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A Vinganca Do Judeu (Psicografia Wera Krijanowskaia - Espirito J. W. Rochester)
A Vinganca Do Judeu (Psicografia Wera Krijanowskaia - Espirito J. W. Rochester)
ROCHESTER
A VINGANÇA DO JUDEU
Obras do Conde J. W. Rochester (Autor Espiritual)
(Editados pela LAKE)
(Romance Mediúnico)
.
ÍNDICE
Prólogo 7
PRIMEIRA PARTE
.
A LUTA DOS PRECONCEITOS, 9
1. O Milionário 9
i 2. A Grande e Imprevista Desgraça 22
í SEGUNDA PARTE
4. A Confissão 25 5
, 5. A Reconciliação 26 3
A Editora
PRIMEIRA PARTE
1 — O MILIONÁRIO
"Que dizer mais, pai? Ardia em meu imo surda revolta e, apesar
disso, detal modo estava preso à minha paixão, que sofregamente
busquei todas as oportunidades de ver Valéria, sem que ela mesma
— "Vede por vós mesma, Condessa, que Sr. Conde, vosso irmão,
abusa, sem dúvida, da condição invejável e masculina de estar
acima dos escrúpulos, e que os preconceitos raciais não se estendem
ao dinheiro.
"Corada a mais não ser, Valéria arrancou-me a missiva das
mãos, percorrendo-a com um olhar. Ao deparar; antes da assinatura,
com "Vosso dedicado e agradecido", cravou os dentes nos lábios e
estendeu-me o papel em silêncio. Afastei-lhe a mão.
"Se m esperar sua resposta, saí; não voltei para aqui, porém;
dirigi-me à nossa casa de arrabalde, ansioso que me achava de ar e
movimento para me refazer".
9/oz.
— Não! Não! Foi por motivo diverso que ele me apresentou esta
'Rarta.
E e m breves palavras a jovem expôs a conversa que mantivera
•saíra, pediu para tratar convosco, pois o assunto, segundo diz, requer
^urgência.
22 9
Foi com voz sumida que, reunindo toda sua energia, disse: "
— Um momento!
Rapidamente, Rodolfo escreveu algumas linhas, nas quais pedia,
em tom glacial, que Abrão viesse a sua residência, com o fito de
se explicar o mal-entendido.
o serviço militar.
Pesquisas em casa de vários usurários não deram nenhum resultado;
apoderou-se dos dois nobres tredo desconsolo, aumentado
pelo fato de não haver resposta à carta do jovem Conde.
homens.
A
40 fl|
preciso que vos esclareça, alem do mais quão grande será o vosso
^merecimento no céu, por desviar uma alma das trevas e do Averno.
^Ess e jovem, conheço-o um pouco; tem boas prendas; faz a caridade
Wse m ostentação, e acredito que lhe faltem tão-só as verdades de
9
9
azer
roso de sua raça; seus modos são perfeitos, sua linguagem polida.
03o m o batismo, deixa de ser judeu, torna-se um homem semelhante
a todos os demais.
9 Estas observações de Antonieta acabaram por trazer a calma a
f aléria e, após o jantar, servido às jovens no aposento desta última,
^im a alegre resolução desalojara o desespero anterior.
A— Ruídos de passos, seguidos dos tinidos de esporas, sobressaltara
m Valéria e a conversação foi interrompida.
* — É papai e Rodolfo que chegam, finalmente — disse Valéria,
•aparência
aristocraticamente bela e muito bem conservada: o seu
^cativante trato e a descuidada bonomia de grão-senhor, a esbanjar
•orna s enormes, criaram inúmeros amigos ao Conde de M""" entre os
^^eu s pares. Os filhos adoravam esse pai, afetuoso e cheio de indul^
jências, venerando-lhe mesmo os defeitos. A situação calamitosa
*ju e os seus prazeres ruinosos haviam criado e o mau exemplo imitado
por Rodolfo, seu filho, não conseguiram abalar esse amor recíproco;
nunca se elevara, contra o pai adorado, um pensamento de
censura.
44 W
— Papai, papai, tudo correrá bem; não fique assim triste — ex-^
clamou Valéria, puxando-o para o divã, e fazendo-o sentar-se. "
A voz não veio ao Conde de M""", que apertou em silêncio, a ^
filha ao peito. ~
— Tua generosidade, minha filha, foi para mim mais acre puni-^
ção do que uma censura; tenho, porém, o direito de aceitar tão gran "
de sacrifício? ^
— Podes aceitá-lo, papai, porque o faço espontaneamente, visto^
que ele assegura o teu repouso e o futuro de Rodolfo; o céu me darsik
forças, e tudo será melhor do que supomos. Restitui-nos, pois, o teu*
bom humor. g)
— Tudo te parece fácil, por agora, filha; que será de ti porém,
quando se fizer necessário conviver e suportar a presença desse ho ^
mem? Devo avisar-te de que o teu martírio terá breve início: o padre_
Martinho, vindo ter comigo em casa, arrancou-me a permissão de tra w
zer Maier, depois de amanhã, para jantar. Isso será intróito aos espon^^
sais, que só serão efetuados depois do batismo que, segundo me dissé ^
o padre Martinho, se poderá realizar em quatro a cinco meses. AMX
— Saberei ser enérgica, meu pai; é preferível, além do mais,
fazer com presteza o que não se pode evitar. ^
E a febril agitação que a dominava tão facilmente começou a
brilhar em seus olhos. Em circunstâncias tais, desconhecia os obstá ^
culos, e as dificuldades. ^
£ 45
Coitarás a pegar uma carta de jogo, nem te chegarás perto desse pano
f
f
verde sobre o qual fizeste desabar, ao acaso, a nossa fortuna, nossa
felicidade, a nossa vida. O tremendo sacrifício que nossa infeliz Valéria
^ e dispõe a consumar, pelas faltas de outrem, não deve ser em vão; a
"onr a de nosso nome não deve mais estar dependente de uma aventuj
de jogo; não poderia viver, temendo sempre um abismo sob os teus
és, para engolir-te. Risquemos e esqueçamos o passado; porém, jura,
p e me pretendes por esposa, fazendo justiça, sempre, a essa ilimitada
á
á
confiança que nos reuniu, não assinares jamais uma letra de câmbio
0e m a minha anuência; e, assim, em paz e felicidade, iniciaremos vida
ova; bastante força e amor sinto em mim para te fazer estimar uma
#
#
O espírito tentador fez surgir, ainda uma última vez, na mente do
0ve m oficial, as emoções embriagadoras da sala de jogo, as falaces
legrias que devia abandonar. Um esforço de vontade desvaneceu,
brém, esse quadro tentador; seu olhar, guiado por generosa decigtóo,
abismou-se no olhar da jovem, que acompanhara, ansiosa, as
^lutações de sua fisionomia.
p — Antonieta, minha bem-amada — disse, erguendo a mão, em
gesto solene — juro, por minha honra e pelo nosso amor, que nunca
mais pegarei numa carta de jogo; que não te esconderei jamai ^
qualquer dos meus atos, como o fiz na hora de angústia e humilhação
que nos reuniu. Os nossos interesses serão comuns. Fácil me serár
com o teu amor, começar uma vida diferente a teu lado, e, ainda qu4ft
vacilasse, a recordação deste momento e o nome de Valéria seriam
suficientes para me conduzir ao caminho da razão. w%
— Aí está uma história triste, meu pobre Egon; ainda que tenhas
esbanjado tua fortuna de maneira quase indesculpável, não é o
momento de fazer exprobrações. Longe de tal. Se me valessem os
meios, tirar-te-ia sem mais tardar do aperto, pois é penoso, para um
homem de tua idade e posição, ser obrigado a qualquer coisa; mas,
ajuntarei sinceramente: fora disso, não entendo porque esse casamento
seja um infortúnio tão grande. Conheço Samuel Maier, pois
encontrei-o muitas vezes em casa do meu sobrinho (eles foram companheiros
de Universidade): é um jovem amável, absolutamente fidalgo;
nele, nada nos lembra essa raça embrutecida e asquerosa que
nos acostumamos a desprezar. Não é, certamente, nobre o método
de que ele se valeu, mas deve-se ter em consideração sua situação
desfavorável: um homem novo, apaixonadamente enamorado, comete
as maiores loucuras para conquistar a mulher de seus desejos, e
mais ainda quando ela é uma Valéria. Cáspite! uma pérola sobretudo
se um tolo preconceito o impede de se pôr entre os demais
pretendentes.
