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E e E N $ A N D REPENSANDO A GEOGRAFIA E P E N s A N D O ESTADO E AS POLITICAS TERRITORIAIS NO BRASIL WANDERLEY MESSIAS DA COSTA editoracontexto 0 0 Gyr 1948 Waadecey Ness da Cos Fado ot dics dea ipo resales Editors Content dios Picky In) Gens Repenend Geogr Cand desis ‘Avila U-de Obveen Penge dona Syne Ua Cine Filho Bion Medioraeaos S50 Pl, 1565 ‘Dados Incas de Catalogo na Pablo) {Char Feira do Uta, Sas) 1s, Cader Mess da (0 xa sn plist no Br! Wandeey Mesias da Cae, Ma Sto Pals ‘Contec, 2018.—(Repeasindo a Geng) Bivogref ISBN 97885-85134-198 1. Geel: Bro 19. e430 20981 Taio par ogo tii 1 .Geoplien Bri 320.120.9861 Porton Cowrasro acre Jo ky un DJs li $20 ~ Alto da apa (05085020 Sto Paulo roe 1) 3832 5838, cancexta@iterconenocan.br ‘evmveracaentocam.> =r Poids pods wal ou pari vias sro poocendos ma Fra de Para e Julia a Thale, espesa e fiha. ‘Acs meus amigos de COSEAS, em especial Marcia que revisow os alainals. ‘Ao Atiovaldo, amigo e companheio de ‘multas lutas na Geogala, © Autor no Contexto 9 Introdugéo. oA 1A importancia da Geogratia Politica alt 2.4 Geopolitica Portuguesa na Colonia. ey, 3. Estado Nacional e Unidade Territorial 31 4, Modernizago Centralizadora.... 5, Politicas Territoriais nos Anos 50. 6. As Politicas Tettitoriais apos 1964... soe BA 7. Consideragées Finais. 73 SugestBes de LeltUra....nsmnnnnnininnnnniisnnnnnncnnnne 79 © Leitor no ContOX10 -nnnrninnnnnntnmnnnnnnsnnnnnnnnnnnn 83 © estudo das politicas pablicas, em especial aquelas de alcance © repercusséo nacionais, tern despertado o interesse de inumeras areas das ciéncias sociais em geral, Ja ha alguns anos que importantes trabalhos err ‘economia, sociologia © geogratia, por exemplo, tém contriouido enorme- mente para a compreensdo de processos fundamentais do desenvolviimen- to brasileiro nas tltimas décadas, particularmente aqueles relacionados és pollticas econdmicas globais e setoriais formuladas e aplicadas pelo Estado brasileiro. Neste pequeno livto, interessa-nos examinar, de modo no exaustivo, um tipo especial de politica piblica, ou seja, aquela formulada e aplicada 0 mais diretamente possivel as modificagées na estrutura territorial do pals. Tradicionalmente, as polticas terrtoriais tém sido entendidas no ‘Ambito restrito dos planos regionais de desenvolvimento, isto &, enquanto atividade planejadora do Estado voltada a0 enfoque regional especifico, Tesultando comumente em projetos especieis que interessam a uma ou outra tegido do pais. No nosso enfoque, entretanto, as polticas terrtoriais textrapolam essa nocao, abrangendo toda e qualquer atividade estatal que implque, simultaneamente, uma dada concepeo do espago nacional, uma estratégia de intervengo a0 nivel da estrutura teritorial e, por fim, mece- rismos concretos que sejam capazes de viabilizar essas politicas. Dai nos interessar, além das pollticas regionais, também as urbanas, ambientais, de colonizagéo, de fronteiras internas e externas, de integrago nacional, além de programas especiais tais como os de descentralizacao industrial e outros do tipo. 13 Sendo este um estudo desenvolvido no Ambito da geografia polit= ‘ca, procuraremos centrar a andlise justamente nagueles procassos que possuam alguma especificidade politica no amplo conjunto das ques- tes territoriais. Desse modo, a0 examinarmos alguns momentos da histéria brasileira, procuraremos evitar 0 caminho dos estudos classicos de formagao historica, econdmica ou mesmo territorial, e passaremos ao largo daqueles problemas politicos que nao atinjam diretamente o ‘tema proposto. Nesse sentido, 03 trabalhos sobre Brasil Coldnia, Impé- rio, Republica, etc.,. bem como os trabalhos recentes sobre o capitalismo brasileiro, serdo tomados como pressupostos, a rigor, como “pano de fundo” do nosso estudo. No periodo colonial, por exemplo, so intimeros os temas e enfo- ‘ques que podem ser desenvolvidos. Entretanto, poucos estudos dedi- caram atengéo especial as estratégias geopoliticas da Coroa portu- ‘guesa para a ocupacdo e dominio do novo territério de além-mar. O mesmo vale para 0 Primeiro Impétio, e em particular o Periodo Regen- cial, marcados intensamente pelas revoltas populares-provinciais que sacudiram a unidade nacional-ertitorial do Estado nascente. Também vale como exemplo do nosso enfoque a analise dos pianos nacionais de desenvolvimento, pratica do planejamento econdmico brasileiro a partir dos anos 50 © que contém capitulos inteiros dedicados as ques- ‘60s regionais ¢ urbanas, principalmente. E evidente que estes planos também expressam uma determinada estratégia de “ajustes territoriais” que devem merecer um exame mais acurado. Infelizmento, ficam de fora deste estudo (dada 8 sua dimenséo), outros aspectos igualmente importantes do discurso e da prética oficiais a respeito das questées territoriais, em especial as manifestagoes cons- tantes de alguns segmentos do aparelho de Estado, que formulam © executam tais politicas, ou mesmo de representantes do poder politico ‘em suas varias escalas, que em geral se server desses mesmos apare- thos e do Congreso Nacional para expressarem seus pontos de vista e reivindicagées (a nivel nacional, regional ou local) ¢ que, em conjunto, ‘compdem 0 que aqui poderiamos denominar de "ideologias terrtorials” de natureza institucional Ainda nesta introdugo, adiantaremos alguns pressupostos gereis que deverdo norte at 0 desenvolvimento do tema, baseados, em grande medida, em determinadas interpretagtes tedticas a respeito da reali dade brasileira, particularmente quanto ao carater do desenvolvimento nacional Nenhum esiudo sobre a realidade brasileira conternporénea pod? passar ao largo das determinagdes gerais que definem 0 carater «i 4 evolugao histérica deste pais, em particular o seu passado colonial e, com éle, as contradigées que marcaram profundamente suas estrutu- ras econémicas, sociais e politicas. Na economia, ha que se notar ‘seu cardter dependente, agrario-latifundiario-exportador e de industria lizagdo tardia; nas relagdes sociais, as marcas indeléveis do escravis- mo © suas consequéncias bastante conhecidas; no processo politico, © conservadorismo e 0 autoritarismo de origam