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Copyright 2011 Editora Estronho

Esta é uma versão de demonstração, em baixa


resolução, do livro “Steampink” e pode ser distribuida
gratuitamente. Porém seu conteúdo não pode ser
copiado, reproduzido ou alterado sem a permissão da
editora estronho.

Nesta versão você encontra o prefácio de Romeu


Martins e o conto “Terceiro Reinado” de Georgette
Silen.

A versão impressa possui melhor


qualidade gráfica.

Todos os direitos desta edição reservados


à Editora Estronho Ltda
Belo Horizonte - Minas Gerais

www.editora.estronho.com.br

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A ficção científica é um gênero de poucos consensos e de
muita especulação. Mesmo para definir quem seria o pai da FC,
existe debate eterno de um lado entre os que acreditam ter sido
Jules Verne (1828 – 1905) e do outro os partidários de H.G. Wells
(1866 – 1946). Mas sempre há também a intervenção daqueles que,
como eu, defendem ser mais correto falar em uma mãe para tal
forma literária: Mary Shelley (1797 – 1851). Se não podemos ter
consenso ao menos nisso, que ele seja cobrado no reconhecimento
da importância que as mulheres têm para a literatura de gênero
fantástico como um todo, tanto em termos artísticos quanto no
apelo popular. Isso vale desde para pioneiras, como Ursula K. Le
Guin e Marion Zimmer Bradley (1930 – 1999), chegando até para
campeãs de venda mais recentes, a exemplo de Anne Rice e J.K.
Rowling. Quanto ao subgênero específico desta coletânea em
suas mãos, como esquecer que o livro steampunk mais badalado e
premiado dos últimos tempos, Boneshaker, é obra de uma autora:
Cherie Priest?

Por isso mesmo estava difícil entender o porquê de a literatura


retrofuturista brasileira, cujo crescimento chama atenção até
mesmo no exterior, ainda não contar com escritoras presentes nas
páginas das coletâneas publicadas no país desde 2009. Seja pela
qualidade de nossas autoras, seja pela ampla participação feminina
em eventos steamers de Norte a Sul do Brasil, tal distorção em
nosso mercado editorial era bastante evidente e ainda aguardava a
vez para ser reparada. Coube à editora Estronho o pioneirismo de
abrir espaço nobre para que nossas damas do vapor mostrassem
suas histórias aqui mesmo, em Steampink, a primeira antologia
exclusivamente produzida por elas.

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Tirando o dono da casa editorial e diagramador do livro, M. D.
Amado, e este prefaciador que lhes escreve, as páginas a seguir são
de inteira responsabilidade de um time de escritoras, autênticas
filhas de Mary, que mostram abordagens bem particulares do
século XIX reimaginado com as tintas da FC, da fantasia e do
horror.

Algumas delas tenho a honra de chamar de amigas, como


a organizadora do livro, Tatiana Ruiz, primeira-dama do
steampunk em São Paulo e que aqui nos apresenta sua versão
vaporizada de um clássico conto de fadas; Lidia Zuin, musa
steamer, com daguerreótipo impresso na contracapa, autora de
uma história com amazonas do mar; e Georgete Silen, romancista
e contista publicada em diversos tomos, com quem já dividi
páginas antes e que adiante nos trás um Brasil governado por
uma Imperatriz. Da maior parte das demais escritoras – Amanda
Reznor, Bia Machado, Dana Guedes, Leona Volpe, Lívia Pereira,
Lyra Collodel, Nikelen Witter, Renata Galindo Neves, This
Gomes e Verônica Freitas –, até mesmo para confirmar a vocação
da Estronho de sempre incentivar novos talentos, tive o prazer
de conhecer a prosa delas pela primeira vez na leitura dos contos
para esta obra que já vem ao mundo histórica. E aquilo que eu
já tive a oportunidade de conferir – e agora cabe a você fazer o
mesmo –, foram tramas envolvendo, não nesta ordem, robôs
gigantes, máquinas voadoras, órgãos mecânicos, viagens no
tempo, vampiras, nereidas, poetas, corvos e mais corvos. Uma
seleção do melhor que o gênero capa e espartilho nacional tem
a oferecer está à sua disposição em Steampink. É com esta boa
companhia que deixo o leitor a partir de agora.

