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Wilson Martins aquela sentenca do grande francés: “Diseur de bon mot, mauvais caractére Nisco esté todo o cariter de José Verissimo como homem e como eseritor: ode alguém que sempre resistiu a ser um “diseur de bons mots”. Daf a seriedade hierdtica de seus escritos, a sua absoluta auséneia de humor, o que, alids, ndo eliminava a ironia, ¢ também a frieza com que se defendia de todos os excessos emocionais de seu povo; daf a sua fasci- nagao pelos homens que representavam alguma coisa de “europeu”, isto &, de polido, equilibrado, culto € superior. No momento em que Ihe encontramos 0 primeiro livro e em que inicia a carreira em que se iria distinguir como 0 nosso maior eritico literdrio do séeulo XIX, nio serd despropositado passar-Ihe em revista as declaragdes de prinefpio mais caracteristicas. Escrevendo sobre Um Estadista do Império, elogiou Joaquim Nabuco por ter sabido sair-se das dificuldades do seu tema “com a cor- regdo de um homem de bom gosto e bem-edueado, de umhonnéte homme, como chamavam os franceses do século XVII”. No estilo de Nabueo, por sua vez, admirava a forma literéria “pela estrutura e pela corregao, elegante sem atavios, s6bria sem obscuridade, elogiiente sem énfase, simples ¢ natural sem banalidade”." Acima, pois, das superioridades ostensivas, mas, talyez, enganadoras, do brilho das cores, do aparato, Verfssimo prezava a honestidade e o eseripulo, virludes obscuras mas genuinas; como ele mesmo diria, “hé alguma coisa que vale mais que o talento, o estilo, as galas e louganias da forma e ainda do fundb literério, "=" Cartas © gente Nova, p. 187, O “grande fanets” no € La Rochefoucauk, mas Pascal Peds, section I, ps 428 do ww.) © a frase exata €: “Discur de bons mots, mauvais carsctre”,o que La Rechefoucauld alo escrevera certamente jamais, "9 Baud de Liteatra Brasilia, Ip. 13/141. 0 mesmo goto pelo equiliio pela austria {Bo exrever que “o tefinamento das remacies, como oda linguage, a dos iniiados prep poderiafrgar naa admiragio de tert, mas no conqustaia son estima de home (ob. eit, p 258). (0 ue erplicn em grande parte nua relative icompreenso da posi, em geal © do simboliao em parila. 201 A Critica Literdria no Brasil a probidade intelectual sera porventura melhor indicado para se conhecer a natureza de Verissimo —sua atitude era de desconfianga, a de quem sentia “um gozo de litera to, niio de homem, em que o espirito, no que ele tem de melhor e de mi Y Perante D’Annunzio—e nenhum reagente nobre, quase nao tem parte, se alguma tem”. O escritor italiano, precisa mente, oferecia-lhe uma forma de maravilhosa plasticidade, com todos os seus encantos musicais, na sua voluptuosidade harmoniosa, no seu co- lorido dos mestres venezianos, a maneira rebuscada, desnatural, intemperante de todos os artistas da decadén- cia, em que a demasia dos ornatos, o exagero dos epitetos, a procura dos efeitos verbais, a coloragdo violenta, 0 abu- sodas comparagées, das imagens e das metdforas, a novi- dade, mais que a verdade dos conceitos, qualidades todas, porém, ¢ a restrigdo é elucidativa, que substitufam “a corregao, a pureza, a sobriedade, a discrig&o, a simplicidade, sem exclu- sdo da forga e da graca, da elogtiéneia e da poesia, dos mestres da litera- tura e da arte”. Numa literatura que, no seu tempo menos ainda do que hoje, pou- co Ihe poderia oferecer como exemplares aristocr simismo de Verfssimo a sua comovente, ainda que malograda, tentativa de atingir ele mesmo as qualidades que mais admirava. Nao por defici- 108, explica-se 0 pes- éncia, conseqiientemen foi ele “seco” ¢ “magro”, mas por voluntério despojamento, assim como os eremitas so miserdveis por terem renun- ciado as riquezas. E certo que vai um abismo entre as suas intengies ¢ arealizagio, e, quanto a isso, foi péssimo artista, Frases como esta: "5 Homens« Coins Extrangeiras, I, p. 397. “A nda coscitncia das responsabilidad, quem declan 6 0 Se Ramix Galo, abara nee impos de senibiidde,davethe a aparéncia de uma gid placa, que de uo cle nha seo para ax grandes hts da vids” Frninco Prisco, Jud Vertasime, p79), "Ob eit 202 ‘Wilson Martins Alids a cheville, como a este pobre recurso chamam os franceses ou 0 bordéo, como the chamamos nés, abun- da sio infelizmente mais comuns em sua obra do que seria para desejar. é, entretanto, um mau ponto de comparacao ‘ia de sua obra. Pois Essa rusticidade estilistic quando tomada como medida para julgar a substan ‘os mesmos motivos que o levaram a buscar o equilibrio e a seriedade, 0 respeito de si proprio e a elegancia, conduziram-no a eritérios extrema- ‘mente sos e modemnos em literatura os seus julgamentos, quase todos singularmente atuais, sempre se guiaram pelas trés idéias assinaladas por Elisio de Carvalho. Foi o primeiro dos nossos c obstinadamente as medidas pessoais de julgamento, os argumentos ad hominem ¢ a influéncia dos sentimentos emocionais na eritica. Os que que recusaram hoje voltarem com seriedade a seus livros vero que disse singelamente h4 muitos anos a maior parte do que hoje avangamos orgulhosamente como novidades. José Verissimo faria parte do grupo da Revista Brasileira, a segun- da desse nome, fundada e dirigida por Nicolau Midosi (1838-1889) e que circulou de 1879 a 1881. Este diltimo escrevia, no artigo de apre- sentagdo, em junho de 1879: 0 povo brasileiro — nao é sem mdgoa que o dizemos — posto que deva desempenhar em perfodo talvez no muito remoto papel importante no teatro do mundo, ndo est ainda preparado para consumir o livro, substancial ali- ‘mento das organizagées viris e fortemente caracterizadas. Faltam-lhe as condigoes de gosto, instrugéo, meios, sau- divel direcdo de esptrito, sem as quais nao se pode cum- prira livre obrigagdo que equipara o artesao ao capitalis- ta, 0 operdrio ao literato, o pobre ao miliondrio —a de (0 Radon de Literature Bria Lp 286, 203 A Critica Literdria no Brasil comprar, ler e entender verdades ou idéias coligidas em um volume, cuja leitura demanda largo folego e cujo es- tudo requer tempo de que 0 povo em geral néio dispée. O novo érgio, dizia ele, destinava-se a ocupar a posigdo interme- jéria entre o livro e 0 jomal; apesar do seu pessimismo, alids, pouco substaneiado pelos fatos, a Revista Brasileira foi, na época, 0 melhor instrumento de nossa vida intelectual, com «ue no se podem comparar os demais periédicos do momento. O nome da Revista Brasileira no encobria nenhum programa deliberado de nacionalismo literdrio; até pelo contrario, se considerarmos que o primeiro artigo é um elogio a Latino Coelho, a propésito da sua tradugao da Oragdo da Coroa, ¢ que a novela Sacrificio, de Franklin Tévora, publieada em capftulos, inieia-se com esta evocagio das Viagens na Minha Terra: “Todas as vezes que passo pela estrada de Joao de Barros, no Recife, acode-me A meméria 0 vale de Santarém, onde Garrett deu vida e movimento A ‘Menina dos rouxindis’ (.)" Duraria pouco, entretanto, a lua-de-mel luso-brasileira a que se dispunha a Revista Brasileira. O aparecimento em Portugal do Cancio- neiro Alegre, de Camilo Castelo Branco (1825-1890), revelando mais uma vez 0 conceito depreciativo em que os escritores lusitanos tinham os seus colegas do Brasil, vai desencadear éspera polémica transatlantica e agravar ainda mais as animosidades provocadas por Ega de Queirés Ramalho Ortigao. ‘Tudo comegou por causa destas palavras de Camilo a respeito de Fagundes Varela (que ele trata sistematicamente de “Fagundes”): Os apreciadores portugueses da lira brasileira distinguem com especial louvor Fagundes. E bastantemente citado este paulista, e tao lido cd, ao que parece, que a especula- ao 0 reimprimiu no Porto em 1875, reproduzindo-lhe 0 preficio de 1861. | O autor, querendo bem