oligarquica, agrarista e senhorial, raizes da crise politica atual e, enquanto cultura e praticas politicas arraigadas nas classes dominantes, obstéculos consideraveis a0 avango de uma demooracia plena na sociedade brasileira No que toca mais de perto ao nosso objeto de estudos, destaca- ‘se um aspecto fundamental da nossa “heranga colonial": trata-se da velha contradigo "centralizago do poder politico ¢ dispersae colonial", trago da formacao brasileira que persiste até os dias atuais (mesmo que amenizado pelas novas politicas terrtoriais). Como veremos adiante, essa contradicao decorre do caréter mesmo da colonizagao empreendi- da aqui pela Coroa portuguesa, a partir de meados do século XVI. ‘Ao contrério dos ingleses, que organizaram uma Coldnia de Povo- mento om terras da América do Norte, 08 porlugueses montaram aqui uma auténtica Colénia de Exploragao. Enquanto no primeiro tipo a ocupagéo das terras — com base no trabalho familiar ire — resultou num povoamento razoavelmente continuo, criando inclusive condi¢Ses para a expansdio posterior em diragao ao oeste, no Brasil montou-se t80 somente um empreendimento colonial mercantil, baseado no trabalho escravo e no grande latifandio. Assim, a erticulagao entre o latifuncio, 0 trabalho escravo, a “plantation” acucareira monoprodutora, a relagao comercial e politica exclusiva com a Metrépole e, finalmente a grande autonomia dos ‘senhores de engenho”, resultou numa formagdio territo- rial Unica, em que a dispersao, ou, em outras palavras, a desintegracdc, foi a sua caracteristica maior. Essa disperstio-desintegragaio tem se manifestado através de dois processes principais ao longo da histéria brasileira, Durante 0 periodo Colonial e, com mais énfase, no Império, ela significou muitas vezes uma quase ausente articulago econdmica intema, raiz da tardia formagaio do chamado “mercado colonial’. Ocorre que ela também se manifes- tava politicamente, ou seja, durante esses dois periodos nao foram pouces os exemplos de "movimentos centrifugos’, em que partes do territério ingressavam em auténticos processos separatistas. Principa~ mente durante o Império, esses movimentos, além do contetdo politics oxplicito de contestacao ao poder central e aos desmandos @ situagées ‘concretas locais, expressaram em geral uma aspiragao @ autonomia regional ou local face a “unidade nacional” (mais artificial que real). 18 Durante 0 Periodo Republicano e até hoje, essa diepersdio tem-se manifestado tanto econémica quanto politicamente, s6 que por outras vias. © problema da integragao ainda constitui um projeto nacional, em particular face as novas demandas Impostas pela internacionalizacao recente da economia brasileira © 08 novos capitais produtivos que tém ingressado no pais e que precisam valorizar-se a qualquer custo. Neste sentido, a integragao das porgées territoriais e dos mercados é condiga0 necessaria a essa expanséo. Do ponto de vista de sua dimensao pc ‘a, diferentemente do Periodo Imperial, por exemplo, ela no se mani- festa mais em termos de movimentos separatistas “estito senso”, mas ‘enquanto disputas permanentes entre as regides, estados @ municipios or recursos publices (federais, principalmente). Essa disputa também 80 da no piano politico insttucional, que se refiete nos lobbies regionais que tm atuado expiicitamente no Ambilo do Congreso Nacional, da Constituinte © mesmo no eparelho de Estado, Esse novo momento, ou essa qualidade nova do processo geopolitico atual, nos leva a examinar a questo também do ponto de vista de uma andlise mais acurada do problema federativo brasioiro, tema de grande interesse na atualida- de, em todo o mundo, que tem atrés de si a contradigéo centralizagao- descentralizagao. Ainda do ponto de vista de sua expresso politica, 08 tragos da formagéo territorial brasileira podem ser relacionados a outros fend- menos. Faltam, por exemplo, estudos sérios sobre a geografia eleito- ral brasileira, que provavelmente revelariam aspectos interessantes da nossa geogratia politica, O mesmo ocorre com o fendmeno politico atual do municipalismo, bandeira que tem sido empunhada por muitos politi cos € partidos, mas que ainda nao foi articulado a uma proposta tebrica ‘embasada em estudos sisteméticos sobre a questtio federativa brasilei- ra ou mesmo sobre a nova regionalizago em curso no pals. Enfim, 0 nosso ponto de vista sobre as politicas territorials é justa- mente 0 de que 0 “explicitamente politico” cu o nivel ou insténcia poll: ticos néo podem significar a sua autonomizagao frente aos demais processos (econémico, social, etc.), mas apenas o reconhecimento de que 0 Estado, a politica @ 0 territério sao reais @ assim devem ser estu- dados. Sabemos que as polilicas territoriais, isoladamente, nao expl cam a realidade (que é social) brasileira de hoje. No entanto, sabemios igualmente, que também os processos econdmices (ou outro qualquer) exclusivamente, nao bastam para compreendé-la em sua totalidade. Por isso, essa nossa contribuigzo (como, alias, todas as demais), sO pode ser considerada como parcial 16 1 IMPORTANCIA DA GEOGRAFIA POLITICA ——_—_—————_———— © OBJETO TEORICO: SOCIEDADE, ESPACO E PODER Todo ramo do conhecimento cientifico que se dedica sistemati- camente ao estudo de determinados temas especificos da realidade, possui um objeto teérico de investigagao, mais ou menos delimitado. No caso da geografia politica, preferimos iniciar a problemati- zagdo de seu objeto com uma indagagao. E possivel identificar, no interior do movimento da realidade social, processos reais que sejam Passiveis de agrupamento para fins de andlise ¢ reflexao palas cién- cias sociais, em particular pela geografia social, que possuam identi- dade no real, ntidez histérica @ relevancia para a sociedade, de modo a credencié-los para justificar a exist8ncia de um sub-ramo especifico do conhecimento e da pesquisa académica, usualmente rotulado de geografia politica? Em primeiro lugar, € preciso verificar se essa identificagao far- se-d através de um recorte de determinados aspectos da realidade social —o que poderd levar a uma delimitacao rigida {portanto formal) do objeto — ou se o mais conveniente néo seria trabalhar com um conjunto de processos, © que resuitaria