Romeu Martins
Comendador da Ordem da Caldeira pelo Conselho Steampunk do
Brasil e autor do blog www.cidadephantastica.com.br

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Georgette Silen
Nasceu em Caçapava, São Paulo. É arte educadora,
formada em artes cênicas. Já publicou em diversas antologias
e é organizadora das coletâneas “O Grimoire dos Vampiros”,
“UFO- Contos Não Identificados” e” Espectra, Histórias de
Fantasmas” pela Editora Literata e Histórias Fantásticas
pela Cidadela Editorial. É autora do livro “Lázarus”, volume
um de uma saga de 4 livros, publicado pela Novo Século.

Contatos: missgette@yahoo.com.br

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O terceiro reinado

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Os apitos estridentes do Imperatriz Isabel atraíram imediata
atenção de todos os presentes na plataforma da estação Dom Pedro
II. O odor da fumaça dos motores que se aqueciam espalhou-se no
ar, mesmo com os filtros potentes instalados nas três chaminés no
alto da locomotiva, fazendo as gentis damas cobrirem os narizes com
lenços brancos, impecavelmente bordados. Muitas sequer desceram
das liteiras cobertas por franjas tremeluzentes ao vento, bradando
ordens aos bioescravos para manterem as mesmas suspensas acima
das cabeças do populacho, na tentativa de apreciar, com conforto
máximo, a inauguração do mais novo comboio de trens-relâmpago
– o Imperatriz Isabel – instalado na Imperial Cidade do Rio de
Janeiro, capital mais que orgulhosa do Brasil de Santa Cruz de sua
majestade, a rainha Isabel de Orléans e Bragança, no ano da graça
de 1899. As viagens entre as províncias brasileiras seriam realizadas
com três vezes menos tempo do que o habitual. A economia e o
comércio tenderiam a crescer.
Entre os mais exaltados, fiéis partidários da Monarquia
acenavam com bandeirolas, onde as efígies de Isabel e do rei Carlos
I, de Portugal, apareciam lado a lado com o busto de Pedro II como
os grandes patriarcas das modernas conquistas decorrentes, após o
fracassado golpe dos republicanos, um grupo dissidente que tentou,
através de manobras políticas, derrubar o imperador Dom Pedro II
e instituir um regime que consideravam a salvação da liberdade e da
democracia, regime esse que se mostrou ineficiente e insipiente ao
longo dos anos posteriores. Países que haviam cedido a tal inovação
retrocederam em suas decisões equivocadas, abraçando a coroa como
única e real autoridade. As chefias de Estado e Governo voltaram
às mãos dos monarcas depostos, reconduzidos com honra a seus
respectivos tronos, e desde então o mundo tem visto a derrocada
das hostes republicanas, como Inglaterra e Estados Unidos
Independentes, que não mais sustentavam seus próprios quintais.

