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Copyright 2011 Editora Estronho

Arte Final da Capa: M. D. Amado


Diagramação: M. D. Amado
Revisão: Celly Borges
Fotografias (capa e internas): Andrey Kiselev

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Insanas - elas matam!


Belo Horizonte : Editora Estronho, 2011

ISBN: 978-85-640590-00-7

Vários autores
1. Contos: Literatura Brasileira

11-04397 CDD-869.93

Índices para catálogo sistemático:


1. Contos: Literatura Brasileira 869.93

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora Estronho Ltda
Belo Horizonte - Minas Gerais
www.editora.estronho.com.br
Copyright 2011 Editora Estronho

Esta é uma versão de demonstração do livro


“Insanas, elas matam!” e pode ser distribuída
gratuitamente. Porém, seu conteúdo não
pode ser copiado, reproduzido ou alterado
sem a permissão da editora estronho.

A diagramação aqui apresentada é uma


amostra da utilizada no livro impresso.

Escolhemos para essa degustação o conto


“Tinta Vermelho Sangue” da autora Bruna
Caroline.

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora Estronho Ltda
Belo Horizonte - Minas Gerais
www.editora.estronho.com.br
“ Mulheres: gostava das cores de suas roupas; do jeito delas andarem; da
crueldade de certas caras. Vez por outra, via um rosto de beleza quase pura, total
e completamente feminina. Elas levavam vantagem sobre a gente: planejavam
melhor as coisas, eram mais organizadas. Enquanto os homens viam futebol,
tomavam cerveja ou jogavam boliche, elas, as mulheres, pensavam na gente,
concentradas, estudiosas, decididas: a nos aceitar, a nos descartar, a nos trocar,
a nos matar ou simplesmente a nos abandonar. No fim das contas, pouco
importava; seja lá o que decidissem, a gente acabava mesmo na solidão e na
loucura.

Charles Bukowski
Vinte anos, paulista e estudante de Letras, começou a ler aos seis anos de idade e desde então
se tornou dependente literária. Escreve desde os 8 anos de idade e tem um gosto particular pelo
sobrenatural, principalmente pela figura da morte, mas também gosta de usar as palavras para
reinventar a vida cotidiana, onde momentos comuns ganham uma nova visão. Atualmente estuda
e mora em São Paulo e escreve contos, microcontos e poesias para o blog Tower of words, rese-
nhas e notícias literárias para Tower of Reading. Seu conto “A menina” será publicado em breve
pela Andross Editora na antologia Moedas para o barqueiro II.
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Contato: brunacsantos@live.com
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Letras corridas no papel tentavam alcançar o ritmo da fala da pro-
fessora, com traços infantes, desesperados, com direito a riscos e grafite
partido. Do lado de fora do vidro, o sol, que ofuscava parte da sua visão,
fazia mais do que clarear a classe apertada. Fazia sua cabeça doer insupor-
tavelmente.
De nada valeram os apelos à professora para mudar de lugar. Não
faz sol todos os dias, menina, sossegue. Desde então a menina ficou ob-
cecada com a ideia de que a professora queria prejudicá-la. E só de
pirraça, começou a fazer de tudo para mostrar serviço. A professora se
surpreendia e admirava a garotinha que, no alto de seus dez anos de idade,
já criara as melhores redações de todas as quartas séries. Começara até a
acreditar que a causa de tudo isso era o fato da menina sentar perto da
janela e assistir as ações cotidianas nas ruas que ladeavam a escola. Se ao
menos ela soubesse o quanto estava certa e errada...

