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A usucapião entre herdeiros e o direito de herança

A USUCAPIÃO ENTRE HERDEIROS E O DIREITO DE HERANÇA


The usucaption between heirs and the right of inheritance
Revista de Direito Privado | vol. 98/2019 | p. 85 - 105 | Mar - Abr / 2019
DTR\2019\26092

Márcio Berto Alexandrino de Oliveira


Bacharel em Direito pela Universidade Vale do Rio Doce – UNIVALE. Especialista em
Direito Processual pela PUC Minas. Advogado atuante nas seguintes áreas: direito
administrativo, eleitoral, tributário, civil e previdenciário. Analista Jurídico do Município
de Governador Valadares. marcioberto2008@hotmail.com

Área do Direito: Civil


Resumo: O presente artigo visa fazer uma correlação entre a possibilidade do
reconhecimento de usucapião entre herdeiros sobre os imóveis do acervo hereditário e o
direito de herança/propriedade na atual conjuntura jurídica. Conforme demonstrado no
presente estudo, todos os imóveis particulares podem ser usucapidos, tendo em vista
que o legislador somente vedou usucapir os imóveis públicos. Dessa forma, não pode
prevalecer o entendimento de que não é possível um herdeiro, que exerce a posse plena
e exclusiva sobre a totalidade da herança, requerer ao juiz que seja declarada adquirida
a totalidade da herança com base no instituto da usucapião. O entendimento de que não
é possível o herdeiro usucapir o quinhão hereditário do coerdeiro não passa de uma
invenção e inovação jurídica por quem não detém competência e legitimidade.

Palavras-chave: Direito de propriedade – Direito de herança – Princípio da saisine –


Usucapião entre herdeiros – Posse exclusiva – Função social da propriedade – Interesse
da coletividade – Posse mansa – Animus domini – Lapso temporal – Direito não
decadencial
Abstract: The present article aims to correlate the possibility of recognizing usucaption
between heirs on the properties of the hereditary heritage and the right of
inheritance/property in the current juridical context. As shown in the present study, all
private property may suffer usucaption, since the legislature only prohibited usucapir
public property. In this way, it can not prevail the understanding that it is not possible
for an heir, who exercises full and exclusive possession over the entire inheritance, to
require the court to declare the inheritance as a whole to be acquired on the basis of the
usucaption institute. The understanding that it is not possible for the heir to do the
usucaption of the coheir is no more than an invention and legal innovation by those who
do not have competence and legitimacy.

Keywords: Property right – Inheritance law – Saisine principle – Usucapion among heirs
– Exclusive possession – Social function of property – Interest of the collectivity –
Tenuous possession – Animus domini – Temporal lapse – Nondeadential right
Sumário:

1.Introdução - 2.O direito de propriedade e a função social da propriedade - 3.A


usucapião entre herdeiros e o direito de herança - 4.Considerações finais - 5.Referências
bibliográficas

1.Introdução

O presente artigo visa fazer uma correlação entre a possibilidade do reconhecimento de


usucapião entre herdeiros sobre os imóveis do acervo hereditário e o direito de
propriedade na atual conjuntura jurídica.

Embora o inciso XXII do artigo 5º da Constituição da República de 1988 assegure o


direito de propriedade, tal garantia não é absoluta, tendo em vista que, em caso de
descumprimento da função social do imóvel, não há que se falar em propriedade plena,
podendo o dono do imóvel perder a propriedade em razão de desapropriação por
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A usucapião entre herdeiros e o direito de herança

interesse social (art. 182, § 2º, da CRB) ou por meio de ação de usucapião.

Vale consignar que o direito à herança previsto no inciso XXX do artigo 5º da


Constituição da República de 1988 também não é absoluto, podendo sofrer limitação,
conforme será explanado ao longo do presente estudo.

Conforme será abordado, o Legislador Pátrio não proibiu que o herdeiro pleiteasse a
aquisição do acervo hereditário através da ação de usucapião. O legislador apenas não
admitiu usucapir os imóveis públicos pelo decurso do tempo, não incluindo os imóveis
pertencentes a herdeiros no rol da proibição. Assim, não pode o intérprete ou julgador
criar vedação não prevista pelo legislador democraticamente constituído pelo povo.

Equivocadamente, alguns desavisados entendem não ser possível a usucapião sobre


imóvel deixado pelo instituidor da herança, em detrimento dos demais herdeiros, ao
argumento de que o imóvel adquirido por herança é insuscetível de usucapião. Em que
pese o posicionamento dessa corrente doutrinária e jurisprudencial, tal posicionamento
não encontra respaldo no ordenamento jurídico vigente, tratando-se de verdadeira
invenção e inovação jurídica por quem não detém competência e legitimidade, vez que
somente o Poder Legislativo pode inovar no Sistema Jurídico Pátrio.

Dessarte, a usucapião sobre imóvel adquirido por herança não encontra obstáculo na
legislação brasileira, pois apenas os imóveis públicos são insuscetíveis de usucapião. No
mais, qualquer outro imóvel pode ser objeto de ação de usucapião, desde que o
usucapiente demonstre o exercício da posse exclusiva sem oposição durante o lapso
temporal legalmente exigido e o animus domini.

Feitas essas considerações introdutórias, passa-se ao tema proposto.

2.O direito de propriedade e a função social da propriedade

Conforme visto anteriormente, o direito de propriedade encontra respaldo no artigo 5º,


inciso XXII, da Constituição da República de 1988. Todavia, o direito de propriedade,
como qualquer outro direito, não é absoluto, comportando exceções. Tanto é que o
inciso XXIII do artigo 5º do Texto Constitucional estabelece que a propriedade deve
atender a função social.

O direito de propriedade e sua função social também encontram guarida no Código Civil
(LGL\2002\400) Brasileiro de 2002, em seu artigo 1.228, in verbis:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de
reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades


econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o
estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e
o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

Segundo a melhor doutrina, o direito de propriedade consiste no direito real de usar,


gozar ou usufruir, dispor ou reivindicar a coisa, desde que feita dentro dos limites da sua
função social, portanto, o direito de propriedade não é absoluto, conforme
equivocamente defendido por alguns.

Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco ensinam que a garantia
constitucional da propriedade está submetida a um intenso processo de relativização,
devendo ocorrer uma ponderação entre o direito individual e o interesse da sociedade.
Vale transcrever o ensinamento dos mencionados autores, vejamos:

Deve-se reconhecer que a garantia constitucional da propriedade está submetida a um


intenso processo de relativização, sendo interpretada, fundamentalmente, de acordo
com parâmetros fixados pela legislação ordinária. As disposições legais relativas ao
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A usucapião entre herdeiros e o direito de herança

conteúdo têm, portanto, inconfundível caráter constitutivo. Isso não significa, porém,
que o legislador possa afastar os limites constitucionalmente estabelecidos. A definição
desse conteúdo pelo legislador há de preservar o direito de propriedade na qualidade de
garantia institucional. Ademais, as limitações impostas ou novas conformações
emprestadas ao direito de propriedade hão de observar especialmente o princípio da
proporcionalidade, que exige que as restrições legais sejam adequadas, necessárias e
proporcionais. [...].

Essa necessidade de ponderação entre o interesse individual e o interesse da


comunidade é, todavia, comum a todos os direitos fundamentais, não sendo uma
1
especificidade do direito de propriedade .

Assim, se o imóvel não cumpre a função social (uma propriedade improdutiva), o dono
do imóvel não será considerado proprietário pleno, podendo perder a propriedade para
que a mesma venha a exercer a função social prevista no Texto Constitucional.

Conforme se vê, o direito de propriedade e a necessidade de que ela atenda à função


social encontra respaldo na norma constitucional e infraconstitucional. Assim, para que o
dono do imóvel tenha a propriedade plena deverá fazer com que ela cumpra as
finalidades sociais, haja vista que, na atualidade, a propriedade não é mais um direito
ilimitado, como outrora.
2
Nesse sentido, corrobora Fábio de Caldas Araújo :

A determinação de que os bens devam ser utilizados em conformidade com o bem da


comunidade marca uma distribuição equitativa no seio social, uma forma de propiciar
oportunidades para o desenvolvimento de todos. Ao mesmo tempo em que se garante a
igualdade material, abre-se espaço para a liberdade real, pois o indivíduo pode,
efetivamente, decidir seu destino na comunidade onde vive.
3
Sobre a função social da propriedade ensina Thiago Colnago Cabral que:

[...] a função social da propriedade consiste, justamente, no instrumento adotado pelos


ordenamentos contemporâneos para, considerando a formação histórica da definição do
domínio [...] reconhecer que a propriedade, enquanto instituto jurídico de nível
constitucional, presta-se, de um lado, ao resguardo dos interesses do titular do domínio,
mas, de outra banda, representa medida destinada a salvaguarda do interesse coletivo
de difusão da dignidade da pessoa humana [...].

Após o advento da Constituição da República de 1988, a propriedade deixou de ter


caráter exclusivamente patrimonialista com a finalidade de atender os interesses
individuais para ter, também, finalidade social (art. 5º, XXIII, CRB). Com isso, na atual
conjuntura jurídica, a propriedade passou a ter finalidade dinâmica, pois visa atender
interesses individuais do proprietário e da coletividade, esta ao cumprir a função social.
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Fredie Didier Júnior entende que, em caso do possuidor cuja posse não esteja em
conformidade com os deveres que lhe são constitucionalmente impostos, não é deferida
a tutela processual da posse, aduzindo que esse domínio não é digno de proteção
jurídica, porquanto em desacordo com o modelo constitucional do direito de propriedade,
não podendo, desta forma, receber proteção jurídica.

Na atual conjuntura jurídica não é conferido ao proprietário utilizar o imóvel ao seu bel
prazer, pois toda e qualquer atividade a ser executada no imóvel deve estar em
harmonia com as normas vigentes, especialmente em consonância com as normas
ambientais.
5
José dos Santos Carvalho Filho , citando Pontes de Miranda, assevera que:

Modernamente se tem assegurado a existência da propriedade como instituto político,


mas o conteúdo do direito de propriedade sofre inúmeras limitações no direito positivo,
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A usucapião entre herdeiros e o direito de herança

tudo para permitir que o interesse privado não se sobreponha aos interesses maiores da
coletividade.

Com passar dos anos, o direito de propriedade foi ganhando nova roupagem, não sendo
atribuído ao imóvel apenas uma função individual como outrora, mas também uma
função social, ou seja, a propriedade privada deixou de ser absoluta, uma vez que
também deve atender às necessidades e interesses da coletividade. Logo, a garantia de
propriedade deve ser relativizada visando atender aos interesses da coletividade.

Ao longo dos anos, o direito à posse vem ganhando força no Sistema Jurídico Pátrio,
tanto é que o artigo 1.238 e seguintes do Código Civil (LGL\2002\400) brasileiro, que
dispõe sobre usucapião de imóveis, admite a aquisição originária da propriedade em
razão do exercício da posse ininterrupta sobre o imóvel por determinado lapso temporal
e com efetivo ânimo de ser dono do imóvel.

A possibilidade de aquisição do imóvel em razão do exercício da posse plena encontra


respaldo também no Texto Constitucional, conforme previsão contida no caput do artigo
191, ou seja, a aquisição originária da propriedade, por meio de usucapião, tem previsão
na legislação constitucional e infraconstitucional, o que demonstra a real intenção do
legislador Pátrio em premiar aquele que, mesmo não sendo o proprietário do imóvel, faz
com que a propriedade cumpra sua função social, tornando-a produtiva por seu trabalho
ou de sua família e tendo nela fixado sua moradia.

Vale registrar que a norma vigente apenas excepciona a aquisição dos imóveis públicos
por meio de usucapião, tanto é que o parágrafo único do artigo 191 da Constituição da
República de 1988 estabelece que “os imóveis públicos não serão adquiridos por
usucapião”. Logo, os imóveis públicos não podem ser adquiridos pelo decurso do tempo,
não podendo o particular ser considerado possuidor do imóvel, mesmo que tenha fixado
sua residência há anos sobre o imóvel pertencente ao Poder Público, sendo sua situação
jurídica de mero detentor, não gerando posse.

