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Romeu Martins
Comendador da Ordem da Caldeira pelo Conselho Steampunk do
Brasil e autor do blog www.cidadephantastica.com.br
Contatos: missgette@yahoo.com.br
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No ano da tentativa de golpe, 1889, Pedro II estava fora do
país, em viagem diplomática, para adquirir patentes de maquinários
desenvolvidos recentemente nas terras europeias. Graças à visão
futurista de seu líder, a Terra Brasilis era proprietária, desde 1879,
de recursos tecnológicos avançados que permitiram, por exemplo,
a construção de potentes embarcações navais, como a frota do
Riachuelo, encabeçada por seu portentoso encouraçado, colocando
o império brasileiro na vanguarda das navegações militares. Mas
Pedro desejava mais, queria expandir os tesouros do império, firmá-
lo como uma potência tecnológica entre gigantes. E para tanto, a
antiga colônia portucalense possuía a melhor moeda de troca em
voga: seu solo fértil e rico.
A degradação ambiental já era uma realidade nos impérios
europeus; a escassez de água potável e comida, provenientes da
excessiva utilização dos recursos sem renovação e da poluição
dos dejetos industriais na natureza, esgotaram a capacidade dos
países pátrios e o povo começou a morrer ou emigrar. Os que
ainda possuíam colônias iniciaram processo destrutivo semelhante
nos territórios, buscando suprir necessidades as quais não mais
podiam ficar sem. Imigrantes chegaram aos montes ao Brasil, terra
das oportunidades, e trouxeram consigo conhecimentos diversos
para alavancar a industrialização. Contudo, ciente dos perigos de
tal empreitada, Pedro II baixou rígidas leis de controle ambiental
e ordenou a criação de intendências de fiscalização das atividades
industriais a serem implantadas. Como homem de visão, entendeu
que o Brasil de Santa Cruz poderia tornar-se o novo celeiro do
mundo, o que de fato comprovou-se nos anos posteriores. Em troca
da comida, dos produtos agrícolas e da água que poderia fornecer, o
Brasil exigiu patentes de produtos desenvolvidos em primeira mão.
Com o apoio do império, cientistas e estudiosos debandaram de suas
terras natais com a promessa de subsídios para pesquisas e fixaram
moradia permanente no paraíso tupiniquim. Para evitar a invasão
descontrolada de imigrantes e impedir a inflação dos preços, Pedro
II fechou as fronteiras e sancionou as facilidades no tráfico negreiro,
com isenções de impostos e subsídios tentadores, barateando assim
a mão de obra para o trabalho. Abolicionistas tiveram seus clamores
calados quando a população, atenta a todos os possíveis benefícios,
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adornavam a fronte das meninas, que sorriam ingenuamente à luz do
forte sol carioca. A viagem inaugural do Imperatriz Isabel seria feita
com ninguém menos do que a própria regente e seu consorte real a
bordo, cuja carruagem adentrava nesse momento a Praça Cristiano
Ottoni, tomada por bandeirolas e cercada pela guarda imperial. O
veículo, confeccionado com uma liga de aço dourado leve e resistente
desenvolvido nos laboratórios da FAMET – Faculdade de Medicina
e Tecnologia do Rio de Janeiro – avançava sobre os paralelepípedos
do paço tendo um condutor de libré no coche, movendo alavancas
que faziam os eixos das seis rodas pneumáticas absorverem os
impactos para não incomodarem suas majestades. Esporadicamente
lançava jatos de vapores no ar, entre silvos finos e prolongados de
duas pequenas chaminés na traseira do veículo.
Tão diferente de quando necessitávamos dos malditos cavalos!
