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Enfrentamento à violência

doméstica e familiar contra

Mulher
GRATUITA
Essa publicaçã
o
não pode ser
comercializad
a

11
Mídia
e Violência
Doméstica
RAÍSSA VELOSO
Copyright © 2020 by Fundação Demócrito Rocha

FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA


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Presidente

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UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (Uane)


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CURSO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER


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Editora de Design e Projeto Gráfico

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Ilustrador

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Produtora
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Analista de Marketing

Este fascículo é parte integrante do Projeto “Programa de Enfrentamento à Violência Doméstica


e Familiar Contra a Mulher”, em atendimento do Contrato Nº 74/2020 firmado entre a Fundação
Demócrito Rocha e a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará e do Termo de Fomento Nº 02/2020
firmado entre Fundação Demócrito Rocha e Câmara Municipal de Fortaleza.

Todos os direitos desta edição reservados à:

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SUMÁRIO
1. Apresentação 164
2. O papel da mídia 166
3. A Invisibilização do fenômeno na Imprensa 169
4. O retrato da violência contra a mulher na televisão 172
5. Educação midiática para enfrentamento ao fenômeno 173
Referências 175
1
APRESENTAÇÃO

N
os fascículos anteriores você pôde entender como o
enfrentamento aos diferentes tipos de violência do-
méstica e familiar contra a mulher está inserido na luta
pela defesa dos direitos humanos. Conheceu melhor
como a questão de gênero determina, no mundo inteiro, as condi-
ções de vida para as mulheres e as violações mais comuns a essa
população. Além disso, aprendeu sobre os direitos assegurados,
as políticas e diretrizes nacionais para investigar, processar e jul-
gar crimes com recorte de gênero e como o racismo é uma ques-
tão estrutural que compromete de formas específicas a vida das
mulheres negras. Mesmo não sendo um fenômeno novo, a violên-
cia doméstica e familiar contra a mulher exige reflexões e atitudes
atualizadas para o seu enfrentamento.

164 Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste


Nos últimos anos, passos importantes
foram dados no Brasil para a criação de le-
gislações que criminalizam a violência mo-
tivada por discriminação de gênero, como a
Lei Maria da Penha (lei no 11.340/2006) e a
Lei do Feminicídio (lei no 13.104/2015). Mes-
mo assim, os índices de agressões contra as parte dos brasileiros e das brasileiras acre-
mulheres não diminuíram, pelo contrário: ditava que o número de estupros seria me-
dados do Atlas da Violência de 2019 apon- nor “se as mulheres soubessem se compor-
tam, por exemplo, que entre 2007 e 2017 tar”. Como parte da cultura, o machismo
os casos de feminicídio ocorridos no Brasil é uma ideologia que está nas raízes da
aumentaram em 30,7%1. Por isso, devemos formação de nossa sociedade patriarcal
questionar: o que legitima tanta agressi- e heteronormativa (o poder é concentra-
vidade? Para responder a essa pergunta, do na figura masculina e a norma social é
este curso tem tentando explicar como a heterossexual) e em maior ou menor grau
violência de gênero está fundamentada na mente de todos e todas. Nesse sentido,
em determinantes culturais responsáveis para ir além do avanço na possibilidade de
pela conservação da desigualdade de po- responsabilização de agressores, é necessá-
der entre homens e mulheres – e que são rio também investir em processos de trans-
eles que devemos transformar. formação cultural.
Para avaliar a percepção social em re- Como dimensão fundamental na cons-
lação à tolerância à violência contra as trução da realidade social há mais de um
mulheres, levantamento divulgado pelo século, a produção industrial da cultura
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada veiculada pelos meios de comunicação
(Ipea) em março de 2014 mostrou que um de massa também influencia na repro-
quarto da população brasileira acreditava dução de comportamentos que afetam a
que mulheres que usam roupa que mostra vida das mulheres. Por isso, neste módulo
o corpo merecem ser atacadas2. Outro dado 11 você compreenderá qual é o papel da
do mesmo estudo evidenciou que a maior mídia no enfrentamento à violência do-
méstica e familiar com recorte de gênero.
1 “Atlas da Violência: Brasil registra mais de 65 Aqui veremos como as representações em
mil homicídios em 2017”. Portal do Ipea. 5 de
junho de 2019. Disponível em <https://www.
produções midiáticas podem reforçar ou
ipea.gov.br/portal/index.php?option%3Dcom_ problematizar a visão cultural acerca dos
content%26view%3Darticle%26id%3D34786>. papéis sociais construídos historicamente
Acesso em 3 out 2020. para homens e mulheres e que experiências
2 Sistema de Indicadores de Percepção Social – contribuem para a construção de um mun-
Tolerância social à violência contra as mulheres.
do como aquele imaginado pela filósofa
Portal do Ipea. 4 de abril de 2014. Disponível em
<https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/ Rosa Luxemburgo, em que sejamos “social-
PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres. mente iguais, humanamente diferentes
pdf>. Acesso em 3 out 2020. e totalmente livres”.