graduar a fu- tilidade da poesia e atenuar a ousadia de dar & estampa, a instdncia de amigos, pergunta: “Qual é 0 estadista, 0 204 Wilson Martins homem de negécios que néo se sentiu alguma vez na vida poeta, que aos ouvidos de uma pélida Madalena ou Julieta, esquecendo-se dos algarismos e da estatistica, nao se lembrou que haviam brisas e passarinhos, ilusdes ¢ de- vaneios? E gramética. Também seria bom lembrar-se aos ouvidos das Madalenas e Julietas, que havia regras para o verbo haver, além de brisas para refrigério da epiderme, e passarinhos para deleite dos ouvidos. Em poesia, um sabid ndo substitui a sintaxe, e as flores do ingé que recendem no jequitibé nao disfarcam a corcova dum solecismo. Encarregado da “Cronica literdria” da Revista, Carlos de Lact (1847-1927) assinalou, com exemplos precisos, que a prosa eamiliana tampouco estava isenta de solecismos, terminando por sublinhar que 0 episédio era apenas mais um exemplo da arrogiincia lusitana com rela- cio a0 Brasil: Seja porém como for, 0 certo é que o Sr. Camilo Castelo Branco nutre, como boa parte dos seus compatriotas, gran- de cépia de preconceitos relativos d literatura e modo de viver brasileiros. Um lugarzinho na escala do seu apreco entre 0 matuto bogal e 0 adiposo comendador que thes reenviamos — eis 0 que nos concedem aqueles senhores hide Carlos de Lact, mais tarde famoso como representante do pensa- mento catélico, havia iniciado a carreira jornalistica em 1876, no Didrio do Rio de Janeiro, onde permaneceu até 1878, quando passou a es- crever para O Cruzeiro e o Jornal do Comércio (até 1888), af continuan- do a polémica com Camilo, que se estende pelo ano afora com a partici: 0% Joma nanciado por capitan protestant, com revelow Davi Guciron Vicia (lO Prteantis mmo, a Magara € a Questo Religie no Bra, p. 22). 205 A Critica Literdria no Brasil pagao de outros gladiadores; o panfletério portugués, de seu lado, res- pondia-Ihe nos Ecos Humoristicos do Minko, e nio gostou nada das li- que assim Ihe chegavam do ultramar: gies de gramat s senhores escritores brasileiros”, retrucava ele, “que me enviam prelegies de li guagem portuguesa se me quiserem obsequiar dum modo mais signific tivo e proveitoso, mandem-me um papagaio, uma cotia e alguns frascos nga. Quanto a linguagem, muito obrigado, mas nao se incomo- de pi dem”. Contudo, ele andava mais necessitado do que parecia imaginar, porque, além de outros exemplos de discutivel purismo e corregio colhi- dos na sua obra por Carlos de Laet, ocorria justamente um escandaloso houveram coisas terréveis na sua tradugio do Romance dum Rapaz Pobre. Camilo defendeu-se com argumentos contraditérios: tratava-se de um lade nfo The eabi erro do revisor, cuja responsabi 3 @, se assim no fosse, hi, nos eldssicos da lingua, varias passagens com aquela flexi. Ao que, bem entendido, Carlos de Laet observava: Muito para notar 6 igualmente a contradigiio em que cai 0 Sr. Castelo Branco com relagio ao emprego do seu hou- veram homens. £ solecismo bestial de um revisor de pro- vas, diz 8. S.; mas depois comeca a trazer atenwantes, como se tratasse de escusar delito préprio, e vai pedir a uns clds- sicos uns retalhos de construgées erradas; os cldssicos pres- tam-se complacentemente, eat temos o Sr. Castelo Branco a catalogar cincadas (ou erros de imprensa) do veneran- do Francisco Manuel do Nascimento, e mais de Francisco Dias Gomes e ainda do sébio Monsenhor Ferreira Gordo. Todos esses varées, como se apurou de recente indagagdo do sr. Camilo, fizeram concordar 0 verbo haver com 0 pseudo sujeito plural... Deus thes perdoe! mas enfim, se eles estavam no certo, 0 que disto posso concluir néo é favorével ao compilador do Cancioneito Alegre, visto como jé nao vejo razio que o induzisse a criticar tao acerbadamente ao Varela um engano que, podendo ser 206 Wilson Martins também erro tipogréfico, quando 0 ndo fosse, tinha por si 0 respeitabilissimo exemplo dos Filintos, Dias Gomes e Rerreira Cordos. ‘Tudo isso, conclufa Laet com causticante ironia, fazia-o duvidar das regras do verbo haver, assim como hi os que duvidam da existéncia de Det gramatical, generalizou-se com a pasticipagio de outros polemistas, um . A discussio, como ficou dito, em fulgurante exemplo de critica deles, alids, de nacionalidade portuguesa: Gaspar da Silva (pseudénimo de Boaventura da Costa), que fez imprimir as 15 piginas da Carta dum Emigrado ao Sr. Camilo Castello Branco a Propésito do Cancioneiro Ale- «gre; outro, foi Artur Barreiros (1856-1885), com o folheto O Cancioneiro Alegre de C. Castelo Branco. Para dar uma idéia do tom e dos métodos polémicos de Camilo, eis o que ele escrevia a propésito deste diltimo: Este sujeito escreve-me que tem uma excelente bengala de Petrépolis com a qual me baterd, se eu for ao Brasil admi- rar as cérebros de tapioca. O mulato estava a brincar; eles tém a debilidade escangathada do sangue espiirio, escorrido das podridaes das velhas colénias que de lé trou- xeram a Europa a gafaria corrosiva; as vezes excitam-se bastantemente com cerveja ordindria, tém entdo tmpetos imoderados, dao guinchos, fazem caretas, cocam as bar- rigas, exigem banana, cabriolam se thes atiram anands ¢ nao fazem mal a gente branca. (..) Entao o senhor real- ‘mente faz uso do pau? Isto, no Arthur, é chalaga: ele e os seus patricios usam do pau, mas &em farinha. Nao batem ymem-no. Farinha de pau 6 0 que eles tém no eérebro e nos ossos. A Tomas Filho, que também concorreu com as suas oito paginas, dizia ele: “Comega logo por mentir no apelido. Filho! Quer-me parecer que ele nao tem pai”. Sugere-Ihe mudar o nome para Tomés Filhé, por- 207 ‘A Critica Literdria no Brasil mado, jé ninguém Ihe pergunta se tem pai, nem Ihe acres centa ao apelido o genitivo da qualidade materna” Era assim que se discutiam as questies literérias em Portugal e no Brasil; desaforos & parte, a maior cépia dessas polémicas atava-se a0 redor de minGcias gramaticais sem qualquer importaneia, como as que mais tarde opuseram o mesmo Carlos de Laet a Rui Barbosa, a Joxo Ribeiro, a Castro Lopes, a Araripe Jtinior, a Alfredo Gomes. Como es- crevia 0 primeiro, os “eldssicos” prestam-se complacentemente a tudo: nada o demonstraria melhor do que 0 famoso debate de 1902 entre Rui Barbosa e Emesto Cameiro Ribeiro, a respeito da redacao do Cédigo Civil; este 6 10, precisamente, publicou em 1879 a Gramatica Portu- _guesa Filosdfica, que surgiu simultaneamente com 0 Idioma Hodierno de Portugal, comparado com o do Brasil, dois volumes de José Jorge Paranhos da Silva (1839- ? ). Enquanto isso, 0s concursos para a cadeira de Retérica, Poética e iteratura Nacional do Colégio Pedro Il atrairam Artur de Oliveira e Carlos Ferreira Franga, que mandaram imprimir as suas teses em 1879; no Re- cife, safram as Vigilias Literdrias, de Clovis Beviléqua (1859-1944) e José Isidoro Martins Jiinior (1860-1904) A renovagdo literdria A ARROGANCIA INGENUA de Silvio Romero, provincianamente des- Iumbrado com o conhecimento de alguns livros estrangeitos, conseguiu langar o descrédito e 0 ridfeulo sobre a idéia da “renovagao literdria entre nbs”; ido, nao & menos certo que ele refletia, mais do que provocava, 0 sentimento coletivo de que a eritica brasileira estava entio passando por um process modernizador, sob o signo geral do eriticismo contemporain Nessas perspectivas, podemos tomar-lhe o Brasileira e a Critica Moderna (1880) como o livro paradigmatico desse novo estado de espirito. Trata-se, esclarecia ele, de “trabalhos escritos publicados para acorrer As necessidades da colaboragao jornalistica, durante oito anos (1869-1876), que vivi em Pernambuco”. Escritos entre 208 Wilson Martins 08 18 € 08 25 anos, era essa uma eircunstaneia atenuante em nome da qual pedia a benevoléncia do