num estudo necessariamente interdisciplinar, com 0 foco da analise centrado no que especifico da geografia politica. Esta é uma questdo importante, pois essa disciplina ‘tem abordado determinados temas que nao sao exclusivos deste ou daquele ramo das ciéncias sociais mas, principalmente na alualidade, do interesse de todos, 7 Para fins de anélise, e abstraindo-se as formas mais ou menos compiexas da organizagéo social passada e presente e, mais do que isto, assumindo em principio um ponto de vista universal sobre a histo~ ria, podemos identificar determinados processes reais que se estabe- lecem no amplo espectro de relagées entre @ sociedade e seu espaco de vivencia e produgéo. Em qualquer tempo e lugar, os grupos sociais, desde os estagios primitivos até as modernas sociedades capitalsias industriais, por exemplo, estabelecem determinados modos de relaggo ‘com 0 seu espaco; em outras palavras, velorizam-no a seu modo. No interior desse processo, podemos identificar relagdes cultu- rais com 0 espago, em sentido estrito. Um grupo social primitivo, por exemplo, mesmo com uma “ténue” e proviséria fixagao num determi nado espago exprimiré, a partir dessa relacdo, uma série de mani- festagdes: mitos, ritos, cultos, sacralizagdes, etc. Do mesmo modo, exprimira, com o seu trabalho e sua técnica, formas de apropriagéo € exploragao desse espago, marcando-o com as suas necessidades @ 0 Seu modo de produzir e, porque nao dizer, impregnando-o assim com a sua cultura. Nesse sentido, o seu espago possul limites, cujo tragado ndo & constituido por jinhas rigidas, mas zonas que se destinam a delimitar 0 ‘espago de recursos necessério & reprodugdo biolégica e cultural desse grupo. O especifice a reter, no nosso caso, entretanto, diz respeito 20 ato de que esse grupo projeta sobre 0 espago as suas necessidades, a organizagéo para o trabalho e a cultura em geral, mas projeta igualmen- te as relagdes de poder que porventura se desenvolvam em seu interior. Por isso, toda sociedade que delimita um espago de vivéncia e producao e se organiza para dominé-lo, transforma-o em seu territé- rio, Ao demarcé-lo, ela produz uma projeeao terntorializada de suas proprias relagées de poder. Esse fato ndo muda muito quando se trata de sociedades mais ou menos desenvolvidas politicamente, isto é, se elas ja chegaram ou n&o ao estagio de, por exemplo, organizarem-se sob a forma de Estados, ou téo somente de niveis de chefia, conselhos, monarquias, etc. O que importa tessalvar & que a relagéo espago-poder 6 reiacdo sociopolit- ca por exceléncia, proceso real que se expressa empiricamente sob varias formas @ tipos e que tem um significado preciso para a sociedade ea ciéncia social, proceso histérico de desenvolvimento dessa relagéo pode ser periodizado, pelo menos em seus tragos essenciais. Assim, no interior de um grupo social pouco desenvolvido, podero inexistir hierarquiza- 9028 rigidas ao nivel do poder (um comunismo primitivo, por exemplo), ‘om que as terras comunais 8 os limites imprecisos de cou territério de: terminam uma certa “fluidez” nessas relagdes, de modo que 0 acesso & terra e seus recursos, por exemplo, possa se dar sem as injungdes mais explicitas das relagdes do poder. O que nao significa que, mesmo ai No possam estar presentes manifestacdes sutis ou nao de confltos no que toca ao processo de gestéo desse territorio. A medida que 0 grau de complexidade aumenta, essas relagoes de Poder tendem a se tornar mais explicitas, ou seja, @ nitide do espace politico aumenta, Assim, o advento da propriedade da terra representa Claramente uma ruptura e um marco nesse processo. Ele revela a proje- ‘s40 no espago (cercas e limites em geral) de transformagées profundas No interior dequela sociedade. Desse modo, a legalizacio da proprieda- de fundiaria ndo deixa de representar uma institucionalizagao de deter- minada correlagéo de forgas marcada pelo conflto, Dentro dessa evolugao, o advento das fronteiras externas 0 inter- has, por exemplo, nao estaria na taiz do processo de constituigaio dos Estados, mas justamente o contrario, iso &, a constitulgao dessa forma malor de institucionalizagao do poder politico € que tem determinado a fixagao cada vez mais rigida de limites entre as sociedades-nagées. A. partir dai, os confitos interessando ao espaco politico, tomam-se cada vez mais “internacionais”, ou seja, de um estagio em que se podia falar de um grupo social e seu espago, passa-se a outro, no qual se deve falar de sociedades-nagoes-Estados 6 seus terrtorios respectivos. Assim, no plano do espago mundial, um imenso espaco geopolitico se estrutura, ‘sob formas mais ou menos rigidas. Estes sto, em linhas gerais, os processos a que nos referimos. seu conhecimento, como @ Sbvio, implica o recurso das muitas especialidades que tem se dedicado ao estudo dos fatos politicos contemporaneos e passados. Dai anecessidade da geogratia polit ca passar a interessar-se pelos processos ligados as formas atuais de gestao do territério, examinando mais de perto as engrenagens da atividade estatal que tém formulado e posto em pratica as politicas publicas territoriais, —<_— $< _______ CAMINHOS E DESCAMINHO: GEOGRAFIA POLITICA E GEOPOLITICA A geografia politica tem a idade da geografia moderna, aquela que se desenvolveu a partir de meados do século XIX na Alemanha, com Humbolat, Ritter e Ratzel. Diversamente das posteriores especializa- ‘960s da pesquisa geogréffica, ela é parte mesma do movimento de cons- filuigdo dessa disciplina. Antropogeografia (1882) © Geografia Polttica (1887), obras fundamentais do naturalista e gedgrafo alemo Friedrich Ratzel, so referencias obrigat6rias para todo e qualquer estudo sobre 0 pensamento goografico, geopolitico e geogratico-politico. Alemées, franceses, ingleses norte-americanos, principalmente, publicaram desde entéo milhares de titulos sobre 0 que poderiamos ‘chamar de modo geogratico de ver o Estado e as polticas puiblicas em sua “dimensao’, “instancia’, “nivel” ou “forma” territorial. Como ilustra- do, lembramos que Wittesey estima em trés mil os trabalios publice- dos em geografla politica, até o ano de 1939. ‘Duas caracteristicas séio marcantes nessa evolugao, que ooupa © periodo que vai