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11
Mídia
e Violência
Doméstica
RAÍSSA VELOSO
Copyright © 2020 by Fundação Demócrito Rocha
Raymundo Netto
Gerente Editorial e de Projetos
Marisa Ferreira
Coordenadora de Cursos
Joel Bruno
Designer Instrucional
Leila Paiva
Coordenadora de Conteúdo
Raymundo Netto
Coordenador Editorial
Andrea Araujo
Editora de Design e Projeto Gráfico
Miqueias Mesquita
Designer
Daniela Nogueira
Revisora
Carlus Campos
Ilustrador
Luísa Duavy
Produtora
Fernando Diego
Analista de Marketing
N
os fascículos anteriores você pôde entender como o
enfrentamento aos diferentes tipos de violência do-
méstica e familiar contra a mulher está inserido na luta
pela defesa dos direitos humanos. Conheceu melhor
como a questão de gênero determina, no mundo inteiro, as condi-
ções de vida para as mulheres e as violações mais comuns a essa
população. Além disso, aprendeu sobre os direitos assegurados,
as políticas e diretrizes nacionais para investigar, processar e jul-
gar crimes com recorte de gênero e como o racismo é uma ques-
tão estrutural que compromete de formas específicas a vida das
mulheres negras. Mesmo não sendo um fenômeno novo, a violên-
cia doméstica e familiar contra a mulher exige reflexões e atitudes
atualizadas para o seu enfrentamento.
2
nados novos desafios: ao mesmo tempo do
sistema moderno de mídia (de transmis-
são em massa) passou a existir o sistema
de comunicação em rede.
Aqui vamos nos referir à produção midi-
ática como todo o processo que articula a
execução de uma atividade humana com
um dispositivo de comunicação. Não se
T
com a lógica das mídias digitais que, por sua
odos os dias temos acesso a inú- vez, altera a maneira como essas atividades
meros conteúdos produzidos eram feitas” (MARTINO, 2009, p. 271). Nesse
por outras pessoas. Por meio de sentido, vamos incluir na nossa discussão
mensagens no celular, anúncios tanto gêneros tradicionais de conteúdos mi-
estampados pela cidade, vídeos na internet diáticos (como notícias de jornais impressos
ou músicas no rádio, a verdade é que no sé- e telenovelas) quanto os novos gêneros po-
culo XXI quase a totalidade da população pularizados com a expansão das redes so-
mundial tem algum tipo de contato diário ciais na internet, como os microtextos com
com produtos midiáticos. Com a expansão hashtags – que são rótulos que demarcam
da cultura de conexão e o crescimento do o conteúdo com uma palavra-chave prece-
número de pessoas com acesso à internet, dida de # – e os vídeos com alta eficácia de
passamos cada vez mais a ser não ape- compartilhamento (efeito viral).
nas consumidores de conteúdos, mas Para ter uma visão mais nítida de como
também produtores deles. Nesse sentido, funciona atualmente o chamado regime
3
sa obtêm vantagens com a exibição de
violência. Organizada empresarialmente, a
mídia se insere no mercado a partir da ma-
neira como trabalha os próprios produtos e,
dentre os temas preferíveis para comercia-
lização no mundo da comunicação, a vio-
lência é considerada uma moeda de troca
com alto valor: nas palavras de Porto (2002)
“uma mercadoria que vende e vende bem”.
Longe de ser espelho da realidade, a mídia A INVISIBILIZAÇÃO DO
FENÔMENO NA IMPRENSA
atua como agente na construção das re-
presentações sobre o mundo e influen-
T
cia as práticas sociais (THOMPSON, 1998)
e, da forma como tem representado o tema ransformar a violência domés- sentativos das cinco regiões do país. A
aqui em discussão, pode ser caracterizada tica e familiar em uma questão amostra foi composta por 1.583 matérias
como um espaço de estruturação de socia- pública faz parte da luta his- sobre homicídios de mulheres e 478 sobre
bilidades violentas (PORTO, 2002). tórica das mulheres. Por muito crimes de estupro. Entre as principais críti-
Por isso, mais do que falar sobre, a tempo (e infelizmente para muita gente até cas apontadas pelo documento, estão:
produção midiática deve ser analisada hoje), o fenômeno da violência com recor-
• Em relação à cobertura dos assassi-
em relação a maneira como falar sobre te de gênero foi tratado como uma ques-
natos de mulheres, prevaleceram
o tema da violência e, no caso específico tão de âmbito íntimo e privado. Quem tem
matérias sobre a morte em si, sem
aqui discutido, como abordar o tema da em mente o ditado que diz que “em briga
informações sobre quem era aque-
violência doméstica e familiar contra de marido e mulher não se mete a colher”
la mulher, se já havia buscado ajuda,
mulheres. No contexto em que a midia- internalizou uma das ferramentas para ma-
recorrido ao Estado para se defender
tização é o processo central de visibiliza- nutenção da dominação masculina, que é a
de violências anteriores ou se tinha
ção e produção dos fatos sociais na esfera tentativa de preservar em foro íntimo ques-
medida protetiva, entre outras ques-
pública, o enquadramento midiático é tões relativas à esfera doméstica e familiar.