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aos estudos sobre os efeitos da comunica-
ção de massa – que já eram muito recentes
na história da humanidade – foram adicio-

2
nados novos desafios: ao mesmo tempo do
sistema moderno de mídia (de transmis-
são em massa) passou a existir o sistema
de comunicação em rede.
Aqui vamos nos referir à produção midi-
ática como todo o processo que articula a
execução de uma atividade humana com
um dispositivo de comunicação. Não se

O PAPEL trata apenas do uso de uma mídia ou do que


as mídias “causam”, mas, sim, de um proces-

DA MÍDIA so de interação, “(...) pelo qual atividades e


práticas humanas passam a ser articuladas

T
com a lógica das mídias digitais que, por sua
odos os dias temos acesso a inú- vez, altera a maneira como essas atividades
meros conteúdos produzidos eram feitas” (MARTINO, 2009, p. 271). Nesse
por outras pessoas. Por meio de sentido, vamos incluir na nossa discussão
mensagens no celular, anúncios tanto gêneros tradicionais de conteúdos mi-
estampados pela cidade, vídeos na internet diáticos (como notícias de jornais impressos
ou músicas no rádio, a verdade é que no sé- e telenovelas) quanto os novos gêneros po-
culo XXI quase a totalidade da população pularizados com a expansão das redes so-
mundial tem algum tipo de contato diário ciais na internet, como os microtextos com
com produtos midiáticos. Com a expansão hashtags – que são rótulos que demarcam
da cultura de conexão e o crescimento do o conteúdo com uma palavra-chave prece-
número de pessoas com acesso à internet, dida de # – e os vídeos com alta eficácia de
passamos cada vez mais a ser não ape- compartilhamento (efeito viral).
nas consumidores de conteúdos, mas Para ter uma visão mais nítida de como
também produtores deles. Nesse sentido, funciona atualmente o chamado regime

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SAIBA MAIS híbrido de comunicação, um ponto de
partida interessante para nossa discussão
Ao destrinchar a Teoria da Midiatização pode ser o reality show Big Brother Brasil
da Sociedade do teórico dinamarquês (BBB), da Rede Globo de Televisão. Depois
Stig Hjarvard, o professor brasileiro de anos amargando queda na audiência
Luiz Mauro Sá Martino explica: “Um televisiva, o formato de entretenimento que
dos conceitos recentes trazidos para o confina participantes em uma casa com câ-
campo da Comunicação, o conceito de meras ligadas durante 24 horas percebeu
midiatização oferece uma perspectiva o crescimento do engajamento do público
de análise que supera algumas antigas por meio da repercussão nas redes sociais
dualidades – por exemplo, pensar que dos casos de machismo e violência sexual Twitter
a mídia é parte integrante da sociedade ocorridos durante o programa realizado em Rede social
e, por conta disso, talvez não faça mais 2020. A importunação sexual contra as par- que permite
aos usuários
sentido falar nas relações entre ‘mídia e ticipantes em uma das edições de um pro-
enviar e receber
sociedade’, mas seja importante dedicar grama de reality show (quando participan- atualizações
tempo a compreender os elementos de tes homens foram flagrados praticando atos pessoais de
uma ‘sociedade midiatizada’, na qual as sexuais sem o consentimento de mulheres) outros contatos
práticas mais simples, como ler um texto, chamou atenção do público e mobilizou o em formato de
engajamento para além da transmissão. microblog, com
ouvir música ou falar com amigos, ganha
textos de até 280
dimensões inesperadas” (2009, p. 274). O programa ganhou espaço com os co-
caracteres.
“Em linhas gerais, a ideia de midiatização mentários nas redes sociais na internet,
refere-se ao processo pelo qual as e fizeram sucesso hashtags que pediam a
mídias, especialmente as digitais, saída dos agressores. O retorno do investi-
se articulam com a vida cotidiana, mento da produção em comportamentos
alterando o modo como as pessoas, as polêmicos foi percebido ao vivo, quando
instituições e a sociedade, de um modo o reality show entrou para o livro Guinness
geral, vivem. Trata-se, a rigor, de um World Records por receber 1,5 bilhão de
conjunto de fenômenos que mostram uma votos durante a janela de eliminação que
articulação profunda entre as mídias excluiu da casa um dos participantes mais
e o cotidiano”. (2009, p. 271) criticados no Twitter por falas machistas.