— Tolo? — cortou o Conde. — uma Condessa de M""" e esse
filho de um avarento?
— Não te apoquentes, Egon, e confessa: a maior causa de tua
revolta é ser Samuel judeu; desde que receba o batismo, porém,
deixa de o ser. Sabes que, além do mais, de mim, não dou nenhum
mérito a todas essas nugas das velhas religiões que, baseadas numa
cosmogonia viciosa, cheias de ignorância e de lendas inverossímeis,
devem ceder seu posto a uma crença única, liberal e filosófica.
— Sei bem que és ateu, Maurício, e deploro-te por isto!
— Escusa-me: creio que existe um Ser Absoluto, Criador dos Universos;
esse Pai Eterno, porém, criou todos os seus filhos iguais, e não
aprova, com toda a certeza, essa mesquinha guerra que se fazem entre
si, sob o comando de homens cujo egoísmo se enfeita com o título
de seus ministros. Basta, entretanto, sobre o tema: conheço as tuas
convicções totalmente católicas e respeito-as. Permite-me, porém,
convencer-te de que um homem belo, espiritual, e suficientemente rico
para comprar um principado (o que não se pode desprezar em nossos
dias), não deve, de nenhuma maneira, fazer a infelicidade de minha
afilhada, apenas por ser de origem judaica e os seus antepassados
não terem durante as Cruzadas empunhado estandarte. Essas duas
jovens criaturas podem, sem dúvida, se amar e serem felizes.
— Por ora, ao menos, Valéria apenas sente por ele desprezo e
aversão — disse o Conde, num suspiro. — Até logo, meu caro Maurício;
julgarás, ao jantar, se as tuas esperanças otimistas têm alguma
possibilidade de se realizarem.
4 — 0 NOIVO JUDEU
o salão.
— Ela encontra-se ali, naquele gabinete. Vinde — respondeu o
barão.
Também o sacerdote apercebera-se da ausência de Valéria e, a
uma indicação do Conde, penetrara no gabinete. Vendo a donzela de
pé, perto de Antonieta, branca como o vestido que vestia e com ar
de silencioso desespero nas faces, aproximou-se com presteza e
murmurou, em tom recriminatório:
o
a sentar-se.
Aproximou-se, então, o Barão, abraçou a afilhada e tomou assento
perto dos noivos, iniciando uma conversação variada. Rodolfo
e Antonieta uniram-se a eles, indo o sacerdote Rothey para junto do
velho Conde, que ficara no salão.
Quando se anunciou que o jantar estava servido, sentiram-se
todos aliviados. O barão ergueu-se, rápido; seguiram-no, apressados,
Antonieta e Rodolfo; os noivos ficaram a sós, por um instante. Samuel,
cerimonioso, oferecera o braço à sua noiva; subjugado, porém,
pela emoção, segurou-lhe a mão e levou-a aos lábios ardentes.
— "Batizai-vos nisso!
"Conturbado, sem nada entender do que ocorria, saí da igreja,4p
com o fito de vos pedir uma explicação; tudo se transformara, porém; ^
à minha frente, alargava-se uma avenida totalmente tomada pelo W
povo, cujos limites finavam-se numa espécie de arena, do mesmoj ^
modo lotada de gente. Não sei porque, eu me encontrava num carro ^
dourado, em pé, junto ao homem fardado; desta vez, contudo, ele *
trajava uma toga e levava na cabeça uma coroa de louros, à moda^^
dos heróis romanos. Vestia-me da mesma forma, com uma enorme^,
espada, e bradava a toda força: "Morte aos cristãos!". Produziu-se um
tumulto e no seu transcurso, matei a muitos homens, mulheres e 0
crianças; e, no meio delas, encontrei-vos, inesperadamente, Valéria:^
ajoelhada, os cabelos livres, o olhar baço, ergueis, unidas, as mãos w
para mim, mãos que seguravam uma cruz. Bêbado pelo sangue e ^
pela ira, clamei: "Morre!", e levantei a espada. O oficial correu para ^
vós, no mesmo instante, levantou-vos, e com tal rudeza me afastou*^
que tombei de costas. Ao erguer-me, conturbado, achava-me no jar
dim de minha casa de bairro, em Pesth, junto ao grande lago; contudo,
senti-me doente: de lado, constatei sangrenta chaga, que ardia
como se fosse de fogo. Diante de mim, com vestido de noiva, vós,
Valéria, e eu apenas sabia que não vos casáveis comigo, porém com
— Este astro luminoso que tu vês, que a todos alumia, sem distinção
de raça e crenças, foi criado por um Deus que é nosso, vosso,
e que somente a humanidade relapsa, orgulhosa e ciumenta, dividiu
com seu ódio fratricida, para mais facilmente destruir a harmonia do
Universo, dirigida por uma única vontade. Pois bem: é a esse Deus
soberano, Valéria, que eu invoco por testemunha do teu juramento e,
se abjurares, que a vista desse sol, que brilha sobre nós neste
momento, seja para sempre um remorso vivo, uma acusação ao teu
ato de infidelidade!
A jovem escutara a tudo, descorada e os lábios a tremerem.
9 — Não tens piedade, Samuel, pois me atormentas assim; juro,
porém, que te serei fiel, e não corarei de ti e que, se à minha palavra
W faltar, não quero nunca mais ver o Sol.
Estas últimas palavras foram sufocadas por soluços convulsivos.
™A s lágrimas da mulher amada venceram e amedrontaram o banquei
—
Não; não tem o amor necessidade de vínculos visíveis, e cau0sa-
m e
horror apenas pensar que ainda estás sob o jugo de um sacrifício.
Juraste-me fidelidade, e eu acredito em ti, tanto quanto creio
em mim mesmo. Que serventia, para mim, têm esses documentos?
A ti, apenas, querida, é que eu quis, e jamais desejei a miséria dos
teus; hei de me sentir mais tranquilo e forte, quando não puder oporte
outra arma senão meu amor; quando, com outra garantia não
contar, senão com teu coração honesto!
— Vivei para fazer Antonieta feliz, meu filho , e sede mil vezes
benvindo!
Abraçou Valéria repetidas vezes, e percebendo o ardor que se
denunciava nos olhos de Raul, e as multiplicadas atenções de que
ele cercava a moça, pôs-se a observá-la, por sua vez, com atenção.
Após o chá, antecedido por uma ceia, longamente elogiada pelos
viajantes, durante a qual fez-se presente a mais cordial alegria.
Dirigiram-
se todos para o salão e dividiram-se em grupos. Conversando
com o Conde de M""" sobre pormenores do casamento, interrompeuse
a Princesa para dizer, com indisfarçável admiração:
— Quem ousa dizer que sou muito jovem para me casar? Caríssima
Antonieta, apenas quatro anos mais velho do que eu é Rodolfo
e, contudo, vós o julgais digno de vos esposar; permiti que vos
declare em erro. Minha opinião é que mamãe, como sempre, tem
razão e é indispensável que eu me case.
A apaixonada indignação do jovem provocou o riso geral.
Tal luta íntima, que longo seria narrar, durara tão-somente alguns
momentos, e o orgulho acabara vencendo.
Com voz sumida e débil disse:
O jovem Príncipe de O""" era filho mimado: tudo lhe sorria durante
a vida, vendo realizados os menores desejos e mesmo seus
caprichos, e essa primeira, porém, grande esperança refutada pareceu
vencer o limite de suas forças. Cobrindo o rosto com ambas as
mãos, jogou-se contra o encosto do banco, e grossas lágrimas deslizaram-
lhe por entre os dedos, como pérolas. Em seu desespero,
nem percebeu o murmúrio de uma conversação e os passos de duas
pessoas que andavam sem pressa, rumo ao pequeno bosque. Felizmente,
para ele, era a Princesa de O""" que, cansada da animação
da festa, chegava, pelo braço do Conde de M""", a fim de gozar alguns
momentos de descanso.