tões que podem apontar falhas nas
a operação principal pela qual se sele- Como discutimos anteriormente, não
políticas públicas de enfrentamento à
ciona, enfatiza e apresenta o aconteci- basta que o tema da violência doméstica
violência contra as mulheres.
mento (SODRÉ, 2009). O enquadramento e familiar esteja na pauta dos conteúdos
midiático pode ser entendido como um midiáticos: é preciso que o enquadra- • A cobertura privilegiou uma abor-
sistema de referências (regras e esquemas mento dado ao fenômeno coloque em dagem romantizada e a desres-
interpretativos) que organiza a experiência xeque a reprodução do machismo em ponsabilização do autor pelo cri-
social ao dar sentido a uma situação. nossa sociedade. Nesse sentido, o Ins- me. A maioria absoluta dos textos
“Seja de natureza política, ética ou tituto Patrícia Galvão – Mídia e Direitos não aborda as reais motivações para
estética, o enquadre afina-se evidente- produziu importante monitoramento da o crime; nos que tentam apresentar
mente com a cultura de um grupo espe- cobertura dos principais jornais brasilei- um motivo, a maioria aponta como
cífico, permitindo ao ator social descrever, ros sobre o assassinato de mulheres e os causas do assassinato: “ciúmes”,
interpretar ou categorizar as situações que crimes de violência sexual com recorte de “violenta emoção”, “defesa da honra”,
se lhe afiguram como problemáticas. Por gênero após a aprovação da Lei do Femini- “inconformidade com a separação”,
meio dele, um problema social é suscetí- cídio (lei nº 13.104/2015). Realizado entre autor “fora de si”, “transtornado” ou
vel de converter-se em problema público, 2015 e 2016, o relatório analisou mais de “sob efeito de álcool”. O padrão fre-
dando margem ao surgimento de ações uma centena de portais e sites noticiosos quentemente adotado pela impren-
coletivas” (SODRÉ, 2009, p. 38). para, ao fim, selecionar 71 veículos repre- sa transfere a culpa para a vítima.
O RETRATO DA aumentam-denuncias-de-agressoes.
jhtm>. Acesso em 11 out 2020.
O
utro produto midiático impor- que a exposição do tema pela telenovela Enquanto novelas como “Mulheres
tante para analisarmos são as possa ter contribuído para o crescimen- Apaixonadas” (Manoel Carlos, 2003) e
telenovelas, que no Brasil são to na busca do serviço. “Fina Estampa” (Aguinaldo Silva, 2011)
vistas todos os dias por milhões Por outro lado, quando se trata de vio- foram marcos na dramaturgia por
de pessoas. Por isso, vamos discutir breve- lência contra personagens femininas que inserir o tema da violência de gênero
mente o poder que esse formato de entre- não atendem aos padrões sexuais estabe- na produção televisiva, nove outras
tenimento tem ao colocar temas no deba- lecidos, as telenovelas prestaram um desfa- narrativas exibidas também em horário
te público e a possibilidade de despertar vor ao debate público. Ao analisar 17 anos nobre não ganharam o debate público
consciências para a transformação social. de produção de uma grande emissora de ao apresentar cenas de violência
Um exemplo disso foi a novela “A Favorita”, TV, a pesquisadora Lorena Rúbia Pereira doméstica e familiar contra mulheres.