de 1897 até os dias de hoje. A primeira, € que os estu- Gos publicados ganhavam intensidade nos subperiodos pré, durante fe pos-guerra, Como houve duas guerras de grande porte neste sécu- jo, envolvendo tongos periodos, pode-se pensar em pelo menos meio século de produgao académica nessa area, de um modo ou de outro influenciada por aquelas conjunturas. A segunda refere-se ao fato de que cada estudo é 0 estudo de um autor de determinada nagéo, relacio- nado ou no aos objetivos de determinado Estado ou grupo de Estados. mas de todo modo, produzindo uma geografia politica marcada pelo seu contexto territorial proprio, E como se a conjuntura e 0 tarrit6rio fossem verdadeiros “marca passos’, elementos destinados a particularizer 0 que porventura uma obra pudesse ter de ‘universal’, naquele sentido do conhecimento clen- {ifico fundado em leis comprovavels e duradouras. No que seja impos sivel contar, dentre a rica bibliografia a respeito, com obras fundamen- tais e, portanto, universais. No se nega, igualmente, que a geografia politica possua estaluto cientifico. Nao é essa a questdo. Trata-se de amo da geografia que desde o inicio esteve voltado para o estudo da politica. Principalmente da politice dos Estados, ou, mais precisamen- te. da politica fernitorial dos Estados. Dai a sua imbricagao permanente com 0s contextos nacionais ¢ internacional @, em alguns casos, com @ propria politica estatal A propria discusséo sobre as diferengas entre a geografia polil- ca e a geopoltica fica, por assim dizer, “atravessada’ por esse trago caracteristico. Rétulos como “basica ou fundamental” para a primeira € “aplicada ou pratica” para a segunda, ndo resolvem o problema de que, nos longos periodos caracterizados por conflitos entre os Estados, parte substantiva da geografia politica tenha como que se tornado geopoltica, ou seja, de modo mals ou menos intenso, fol miarcada pelo espirito beli- cista da época e pelos objetivos dos Estados envolvidos. 20 Por isso 6 que, mesmo com os riscos deste tipo de generalizacéo, poder-se-ia identificar “geografias politicas” da paz, da guerra, alema, francesa, inglesa, norle-americana, etc. Esse dado, poderiamos pergun- tar, “comprometeria’, por assim dizer, a validade cientifica desse corpo de conhecimentos, caracterizando-o, portanto, como “ideologia” em contraposicao & ciéncia? Tudo indica que nao, pela simples razao de que todo conhecimento, em especial o gerado pelas ciéncias sociais, ‘no tem como "neutralizar-se” ou “isentar-se" diante do contexto ¢ da realidade social em que ele 6 gerado. A prova de sua validade cientifi- ca nao poderia, assim, ser obtida por esse tipo de argumento. Mesmo porque ha distintos niveis de engajamento, até mesmo dos geopoliticos *militantes”, aos objetivos de seus respectivos Estados, Apesar disso, & verdade que podemos estabelecer algum tipo de distingao entre a geogratia politica e @ geopolitica (estrito senso). A primeira e mais simples & a que ocorre entre os estudos de um geopo- litico do aparetho militar do Estado, seja este formalmente democratic ou nao, € os de um cientista social dos meios académicos em geral (Cientistas politicos, gedgratos, etc.). No geral, 0 primsiro tender a produzir andlises e propostas que se constituam em “matéria-prima” para 0s objetivos e a aco do aparelho de Estado, culos alvos podem ser tanto internos quanto externos. No Brasil, por exemplo, 0 gene- ral Golbery desempenhou esse papel; na Alemanha, durante muito tompo, antes © durante a Segunda Guerra, 0 papel de geopolitico- idediogo coube a Haushofer. E evidente que um cientista social no obrigatoriamente primard pola independéncia total, © que o levaria a néo poder desempenhar o papel de geopolitico militante do Estado. Ao contratio, séo intmeros os exemplos de académicos que colocaram os seus conhecimentos a servigo dos Estados, inclusive os totalitarios, como o alemao durante a vig8ncia do nazifascismo. Este foi o caso do proprio Haushofer, que era professor na Universidade de Munique. Nao exatamente neste ponto que se baseia o nosso argumento, mas no falo de que, tradicionaimente, desde Ratzel, passando por |. Bowman, Gottman e autros, 0 desenvolvimento da geografia politica, enquanto um corpo de teorias fundamentais e de certo modo universais, sempre se deu a partir de uma pratica académica que procurava manter um certo distancla- mento crtico, uma dada autonomia relativa frente aos objetvos imediatistas « pragmaticos dos Estados, em especial de seu segmento militar. Apesar disso, o rétulo “geopolitica” permanece com sua aura nega- tiva, ja que ele 6 constantemente relacionado a fatos que a humanidade rejeita, como 0 expansionismo, o totalitarismo, a guerra, etc., bem como a ‘a determinadas doutrinas incompativais com uma sociedade demoora cae allivre autonomia dos povos. Por isso, prefarimos 0 termo geografia politica em sua conotacao atual, ou seja, uma disciplina que procura Fesgatar os esludos geogréficos da relagao Estado-terrtorio, na pers- pectiva das ciéncias sociais em suas vertentes criticas e enquanto ativi- dade acadmica esttito senso. ——————— AANALISE GEOGRAFICA DO ESTADO E DO TERRITORIO Os estudos sobre 0 Estado ja do tradigéo na Filosofia (desde ‘0s gregos) e nas ciéncias sociais moderas, cobrindo praticamente todas as vertentes tedrico-interpretativas conhecidas sobre o tema. Para exemplificar com duas das principais, poderiamos citar Hegel como 0 maior dos representantes do idealismo @ Lénin & Gramsci do marxismo. Os filésofos iluministas franceses, como Rousseau € Montesquieu, por sua vez, formularam as bases do que ficou conhec!