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Georgette Silen . O terceiro reinado
No ano da tentativa de golpe, 1889, Pedro II estava fora do
país, em viagem diplomática, para adquirir patentes de maquinários
desenvolvidos recentemente nas terras europeias. Graças à visão
futurista de seu líder, a Terra Brasilis era proprietária, desde 1879,
de recursos tecnológicos avançados que permitiram, por exemplo,
a construção de potentes embarcações navais, como a frota do
Riachuelo, encabeçada por seu portentoso encouraçado, colocando
o império brasileiro na vanguarda das navegações militares. Mas
Pedro desejava mais, queria expandir os tesouros do império, firmá-
lo como uma potência tecnológica entre gigantes. E para tanto, a
antiga colônia portucalense possuía a melhor moeda de troca em
voga: seu solo fértil e rico.
A degradação ambiental já era uma realidade nos impérios
europeus; a escassez de água potável e comida, provenientes da
excessiva utilização dos recursos sem renovação e da poluição
dos dejetos industriais na natureza, esgotaram a capacidade dos
países pátrios e o povo começou a morrer ou emigrar. Os que
ainda possuíam colônias iniciaram processo destrutivo semelhante
nos territórios, buscando suprir necessidades as quais não mais
podiam ficar sem. Imigrantes chegaram aos montes ao Brasil, terra
das oportunidades, e trouxeram consigo conhecimentos diversos
para alavancar a industrialização. Contudo, ciente dos perigos de
tal empreitada, Pedro II baixou rígidas leis de controle ambiental
e ordenou a criação de intendências de fiscalização das atividades
industriais a serem implantadas. Como homem de visão, entendeu
que o Brasil de Santa Cruz poderia tornar-se o novo celeiro do
mundo, o que de fato comprovou-se nos anos posteriores. Em troca
da comida, dos produtos agrícolas e da água que poderia fornecer, o
Brasil exigiu patentes de produtos desenvolvidos em primeira mão.
Com o apoio do império, cientistas e estudiosos debandaram de suas
terras natais com a promessa de subsídios para pesquisas e fixaram
moradia permanente no paraíso tupiniquim. Para evitar a invasão
descontrolada de imigrantes e impedir a inflação dos preços, Pedro
II fechou as fronteiras e sancionou as facilidades no tráfico negreiro,
com isenções de impostos e subsídios tentadores, barateando assim
a mão de obra para o trabalho. Abolicionistas tiveram seus clamores
calados quando a população, atenta a todos os possíveis benefícios,

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aceitou que os crioulos continuassem a pagar com a liberdade pelo
conforto oferecido aos senhores. Uma troca justa ao ponto de vista
vigente.
Antigas leis, como a Ventre Livre e Sexagenária, foram
revogadas. Escravos idosos demais para se sustentarem em pé eram
recondicionados nos laboratórios do império, tendo partes dos
corpos decrépitos substituídos por próteses, tornando-se a primeira
geração de bioescravos, com peças-motores funcionando à base de
combustíveis gasosos, numa pesquisa e aplicação pioneira em todo
o mundo. Em pouco tempo o Brasil exportava a tecnologia, ao
preço exorbitante de royalties pagos por implantação de bioescravos
pelos países compradores. Um bom negócio, considerando que o
novo produto, comparado aos escravos convencionais, possuía força
extra, tempo de validade quase ilimitado, e eram constantemente
checados, fazendo parte de um processo de manutenção rígido
controlado pelo Estado Imperial. E cada escravo nascido desde
então era acompanhado de perto, monitorado por circuitos de ondas
telegráficas, uma das invenções com parceria euro-brasileira, em
equipamentos acoplados na base da coluna e que ficavam à disposição
para controle e coleta de dados dos senhores dos espécimes, bem
como dispositivos antifuga, localizadores e imobilizadores.
A economia nunca esteve melhor. Mesmo o temor que pairou
com a morte de Pedro II, cujo conjunto de sustentação pulmonar
recém-instalado em suas pleuras deficientes acabou apresentando
um defeito tardio que não pôde ser previsto, provou-se infundado
quando Isabel, aclamada em massa pela população satisfeita e tendo
apoio das forças armadas e comunidades monárquicas internacionais,
assumiu o trono, prometendo manter as reformas do pai e ampliá-
las a extremos.
E hoje, diante da população exaltada pela felicidade do progresso,
a estação Dom Pedro II fervilhava de admiradores, patriotas e
vendedores ambulantes de petiscos, refrescos e souvenires do
evento. Ao preço de poucos tostões, era possível adquirir réplicas do
Imperatriz Isabel, que podiam se mover ao comando dos pequenos,
exalando fumaça e vapores coloridos em um rastro de alegria
efusiva aos olhares infantis. Imitações da coroa imperial de Isabel