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Em um desses dias de sol, uma mancha escarlate borrou os traços
recém-feitos no papel, um pingo grosso e quente, com um brilho hipno-
tizante. E os olhos fitaram com gana aquela gota de vida manchando o
branco da brochura, ignorando o calor, a dor de cabeça e a tepidez úmida
tal qual lambida de cachorro, que agora escorria pela narina esquerda, chei-
rando a ferro. O lápis deslizou curiosamente a ponta pela gota, descrevendo
riscos uniformes que se tornaram letras sobre o papel, agora manchado de
rubro e grafite. Mas a empolgação durou pouco, pois a “ tinta
mágica”
secou rápido, deixando a garota com vontade de mais. Mal completou
o raciocínio, porém, e a cabeça pendeu, primeiro sobre o peito, depois,
curvando-se sobre o caderno, embebendo as páginas em sangue. A dor
de cabeça desaparecera. E a cor da sala também. Viu tudo vermelho antes
das luzes se apagarem.
Sonhou com vermelho s de vários tons e desejou possuir cada
um deles.
Quando acordou em um quarto de hospital cercada pelos pais, não
entendeu nada. Mas ao vislumbrar a enfermeira ajeitando o sangue na veia
de outro paciente do outro lado do quarto, lembrou-se de tudo. Estava ali,
tão perto, um pacotinho cheio daquela tinta rubra, ainda mais densa e
escura da que possuíra por tão pouco tempo. Estendeu a mão inutilmente,
na intenção de pegá-la, quando seus pais resolveram enchê-la de beijos,

] Tinta vermelho sangue - Bruna Caroline [


[ Tinta vermelho sangue - Bruna Caroline ]

ocultando a visão privilegiada do sangue. Sentindo-se enfim derro-


tada, deixou-se abraçar, confidenciando em seguida algo sem sentido:
– Quero ser escritora...
E voltou a dormir, sonhando vermelhos de todos os tons.
//¨
Daquela professora não se teve mais notícia desde que a afastaram
do cargo. Da escola não tornou a chegar perto até a formatura no terceiro
ano. Sem uma professora para prejudicá-la, não precisava se forçar a nada,
mas ainda assim gostava de escrever.
Adquiriu, porém, um gosto peculiar pela cor do sangue. Escrevia suas
redações e provas com a Bic vermelha, enquanto pretas e azuis se acumu-
lavam na mochila ano após ano. Exigia até mesmo que suas notas “azuis”
fossem escritas em vermelho. Mas aquele que os professores usavam era
medíocre demais, diferente do que recheava e secava em suas Bics. Seus
pedidos não eram negados, afinal, ela era uma aluna genial, e todo gênio
inspira maluquice, ou excentricidade, melhor dizendo. Ela não era exceção,
assim pensavam.
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Mal concluiu o colegial e ingressou na faculdade de Letras, o sonho


de infância se realizaria enfim. Apaixonou-se perdidamente pelo curso
logo nas primeiras semanas. Jovem, empolgada, ignorava os adultos ao
redor que reclamavam das disciplinas diferenciadas, mas não ela. Estava
entusiasmada. Logo fez amizade com os professores e não tardou para
pedir que eles utilizassem caneta vermelha em seu boletim, mas frustrou-se
ao saber que o processo era todo eletrônico, e teria de se contentar com sua
própria letra riscando em vermelho.
Os anos passavam e a paixão que devia esmorecer só aumentava. Os
quatro anos passaram voando, para desespero dela. Aliás, não a apresentei
devidamente. Seu nome é Ludmilla, e ela se formou com exatos 21 anos
no curso de Letras. Leitora assídua, queria mais do que ser espectadora
das histórias alheias... Queria escrever as suas próprias, que se amontoavam
nas gavetas a essa altura porque ninguém aguentava ler páginas e páginas
manuscritas em vermelho.
Cansada, decidiu parar de escrever e apenas trabalhar, deixando de
lado seus sonhos e manias. Ao menos por um tempo.
//¨
Ludmilla estava com 23 anos, morava sozinha e ia muito bem, obri-
gada. Até que, em uma ida ao supermercado, cruzou com sua antiga
professora, aquela responsável por seu gosto peculiar por vermelho. Não
vermelho em roupas, acessórios ou carro. Vermelhos em tinta, cor de
sangue.
Se cumprimentaram, ignorando por educação os eventos remotos.
A professora convidou-a para um café e ela titubeou um instante. Mas
aceitou. Seguiram para o apartamento térreo da professora, fez questão
de levar consigo a bolsa que carregava, mesmo sob os protestos da mulher
ao dizer que o bairro não era dos mais amigáveis. Deixou o carro em uma
esquina e seguiu a pé, os olhos castanhos faiscaram com o aviso da
professora. E foi naquele instante que Ludmilla encontrou inspiração
para escrever.
Tomaram um café saboroso e conversaram amenidades, mas a ex-aluna
não falou que seguira seus sonhos, tampouco a professora perguntou. O
café estava tão bom que resolveram repetir a dose, desta vez a mão leve
de Ludmilla manobrou uma pitada avantajada de Rivotril moído no café
da professora, que sorveu o líquido escuro com longos goles, mas não se
sabe porquê, não tardou a ficar com movimentos mais lentos, a bocejar e