No atual cenário jurídico, a função social sobrepõe ao direito de propriedade, portanto,


àquele que, mesmo não sendo proprietário, confere à propriedade a função social poderá
ser contemplado com o título de propriedade. Nesse caso, estão em conflito o direito à
propriedade e a necessidade de a propriedade atender à função social, devendo a função
social sobrepor ao direito de propriedade.

Realmente, o legislador Pátrio assegurou ao proprietário os direitos inerentes à


propriedade, conferindo-lhe mecanismos para proteção do direito de propriedade e de
posse, prevendo no Capítulo III do Código de Processo Civil de 2015 as ações
possessórias para efetivar suas garantias. Todavia, o direito de propriedade não é
absoluto, devendo o direito à propriedade ser relativizado quando a mesma não atender
a sua função social.

Vale transcrever os ensinamentos de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet


Branco acerca da função social da propriedade, vejamos:

Na Constituição de 1988, a função social está disposta no art. 5º, XXIII, que define que
a propriedade atenderá a sua função social; e, no art. 170, III, como princípio geral da
ordem econômica nacional. Também é mencionada em dispositivo relativo à política
urbana, que estabelece que a propriedade urbana cumpre sua função social quando
atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor
(art. 182, § 2º). A Constituição prevê, ainda, que o descumprimento da função social da
propriedade rural enseja a desapropriação por interesse social (art. 184); que a lei
garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o
cumprimento dos requisitos relativos a sua função social (art. 185, parágrafo único); e
que a função social da propriedade rural é cumprida quando atende, simultaneamente e
segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

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A usucapião entre herdeiros e o direito de herança

a) aproveitamento racional e adequado; b) utilização adequada dos recursos naturais


disponíveis e preservação do meio ambiente; c) observância das disposições que
regulam as relações de trabalho; d) exploração que favoreça o bem-estar dos
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proprietários e dos trabalhadores (art. 186) .

Dessa forma, todos os imóveis particulares podem ser usucapidos, o que inclui os
imóveis do acervo hereditário, tendo em vista que o legislador somente vedou usucapir
os imóveis públicos. Assim, não pode prevalecer o entendimento absurdo de que não é
possível um herdeiro, que exerce a posse exclusiva sobre a totalidade da herança,
requerer ao juiz que seja declarada adquirida a totalidade da herança com base no artigo
1.241 do Código Civil (LGL\2002\400) brasileiro de 2002.

3.A usucapião entre herdeiros e o direito de herança

A usucapião é o modo originário de aquisição da propriedade em razão da posse


ininterrupta e prolongada da coisa, devendo o usucapiente preencher os demais
requisitos previstos no Código Civil (LGL\2002\400), o que inclui o lapso temporal
mínimo.

Vale registrar a existência de dois tipos de posse, a posse ad interdicta, que gera direitos
de defesa da posse, como é o caso do locatário, e a posse usucapionem, que é apta para
adquirir a propriedade, onde o interessado deve comprovar a posse ininterrupta e
prolongada do imóvel, devendo, ainda, comprovar efetivo ânimo de ser dono do imóvel.

O Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.163.118/RS, tendo como Relator o Ministro


Luis Roberto Salomão, aduziu que “preenchidos os requisitos da usucapião, há, de forma
automática, o direito à transferência do domínio, não sendo a sentença requisito formal
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à aquisição da propriedade ”, ou seja, a sentença na ação de usucapião apenas declara o
possuidor como proprietário.

Conforme será abordado a seguir, o acervo hereditário também pode ser objeto de ação
de usucapião, até porque o direito à herança decorre do direito de propriedade,
podendo, portanto, ser usucapido.

Com o falecimento do instituidor da herança transfere-se imediatamente aos herdeiros a


propriedade e a posse indireta do acervo hereditário, devendo os herdeiros tomar as
providências cabíveis para assumir a posse direta sobre seu quinhão, sob pena de
aplicação da usucapião como sanção, em razão da inércia de algum herdeiro.

Apesar de o Legislador Constituinte assegurar, no inciso XXX do artigo 5º da


Constituição da República de 1988, o direito à herança aos sucessores do falecido, a
garantia constitucional não é intocável, pois a herança não se trata de um direito
potestativo não decadencial, logo, pode ser usucapido como qualquer outra propriedade
particular.

O próprio Texto Constitucional traz limitação expressa acerca do direito de herança,


tanto é que o inciso XLV do artigo 5º estabelece que a obrigação de reparação de danos
e a decretação do perdimento de bens pode ser estendida aos sucessores, e contra eles
executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido, o que reforça a tese de que
o direito à herança não é absoluto.

Conforme visto no tópico anterior, o direito de propriedade não é absolto, logo o direito
do herdeiro sobre seu quinhão hereditário também não é absoluto, podendo
perfeitamente ser usucapido por um terceiro ou por um coerdeiro que exerce a posse
sobre a totalidade da herança, até porque o legislador Pátrio apenas vedou usucapir os
imóveis públicos, não incluindo na vedação os imóveis deixados pelo de cujos.

Dessarte, se o herdeiro não tomar providências para assumir a posse direta de seu
quinhão, deixando que outro herdeiro exerça a posse exclusiva sobre o acervo
hereditário, como se dono fosse, pode ter seu direito de herança afastado, pois toda e
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A usucapião entre herdeiros e o direito de herança

qualquer propriedade particular deve atender a sua função social. Portanto, aquele que
não tomar providências para assumir a posse direta, bem como conferir função social ao
quinhão hereditário, não terá proteção ao direito de herança.

Dessa forma, não é conferido ao julgador e/ou o intérprete, ao seu bel prazer, vedar que
o herdeiro requeira ao juiz, mediante usucapião, que seja declarado proprietário da
totalidade do acervo hereditário, tendo em vista que se fosse intenção do legislador
vedar a possibilidade de usucapião entre herdeiros faria de forma expressa, conforme o
fez com relação aos imóveis públicos.