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#FICAADICA
Desde agosto de 2020 está no ar
a plataforma de vídeos “180play”.
Desenvolvida pelo Instituto Maria da
Penha com apoio da ONU Mulheres,
o serviço de streaming totalmente
gratuito atua como uma plataforma
educativa que utiliza trechos de séries,
filmes e novelas para mostrar e alertar
sobre os tipos de violência doméstica e
familiar contra a mulher. Após selecionar
e assistir a uma cena, a espectadora
é alertada sobre o tipo de violência
que foi retratado e pode conhecer
outros exemplos de agressão. Com a
mensagem “Se você está passando por
algo parecido, saiba que você não está
sozinha”, o site recomenda a denúncia
ao Disque 180 (serviço telefônico
disponibilizado pelo Governo Federal
que funciona 24 horas por dia em todos
os dias da semana) e aponta formas de
saber mais informações sobre o ciclo da
violência para buscar ajuda.

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Ainda que seja muito recente o sistema
híbrido de comunicação, não é de hoje
que os meios de comunicação de mas-

3
sa obtêm vantagens com a exibição de
violência. Organizada empresarialmente, a
mídia se insere no mercado a partir da ma-
neira como trabalha os próprios produtos e,
dentre os temas preferíveis para comercia-
lização no mundo da comunicação, a vio-
lência é considerada uma moeda de troca
com alto valor: nas palavras de Porto (2002)
“uma mercadoria que vende e vende bem”.
Longe de ser espelho da realidade, a mídia A INVISIBILIZAÇÃO DO
FENÔMENO NA IMPRENSA
atua como agente na construção das re-
presentações sobre o mundo e influen-