de autoria de Aguinaldo Silva e produzida Caminhas concluiu que a violência perpe- Isso porque, enquanto as personagens
pela Rede Globo em 2008, dois anos após trada contra as vilãs por seus pais, maridos Raquel (Helena Ranaldi) e Celeste
a aprovação da Lei Maria da Penha. Naque- e amantes são justificadas na trama como (Dira Paes) das novelas de 2003 e 2011
le mesmo ano, a Central de Atendimento à um “corretivo necessário”: “Elas só pude- eram construídas como “honestas”,
Mulher – Disque 180 registrou 269 mil de- ram apanhar sem gerar uma onda de ques- com “comportamento exemplar” e
núncias, relatos de violência e pedidos de tionamentos e inquietações porque tiveram “relacionamentos estáveis”, as vilãs
informação em todo o país, o que represen- o destino que mereciam dentro da trama, e agredidas apresentavam desvios morais
tou um aumento de 32% em comparação estariam apenas pagando por ter transgre- e desacordo com os padrões normativos
com o ano anterior. Uma das hipóteses é de dido fronteiras morais e de gênero”. previstos para o papel social de mulher.
PARA ENFRENTAMENTO
Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros4
há previsão de “compromisso com a res-
AO FENÔMENO
ponsabilidade social inerente à profissão”
(Art. 2º, parágrafo III); dever de “opor-se ao
D
arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem
esnaturalizar o enquadramen- Além da produção publicitária não ter como defender os princípios expressos na
to machista dado à mulher na um controle público no Brasil, já que te- Declaração Universal dos Direitos Humanos”
mídia é uma meta necessária mos um Conselho Nacional de Autorre- (Art. 6º, I); “respeitar o direito à intimidade,
que também representa um de- gulamentação Publicitária (Conar) com- à privacidade, à honra e à imagem do cida-
safio enorme em um país como o Brasil. posto por membros vinculados à própria dão” (Art. 6º, VIII); “defender os direitos do
Na história nacional da publicidade, por indústria da publicidade, outra limitação cidadão, contribuindo para a promoção das
exemplo, campanhas com abordagens para avançarmos na representação da garantias individuais e coletivas, em especial
machistas ganharam notoriedade pela for- mulher nesse universo diz respeito à pró- as das crianças, adolescentes, mulheres, ido-
ma como trataram a mulher. Ao lembrar da pria estruturação dos espaços de trabalho: sos, negros e minorias” (Art. 6º, XI); “combater
representação do feminino nas propagan- pesquisa realizada em 2016 mostrou que, a prática de perseguição ou discriminação
das de cerveja, por exemplo, podemos en- nas 30 maiores agências de publicidade por motivos sociais, econômicos, políticos,
tender como a publicidade voltada para o do país, apenas 20% de profissionais da religiosos, de gênero, raciais, de orientação
público masculino tem posicionado a ima- área de criação eram mulheres, que tam- sexual, condição física ou mental, ou de
gem da mulher a partir de uma posição de bém ocupavam apenas 6% dos cargos de qualquer outra natureza” (Art. 6º, XIV); e ain-
subordinação. E por que isso é problemáti- liderança nesses departamentos3. Ou seja, da proibição: “o jornalista não pode divulgar
co? Nas palavras de Flávia Biroli: é necessário que, para além da regulação informações de caráter mórbido, sensacio-
do conteúdo com base em interesses pú- nalista ou contrário aos valores humanos,
“Representações das relações de gênero nas
quais a mulher é humilhada e objetificada, blicos, a própria indústria da publicidade especialmente em cobertura de crimes e aci-
isto é, tratada como menos humana porque alcance uma igualdade de participação dentes” (Art. 11, II) e obrigação de “tratar com
é definida como instrumento para satisfa- entre gêneros e raças que permita avançar- respeito todas as pessoas mencionadas nas
ção dos desejos do outro, podem contribuir, mos nas representações sociais. informações que divulgar” (Art. 12, II).
ainda que de maneira difusa, para a violên- Um importante instrumento para pro-
cia contra as mulheres e para aceitação da
O jornalismo é um campo de comunica-
ção que funciona de outra forma: diferente- fissionais da imprensa é o relatório que
violência” (MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 138).
mente da atuação publicitária, jornalistas discutimos anteriormente “Imprensa e
devem seguir um código de ética que, para Direitos das Mulheres: Papel social e desa-
fios da cobertura sobre feminicídio e vio-
3 Pesquisa realizada por Meio & Mensagem em lência sexual”, do Instituto Patrícia Galvão.
dezembro de 2015 disponível em <https://
www.meioemensagem.com.br/home/ 4 Disponível em <https://fenaj.org.br/wp-
comunicacao/2016/01/12/mulheres-sao-20- content/uploads/2014/06/04-codigo_de_etica_
porcento-da-criacao-das-agencias.html>. dos_jornalistas_brasileiros.pdf>.