Conforme é de conhecimento de todos, a interpretação do texto legal para ser válida


deve ser coerente e responsável. Valendo-se das palavras do professor Lenio Luiz
Streck, a interpretação “em um contexto de constitucionalismo pós-guerra, não pode
extrapolar os limites semânticos do texto”, haja vista que esse limite é condição para a
existência do próprio Estado Democrático de Direito. O renomado doutrinador continua
aduzindo que “o respeito ao texto quer dizer compromisso com a Constituição e com a
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legislação democraticamente constituída ”.

Dessarte, não pode o julgador, discricionariamente, indeferir a inicial de usucapião ao


argumento de que não é possível o herdeiro usucapir o quinhão do coerdeiro, tendo vista
que não existe na norma vigente nenhum dispositivo que veda a usucapião entre
herdeiros. Por conseguinte, não pode o julgador, ao seu bel prazer, criar vedação não
prevista pelo legislador que foi democraticamente constituído pelo povo, sob pena de
afronta ao princípio constitucional da tripartição de poderes previsto no artigo 2º do
Texto Constitucional. Dessa forma, não é passível de supressão, por se tratar de uma
Cláusula Pétrea.

Portanto, não pode o Poder Judiciário inovar no Sistema Jurídico Pátrio para vedar a
possibilidade de usucapião entre herdeiros, pois, do contrário, ocorrerá violação à
garantia constitucional da separação dos poderes (art. 2º da CRB), em que cada poder
tem competência específica, não podendo um adentrar na esfera do outro.

Em decorrência disso, justifica-se a importância da divisão dos Poderes do Estado, o qual


os estudiosos aduzem que adveio da obra de Aristóteles, chamada “Política”, prevendo a
existência de três funções, quais sejam: “a função de editar normas gerais a serem
observadas por todos, a de aplicar normas ao caso concreto (administrativo) e a função
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de julgamento, dirimindo os conflitos oriundos das normas gerais nos casos concretos” .

Com o passar dos anos, o pensamento jurídico foi se aprimorando. Assim, no afã do
Estado Liberal, Montesquieu, no seu livro Espírito das Leis, “[...] inovou dizendo que tais
funções estariam intimamente conectadas a três órgãos distintos, autônomos e
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independentes entre si [...]” ..
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Nas palavras de Ferreira Filho , a divisão das funções consiste em dividir o exercício do
poder político entre vários órgãos diferentes e independentes, através de um critério
variável, seja funcional, seja geográfico, de modo que órgão algum isolado possa agir
sem ser freado pelos demais. É, pois, essa divisão que impede o arbítrio, ou ao menos o
dificulta, sendo esses poderes independentes e harmônicos.

Até hoje, nessa linha, a Constituição da República de 1988 estabelece em seu artigo 2º
que no Brasil existem três Poderes, independentes e harmônicos entre si. Sendo eles: o
Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário.

Assim, ao Poder Legislativo foi concedida a função típica de editar as normas jurídicas,
ou seja, as leis – aqui dito em sentido latu sensu – ; ao Poder Executivo foi dada a
missão de administrar e ao Poder Judiciário, a função jurisdicional, que corresponde em
dizer o direito no caso concreto.

Em momento algum o legislador constituinte autorizou o Poder Judiciário inovar no


sistema jurídico vigente, portanto, toda decisão judicial proferida em contrariedade à
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A usucapião entre herdeiros e o direito de herança

norma vigente é nula, não sendo apta a surtir efeitos no mundo jurídico.

Assim, o entendimento de que é impossível o herdeiro usucapir o quinhão do coerdeiro


não encontra respaldo no ordenamento jurídico vigente, não passando de uma invenção
jurídica totalmente contrária ao ordenamento jurídico vigente. Infelizmente, existem
alguns julgados inadmitindo usucapião entre herdeiros, todavia, tais decisões não
encontram sustentação jurídica.

Recentemente, ao enfrentar o tema objeto deste artigo, o Superior Tribunal de Justiça


vem admitindo o instituto da usucapião entre os condôminos, conferindo ao condômino a
legitimidade para usucapir, em nome próprio, imóvel deixado pelo falecido, desde que
exerça a posse por si mesmo no imóvel, bem como a posse exclusiva com efetivo
animus domini pelo prazo determinado em lei, sem qualquer oposição dos demais
proprietários/herdeiros, vejamos:

Direito processual civil e civil. Recurso especial. Ação de usucapião extraordinária.


Prequestionamento. Ausência. Súmula 282/STF. Herdeira. Imóvel objeto de herança.
Possibilidade de usucapião por condômino se houver posse exclusiva.

1. Ação ajuizada 16.12.2011. Recurso especial concluso ao gabinete em 26.08.2016.


Julgamento: CPC/73 (LGL\1973\5).

2. O propósito recursal é definir acerca da possibilidade de usucapião de imóvel objeto


de herança, ocupado exclusivamente por um dos herdeiros.

3. A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como violados impede o
conhecimento do recurso especial.

4. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e


testamentários (art. 1.784 do CC/02 (LGL\2002\400)).

5. A partir dessa transmissão, cria-se um condomínio pro indiviso sobre o acervo


hereditário, regendo-se o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da
herança, pelas normas relativas ao condomínio, como mesmo disposto no art. 1.791,
parágrafo único, do CC/02 (LGL\2002\400).

6. O condômino tem legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a
posse por si mesmo, ou seja, desde que comprovados os requisitos legais atinentes à
usucapião, bem como tenha sido exercida posse exclusiva com efetivo animus domini
pelo prazo determinado em lei, sem qualquer oposição dos demais proprietários.

7. Sob essa ótica, tem-se, assim, que é possível à recorrente pleitear a declaração da
prescrição aquisitiva em desfavor de seu irmão – o outro herdeiro/condômino –, desde
que, obviamente, observados os requisitos para a configuração da usucapião
extraordinária, previstos no art. 1.238 do CC/02 (LGL\2002\400), quais sejam, lapso
temporal de 15 (quinze) anos cumulado com a posse exclusiva, ininterrupta e sem
oposição do bem.

8. A presente ação de usucapião ajuizada pela recorrente não deveria ter sido extinta,
sem resolução do mérito, devendo os autos retornar à origem a fim de que a esta seja
conferida a necessária dilação probatória para a comprovação da exclusividade de sua
posse, bem como dos demais requisitos da usucapião extraordinária.