T
cia as práticas sociais (THOMPSON, 1998)
e, da forma como tem representado o tema ransformar a violência domés- sentativos das cinco regiões do país. A
aqui em discussão, pode ser caracterizada tica e familiar em uma questão amostra foi composta por 1.583 matérias
como um espaço de estruturação de socia- pública faz parte da luta his- sobre homicídios de mulheres e 478 sobre
bilidades violentas (PORTO, 2002). tórica das mulheres. Por muito crimes de estupro. Entre as principais críti-
Por isso, mais do que falar sobre, a tempo (e infelizmente para muita gente até cas apontadas pelo documento, estão:
produção midiática deve ser analisada hoje), o fenômeno da violência com recor-
• Em relação à cobertura dos assassi-
em relação a maneira como falar sobre te de gênero foi tratado como uma ques-
natos de mulheres, prevaleceram
o tema da violência e, no caso específico tão de âmbito íntimo e privado. Quem tem
matérias sobre a morte em si, sem
aqui discutido, como abordar o tema da em mente o ditado que diz que “em briga
informações sobre quem era aque-
violência doméstica e familiar contra de marido e mulher não se mete a colher”
la mulher, se já havia buscado ajuda,
mulheres. No contexto em que a midia- internalizou uma das ferramentas para ma-
recorrido ao Estado para se defender
tização é o processo central de visibiliza- nutenção da dominação masculina, que é a
de violências anteriores ou se tinha
ção e produção dos fatos sociais na esfera tentativa de preservar em foro íntimo ques-
medida protetiva, entre outras ques-
pública, o enquadramento midiático é tões relativas à esfera doméstica e familiar.
tões que podem apontar falhas nas
a operação principal pela qual se sele- Como discutimos anteriormente, não
políticas públicas de enfrentamento à
ciona, enfatiza e apresenta o aconteci- basta que o tema da violência doméstica
violência contra as mulheres.
mento (SODRÉ, 2009). O enquadramento e familiar esteja na pauta dos conteúdos
midiático pode ser entendido como um midiáticos: é preciso que o enquadra- • A cobertura privilegiou uma abor-
sistema de referências (regras e esquemas mento dado ao fenômeno coloque em dagem romantizada e a desres-
interpretativos) que organiza a experiência xeque a reprodução do machismo em ponsabilização do autor pelo cri-
social ao dar sentido a uma situação. nossa sociedade. Nesse sentido, o Ins- me. A maioria absoluta dos textos
“Seja de natureza política, ética ou tituto Patrícia Galvão – Mídia e Direitos não aborda as reais motivações para
estética, o enquadre afina-se evidente- produziu importante monitoramento da o crime; nos que tentam apresentar
mente com a cultura de um grupo espe- cobertura dos principais jornais brasilei- um motivo, a maioria aponta como
cífico, permitindo ao ator social descrever, ros sobre o assassinato de mulheres e os causas do assassinato: “ciúmes”,
interpretar ou categorizar as situações que crimes de violência sexual com recorte de “violenta emoção”, “defesa da honra”,
se lhe afiguram como problemáticas. Por gênero após a aprovação da Lei do Femini- “inconformidade com a separação”,
meio dele, um problema social é suscetí- cídio (lei nº 13.104/2015). Realizado entre autor “fora de si”, “transtornado” ou
vel de converter-se em problema público, 2015 e 2016, o relatório analisou mais de “sob efeito de álcool”. O padrão fre-
dando margem ao surgimento de ações uma centena de portais e sites noticiosos quentemente adotado pela impren-
coletivas” (SODRÉ, 2009, p. 38). para, ao fim, selecionar 71 veículos repre- sa transfere a culpa para a vítima.

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PUXANDO
PROSA
O jornalismo brasileiro não é feito apenas • Em 15% das matérias analisadas Pelo relatório produzido pelo Instituto Pa-
por grandes empresas de comunicação. que continham imagens de víti- trícia Galvão, fica perceptível como a cober-
Por muito tempo, a chamada “imprensa mas de feminicídio, houve exibi- tura noticiosa sobre os crimes de feminicídio
alternativa” foi responsável, ainda que ção de corpos – em sua maioria de e violência sexual ainda precisa avançar para
com menor alcance, por pautar temas mulheres negras – sem qualquer romper preconceitos relacionados às mu-
importantes no debate público. Para tratamento. Nesses casos, além da lheres, que ocorrem ao representá-las sem
conhecer a agenda dos movimentos e dos crueldade da morte, há a revitimiza- respeito à identidade, ao sugerir que os com-
jornais feministas nos últimos 40 anos, o ção pela exposição midiática. portamentos da vítima contribuíram para
livro “Feminismos na imprensa alternativa • Outro ponto verificado também foi a violência, ao revitimizá-las e criar mais
brasileira” (Editora Paco, 2018) traz a análise a baixa atenção à condição racial constrangimentos para mulheres negras,
de Viviane Gonçalves Freitas sobre quatro das vítimas nos textos, embora trans e travestis. Além de evidenciar a repro-
jornais: Nós Mulheres (1976-1978); Mulherio as estatísticas oficiais demons- dução de preconceitos de gênero, a análise
(1981-1988); Nzinga Informativo (1985-1989) trem que as mulheres negras são da cobertura dos jornais brasileiros aponta a
e Fêmea (1992-2014). Ao apresentar os 60% das mortes por feminicídio reafirmação de preconceitos de raça e classe.
resultados da pesquisa de doutorado no e que o assassinato delas cresceu Nesse sentido, ao ser responsável por
livro, a autora mostra que estavam presentes 54% de 2003 a 2013. mobilizar avaliações e julgamentos sobre
na agenda das mulheres organizadas não os outros, a mídia é capaz de construir en-
• No caso das mulheres lésbicas, mes-
apenas a crítica à divisão sexual do trabalho, quadramentos diferenciais para apreensão
mo quando a orientação é mencio-
mas também temas relacionados a direitos daquelas que sofrem violência. As represen-
nada na matéria, nem sempre há o
sexuais e reprodutivos, família, igualdade de tações compartilhadas socialmente têm
questionamento se o crime estaria
direitos entre homens e mulheres, custo de o poder tanto de favorecer o reconheci-
associado à lesbofobia.
vida, violências contra as mulheres, numa mento de algumas pessoas como sujeitos
perspectiva interseccional, isto é, articulando de direitos quanto de invisibilizar outras.
gênero, raça e classe. Em 2011 o Instituto Patrícia Galvão já
havia realizado, em parceria com a Andi –
Comunicação e Direitos, um trabalho de
PARA monitoramento e análise da cobertura da
REFLETIR imprensa sobre violência contra as mulhe-
res. No relatório daquele ano, constatou-se
The clit test (teste do clitóris, em tradução que uma das principais lacunas da cobertu-
livre) é um projeto criado pelas britânicas ra de violência doméstica era justamente a
Frances Rayner e Irene Tortajada para ausência de análise junto ao fato jorna-
avaliar a representação do prazer sexual de lístico. No período analisado, as reporta-
mulheres em cenas de filmes, trechos de gens sobre as mortes violentas de mulheres
músicas e de obras literárias. tiveram destaque (84% do material avalia-

