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2.

COMPREENDENDO A VIOLÊNCIA SEXUAL EM CONFLITOS


ARMADOS

Historicamente, a violência sexual nos conflitos armados foi vista como uma
consequência inevitável das guerras. Há relatos do seu uso como estratégia bélica em
textos históricos, a exemplo do Antigo Testamento da Bíblia² 1. Além disso, durante a
Idade Média, esse ato era estimulado pela crença de que aumentava a determinação dos
soldados em vencer as batalhas. Como exemplos expressivos e recentes do uso da
violência sexual como estratégia de guerra, pode-se citar os casos o genocídio em
Ruanda (1994), o qual será abordado ao longo desse artigo. Contudo, é importante
salutar que em matéria de Direito, essa repugnante prática somente teve ínfimo destaque
no Código Lieber², promulgado em 1863, visando estabelecer limites para a atuação dos
saldados durante a Guerra Civil norte-americana, esse foi o primeiro documento a não
apenas citar, mas também proibir expressamente o estupro em tais situações.

Entretanto, diversos debates foram realizados ao longo dos anos acerca de que a
violência sexual não é inevitável nos conflitos armados e que esta precisa ser combatida,
visto que são atos os quais desmoralizam e humilham as suas vítimas, além disso podem
prolongar os conflitos entre as partes que se opõem. Outro aspecto relevante são os
impactos que podem afetar as suas famílias e a sociedade onde as vítimas habitam,
tendo em vista os efeitos psicológicos que a vítima pode ter, por exemplo depressões e
síndrome de pânico. Outrossim, os efeitos poderão prolongar-se biologicamente nas
vítimas, a exemplo da gravidez das vítimas, contração de doenças sexualmente
transmissíveis ou, ainda, por terem ficado estéreis devido aos maus-tratos durante os
atos de violência sexual.

Ademais, a violência sexual quando ocorre contra mulheres em situações de


conflito é também um meio de desmoralização dos oponentes do sexo masculino, visto
que representa uma comunicação aos homens do grupo de que não conseguem proteger
as suas mulheres, alcançando uma destruição da sua cultura através de agressões contra
as mulheres que assumem um papel central na família, funcionando a violência sexual
não como um ataque pessoal mas como um crime contra toda a comunidade. Neste

²DE ARAUJO, Beatriz Alves. Violência sexual em conflitos armados: história e


1

desafios. Revista Alabastro, v. 1, n. 7, p. 6-17, 2016.


sentido, deverá notar-se a ligação entre a noção de territorialidade e os crimes de
natureza sexual: a conquista dos corpos das mulheres é equiparada à conquista de
território. Deste modo, torna-se importante referir que, apesar de estar em causa,
obviamente, o bem jurídico da liberdade, neste contexto, põe-se em causa algo muito
mais vasto, o ataque à liberdade sexual traduz-se num meio para atingir um fim, que, no
limite, será a subsistência de uma civilização.

Embora a maioria das vítimas de violência sexual em conflitos bélicos sejam do


sexo feminino, tem-se vindo a reconhecer a existência de um número considerável de
vítimas do sexo masculino, os quais assim como as mulheres são violentados com o
propósito de sofrer humilhações e destruir o indivíduo ou o grupo em causa. Para além
disso, é importante ressaltar que como há vítimas do sexo masculino, também existem
agentes do sexo feminino, como é o caso de Pauline Nyiramasuhuko 2, uma ex-ministra
de Ruanda a qual foi sentenciada à prisão perpétua por participação no genocídio e no
estupro de mulheres e meninas da etnia tutsi, tornando-se a primeira mulher condenada
pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda.

Diante disso, é importante salutar que o objetivo principal da utilização da violência


sexual em guerras é a destruição da comunidade de que as vítimas fazem parte, visto
que surgem inúmeros efeitos de longa duração tanto para a vítima quanto para a
comunidade a qual ela está inserida e esse fato, torna esses crimes uma ama ou método
de guerra extremamente eficazes. Esses crimes sexuais cometidos além de ferir a
liberdade sexual, coloca em limite a subsistência de uma civilização, tendo em visto os
diversos objetivos políticos ou militares que poderão estar em causa.