9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido. (REsp 1631859/SP,


Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 22.05.2018, DJe 29.05.2018).

Agravo regimental. Agravo em recurso especial. Imóvel em condomínio. Possibilidade de


usucapião por condômino se houver posse exclusiva.

1. O condômino tem legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a
posse exclusiva com animus domini e sejam atendidos os requisitos legais do usucapião.
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A usucapião entre herdeiros e o direito de herança

2. Agravo regimental provido. (AgRg no AREsp 22.114/GO, Rel. Min. João Otávio de
Noronha, 3ª Turma, j. 05.11.2013, DJe 11.11.2013).

Ação de usucapião. Herdeira. Possibilidade. Legitimidade. Ausência de pronunciamento


pelo tribunal acerca do caráter público do imóvel objeto de usucapião que encontra-se
com a caixa econômica federal.

Provimento do recurso especial.

1. O condômino tem legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a
posse por si mesmo, ou seja, desde que comprovados os requisitos legais atinentes à
usucapião, bem como tenha sido exercida posse exclusiva com efetivo animus domini
pelo prazo determinado em lei, sem qualquer oposição dos demais proprietários.

2. Há negativa de prestação jurisdicional em decorrência de não ter o Tribunal de origem


emitido juízo de valor acerca da natureza do bem imóvel que se pretende usucapir,
mesmo tendo os recorrentes levantado a questão em sede de recurso de apelação e em
embargos de declaração opostos ao acórdão.

3. Recurso especial a que se dá provimento para: a). reconhecer a legitimidade dos


recorrentes para proporem ação de usucapião relativamente ao imóvel descrito nos
presentes autos, e b). anular parcialmente o acórdão recorrido, por violação ao artigo
535 do CPC (LGL\2015\1656), determinando o retorno dos autos para que aquela ilustre
Corte aprecie a questão atinente ao caráter público do imóvel. (REsp 668.131/PR, Rel.
Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. 19.08.2010, DJe 14.09.2010).

No mesmo modo, tem decidido o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais:

Ementa: Apelação Cível – Ação de usucapião – Código Civil de 1916 – Sucessão


hereditária – Condomínio pro indiviso – Herdeiro co-proprietário – Possibilidade de
usucapir em nome próprio – Lapso temporal não cumprido – Causa interruptiva –
Reconhecimento da usucapião – Impossibilidade. Na data da entrada em vigor do Novo
Código Civil (LGL\2002\400), já havia transcorrido mais da metade o prazo previsto na
lei anterior, de modo que suas disposições é que devem ser observadas para análise da
pretensão de reconhecimento da prescrição aquisitiva no caso dos autos.

O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que é possível, em tese,


ao co-proprietário de condomínio pro indiviso requerer usucapião, desde que comprove a
posse de área delimitada do imóvel e os demais requisitos legais pertinentes à aquisição
da propriedade exclusiva. Não comprovado o lapso temporal necessário para o
reconhecimento da usucapião, não há como reformar a sentença que julgou
improcedente a pretensão autoral. (TJMG – Apelação Cível 1.0024.10.184064-3/001,
Relator(a): Des.(a) Juliana Campos Horta, 12ª Câmara Cível, j. 05.10.2016, publicação
da súmula em 13.10.2016).

Ementa: Ação de usucapião. Herdeiro. Legitimidade ativa. Posse exclusiva. Tempo do


antecessor. Acessão da posse. Impossibilidade. Requisitos não comprovados. Sentença
reformada.

A ação de usucapião pode ser ajuizada por herdeiro ou condômino quando verificada a
existência de posse exclusiva, com animus domini, e desde que demonstre de modo
inequívoco a exclusão dos demais condôminos ou herdeiros. Todavia, nesses casos,
quando a ação é proposta por apenas um dos herdeiros, não é possível aproveitar o
tempo de posse do autor da herança para completar o lapso temporal da usucapião em
detrimento dos demais herdeiros. (TJMG – Apelação Cível 1.0111.06.007125-0/001,
Relator(a): Des.(a) Marcos Lincoln, 11ª Câmara Cível, j. 01.12.2016, publicação da
súmula em 15.12.2016).

Conforme visto anteriormente, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, mesmo


que de forma tímida, vem admitindo a ação de usucapião ajuizada por herdeiro em
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A usucapião entre herdeiros e o direito de herança

desfavor de coerdeiro, quando verificada a existência de posse exclusiva com animus


domini e desde que demonstre de modo inequívoco a exclusão dos demais condôminos
ou herdeiros, o que demonstra a evolução progressista do entendimento do Tribunal
Mineiro.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul também já teve a oportunidade de


manifestar sobre a legitimidade ativa do herdeiro em propor ação de usucapião contra os
demais herdeiros, quando o usucapiente demonstrar o exercício de posse exclusiva
durante o lapso temporal legalmente previsto na norma vigente, bem como o com
animus domini, vejamos:

Ementa: Apelação cível. Usucapião. Imóvel. Herança. Posse exclusiva de herdeiro


comprovada. 1. Inocorrência de nulidade da citação editalícia. Preliminar afastada.

2. Em princípio, somente se admite a usucapião sobre imóvel adquirido por herança, em


detrimento dos demais herdeiros, em hipóteses excepcionais, quando o usucapiente
demonstrar o exercício de posse exclusiva durante o lapso temporal legalmente previsto
e com animus domini. Hipótese em que o demandante logrou êxito em comprovar a
posse revestida de animus domini, pelo período suficiente ao reconhecimento da
prescrição aquisitiva pretendida. Sentença confirmada. Fixados honorários recursais.
Negaram provimento ao apelo. Unânime. (Apelação Cível 70072689938, 18ª Câmara
Cível, Tribunal de Justiça do RS, Rel. Marlene Marlei de Souza, j. 14.09.2017).