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Georgette Silen . O terceiro reinado
adornavam a fronte das meninas, que sorriam ingenuamente à luz do
forte sol carioca. A viagem inaugural do Imperatriz Isabel seria feita
com ninguém menos do que a própria regente e seu consorte real a
bordo, cuja carruagem adentrava nesse momento a Praça Cristiano
Ottoni, tomada por bandeirolas e cercada pela guarda imperial. O
veículo, confeccionado com uma liga de aço dourado leve e resistente
desenvolvido nos laboratórios da FAMET – Faculdade de Medicina
e Tecnologia do Rio de Janeiro – avançava sobre os paralelepípedos
do paço tendo um condutor de libré no coche, movendo alavancas
que faziam os eixos das seis rodas pneumáticas absorverem os
impactos para não incomodarem suas majestades. Esporadicamente
lançava jatos de vapores no ar, entre silvos finos e prolongados de
duas pequenas chaminés na traseira do veículo.
Tão diferente de quando necessitávamos dos malditos cavalos!
Pensava Moncorvo Filho, atual Reitor da FAMET. A seu lado
encontrava-se quase todo o corpo docente da instituição, convidados
a acompanhar a expedição entre Rio de Janeiro e Itabuna, na Bahia,
do singular transporte que prometia romper barreiras territoriais
importantes e alavancar, de forma mais que concreta, a chegada do
progresso aos mais distantes pontos da imensa nação. A carruagem
de sua majestade, com patente desenvolvida pelo instituto que dirigia,
fora o protótipo que popularizou a venda e utilização do modelo
pela classe abastada da corte. Repórteres com seus eletrotelégrafos
portáteis, outra inovação de sua equipe, registravam passo a passo
os movimentos fluentes do veículo, assim como as daguerreótipos
fotossensíveis tomavam closes da condução. Quando estacionou com
graça, as portas hidráulicas se abriram escorregando para as laterais
e o casal real desceu amparado por bioescravos pajens. Mucamas
de abano também correram com seus leques retráteis, abrindo-os
com toques mínimos, para abrandar o sol dos trópicos que se abatia
sobre Isabel e Luís Filipe, Conde d’Eu, seu consorte. Representantes
da primeira e segunda linha do exército bateram continência e o
comandante geral da marinha, José Pinto da Luz, que fazia corpo à
viagem inaugural, apresentou seus respeitos ao casal imperial. Isabel
e Luís Filipe foram ovacionados. Algumas crianças, com singelos
buquês nas mãos, ofereceram flores à soberana. Isabel acariciou seus
cachos, com ar de enlevo.

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Moncorvo Filho aproximou-se, fazendo uma mesura respeitosa.
Isabel sorriu. Moncorvo era um homem que admirava, como
estudiosa da ciência que teve esse aspecto da vida influenciado
por seu pai, Pedro II. As conquistas estabelecidas pela FAMET
apresentavam mais resultados do que ela esperara a princípio, e
faziam-na ter ciência de que o Instituto era a âncora na qual o Brasil
sustentava seu império. Isabel era grata à dedicação de Moncorvo
ao comandar, pessoalmente, todos os aspectos relacionados ao
tratamento dispensado aos cientistas radicados no território de Santa
Cruz, bem como reportar as descobertas e as possíveis patentes que
gerariam lucros no exterior.
– Sejam bem vindos, majestades. Um lindo dia brinda vossa
viagem – cumpriu à risca o protocolo, estendendo a mão para pegar
e beijar a que era oferecida pela soberana.
– Obrigada Moncorvo, é grande nossa dívida para com o instituto
na data de hoje – Isabel retribuía a gentileza, sua figura baixa,
levemente curvada pela idade, metida em um volumoso vestido
bordô de anquinhas largas, lembrava uma menina envelhecida, cujas
rugas marcavam os cantos dos olhos e da boca. Ao seu lado o marido
exibia um garboso uniforme militar azul marinho cravejado de
insígnias, que envergava nas aparições públicas desde que comandou
o exército na guerra do Paraguai, bem como as próteses adquiridas
na mesma. O olho biônico, cuja tecnologia era a mesma utilizada
nos bioescravos, adornava a face esquerda de Luís Filipe.
Cumpridos os cerimoniais de discurso, batismo da locomotiva
com champanhe e corte da fita inaugural, ao som da Primeira
Fanfarra Imperial, o casal real embarcou seguido pelo séquito e pelos
bioescravos. Autoridades e celebridades, entre eles o jurista e orador
Ruy Barbosa – visto com maus olhos por alguns, após o frustrado
golpe republicano, antigo simpatizante da abolição escravocrata e
apregoando-se um novo-monárquico – foram tomando seus lugares
a bordo, enquanto as engrenagens mecânicas eram verificadas por
funcionários das linhas férreas e pelos técnicos da FAMET. Tudo
precisava ser perfeito. Moncorvo encaminhou-se para a sala de
máquinas, observando os potentes reatores de conversão de vapor
em energia cinética e os pistões laterais expostos, que brilhavam a