Pensava Moncorvo Filho, atual Reitor da FAMET. A seu lado
encontrava-se quase todo o corpo docente da instituição, convidados
a acompanhar a expedição entre Rio de Janeiro e Itabuna, na Bahia,
do singular transporte que prometia romper barreiras territoriais
importantes e alavancar, de forma mais que concreta, a chegada do
progresso aos mais distantes pontos da imensa nação. A carruagem
de sua majestade, com patente desenvolvida pelo instituto que dirigia,
fora o protótipo que popularizou a venda e utilização do modelo
pela classe abastada da corte. Repórteres com seus eletrotelégrafos
portáteis, outra inovação de sua equipe, registravam passo a passo
os movimentos fluentes do veículo, assim como as daguerreótipos
fotossensíveis tomavam closes da condução. Quando estacionou com
graça, as portas hidráulicas se abriram escorregando para as laterais
e o casal real desceu amparado por bioescravos pajens. Mucamas
de abano também correram com seus leques retráteis, abrindo-os
com toques mínimos, para abrandar o sol dos trópicos que se abatia
sobre Isabel e Luís Filipe, Conde d’Eu, seu consorte. Representantes
da primeira e segunda linha do exército bateram continência e o
comandante geral da marinha, José Pinto da Luz, que fazia corpo à
viagem inaugural, apresentou seus respeitos ao casal imperial. Isabel
e Luís Filipe foram ovacionados. Algumas crianças, com singelos
buquês nas mãos, ofereceram flores à soberana. Isabel acariciou seus
cachos, com ar de enlevo.
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luz do Sol. Cada engenhoca como aquela poderia gerar potência
suficiente para que a composição alcançasse velocidades ainda
insuspeitadas e sua expectativa em causar boa impressão aos nobres,
aos jornais e ao mundo o colocaria em evidência internacional.
Graças aos eletrotelégrafos portáteis, notícias sobre essa expedição
pioneira chegariam em tempo real aos países do eixo europeu, e
as encomendas pipocariam em pouco tempo. Em verdade, elas já
existiam, mas Moncorvo sabia que os preços seriam mais negociáveis
após a primeira exposição pública.
Bioescravos operários aplicavam selante aos trilhos de arranque,
que criariam a ionização necessária para a partida da composição,
e equipes da plataforma ordenavam aos bioescravos camareiros,
encarregados das bagagens, para que se apressassem. Nas janelas,
passageiros acenavam para o público, e os que não embarcaram
posavam para uma foto familiar, tendo ao fundo a locomotiva e a
construção em estilo remanescente colonial da estação. Os tijolos
vermelhos e as fachadas pintadas em branco, junto ao trem prateado
e dourado, em estilo arrojado pela modernidade dos tempos, ornado
com o brasão da família real em suas laterais, registravam o contraste
presente no atual Brasil de Santa Cruz. Uma terra de raízes fortes,
mas que era o país do futuro.
– Todos a bordo! – a voz ressonante do chefe da estação central
emergia dos implantes vocais na altura da laringe, adaptados à
função que exercia, fazendo os últimos passageiros se apressarem.
Vestidos coloridos em corpos ajustados por corseletes, arrastando
saias amplas à moda de Isabel e agitando lenços mimosos circularam
pelas plataformas, dando adeus. Homens em casacos longos,
inapropriados ao clima, mas adequados ao evento, exibiam seus
semblantes em chapéus os mais variados, consultando o horário
preciso nos relógios de bolso. Bioescravos seguravam crianças que
tentavam correr, acudindo aos gritos de suas sinhás.
Moncorvo dirigiu-se imediatamente à sala do maquinista-
chefe. Enquanto transitava pelos corredores, janelas eram fechadas
em sequência com travas pressurizadas, impedindo sua abertura
durante o percurso. Os vidros blindados só seriam desativados da
cabine de comando. Automaticamente o sistema de ar controlado,
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a supremacia da máquina! Após essa expedição, todos os outros
reinos hão de querer a tecnologia que faz essa belezinha funcionar
– tocou o painel de comando como quem agrada o filho favorito. –
Vapor, pressão, atrito, aceleração, nada mais será o mesmo depois
que isso decolar e chegar à terra do Bonfim. Então, penses comigo
Chico. Temos apenas dois motores em funcionamento aqui, hoje...