Destarte, a comunidade internacional reconhece atualmente os efeitos da utilização


da violência sexual e entende o porquê de esta ser uma tática de guerra, a qual é
considerada eficaz pelas partes envolvidas nas guerras. Porém, esta ainda continua
sendo um problema de segurança internacional, apesar de existir legislação acerca desse
tema, a exemplo do Estatuto de Roma, o qual tipifica os crimes de cunho sexual, como
crimes de guerra, crimes contra humanidade e de genocídio, visto que esses crimes
ainda ocorrem com certa frequência nos dias atuais.

2
Penachioni, Júlia Battistuzzi. "Violência sexual em conflitos armados e em ataques
generalizados ou sistemáticos: a criminalização pelo Tribunal Penal Internacional."
(2017).
De acordo com a diretora do Fundo para Mulheres Congolesas na República
Democrática do Congo, Julienne Lusenge um centro médico na cidade de Burnia, na
província oriental de Itur, local de conflito armado, somente em fevereiro de 2019,
foram recebidas em uma semana 28 crianças “vítimas de violência sexual sérias.
Lusenge contou como sua equipe recebe mulheres, escravas sexuais de vários grupos
armados, além de mulheres que sofrem com “casamentos forçados, partos forçados,
violência física, econômica e tratamentos desumanos e degradantes.” Além disso, em
fevereiro de 2019, o presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Peter
Maurer, alertou que o mundo enfrenta uma falha grave de proteção em relação ao
aumento da violência sexual em conflitos. Ao fazer um apelo por US$ 27 milhões para
financiar uma resposta melhor ao problema em 14 países, Maurer descreveu os danos
permanentes causados pelo uso da violência sexual e com base de gênero, usadas como
tática de guerra para desumanizar as vítimas e desestabilizar comunidades3. 

Portanto, após o compreendimento do porquê é necessária a criminalização dos


casos de natureza sexual nos conflitos armados e quais as consequências negativas que
eles trazem, é importante ressaltar o Genocídio de Ruanda, o qual foi muito relevante
para a criminalização desse tipo de violência no Direito Penal Internacional. No
próximo tópico será abordada o Genocídio de Ruanda e alguns crimes sexuais que
influenciaram no Tribunal Penal Internacional para Ruanda.

3. BREVE HISTÓRICO DO GENOCÍDIO DE RUANDA RELACIONADO


COM A VIOLÊNCIA SEXUAL

3.1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS AO GENOCÍDIO DE RUANDA

O Genocídio de Ruanda, aconteceu em um território montanhoso, localizado na


região dos Grandes Lagos da África Centro-Oriental, possui o clima temperado,
condição que exime o país das condições vividas em demais países africanos por conta
da epidemia de malária e da mosca tsé-tsé. Por conta dessas circunstâncias, a densidade
populacional em Ruanda era alta, se tornando um dos países mais densamente povoados
da África.

3
NEWS ONU, Apelo da Onu e da Cruz Vermelha quer combater uso da violência
sexual como tática de guerra. 25,fevereiro,2019.
A população de Ruanda era formada majoritariamente por hutus, tutsis e
minoritariamente por twas (pigmeus), representando cada um, respectivamente 85, 14 e
1% da população do país (GOUREVITCH, 2006 apud FUSINATO, 2014, p. 25).
Entretanto, esta divisão era bastante fluida e foi estabelecida de acordo com a posição
social ocupada por cada grupo ao longo dos séculos. Ainda que dividida, a sociedade
era bastante mesclada, havendo tutsis e hutus na mesma linhagem familiar e ambos
dividindo a mesma cultura, idioma e religião. Os chefes, chamados mwamis eram
considerados divindades absolutas, e o posto já havia sido ocupado por ambos tutsis e
hutus. Apesar disso, a sociedade era dividida por castas, sendo os hutus agricultores e
submissos aos tutsis, que eram criadores de gado.