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luz do Sol. Cada engenhoca como aquela poderia gerar potência
suficiente para que a composição alcançasse velocidades ainda
insuspeitadas e sua expectativa em causar boa impressão aos nobres,
aos jornais e ao mundo o colocaria em evidência internacional.
Graças aos eletrotelégrafos portáteis, notícias sobre essa expedição
pioneira chegariam em tempo real aos países do eixo europeu, e
as encomendas pipocariam em pouco tempo. Em verdade, elas já
existiam, mas Moncorvo sabia que os preços seriam mais negociáveis
após a primeira exposição pública.
Bioescravos operários aplicavam selante aos trilhos de arranque,
que criariam a ionização necessária para a partida da composição,
e equipes da plataforma ordenavam aos bioescravos camareiros,
encarregados das bagagens, para que se apressassem. Nas janelas,
passageiros acenavam para o público, e os que não embarcaram
posavam para uma foto familiar, tendo ao fundo a locomotiva e a
construção em estilo remanescente colonial da estação. Os tijolos
vermelhos e as fachadas pintadas em branco, junto ao trem prateado
e dourado, em estilo arrojado pela modernidade dos tempos, ornado
com o brasão da família real em suas laterais, registravam o contraste
presente no atual Brasil de Santa Cruz. Uma terra de raízes fortes,
mas que era o país do futuro.
– Todos a bordo! – a voz ressonante do chefe da estação central
emergia dos implantes vocais na altura da laringe, adaptados à
função que exercia, fazendo os últimos passageiros se apressarem.
Vestidos coloridos em corpos ajustados por corseletes, arrastando
saias amplas à moda de Isabel e agitando lenços mimosos circularam
pelas plataformas, dando adeus. Homens em casacos longos,
inapropriados ao clima, mas adequados ao evento, exibiam seus
semblantes em chapéus os mais variados, consultando o horário
preciso nos relógios de bolso. Bioescravos seguravam crianças que
tentavam correr, acudindo aos gritos de suas sinhás.
Moncorvo dirigiu-se imediatamente à sala do maquinista-
chefe. Enquanto transitava pelos corredores, janelas eram fechadas
em sequência com travas pressurizadas, impedindo sua abertura
durante o percurso. Os vidros blindados só seriam desativados da
cabine de comando. Automaticamente o sistema de ar controlado,