leitor; isso, de resto, em nada the dimi- nufa, antes aumentava, a alegre confia ma radical em nosso pensamento critico. Ja registrei anteriormente o que dizia com respeito a este tiltimo; que propunha uma refor- no que se referia ao carster da literatura brasileira naquele momento, ele assinalava que “hoje a febre é de seguir a Victor Hugo”; outro “fato caracteristico dos diltimos tempos” era que haviamos deixado “definiti- vamente de lado a inteligéncia portugues cia, comemorava-se em 1880 o tricentendrio da morte de Camées, dando ugar, em todo o pafs, a fervorosas solenidades literdrias e efvicas. O ida no Rio de Janeiro ”. Ora, por irénica coineidé simbolo de todas elas pode ser a ceriménia pron pelo Gabinete Portugués de Leitura, na qual, em presenga do Imperador, coube a Joaquim Nabuco proferir a oragao oficial. Essa ret nas uma parte do programa: as outras, consistiram numa edigio especial dos Lusiadas ¢ no assentamento da pedra fundamental da biblioteca que, desde a conclu: ficio, em 1888, privilegiados de nossa vida intelectual Forgando a nota e introduzindo no seu belo discurso um epigrama inyoluntério, Joaquim Nabuco sustentava que, fazendo o descobrimento iio foi ape~ do ed sm sido um dos pontos do Brasil parte do conjunto histérico das descobertas maritimas eelebra- das por Camées, Os Lusfadas também “nos pertencem um pouco” —se esquecermos 0 pormenor insignificante de que a descoberta do Brasil ‘mal chega a ser men crever a vida de Camées com base nos elementos mais ou menos jonada no poema. orador demorou-se em des- fantasiosos de que volos para que Os Luséadas fossem impressos e “distribuidos generosa~ mente pelas escolas, para serem lidos, decorados ¢ comentados pela da época, ¢ terminava formulando mocidade”: Nao é um livro que torne ninguém Portugués, é um livro que torna todos patriotas; que ensina muita coisa numa idade em que esto sendo langados no menino os alicerces do homem: que faz cada um amar a pétria, ndo para ser 209 A Critica Literdria no Brasil nela 0 eseravo, mas o eidadao, nao para adular-the os defeitos, mas para dizer com dogura a verdade, Nele se aprende que os prinetpios e as sentimentos devem ser os uisculos, endo somente os nervos da vida; que a existén- cia do homem se alarga pela sua wtilidade exterior, e, em vez de girar o mundo em torno de nés, como no sistema de Prolomeu, devemos nds girar em torno do mundo, como no de Copémico. Na peroragio, Nabuco afirmava que Portugal podia desaparecer, “submergido pela vaga européia” e que o Brasil podia “deixar de ser uma nagio latina”; Os Lusfadas sobreviveriam como monumento impe- recfvel a todas as vicissitudes e catdstrofes nacion No Recife, a oragao oficial do Gabinete Portugués de Leitura foi pronunciada por Clévis Beviléqua, cabendo a Afonso Celso organizar tum volume sobre 0 Centendrio de Camées em Pernambuco (impresso no Porto); na mesma cidade, saiuo volume coletivo Pernambuco a Camées, com artigos e poemas de varios autores. No Paré, foram também reuni- dos em volume os Discursos e Poesias “recitados na celebragao do tercei- ro centenério da morte de Lufs Vaz de Cam@es, em 10 de junho de 1880, no saldo da Escola Pritica”; no Rio de Janeiro, a Revista Brasileira, 0 Joral do Comércio ¢ a Gazeta de Noticias tiraram edigées especiais co- memorativas. Jofo Cardoso de Meneses ¢ Sousa (1827-1915), Bardo de Paranapiacaba, publicou a Camoniana Brasileira, explicando varios episédios dos Lusiadas em metrificagao variada; O Centendrio de Camoes no Brasil foi 0 titulo dado por Reinaldo Carlos Montoro aos “estudos comparativos” entre Portugal em 1580 e o Brasil em 1880; Figueiredo Magalhdes veio com os “reparos eriticos” Camdes ¢ os Portugueses no Brasil, mas Joaquim de Paula Sousa fazia imprimir em Sao Paulo as 35, paiginas da Homenagem de um Brasileiro ao Grande Representante da nacionalidade Portuguesa, Luis de Camdes, saindo ao mesmo tempo em Lisboa Camaes ¢ 0 Séeulo XIX, de Hugo Leal (1857-1883). Coroando 210 Wilson Martins todo o episédio, Alfredo do Vale Cabral (1851-1894) organizou a Biblio- grafia Camoniana, “resenha eronolégiea das edigGes das obras de Luis de Cam@es, ¢ de suas tradugies impressas, tanto umas eomo outras, em separado”. E inegdvel que as comemoragées camonianas tinham um aspecto de reagao contra o declinio da influéncia intelectual portuguesa, que incidentes como 0 das Farpas"® e do Cancioneiro Alegre em nada con- corriam para amenizar. As comemoragées camonianas eram 0 anverso. do “balango” que Silvie Romero desejava realizar em A Literatura Bra- sileira ¢ a Critica Moderna, com a finalidade de saber “o que fomos” para indicar “o que devemos fazer na hora atual”: “Ha na vida das nagies certos momentos dle caréter pritico, em que elas como que fazem alto na tarefa que seu génio hes tragou, para prepararem o balango dos resultados obtidos, das riquezas acumuladas”. Os resultados obtidos, as riquezas acumuladas sob a dominagio portuguesa ¢ sua influéneia persistente pareciam &s novas geragBes ma- gros e decepcionantes; daf a procura de uma “compensagio” fulminan- te que, ndo apenas permitisse recuperar o tempo perdido, mas, ainda, apagasse o passaclo, Esse 6, como observou finamente Gilberto Freyre, 0 sentido simbélico do “germanismo”: = 0 germanismo fandtico de Tobias Barreto [era] uma espécie de vinganca de mulato contra brancos brasileiros em particular, e latinos, em geral, que eram aqueles cujo contacto direto teria trazido ao sergipano maior niimero de ressentimentos: exaltando os brancos, a seu ver branquissimos, completos, perfeitos, da Alemanha, ¢ con- siderando, junto deles, inferiores brancos a seu ver, imper- Lfeitos, da Europa latina e do Brasil, Tobias como que se compensava do fato de ndo ser branco simplesmente lati- "5 Historia por Pasko Cavekont om Ege de Ques Agitador mo Bra (1959) au A Critica Literdria no Brasil no ou apenas brasileiro. Mais ainda: pelo conhecimento da lingua e das letras germanicas incorporava-se de al- gum modo aos délicos-louros — estes sim, brancos perfe tos. No plano da hist6ria intelectual e das idéias erfticas, era processo que, no testemunho de Romero, havia comegado cerea de dez ‘anos antes: Foi entéo, foi em 1870, que Tobias Barreto se decidiu pe- los germénicos. Com aquele ardor que ele punha em tudo, com aquela enorme facilidade de aprender que o distin- guia, entrou na loja de livros de Laillacard, no Recife, & rua do Imperador, comprow um diciondrio e uma gramé- tica alemiies, ¢ pedi ao livreiro que the mandasse buscar na Europa a Geschichte des Volkes Israel de Ewald. Foiesteo primeiro livro alemido que o poeta sergipano pos- Quanto a ele priprio, Romero antecipava para o perfodo de 1863 1868, “antes de conhecermos Tobias”, os seus primeiros contactos |, mostrando-se assim coerente com o que afi maria mais tarde, isto 6, que, em matéria de critica literdria, nada devia a ‘Tobias Barreto, o qual, de qualquer maneira, observava com justeza, jamais chegou de fato a praticé-la.™ No mesmo ano de 1880 em que Romero estreava com o primeiro volume do que se destinava a ser uma longa bibliografia, procurando evidenciar, ao mesmo tempo, a organicidade do seu pensamento e lan- gando as rafzes de uma futura hist6ria da literatura brasileira, Leri dos Santos ( 7 - ? ), seguindo 0 modelo proposto por Anténio Henriques com a cultura germéni "Pref av Didi Fimo, de Lina Baneto, p13 (Tada tion ria de Tobias Dale folrenida num pequenevolune deste tle, pubicde 1978 pels pores ce Set 212 Wilson Martins Leal, publicou no Rio os “esbogos biograficos” do Pantheon Fluminen- se. Simultaneamente, como Silva Jardim (1860-1891) houvesse feito referéncias desprimorosas ao movimento literdrio da Faculdade de Direi- tode Sao Paulo ema Gente do Mosteiro, dois campedes sairam em defesa dos brios académicos, Manuel Alvaro de Sousa Sé Viana ( ? -?), com os Esbogos Criticos da Faculdade de Direito de S. Paulo em 1879,¢ Fernando Mendes ( ?