcional e o carácter disfuncional do sistema (da cultura I' Assim, a crise do <cbelo>> começa con1 o romantismo; estimula D
cultxvada) sao, num certo p,onto dialéctico, :inseparáveis: a cultura vai
bus:ar "':s su__as fontes_ de satisfação (estética, filosófica~ etc.) às :fontes
!sistema enquanto o «belo)> é expulso por um «feio)> que se torna u:r::n
novo «belo)), mas atinge-o e lesa-o a partir do momento em que o modelo
de 1:nsatisfaçao da soc1edade (nos ghettos, entre os anóm_icos os «dese~
quilibrados") . ' «belo)) é substituído por outros modelos tais como a autenticidade e,
actualmente, a «pr.ocura)). Todavia, ao propor neom.odelos, o sistema
Assim) _a cultura cultivada .oscila entre dois pólos, entre dois prln· testemunha a sua vitalidade. De igual modo a crítica, enfraquecida
Clpr_os; um 1ntegrador e captado pela :sociologia cstat:í:stica, economística pela perda do belo de que assegurava a peritagem e o sacerdócio, refoxça-
actual, o outro <cclesintcgradon) ou criador, enzimático, de que até agora ·se tornando-se pítica e emite os seus oráculos a partir de revelações·
280 281
EDGAR MORIN SOCIOLOGIA