Assim que ele chegou, puxou-o para perto de si, no divã, e após
narrar-lhe a conversação mantida com o médico, ajuntou:
— Cometeis um erro, pai, crendo que Valéria seja feliz com tal
rompimento, e o considere uma alforria; tenho motivos para crer que
Valéria ame Samuel Maier: que, antes de nossa viagem, tiveram
entre si um entendimento decisivo; que ela se oporá energicamente
a violar a palavra empenhada ao noivo. Para que não me suspeitem
de tê-la influenciado, recuso-me a prevenir Valéria. Mandai chamá-la
por outra pessoa, e creio, esse não é o melhor meio para devolver a
saúde a Raul, cuja vida está nas mãos do Senhor.
— Que estais falando, Antonieta? — exclamou a Princesa de
O""", agitada de surpresa — Acreditais seriamente que Valéria possa
preferir um judeu usurário a Raul?
— Tende calma, cara Princesa — interrompeu o Conde.
— Ainda que minha nora pudesse ter razão, do que descreio
muito, tudo não passará de uma dessas fantasias naturais ao cérebro
desocupado de uma moça. Crendo-se ligada indissoluvelmente a
Maier, que em verdade, é belo e tem espírito, a generosidade exaltada
de Valéria fê-la buscar todos os pontos favoráveis de seu sacrifício;
além do mais, acrescente-se que a mulher é sempre frágil
quando se sabe amada, e a paixão ardente e constante desse homem
pode muito bem tê-la cegado e conquistado. Será suficiente
dar-lhe a conhecer que o seu sacrifício é desnecessário, e que um
homem da linhagem de Raul, ideal de corpo e alma, se torna seu
marido para fazê-la tornar à razão. E, agora, Rodolfo, faz soar a
campainha para que chamem Valéria. Com a resposta dela, nossos
debates estarão encerrados.
A jovem se mantinha em seu quarto, ensimesmada em agras
preocupações. A partir do momento em que Raul enfermara, isolarase
completamente; oprimia-a pensar que fora a causa involuntária do
infortúnio que magoara a Princesa; sentia-se posta de lado, era a
única que não fora chamada à cabeceira do enfermo; e qual seria a
sua posição se o Príncipe viesse a morrer? Não lhe passou pela
mente, porém, que pudesse, tornando-se noiva de Raul, fazer com
que recuperasse a saúde; tinha o coração e os pensamentos em
Samuel.
o coração.
— Valéria! — exclamou a Princesa, fazendo com que se sentasse
junto de si e apertando-a opressivamente contra o peito.
— Em vossas mãos está a vida de Raul.
— Eu? Que dizeis, Senhora? — sussurrou a jovem, de olhos
molhados. — Sou, involuntariamente, o motivo de sua doença, e isto
me torna bastante infeliz; não disponho, porém, de poder algum para
auxiliar de qualquer modo a esse pobre Raul, a quem devoto a estima
que se tem por um irmão.
— Laboras em erro, minha cara, e podes ajudá-lo em muito —
afirmou o Conde. Podemos ficar livres, por meio de honrosa transação,
que salvaguarda nossa honra e interesses, das onerosas obrigações
que tínhamos sobre os ombros. O banqueiro Maier, em breves
dias, será totalmente pago, tornando-se, pois, inócuo o sacrifício que
te impunhas, por amor de nós. És livre e poderás ser a noiva do
formoso e bom Raul, a quem esta boa nova deverá devolver a saúde
e a vida.
— Não, mil vezes não — disse, com voz agitada. — Samuel não
é imundo, nem ladrão, igual aos seus patrícios. Não pretendeu existir
entre nós laço algum senão o amor e a minha palavra, pois devolveume
todas as letras de câmbio, para que eu as destruísse. Exigi-me,
portanto, qualquer outro sacrifício e eu não me oporei; não pedi,
contudo, de mim, tão desleal traição, uma falsidade, que me faria a
mais vil das mulheres.
— Entregou-te as obrigações! — disseram todos a um tempo.
Sem lhes dar atenção, Valéria voltou-se e saiu.
— Esse velhaco é, na verdade, mais manhoso do que eu pensava!
Procedeu com absoluto conhecimento do génio generoso e ardente
de Valéria — afirmou o Conde. — Entretanto, o vosso discurso,
caríssima Princesa, agiu de modo eficiente e tenho certeza de lhe
vencer os escrúpulos infantis; falar-lhe-ei e tomarei os documentos,
para os enviar ao vosso procurador. Espero, depois, poder conduzir
a noiva para junto de Raul.
mos, por direito de nascimento, nos impõem deveres, que não pode
mos relegar sem pena; a tradição de honra, brasão sem mancha que
eu o sei, que foi para nos livrar da desonra que, de início, te sacri
sem juízo, dissipei o futuro de meus filhos, e não seria por certo para
teu pai estes dois meses. A presença de tal homem, cada sorriso e
— Não! Oh! não, papai; vive para mim, sê feliz. Deus levará em
conta esta hora, eu o acredito, e perdoará a minha traição. Renuncio
a Samuel; casar-me-ei com Raul!
Assaltado por real e funda emoção, o Conde cingiu-a ao peito.
o lastimo.
O jovem Conde repuxou, num gesto nervoso, o bigodinho louro.
— Leve o diabo esta história toda — exclamou. — Estou quase
a pensar que melhor teríamos feito em realizar o nosso casamento
em qualquer outra parte. Lamento, também, Maier, sinceramente; no
fundo, é bom rapaz; entretanto, não se pode, em verdade, sacrificar
por ele a vida de Raul, e jamais eu creria minha irmã apaixonada por
Samuel.
O médico, entrando, interrompeu a conversa dos jovens esposos.
o mais digno, e mais sublime filho que nosso povo abrigou em seu
seio, e ao qual, os que vos precederam, os Rabinos e os sumo-sacerdotes
do Templo, condenaram, por ele ter tido a coragem de dizer
à face do mundo: o espírito vivifica, a letra mata!
Aos poucos, Samuel se encorajava: seus olhos faiscavam, e
sua pessoa mostrava, toda inteira, inquebrantável energia e forte
convicção.
— Santo Deus! Doutor, sei bem que tendes razão, mas como é
ipossível estar longe de Valéria?
— Ora! Não é excessiva uma separação de oito dias, além de
que se tornará bem útil a ambos. Valéria encontra-se, também, nervosa
e cansadíssima: credes que não agiram maleficamente sobre
'esta débil e sensível natureza, os oito dias de insónias e temores que
lhe provocastes? Bem necessitada está de absoluto repouso, e, além
disso, acreditais que vos apresentareis vantajosamente, desta forma,
,pálido como espectro e com enormes olheiras? Meu jovem amigo,
escutai-me, com essa separação curta, igualmente sairão ganhando
|0 amor e a saúde.
As faces de Raul cobriram-se de forte rubor.
— Doutor, estais com a razão. Estou feio, e como posso assim
agradar minha noiva? Devo ausentar-me. Desejo, ao menos, despe-,
dir-me dela.
— Arroubos de namorados! Faz muito que a deixastes? Nãoi
desejo, porém, contrariar-vos. Entretanto, como Valéria se sentia mal
da cabeça, dei-lhe um soporífero para que dormisse. Por este motivo,<
proíbo que a despertem, mas dou-vos permissão para que beijes a
mão da adormecida. '
Raul deixou-se vestir, teimando, contudo, em ver Valéria antes
da partida. Levado ao braço por Rodolfo e pelo velho Conde, arrastou-
se, vacilantemente, até junto da espreguiçadeira, onde a noiva,
estava entregue a um sono pesado e febril. A semi-obscuridade do
quarto e o rubor que queimava as faces de Valéria concluíram-se)
para fazer nada suspeitar ao jovem Príncipe; levou aos lábios, de
leve, a pequena mão da adormecida; permitia, depois, tranquilizado,*
que o conduzissem para o veículo, onde o instalaram.
