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09 17:31:14
Copyright © 2009 Liv Sovik
Produção editorial
Camilla Savoia
Capa
Adriana Moreno
Produtor gráfico
Sidnei Balbino
Revisão
Camilla Savoia
Rocino Crispim
Revisão tipográfica
Camilla Savoia
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
S719a
Sovik, Liv
Aqui ninguém é branco / Liv Sovik. - Rio de Janeiro :
Aeroplano, 2009.
176 p.; 14 X 21 cm.
ISBN 978-85-7820-033-6
“Only connect!”
— E.M. Forster. Howard’s End, 1910.
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uma tarja que diz “Terror no ônibus: Será que a refém Geisa morreu
em vão?” As fotos na primeira página da reportagem incluem uma
parecida com a da capa de Época; Sandro de costas, no momento
da morte de Geisa; o corpo sem vida de Geisa, nos braços de um
policial; Sandro sendo empurrado para dentro do camburão onde
será morto. O título do artigo é: “A gota d’água: agonia... ação de-
sastrada... e um desfecho trágico”. Nos textos, Veja enfatiza o papel
da imprensa televisiva que transmitiu o sequestro ao vivo e sugere a
melhoria da polícia. Istoé focaliza a violência como fato corriqueiro,
citando casos e estatísticas, e discute a possibilidade de um desfecho
por meio de novas políticas de segurança pública. Os temas das dis-
cussões políticas nas três revistas são interligados: mídia, violência,
polícia, políticas públicas, miséria. Época narra a história a partir de
trechos do diário de Geisa; faz dos indivíduos o centro da reporta-
gem, contando o dia 12 de junho, Dia dos Namorados, vivido por
refém e sequestrador, retratando-os como vítimas das circunstâncias
e do azar. Apresenta também outros reféns e o motorista do ônibus.
Istoé também se interessa pelo lado humano do acontecimento, pu-
blicando três boxes que traçam as biografias das figuras principais
do drama, destacando seus sonhos: Geisa, a refém; o sequestrador
Sandro, apelidado de Mancha; Marcelo, o policial.
As formas de contar variam, mas o interesse humano dos rela-
tos das revistas Istoé e Época é parecido. A refém era uma migrante
nordestina cuja história típica é contada em pequenos detalhes, tra-
çando cada passo para sua morte, por triste coincidência, no dia 12
de junho, o Dia dos Namorados. O sequestrador é entendido como
produto de sua biografia e condições sociais. Foi sobrevivente da
chacina das crianças na Candelária (ambas as revistas publicaram
uma foto do grupo de crianças, todos negros, em companhia da ar-
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A branquitude é...
A branquitude é atributo de quem ocupa um lugar social no alto da
pirâmide, é uma prática social e o exercício de uma função que refor-
ça e reproduz instituições, é um lugar de fala para o qual uma certa
aparência é condição suficiente. A branquitude mantém uma relação
complexa com a cor da pele, formato de nariz e tipo de cabelo. Com-
plexa porque ser mais ou menos branco não depende simplesmente
da genética, mas do estatuto social. Brancos brasileiros são brancos
nas relações sociais cotidianas: é na prática — é a prática que conta —
que são brancos. A branquitude é um ideal estético herdado do pas-
sado e faz parte do teatro de fantasias da cultura de entretenimento.
No Brasil, particularmente, a prática social do branco está per-
meada por discursos de afeto, que aparentemente religam setores
sociais desiguais, mas a hierarquia racial continua vigente e, em um
conflito eventual, ela reaparece, enfraquecendo a posição de pessoas
negras. O valor da branquitude se realiza na hierarquia e na desvalori-
zação do ser negro, mesmo quando “raça” não é mencionada. A defesa
da mestiçagem às vezes parece uma maneira de não mencioná-la. A
linha de fuga pela mestiçagem nega a existência de negros e esconde a
existência de brancos. Hoje, com as cotas, alguns se declaram brancos,
outros dizem que beneficiados por cotas são de fato brancos, mas isso
é uma novidade. Geralmente, quando se cala sobre ser branco, tam-
bém se isola quem se declara negro, fica fora da nação mestiça.