inacessíveis ao pro:Ea':o- . ~ crise só. começa realmente quand': já. não hã · !lluito justan1ente sobre a irradiação universal da cultura grega e
um ~delo de suhstiturçao, ou seJa~ quando deflagra a prrmeua vaga ' concebia que Balzac, monárquico e clerical, JKl,dia ser superior ao progresH
que nao traz um contramodclo, a vaga dada. A crise da arte come sista Eugene Sue. Marx era culturalmente optimista: via que uma
com Rim..baud ; .o surrea~ismo. A arte super~o.l à vida, a arte ::r:e~ sociedade de classe~ embora fundada na exploração bárbara do homem
encantado e magrco, paraiSo da cultura cultivada, aparece co:mo Ul:n. pelo. ho;nem, p.odia procri~r ~m~ cultura de val_or uni-:er~aL Walter
universo artifical e vão. A estética e a própria vida passam à frente· da Ben]amm retoma esta am.bivalencla, mas de manerra pessrm1sta: o que
arte onde trabalham. a vanguarda negadora e a contracorrente d ele vê é barbárie escondida~ mas presente sob as formas universais, deli-
cultura. V ai procurar-se a maravilha no acaso (surrealismo), no quoti~ cadas e comoventes da cultura: {(Não existe um tcstemunbo de cultura
cliano anterionnente sórdido, no subproduto da cultura de mas que não seja ao mesmo temp.o um testemunho de barbárie.)) O <(patri-
(pop~art). E clar.o que, também neste caso, os processos de recuperac~~ mónio cultural>' é o espólio dos vencedores: ccDcvc a sua existência não
entram em jogo e utilizam a crise para rcfertilizar o sistema: o cinc~ só ao esforço dos grandes génios que o moldaram mas também à sel"vidão
torna-se a sétima arte, a banda desenhada torna-se a nona a:rte, a noção anónima dos seus contemporâneoS.)) O estalinismo vencedor anexa o
de arte alarga-se, o antiobjecto torna-se objecto como a antiliteratura se património cultu:ral do passado~ mas~ r~jeita a ambivalência cultur_al do
torna literatura. p1·esente. Lukacs oferece à cultu1:a class1ca o seu passaporte de <cr~alismo))
As agressividades que se viram contra o belo, a arte~ etc., não e entrega ao papão estaliniano a literatura de cúse~ que precisamente
ataca:rn somente o academísrno integrado; alg,-umas viram~se~ e até muito traduz a crise da cultura~
explicitamente, não -contra o sistema cultural sozinho, mas contra 0 A partir do momento cm que todas as crises se empola.m c c.onver-
sistema social com que aquele vive em simbiose. Vê~se emc:rglr a crise uem~ a dualidade do sistema cultural agrava-se~ Constitui-se um pólo
da intelligentsia na sua relação socíológica e antropológica: a intelli~ ~ei~ off meio in., no qual o prefixo anti ( antilíteratura, anti-:r.omance,
gentsia -ou, melhor~ a sua ala descontente-avançada- :ressente pro- antimemór.ias) cxprim.e muito bem urna agrcssi vidade antagonista. Opera-
fu"?dame.~te a s;w :frustração relativamente à sociedade: enquanto segrega -se uma dupla traição dos letrados, não .a tradição verdadeiramente
3 xdeologia, esta frustrada das grandes responsabilidades e cada vez mais benigna que o bom J ulien Benda dcnunciova mas uma tentativa de
vassalizada. · nunhalad<J. lorenzacciana e de hara-kiri culturaL Por um lado, procura-se
Ao longo do século XX, a intelligentsia ainda continua dependente ;a política revolucionária (ou que se considera como tal) a fonte e o