170 Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste


do), mas o conteúdo ficou muito restrito às
características policiais do fato, sem haver
maior contextualização, individualizando o
problema e com grande ausência de infor-
mações sobre serviços (96%), sobre as po-
líticas de prevenção e acerca das conven-
ções internacionais que o Brasil assinou e
tem obrigação de cumprir.
Por isso é importante entender que não
se trata apenas de colocar a violência do-
méstica e familiar contra a mulher na pauta
da imprensa. É preciso que o tema passe a
ser abordado por um enquadramento que
favoreça o enfrentamento ao fenômeno, de-
fenda os direitos das mulheres e, principal-
mente, desnaturalize a violência de gênero.
Um exercício interessante que você
pode fazer para entender como o enqua-
dramento dado pela imprensa sugere pon-
tos de interpretação sobre os fatos está na
escuta atenta do podcast “Praia dos Ossos”.
Em oito episódios, a minissérie em áudio
percorre os detalhes do feminicídio da so-
cialite Ângela Diniz pelo próprio namorado,
em 1976, crime que repercutiu em todo o
país e mobilizou o movimento de mulheres.
Nele é possível perceber como a não obe-
diência aos padrões sexuais fez da vítima
culpada pelo próprio assassinato. Nas pa-
lavras da idealizadora do projeto, Branca
Vianna, é “uma história sobre a imprensa,
o sistema judiciário brasileiro, como nasce
uma mobilização, como as mulheres viviam
e morriam nesse país, e como elas continu-
am vivendo e morrendo”.

ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER 171


4 SAIBA MAIS
Acesse: “Cenas de violência contra
mulher em novelas aumentam
denúncias de agressões”. Disponível em
<https://televisao.uol.com.br/novelas/
fina-estampa/2011/09/13/cenas-de-
violencia-contra-mulher-em-novelas-

O RETRATO DA aumentam-denuncias-de-agressoes.
jhtm>. Acesso em 11 out 2020.