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uma inovação ainda em caráter experimental, captava e filtrava o ar
exterior e o conduzia ao interior do veículo, mas em uma temperatura
artificialmente condicionada. Era um protótipo que, sendo funcional,
abriria portas para a ocupação de territórios do nordeste do império,
em áreas onde o calor abrasador impedia o pleno desenvolvimento.
Também seria muito útil para o desbravamento de países desérticos,
de difícil ocupação. Caso o invento não rendesse os resultados
esperados, bastaria acionar os sistemas de ar convencionais. Tudo
dentro de um rígido planejamento estratégico.
Ao chegar à cabine, viu o maquinista-chefe, Francisco Ignácio
Zander, um dos mais antigos funcionários em atividade nas linhas
férreas, observando cada um dos aparelhos e acompanhando suas
medições. Envergava seu melhor traje, aquela era sua última viagem
antes da aposentadoria merecida, quando se retiraria para o interior,
desfrutando das regalias de uma vida de sossego. Abriu um sorriso
para Moncorvo, convidando-o a sentar-se em uma das poltronas
adaptáveis. Moncorvo assim o fez e o assento pneumático ajustou-se
às curvas de seu corpo, causando imediato conforto. Outra patente
que o enchia de orgulho.
– Creio que está tudo a contento – Moncorvo apalpava o
emborrachado com os dedos, sentindo sua maciez.
– Deveras, Reitor – o condutor consultava o relógio –, estamos
com dois motores aquecidos e prontos, em máxima potência.
Aportaremos à estação de Itabuna dentro do previsto – a soberba
dava cor à voz de Zander.
Como que espelhando essa afirmação, uma das muitas chaminés
apitou, despejando seus humores ao ar acalorado do Rio de Janeiro.
Seu som reverberava a novos ares, contagiando as figuras presentes
na sala de máquinas.
– Não seria ainda mais grandioso, chefe Zander, se conseguíssemos
tal proeza antes do horário estipulado? – Moncorvo deitou para fora
de si os pensamentos que o assomavam desde que relatórios de testes
lhe foram repassados por seu assistente pessoal da FAMET. – Veja
bem, Chico – falou, com a intimidade a qual já estavam habituados
em rodadas de uísque e conhaque, regadas a charutos –, essa é tua
última viagem e ela vai inaugurar um período dourado para o império,

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Georgette Silen . O terceiro reinado
a supremacia da máquina! Após essa expedição, todos os outros
reinos hão de querer a tecnologia que faz essa belezinha funcionar
– tocou o painel de comando como quem agrada o filho favorito. –
Vapor, pressão, atrito, aceleração, nada mais será o mesmo depois
que isso decolar e chegar à terra do Bonfim. Então, penses comigo
Chico. Temos apenas dois motores em funcionamento aqui, hoje...
– uma ruga cobriu a testa de Zander. – Se mandares ligar os quatro,
a plenos pulmões, diminuirá o trajeto em cerca de uma hora! Seria
a glória de tua aposentadoria antecipar-se a plataforma de Itabuna
e surpreenderes jornalistas e o público, além de proporcionares às
suas majestades, aos membros da corte e autoridades presentes a
maior experiência de suas vidas, desde a derrocada do golpe contra
a monarquia.
– Moncorvo, sei que desejas provar que os novos motores e a
tecnologia empregada funcionam, mas creio não haver necessidade
para tanto – pontuava o experiente condutor. – Se cumprirmos
o estabelecido, já seremos notícia no mundo todo em questão de
poucas horas...
– Ou poderemos ser manchete extraordinária antes disso,
bom homem! – Moncorvo dobrou o corpo para frente. – Pense
Chico: um caderno especial, completo, com teu daguerreótipo em
primeira página no O Século e no Correio da Manhã, em Lisboa, na
Gazeta da corte, até mesmo abrilhantando as páginas do The Times
e o Independent, alardeando àqueles republicanos que insistem em
se manterem num regime perdido, os louros da monarquia! – os
olhos de Zander brilharam de patriotismo. – Não o peço para
nossa glória, Chico, mas para a glória do império, de nossa mãe
Isabel de Orléans. A filha de Pedro II, o pai da nação, merece, não
achas? Temos que mostrar a todos que tramam a insurreição que os
ideais monárquicos estão mais fortes do que nunca, e que os súditos
apoiam incondicionalmente sua regente – estendeu a mão para o
velho maquinista. – Seremos imortais, Chico, e o império de Santa
Cruz também – os olhos de Zander e Moncorvo observavam-se,
espelhando sentimentos contraditórios, mas desejos semelhantes de
grandiosidade e dever para com o Império.