da relação mecenal e, além disso, entra nu.ma nova dependência: a guia da verdadeira cultura que só a revolução realizará. Por outro lado,
economia de produção, com o desenvolvimento da indústria cultural, mergulha~se no universo primordial, caótico, não policiado~ das pulsões,
submete-a ao produtor capitalista ou burocrata; a economia de consumo do sonho, da improvisação, ou mesrno da cultura de massa (pop~art).
sujeita-a à cultura de massa; há um conflito entre as aspirações demo- E é o assalto contra a cultura cultivada! O J.nais temível é que ele
cl·atizantcs, atra\Tés das quais a intelligentsia de esquerda desejaria ahrit parte do interior. O combate contra a barbárie da cultura mistura-se com
a cultura a todos, e a caricatura que a Cultura de 1nassa apresenta aos o combate por uma cultura ela barbárie (ou seja 1 das forç;.as elementares
seus olhos; há um conflito entre as suas tendências elítistas-aristocrati- C.':\.'Pulsas das estufas quentes da cultura requintada). A irrupção das
zantes e essa mesma n1.assificação. O artista sente-se diversa e simulta- forças existenciais põe em. causa o humanismo 7 fundamento das huma-
nea:ne:r:-te ameaçado pela util~ação burguesa da cultura, pela produção nidades, fundamento dos fund:uncntos. Sade, o revólver surrealista, e
capltahsta, pela democratizaçao cultural e pela bur.ocratização cultural. Artaud c.onduzem o assalto ao mesmo tempo que os revolucionários. É o
Ainda mais profundamente, o artista ou o intelectual ressent~ as carências assalto contra a p:rop:riedade e a apr.opriação burguesa~ contra o cxro
das sociedades modernas, o movimento sísmico de um mundo arrastado ontológico de uma cultura separada da verdadeira realidade e da verda-
para .o caos. A vontade de :ruptura afirtna-se, já não apenas dentro das deira vida. É uma espantosa conjunção (que, de :resto, o autor destas
margens em que vivia a boémia e cm que agora vivem microssociedades linhas vive permanentemente) entre o ódio da cultura no sentido em
refugiadas ou dissidentes, mas na espera ou na procura de outro sistema que esta é a. c<inversão da vida)) e o amor da cultura no sentido em
global~ de uma anticultura radical que seja a verdadeira cultura. que esta não é só quinta-ess_enciação e concentração da vida _mas _t~Jém.
Paralela e correlativamente, os fundamentos aparentemente univer- parece conter a :força de mudar a vida, pelo menos no .rmagina~no ...
s~is da_ cultura .chl~va_d-a são p.ostos C1ll causao Marx foi o primeiro a O estudo de A. ·Willener permite~nos apreende:::: tudo o que havxa de
d1scernn a arnb1valcncra da cultura cultivada que, sendo a cultura de explosivo na contra-sociedade de pequenos grupos marginais, si~uacio­
classe, comporta u:rn:a universalidade potenciaL Assim, interrogava~se nistas, free jazz, etc. Efectivamente~ é em Maio de 68 que se conJugam
282 283
EDGAR .IUORIN
SOCIOLOGIA

todos os assaltos culturais~antiçulturais, a agressividade esté.tica contta


arte e a agressividade. étic~ .contra a ~ultura. Esta revolta .assume, po;
um lado~ um aspecto Ideolog1co conhecido e, por outro lado, um. aspect
existencial de revolução cultural: 0