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rir abobadamente, com as pupilas dilatadas e boca frouxa, movimentos
débeis.
– Já não fazem cafés como antigamente... – murmurou a mulher,
ainda sorrindo para a moça.
– Pois é, eles deviam despertar ao invés de dar sono – sorriu de volta,
fingindo um bocejo tão bem que seus olhos lacrimejaram, mas era só por
causa da excitação que se espalhava pelo seu corpo com a ação da adrena-
lina, a inspiração a mil.
– Você não se importa se... – a professora não terminou sua fala,
tropeçando nos próprios pés e se apoiando no sofá novamente. – Vida
de professor é tão difícil... – ela continuava sorrindo, os lábios perdendo
a cor, mas os olhos de Ludmilla brilhavam ainda mais vivos, ela sorria e
deslizava a mão para a bolsa.
– Vai ficar tudo bem, professora. Eu te garanto... Pelo menos pra mim!
– a professora não esboçou qualquer reação notável, só emitiu um gemido
fraco ao ver a moça colocar luvas cirúrgicas e proteção nos pés, limpando
cuidadosamente qualquer vestígio de que fora ali. – Sabe que... Na lite-
ratura se aprende muito? Mas em livros de enfermagem e medicina...
Se aprende ainda mais... Bons escritores pesquisam, sabe? – Ludmilla
continuava sorrindo, os lábios finos e levemente rachados, torcidos de
forma penosa, garantido um ar diabólico às suas feições de menina-moça,

] Tinta vermelho sangue - Bruna Caroline [


[ Tinta vermelho sangue - Bruna Caroline ]

enquanto ela pegava um vidro como esses de xarope para tosse da bolsa
e um kit para tirar sangue, os olhos da professora estavam arregalados,
mas quase inexpressivos. – Relaxa, você não vai morrer com Rivotril...
Ninguém nunca morreu com isso ainda... – ela girou uma ampola por entre
os dedos e sorriu.
Tinha em mente, primeiramente, apenas assustar a professora, mas
ao ver o medo estampado nos olhos dela, sentiu uma sensação incomum,
deliciosa e inspiradora. Tinha em suas mãos a chance que procurara a vida
toda, uma inspiração... E a tão desejada “tinta rubra” que buscara matando
pequenos animais desde criança, mas não sabia o suficiente para manter o
sangue utilizável por muito tempo. Agora, adulta, com suas técnicas teori-
camente aperfeiçoadas, ela faria da professora a sua primeira experiência.
Se fosse eficiente, por longos anos, seria a única.
– Sabe, eu descobri, em uma das minhas muitas pesquisas para o livro
que pretendo escrever, que a Condroitina, substância presente na cartilagem
de tantos animais e tão acessível em alguns suplementos, potencializa o
efeito dos anticoagulantes... Se a minha pesquisa estiver correta, então eu
não preciso me preocupar... Principalmente porque com a quantidade que
preparei... A senhora ficaria admirada com o que pode acontecer...
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Ludmilla fez duas inserções com agulhas no corpo da professora.