- ? ), com Estudos de Critica, ambos impressos na tipografia do Brasil Cauélico. Este diltimo d ia que, ao contrério, a Academia de Sao Paulo esta- ” em toda a sua hist6- va passando por uma “época das mais brilhant ria, estudando, na II parte do volume, as “personalidades académicas” que se haviam destacado na literatura, como, por exemplo, Afonso Celso Jiinior, Tedfilo Dias e Valentim Magalhies. Este, “vive embriagado pelas idéias modernas, roncando contra o obscurantismo, a inguisigao, os reis € os padres e seduzido pela casta idéia — a liberdade”, o que revela a intensidade das lutas clerieais e politicas do momento. Fernando Men- des referia-se, ainda, as obras de Brasil Silvado, Assis Brasil, Pelino Guedes, Filinto Bastos, Vieira da Cunha, Oscar Pederneiras, Randolfo Fabrino, além das poesias avulsas ce muitos outros. Quanto a Raimundo i muito dos versos de Raimundo Correia, As vezes parece-me 0 autor muito imbu‘do do estilo de Casimiro de Abreu, muito lamentoso, muito chordo (...)”. Por suas conotagdes histéricas, merece transcrigdo mais extensiva 0 que dizia sobre a c Nem sempre durante a longa vida literéria da Academia de 8, Paulo, a critica jornalistica assumiu proporcoes tao francas e posigies tao definidas como desde 1877. Dr. Carlos Franca foi um dos que deu vida nova a criti- a, fazendo-a sair do terreno rotineiro das lisonjas ou des- ‘composturas. A Consciéneia, um dos drgdas das rapazes inteligentes de ‘entdo, foi ojornal em que Carlos Franca publicou as suas criticas, onde, a par de um estilo de primeira ordem, reve- lou uma vocagao critica verdadeiramente invejével. (..) 213 A Critica Literdria no Brasil Nao se pode negara Silva Jardim um dos primeiros luga- res na critica em 1879, Nao sé cronologicamente falan- do, decerto eabe-the essa posigdo, mas também pelo méri- to dos seus estudos tem ele um lugar nos primeiros planos. A Gente do Mosteiro foi um ensaio de critica do movi- mento académico em 1878 que Jardim atirou a acade- mia, com audécia desculpével pelo desejo enorme de cele- bridacde que the fervia no cérebro. Aeritica que nesse folheto Silva Jardim escreveu é por de- ‘mais ferina, ¢ pelo desejo de excessiva franqueza, seu au- tor tornou-se quase um maleriado. Verdades ele as disse, no hd dtivida, Descarnou muito tdolo—ovo, sem gran- de valor, cheio de muito ouropel; mas podia fazé-lo com linguagem mais decente, mais académica, mais erista Porém as vezes foi injustoe injusto de um atrevimento des- comunal. Nao me parece ser preciso usar de termos im- préprios e cothidos em rocabulérios da chocarrice, ou do insulto, para poder destruir uma reputagdo, mesmo que se a julgue inabalével. Foi a grande mancha do folheto de Jardim e que the des- lustrou a pureza da critica, que bem podia ser perfeita, a ndo aparecer aquele terrivel sendo. Mas, além dos beneficios que na primeira parte deste tra~ balho apontei, produzidos pela Gente do Mosteiro, no- tow-se mais um. A franqueza na critica tomou a aparecer, ‘mesmo porque era imposstvel dizer-se mais do que disse Jardim. Jardim continuou a sua vida de critico, escrevendo na ‘Tribuna Liberal. Aindo brilhou, porque serviu-se das colunas da folha para atirar pedradas em quanto poeta infeliz ou folhetinista novel aparecesse nas folhas académicas. Era de uma impiedade cruenta, Mais de uma vez os prelos gemeram 214 Wilson Martins com tremendas represélias ao ceritico que as digeria em siléncio e, talvez, alegremente, Julgo que a 8. Jardim se deve, como disse acima, a posi- do brithante que a critica assumiu em 1879. E creio ter raza. Nas folhas académicas, todas as produgdes dos colegas foram dissecadas euidadosamente e na critica distingui- ram-se a Evolugio, a Reagao e o Constitucional. Na Evolugio os eriticas eram Assis Brasil, Pda Costa e J. de Castithos, revezando-se. Coube a Brasil a primazia. Suas eriticas eram delicadas, cheias de bons conceitos e de bom senso analitico. Nao ofendia, ao menos volunta- riamente. Tinka a Evolugao porém um defeito que mais tarde vere- ‘ional: os eriticas, em anali- ‘mos na Reagioe no Const sando trabalho de correligiondrios, davam sempre uma amostra de parcialidade... As criticas da Reagio eram da lavra de Rafael Correia. Rafael analisava primeiro a gramiticae era inflextvel para com 0 menor erro nesse ramo. Brguia a férula feita em Araraquara e polida em Itu, ¢ descarregava sobre 0 pobre eseritor, a quem nem ao menos era dado replicar.(..) As do Constitucional eram feitas pelo redator-chefe e ti- ham wn caractertstico especial. | Seu autor era inflextvel para com os livros anticonservadores. Onde quer que se descobrisse sinal de revoluedo, 0 Constitucional levanta- ra 0 véue prevenia os correligiondrios contra o artigo ou Livro em questao. Apareceram alguns ensaios de erttica dispersos aqui e aco- Ud, Entre outros notaremos as firmadas por Aleides Lima, Randolfo Fabrino e Felicio dos Santos, além de uma and- nima atribuida a Sé Viana. | Alcides Lima é um dos belos talentos que muito prometem. Pena € que, como Felicio dos Santos, ndo se dediquem a defesa das boas idéias. 215 A Critica Literdria no Brasil Mas, apesar de transviados [leia-se: republicanos], 0 fogo sagrado ndo deixou de animé-los. / As eriticas de Alcides ¢ Felicio eram sensatas e bem eseritas. As de R. Fabrino cheias de amenidade e brandura, ainda que nao demasi- ado benevolente, mantendo uma justa eqitidade. A atribuida a Sé Viana e publicada no Constitucional no era mal feita, Revelava apenas alguma hesitagdo, a hesitagdo de uma estréia e pouca pritica do género. Se hesitagio e inexps ncia havia, nao as demonstrou $4 Viana nos Eshogos Criticos, que assinalavam, como producio intelectual de 1879, nove livros, um drama em cena ¢ oito jomais, dos quais apenas um, A Idéia, de natureza literéria, Era uma publieagao mensal de oito paginas ‘a duas colunas, que, escreve Sa Viana, “conseguiu chegar ao terceiro iimero”; 0 resto do jomalismo académico “foi exclusivamente politico”. Ele também refutava o volume de Silva Jardim, aparecido em fins de abril de 1879: O livro com sofreguidao esperado nao era de critica, nem ‘ao menos de cronica, era simplesmente uma lista de fatos adulterados, narrados em uma linguagem pedantesca, cheio de ornatos forgados, frutos de uma imaginagao po- bre, fraca, e portanto pouco eriadora. (...) A Faculdade de S, Paulo releu o folheto de Silva Jardim e comecou a descobrir nas paginas da obra o insulto que the era lan- ado, Felizmente o insulto, « eritica feita a semelhanga das que nos déo portugués Camilo, converteu-se em lama ¢ ficou no proprio livro. (..) Para ajuizarmos da vocagao que tem Silva Jardim pela eritica, s6 hd: uma prova—sew livro. Essa, porém, lhe é contrdria. Inimigo da gramética portuguesa, dispondo como tinico conhecimento dos escritos de Luciano Cordeiro, quer im- por-se pela energia da palavra em frases curtas, quando ainda nao se impés pela inteligéncia e muito menos pela 216 Wilson Martins ilustragao. (...) Falando do jornalismo académico faz de Ledo Bourroul um antigo calouro, apupa-o com riso de garoto, solta-the a pithéria do século — “ar batinal e fradesco”, para depois confessar, talvez pesaroso, 0 mérito do distinto jornalista catélico. (...) Tebfilo Dias, o sucessor legitimo de Gongalves Dias, 0 can- tor das matas americanas, 0 poeta na geragio presente que maior confianga nos inspira pouco mais mereceu além de uma transcrigéo. | Raimundo Correia, outro poeta dis- tinto, mereceu muito menos ¢ para completar a velocidade da noticia sobre os poetas académicos formou uma diizia ¢ riu-se depois do