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Rubens Oliveira Martins

Mestre pela USP. Doutor em Sociologia pela UnB.


Professor da UPIS.

REESENHA

Barcelos, Eduardo Dorneles


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
Telegramas para Marte*

Revista Múltipla, Brasília, 9(15): 147 – 149, dezembro – 2003

Em meados de abril de 1066, olhares atônitos acompanham o traçado


deixado pelo Cometa de Halley no firmamento... o rei Eduardo acabara de morrer
e o condestável Haroldo toma a coroa da Inglaterra, contrariando o juramento de
lealdade feito a Guilherme da Normandia, “o conquistador”. A Tapeçaria de
Bayeux imortalizou essa cena em que a “stela” no céu parece ser portadora de
uma mensagem de “mau agouro” ao novo rei.
Em 1º. de fevereiro de 2003 o mundo assistia com espanto à notícia da
desintegração do ônibus espacial americano Colúmbia, que explodiu nos céus do
Texas no momento de seu retorno à Terra. Esse acidente nos fez lembrar
imediatamente a explosão de outra nave espacial, a Challenger, que fazia sua 25ª
viagem e explodiu segundos após o lançamento, no dia 26 de janeiro de 1986.
Esses dois acidentes fazem parte de uma seqüência de tragédias que vêm
ocorrendo desde o início da chamada era espacial, isto é, do momento em que os
homens desenvolveram a tecnologia capaz de empreender viagens para fora de
nosso planeta, ainda que com horizontes limitados para as viagens tripuladas.
Quase mil anos entre esses diferentes acontecimentos, e ainda nos
perguntamos como compreender o fascínio que o espaço sideral exerce sobre os
homens, fazendo-os se lançarem em aventuras arriscadas para a “conquista do
espaço”.
Embora as razões “de Estado”, da política e da economia possam ser
destacadas para essa insistência, não se pode desconsiderar a marca do enigma
deixada nos homens, que a vivenciam pela observação do céu estrelado – tarefa
cada vez mais difícil nas grandes cidades iluminadas.
Esse imaginário sobre os mistérios do universo tem sido propagado
também no cinema, em filmes como Missão Marte, Contato, ET, Contatos
imediatos do terceiro grau, Independence day, sem esquecer o famoso seriado da
década de 60, Jornada nas estrelas, nos quais se alternam visões por vezes
otimistas, por vezes pessimistas, sobre uma potencial situação de contato entre
nossa espécie e uma espécie alienígena.
Aqueles que se interessam em aprofundar o estudo desses temas para
além dos limites da ficção científica e das simplificações de algumas visões
cinematográficas podem contar com a leitura da obra de Eduardo Barcelos,
Telegramas para Marte, publicado pela Editora Jorge Zahar em 2001.
Nesse livro o autor nos apresenta a dinâmica do desenvolvimento de uma
ciência que tenta se estabelecer como legítima, a exobiologia, que, como todo
novo paradigma, está submetida aos embates dentro do campo científico já
previstos por teóricos como Thomas Khun, Pierre Bourdieu e Bruno Latour.
Nas palavras do próprio autor: “A exobiologia, desse modo, seria apenas
mais um capítulo de uma longa história de esperanças extra-mundanas. As
peculiaridades de nossa época, marcada por profundas e múltiplas crises, seriam
geradoras de uma mentalidade coletiva responsável pelo ressurgimento
escatológico.” (p. 63)
A história do Projeto SETI (Search for extraterrestrial intelligence ou
Pesquisa sobre inteligência extraterrestre), nascido nos anos 1960 e mostrado no
filme Contato (baseado no livro de Carl Sagan), testemunha essa perspectiva
humana diante de um universo infinito que povoa a mente dos homens com a
interrogação fundamental sobre se estamos ou não sozinhos nesta imensidão
silenciosa.
E antes mesmo desse projeto Barcelos nos narra como, nos anos 1920, já
tinha havido propostas, consideradas sérias, de comunicação com Marte a partir
de ondas hertzianas, tendo havido até mesmo um “rádio silêncio” em 1924,
decretado pelo exército e pela marinha norte-americanos, aguardando uma
mensagem do Planeta Vermelho....Esses “assovios no éter”, como os chama
Barcelos, seriam os “telegramas” que deveriam seguir a sistemática do código
Morse.
A possibilidade de uma resposta positiva a essas tentativas faria com que
nos defrontássemos com questões éticas – qual o lugar da espécie humana em
uma história universal? –, antropológicas – qual é o status dos valores humanos e
da cultura? –, existenciais – a origem e a perspectiva da extinção da espécie
humana –e religiosas – o sentido da vida humana e da criação.
O “temor” trazido pela necessidade de enfrentar essas respostas tem sido
superado pela permanência da curiosidade do espírito humano: desde os pré-
socráticos vislumbramos a tentativa de compreensão do universo.
E essas tentativas, ainda que tímidas quando comparadas à moderna
ciência, merecem o respeito pelo que significam de ousadia desse mesmo espírito
humano investigativo: quando Heráclito, cerca de 500 anos antes de Cristo,
afirmava que a largura do sol é a de um pé humano, não podemos deixar de lado
o fato de que para fazer tal afirmação, como nos lembra José Cavalcante de
Souza, foi preciso que o filósofo se deitasse no chão, levantasse o pé e o medisse
em relação ao sol visível, e o que disse continua válido até hoje.
E a partir dessas primeiras ousadias atingimos o atual estágio, em que a
legitimidade de um objeto de investigação nos coloca nos limites da ciência por
meio da imaginação, porém a partir de posturas sistemáticas e rigorosas, que não
permitem a vulgarização da ciência.
Entre as diferentes problemáticas trazidas por essas reflexões podemos
incluir ainda as dificuldades de comunicação imaginadas numa situação de
“contato”, que permite refletir sobre questões bastante reais, como o “choque de
civilizações” e a universalidade da ciência, defrontando-nos com o etnocentrismo e
com o chauvinismo.
Além disso, esse “contato” é capaz de revelar a permanência de posturas
“salvacionistas”, embutidas na esperança terrena de paz e nas visões utópicas de
futuro, sempre vinculadas às imagens dos futuros colonizadores de uma “nova”
humanidade.
A respeito do que nos reserva a ciência e a curiosidade humana,
estaríamos então usando a analogia de Latour, diante da caixa de Pandora, que,
embora nos assombre, também nos desafia a investigar o que restou dentro dela
e talvez a encontrar ainda alguma esperança.
E podemos então concluir juntamente com Eduardo Barcelos: Há séculos
os astrônomos procuram pacientemente decifrar a escrita sutil das estrelas. Ainda
não sabemos o que nos aguarda no fim do arco íris.

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