Uma na carótida, com o vidro de xarope cheio de um líquido recém-agitado
sendo forçado pela veia da professora, outra no braço esquerdo, por
onde ela podia coletar o sangue para o vidro maior e transparente;
um sorriso brotando no rosto transformando sua face em uma máscara
maligna. Logo o riso contido, mas insano, fez coro às suas feições e ela
assistiu calmamente o brilho dos olhos da professora fugir aos poucos,
recuando ante tanta frieza.
– Sabe, professora... Eu me tornei exatamente o que a senhora esperava
de mim... Uma ótima escritora, letrada e tudo... E, principalmente, uma
admiradora voraz do sangue... Não, não tenho tendências vampirescas, ou
qualquer gosto por esse tipo de literatura... É a cor sangrenta que me
fascina... Dos grandes crimes, dos grandes nomes... Ah... Se a senhora sou-
besse como eu gosto da sensação visual que me causa a cor... A textura... O
cheiro férreo e marcante, que muda de ser para ser, mas conserva a mesma
essência, variando em tons de cor e aroma... – Ludmilla suspirou, sorrindo
quase sonhadora, como se pudesse enxergar a primeira vez que se viu fas-
cinada pelo brilho do sangue... Do próprio sangue. – É... Mas chega de
divagações, professora... Eu imortalizarei a senhora em meus autógrafos,
acredite. Todos serão dedicados a você!
Um brilho de compreensão perpassou os olhos da professora e ela
quase sorriu, olhando para a garota como se pudesse ver através dela. O
monstro que ela mesma criara. A morte abriu-lhe os braços como se já a
esperasse há muito tempo, e ela assistiu até o último batimento, o sangue
abandonar seu corpo aos poucos para fazer os caprichos de uma garotinha
mimada. Suas pálpebras cerraram-se com a promessa de que nunca mais
tornariam a abrir e Ludmilla olhou-a com satisfação, retirando devagar
ambas as agulhas e estancando o sangramento fraco do cadáver. Limpou
tudo e transformou a morte da professora em algo ridículo, trivial. Não
armou uma cena da drogada que morreu de overdose, nem da suicida
que tomou calmante demais... Não. O sangue que restara nas veias ainda
estava morno e líquido, graças à ação do anticoagulante. A morte pareceria
natural, morte cerebral, seguida de parada cardíaca ou qualquer outra coisa.
Um fim nada especial para a sua obra-prima.
//¨
Oito meses após este ocorrido, Ludmilla conseguiu publicar seu pri-
meiro livro, cuja divulgação superou tanto as expectativas para uma escritora
“estreante”, que foi necessário uma segunda tiragem às pressas.

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E lá estava ela, sentada com sua beleza atraente e discreta no fundo
da livraria, os olhos castanhos tinham algo de especial, diferente, mas ela
sorria para todos, quase docilmente. Uma grande fila se formou assim
que os funcionários da loja informaram que estava aberta a sessão de au-
tógrafos. Os que já o tinham pegado admiravam a caligrafia fina em um
tom tão lindo de vermelho, puro, real. Na capa do livro, uma caneta bico-
-de-pena dourada pingando sangue, no título, letras rubras em caixa alta
“VERMELHO SANGUE”. Na contracapa, a história de um poeta que
se torna um serial killer fissurado em escrever poesias com sangue de mu-
lheres, pois só assim obtém inspiração para criar suas obras.
Os leitores se acotovelavam para conhecer a jovem escritora e tirar
fotos com ela, e depois saiam comentando a sacada genial dela autografar
com uma caneta igual à usada pelo assassino, e também o tinteiro, cuja cor
assemelhava-se ao sangue, servindo para promovê-la ainda mais. Quando
chegou a minha vez, abri o livro para ela autografar e lhe dei o meu melhor
sorriso. Ela retribuiu sem me olhar nos olhos. Ao invés disso, tomou minha
mão com delicadeza e ficou ligeiramente vidrada nas veias verdes que cor-
riam por baixo do meu pulso pálido. Ao olhar novamente para mim, buscou
meus olhos e finalmente viu, com grande susto, um reflexo de si mesma.
Sob a forma de um poeta fissurado por sangue de mulheres que sempre são
imortalizadas em poesias sangrentas e apaixonadas.
fim
] Tinta vermelho sangue - Bruna Caroline [

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