novo modelo de critica, onde néo se justifica a proposigéo e onde tudo € superficial como a ilustragao do improvisado Luciano Cordeiro. | Valentim Magalhées foi decerto 0 mais feli cicada, como se fosse uma vontade ma de noivos. Pude- ra. Foi entre amigos. jeve a sua critica ado- Como seria de prever, Sé Viana passa, em seguida, a criticar em Silva Jardim os erros de portugués e de francés, revelando, afinal, que 0 mével implicito da polémica era 0 conflito entre republicanos e monar- ultramontanos e liberais (o titulo de Silva Jardim quistas, entre catéli J trazia em si mesmo uma alusio irénica): Silva apregoa a liberdade de cultos e censura as erencas de Bourroul e as idéias do Cireulo Catélico, pede a liber- dade de pensamento ¢ procura abater 0 erédito de seus colegas nas “Filagranas” (sic) da Tribuna Liberal, com verdadeiros pasquins, porque receberam mal e muito mal ‘@ Gente do Mosteiro. (..) Como tiltima observacao nao deixaremos de apontar a impropriedade do titulo que es- colheu para seu livro, denominando-o — Gente do Mos- teiro. A casa onde funciona a Faculdade de Direito de S. Paulo foi de propriedade dos frades capuchinhos da or- 217 A Critica Literdria no Brasil dem de S. Francisco e portanto é convento endo mosteiro, (Os Mosteiros sao de ordens que tiveram origem no ociden- te como os monges de S. Bento que hoje estdo estabeleci- dos entre nds e ld se formaram. (..) Embora Alfredo d’Eseragnolle Taunay (1843-1899) publieasse em 1881 o primeiro volume dos Estudos Criticos, ele s6 entrara para a hist6- ria da critica literdria propriamente dita com o segundo volume, dois tarde, porque aquele era todo consagrado andlise e comen- tario da Histéria da Guerra do Pacifico, de Diego Barros Araha; em pla- no diverso, pode-se pensar que as Ligdes de Retérica, de José Maria Velho da Silva, aprovadas pelo Ministério do Império para uso nas esco- las, refletia, a essa altura, uma fase superada dos nossos estudos literdri- 6s, 0 mesmo acontecendo com o Curso de Literatura Brasileira, de Melo Morais Filho, em segunda edigdo. De fato, j estavamos no momento triunfante da Escola do Recife, marcado pelos Estudos Alemies, a revis- ta que Tobias Barreto publicou na cidade de Escada em 1881-82, ou, em plano mais largo de contexto intelectual, pela /déia Nova, fundada no Recife no ano anterior e de que s6 sairam trés niimeros. A grande revolug’ esse ano foi, por paradoxo, uma revo- lugao silenciosa, despercebida como tal pelos contempordneos e que assim permaneceria ainda por muito tempo, apesar de haver modifieado por completo a nossa visio de Castro Alves. Refiro-me, esta claro, a0 discurso de Rui Barbosa, na Bahia, durante as comemoragies do decenério, Data desse discurso, (0 dos livros até entao publicados, a gloria de Castro Alves como poeta nacional e “poeta dos escravos”, ob- servei na Histéria da Inteligéncia Brasileira (IV, 96 ¢ s.), em exata sime- tria com a parte final da campanha abolici sta: sagrado “poeta nacio- nal” por seu ilustre co-provi iano pelo fato de haver escrito poesia abolicionista, é 0 abolicionismo que esté na fonte da sua glorificagaio e nio 0 contr jo, como geralmente se pensa; além disso, Rui Barbosa propds-se a empresa herciilea de transformar em poeta cfvico um poeta alé entdo encarado como simplesmente lirieo. 218 Wilson Martins No discurso da Bahia, ele enfrentou o duplo problema de, por um lado, metamorfosear em “poeta dos escravos” um escritor em cuja obra o tema propriamente abolicionista aparece em proporgao relativamente insignificante com relag@o aos demais e, por outro lado, de apresentar com da década de 70, prolongava 0 poeta social” o vate que, no i romantismo byroniano e hugoesco mais do que antecipava a poesia rea~ lista e de combate (na verdade, é um poeta de inspiragao romntica mes- ‘mo nas composigées abolicionistas). 0 orador, como seria de esperar, saiu-se magnificamente da dificuldade, seja negando a ortodoxia roman- tica de Castro Alves, seja conduzindo sua exposiggo de maneira que @ poesia abol destaque particular, na seriago dos poemas, surgisse antes como o triun- fante ¢ espléndido coroamento de toda a obra, como o cimo refulgente ista, longe de parecer afogada e diluida, sem qualquer que ilumina as encostas por todos os lados. Sobre o primero ponto, dizia Rui Barbosa: Bem pouco valeria Castro Alves, se a estabilidade do seu nome se achasse ligada as feigdes especificas e aos transi- trios destinos dessa fase literdria a que entre nés se impri- miu o selo da influéncia e do nome de Hugo. Na sua personalidade esses nao passam, a meu ver, de tracos aci- dentais. O que faz a sua grandeza, sao essas qualidades superiores a todas as escolas, que, em todos os estados da civilizagdo, constitutram e hao de constituir, o poeta, aquele que, como 0 pai da tragédia grega, possa dedicar as suas obras “ao Tempo": sentiu a natureza; teve a inspiragdo universal ¢ humana; encarnou artisticamente nos seus ‘cantos 0 grande pensamento da sua época. Sobre o segundo aspecto, admitindo, como no podia deixar de ser, 0 cardter fragmentirio da poesia abolicionista de Castro Alves, acen- tuava o orador: 219 A Critica Literdria no Brasil Possuamo-nos, senhores, agora da alma do poeta, para penetrar nessa galeria de fragmentos admirdveis da gran- de obra, de que 0 seu escopro talhou apenas membros dispersos, mas que, néo obstante, ficard sendo no Brasil o “poema dos escravos”. Aventuraram que ele the dedicara uma parte comparativamente insignificante da sua vida. Nao é dificil, porém, demonstrar que, pelo contrério, essa idéia sempre o absorveu quase totalmente; que da sua exis- téncia ele empregoua mais extensa quadra, a melhor saztio e os mais abengoados frutos nese pensamento imortalizador. Em 1881, a idéia abolicionista era claramente mais importante do que a obra de Castro Alves, mas, como ela prépria necessitava de esta- belecer uma tradigdo ilustre e uma linhagem intelectual, Rui Barbosa colheu uma a uma, desde 1865, as passagens esparsas em que 0 poeta revelava alguma sensibilidade do problema. Nessas perspectivas, Cas- tro Alves podia ser apresentado como precursor da lei de 28 de setem- bro; Rui Barbosa mesmo nio perdia ocasiao de lembrar que, estudando na Academia de So Paulo em 1869, pertencera a loja magénica Améri- ca, inserevendo-se no grupo de mogos que “promovia, ¢ fazia adotar como compromisso obrigatério a todos os membros daquela fami emancipagio dos frutos da escrava”. Essa mesma busca de uma tradi- Ho, tanto para 0 abolicionismo do poeta quanto para a poesia do Abolicionismo, levava Rui Barbosa a ver no Gonzaga o drama que “as- soc issoluvelmente a causa da nacionalidade a da extingsio do ca tiveiro”. A idéia, em qualquer dos seus aspectos, ¢ insustentivel, mas introduzia uma aguda observacio, mais tarde redescoberta pelo: tas e historiadores sociais, como se fosse original: “A escravido do ne- gro, exclamava Rui Barbosa, “é a mutilagio da liberdade do branco”, A “justificagdo do decendrio” estava em inserever-se no vasto movim to nacional de opiniio em favor do Abolicionismo. Assim, do dia para a noite, Rui Barbosa sagrava Castro Alves po- eta nacional, i espera do momento, trintae oito anos mais tarde, em que 220 Wilson Martins langaria para a gléria, em circunstaneias idénticas, o nome de Monteiro Lobato. Nao 6 preciso grande perspicécia para perceber que as ruidosas comemoragées do Decendrio de Castro Alves, com a gléria repentina que langavam sobre o seu nome, foram 0 motor principal que levou Sit- Vio Romero, nese mesmo ano, a reunir em volume, sob o titulo de Dias € Noites, as poesias esparsas de Tobias Barreto. Precede a edigao, como seria de esperar, o habitual preficio reivindicativo e agressivo, seja com as primeiras retorsdes, ainda