Ementa: Apelação cível. Ação de usucapião extraordinária. Imóvel. Herança. Posse


exclusiva de herdeiro. Ônus da prova. Em princípio, somente se admite a usucapião
sobre imóvel adquirido por herança, em detrimento dos demais herdeiros, em hipóteses
excepcionais, quando a usucapiente demonstrar o exercício de posse exclusiva durante o
lapso temporal legalmente previsto e com animus domini. Posse decorrente de relações
familiares que aponta para a existência de mera tolerância. Posse não revestida de
animus domini, elemento anímico indispensável ao reconhecimento da prescrição
aquisitiva visada. Sentença confirmada. Negaram provimento ao recurso unanime.
(Apelação Cível 70065397176, 18ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Nelson José Gonzaga, j. 16.06.2016). (Grifos)

Ementa: Apelação cível. Ação de usucapião extraordinária. Imóvel. Herança. Posse


exclusiva de herdeiro. Ônus da prova. Em princípio, somente se admite a usucapião
sobre imóvel adquirido por herança, em detrimento dos demais herdeiros, em hipóteses
excepcionais, quando a usucapiente demonstrar o exercício de posse exclusiva durante o
lapso temporal legalmente previsto e com animus domini. Posse decorrente de relações
familiares. Prova oral que aponta para a existência de mera tolerância. Posse não
revestida de animus domini, elemento anímico indispensável ao reconhecimento da
prescrição aquisitiva visada. Sentença confirmada. Negaram provimento ao recurso.
Unânime. (Apelação Cível 70062651039, 18ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Rel. Nelson José Gonzaga, j. 19.03.2015).

A doutrina também tem admitido que o condômino tem legitimidade para usucapir em
nome próprio, desde que exerça a posse exclusiva e comprove os requisitos legais
atinentes à usucapião, vejamos:

Ainda no que se refere ao objeto, o entendimento dos tribunais é do cabimento da


usucapião entre condôminos no condomínio tradicional, desde que seja o condomínio pro
diviso, ou haja posse exclusiva de um condômino sobre a totalidade da coisa comum.
Exige-se, em tal caso, que a posse seja inequívoca, manifestada claramente aos demais
condôminos, durante todo o lapso temporal exigido em lei. Deve estar evidenciado aos
demais comunheiros que o usucapiente não reconhece a soberania alheia ou a
12
concorrência de direitos sobre a coisa comum . (Grifos)

O entendimento acerca da impossibilidade de usucapião entre herdeiros/condôminos,


além de ultrapassado, não encontra guarida no sistema jurídico vigente, até porque na
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A usucapião entre herdeiros e o direito de herança

atual conjuntura jurídica objetiva-se premiar aquele que, mesmo não sendo o
proprietário, faz com que a propriedade cumpra sua função social, tornando-a produtiva
por seu trabalho ou de sua família, tendo nela fixado sua moradia, ou seja, a
propriedade teve atender também os interesses da coletividade.

Os demais Tribunais Pátrios devem seguir a orientação firmada pelo Superior Tribunal de
Justiça e Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que confere ao condômino
a legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a posse por si mesmo
no imóvel, com posse exclusiva, com efetivo animus domini, pelo prazo determinado em
lei, sem qualquer oposição dos demais proprietários/herdeiros.

O herdeiro que exerce a posse sobre a totalidade da herança, com animus domini, sem a
oposição dos demais herdeiros/condôminos, fazendo com que a propriedade deixada
pelo falecido cumpra sua função social, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua
família, pelo prazo estabelecido no artigo 1.238 e seguintes do Código Civil
(LGL\2002\400), deve ser contemplado com o título de propriedade da totalidade do
imóvel, pois o próprio Texto Constitucional estabelece que a propriedade deve cumprir a
função social e não apenas individual.

Cabe registrar que a transferência da propriedade ao herdeiro se dá imediatamente após


o falecimento do instituidor da herança, proporcionando aos herdeiros a posse indireta
do patrimônio deixado causa mortis pelo falecido, ou seja, o patrimônio deixado pelo
falecido transmite instantaneamente aos herdeiros e sucessores com a morte da pessoa,
por decorrência do princípio da saisine, conforme estabelecido no artigo 1.784 do Código
Civil (LGL\2002\400) vigente.
13
Nesse sentido, corrobora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka , vejamos:

A sucessão considera-se aberta no instante mesmo ou no instante presumido da morte


de alguém, fazendo nascer o direito hereditário e operando a substituição do falecido por
seus sucessores a título universal nas relações jurídicas em que aquele figurava. Não se
confundem, todavia. A morte é antecedente lógico, é pressuposto e causa. A
transmissão é conseqüente, é efeito da morte. Por força de ficção legal, coincidem em
termos cronológicos, (1) presumindo a lei que o próprio de cujus investiu seus herdeiros
(2) no domínio e na posse indireta (3) de seu patrimônio, porque este não pode restar
acéfalo. Esta é a fórmula do que se convenciona denominar “droit de saisine”.
14
Do mesmo modo, advoga Fabrício Zamprogna Matiello :

O imediatismo na transferência da propriedade e da posse dos bens aos herdeiros, assim


que verificada a morte do de cujus, decorre de instituto proveniente do ordenamento
jurídico francês, consagrado como droit de saisine, ou, como se tornou comum na língua
portuguesa, direito de saisina. Seu fundamento consiste na necessidade de que o
patrimônio do falecido não fique sem titularidade, razão pela qual essa realidade jurídica
permite que no exato momento do óbito a totalidade da herança seja assumida pelos
novos titulares, ainda que nem mesmo saibam do passamento ou ignorem a própria
condição de herdeiros. Trata-se de alteração subjetiva ou sub-rogação pessoal que opera
automaticamente, sem reclamar a prática de qualquer ato pelos interessados.
15
Segundo Maria Berenice Dias “Os herdeiros, todos eles, recebem a propriedade e a
posse de direitos e não a posse fática dos bens. A posse que passa aos herdeiros,
automaticamente, não é a título provisório” [...].
16
No julgamento do Recurso Especial 1125510/RS, o Superior Tribunal de Justiça firmou
o entendimento no sentido de que:

em observância ao Princípio da Saisine, corolário da premissa de que inexiste direito sem


o respectivo titular, a herança, compreendida como sendo o acervo de bens, obrigações
e direitos, transmite-se, como um todo, imediata e indistintamente aos herdeiros.
Ressalte-se, contudo, que os herdeiros, neste primeiro momento, imiscuir-se-ão apenas
Página 10
A usucapião entre herdeiros e o direito de herança

na posse indireta dos bens transmitidos. A posse direta, conforme se demonstrará, ficará
a cargo de quem detém a posse de fato dos bens deixados pelo de cujus ou do
inventariante, a depender da existência ou não de inventário.