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lamento individual, pelo qual o vínculo humano, antes de ser fato co-
tidiano, é um objetivo que se busca no meio a regras sociais que são
paradoxalmente antissociais. A convivência social mais afável, mais
comunicativa, é de enorme valor, mas a metáfora da genealogia co-
mum para explicar as relações raciais se esgotou. A fraternidade não
existe por decreto, como comprova o caso de Sandro do ônibus 174,
pois ele não era “qualquer um”, nem parente dos leitores das revis-
tas semanais. A igualdade diante do sofrimento e do gozo não é fato
cotidiano, ao contrário, tudo indica que o sofrimento gerado pela
opressão seja distribuído de forma desigual. Assim, diversos atores e
circunstâncias dizem: se é para preservar a convivência amena, cor-
dial, há que buscar a democracia e criar as condições para uma maior
presença de negros em espaços onde hoje parecem fora de lugar.
Seria possível reinterpretar o afeto como característica nacio-
nal. Pode não significar tanto o carinho, afeição, amizade e amor,
mas se assemelhar ao conceito de Greenblatt, para quem o afeto é a
abertura não verbal para o mundo, a consciência de outros seres vi-
vos nas proximidades e de uma realidade para a qual os relatos ainda
não foram estabelecidos. Essa noção mais ampla do afeto expandiria
as possibilidades de relacionamento e de ação, sem romper — como
tanto se teme — com a valiosa tradição da atenção, conversa e enga-
jamento com o outro.
Notas
1
Release de exposição realizada no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio
de Janeiro, de janeiro a março de 2007. “Modesto Brocos, um estrangeiro
nos trópicos”. http://www2.cultura.gov.br/noticias/noticias_do_minc/index.
php?p=22900&more=1&c=1&tb=1&pb=1 Acessado em 01/08/09.
2
Sérgio Buarque de Hollanda. Raízes do Brasil (26ª ed.) São Paulo: Compan-
hia das Letras, 1995 (1936), p.175.
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3
Muniz Sodré. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis:
Vozes, 1999, p.17.
4
Stuart Hall. “O problema da ideologia: o marxismo sem garantias”. Da diás-
pora: identidades e mediações culturais, p.290.
5
Luciano Trigo. “A felicidade do trágico”. O Globo. Caderno Prosa & Verso, 10
de agosto 2001.
6
Marilena Chaui. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Ed.
Fundação Perseu Abramo, 2000, p.23-25.
7
Revista Bundas. Ano 2, No.53, 20 de junho de 2000, p.29.
8
Stephen Greenblatt. Possessões maravilhosas. São Paulo: Edusp, 1996, p.31.
9
apud Greenblatt, Possessões maravilhosas, p.30.
10
Aziz Filho, Francisco Alves Filho e Letícia Helena. “Sem saída”. Revista Is-
toé. No.1603, 21/06/00. Marcelo Carneiro e Ronaldo França. “A gota-d’água”.
Revista Veja. No. 1654, 21/06/00. Marceu Vieira, Marcelo Gigliotti e Eliane
Brum. “Tragédia brasileira”. Revista Época. Ano III, No.109, 19/06/00.
11
Miriam Chnaiderman. “Racismo, o estranhamento familiar: uma abordagem
psicanalítica”. In: Lilia Moritz Schwarcz e Renato da Silva Queiroz (orgs.)
Raça e diversidade. São Paulo: EDUSP, 1996.
12
Sigmund Freud. “O estranho” (1919) Edição Standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol.XVII. Rio de Janeiro: Imago,
1976, p.275-314.
13
Ver também José Luiz Aidar Prado. “A construção semiótica da violência em
Veja: por uma ética da não fidelidade do leitor”. Revista Signos. No.2, abril
2002. Gedisa, Madrid.
14
Sigmund Freud, Edição Standard brasileira, p.300.
15
Marceu Vieira, Marcelo Gigliotti e Eliane Brum. op. cit., p.42.
16
Sigmund Freud, Edição Standard brasileira, p.312-313.
17
Alberto Guerreiro Ramos. “A patologia do ‘branco’ brasileiro”. Introdução
crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1995 (1957),
p.215.
18
“Only connect! […] Only connect the prose and the passion, and both will be
exalted, and human love will be seen at its height. Live in fragments no lon-
ger. Only connect, and the beast and the monk, robbed of the isolation that is
life to either, will die.” E.M. Forster. Howard´s End. 1910, capítulo 22.
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