- do como Estado Liberal, moderno ou burgués, constituido na Europa no contexlo das revolugées burguesas © da dissolugao das monar- quias absolutistas feudais. A geografia politica, por sua vez, iniciou os seus estudos sobre © Estado jé apresentando um sério viclo de origem. Ocorre que ela surgiu justamente em contexto histérico e cientifico que marcou profundamente as suas interpretagdes ploneiras @ seus posteriores desdobramentos. Como jé dissemos, ela surge na Alemanha, com a publicagao da obra Geografia Poiltica de Ratzel, na segunda meta- de do século XIX. Tratava-se de periodo marcado pelo proceso de Uunificagéio do Estado Alemao, sob a forma mondrquica @ altamente centralizada (o Império Prussiano). Este contexto em muito influenciou 08 estudos pioneiros sobre a relagao Estado-territério naquele pals @ mesmo em outros paises da Europa da época. Por outro lado, a chamada “escola geografica” alemé era fortemente caracterizada pela infiuéncia do naturalismo (em particular pelas ideias de Darwin), 0 que resultou num conteiido determinista em suas interpre~ tages dos fendmenos sociais, entre eles os politicos. Dai a concepeao do Estado enquanto “organismo vivo’, ou seja, uma entidade dotada de vida propria e que se move segundo “necessidades biolégicas’, dentre elas a da sobrevivéncia ¢, dal, a expansio, Por isso € que, para os geopoliticos alemées, o Estado 6 exami- nado segundo a ética da posse, dominio ¢ expanséo do territrio, (um “espago vital"), e ndo segundo suas proprias qualidades @ contradigbes interas, uma realidade social e politica, enfim. Chegam mesmo a cr car as teorias da sociedade que nao relevam esse aspecto, ou seja, 0 da importancia do territério nas analises politicas sobre o Estado. Trabalham também com a ideia de nexo causal entre o homem e o espago, de um lado, e de outro, entre o Estado e 0 espaco, conceben- do este ailtimo como o conjunto de caracteristicas naturais e culturais, réximo ao conceito, mais tarde desenvolvido, de espago geografica Segundo Ratzel, por exemplo, a importancia do territério é tao grande para uma nag4o, que um povo pode regredir quando perde parte de ‘seu espago Nacional, Dai surge a ideia de espaco vital, ou seja, um territério que, com sua populagao, fronteiras, recursos naturais, etc., se constitua no suporte fundamental para o desenvolvimento de uma dada nacdo € 0 fortalecimento de um determinado Estado. Por detras dessas ideias encontram-se, além de Darwin, 0 economista Malthus, segundo o qual os Estados devem ester alertas para os perigos de um crescimento desproporcional da populacéo do pais, em relagao a0 tamanho do territério e aos recursos disponivels, o que levara 0 Estado, ou a estender os seus dominios territoriais, ou a empreender esforcos para o controte demogratico Estas tendéncias mecanicistas e naturalistas impregnaram forte- mente a geografia politica alema, e foram observadas em quase todos ‘0s autores posteriores a Ratzel, casos de O. Maul, A. Dix, culminando ‘com Heushofer. Ganharam intensidade até mesmo fora da Alemanha com R. Kjellén, um germanétilo sueco; H. Mackinder, geégrafo inglés, além de A. Mahan ¢ N. Spykinan, ambos norte-americanos. S40 todos geopoliticos que de um ou outro modo formularam seus estudos € teorias de acordo com os objetivos expansionistas de seus respectivos Estados, ou tentaram justficar cientificamente estratégias imperialisias ou belicistas, alguns na Primeira Guerra, outros na Segunda e outros ainda em ambas, Mesmo nos meios académicos que procuraram preservar algu- ma independéncia desses contextos, a influéncia mecanicista-natu- ralista, (néo expansionista, porém), se fazia presente. F 0 caso de J. Aneel e J. Gottman, gedgrafos franceses que formularam duras ariticas 4 geopolitica imperialista, mas que revelam em seus estu- dos um forte contetdo desse tipo, quando tentam estabelecer nexos causais rigidos entre, por exemplo, as formas de relevo, 0 clima, etc. eas fronteiras; ou a situagao do Estado frente aos recursos nalurais, revelando em geral uma tendéncia de despolitizagdo do Estado e da sociedade, como se se tratasse de duas entidades inertes a estabe- lecerem relagées em fungao de condicionantes naturais ou mecani cas e ndo sociais e politicas. Fy LL ————_—— ABORDAGENS CRITICAS ATUAIS EM GEOGRAFIA POLITICA ‘A geogratia polltica que se produz nos dias atuais esta razoavel- mento distante daquela que se desenvolveu até @ Segunda Guer nos anos imediaiamente posteriores (0 contexte da "Guerra Fria’ Tomaremos dois exemplos, a titulo de ilustragao. Ambos os casos ressaltam as novas posturas interpretativas para a andlise geografica do poder, em particular do Estado. Os franceses s8o os que mais tem Inovado nesse campo. Denire eles, P. Claval, que procura distinguir as varias formas de poder nas modemas sociedades industriais que constituem interesse para o estudioso. Segundo ele, os gedgrafos tem negligenciado as dimensdes espaciais do poder em geral numa socie~ dade complexa, tendo até agora se apegado em excesso ao Estado ‘em si, com isso passando ao largo de fatos importantes relacionados as engrenagens dos governos © suas articulagbes com as socieda- des civis. A base de sua critica a esta “fetichizagao” do Estado pelos gedgrafos, reside na sua compreenséo do que os fatos atinentes a0 espaco devem ser relacionados a toda a vida social e, consequente~ mente, a todas as formas de poder al geradas. Dai, para ele, a impor- tancia fundamental da informagao, por exemplo, como elemento que interage na relagao espago-poder. Um outro autor dessa perspectiva renovada é C. Raffestin, que ‘como Clavel, esté mais preocupado em produzir uma geografia politica que dé conta das formas novas e complexas de exercicio do poder, fem sta relagdo com o espago, que propriamente com o Estado em ‘si, Dai @ sua insistencia na anélise dos mecanismos politicos que se desenvolvem através da aluacéo da sociedade civil em sua relagao com as formas institucionalizadas do poder, numa sociedade complexa © democratica. Tais mecanismos, aqueles que interfere nessa rela~ ‘40, desenvolvem-se através das formas @ organizagdes ja conhecidas Como partidos, sindicatos, entidades, etc, além daqueles fenémenos tipicos das sociedades industrials, como as formas de controle @ gestao, a comunicagao, a religiao, etc. Eosa nova postura, que nao ¢ exclusiva desses dois autores, ilustra bem as novas tendéncias interpretativas da geografia politica. Conse- quentemente, pelo menos nas sociedades avangadas dos paises do chamado Primeiro Mundo, ou industrializados, néo caberia mais a velha concepgéo de um Estado uno, centralizador e “sem face”, palrando autoritariamente sobre a sociedade, esta sendo concebida pelos donos do poder, enquanto um conjunto amorfo de pessoas designadas como “populagdo”. O mesmo se aplicaria