O aspecto ideológico, superficial e dogmático fixa~se e pe.:r.de~sc n


populoMjdanovism.o de arte de partido que se pretende ao serviço d 0
povo, ou então se exprime através das fó:rmulas activistas da a:rt~
militante;

Existência
(intensidade, êxtase)
I

Código Antropos
(universal) Modelos
Cosmo (desenvolvimento)

l
'
Saber
(descomparti m ent ado,
dcsmisti ficado)

O aspecto existencial em que a arte desaparece como essência scpa"


.rada~ em que a cultura desaparece como sistema separado da sociedade
e do individuo, em . que desabrocha um.. estado de graça inaudito, em
que c levantamento da repressão interna sc c,.o:m.bina com uma harm.onia
anàxquica., para além. da ordem e da desoxdem no espaço encantado das
tm.iversidades ocupadas, é pxecisaJ:J:l.cnte o da revolução cultural. É então
que emerge .o m.íto de uma cultura antropológica, em que o código se:ria
universal, imediatamente comunicável a todos, em que D saber estaria
descompa.l:'timentado (já não uma fon.te de técnicas mas de vc:rdades
existenciais), desmistificado (já n.ão burgu.ês mas universal)~ em que
os modelos seriam. rnodelos de desenvolvimento incli:vidualista*comuni·
táx-io, em que a cultura garanti'ria uma comunicação intensa e extática
com a existência.
Assim, a <:ontestação da cultura, nascida da crise da cultura e
pondo a cultura em crise cada vez maior 1 conduz logicam.ente à pe:rs~
pectiva de uma cultura antropológica (já não superficiaJ.m.ente limitada
à arte, m.as concernindo as profundezas da existência e da relação
tra~
homem-homem e homem-mundo)~ e que deve1·ia tornar-se a cultura de
2 Harold Rosenbe.rg, The traditi.on of th.e new (La tr.adit.ion du nouveau,
duçâo francesa, Paris, 1962).