VIOLÊNCIA CONTRA A PARA


MULHER NA TELEVISÃO REFLETIR

O
utro produto midiático impor- que a exposição do tema pela telenovela Enquanto novelas como “Mulheres
tante para analisarmos são as possa ter contribuído para o crescimen- Apaixonadas” (Manoel Carlos, 2003) e
telenovelas, que no Brasil são to na busca do serviço. “Fina Estampa” (Aguinaldo Silva, 2011)
vistas todos os dias por milhões Por outro lado, quando se trata de vio- foram marcos na dramaturgia por
de pessoas. Por isso, vamos discutir breve- lência contra personagens femininas que inserir o tema da violência de gênero
mente o poder que esse formato de entre- não atendem aos padrões sexuais estabe- na produção televisiva, nove outras
tenimento tem ao colocar temas no deba- lecidos, as telenovelas prestaram um desfa- narrativas exibidas também em horário
te público e a possibilidade de despertar vor ao debate público. Ao analisar 17 anos nobre não ganharam o debate público
consciências para a transformação social. de produção de uma grande emissora de ao apresentar cenas de violência
Um exemplo disso foi a novela “A Favorita”, TV, a pesquisadora Lorena Rúbia Pereira doméstica e familiar contra mulheres.
de autoria de Aguinaldo Silva e produzida Caminhas concluiu que a violência perpe- Isso porque, enquanto as personagens
pela Rede Globo em 2008, dois anos após trada contra as vilãs por seus pais, maridos Raquel (Helena Ranaldi) e Celeste
a aprovação da Lei Maria da Penha. Naque- e amantes são justificadas na trama como (Dira Paes) das novelas de 2003 e 2011
le mesmo ano, a Central de Atendimento à um “corretivo necessário”: “Elas só pude- eram construídas como “honestas”,
Mulher – Disque 180 registrou 269 mil de- ram apanhar sem gerar uma onda de ques- com “comportamento exemplar” e
núncias, relatos de violência e pedidos de tionamentos e inquietações porque tiveram “relacionamentos estáveis”, as vilãs
informação em todo o país, o que represen- o destino que mereciam dentro da trama, e agredidas apresentavam desvios morais
tou um aumento de 32% em comparação estariam apenas pagando por ter transgre- e desacordo com os padrões normativos
com o ano anterior. Uma das hipóteses é de dido fronteiras morais e de gênero”. previstos para o papel social de mulher.

172 Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste


5
EDUCAÇÃO MIDIÁTICA além do interesse público e da liberdade de
imprensa, define atribuições específicas. No

PARA ENFRENTAMENTO
Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros4
há previsão de “compromisso com a res-

AO FENÔMENO
ponsabilidade social inerente à profissão”
(Art. 2º, parágrafo III); dever de “opor-se ao

D
arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem
esnaturalizar o enquadramen- Além da produção publicitária não ter como defender os princípios expressos na
to machista dado à mulher na um controle público no Brasil, já que te- Declaração Universal dos Direitos Humanos”
mídia é uma meta necessária mos um Conselho Nacional de Autorre- (Art. 6º, I); “respeitar o direito à intimidade,
que também representa um de- gulamentação Publicitária (Conar) com- à privacidade, à honra e à imagem do cida-
safio enorme em um país como o Brasil. posto por membros vinculados à própria dão” (Art. 6º, VIII); “defender os direitos do
Na história nacional da publicidade, por indústria da publicidade, outra limitação cidadão, contribuindo para a promoção das
exemplo, campanhas com abordagens para avançarmos na representação da garantias individuais e coletivas, em especial
machistas ganharam notoriedade pela for- mulher nesse universo diz respeito à pró- as das crianças, adolescentes, mulheres, ido-
ma como trataram a mulher. Ao lembrar da pria estruturação dos espaços de trabalho: sos, negros e minorias” (Art. 6º, XI); “combater
representação do feminino nas propagan- pesquisa realizada em 2016 mostrou que, a prática de perseguição ou discriminação
das de cerveja, por exemplo, podemos en- nas 30 maiores agências de publicidade por motivos sociais, econômicos, políticos,
tender como a publicidade voltada para o do país, apenas 20% de profissionais da religiosos, de gênero, raciais, de orientação
público masculino tem posicionado a ima- área de criação eram mulheres, que tam- sexual, condição física ou mental, ou de
gem da mulher a partir de uma posição de bém ocupavam apenas 6% dos cargos de qualquer outra natureza” (Art. 6º, XIV); e ain-
subordinação. E por que isso é problemáti- liderança nesses departamentos3. Ou seja, da proibição: “o jornalista não pode divulgar
co? Nas palavras de Flávia Biroli: é necessário que, para além da regulação informações de caráter mórbido, sensacio-
do conteúdo com base em interesses pú- nalista ou contrário aos valores humanos,
“Representações das relações de gênero nas
quais a mulher é humilhada e objetificada, blicos, a própria indústria da publicidade especialmente em cobertura de crimes e aci-
isto é, tratada como menos humana porque alcance uma igualdade de participação dentes” (Art. 11, II) e obrigação de “tratar com
é definida como instrumento para satisfa- entre gêneros e raças que permita avançar- respeito todas as pessoas mencionadas nas
ção dos desejos do outro, podem contribuir, mos nas representações sociais. informações que divulgar” (Art. 12, II).
ainda que de maneira difusa, para a violên- Um importante instrumento para pro-
cia contra as mulheres e para aceitação da
O jornalismo é um campo de comunica-
ção que funciona de outra forma: diferente- fissionais da imprensa é o relatório que
violência” (MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 138).
mente da atuação publicitária, jornalistas discutimos anteriormente “Imprensa e
devem seguir um código de ética que, para Direitos das Mulheres: Papel social e desa-
fios da cobertura sobre feminicídio e vio-
3 Pesquisa realizada por Meio & Mensagem em lência sexual”, do Instituto Patrícia Galvão.
dezembro de 2015 disponível em <https://
www.meioemensagem.com.br/home/ 4 Disponível em <https://fenaj.org.br/wp-
comunicacao/2016/01/12/mulheres-sao-20- content/uploads/2014/06/04-codigo_de_etica_
porcento-da-criacao-das-agencias.html>. dos_jornalistas_brasileiros.pdf>.

ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER 173


Lá é possível conferir as leis relacionadas
a esses crimes, perguntas que devem nor-
tear o trabalho jornalístico de cobertura
dos casos de violência contra a mulher e
elementos que não deveriam faltar nos
textos, como: (1) informações sobre servi-
ços de denúncia e acolhimento existentes
na região; (2) informações sobre serviços
de orientação e denúncia que podem ser
acionados à distância (190, Ligue 180, Dis-
que 100, portais e aplicativos); (3) breve
explicação do contexto afetivo em que a
violência se manifesta (o chamado ciclo da Um novo desafio diz respeito à educa-
violência) e (4) dicas de como as mulheres ção voltada para o uso das novas mídias no
podem se prevenir e romper o ciclo. atual ambiente de hiperconexão. Ao viver-
“Para contribuir no enfrentamento à má- mos em uma sociedade em que a produ-
xima violação às mulheres e desconstruir as ção midiática em larga escala não diz mais
culturas na quais o feminicídio se insere, é respeito apenas aos meios de comunicação
importante incorporar efetivamente a dis- tradicionais, precisamos pensar como a No dossiê “Violência contra as Mulheres”,
cussão sobre o contexto desse crime no dia educação midiática se insere na agenda pú- também produzido pelo Instituto Patrícia
a dia da cobertura, não o restringindo ao blica e quais práticas podem favorecer uma Galvão, há um tópico específico para dis-
‘calendário das mulheres’. Como se tra- cultura de não violência à mulher. Como dis- cutir a violência de gênero na internet, que
ta de desigualdades impostas socialmente cutimos no início do módulo, a forma como inclui debates fundamentais para a educa-
aos papéis de gênero masculino e feminino, as pessoas usam as novas tecnologias de ção midiática. Para Marai Larasi, diretora
é importante debater esse assunto cotidia- comunicação está completamente articu- executiva da ONG britânica End Violence
namente, associar os crimes com os dados lada às atividades humanas cotidianas, o Against Women Coalition (Coalizão de Com-
disponíveis sobre a violência letal contra as que significa que o ambiente on-line tam- bate à Violência contra Mulheres, em tradu-
mulheres e fornecer informações que pos- bém está permeado pelas desigualdades ção livre), o problema é: “Não educamos
sam ajudar na prevenção da violência e na de gênero que colocam homens e mulheres as pessoas a se comportarem no ambiente
preservação de vidas (INSTITUTO PATRÍCIA em posições sociais diferentes e é capaz de virtual. Temos uma área cinzenta e precisa-
GALVÃO, 2019, p. 25)”. influenciar a construção da realidade social. mos conversar sobre isso. (...) Eu acho que

174 Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste


um dos pontos importantes nesse sentido é
educarmos as pessoas para entender que o
espaço virtual é real. Não há espaço virtual
que seja desconectado”5.
Entre as violências mais comuns às mu-
lheres no ambiente on-line, o dossiê des-
taca o “cyberbullying” e a “pornografia de
vingança”: o primeiro conceito é entendido
como o uso de ferramentas do espaço de
conexão, como as redes sociais e os celu-