Tal como previra, porém, o Dr. Valter, ela viu-se esgotada pelo
excesso de sofrimento. A essa superexcitação seguiu-se grande fraqueza,
após o que se estabeleceu relativa calma em seu cérebro.,
Atendendo aos rogos de Antonieta, ingeriu algum alimento; cercada
de silêncio e de tranquilidade, isso concorreu para acalmar seus ner-i
vos exauridos. Ao cabo de uma semana, o doloroso desespero de
Valéria cedera lugar a uma funda, mas amena melancolia. I
Foi com alegria tão funda e terna que Raul reviu a noiva, que
esta não se sentiu com coragem, nem vontade, de mostrar-se fria.
Afetuosa, como irmã, respondeu ao seu beijo de boas-vindas e ale-
grou-se, com sinceridade, dos progressos visíveis que alcançara em
sua convalescença.
cido de voz; sem dúvida, porem, era isto uma ilusão de seu coração
amargurado; ela ocupava-se, naquele mesmo instante, com a festa
nupcial. Talvez fosse Ruth; a brancura de nácar da mão, contudo, de
dedos rosados e finos que segurava o manto, não podia confundir-se
com a mão morena e gorda da jovem judia.
O que não sabia, porém, é que dez minutos depois de ter saído
do palacete, com o intuito de lhe transmitir um recado do velho Conde,
de que antes se esquecera, Antonieta retornou aos seus aposentos.
Não a achando, quer na sua alcova, quer no oratório, nem nos
aposentos contíguos, Antonieta pôs-se preocupada. Fez vir Marta e
indagou-lhe de onde se encontrava Valéria. A camareira fez-se pálida,
perturbada, sinais evidentes que indicaram à Condessa consciência
perturbada e despertaram no seu espírito cruel pressentimento. Com
inusitada severidade, obrigou a serva a confessar, sem nada omitir,
por que se perturbava com pergunta tão corriqueira. Mal contendo o
pranto, e tremendo, Marta historiou sua conversação com Valéria, e
declarou ignorar os motivos de sua ausência. Sem lhe dar resposta
sequer, Antonieta dirigiu-se ao guarda-vestidos, seguida pela aia, e
pôde certificar-se, de pronto, do desaparecimento do capuz e do véu
preto.
quão curioso é este álbum que Raul me deu. Vens folheá-lo comigo,
A .
interessante. Terás tempo para te tranquilizares.
Valéria foi agitada por um tremor dos nervos:
%Jt — Não te entendo; que me vens dizer? - exclamou, levantando
, para a companheira um olhar cheio de interrogações,
w — Será referente ainda outra vez a... a... Samuel? Por piedade,
^ Antonieta, não me ponhas aflita. Não saberia dizer-te quanto tenho
9 sofrido, pensando nele... Aconteceu-lhe por acaso algo? Doente, talg
| vez?
ciúme.
A Sem mostrar que ligasse ao caso, Antonieta contou com pormenores
quanto assistira na véspera, sabendo perfeitamente que crava
va e
9
voltava a cravar um punhal no coração ferido de Valéria; era
mento, fiz perguntas à moça (que tem por noivo o criado grave de
9
136
— Estás certa, é meu desejo e meu dever olvidar esse filho insolente
da fortuna, que se intrometeu no meu caminho para envenenar
minha vida. Hei de resgatar a minha afronta moral para com Raul,
ofertando-lhe toda a minha alma. Não será tarefa difícil para mim,
porque ele é tão bom, tão generoso.
A — Eis que dizes bem e pensas melhor ainda — comentou Antonieta,
beijando-a. — Descansa, por enquanto; contou-me Raul que
9 irás, na segunda-feira, à Ópera, e convidou-nos a fazer-vos compa
— Nem tão judeu é ele! ... Voltemos, porém, ao teu quarto; es-£
creverei algumas palavras a Maier.
Sentando-se frente à secretária, Antonieta escreveu as seguintes
linhas:
"Senhor. As inúmeras emoções destes tempos são a causa de ter-w
me esquecido, por completo, de devolver-vos os dois enfeites aqui ^
juntos, sendo que um me foi enviado para esse fim pela Princesa de 0""",
™
antes de seu enlace matrimonial. Apresso-me agora a cumprir esse £
dever, pedindo-vos que me escuseis a demora e minha negligência.
A. de M""". #
— Isto é que está bem — comentou a Condessa, relendo em
alta voz o bilhete. — Vamos, pois, fazer um pacote destes estojos e, W
quando me for, enviarei o embrulhinho ao seu destino. _
Nessa tarde mesmo, tendo se retirado para o seu gabinete, a £
pretexto de trabalho urgente, mas apenas para estar só, pois nem
sequer dirigia um olhar aos papéis que se acumulavam na secretária, £
«
«
'ndos, Rodolfo mordeu os lábios, e, aos ouvidos da esposa, sussur
9
lexaminou a jovem judia, e seu coração encheu-se de ira e ciúme.
*Tão bela jovem, toda ardor e paixão, como não haveria de conquistar
o coração de um homem, ainda aquele que a tivesse desposado
sem amor. A ideia de que Samuel ousara escolher esposa
"tão bela queimava-lhe o sangue. Intimamente ofendida, voltou-se e
^seu olhar encheu-se com a figura de Raul, que conversava com
tss o mesmo.
aue Samuel não poderia ainda tê-la olvidado; que ela estava ainda de
aposse do poder de torturar seu coração e de fazê-lo pagar a ousada
^scolha . Sob o domínio desse sentimento novo, tocou levemente com
™ pequena mão o braço do marido, em sua voz vibrou uma indefinível
^expressão familiar e acariciadora, quando chamou, em tom suficientement
e alto para se fazer ouvida pelo traidor:
H — Raul!
O Príncipe voltou-se:
9 — Q u desejas, querida?
«
«
Nesse preciso momento, os olhos de Samuel encontraram-se
^b m os de Valéria. Em demasia superexcitada, Valéria não pestanej
; ele mostrou-se inatingível, frio, e somente uma palidez mais
entuada e a quase imperceptível contração dos supercílios mostrare
m à novel Princesa que o atingira no ponto sensível. Satisfeita, em
^reu íntimo, tomou o braço de Raul e saiu.
No entreato seguinte, Raul obsequiou as damas com uma linda i
caixinha de doces, Valéria não cessava de rir e conversar, mostrando^,
excessiva alegria; atendia com graça ideal as homenagens das pes-w
soas que vinham cumprimentá-la, fazendo-se coquete com Raul. ^
ção íntima que, mal entrou em casa, arriou-se sobre uma cadeira e
— Muito linda, e direi, meu jovem amigo, que não se deve usar
de crueldade. — Bateu no ombro do banqueiro, acrescentando:
— Que culpa tem eia das intrigas dos parentes e da insídia de Valéria,
e vossas palavras tê-la-ão magoado bem profundamente, tanto
é que desmaiou. Deveis transportá-la aos seus aposentos, com o que
se cortarão comentários e a bisbilhotice dos fâmulos, que não têm
nenhuma precisão de conhecer as vossas discórdias.
Sem palavra, o banqueiro abaixou-se, tomou Ruth nos braços e
levou-a para o aposento dela.
Voltando, deu com o padre Martinho de pé, perto da janela,
tendo com os dedos nas vidraças, semblante de preocupação.
•feutar às portas.
Ruth pôs-se de pé, apoiando-se de leve à secretária, e, com voz
rouca e agitada pelo excesso de emoção, disse:
— Essa experiência foi necessária para me ensinar que sou W
mais amesquinhada, sob o teu teto, do que qualquer dos servos a_ ^
que te referes. Não estava a par das tramas de Aarão e de meu pai.™^
Com toda paixão, amei-te. Desconhecia mesmo quanto desprezas e s
fazes pouco de tua própria raça, ainda que te repelisse, com asco,
uma cristã. Entanto, porque de tudo me inteirei, por fim não perma-A
necerei mais aqui e venho para cientificar-te que te desembaraço
completamente da mulher que, com sacrifício, suportas junto a ti. £
Retorno à casa de meu pai. Faz saber a todos que me expulsaste,
faz-me ré de todos os crimes, eu os carregarei em minhas costas, w
contanto que me livres de tua presença, e não te veja. Permite-me ^
que parta! ™
Samuel estava repentinamente rubro, e o espanto lhe tapava a s
boca. A esposa tinha a ousadia de fazer-lhe uma cena, censurar-Ihe
as palavras, ameaçá-lo com um escândalo!... No momento, porém, A
em que Ruth se calou, emocionada a sufocar-se, Samuel cruzou os
braços e disse, mordaz:
— Está aqui.