incidentais, contra Machado de Assis, seja, © que é significativo, com a clara afirmagao da superioridade poética de ‘Tobias Barreto sobre Castro Alves. Comegando por declaré-lo seu “mestre nas letras”, Romero 0 de- fine, antes de mais nada, como “o dltimo romantico de valor”; ia, mes- mo, mais longe, sem temor algum do paradoxo: “Tobias Barreto, mais, conhecido como eritico e orador, foi e é, antes acima de tudo, um poe- ta”, Sua carreira poética dividia-se “em duas fases bem distintas: sengipana (1854-1862) e a pemambucana (1862-1881)”. Grande par- te de sua produgao se perdera em publicagdes desaparecidas; de qual- quer forma, ele foi condoreiro por temperamento, antes de haver lido Victor Hugo. Quando apareceu, acrescenta o eritico, esquecido de havé- lo antes definide como 0 “Gltimo romantico de valor”, a poesia brasileira “era um prolongamento dos tacapes de Gongalves Dias e da choradeira de Alvares de Azevedo”. Passando a c assinalava-lhe a semelhanga, entre os portugueses, com Jodo de Deus, “de quem tem mais de um trago”,e, entre os brasileiros, com Luts Delfino —omesmo Luis Delfino que, ja no ano seguint deprimentes julgamentos, mas em quem agora via “a elevagio das no- tas”. Tobias Barreto, entretanto, excedia-os a ambos; quanto a Castro racteriz-lo como poeta, Romero insultar com os mais Alves, era apenas seu “sectirio”. ‘A essa altura, os estudos literdrios ainda eram da predilegdo de Clévis Bevilaéqua, conforme confessou mais tarde: é de 1882 e foi publ cado no segundo faseiculo das Vigilias Literdrias, 0 seu “Esbogo sintét co do Movimento Romantico brasileiro” (agora inclufdo no volume Epo- cas e Individualidades). Como era de esperar num jovem de 21 anos, ele comega por um amplo panorama das manifestagées romAnticas nas lite- 221 A Critica Literdria no Brasil raluras européias, o que nao exelufa juizos préprios e testemunhos inte- ressantes. No que se refere, por exemplo, a Antonio Feliciano de Castilho (1800-1875), ele formulava um julgamento bastante préximo ao dos beli- cosos “coimbrées”, mas em perspectivas mais amplas e desinteressadas: .-- 0 roméintico portugués de maior vulto & Castilho, 0 cego, de influéncia, alids, antes nociva que favorével ao desen- volvimento intelectual. Castilho foi um cléssico, mesmo no tempo da maior efervescéncia romantica. Nunca se alterou em empreendimentos de aleance, aplicando 0 me- thor de sua atividade em frioleiras, em tradugées parafrdsticas, na questo dos versos com letra mintiscula € outras nugas, ndo sei qual delas menos valiosa. No entanto, pela correcdo da linguagem, pela disciplina clds- sica da inteligéncia, pela produtividade, embora medio- cre qualitativamente, tornou-se wm chefe de escola, agremiou certo grupo de literatos reinécolas. Quanto ao Romantismo em si mesmo, a conclusio dese discipulo da Escola do Recife é antes negativa, o que nada tem de surpreendente: “0 romantismo, pois, nada edificou, podemos dizer em conclusio. Re- presentou, no campo da imaginago, o que a monarquia constitucional representa na politica ou, com mais propriedade, 0 que representa a metafisica na ordem filoséfica, — uma fase transit6ria, exercendo sobre 6s espiritos uma aco negativa indispensdvel para o aplainamento do terreno. (..) Dadissolugdo romantica brotara a poesia socialista, a pamasiana, acientifica, como é hoje compreendida, ¢ o romance naturalista”, No ‘fico das nossas letras, ele defendia os mesmos pon- tos de vista € a mesma metodologia que Silvio Romero, nesse mesmo ano, expunha na Introdugao a Historia da Literatura Brasileira (incor- porada, seis anos mais tarde, ao seu clissico tratado): ‘uma literatura 6 pode ser bem compreendida quando es- tudada a luz do eritério das origens étnicas (..) 0 brasilei- 222 Wilson Martins ro nao 6 0 indio, como se afigurow a muita gente, nem 0 portugués, como quis insinuar uma reagdo inconsciente partida de além-mar e largamente espraiada aqui. E sim Para conhecer as saliéncias de nosso caréter nacional, ha at a resultante da combinagao desses trés fatores. uma bela fonte de estudo —a poesia popular. Ele passa, em seguida, répida revista as nossas letras, para afir- mar que Alencar foi “o vulto mais eminente do romantismo brasileiro”; em Bemardo Guimaries, ele preferia “o romancista ao poeta”; Varela lade de seu tempo”; Luis, “niio fez escola, nao teve agio sobre a ment Delfino tornara-se “o chefe unanimemente eleito da escola hoje domi- nante no Rio de Janeiro”. So excelentes indicages a respeito dos valores e expectativas das novas geragies literdrias, Mas, de todos os jutzos de Clévis Beviléqua, ‘ mais curioso é 0 que se refere a Machado de Assis. Ele nada perce- eu, de toda evidéneia, da inovagio representada pelas Memérias Pas- tumas de Bras Cubas, 0 que 0 levava a lamentar, na parte final do traba- Iho e sem qualquer correlagao direta com Machado de Assis, que a lite- ralura brasileira nao tivesse “lampejos vividos de espirito, essa vivacida- de palpitante a trair uma existéncia alegre e cheia, um cardter igual & vigoroso; nfo temos a fina ironia que se empenha sob o ténue véu de uma doce melancolia, nem a forma do desdém, do motejo, do esearnio que se enroupa no humour, 0 incomparével humour de Sterne, Dickens e Thackerray (sic)..". Paginas antes, Machado de Assis Ihe havia pare- cido apenas um “trabalhador conseiencioso que nao tem cessado de freqiientar a imprensa didria e periddica, publicando artigos de critica e novelas, a proporgio que nos dé em volumes seus versos, contos ¢ ro- mances”. Em outras palavras, um fabricante de segunda linha. Essa obtusidade eritica parece-me refletir em partes iguais as li- mitagGes pessoais do autor, a influéncia de Silvio Romero e a diferenga .s em que Machado de Assis era encarado, ao norte e no 223 A Critica Literdria no Brasil Na Corte é festejado pelos mogos ¢ acatado pelos velhos, nas provincias do norte seu nome néo encontra a mesma simpatia turificante, 0 que néo significa menosprezo de seu talento. { Helena, as Memérias de Bras Cubas, as Crisélidas, e as Falenas sao justamente apreciadas pelos que se déo ao estudo das letras pétrias, mas € que 0 ro- maneista fluminense educado noutro meio, fala de outro mundo, que, embora real, ndo é bem um mundo largo em que todos caibam, nem o nosso viver provinciano e nortista. Machado de Assis comegava, realmente, a “falar de outro mun- do”, num idioma realista que, por paradoxo, os entusiastas do realismo cientifico ndo podiam compreender, Isso, no caso de Silvio Romero, agravava-se com as velhas contas que ele tinha a ajustar, desde as erfti- cas desfavoraveis aos Cantos do Fim do Século. O pretexto apareceu, em 1882, quando, alegando existir a opinido de que Machado de Assis & Lats Delfino eram “legitimos representantes do Naturalismo no Brasil”, escreve furibundo panfleto de 50 paginas in-12°, sob o titulo alids enga- nador de O Naturalismo em Literatura, mandando-o imprimir nas of nas da Provincia de Sao Paulo. O capitulo inicial sobre Zola é clara ‘mente um pretexto, aliés sem ligagdo com os dois outros, em que ataca Machado de Assis ¢ Luis Delfino, qualificados como “escritores de or- dem terciéria”. Desferindo uma nota habitual, Romero comega por quei- xar-se de ter sido sempre combatido: “depois que o sinal de alarma foi dado na Revista Brasileira pelos Srs. Machado de Assis e Herculano Bandeira — o fogo tem rompido em todas as linhas”. ‘Tratando de Zola, declara que vai estudar-Ihe apenas as “idéias eritieas", deixando de lado a fiegdo; defende-o da acusagdo de imoralidade, mas censura, no que se refere & critica, “o ponto de vista limitado, exclusivamente fran- cés”, Aponta em Taine “o genufno criador da eritica cientifiea” e enu- mera os “seis elementos” da erftica moderna, a que voltaré na introdu- ao da Historia. Mas, como ficou dito, a verdadeira finalidade do optiseulo € um ajuste de contas com Luis Delfino e Machado de Assis. A respeito do primeiro, escreve o seguinte: 224 Wilson Martins Eo que diria Zola [com referéncia ds suas eriticas a Leconte de Lisle] do levantismo charlatanesco, incongruente do nosso Luts Delfino, por exemplo? 