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Historicamente, a violência sexual nos conflitos armados foi vista como uma
consequência inevitável das guerras. Há relatos do seu uso como estratégia bélica em
textos históricos, a exemplo do Antigo Testamento da Bíblia² 1. Além disso, durante a
Idade Média, esse ato era estimulado pela crença de que aumentava a determinação dos
soldados em vencer as batalhas. Como exemplos expressivos e recentes do uso da
violência sexual como estratégia de guerra, pode-se citar os casos o genocídio em
Ruanda (1994), o qual será abordado ao longo desse artigo. Contudo, é importante
salutar que em matéria de Direito, essa repugnante prática somente teve ínfimo destaque
no Código Lieber², promulgado em 1863, visando estabelecer limites para a atuação dos
saldados durante a Guerra Civil norte-americana, esse foi o primeiro documento a não
apenas citar, mas também proibir expressamente o estupro em tais situações.
Entretanto, diversos debates foram realizados ao longo dos anos acerca de que a
violência sexual não é inevitável nos conflitos armados e que esta precisa ser combatida,
visto que são atos os quais desmoralizam e humilham as suas vítimas, além disso podem
prolongar os conflitos entre as partes que se opõem. Outro aspecto relevante são os
impactos que podem afetar as suas famílias e a sociedade onde as vítimas habitam,
tendo em vista os efeitos psicológicos que a vítima pode ter, por exemplo depressões e
síndrome de pânico. Outrossim, os efeitos poderão prolongar-se biologicamente nas
vítimas, a exemplo da gravidez das vítimas, contração de doenças sexualmente
transmissíveis ou, ainda, por terem ficado estéreis devido aos maus-tratos durante os
atos de violência sexual.
2
Penachioni, Júlia Battistuzzi. "Violência sexual em conflitos armados e em ataques
generalizados ou sistemáticos: a criminalização pelo Tribunal Penal Internacional."
(2017).
De acordo com a diretora do Fundo para Mulheres Congolesas na República
Democrática do Congo, Julienne Lusenge um centro médico na cidade de Burnia, na
província oriental de Itur, local de conflito armado, somente em fevereiro de 2019,
foram recebidas em uma semana 28 crianças “vítimas de violência sexual sérias.
Lusenge contou como sua equipe recebe mulheres, escravas sexuais de vários grupos
armados, além de mulheres que sofrem com “casamentos forçados, partos forçados,
violência física, econômica e tratamentos desumanos e degradantes.” Além disso, em
fevereiro de 2019, o presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Peter
Maurer, alertou que o mundo enfrenta uma falha grave de proteção em relação ao
aumento da violência sexual em conflitos. Ao fazer um apelo por US$ 27 milhões para
financiar uma resposta melhor ao problema em 14 países, Maurer descreveu os danos
permanentes causados pelo uso da violência sexual e com base de gênero, usadas como
tática de guerra para desumanizar as vítimas e desestabilizar comunidades3.
3
NEWS ONU, Apelo da Onu e da Cruz Vermelha quer combater uso da violência
sexual como tática de guerra. 25,fevereiro,2019.
A população de Ruanda era formada majoritariamente por hutus, tutsis e
minoritariamente por twas (pigmeus), representando cada um, respectivamente 85, 14 e
1% da população do país (GOUREVITCH, 2006 apud FUSINATO, 2014, p. 25).
Entretanto, esta divisão era bastante fluida e foi estabelecida de acordo com a posição
social ocupada por cada grupo ao longo dos séculos. Ainda que dividida, a sociedade
era bastante mesclada, havendo tutsis e hutus na mesma linhagem familiar e ambos
dividindo a mesma cultura, idioma e religião. Os chefes, chamados mwamis eram
considerados divindades absolutas, e o posto já havia sido ocupado por ambos tutsis e
hutus. Apesar disso, a sociedade era dividida por castas, sendo os hutus agricultores e
submissos aos tutsis, que eram criadores de gado.
Outro aspecto relevante que estimulava a violência sexual era a crença de que
mulheres Tutsis seriam sexualmente superiores do que as Hutus. Tal ideia era
perpetuada pelas questões culturais que não permitiam que mulheres Tutsis se casassem
com homens Hutus. Dessa forma, as milícias se utilizavam da violência sexual como
forma de humilhar as comunidades rivais.
E os estupros. Ninguém queria falar sobre esse assunto. Ninguém podia falar
sobre esse assunto. Não existia nenhuma brecha nos costumes que permitisse
enfrentar essa catástrofe que perturbava as famílias. Antigamente, em
Ruanda, se uma moça engravidasse antes do casamento, escondiam-na [...].
Não era tanto uma reprovação moral que recaía sobre a infeliz, mas um medo
de que a transgressão das regras que garantiam o bom andamento da
sociedade pudesse lançar sobre a família, e toda a comunidade, uma série de
calamidades que atingiriam tanto a fertilidade das plantações quanto a
fecundidade das mulheres e das vacas [...].
Mas o que fazer com esses costumes quando suas filhas são vítimas dos
jovens do partido único que aprenderam que o estupro de moças tutsis é um
ato revolucionário, um direito adquirido pelo povo majoritário? Quem
suportará o peso esmagador da desgraça que, em vão, se tenta esconder: a
menina-mãe, que se torna uma maldição viva, de quem todos querem fugir e
que afunda na solidão do desespero? A família que fica remoendo o remorso
de não ter podido proteger os seus e que se vê posta de lado, por prudência,
por todo o vilarejo? E quais desgraças trará esse filho, filho nascido de tanto
ódio? (MUKASONGA, 2017, p. 149 e 150)”
5
Rodrigues, Bárbara Santolin. "O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA
RUANDA E A PROTEÇÃO DE MULHERES VÍTIMAS DO GENOCÍDIO."