E ela percebeu Samuel, que vinha à frente de um criado, trazendo
a chávena de chá.
O olhar perscrutador do banqueiro encontrara de pronto o seu
refúgio.
A jovem, num átimo, limpou as faces úmidas com o lenço, e
ergueu-se; suas lindas feições adquiriram expressão fria e cheia de
desdém.
8 —
O tempo da espera, que ele não podia encurtar, foi por ele
empregado em amadurecer o seu projeto, em ajustar todos os detalhes
e todas as eventualidades. Na cegueira de seu ódio vingativo,
não cogitou de quanto era odioso o plano premeditado e que estava
jogando, de modo criminoso, com o destino de seu próprio filho.
— Que queres?
— Sr. Barão, o criado achegou-se com expressão de mistério —
soube, há pouco, que a sra. Princesa Valéria, na noite passada, deu
a luz a um filho. Marta não pôde pôr-me mais cedo ao corrente do
fato, porque sua patroa está se sentindo bem mal, e toda a casa está
em polvorosa.
Samuel pôs-se de pé, como se o movesse invisível mola. Rubor
de fogo tomou, em seu rosto, o lugar da palidez que de chofre o
invadira. Os olhos coruscavam, com uma alegria quase inumana.
— Está tudo preparado, Sr. Barão; não foi sem dificuldade, entretanto
— esclareceu ele, limpando o suor da fronte. — Na verdade,
no princípio, a estúpida Marta não queria aderir; mas, empreguei
todos os meios em convencê-la e, agora, ela concorda plenamente;
a ocasião é, também muito propícia: o Príncipe e a Condessa, que
estiveram ao pé da doente durante toda a noite e o dia todo, acabaram
de retirar-se para descansar algumas horas. O menino e a ama
encontram-se num dos quartos próximos, mas essa camponesa não
nos oporá entraves. O que está preocupando Marta é a maneira
como afastar a parteira, que vigia junto ao leito da Princesa qual um
Árgus, e a todo instante entra também no quarto onde está o menino.
Samuel, que a tudo ouvira silenciosamente, caminhou até um
armário junto da parede, abriu, e dele retirou um minúsculo vaso,
cheio de um líquido incolor.
Sua ira maior recaiu sobre a raça dos judeus, que ele personificava
em Samuel Maier, o desaforado que ousara oferecer a mão a
Valéria. Moveu surda perseguição aos israelitas em toda parte onde
os encontrou e todos os que desempenhavam qualquer cargo em
suas propriedades foram postos na rua, sem compaixão. Atendendo
ainda a esse mesmo sentimento, permitiu que o inocentinho Baruch
morresse, ele, que socorreria um cão a afogar-se.
I extremo, suicidando-se.
9 — 0 BAILE DE MÁSCARAS E
SUAS CONSEQUÊNCIAS
"Adorado,
"Recebi teu bilhete e não deixarei de comparecer, na noite de
hoje ao baile de máscaras da Ópera; coloca tão-somente, uma rosa
vermelha em teu vestuário, para que eu não me engane, se acaso
encontre mais de um Mefistófeles no salão. Vestirei dominó preto,
com um ramalhete de rosas-chá, atado ao ombro esquerdo por um
laço cor de cereja. Aguardar-te-ei à direita, junto ao quinto camarote,
como me pedes. GEMA."
— Ah! — fez Ruth, a tombar quase sobre uma poltrona. —
Então essa miserável atriz italiana é a minha rival? Seu nome é
Gema, eu o sei; e entre os seus inquilinos é que o Barão escolhe as
suas amantes? Bem prática é essa medida; contudo, desta vez, meu
caro Samuel, fizeste os cálculos sem contar com o hóspede.
Tremendo, nervosamente sobreexcitada, fechou a caixeta e saiu
do gabinete. Verificou, impacientemente, que a chave não se ajustava
agora.
Com um grito rouco, Ruth ergueu-se: aquele que ela julgara ser
Samuel era um homem que não conhecia, com quem se metera
numa casa de prostituição.
Ruth fez-se pálida; por longos meses, quem sabe?, estaria entregue
ao tédio e aos pensamentos tentadores.
"Minha adorada
curva para outra avenida ainda mais desertf. c, após ter renteado um
muro alto, por trás doqual se percebiam as árvores desfolhadas de
um jardim e a estreita frontaria de uma pequena e vetusta casa de
persianas fechadas, a sege penetrou através de vasto portão e fez
alto e m um grande pátio calçado, no limite do qual já se encontrava
outro carro parado.
— Muito grato por terdes vindo; oh! minha adorada, estais toda
gelada; antes de qualquer coisa, convém reconfortar-vos um pouco. —
E, voltando-se para o criado: — Gilberto, estará pronto o chocolate?
— Vou servir-vos, Alteza — retrucou o serviçal, afastando-se.
Interessada e cheia de admiração, Ruth pôs-se a observar a
encantadora salinha onde o Príncipe a introduzira. Todas as coisas,
a contar das tapeçarias e cetim até a mobília e os quadros faziam
ressaltar um gosto garrido e voluptuoso; o salão comunicava-se, por
um lado, com o refeitório; de outra parte, dava para um toucador e
dormitório, do qual apenas se percebia certo móvel, que uma toalha
enfeitada de rendas cobria, e encimado por grande espelho sustentado
por dois Cupidos. Grossas sanefas deixavam ocultas todas as
janelas; candelabros sobrecarregavam-se com inúmeras velas que
despejavam por toda parte cataratas de luz.
— "Dize a ...
186
"Senhor Príncipe
denhais, contudo, em ser amante de sua mulher, nem vos enoja receber
sob aquele nome maldito a vossa bastarda progénie... Considerareis
justo, assim o espero, que proteste contra essa partilha e
que dareis esta entrevista por derradeira.
SAMUEL MAIER".
o filho, tudo sofreria; essa imagem fiel do homem que, não obstante
tudo, ela idolatrava, lhe incutiria força e resignação.
O tombar de um objeto atirado pela janela da varanda, aberta,
e que caiu junto aos seus pés, cortou o agitado passeio; abaixando-
se levantou do soalho uma pedra onde estava preso um pedaço
de papel. De sobressalto em sobressalto, desdobrou o papel
e leu:
"Senhora
GILBERTO NETOSU"..
• • •>
— Eis-me aqui para ouvir de tua própria boca a razão pela qual
te fizeste amante do Príncipe de O
Ruth ergueu-se e, tentando segurar-lhe a mão, sussurrou, com
olhar súplice:
Ruth Maier
o filho cujos costumes diferiam muito dos seus e levava vida doméstica
a parte, no andar térreo. Por ocasião do seu projetado casamento
com Valéria, Samuel aumentara e adaptara às novas contingências a
sua casa de solteiro, à qual ele dava preferência sobre os aposentos
do andar superior, muito luxuosos; contudo, quando o destino pôs por
terra todos os seus planos, e deu ao jovem banqueiro uma outra
noiva, terceira reforma fora efetuada.
A ex-residência do pai fora remodelada para os jovens esposos;
encontravam-se aí os dormitórios, guarda-roupas, os salões de recepções,
e do andar inferior Samuel fizera gabinete de trabalho, antepondo-
o, como fiel sentinela, a três aposentos trancados a qualquer
olhar indiscreto, nos quais guardava todas as lembranças do seu
desgraçado
amor, isto é, a mobília e os presentes outrora destinados à
mulher amada. Pequeno salão de leitura localizava-se junto ao gabinete,
e estava unido ao dormitório do banqueiro por uma escada em
caracol. O que restava do apartamento, ocupavam-no uma biblioteca,
uma sala destinada à coleção de quadros e mimos chineses, uma
enorme estufa que dava para o famoso terraço, o "atelier", etc. Este,
no qual se achava mais distanciado da mulher e mais próximo de
suas lembranças, era o retiro preferido de Samuel, sobretudo no
verão.