284 285
SOCIOLOGIA

1
EDGAR MORIN

neo-requ..intado e ueo-arcaico~ ao passo que as bai."{as zonas desta cuhul" por vezes até ignoram a existência c a xe1ativa autonomia do sistema
começam
_ a se1· invadidas. O snobismo, o aozo
... ostensivo de um co.__:g
""'-a0 . ~ültural, vendo nas obras da cultura apenas o reflexo das <cvisões do
esotérico, e a moda, que assegura a aristocratização e ao mesmo tempo v undo>) próprias das classes sociais~ As outras só vêem da cultu:ra o
a d~emoc:ratizaç_ão? dão por alguns meses à éli~e o m~nopólio. daquilo que Jl'l,.J!çro e do código, os problemas ligados à sua apropriação.
cowe- ' '
sera democratiZado segundo um pr.ocesso hlerarq-ulzado. Doravante 0 1
Ora, se é necessário ver a rigidez do sistema, ta1nhém é necessário
privilégio cultural está ligado não só à posse de um código esoté;ico l..er a sua mobilidade e as suas contradições~ a sua bipolaridade antago-
mas tam.bém à posse esoté.rica de um código em evolução rápida. Ji~ta c a sua dinâmica sociocultural. Não deve ignorar-se a intelli§)e1~t~ia.
Assim pode assistir-se à :reconstituição, de maneira análoga e ao ' u <eJ·a a cateo-o:ria que se!rreoera a cultura, nem o seu papel histonco~
10 .:0 ~ • o . o b ~ d mb" l
.social espec:tf:t.co, :relativamente aut_on~~o e dep~n _ente, a Iva.e~:_.e.
'
mesmo tempo diferente do antigo, de un1. novo sistema da cultura
cultivada. O antigo sistema mantinha uma segregação muito forte entre rfão deve ignorar~se o aspecto enZimatico n~ ~naçs.o e na~ aqu:s~J.ç~o
a cultura cultivada c o universo (bárbaro, bcócio) exterior, ao mesmo !
lculturaL Não deve negligenciar-se o facto, estatlst:J.camen;=e. neghgenc1avel?
tempo que mantinha no seu seio uma hierarquia competitiva pela luta \jnas teoricamente capital, de que pode aceder~se ao cod1go í<?-l coroo o
entre vanguarda e academia e pelo jogo dos snobismos e das n'lodas. O novo 1
fazero os autodidactas culturais, pela emoção e pelo prazer.
sisten1a está em osmosc com o meio exterior, alargando as suas cate- J De novo se põe o problema duplamente mitol_ó?ico do «~Om)).
gorias fora das artes tradicionais. e ao mesmo tempo aceitando ou sofrendo :I:Iá 0 «dom)> que não é mais do que a aptidão adqux.nda num. crrc"::'lo
a irrupção do bárbaro no seu seio; mas estabelece uma hierarquia mul- 'f miliar cultivado e aue se camuflaria em graça pessoaL Mas ta:rnbem
ticstratificada em qu.e snobismo e modas desempenham um importante Iháa o que está em' ruptura " con1. o meio fa:rnll:'i.ar ~ ou por << d eca d'encu:l))
"
papel de diferenciação. 'No antigo sistema, o código esotérico era :relati- 1 do dom ou por aquisição autodidacta. Daqui o duplo p:r.oblema: a 2 por
vamente estável, havia o culto do único-original, e a cultura conferia jque razão a família Bach é excepcional, ou seja, por que :r_az~o . os
uma espiritualidade que cobria beneficamente, nos seus utentes? ;) :talentos artísticos, literários ou filosóficos são tão pouco t:tansmlSSlVeJ.s?
mate:riaHsm.o burguês. Nos novos sistemas~ o código já não é estável, !o) por que motivo os Jean~Jacques Rousseau~ os \Vhitman e mais ~mpla­
mas tende a tornar-se novamente esotérico~ roais pelo mistério que 'j rnente as vocações que fazem uma criança das classes pouco cult1vadas
rodeia a sua instabilidade do que pela :n.ccessidade de uma longa apre.u- passar para a intelligentsia?
dizagen1; o culto da originalidade está ligado não só ao 1.:inico :mas ,: As propensões apaixonadas para as ideias~ a literatur:'l.~ as a~tcs ~5.o
também ao novo; a espiritualidade dá lugar à autenticidade. ! provi:riam de uma sobreexcitação psicafect.i.va, que nascena d: sltuaçoes
A cultuxa cultivada aparece-nos, pois, como um sistema complexo, j conflituais, sofridas de modo precoce e precocemente. sub~TI?-adas no
contraditório, evolutivo. I·Iistoricarnente~ oscila entre estes dois pólos: !contexto familiar ou social? Não deve interrogar-se psLcanahticamente,
por um lado, é o remate de uma civilização; por outro lado, é a sua !':iociologicam.entc.,. a família, na qual as :relações filho-pai s; to~nam
contestaçâo 1 e é esta ambiguidade que assusta tanto o _pensamento como j cada vez m..enos uma relação de identificação, na ~ai as relaçoes .f~hos~
a acção. -pais, tornadas cada vez mais ambivale.ntes, na sociedade. contemp~ran.ca~
i des-viam da cultura cultivada crianças criadas nesse mcw, ou orrentam
'para essa cultura filhos de pals não cultivados?
A depauperação teórica .l Citemos três aulOdidactas~ dois operários, um. jovem emigrante sefá-
irada, feirante, que, fora da escola, ascenderam à cultura através das suas
É por isso que as abordagens desta cultura são pobres, ou seja 1 !próprias experiências e adqn:i:ri:ram uma aptidão para :manejar a lí.ngu::1
unilaterais, incapazes de conceber a complexidade e as ambivalências do !que faz deles escritores. Estas excepções à regra, estes casos aberrantes
sistema. As antigas concepções baseavam-se na acçãv e na obra dos :têm uma importância teórica capital, pois, demonstrando a possibilidade
grandes génios criadores e acentuavan:.t os caracteres excepcionais e sagrados ide acesso ao código fora da aprendizagem fa:n:úlia:r ou escolar? dem.ons-
da cultura. Em suma~ endossavam os caracteres mágicos da cultura~ 1 tram à sua maneira a d1.1alidade pr.ofunda e consubstancial dos usos do
:m..as se1n os compreender; sentiàm fortemente que não pode compreen- código~ e a dualidade da cultura que se eleva até às alturas ~ociai~ como
de:r~se a cu]tura negligenciando os seus caraCteres enzimáticos e miti~ I1 valor de prestigio~ mas é concebida e vivida como valor ex1stenc1al nas
ficando~os em vez de reconhecê-los. !l:".onas marginais da intelligentsia, ela mcsm.a classe marginal onde vão
A tendência das sociologi~s consiste em comete.r o err.o inverso e j confluir os an.óm.icos~ desorientados, incertos c atormentados provenientes
reduzir o cültural ao sociológico. TJruas anulam ou ignoram o enzima, !·das camadas superiores e médias da sociedade. O privilégio do jovem