0 que diria ele daquela imitagao sedica, palavrosa, inchada, tirbida do estilo de Victor Hugo, levado ao supremo exagero logoméquico, revestindo umas cenas do Oriente que o Sr. Delfino nao viajou, do Oriente que ele nem ao menos conhece como erudito, porque sua ignorancia filoséfica ¢ hist6rica é pro- funda? Mostra-se apoplético a simples idéia de que Luts Delfino ¢ Ma- se entre os naturalistas: “Ora, chado de Assis pudessem sequerinsere Machado & Delfino, dois sobriquets da cauda romdntica, dois infelizes suidos agora em realista I". Tudo indica, ‘sa Zola eram apenas o grosse' entretanto, que, assim como as referénc' rodi 8 alaques contra 0 poeta eram apenas o pretexto para tirar o cariter stificar os ataques contra Delfino ¢ Machado de Assis, excessivamente pessoal que poderia ter a retorsio exclusiva contra 0 romancista: A passagem de Emilio Zola para o Sr. Machado de Assis éum destes saltos mortais da inteligéncia provocados pela lei dos contrastes. Depois de um talento, de um estilista, de um critico sincero, de um romancista de forca, de um homem, avistar um meticuloso, uma lamuriento, um burilador de frases banais, um homenzinho sem crengas... € uma irrisdo! Mas é preciso romper o enfado que me causa essa ténia literdria e despi-la a luz meridiana da erttica. Esse pequeno representante do pensamento retbrico evelho no Brasil 6 hoje o mais pernicioso enganador que rai pervertendo a mocidade. Essa sereia matreira deve ser abandonada. (..) Natureza eclética e timida, sem o auxt- lio de uma preparacao conveniente, entrou a ser um para- sita, espécie de comunal (sic, por “comensal”) zoolégico, 225 A Critica Literéria no Brasil vivendo a eusta de uma combinagio do classicismo e do romantismo (..). éum digno camarada de E. Taunay € Luts Delfino, sendo talvez ainda menos significativo do que eles (..). As condigdes de sua educagao, o meio falso em que hé vivido explicam 0 seu acanhamento. Pode iludire ilude ainda a alguns ignorantes pela palavrosidade de seus periodos ocos, vazios, retortilhados e nada mais Sem conviccaes politicas, literdrias, ou filoséficas, nao €, nunca foi um lutador, Esse auxiliar de todos os minisiérios, esse rébula de todas as idéias, quando mui- 10, 0 conselheiro da comodidade letrada, O que ele quer é representar 0 seu papel equévoco. O autor de Bris Cubas, bolorenta pamonha literdria, assaz 0 conhecemos por suas | obras, ¢ ele esté julgado. Voltando a Luts Delfino, pois o panfleto foi escrito na desordem da excilago colérica, procura ridicularizé-lo por ser médico e rico; analisa- Ihe alguns poemas, a fim de demonstrar-lhe a obscuridade ou a verbos dade, para eoneluir: “ndo passa de um Leconte de Lisle de dois palmos de altura”. Os eonceitos que emite, assinala a esse propésito Carlos Slissekind de Mendonca, sobretudo quanto a Machado de Assis, mesmo quando procedentes em principio, como no ponto em que censu- ram a sua falta de atitudes e de convicgées politicas, es- candalizam pela nota crua e desnecessariamente descor- 1és. 0 livro que publicard, quinze anos depois, sobre 0 romancista de Quincas Borba, ¢ que tanta celeuma pro- vocaré nos circulos intelectuais do pais, principalmente nos do Rio de Janeiro, néio tem uma sé pagina, mesmo das mais violentas, que se possa comparar a qualquer destas!'™ TSiio Romero de Gupe Inicio, p. 120-121. Obaervse, de passage, que os tes de R. Magalies Jake, no pce sabes lend du inlifereng pollen e won de Machade de Assis (cf. tadamente, Machado de Aas Decherd, 1955, Vida Ob de Macha de Asis, 1981) 226 Wilson Martins A polémica de Silvio Romero era sempre furibunda, malcriada e insultuosa; até a sua maneira de expor as préprias idéias era nao raro insultuosa, maleriada e furibunda, Mas, na exata proporgdo em que westia contra os adversérios, era intolerante para com a menor o que lhe fizessem, mesmo nos termos mais cordiais e académi cos. Ainda em 1882, como ficou dito, safa em volume a Introdugdo a Historia da Literatura Brasileira, cujos capitulos iniciais haviam apare- cido na Revista Brasileira no decurso do ano anterior, Responsével, a essa altura, pela “Semana literdria” da Gazeta da Tarde, Avaripe Jiinior lisony observou, a 8 de julho, que “a melhor eritica € ma ra que se poderia fazer ao livro de S. Romero era a de expurgagio. Expurgar tudo quanto o polemista, o demolidor por indole, por prazer, costuma enxertar em seus livros, desequilibrando-os em muitos pontos”, Depois de notar algum desequilibrio na estrutura e nas propor- des do volume, ele estranha que o autor houvesse excludo os cronistas “do quadro da nossa literatura, ou antes, da hist6ria do nosso espirito Continuando os comentirios na semana seguinte, afirmava que “a ques- ti da histéria da literatura nacional, mais do que outra (..) 86 pode ser resolvida pela concentragio de nossas vistas sobre omeio fisico” © no- meacamente sobre o clima. Era o que ele tomava, diga-se de passagem por “crftica taineana”. Em conclusao, 0 livro de Sflvio Romero parecia- Ihe sobretudo desordenado e fragmentério: Um livro novo seré sempre uma chave com que se abra ‘outros compartimentos do saber humano. A chave que Silvio Romero nos oferece conduz-nos a aposentos vastos € «aié estranhos: contudo, hé nesses novos aspectos uns hia- tos to prolongados, que nos forcam mais de uma vez a buscar, ¢ com enorme desprendimento de forcas, 0 fio in- terrompido. Afigura-se-nos um pioneiro a desbravar um pats selvagem, cruel e acidentado. Abre veredas, toma a altura dos astros, aqui uma campina, ali uma floresta inextricdvel. Avanca para um lado, avanga para outro; neste ponto sobe a um rochedo, mais adiante ascende a 227 A Critica Literdria no Brasil copa de uma palmeira, As vistas variam, estendem-se mas ndo se unem. Re nero retruca imediatamente, dizendo que decidira acolher ape- 1as brasileiros e que discordava da importineia atribufda ao meio fisico. A3 de agosto, Araripe comegava por agrad ses corteses” cer-the as “fra- com que iniciara a resposta, porque, acrescentav: colocar-se a questio no terreno da cordura, é impossivel manter a ealma Lio necesséria a verificagio de pontos cientificos”. Isso nio o impedia de contestar algumas alfinetadas do colega e companheiro de vida literé- ria: no era exato que se houvesse passado recentemente para 0 campo da eritica, onde militava desd e os tempos de estudante; situava em 1873 4 sua adesio definitiva aos prinespios da erftica moderna Nao era, entretar 0, 0 tépico em debate: ele insistia em que o fe- némeno literirio 86 podia ser visto e corretamente compreendido no con- texto da ocupagaio territorial e levando-se em conta os fatores representa dos pelo negro e pelo indio; quanto aos c1 io se tratava somente dos cronistas nacionais, como respondera Silvio Romero (para afirmar lo), mas de todos eles, inclusive ¢ sobretudo os es- trangeiros, cujo valor de teste uunho e observagiio eram indiscutiveis. E deixava de Silvio Romero um retrato que nada perdeu de sua exatidio: Conheco bem o Dr. Silvio, e sei como os seus livros sao arquitetados. Lé muito, tem uma ambigao desmesurada de projetar a sua sintese sobre o Brasil. Temperamento nervoso, impetuoso, vida sedentéria em uma grota de Santa Teresa, preocupagées todas, todas literdrias; — conseqii- éncia: excitagées noturnas, insonias, sonhos, ou, antes, apocalipses cientificos. Aquelas linhas agrupam-se furio- sas, impoem-se a seu espirito, criam-the uma obsessao. Crescem as suas impressées subjetivas — e as nobres in- tengées voam ao longe. | Entéo... Das duas uma: ou 0 escritor produz logo 0 que tem de produzir, ou rebenta! At esté. Isso ndo é desconhecer um talento: & defini-lo 228 Wilson Martins ODr. tem exuberdncia demais. 