REFERÊNCIAS
lares, para disseminar comentários depre-
ciativos. O segundo acontece quando há o
compartilhamento de conteúdo íntimo pela
internet sem autorização de todos os envol- ANDI. Imprensa e agenda de direitos das mulheres: uma análise das tendências
vidos ou com o propósito de causar humi- da cobertura jornalística. Brasília: Andi; Instituto Patrícia Galvão, 2011.
lhação à vítima. Nos dois casos, as práticas
CAMINHAS, Lorena Rúbia Pereira. Imagens de violência de gênero em
não necessariamente ocorrem com recorte
telenovelas brasileiras. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 1.
de gênero, mas cada vez mais casos assim
Disponível em < https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
contra mulheres têm chegado às delegacias
026X2019000100208>. Acesso em 3 out. 2020.
e aos tribunais. De acordo com o material
produzido pelo Instituto Patrícia Galvão, FREITAS, Viviane Gonçalves. Os temas da imprensa feminista no Brasil desde os anos
isso ocorre porque essas formas de violên- 1970. Nexo Jornal, 2 out de 2019. Disponível em <https://www.nexojornal.com.
cia mobilizam sistemas discriminatórios, br /academico/2019/10/02/Os-temas-da-imprensa-feminista-no-Brasil-desde-os-
como o sexismo, o preconceito de classe, o anos-1970>. Acesso em 3 out. 2020.
racismo e a homofobia. INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO. Feminicídio #InvisibilidadeMata. São Paulo:
Assim como no ambiente off-line, bus- Fundação Rosa Luxemburgo; Instituto Patrícia Galvão, 2017. Disponível em < https://
car que as vítimas conheçam os próprios agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/livrofeminicidio/>. Acesso em 3 out. 2020.
direitos na rede de conexão e saibam como INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO. Imprensa e Direitos das Mulheres: Papel social e
responsabilizar os autores das agressões desafios da cobertura sobre feminicídio e violência sexual. Instituto Patrícia Galvão,
é necessário, mas não suficiente. É impor- 2019. Disponível em <https://assets-institucional-ipg.sfo2.cdn.digitaloceanspaces.com
tante que existam ações de enfrentamento /2019/12/IPG_RelatorioMonitoramentoCoberturaFeminicidioViolenciaSexual2019.
à cultura machista também nos espaços pdf>. Acesso em 3 out. 2020.
on-line. Nesse contexto, o caminho que se MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria da Comunicação: ideias, conceitos e métodos. 5.
apresenta como mais necessário a ser per- ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
corrido nos dias atuais é a promoção de
uma educação midiática associada à edu- MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Feminismo e política: uma introdução. 1. ed. São
cação para igualdade de gênero. Paulo: Boitempo, 2014.
PORTO, Maria Stela Grossi. Violência e meios de comunicação de massa na sociedade
5 Dossiê Violência contra as Mulheres. Site do contemporânea. Sociologias, Porto Alegre, ano 4, n. 8, p. 152-171, jul/dez. 2002.
Instituto Patrícia Galvão. Disponível em <https://
dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/ THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis,
violencias/violencia-de-genero-na-internet/>. RJ: Vozes, 1998.
ILUSTRADOR
CARLUS CAMPOS
Artista gráfico, pintor e gravador, começou
a carreira em 1987 como ilustrador no jornal
O POVO. Na construção do seu trabalho, aborda
várias técnicas como: xilogravura, pintura,
infogravura, aquarelas e desenho. Ilustrou
revistas nacionais importantes como a Caros
Amigos e a Bravo. Dentro da produção gráfica
ganhou prêmios em salões de Recife, São Paulo,
Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
APOIO PATROCÍNIO
REALIZAÇÃO