286 I 287
'
EDGAR MORIN SOCIOLOGIA
1
«burguês)) é poder trair a sua classe pela cultura, ao passo que a anotuia ~ é dupla na sua unidade; ao mesmo tempo que realiza a cul.tura .burguesa,
do jovem camponês que não encontra a saida cultural só tem saida na desintegra-a,· e a anticultura proveio de um.a corrente essencral da. cultru·a;
militância política, religiosa ou na infelicidade sem sublimação_ Ou a -cultura cultivada é um supremo bem que a hurguesta açam-
Os casos minoritários pelos quais pode ascendernse da exístência 1 barcou indevidamente e que é preci:::o restituir a todo o povo, e, neste
ao códi.g:o~ pelos quais a experiência marginal é fonte de actividade ou. sentidq, ~ _~r-.:12_9___5-l,ons.!~te . não ~_ó_ ~-~ un~.4i~~~~~-o~~':I~~~: a cult~~-~- .~.éi:Z
participação cultural~ escapam aos estatísticos rolos compressores que 1também em não a pôr em causa.
ignoram tudo o que é fermento na sociedade, mas revelam~n.os o aspecto !
enzimático da vida cultural. De :resto, pode perguntar~se se não haverá
u.:m ccdom)) universal que abafaria não só o despojamento económico O desenvolvim.enro cultural
mas também a vida burguesa e o uso burguês da cultura que a esvazia
de toda a virulência enzim.ática~ Neste sentido, Mozart é assassinado no Chegámos ao problema do desenvolvim.ento culturaL Se este desen~
berço tanto entre os P.-D. G. como nos H. L. M., e sobretudo nos pardieiros, volvimento visa alargar quantitativaJ.ll.ente o sect?~ de influência da
cultura cultivada~ isso reduz singularm.ente a politica e o dcsenvolvi-
Só sobreviveriam como artistas os que, criados no conflito e na injúria,
!Ilento culturais e implica uma actividade de censura, uma. espécie de
encontraram na cultura a maneira de exprimir ou de sublimar o seu
jdanovismo humanist~ mole eufem.izado na f,órmul~ de ~((]ibe:ra.lisino
problema. Compreender-se-ia a relação que existe ent:re o .aspecto enzi-
qualitativo)); mantém 0 dogm.a, que contudo esta fend1do e e atacado do
lnático da cultura e as múltiplas formas de marginalidade ou de ano~
interior~ da salvação culturaL
1nia (órfãos~ filhos de pais em conflito ou separados, bastardos sociocul-
turais, filhos de emigrantes, jovens judeus cuja família~ transplantada No entanto, é noutro plano que deve critica.J>Se. o tema do d;~en,
volvimento cultural (antes de adoptá-lo ... ). No novo s:tst~rna burocratJ.co~
dos ghettos, mal fala o francês, homossexuais ou perturbados sexuais).
-estatal, com urna ínjecção de populi::;mo dumazedíerian?, .a cultura t_or~
E aqui aparece a função de recuperação da escola, análoga num plano
uou-:se produção que, como as produçõ~es te_c~o-e:;onomJ.c,as.~ ~rogrrde
inteiramente diverso à rec.uperação cultural: a escola recupera uma
rraças aos créditos, aos equipamentos e as eclif1Caçoes. Cr-edJ.tos; Casas
parte dos elementos enzimáticos que se formam nas camadas marginais
da cultura! Equipamentos sociocuiturais! Eis as novas panacelas que
e nas caxnadas populares a fim de os cultivar para as carreiras da intel~
permitem esquivar-se a todo o exame em p~ofu~di_dade de um problema
Zigentsia ou da administração. O sistema é suficientemente flexível para
temivel na sua obscuridade e na sua ambtvalenc1a.
seleccionar ao mesmo tempo .o grande trabalhador e o sujeito brilhante,
mas continua a ser demasiado disciplinar, ritual, fonnal para constituir É certo que a cultura não pode cscapa:r totalmente às de~crminaç?-es
tecnohur.oc:ráticas da época, assim corno só pode escapar mu1to parcial-
o verdadeiro caldo de cultura para todos os desviantes. Grande parte
destes não consegue suportar .a sistema escolar e, quando não é rejeitada mente às suas dete"t'minações económicas_ Tviz.s, assim. como o aspecto
antieconómico da eultura é mais importante, culturalmente falando, do
e esmagada, cultiva-se pela via autodidacta à margem~ através de leituras
e de experiências pessoais- que o. seu aspecto cconómic.o, também a cul::U:r~ se~ define m.a:i:s ?o_mo
antídoto do que como produto natural da c1vrhzaçao tecnoburoc:rat1ca.
Assim, seria erróneo confundir o <cdotado)) marginal~ o irregular Por conseguinte, constitui-se actualmente uma simbiose parasitária-anta~
e mais a.mpla:mente o intelectual com 0 «herdeirO)> que beneficia do gonista entre a cultura e o seu amigo-inimigo protector-sufocador que a
privilégio cc.onómico~ das relações dos pais~ que herda o uso e a proprie- faz viver e que a asfi:xia: o Estado~providência, os grandes corpos cons~
dade dos bens culturais. Corre:r-se~ia o risco de ferir com falta de jeito tÍtuídos.
--ou com dern.asíado jeito- o fermento critico da sociedade burguesa O Estado-providência~ as camadas dirigentes tecnocráticas precisam
c não o pilar burguês desta sociedade. Correr-se~ia o risco de desenvolver actu.a.l.Jnente de considerar nos seus programas de desenvolvimento mate-
n aspecto tecnoburocrático da sociedade, e :oão a democratização e a rial um dcsenv.olvitnento perfumado de espiritualidade que seria o da
igualitarização. cultura. Mas será possível conceber, com os investimentos adequados.,
Do ponto de vista de uma política cultural, con:m--se-ia o risco de uma taxa anual de crescimento cultUia1? A própria amplitude desta
caÍr em dois er:ros contradító.riosr-~----·----- estupidez põc~nos problemas fundamentais: que é um desenvolvimer:to
Ou a cultura cultivada é identificada com a sua função burguesa) cultural enquanto não tivermos explicitado o que é a cultura, ou. ~CJa,
não tem nenhum valor intrínseco e deve ser rejeitada ao mesmo tempo enquanto não tivermos examinado todos os problemas que atravessamos
qur; a sociedade burguesa 1 o que é erróneo, poi.-,~ con1o vimos, a cultura e que nos põem perante a ·contradição e a crise da cultura cultivada?