Dessa forma, com base no artigo 1.784 do Código Civil (LGL\2002\400), “Aberta a
sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”,
criando a partir dessa transmissão um condomínio pro indiviso sobre o acervo
hereditário, regendo-se o direito dos coerdeiros, quanto à propriedade e posse da
herança, pelas normas relativas ao condomínio, como mesmo disposto no art. 1.791,
parágrafo único, do CC/02 (LGL\2002\400) (REsp 1.192.027/MG, 3ª Turma, DJe
06.09.2010).

No REsp 1.244.118/SC, o Superior Tribunal de Justiça manifestou que os sucessores


adquirem a composse pro indiviso do acervo hereditário, podendo cada um dos herdeiros
valer-se dos interditos possessórios em defesa da herança, vejamos:

[...]. Adquirem os sucessores, em consequência, a composse pro indiviso do acervo


hereditário, que confere a cada um deles a legitimidade para, em relação a terceiros, se
valer dos interditos possessórios em defesa da herança como um todo, em favor de
todos, ainda que titular de apenas uma fração ideal. De igual modo, entre eles, quando
um ou alguns compossuidores excluem o outro ou os demais do exercício de sua posse
sobre determinada área, admite-se o manejo dos interditos possessórios. [...]. (REsp
1244118/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 22.10.2013, DJe 28.10.2013).

Assim, a partir do nascimento do direito hereditário, que se dá com o falecimento, todos


os herdeiros devem tomar providências para assumir a posse direta do monte deixado
pelo falecido, pois se apenas parte dos herdeiros assumirem a posse direta e exclusiva
do imóvel, com efetivo animus domini, pelo prazo determinado em lei, sem qualquer
oposição dos demais proprietários/herdeiros, estes podem futuramente pleitear a
aquisição da totalidade da propriedade deixada pelo falecido.
17
José Celso de Mello entende que “a inércia, omissão e desinteresse do proprietário são
sancionados pela perda do domínio, em favor, precisamente, daquele que, possuindo o
bem pro suo, vem a dar-lhe a destinação e a utilização reclamadas pelo interesse
social”.
18
Para Brenda de Farias Silva,

somente com a inércia sucessória a propriedade dos bens imóveis do acervo hereditário
poderá vir a ser restringida, incorporando ao patrimônio de algum herdeiro que se valeu
do exercício de posse e propriedade para, além de buscar sua satisfação individual, fazer
valer a função social da propriedade.

Realmente, o direito de herança tem previsão na norma vigente (art. 5º, XXX, da CRB),
todavia, após o falecimento do instituidor da herança, o herdeiro deve tomar as
providências para assumir a posse direta da propriedade deixada pelo de cujus, tendo
em vista que a inércia do herdeiro pode resultar na perda do quinhão hereditário, até
porque o direito de herança não pode ser exercido a qualquer tempo, por não se tratar
de um direito potestativo não decadencial.

Quando o herdeiro deixa de tomar as providências para assumir a posse direta no


patrimônio deixado pelo falecido, permanecendo inerte, deve ser penalizado com a perda
de seu quinhão. A inércia do herdeiro acabou legitimando o reconhecimento da
usucapião àquele que deu ao acervo hereditário a função social através da posse
exclusiva e duradoura.

Não é razoável que o herdeiro que assumiu a propriedade deixada pelo falecido
conferindo-lhe a função social, como se proprietário fosse, não seja contemplado com o
19
título de propriedade sobre a totalidade do acervo hereditário , até porque a herança
não se trata de um direito potestativo não decadencial ou um direito imprescritível.
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A usucapião entre herdeiros e o direito de herança

4.Considerações finais

Diante dos fatos relatados, pode-se concluir que a usucapião desempenha papel de
suma importância no ordenamento jurídico vigente, uma vez que premia aquele que,
através de sua posse, promove a função social da propriedade. O instituto da usucapião
visa, acima de tudo, conferir função social à propriedade, compensando aqueles que dão
destinação útil e eficaz ao imóvel.

Não seria razoável deixar de contemplar o herdeiro que, após a abertura da sucessão
hereditária, demonstre o exercício da posse exclusiva, sem oposição dos demais
herdeiros, durante o lapso temporal legalmente exigido pelo artigo 1.238 e seguintes do
Código Civil (LGL\2002\400) e que demonstre o animus domini.

Conforme visto ao longo do presente artigo, a usucapião sobre imóvel adquirido por
herança não encontra vedação na legislação brasileira, até porque a norma vigente
somente veda usucapir os imóveis públicos.

Exceto os imóveis públicos, qualquer outro imóvel pode ser objeto de ação de usucapião,
desde que o usucapiente demonstre o exercício da posse exclusiva, sem oposição,
durante o lapso temporal legalmente exigido e o animus domini.

O entendimento contrário à possibilidade de o herdeiro usucapir o quinhão hereditário do


coerdeiro não encontra guarida no Sistema Jurídico Brasileiro, em razão de ausência de
norma proibitiva. Assim, não pode o hermeneuta ou o julgador criar vedação não
prevista pelo legislador, pois lhe falta competência e legitimidade para inovar no Sistema
Jurídico, tendo em vista que somente o Poder Legislativo poderia proibir a possibilidade
de usucapião entre herdeiros.

Na atual conjuntura do Estado Democrático de Direito, não são admitidos decisionismos


e arbitrariedades interpretativas perpetradas pelo intérprete ou pelo julgador, sob pena
de afronta à norma criada democraticamente. No Estado Democrático de Direito não há
20
espaço para a figura do “juiz solipsista ”, em que o julgador decide, não segundo as
normas vigentes, mas segundo a sua conveniência.