No ano de 1890, subiu ao poder o mwami Rwabugiri, de origem tutsi, o qual


favoreceu os tutsis e deu-lhes cargos civis e militares importantes. Ao final da Primeira
Guerra Mundial, a administração de Ruanda foi transferida à Bélgica pela Liga das
Nações, cuja política colonial se baseou na separação entre hutus e tutsis,
posteriormente desmanchando as estruturas sociais que garantiam a autonomia dos
hutus e reforçando ainda mais a sua exploração pelos tutsis. Entretanto, a partir do final
da Segunda Guerra Mundial a população hutu passou a reivindicar um governo de
maioria. Além disso, no ano de 1957 teve o “Manifesto Hutu”, o qual afirmava que o
país era uma nação majoritariamente composta por hutus. Dois anos depois, um líder
hutu foi espancado, e os rumores sobre a sua morte causaram uma invasão hutu em
terras tutsis e o início de uma revolta no país. Diante disso, o coronel Logiest promoveu
um golpe político e um líder hutu assumiu o posto de mwami. Em 1961, Ruanda foi
declarada república. Porém, a independência de Ruanda trouxa a intensificações desses
conflitos étnicos, a exemplo de um dos piores genocídios da histórica, o Genocídio de
Ruanda4.

3.2 A VIOLÊNCIA SEXUAL NO GENOCÍDIO DE RUANDA

Em abril de 1994, o presidente Habyarimana, foi assassinado por meio da


derrubada de seu avião, acontecimento que foi o estopim para a eclosão do genocídio.
Presentes no avião, além de Habyarimana, estavam o presidente do Burundi e diversos
membros de alto escalão do governo de Ruanda. A cidade de Kigali então foi dominada
por tropas de soldados de Ruanda que recebiam orientações expressas para checar todas
4
Rodrigues, Bárbara Santolin. "O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA
RUANDA E A PROTEÇÃO DE MULHERES VÍTIMAS DO GENOCÍDIO."
as carteiras de identidade e exterminar a população tutsi, os twas e os hutus moderados.
Os assassinos utilizavam diversas armas e carregavam corpos em caminhões, além de
estuprarem mulheres e saquearem propriedades. Diversos locais foram bombardeados,
vítimas eram forçadas ao suicídio, queimadas vivas, ou eram obrigadas a matar outras
pessoas, inclusive de sua própria família.

Os inúmeros casos de crimes de natureza sexual cometida durante esse genocídio


trouxeram intensos debates para a comunidade internacional, estes eram utilizados
como armas de guerra para humilhar as vítimas e sua comunidade.

É possível compreender o motivo dos homens sentirem-se humilhados pelos crimes


sexuais cometidos nas mulheres e na sua comunidade. Afinal, ao verem suas filhas e
esposas sendo violentadas, homens Tutsis não poderem socorrê-las. Diante disso,
líderes Hutus encorajavam a violência sexual como uma maneira de instaurar o pânico
nas vítimas e nas populações tidas como inimigas.

Outro aspecto relevante que estimulava a violência sexual era a crença de que
mulheres Tutsis seriam sexualmente superiores do que as Hutus. Tal ideia era
perpetuada pelas questões culturais que não permitiam que mulheres Tutsis se casassem
com homens Hutus. Dessa forma, as milícias se utilizavam da violência sexual como
forma de humilhar as comunidades rivais.

A violência sexual quando utilizada como instrumento de guerra traz diversas


consequências como foi abordado no primeiro tópico do artigo. O primeiro a geralmente
ser lembrado refere-se às consequências físicas dos crimes sexuais. As implicações
psicológicas também se destacam, as quais surgiam não apenas após a violação em si,
mas mesmo antes. Sobreviventes relataram que era aterrorizante ser caçada, sabendo
que se fossem encontradas seriam estupradas e/ou assassinadas. Esses são chamados os
efeitos a curto prazo.

Contudo, no Genocídio de Ruanda os efeitos a longo prazo têm grande destaque.