288 289
! :S. U.-39- lS
EDGAR MORiN

Que é um desenvolvimento artístico? Literário? Filosófico? Os sucessores


l
I .
SOCIOLOGIA

:~0 rnesmo tempo que Isola e desintegra o homem, a c1encia ob:riga~.o a


de Kant, Marx, Rirobaud, Chaplin são necessariam.ente superiores a ~;.rocurar recursos mágicos ou religiosos para continuar a crer e a viver
eles? Facilmente se descobre que a evolução cultru.·al não é a de UJ:na :eJll ser pelo impulso e pelo hábito. Assim, se as ciências desintegram
progre~são contínua (no ~omí:nio da <cqualidade)) artística ou intelectual), , fectivamente as antigas humanidades e o humanismo implícito ou
mas sun. a de um dev1r com choques, saltos, rupturas e regressões. lícito que as fundava, fracassam completamente ao tentar constituir
Há uma dialéctica progressiv.o-regressiva entre os grandes criadores e os J0..,.as humanidades. O recurso ao saber plu:ridisciplinar não passa de um..
epígonos que lhes sucedem e que, assimilando a sua obra, a xeduzelllf' íaliativo muito fraco, não .só para a crise do ensino mas também para
simplificam 1 unidi:rnensionalizam.~ etc. É que o desenvolvimento da ; crise das humanidades. O problema {undanz,ental para toda. a política
1w cultl}.r:a _é, pois, o da constit:u,ição de novas hu.manidades. Comp'"reenae~
cultura está ligado ao do aparecimento, do desenv.olvimento, da actividade
ou da sufocação dos enzimas, e não basta desenvolvei· uma infra-estrutura
institucionaL ..
·F p~rantc este problema gigantesco cada qual fuja c p1·efira falar
poutra coisa.
E de novo vamos parar ao equivoco da palavra «cultura)), aos 1 Ao menos~ eis-nos chegados ao seguinte: não pode fugir-se da cri::c
problemas levantados pela cultura culüvada e a cultura de massa, . corn, l~s humanidades, e as premissas de uma politica cultural obrigam. a
além disso, a necessidade de conceber o que poderia significar o termo Wrenta:r esta crise, pelo menos em pensamento. Esta crise já dilacera
desenvolvimento cultural, de examinar se este tern algum significado )1 cultura cultivada, como índicámos, desintegra a arte e ataca a própria
fora de um dcsçn_vplvímcnto multidimensio:tJ_al __do ser humano, ou seja, ~oção de cultLl.Xa; cremos que também aflora já na cultura de massa c

do p:robl~ma-;;;:~is g~ral de todá á- filosOfia· de tôda-··ã-p-Olífica~ ~uc, além disso~ atravessa profundan1.ente toda a nossa sociedade.

O diagnóstico cult11ral

Não hasta tentar elucidar a noção de cultura, a cultura cu1tivada


e a cultura de m.assa, para pode:r formula1· os principies de uma política
culturaL I-Iá que proceder a uma culturanálise, isto é, há que diagnosticar
a situação cultural na nossa sociedade, há que conceber o :modo de fun-
cionamento sociológico de todo o sistema cultural.
O diagnóstico será extremamente sumário. Não será panorân1ico 1
mas centrado :naJ.guns fenómenos dignos de nota.
Já notá:m.os qu.e a crise das humanidades comanda toda a políticu
C1J.ltural. A maior p<nte das políticas culturais ignoram (querem ignorar)
esta crise, que põe cm causa a própria possibilidade, l:sto é~ o fnndam.ento
de toda a :e._olitica cultural.
A crise daShumacidades situa-se p:rimciro no plano do saber: a
predominância da informação sobre ,o conhecilnento, do conhecinlento
sobre o pensamento desintegTaranJ. o saber; as crcncias contribuiram
fortemente para esta d.es:integração, espeeializando o m.ais possível o saber.
A ciência não conseguiu suscitar um saber sobre as ruinas do antigo
saber humanista-ensaísta-literário~ mas um agregado de conhecimentos·
operacionais ..Ao m.esm.o tempo, os progressos do sabe:r científico foram
desontologizantes; desintegraram o ser do mundo e o ser do homem
e:m que as verdades se fundavam. Pelo seu ca:rácte:r rclacionante e :rela,
tivista, a ciência mina profundamente as próprias bases das hum.anidades .
.Enfim, ao .desenvolver a ,ob5ectividade, a ciência desenvolve de facto uma
dualidade permanente entre o subjectivo (o homem sujeito que se sente
"V--iver, agir e pensar) e o objectivo (o mundo observado c manipulado).

290 291

Você também pode gostar