199
Deu logo com uma faixa de luz, filtrando-se através das cortinas
abaixadas e projetando-se sobre uma folhagem de moita; pouco mais
além, contudo, de uma larga janela saiam torrentes de claridade.
Esse salão estava deserto, tendo, sobre uma pequena mesa, aceso,
um candelabro de cinco velas, que ressaltava o chapéu e as luvas
do banqueiro, assim como um monte de jornais e papéis diversos.
1 — TRIBUNAL FAMILIAR
—
206
por ela. Valéria, contudo, jamais cairia tão baixo por uma paixão
mesquinha;
considero-a como incapaz de se rebaixar a ponto de ter tido
um amante.
"Pouco mais, e aquele vapor esgarçou-se evi teu pai, como saído
"qual estivera por tantos longos meses privada; entanto, num átimo, a
—
conservá-lo; entretanto, as minhas mãos puderam apenas tocar a •
tela. Aturdida, julgando perder a razão, arrastei-me para o genuflexó-—
rio, e tombei de joelhos; julga tu, porém, dos meus sentimentos, ™
quando deparei ao pé do crucifixo com um papel aberto, onde se
achavam escritas, com a própria letra de teu pai e assinadas com seu
nome, exatamente as palavras que acabara de escutar. Não podia ^
duvidar: a bondade divina tinha erguido para mim a pedra sepulcral;
eu vira e ouvira um dos que os nossos olhos grosseiros não enxer-9
gam, mas vivem. Ajoelhada, agradeci a Deus. Jamais narrei a alguém
este acontecimento; temia que uma dúvida, um riso escarninho e 9
incréu, maculassem este santo e grave mistério. E, agora, mostrar-teei
este escrito que, há vinte anos quase, conservo pendente de meu ™
pescoço".
— Queres jurar, por esta cruz, à tua mãe moribunda, jamais promoveres
semelhante escândalo?
Emocionado, vencido por esse olhar e esse tom de voz, o jovem
caiu de joelhos e apertou aos lábios a cruz e as mãos gélidas que
a seguravam.
• não me é possível mais viver com ela; entre nós dois abriu-se um
s abismo; e a concórdia e a confiança para sempre estão mortas para
nós. Estive, na manhã de hoje, em casa de meu comandante e fiz£.
lhe entrega de minha demissão. Espero poder partir dentro de uma
semana, pretextando urgência em viajar; o menino ficará com sua
9 mãe...
Silenciosa, e mais parecendo um cadáver, Valéria tudo escutou;
W a estas últimas palavras, porém, agarrou o braço do Príncipe, e disse,
com intraduzível acento:
• — Oh! Raul! se puderas saber quanto és injusto para comigo...
s Minha única falta consiste em ter usado esse medalhão; entretanto,
não soube mais como tirá-lo dali. Há muito tempo o meu coração não
4) pertence já a Maier; a sua lembrança apenas persiste em mim como
^ a de um pesadelo. Que torva fatalidade emprestou a Amadeu essa
w parecença, não posso explicar; tenho-te sido fiel todo o sempre; haja
com vossa mãe, e que ela vos fornecerá provas irrecusáveis de sua
identidade, daqual não tenhais que duvidar.
VALÉRIA."
W 3 — A CONVERSÃO DO ATEU
Olé!
Quando o tufão, riso vibrante,
Repelindo-nos, fere,
Qu e dizem mortos negligentes?
Sua voz de defuntos
Geme e diz: setal conhecera
Sabiamente melhor vivera!
Huhu!
Olé!
o padre Rothey um dia lhe dera, e que talvez tivesse sido guardado
por Estêvão no fundo da estante.
Na folha de papel, posta no centro da mesa, escrevera-se em
grossos caracteres: "Sacudi o volume".
bem, e não para nos saciar nos prazeres materiais. Também eu sofro
e julgo, com acre desgosto, quanto esperdicei a minha última existência
d e provação.
mãos ao médium:
™ — Não tenho expressões co m que agradecer-vos, caro senhor,
^r^restastes-me um serviço tal, para o qual não existe paga — disse
—
252
—
253
mortal. Por vezes, recriminava-se por ter assistido a essa sessão, que
Ahe roubara o sono e o descanso.
9
9
or
umq
data a esta parte, o banqueiro não permitia que o perturbassem, ser írn™
ser a chamado seu. 4 b
filho compreenda que, enquanto não tiver escolhido sua rota, a lut^P
prosseguirá; dai que bem depressa ele esqLeça a crença que turbou^
sua alma, se ele não for capaz de distinguir o verdadeiro do falso; s™>
lhe faltar o ânimo para reconhecer o bem, para entender que a vitoriai
faz repousar... Oh! meu filho! assim como essa vingança, que se as™
semelhava tão importante para ti, se desmanchou entre tuas mãos,
assim também parecer-te-á, u m dia, insignificante e mesquinha a
opinião dos homens, a qual dás tanto apreço. É ser desgraçado o
criminoso que conta co m a impunidade, e recua diante do castigo e
da justa recriminação dos homens.
4 — A CONFISSÃO
— Hoje mesmo, meu filho, terei livre toda a tarde e irei ouvir-vos.
Será preciso repetir-vos que, seja de que espécie for a vossa revelação,
a secreta úlcera de vossa alma que me mostrais, o segredo
morrerá comigo?
À noite, Samuel foi para o quarto outrora destinado a Valéria, e
poupado sobrenaturalmente ao fogo.
5 — A RECONCILIAÇÃO
em meu íntimo; acredito que lhe tive ódio naquele momento; e quem
poderá assegurar que Raul não tenha razão em suspeitar de uma
infâmia no fato inexplicável dessa forte semelhança?
Ae, segurando com a mão o seu braço, disse, com os olhos chamejantes:
do o menino.
Tendo vindo alguns dias antes, com um binóculo na mão, oculto potq
detrás das laranjeiras, ele tudo observava do que ocorria na outra
quinta,™
com o interesse de um apaixonado (e, de fato, ele o estava tanto quantq_
nos primeiros dias de seu casamento). A prolongada separação, a que
se juntava a inesperada resistência de Valéria, avivaram-lhe os senti-^
mentos; a presença da esposa arrematara a vitória. Nunca, como então,
ela lhe parecera tão encantadora e apetecível. Antonieta estava com dA
razão: Valéria fizera-se ainda mais linda, e o vinco enérgico que lhe
conformara a boca, e o brilho sombrio dos olhos, emprestavam-lhe à0)
aparência u m caráter e u m encanto completamente originais. _
.de
onde devia mandar vir a carruagem, afastou-se.
Desassossegada e triste, tia Adélia estava junto a uma janela,
batendo com os dedos na vidraça uma marcha acelerada.
Valéria, que nada entendia desse mau humor, e estava fatigada
demais, sentou-se numa poltrona, dando-se por feliz por haver se
abrigado da chuva violenta, que, estrondosamente, desabava lá fora,
sobre a coberta de ferro da galeria envidraçada.
— Amadeu!
No rosto expressivo do menino, a princípio, se refletiu enorme
espanto, e em seguida imensa alegria: a memória avivara-se-lhe.
Movido por essa inquietude, acabou por deixar Pesth dias depois
e, com Egon, dirigiu-se à sua propriedade de Válden, onde se
entretinha e m reconstruir, conforme o plano primitivo, o velho castelo
feudal, já e m ruínas, doqual adquirira e usava o título.
— Que fez esta criança para que se berre assim com a pobrezinha?
Se houve prejuízo, eupagarei e tudo ficará em paz — disse
o
banqueiro, aproximando-se da criança.
Os olhares se voltaram para ele.
— Enxuga teus olhos, Ruth — disse o rapazinho antes que o
porteiro abrisse a boca. — Este senhor, que é muito bom, te dará
com que comprares uma garrafa nova de leite, e a estalajadeira não
te dará mais pancadas.
A menina então ergueu a cabecinha e, através das lágrimas
copiosas, seus dois grandes olhos negros e aveludados fixaram
Hughes com uma expressão angustiosa, de esperança e súplica ao
mesmo tempo.
o filho de Raul! Mas por que Ruth, que havia levado consigo uma
fortuna e tinha todo o direito ao auxílio do seu abastado amante,
caíra em tamanha miséria, ao ponto de expor sua filha à caridade
alheia?