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Quando os apitos extensos indicaram que a composição iria se
movimentar, os acenos se intensificaram na plataforma. Repórteres
se maravilhavam, bioescravos olhavam com indiferença para algo
que em nada modificaria suas vidas e os funcionários da estação
Dom Pedro II esticavam os pescoços para observar o início de um
novo tempo. Dois imensos pistões externos começaram a rodar
em seu próprio eixo, soltando faíscas esporádicas. Nuvens de vapor
explodiram da chaminé dourada, provocando um gêiser ritmado
que subia em braçadas rápidas para o teto parcialmente coberto
da plataforma e descargas de fumaça nas laterais da locomotiva
espocavam. Um leve tremor no ar sacudiu os vestidos das mulheres e
fez voar o chapéu de alguns homens. A sensação de trepidação chegou
a um ponto constante e as rodas metálicas do veículo se recolheram
para dentro. Toda a composição flutuava ao atrito do vácuo entre
os eixos e os trilhos, rodeados pelo vapor. E sem nem mesmo um
tranco ou sacolejo, o Imperatriz Isabel começou a deslizar, como
se escorregasse em uma superfície lisa de gelo. Deixou a proteção
do teto coberto, ganhando mais velocidade, desaparecendo de vista
antes mesmo que os perplexos repórteres e admiradores pudessem
registrar mais uma manobra. Era notável!
Dentro da composição, os passageiros, entre eles o casal real, mal
notaram que estavam se movendo. A estabilidade era surpreendente
e Isabel regozijou-se, bebendo calmamente a xícara de chá inglês
– um vício ao qual não conseguia abdicar –, enquanto ouvia os
comentários entusiasmados de Luís Filipe ao comandante Luz,
prometendo ao mesmo que falaria com Moncorvo para implementos
na frota naval brasileira. Pelos corredores largos e luxuosos da
cabine real, damas riam e conversavam frivolidades e bioescravos
aguardavam, impassíveis, por novas ordens. Mentalmente Isabel
repassava seu discurso aos súditos para quando desembarcasse.
Na cabine, Zander acabava de puxar a última manivela,
acionando os quatro motores em potência total. Uma leve
ondulação foi sentida, mas logo esquecida, e os indicadores de
velocidade mostravam seus números e alcance. Zander e Moncorvo
arregalaram os olhos, era muito mais do que esperavam, mais até do
que o relatado pelos assistentes responsáveis pelos testes. Moncorvo
recostou-se à poltrona, pálido pela emoção, feliz pela vitória,

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Georgette Silen . O terceiro reinado
estendendo a mão para pegar a xícara de café expresso moído na
hora, a fim de atenuar a súbita tontura que o acometeu. Ao fazer
isso, viu, com os olhos baços, uma curiosa distorção nos dedos de
sua mão; pareciam ir e vir, alongando-se adiante dele, sem, contudo,
alcançar a alça da porcelana esmaltada. Um intrincado efeito que,
acompanhado pela sensação de formigamento se espalhando pelo
corpo, fez pontos luminosos coloridos estamparem-se diante de
seus olhos como pirilampos noturnos. Focou a visão em Zander e
percebeu as feições do condutor em um espasmo, como distorcidas
por espelhos utilizados em truques de mágica baratos, os globos
oculares parecendo adentrar a caixa craniana para depois saltarem
das órbitas, espremidos.
Olhou a própria mão novamente, uma transparência
fantasmagórica consumia carne e músculos e podia enxergar o
encosto de braço abaixo de sua pele. Via os comandos do painel
através do corpo também etéreo de Zander, até a figura do
maquinista desvanecer diante de si, deixando em seu lugar a imagem
das quatro alavancas correspondentes aos pistões das caldeiras,
agora os impulsionando a uma velocidade nunca antes alcançada
pelo homem.