Para o autor anteriormente mencionado, “o juiz pode amar ou odiar algo, mas na hora
da decisão os seus preconceitos devem ficar suspensos”, pois em um Estado
Democrático de Direito não são admitidos decisionismos e arbitrariedades
interpretativas. Aqui o intérprete ou o julgador não pode extrapolar os limites
semânticos do texto legal, pois ele é uma condição para a existência do próprio Estado
de Direito. Querer o intérprete criar regra ao seu bel prazer não passa de um delírio e
arbitrariedade interpretativa, uma vez que inexiste espaço para tal conduta no
ordenamento jurídico.

O julgador pode até não concordar que um herdeiro ajuíze uma ação de usucapião
contra o coerdeiro, todavia, do ponto de vista jurídico, nada pode fazer, uma vez que
não existe no ordenamento jurídico vigente norma que proíba a usucapião sobre os
imóveis do acervo hereditário.

De mais a mais, o particular, diferentemente da Administração Pública, pode fazer tudo


o que a norma não proíbe, vigorando nas relações privadas o princípio da autonomia da
vontade, ou seja, ao particular é concedido o privilégio de poder fazer tudo o que não for
proibido. Assim, pode-se concluir que é perfeitamente possível a usucapião entre
herdeiros, tendo em vista a ausência de norma proibitiva neste sentido.

Dessarte, o entendimento contrário à possibilidade de usucapião entre herdeiros não


passa de um delírio interpretativo, não encontrando respaldo no Sistema Jurídico Pátrio.
Dessa forma, espera-se que os Tribunais Pátrios adotem o entendimento firmado pelo
Superior Tribunal de Justiça acerca da possibilidade de usucapião entre os
condôminos/herdeiros.

Página 12
A usucapião entre herdeiros e o direito de herança

Conforme visto, a usucapião não almeja apenas a pacificação sobre a titularidade da


propriedade da terra, mas também é usada como mecanismo para conferir função social
à propriedade. Assim, o herdeiro que confere função social ao acervo hereditário,
enquanto os demais herdeiros permaneceram inertes, deve ser recompensado com o
título de propriedade sobre a totalidade do acervo deixado pelo falecido.

Por fim, cabe consignar que, para o reconhecimento da usucapião entre herdeiros, é
imprescindível comprovar a posse exclusiva sobre o acervo hereditário, com animus
domini; o lapso temporal exigido pela legislação vigente e a promoção da função social
ao imóvel.

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Página 13
A usucapião entre herdeiros e o direito de herança

STRECK, Lenio Luiz. Os limites semânticos e sua importância na e para a democracia.


Revista da AJURIS, v. 41, n. 135, set. 2014.

1 MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito


constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 340.

2 ARAÚJO, Fabio Caldas. O usucapião no âmbito material e processual. Rio de Janeiro:


Editora, 2005. p. 15.

3 CABRAL, Thiago Colnago. A reestruturação do conceito de propriedade: a função social


enquanto componente do domínio. Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico,
Porto Alegre, v. 41, abr.-maio 2012. p. 48.

4 DIDIER JR., Fredie. A função social da propriedade e a tutela processual da posse. In:
REGIS, Mario Luiz Delgado; ALVES, Jones Figueiredo (Coord.). Questões controvertidas:
direito das coisas. São Paulo: Método, 2008 (Série Grandes Temas de Direito Privado; v.
7). p. 101.

5 CARVALHO FILHO. José dos Santos. Manual de direito administrativo. 26. ed. rev.,
amp. e atual. até 31.12.2012. São Paulo: Atlas, 2013. p. 780.

6 MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito


constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 340.

7 REsp 1163118/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. 20.05.2014, DJe
05.08.2014, DJe 13.06.2014.

8 STRECK, Lenio Luiz. Os limites semânticos e sua importância na e para a democracia.


Revista da AJURIS, v. 41, n. 135, set. 2014. p. 174.

9 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 14. ed. rev., atual. e amp. São
Paulo: Saraiva, 2010. p. 397.

10 Ibidem. p. 397.

11 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 30.ed. São


Paulo: Saraiva, 2003. p. 132.

12 PELUSO, Cezar (Coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei


10.406, de 10.01.2002. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Manole, 2014. p. 1129.

13 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das sucessões brasileiro:


disposições gerais e sucessão legítima. Destaque para dois pontos de irrealização da
experiência jurídica à face da previsão contida no novo Código Civil. Jus Navigandi,
Teresina, ano 8, n. 65, 01.05.2003. Disponível em:
[http://jus.com.br/revista/texto/4093]. Acesso em: 17.11.2012.

14 MATIELLO, Fabrício Zamprogna. Código civil comentado: Lei 10.406, de 10.01.2002.


7. ed. São Paulo: LTr, 2017. p. 969.

15 DIAS, Maria Berenice Dias. Manual das sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais.
2. ed., 2011. p. 105.

16 REsp 1125510/RS, Rel. Ministro Massami Uyeda, 3ª Turma, j. 06.10.2011, DJe


19.10.2011.
Página 14
A usucapião entre herdeiros e o direito de herança

17 MELLO FILHO, José Celso de. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva,
1986. p. 500.

18 SILVA, Brenda de Farias. A possibilidade jurídica de usucapião de herdeiro sobre bens


imóveis do acervo hereditário, 2016. p. 44. Disponível em:
[https://app.uff.br/riuff/handle/1/4380]. Acesso em: 20.12.2018.

19 O direito potestativo é um direito que não admite contestações.

20 De acordo com o Dicionário Oxford de filosofia (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p.
367), solipsismo é “a crença de que, além de nós, só existem as nossas experiências. O
solipsismo é a consequência extrema de se acreditar que o conhecimento deve estar
fundado em estados de experiências interiores e pessoais, e de não se conseguir
encontrar uma ponte pela qual esses estados nos deem a conhecer alguma coisa que
esteja além deles. O solipsismo do momento presente estende este ceticismo aos nossos
próprios estados passados, de tal modo que tudo o que resta é o eu presente. Russel
conta-nos que conheceu uma mulher que se dizia solipsista e que estava espantada por
não existirem mais pessoas como ela”.

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