O regresso súbito da criada tirou Hughes da meditação.
— "Meu Deus! Como pode uma doente subir uma tal escada" —
perguntou Hughes parando, exausto, diante de uma porta entreaberta
donde vinha u m cheiro fétido de águas podres e cozimentos.
E Hughes saiu.
Passando pelo quarto da estalajadeira, entregou a esta uma
cédula bancária, em paga da mensalidade de Ruth. Na rua, fez todas
as compras necessárias e, no hotel, mandou preparar um aposento
ao lado do seu.
Duas horas após, elegantemente vestida, instalava-se Ruth, com
a menina, no confortável e belo aposento do hotel. Sentia-se como
que num sonho: mas esse luxo, essas comodidades das quais havia
tanto tempo sido privada, lhe causavam mal-estar.
Quando a criança adormeceu e o chá foi servido, os esposos,
depois de tanto tempo separados, acharam-se enfim a sós.
Co m os cotovelos sobre a mesa, Hughes pensava; e Ruth, que
o olhava ansiosamente, de súbito se desfez e m lágrimas, segurando
a mão do marido e levando-a contra os lábios.
"Príncipe
HUGHES MAIER."
entender-nos. Ruth tem uma filha, e para com ela o senhor não tem
^nenhuma obrigação. A mim, sim, é que compete o futuro dela. Devo,
portanto, dizer-vos, que se a mãe dela vier a morrer, eu a tomarei
)para
educá-la convenientemente.
Hughes, admirado, ergueu para Raul um olhar profundo e
^atento.
— Não, não posso exigir que minha esposa eduque uma filhaA
ilegítima, ainda que eu e ela não tenhamos segredos um para com
o outro. Eu desejo colocar a criança em casa de uma família honestaA
e assim velar pelo seu futuro.
Um sorriso amargo e ao mesmo tempo desdenhoso passouw
pelos lábios do banqueiro. E disse:
•jquo.
Como uma ocasião como esta jamais há de se apresentar (o
olhar de Hughes tornou-se cintilante), espero que também ponhais
tijem prática, com relação a mim, o lema da nossa Doutrina: "Fora da
^caridade não há salvação".
W À porta do aposento de Ruth, o banqueiro retirou-se; e Raul
entrou sozinho.
• Ruth estava deitada num divã, amparada sua cabeça sobre di-
Jmversas almofadas. Um roupão de pelúcia vermelha realçava um pouco
sua palidez mortal. Num tamborete Violeta brincava com uma
*^valiosa boneca, tão grande quanto ela.
Raul parou por um instante, espantado e comovido; essa mulher
Wtão pálida, semimorta, seria realmente a Ruth de outrora, soberba e
^bel a que subjugara seus sentidos? Violeta, porém, ali estava para tal
™atestar. Sem dúvida, essa linda criaturinha, de cabelos castanhos,
_er a realmente sua filha, sua viva imagem
M%
Raul atraiu para si a menina e abraçou-a. A menina, a princípio
intimidada, agora animou-se com o Príncipe, o qual lhe fez algumas
^carícias. Violeta, mostrando-lhe a boneca, disse:
—
Vosso esposo nada mais me deixou oferecer a esta menina
Asenão o meu afeto e em relação a vós sou impotente para reparar as
^faltas cometidas.
W — Oh! eu é que tenho ainda de agradecer-vos a generosidade
—constante para comigo. Quanto a Violeta, o vosso beijo trará felicida"
de . Também vos agradeço por terdes vindo. Netosu abusou muito da
«j/ossa generosidade, mas eu só soube das suas extorsões depois da
• tudo. •
Voltando para junto da enferma, Raul sentou-se numa cadeira *
próxima e, apertando-lhe a mão, disse:
Mas nada contou a Marta sobre esse novo projeto, pois ela
detestava lembrar a origem de sua fortuna. Desde que se tornara
mãe, de vez em quando o remorso lhe picava o coração: contribuíra,
afinal, para privar outra progenitora do seu primeiro filho? Aliás, ainda
ignorava totalmente as consequências que seu crime trouxera a Valéria.
— Papai, eu acabei!
Quando Marta viu o cano apontado contra seu peito, afastou-se
instintivamente para o lado direito e a bala fora penetrar no peito do
menino.
Princesa.
nar o ferimento.
Rothey.
— Meu pobre amigo, meu irmão, tem coragem que ainda tudo
não está perdido. O menino vive, há de salvar-se. Mas não deves
assistir ao curativo. Vem comigo para perto de Valéria. Não deves
abandoná-la neste momento.
O Príncipe deixou-se levar, maquinalmente, aos aposentos da Princesa.
Valéria continuava desacordada. E Raul, agora possuído por um
acesso de desespero, atirou-se a um divã e chorou, convulsivamente.
— Está morto!
E se lançou para Amadeu, que de olhos cerrados e lábios entreabertos
tombara nos travesseiros.
O médico, porém, disse, calmo:
— Não quero que Raul torne a ver essa maldita arma — murmurou
ela, deitando-se em um divã.
A entrada do esposo a tirou da modorra. Ele entrou desfigurado.
Sentou-se junto da mulher, desabotoou o uniforme.
Apenas com o pai indigno que repeliu o próprio filho, devo ter
explicações!
Quero perguntar a Maier qual o fim da sua odiosa ação e mostrar-
lhe os funestos resultados. Padre Martinho, escrevei-lhe, eu vos
peço, e convidai-o já a vir aqui. Mas não mencionai os motivos do
convite.
— Entrai!
Agitado e pálido, o banqueiro obedeceu: estava agora num grande
aposento, no fundo do qual se via um leito com dossel e sobre o
leito, na parede, um grande crucifixo de prata. Na cabeceira, Raul, de
pé e tendo atrás de si o padre Rothey e Rodolfo, que acabava de
aproximar-se.
"Não faças aos outros o que não desejas que te façam", disse o
grande Missionário, que tão bem sabia conhecer o coração humano.
324
Não viu que, numa das sacadas, a aia, desejosa de também ver
o campo. Sem esperar, Raul deixou escapar uma das rédeas e não
pôde mais segurá-la. O perigo era iminente. Mas se equilibrando,
Raul tentava parar o carro. Mas em vão. Ao sentindo a mão do condutor,
os animais estavam desorientados. Corriam a bel-prazer, agora
em linha reta para o lago perto de Rudenhof, grande lago de águas
argênteas, que já aparecia, ao longe, por entre as árvores. Raul
decidiu-se: se os animais não se detivessem, jogar-se-ia fora do
cabriole com o risco de quebrar as pernas e os braços.
Por sua vez, o banqueiro, aproveitando-se da frescura da manhã,
também saíra para um passeio, a pé. Pensativo, andava por um
atalho que costeava o grande lago. Adorava esses lugares e muitas
vezes visitava a ilhota onde aliás passara as melhores horas de sua
vida.
— Grato pela tua dedicação. Com alegria vejo que estás restabelecido
e que a tua nobre ação não resultou em consequências desagradáveis.
— Príncipe! — disse Hughes, vivamente emocionado. — Não
mereço agradecimentos. Paguei uma parcela de gratidão ao bondoso
salvador de minha honra. Mas, ai de mim! que não pude evitar-te uma
desagradável enfermidade.
— A morte, isso sim — respondeu Raul, sacudindo a cabeça. —
Mas este fato jamais diminui o teu mérito. O homem apenas tem
vontade, mas a verdade é que Deus é quem dispõe dos nossos1
destinos!
Príncipe e beijou-a.
Sim, era bem seu filho, sua imagem em miniatura, traço por traço.
mas.
Uma tarde, estando a passeio, Raul teve uma viva alegria: encontrou
o coronel B..., que fora seu iniciador no Espiritismo. O velho
militar trouxera a Nice sua esposa enferma e a filha. Depois de rápidos
cumprimentos, o coronel acabou por convidar o Príncipe e Valéria
para um chá. E desde esse dia as duas famílias mantiveram amistosas
relações, muito confortantes para Raul.