ao tertitério, que deixeria de sor a 24 fonte exclusiva do poder dos Estados o da riqueza de uma nagéo, cons- tituindo um elemento a mais (com sua dimenszo, recursos, diferengas internas, etc.) do desenvolvimento nacional. Entretanto, nas sociedades menos avangadas, em especial as da periferia do capitalismo, como a brasileira, nao se pode, em hipdtese alguma, subestimar 0 papel e a importancia do Estado quando exar amos qualquer aspecto da vida nacional. Principalmente no caso do Brasil, com sua tradi¢ao de conservadorismo e centralizagéo exacerba- da de riqueza e de poder. E sabido que nas uitimas décadas, tem-se forjado no interior da sociadade e do Estado brasileiros uma tendéncia fortemente moder zadora, capaz de reproduzir no pais algumas praticas e mecanismos tipicos de sociedades democrdticas avangadas. Entretanto, é igual- mente sabido que a impermeabilidade do poder central ¢ de setores ponderaveis das classes dominantes as mudangas exigidas por um processo democratico-modemnizante, ainda é muito grande, 0 que nos Femete, sob certo ponto de vista, a um estagio politico certamente pré- democratico, mesmo em sua forma liberal cléssica, Ccorre que no tocante ao tema que nos interessa mais de perto, a8 politicas territoriais, o quadro tende a se revelar ainda mais comple- x0. Isto porque, como jé dissemos, a centralizacao do Estado quanto a {gestdo dos ‘negocios territoriais” esta longe de democratizar-se, manten- do alé os dias atuais determinadas préticas que sao tipicas da nossa \radigéo histérica. Se atualmente o Estado brasileiro nao apresenta, pelo menos explicitamente, projatos de expansdes terttoriais externas, o seu “projeto nacional" de expansdo intema de seus dominios continua com todo o vigor, restabelecendo, sob certa medida, a velha relagao Estado- territorio de tipo “prussiano”, Decorre justamente dal, nos dias atuais, 0 fortalecimento crescente da oposigéo entre poder central e poder local, medida que ae sociedades civis locals reivindicam cada vez mais © seu direito de participar ¢ intervir nos “projelos nacionais que interferem em sua vide local, 25 wuNOr TT CRVZ AQUE VSEGARMENTE ‘cHastio Bazi, Mans aa Provincia ce Santa Crit aque vrmentschamam Brest Prof. Rerisson Costa ACERVO PARTICULAR el 2 A GEOPOLITICA PORTUGUESA NA COLONIA ST A“MONTAGEM” DO TERRITORIO COLONIAL, E sobejamente conhecido 0 contexto em que se deu o descobri- mento do Brasil ¢ 0 inicio do dominio portugues nas novas terras de além-mar. Por isso comegaremos por destacar aqueles aspectos da colonizacao que possuem Uma especificidade maior para o nosso tema, Em primeiro lugar, 0 fato de que os portugueses logo se deram conta de que estavam diante de um Imenso terrtério voltado para o Attantico, © qual, pelas suas caracteristicas fisiograficas, era de dificil penetra~ ‘s80 © ocupagéo de tipo mais permanente. Acrescente-se 0 fato de que tinha como terras limitrofes, a oeste, um imenso territorio, voltado para 0 Pacitco, pertencente justamente a seus vizinhos ibéricos, os espanhéis. Nesias terras, ao contrario daqui, iniciou-se de imediato um tipo especi- fico de colonizacao, centrada quase que exclusivamente na exploragao de metais preciosos. Além da permanente indefinigao quanto aos limi- tos entre os dois grandes dominios, em especial na regio da Bacia do Prata, a Coroa portuguesa preocupava-se também com as constantes ameagas representadas pelas ncurses de franceses, inglases e holan- deses, principalmente, que punham em risco a integridade do territério recém-descoberto. Constatada @ nao ocorréncia imadiata de metais preciosos, os colonizadores nao montaram aqui, de inicio, um tipico empreendimento mercantil-colonial, limitando-se, até meados do seculo XVI, a assentar poucas e frageis bases de seu dominio, representadas por algumas “feitorias’, na verdade pequenos e dispersos entrepostos de escambo ar comercializagao do pau-brasil. Essa fragil presenga estava longe de configurar uma verdadeira estratégia geopolitica de ocupagao © domi- nio de um teritério. Dois fatos histéricos importantes alteraram bastante esse quadro. Pressionados pelas constantes ameagas ao sul, ao longo da costa e na foz do Amazonas, os portugueses resolveram assentar bases mais s6li- das para a ocupagao. Assim é que em 1530 chega ao Brasil a primeira expedigdo de fato colonizadora, simultaneamente a instituicao do regi- me das Capitanias Hereditérias, forma pela qual a metrépole envolvia empreendedores privados dispostos a colonizar as novas teras sem grandes Onus financeiros a Coroa. Apenas duas capitanias prospera- tam relativamente: Sao Vicente e Pemiambuco. Com isto, o quadro de semiabandono do novo territério persistia, ja que para ocupa-lo @ colo- nizd-lo de modo efetivo, 0 dispéndio de capitais seria enorme, dadas as suas dimensdes Dai a decistio de Portugal de extinguir tal sistema, substituindo-o pelo regime das Sesmarias, concomitante a instalagéio do Governo- Geral, em 1549. Por esse novo sistema, as terras (0 solo € seus recur- sos naturais) eram distribuidas @ quem as requeresse, desde que apre- sentasse passes @ condigdes outras que Ihe permitissem exploré-la pare a agricultura e a pecuéria, principalmente. Por seu turno, a Coroa mantinha intocados 0 monopélia sobre o comércio externo, a cobranca de impostos e, evidentemente, @ concesséo de terras. A autonomia dos senhores de terra era praticamente total. A admi- nistracao colonial a cargo do Governo-Geral, pela sua dimensao redu- Zida, face & do territério sob sua jurisdi¢ao, impadiam-na de exercer um Controle maior sobre a economia @ outros assuntos. Entretanto, esse sistema, mesmo que fragil, em muito interessava a metropole, E que, em {roca dessa autonomia, os novos planos incumbiam-se de realizar um trabalho de grande interesse para a Coroa: de um lado, com a sua fixe 80, assegurar a posse do novo territério diante das ameagas externas; de out, interirizar 0 povoamento a custa do desbravamento de novas terras e do dominio dos indigenas, cacados impiedosamente a fim de proverem a nova economia colonial de trabalho escravo. © poder politico do Brasil Colonial 6 desde 0 inicio, portanto, bipo- lar, ou seja, ele se estabelece formaimente a base de um