– uma ruga cobriu a testa de Zander. – Se mandares ligar os quatro,
a plenos pulmões, diminuirá o trajeto em cerca de uma hora! Seria
a glória de tua aposentadoria antecipar-se a plataforma de Itabuna
e surpreenderes jornalistas e o público, além de proporcionares às
suas majestades, aos membros da corte e autoridades presentes a
maior experiência de suas vidas, desde a derrocada do golpe contra
a monarquia.
– Moncorvo, sei que desejas provar que os novos motores e a
tecnologia empregada funcionam, mas creio não haver necessidade
para tanto – pontuava o experiente condutor. – Se cumprirmos
o estabelecido, já seremos notícia no mundo todo em questão de
poucas horas...
– Ou poderemos ser manchete extraordinária antes disso,
bom homem! – Moncorvo dobrou o corpo para frente. – Pense
Chico: um caderno especial, completo, com teu daguerreótipo em
primeira página no O Século e no Correio da Manhã, em Lisboa, na
Gazeta da corte, até mesmo abrilhantando as páginas do The Times
e o Independent, alardeando àqueles republicanos que insistem em
se manterem num regime perdido, os louros da monarquia! – os
olhos de Zander brilharam de patriotismo. – Não o peço para
nossa glória, Chico, mas para a glória do império, de nossa mãe
Isabel de Orléans. A filha de Pedro II, o pai da nação, merece, não
achas? Temos que mostrar a todos que tramam a insurreição que os
ideais monárquicos estão mais fortes do que nunca, e que os súditos
apoiam incondicionalmente sua regente – estendeu a mão para o
velho maquinista. – Seremos imortais, Chico, e o império de Santa
Cruz também – os olhos de Zander e Moncorvo observavam-se,
espelhando sentimentos contraditórios, mas desejos semelhantes de
grandiosidade e dever para com o Império.
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estendendo a mão para pegar a xícara de café expresso moído na
hora, a fim de atenuar a súbita tontura que o acometeu. Ao fazer
isso, viu, com os olhos baços, uma curiosa distorção nos dedos de
sua mão; pareciam ir e vir, alongando-se adiante dele, sem, contudo,
alcançar a alça da porcelana esmaltada. Um intrincado efeito que,
acompanhado pela sensação de formigamento se espalhando pelo
corpo, fez pontos luminosos coloridos estamparem-se diante de
seus olhos como pirilampos noturnos. Focou a visão em Zander e
percebeu as feições do condutor em um espasmo, como distorcidas
por espelhos utilizados em truques de mágica baratos, os globos
oculares parecendo adentrar a caixa craniana para depois saltarem
das órbitas, espremidos.
Olhou a própria mão novamente, uma transparência
fantasmagórica consumia carne e músculos e podia enxergar o
encosto de braço abaixo de sua pele. Via os comandos do painel
através do corpo também etéreo de Zander, até a figura do
maquinista desvanecer diante de si, deixando em seu lugar a imagem
das quatro alavancas correspondentes aos pistões das caldeiras,
agora os impulsionando a uma velocidade nunca antes alcançada
pelo homem.
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Do lado de fora, um Sol escaldante fazia brilhar a locomotiva
como uma joia quando o Chefe da Estação desceu, encarando os
repórteres e autoridades. Os semblantes ávidos por notícias, aflitos
por respostas. Suspirou. Em suas mãos, trazia a fina coroa imperial,
usada por Isabel nas aparições públicas, fortemente apertada entre
os dedos enluvados. Na mente, a certeza de uma nova realidade que
se abateria sobre o Império do Brasil de Santa Cruz.
E os daguerreótipos fotossensíveis bateram suas primeiras
chapas para as manchetes dos periódicos noturnos...