O coronel e os seus ficaram impressionados com a dolorosa
mudança exterior de Raul, e o médico lhes confirmou que realmente
a morte do Príncipe era esperada para breve. Todavia, a família do
coronel dissimulava a triste verdade: procurava-se, portanto, distrair o
doente por todos os meios possíveis.
— Tudo quanto Deus faz é bem feito, Valéria! Além do mais, querida
Valéria, a morte do corpo representa apenas uma separação
provisória: os invisíveis, tu bem o sabes, não estão ausentes!
Nada Valéria respondeu: com a cabeça encostada ao peito do
esposo, chorava convulsivamente. Raul deixou-a desabafar, mas também
chorava em silencio.
— Não quero aceitar tal promessa. Não posso exigir luto eterno.
Considero sacrilégio contra a natureza um ser que através de um
juramento fica preso a um túmulo. Ficarás livre, minha Valéria. Viverás
como mandar teu coração. E já que abordamos assunto tão
desagradável, quero fazer-te um pedido. Na gaveta esquerda da minha
secretária existe uma carta, selada e lacrada, dirigida a ti. Vai
buscá-la e conserva-a contigo, mas sem abri-la. Se Deus me chamar,
vinte e quatro meses depois poderás abri-la. Antes dessa data, não,
te peço. As linhas que escrevi te provarão que o meu amor vela por
ti tanto quanto hoje, querida.
Emocionada, Valéria buscou a carta, beijou-a e em seguida
guardou-a numa bolsinha que a acompanhava sempre.
Quantas vezes não pensou em abrir a carta que Raul lhe deixara!
Mas o marido lhe dissera: "Não antes de 24 meses"! E Valéria,
suspirando, beijava a carta e tornava a guardá-la.
E o inverno passou.
— Samuel! Tu?!
Depois, procurando acalmar-se, acrescentou sentindo que uma
onda de sangue lhe afluía ao rosto:
—
Perdão, Sr. Barão, eu esbarrei violentamente!
O banqueiro, surpreso, inclinou-se, dizendo respeitoso:
— Eu é quem peço perdão, Senhora Princesa, pelo susto que
' provoquei, pondo-me tão desastradamente em vosso caminho e assim
provocando esse choque.
Apesar da delicadeza dessas palavras, havia nelas qualquer
coisa que feriu Valéria; a Princesa procurou passar bruscamente mas
Hughes lhe tolheu o passo, dizendo:
o desejo de ofender Valéria, fazê-la ver que nada mais ela representava
em sua vida...
Sentindo o olhar inquiridor do banqueiro, Valéria sentiu-se incomodada.
O silêncio que reinava entre ambos tornou-se então insuportável.
— Por que ninguém mais vos vê, Sr. Barão? — disse ela, vol-
tando-se. — (Um rubor súbito tomou-lhe as faces) Rodolfo tem-se
queixado de que muitas vezes o evitais sem motivo. E não atendeis
aos convites dele.
— Ando bastante ocupado e pouco frequento a sociedade. Além
.do mais... (e a voz de Hughes tornou-se velada) sei, por
experiência
própria, que não posso abusar da benevolência do conde, uma, vez
que ele precisa dedicar-se com exclusivismo à Senhora Princesa.
sobre o peito. Numa das mãos tinha uma tesoura e na outra uma
satisfação.
— O que quereis dizer com essas indiretas, Sr. Maier? Por que
pareceis raivoso contra mim, agora? Que fiz eu para que tenhais a
vontade de punir-me pelo passado?
— Eu, raivoso? — repeliu Hughes olhando os olhos brilhantes
de Valéria. — Eu, querer punir-vos pelo passado? Mas que direito
tenho eu? Como vos iludis estranhamente, Princesa! Sei que nós
ambos esquecemos as loucuras da juventude. A cada um de nós deu
o destino uma tarefa: a mim, a de pagar certas dívidas, amando e
educando os filhos do Príncipe; e a vós, a de velar por vosso filho e
chorar fielmente o homem bondoso que tanto vos amou!
Nesse instante ouviram-se gritos e chamados. Hughes interrompeu-
se.
amigavelmente. a
abrandado a ira. _
carta que Raul lhe deixara para ser lida 24 meses depois de sua morte!
"Por fim Maier fez o mais duro sacrifício que um coração ultrajado
e violento pode fazer, quando verdadeiramente arrependido: quis
salvar-me, à custa da própria vida, a fim de conservar a minha e a
tua felicidade! Se porém não obteve resultado, a culpa não foi dele.
Este último acontecimento me fez compreender que, por ti, minha
Valéria, eu e ele travamos um duelo celeste... E vejo que, do perigo
mortal que ambos corremos, ele, o mais exposto, salvou-se, enquanto
que eu morro. Assim, compreendi que o Céu se manifestara contra
.mim, e nada mais justo e cordial que aquele que desaparece ceder
não o repilas! Ele é assaz infeliz vivendo só, e o nosso Egon tem
que meu Espírito sentirá ciúmes. Eu sei que meu amor continuará
ao fato de ser Maier judeu, isso não deve impedir em nada, porque
a assinatura de Raul.
— Egon, Ego! Meu pobre filho está morto! Não posso acreditar!
Ele estava no domingo passado cheio de saúde e vida, antes de voltar
a Rudenhof!... E Violeta também? Mas que aconteceu, meu Deus?
— Calma, Valéria. Vou contar-te tudo. Rodolfo caminhava esta
manhã rumo ao quartel e admirou quando viu à porta da casa do
banqueiro um ajuntamento. Desceu do carro e foi espiar. O porteiro
então lhe narrou o acontecido. Na véspera, a aia e as duas crianças
foram passear de barco no lago. Ao voltarem, fez-se uma violenta
ventania. E o chapéu de Egon voou. Travesso, o menino tentou pegálo
perto da margem. Perdendo o equilíbrio, caiu. Quanto à canoa, na
qual iam todos, perdeu também o equilíbrio e virou-se. Apenas Trenberg
pode salvar-se. Logo depois alguns pescadores retiravam os
corpos do lago. Uma tragédia! O infeliz Trenberg passou um telegrama
ao banqueiro e fez transportar os cadáveres à estrada de ferro.
Estão agora em Pesth.
— E Hughes, que faz? — perguntou Valéria, petrificada.
— Seu estado é horrível. Rodolfo está junto dele. Hughes está
louco de desespero! "Deus não quer o meu arrependimento! Arrancou-
me a provação da minha vida, o alvo da minha existência!" —
disse o banqueiro a Rodolfo, que procurava consolá-lo.
— Irás ver os mortos? — perguntou a Princesa, cada vez mais
pálida.
— Venho de lá — disse a Condessa, com um solução. — Eu
tinha de avisar-te de tudo, minha Valéria. Ainda não pude porém ver
o Hughes. Fechou-se em seu aposento, está extenuado. Depois a
velha mãe da aia, ao ver a filha morta, fez uma cena deplorável.
Estava inconsolável, a infeliz. Hughes tentou acalmá-la, prometeu-lhe
uma pensão vitalícia. Não resisti à cena para mim demais emocionante
e voltei para ver-te, depois de vestir os dois anjinhos, que
pareciam dormir!...
E Antonieta, numa crise de choro, interrompeu-se.
ela como um raio. O peito parecia oprimido. Mas nem uma lágrima
viera aliviá-la.
ver ainda uma vez Egon, beijá-lo, chorar e rezar junto dele, sem tes
o véu.
Já ia sair do salão, quando percebeu no aposento contíguo,
entreaberto, o banqueiro sentado frente a uma mesa sobre a qual
estava a fotografia em ponto grande das duas crianças. Valéria sentiu
compaixão e se aproximou, dizendo:
— Por que será que a felicidade aqui na Terra nunca nos é dada
completa? — disse Hughes, com um suspiro. — Por que, meu Deus,
temos de pagar o nosso amor com a morte de duas criancinhas? Eu
gostaria muito de cumprir a palavra que dei ao Príncipe, fazendo
deles dois seres exemplares! Mas...
E Hugues baixou a cabeça, tristemente. Valéria comprimiu-lhe a
mão, e depois deixou o aposento.