Uma hora antes do previsto o Imperatriz Isabel chegou à


plataforma da estação de Itabuna, causando alvoroço. Repórteres
correram de seus jornais locais e a população debandou dos postos
de trabalho ou de afazeres corriqueiros para apreciar o inusitado.
O trem elegantemente acomodou-se aos trilhos, baixando rodas
e desligando motores. Bioescravos camareiros aguardavam e as
autoridades locais acorreram das Intendências para receber a
família real, buscando não desmerecer atenção. A banda, chamada
às pressas, começou a tocar o Hino da Monarquia, que enaltecia as
figuras de Pedro I e II, e funcionários na plataforma vistoriavam os
equipamentos externos. O chefe da estação aguardou, impaciente,
até que as portas automáticas de desembarque se abriram. Ajeitando
a gravata, ensaiava mentalmente uma mesura para a rainha.
O silêncio os recebeu. Todos se entreolhavam, sem saber direito
o que fazer. A banda, aos poucos, foi deixando de tocar, enquanto

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buscavam com os olhos algum tipo de movimento pelas janelas, que
agora se abriam. Quando a quietude e imobilidade de ações tornaram-
se insuportáveis, o chefe da estação, sem aguentar mais, entrou no
vagão principal. O vazio deu-lhe as boas-vindas e a constatação
do que via o deixava boquiaberto, caminhando lentamente pelos
corredores. Em todos os vagões foi percebido o mesmo: não havia
passageiros. Nenhuma alma viva ocupava o Imperatriz Isabel.
Atônito, se deparou com xícaras, talheres, leques, uma infinidade
de pequenos objetos pelos corredores e pelos estofados das luxuosas
poltronas, inclusive nos vagões mais econômicos, destinados à
classe mais baixa. Toda sorte de pertences estavam espalhados, mas
nada que comprovasse a presença de seres humanos no interior da
composição. Peças de bioescravos estavam derrubadas aqui e ali,
próteses biônicas, sistemas de ondas telegráficas, tudo, mas as partes
orgânicas pareciam terem sido arrancadas do conjunto.
O chefe da estação ficou estático por minutos. Ao virar-se,
confrontou-se com os demais funcionários, tensos como cordas de
rabeca, olhos arregalados, alguns retornando de buscas igualmente
infrutíferas realizadas nos anexos da composição. Em seus rostos,
dúvidas e medos, perguntas que se sucediam e possíveis respostas
oferecidas pela quietude que os cercava.
Na cabine de comando, encontraram as xícaras e o café preto
ainda quente, fumegando, espirais sinuosas enchendo o ar com
seu perfume forte. Mas nenhum sinal de Francisco Zander, da
tripulação ou passageiros. O silêncio soprava mistérios que nunca
seriam revelados. O chefe da estação mirou o painel de comandos,
cujo piloto automático estava travado nas coordenadas e manobras
de desembarque, buscando por algum sinal, e conferiu os contadores
de velocidade. Os pelos de sua nuca se arrepiaram. Os números
registrados não podiam ser reais! Bateu com o polegar e o indicador
sobre o mostrador, mas ele não se moveu. Conferiu os demais
instrumentos, os registros de rota, qualquer dado de navegação da
locomotiva. Todos se detinham na mesma marca, pontuada em
vermelho.
Uma velocidade que nenhum homem jamais pensou em alcançar.

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Georgette Silen . O terceiro reinado
Do lado de fora, um Sol escaldante fazia brilhar a locomotiva
como uma joia quando o Chefe da Estação desceu, encarando os
repórteres e autoridades. Os semblantes ávidos por notícias, aflitos
por respostas. Suspirou. Em suas mãos, trazia a fina coroa imperial,
usada por Isabel nas aparições públicas, fortemente apertada entre
os dedos enluvados. Na mente, a certeza de uma nova realidade que
se abateria sobre o Império do Brasil de Santa Cruz.
E os daguerreótipos fotossensíveis bateram suas primeiras
chapas para as manchetes dos periódicos noturnos...

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Checked
Lidia Zuin
Georgette Silen
Amanda Reznor

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