Essa especificidade é devida aos costumes ruandeses, pautados em uma cultura
extremamente patriarcal. Nas comunidades ruandesas, a linha que separa uma “menina”
de uma “mulher” é a virgindade, ideia atrelada ao casamento. A menina, virgem,
“pertence” à comunidade de seu pai e, ao casar e passar a ter uma vida sexual, torna-se
mulher e passa a “pertencer” à comunidade de seu marido. O fato de, por qualquer
razão, essa transição de menina para mulher não acontecer conforme os costumes,
constitui um motivo de vergonha para a mulher e para a sua comunidade. A exemplo
desses aconteceu o isolamento social das vítimas, já que elas são muitas vezes culpadas
e humilhadas por supostamente terem se prostituído ao aceitar manter uma relação
sexual com qualquer homem que assim desejasse durante o genocídio, visto que a
virgindade é uma característica muito importante para as mulheres ruandesas, como dito
anteriormente.

As questões identitária e social mencionadas são muito bem representadas pela


escritora ruandesa Scholastique Mukasonga em uma passagem de seu livro “A Mulher
dos Pés Descalços” (2017), que narra situações e sentimentos vividos por uma família
comum durante o genocídio:

E os estupros. Ninguém queria falar sobre esse assunto. Ninguém podia falar
sobre esse assunto. Não existia nenhuma brecha nos costumes que permitisse
enfrentar essa catástrofe que perturbava as famílias. Antigamente, em
Ruanda, se uma moça engravidasse antes do casamento, escondiam-na [...].
Não era tanto uma reprovação moral que recaía sobre a infeliz, mas um medo
de que a transgressão das regras que garantiam o bom andamento da
sociedade pudesse lançar sobre a família, e toda a comunidade, uma série de
calamidades que atingiriam tanto a fertilidade das plantações quanto a
fecundidade das mulheres e das vacas [...].
Mas o que fazer com esses costumes quando suas filhas são vítimas dos
jovens do partido único que aprenderam que o estupro de moças tutsis é um
ato revolucionário, um direito adquirido pelo povo majoritário? Quem
suportará o peso esmagador da desgraça que, em vão, se tenta esconder: a
menina-mãe, que se torna uma maldição viva, de quem todos querem fugir e
que afunda na solidão do desespero? A família que fica remoendo o remorso
de não ter podido proteger os seus e que se vê posta de lado, por prudência,
por todo o vilarejo? E quais desgraças trará esse filho, filho nascido de tanto
ódio? (MUKASONGA, 2017, p. 149 e 150)”

Outra consequência relevante da violência sexual no Genocídio de Ruanda é aquela


referente ao nível de infecção de HIV por conta das violações. Sarah (1999, p. 396)
aponta para evidências de que, em Ruanda, homens HIV positivo violentaram mulheres
de modo a transmitir a doença propositalmente. De acordo com a UNICEF, cerca de
70% das sobreviventes de violência sexual durante o genocídio são portadoras do vírus
HIV, as quais muitas não tinham acesso a informações e nem a um sistema de saúde de
qualidade.

Além disso, os números de gravidez indesejadas decorrentes dessas violações


sexuais foram bastante significativos, tendo em vista que que nasceram mais de 10.000
crianças durante o genocídio por conta de “impregnação forçada” segundo grupos de
apoio às vítimas (WAX, 2004). Ademais, muitas das mulheres grávidas foram
renegadas por suas famílias e comunidades, diversas morreram ao abortarem
ilegalmente e várias outras abandonaram as crianças recém-nascidas por não poderem
lidar com a constante lembrança do estupro

Contudo, apesar de essas questões impactarem profundamente a população


ruandesa, poucas são ações de reparação por parte do Estado. A organização African
Rights5 aponta que as políticas públicas, assim como os programas de ajuda
internacional, não alocam recursos de forma a lidar com os problemas enfrentados pelas
mulheres ruandesas que sobreviveram aos diversos casos de violência sexual. Tal
negligência está intimamente ligada ao fato de não haverem intensos debates pela
comunidade, fazendo muitas mulheres se calarem em relação às violências sofridas e, de
certa forma, permitindo essa ausência de reparo por parte do Estado. Faz-se necessário
ressaltar que a questão não é uma falta de reconhecimento do governo sobre os horrores
do genocídio e o que ocorreu foi omissão por parte do Estado acerca dessas mulheres
violentadas.

5
Rodrigues, Bárbara Santolin. "O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA
RUANDA E A PROTEÇÃO DE MULHERES VÍTIMAS DO GENOCÍDIO."

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