polo central (0 Governo-Geral, que intemalizava 0 Estado portugués) © -outro representado pela presenca econémica e palitica dos senhores de terra e de engenho. disseminados ao longo do litoral, principalmente. A forca politica desse poder local se institucionalizava na existéncia e modo de funcionamento das CAmaras Municipais. Nelas, expressava-se 0 28 poderio dos proprietarios rurais, os “homens bons”, os tinicos @ possuir Gireitos politicos (votar e serem votados) e que, assim, extrapoiavam os seus dominios para além de suas terras, gerinco localmente quase toda 2a vida colonial. Pelo poder que tais cémaras possuiam (fixar tributos locais, regular moedas, organizar a defesa e 0 ataque frente aos indios, ‘elc.), representaram, no Brasil Colonial, quase que a feigdo de "Estados" disseminados ao longo do terrterio. Apesar dessa autonomia de que gozavam as capitanias e o poder local instalado nas vilas, a administragao central colonial se fazia presente pelo controle de trés assuntos da mais alta importancia para ‘a metrépole: tributos, comércio e forgas militares. Tals assuntos eram administrados localmente por um pequeno niimero de representan- tes do govemo-geral, com destaque para a figura do capitdo-mor ou governader, incumbido quase que exclusivamente do comando militar da capitania, com poderes ilimitados nese campo, que Ihe permitiam, além de manter um corpo regular de tropas, recrutar quando julgasse necessério, milicias entre a populagao branca. Apesar disso, permane- ‘ce, como ja dissemos, a caracteristica principal da gestéo politica da colénia, qual seja, a sua disperséo. —_— ESTRATEGIAS DE OCUPAGAO E DOMINIO Esse quadro geral de fragmentagao do poder, da administragao, do povoamento e da economia coloniais nao sugere, a primeira vista, uma estratégia geopolitica (deliberada e explicita) de controle e domi. rio do novo territério por parte da Coroa portuguesa. Entretanto, reside justamente ai o que alguns historiadores reconhecem como verdadeira estratégia para a manutengao e mesmo expansde do territério brasileiro, por parte de Portugal. Diante da vastidao e dificuldades de penetracéio do territério, de um lado, ¢ da caréncia populacional dos colonizadores (portugueses dispostos a migrar para o Brasil), de outro, além das cificuldades de controlar miltarmente o imenso litoral e as areas fronteirigas a oeste, a Coroa portuguesa preferiu optar pela colonizagao semiprivada, conce- dendo aos colonos 0 maximo possivel de autonomia, Porisso é que, além dos grandes empreendimentos agrario-mercan- tis representados pelos latifindios canavieiros e pelos engenhos, que constituiam a espinha dorsal da economia colonial e os niicleos popu- acionais mais expressivos, o sistema adotado facilitou enormemente o povoamento, mesmo que disperso, de praticamente todo o terrt6rio sob ‘0 dominio portugués e, como veremos, até para além deste. 20 O litoral, apesar da persisténcia de alguns vazlos de ooupagdo, foi praticamente todo povoado, desde Sao Vicente, até a foz do Amazonas (em 1616 os portugueses efetivam ali o seu dominio com a fundacao de Belém, apés a expulséo dos estrangeitos). A pecuaria extensiva no sertao nordestino e meio-norte, por seu tumo, encarregou-se de ocupar boa parte dessas regides, adensando-se ao longo dos rics, vias naturais de penetragao. Os jesuitas por sua vez, instalaram suas miss6es pelo este do torritério, constituindo néicleos que atingiram o extremo norte. Os bandeirantes, partindo de S40 Paulo, se n&o promoveram ocupa- des de fato, abriram vies de circulagéo e com isso criaram algumas pré-condiedes para ocupagées futuras, em especial com a descoberta de ouro e pedras preciosas em pontos do interior (atuais Minas Gerais © Mato Grosso), a partir de fins do século XVII. Ao sul, desde Martim ‘Afonso de Souza, os vicentinos procuravam estender 0 povoamnento 20 longo do litoral, tendo Laguna como ponto mais @ vanguarda. A partir dai, em diregao ao Rio da Prata e a toda regiao da Bacia do Prata, enfrentavam o dominio espanhol e algum povoamento castelhano que ‘8 havia precedido, © que nao impediu que ja em fins do século XVII, parte dos campos gerais meridionais do terrtério jd apresentassem uma razoavel ocupagao a partir da criago e comércio de gado, empreendida pelos luso-brasilelros. Dois séculos @ meio apés 0 descobrimento e o Tratado de Torde- silhas, por ocasiéo do Tratado de Madri (1750) — em que Portugal Espanha estabeleceram em definitivo os limites entre os dois dominios — essa estratgia de ocupacdo pelos portugueses se revelou acerta- da. Ocorre que 0 critério adotado para a fixagdio desses limites foi o do “uti possidetis’, isto 6, do reconhecimento do dirsito de posse a partir do povoamento e explorago das terras. Ora, enquanto os castelhanos, envolvidos desde o inicio com a exploragao das minas nos altiplanos andinos € no México, concentravam al 0 grosso de sua ocupacao, 08 portugueses, que 86 dois séculos depois iniciaram a mineragao no inte- rior, alargaram (com a agricultura € a pecuaria, principalmente) os seus dominios, fazendo letra morta das delimitagdes formais provistas no Tordesithas. Assim &, que a excegao do Acre, adquirido de Bolivia em 1903 (apés a ooupacdo de fato por seringueiros brasileiros), a configu- ragao basica do territério brasileiro vem sendo praticamente a mesma desde aquela época, 0 eel 3 ESTADO NACIONAL E UNIDADE TERRITORIAL — ee QUADRO TERRITORIAL E POLITICO NO CONTEXTO DA INDEPENDENCIA ‘A constituig&o do Estado Nacional em 1822 foi precedida por transformagSes profundas ao longo dos trés séculos de vigencia do regime colonial e por alguns fatos que de certa forma ja fazem parte do contexto da Independéncia, Destacamos algumas desses transfor- mages, as de interesse maior para o nosso tema: declinio do siste- ma colonial (inaugurado por portugueses e espanhéis a partir de fins do século XIV), tendo atras de si o avango da Revolucao Industrial inglesa e do liberalismo econdmico e politico que se firmeva nas prin- cipais nagdes europeias. No plano interno, a consolidagao de uma elite econdmica e politica, representada pelos grandes proprietarios que aspiravam 0 fim do dominio portugués e do monopélio sobre as riquezas © 0 