REFERÊNCIAS
lares, para disseminar comentários depre-
ciativos. O segundo acontece quando há o
compartilhamento de conteúdo íntimo pela
internet sem autorização de todos os envol- ANDI. Imprensa e agenda de direitos das mulheres: uma análise das tendências
vidos ou com o propósito de causar humi- da cobertura jornalística. Brasília: Andi; Instituto Patrícia Galvão, 2011.
lhação à vítima. Nos dois casos, as práticas
CAMINHAS, Lorena Rúbia Pereira. Imagens de violência de gênero em
não necessariamente ocorrem com recorte
telenovelas brasileiras. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 1.
de gênero, mas cada vez mais casos assim
Disponível em < https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
contra mulheres têm chegado às delegacias
026X2019000100208>. Acesso em 3 out. 2020.
e aos tribunais. De acordo com o material
produzido pelo Instituto Patrícia Galvão, FREITAS, Viviane Gonçalves. Os temas da imprensa feminista no Brasil desde os anos
isso ocorre porque essas formas de violên- 1970. Nexo Jornal, 2 out de 2019. Disponível em <https://www.nexojornal.com.
cia mobilizam sistemas discriminatórios, br /academico/2019/10/02/Os-temas-da-imprensa-feminista-no-Brasil-desde-os-
como o sexismo, o preconceito de classe, o anos-1970>. Acesso em 3 out. 2020.
racismo e a homofobia. INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO. Feminicídio #InvisibilidadeMata. São Paulo:
Assim como no ambiente off-line, bus- Fundação Rosa Luxemburgo; Instituto Patrícia Galvão, 2017. Disponível em < https://
car que as vítimas conheçam os próprios agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/livrofeminicidio/>. Acesso em 3 out. 2020.
direitos na rede de conexão e saibam como INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO. Imprensa e Direitos das Mulheres: Papel social e
responsabilizar os autores das agressões desafios da cobertura sobre feminicídio e violência sexual. Instituto Patrícia Galvão,
é necessário, mas não suficiente. É impor- 2019. Disponível em <https://assets-institucional-ipg.sfo2.cdn.digitaloceanspaces.com
tante que existam ações de enfrentamento /2019/12/IPG_RelatorioMonitoramentoCoberturaFeminicidioViolenciaSexual2019.
à cultura machista também nos espaços pdf>. Acesso em 3 out. 2020.
on-line. Nesse contexto, o caminho que se MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria da Comunicação: ideias, conceitos e métodos. 5.
apresenta como mais necessário a ser per- ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
corrido nos dias atuais é a promoção de
uma educação midiática associada à edu- MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Feminismo e política: uma introdução. 1. ed. São
cação para igualdade de gênero. Paulo: Boitempo, 2014.
PORTO, Maria Stela Grossi. Violência e meios de comunicação de massa na sociedade
5 Dossiê Violência contra as Mulheres. Site do contemporânea. Sociologias, Porto Alegre, ano 4, n. 8, p. 152-171, jul/dez. 2002.
Instituto Patrícia Galvão. Disponível em <https://
dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/ THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis,
violencias/violencia-de-genero-na-internet/>. RJ: Vozes, 1998.

ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER 175


AUTORA
RAÍSSA VELOSO
É jornalista formada pela Universidade Federal
do Ceará (UFC) e mestre em Planejamento
Urbano e Regional pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Tem experiência com
assessoria parlamentar na Câmara Municipal
de Fortaleza e na Assembleia Legislativa do
Estado do Ceará e com produção de conteúdo
sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) para
organizações, como o Conselho Nacional das
Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
Como assessora de comunicação, atua em
projetos relacionados às áreas de direitos
humanos, cultura e meio ambiente.

ILUSTRADOR
CARLUS CAMPOS
Artista gráfico, pintor e gravador, começou
a carreira em 1987 como ilustrador no jornal
O POVO. Na construção do seu trabalho, aborda
várias técnicas como: xilogravura, pintura,
infogravura, aquarelas e desenho. Ilustrou
revistas nacionais importantes como a Caros
Amigos e a Bravo. Dentro da produção gráfica
ganhou prêmios em salões de Recife, São Paulo,
Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

APOIO PATROCÍNIO

REALIZAÇÃO

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