comércio. Algm disso, a disseminagao dos idea's liberais entre as camadas médias urbanas, simbolizados principalmente pelo movimento da Inconfidéncia Mineira, além de um sentimento nacional e antilusitano entre as camadas populares. Acresca-se a esse quadro alguns acontecimentos mais préximos do movimento da Independencia: a transferéncia da Corte portuguesa para o Brasil e sua fixagSo no Rio de Janeiro ¢ todas as medidas moder- nizadoras dai decorrentes, acompanhadas por uma maior centralizagéo do poder politico. Finalmente, 0 movimento constitucionalista em Portu- gal que repercutiu fortemente no Brasil, com agitagGes de todo tipo nas Capilanias que resultaram na queda dos governadores sua substitu ao 40 por juntas eleitas; e 0 movimento da Independéncia propriamen- te dito © @ ocupago do trono pelo principe herdeiro, tendo atras de elementos destacados das novas classes dominantes, representados por figuras como José Bonifacio. Havia também um outro “pano de fundo” que integrava essas trans- formagées de tipo mais estrutural. E que a configutagao da nossa forma- 40 tertitorial no inicio do século XIX j4 apresentava algumas carac~ teristicas que a distinguiam bastante daquela existente nos primeiros séculos de colonizacao. Nos extremos setentrionais & meridionais, 0 povoamento e a economia ja haviam prosperado. Além do Para e do Maranhao, 0 povoamento ja havia estabelecido os seus niicleos ao longo da calha principal do Amazonas, com destaque para Sao José do Rio Negro (atual Manaus); ao sul, como jé foi dito, os ntcleos litoraneos @ a ocupago extensiva do interior ja representavam uma base segura para a grande onda de povoamento durante o século XIX. No entanto, duas modificagées de grande monta alteraram subs- tancialmente o curso da formagao territorial. A primeira, representada pelo deslocamento do polo dinémico da economia colonial do nordeste para 0 centro-sul, a partir da decadéncia relativa da atividade agucareira nordestina e do advento da mineragao em Minas Gerais, principalmen- te. A segunda, pelo deslocamento da sede do poder central de Salva- dor para o Rio de Janeiro, fato este ligado ao primeiro, evidentemente. Essas mudangas afetaram profundamente 0 curso posterior da forma- 80 € da gestio territoriais futuras. corre que a atividade mineradora, diferentemente da rural tradi- cional, é atividade que se desenvolve imbricada com a vida urbana em gral. Afora a criagao de ndcleos urbanos, dentre os quais se destacou Vila Rica (Ouro Preto) e, com isto, a dinamizagao de toda a vida econd- mica regional, a mineragao representou, pela primeira vez, uma efetiva interiorizagéo’ do povoamento de base predominantemente urbana € complementarmente agraria, Além disso, estabeleceu fluxos e vias de comunicagao, tanto com Sao Paulo como com o Rio de Janeiro, criando assim as bases (a ossatura) da constituigao da futura regio sudeste e do famoso “triéngulo” de urbanizagao-industrializagao deste século (S40 Paulo-Belo Horizonte-Rio de Janeiro), A época da criagao do Estado Nacional, era essa a situacao, do ponte de vista da formago territorial. No entanto, se por um lado havia se consolidado a estrutura basica dessa formago, por outro, a persis~ téncia de algumas caractoristicas da fase inicial, aliades & conjuntura politica especifica dos primeiros anos do Império, geraram uma espé- Cie de fatos que sacudiram a chamada unidade nacional do pais que se emancipara. 32 Como ja se disse exaustivamente, 0 movimento da Independén- cla, 20 contrério aos de outras nagées, aqui se fez a partir de arran- jos na Corte em torno do Principe Regente, com a plena excluséo das ‘massas populates e mesmo de segmentos locais das elites econdmi- cas e politicas, Por isso mesmo, 0 contexto da luta pela emancipagao ndo envoiveu, como em outros exemplos histéricos, modificagées na estrutura social e econdmica do pais, mantendo assim os tragos esser ciais da ordem vigente no periodo colonial. Basta dizer que a esoravi dao permaneceu, 0 que significa que qualquer outra modificagao que porventura tenha ocortido pode ser quaificada de menor. Além disso, afora as contendas locals entre as elites brasileiras portuguesas pelo controle do comércio, das finangas e da administragao, principalmente, nao se registraram movimentos de envergadura, no sentido de envolver os demais segmentos da sociedade. descontentamento das populagdes regionais locais, que até entao tinha como alvo os portugueses, aos poucos se cirige também 0s novos donos do poder, na verdade a antiga classe dos grandes proprietérios rurals. Durante toda a fase do chamado primeiro reinado, até a abdicagao de D. Pedro |, as revoltas eclodiram nas ruas da capital € nas provincias, colocando em xeque nao apenas a nova ordem poll- tica (principalmente apés a dissolugao da Assembleia Constituinte pelo Imperador), que frustrare completamente 0 anseio de mudangas por arte das classes subaltemas, como também a propria ideia de unidade nacional. Como se verd adiante, a emancipacao politica da nagao emer- gente pagaria um alto prego: a0 tomar-se independent, o pals teria que “costurar’ a sua propria unidade, resolver suas contradig6es internas, que eram sociais, econémicas, politicas, mas também geopoliticas. ‘AS REVOLTAS PROVINCIAIS Afastada @ possibilidade de um golpe absolutista de D. Pedro I (com © apoio dos setores reacionérios mais radicais) em fungao da sua abdi- cago, constitui-se a Regéncia Trina Permanente. Ao nivel do nticleo central do poder, 0 novo erranjo institucional promoveu uma certa esta- bilidade politica, em particular pelo afastamento definitive dos setores lusitanos desse poder. A partir dai (1834), inicia 0 periodo que certamen- (© pode ser caracterizado como o de maior convulsdo social ¢ polttica «da nossa historia, pelo menos no tocante ao nimero de insurreigdes e rovoltas de todo tipo, atingindo praticamente todo o territério nacional ‘As medidas centralizadoras do governo, tais como o poder ilimitado do rogente Feijé (a partir de 1834 a Regéncia Trina torna-se Una), as medi- «las repressoras na capital, a criagéo da Guarda Nacional, etc., so a ‘contrapartida as agitagoes provinciais, 33

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