0 que sobrava em exuberdncia a Silvio Romero faltava, com cer- la em 1882, com a biogra- interrompida, sobre a Literatura teza, ao proprio Araripe J fia de José de Alencar, un Brasileira. Alguns dos seus capi vista Brasileira; a boa acolhida reservada ao volun os haviam também aparecido na Re- e, confidenciaria ele mais tarde, animou-o a “pro or no caminho da eriti- ca”. Ele caracteriza o est Jo nao s6 como “o primeiro trabalho sobre um autor nac nal, que se escreveu no Brasil aplicando os métodos de H. Taine”, mas, além disso, como a anteeipagao dos processos que mais pritiea “pelo malogrado H, Hennequ tarde seriam postos e Trata- vecia na “Adverténeia” da primeira edigio, nfo da biografia, mas do perfil literdrio de José de Alencar; tendo lido desde 1873 as obras de Spencer, Buckle € 0s t reconstituiu as suas idéias e concepgies literdrias; 0 ensaio sobre os de Taine, ele balhos er lenear dessa “ascensiio da montanha filoséfica”, que f igien lenta e cautelosa por preocupagies de “ ectual. Como & sabido, 0 livro nfo tem nada de particularmente taineano, mas é ainda a melhor biografia intelectual do romancista e dos de leitura mais interes~ sante na obra de Araripe; em muitos casos, o conhecimento pessoal de Alencar e se cidas, de privilegia- da autenticidade, Assim, por exemplo, 0 que revela a respeito da cria- tempo traduziu-se em observagies Iti io do Protesto, em 1877: “segundo estou informado, tinha como fim 1m toro de si uma por de rapa le luta e propagassem a fama do principal congregar tardiam escolhidos, que ajudas mestre™ m na gra Contudo, ainda que nao fosse tarde demais, por motives de satid como efetiva tado das novas ge causa da “aristocracia do seu talento”, que, do estilo as maneiras, nicagao profunda. Desen- desencorajava qualque volveu-se, em conseqiiés ntra 0 romancista, “um comego de host lidade orginica, que, se ele Nessas perspectivas, 0 seu enterro tem o valor de um quadro morresse, acabaria em uma guerra erua’ 229 A Critica Literdria no Brasil O sew saimento néo foi estrepitoso. Alguns representantes da imprensa e 0s amigos, que sinceramente 0 amavam. Junto da tumba estiveram Joaquim Serra, Ferreira de Ara- tio, B. Taunay ¢ Otaviano de Almeida Rosa, 0 iltimo fora seu amigo e mestre em algumas coisas, e de quem por ligeiros contratempos se afastara. O Dr. Duque Estrada Teixeira, pranteando a sua morte, comparou-o ao jequitibé, que derriba-se na floresta, ¢ nao encontra leito que 0 am- pare na queda, O vécuo, deixado no pais por José de Alencar, foi sentido modestamente. Na sua morte devia se dar o que se dew em toda a sua vida, —o retraimento das explosies de opinido piiblica. Nunca se the fizera uma manifestagao na altura regular sequer dos seus mereci- ‘mentos; e, como tudo tem sua explicagao, é preciso dizer que nada concorrew tanto para isto como a aristocracia de seu talento. Agora, no mesmo momento em que Araripe Ihe traga as linhas finais do “peril literdvio”, desaparece: multaneamente Joaquim Ma- nuel de Macedo, cuja Moreninka despertara em Alencar a nobre emula- io literdria, e Domingos José Goncalves de Magalh io contra quem, por motivos menos nobres, investira fur samente 1 io de sua c a. Ambos morriam squecidos e fora de nossa vida intelectual, mas Magalhaes teve ainda a morte de medalhio, falecendo como Embaixador do Brasil junto & Santa Sé, a 10 de julho; exatamente lrés meses antes, Macedo extinguira-se no Rio, no s6 esquecido, mas desprezado, 0 que era pior. O dbito de Macedo, eserevia Araripe Jéinior na Gazeta da Tarde, a 15 de abril de uma agon “depois de tant ntos, depois Uo cheia de desolai ss e crudeli ga-me a estacar diante de u féretro e perguntar se houve fund: e tamanho véicuo em torno de te razio para forma suas glérias”: 230 Wilson Martins Diz-me a hist6ria que nao. Antes de tudo, foi ele um tra- balhador infatigdvel, que @ forca de trabalho levantou muitas emulagdes, que, sem a sua obra, teriam ficado adormecidas. A sua Moreninha agitou poderosamente a geragao do seu tempo, eo ruido que produziu acendeu em José de Alencar, ‘que entao estudava em S. Paulo, as primeiras centelhas do talento de romancista. Esta competéncia surda, talvez mais do que a outras circunstancias, tenha sido a determinante do arrastamento do autor do Guarani para ‘0 género em que primou. Acresce que o romance ndo tinha modelos na nossa litera~ tura, Macedo, entretanto, de um s6 golpe, possuido da intuigéo perfeita da arte nacional, chegou a escrever li- tros de um acabado como até entao néo tinham aparec do outros. (..) Os seus romances, com todos os seus vicios @ imperfeigdes, sio nossos; nao se confundem com produ- tos de outra procedéncia, Teve influéncia mais positiva no movimento de 1840 do que Magathées, apesar do prestt- gio de que este se cercou, atribuindo-se a iniciativa revo- luciondria. Toda essa possanga, nao the assegurou uma gléria impe- rectvel. (..) O esforcado caiu. Ax novas geragies entdo passaram-lhe por sobre o corpo, ainda palpitante, com 0 esedrnio nos ldbios e a indiferenca no coracao. E que as “novas gerages” sentiam-se mais préximas de Silvio Romero que de Alencar, de Macedo ou, mesmo, de Machado de Assis: a Escola do Recife, ao contrario do que se pensa, no mudou os rumos do pensamento brasilei am mudados. O segredo do extraor prestigio de Silvio Romero esta em que, apesar de tudo, ele porta-voz a essa nova mentalidade, podendo, assim, sobreviver a defei- — ela surgiu porque os rumos do pensamento io € absorvente. a de los e deficiéncias que teriam destrufdo qualquer outro. Sei a sua ag: 231 A Critica Literdria no Brasil de propaganda doutrinéria, polémica sareéstica, reivindicagdes clamo- rosas, Tobias Barreto ndo teria certamente passado de obscuro professor provinciano, inimigo do Comtismo, como eram todos os “cientific clo momento e simples elo de transigo, como quer Ant6nio Pai \- entre 0 letismo e a obra de Farias Brito: em outras palavras, uma nota de rodapé, un fins de capitulo, Contudo, Silvio Ron Ar Castro Alves, sobre o qual publicon longo estudo na Revista Brasileira de 1881. Se as memérias literdri: 70 “em grande parte inventou-o”, dizia pitoresca ¢ acertadamente pe Jiinior, ¢ inventou-o também como poeta, superior garantia, a ‘de Alencar, acrescidas do livro de Araripe Jinior, tomaram-se as fontes quase exclusivas em que se abeberaram muitos bidgrafos posterio a fonte tinica do nosso conhecimento de pelo licenciado Man 2 ainda mais misteriosa, e que entrou pa Gregs io de Matos ainda 6 a “vida do poet Pereira Rebelo, de biogt historia da eritiea brasileira com a famosa edig&io das Obras Poéticas promovida por Vale Cabral em 1882, 0 que era acc panhado pelo Dici- ondrio Biografico de Pernambucanos Célebri Pereira da Costa (1851-1923), mais os Estudos Literdrios e Biogrdficos, de Joao Augusto da Cunha Brandao Pinheiro; os Tragos Biogrdj FJ. de Santa-Anna Nery, por Pedro do Rego: os Traos de Critica, de Luts Pereira Simées (1863- ? ), e 0s Estudos Sociais e Literdrios, de Ciro Franklin de Azevedo (1858- ? ). E mestre b de Francisco Augusto ‘os de Pernambuco, reaparecia um velho nico da nossa teoria literaria com a Poética Compilada de Hughes Blair e Outros, por Francisco do Brasil Pinto Bandeira Aciéli de Vasconcelos (1849-1882). A era do realismo JAESTAVAMOS, a essa altura, na era do realismo que, em ria, traduzia-se pela c di ra predominancia, se n realismo” da critica ambigdes cientificistas. O curioso é que esse m de longe cor sspondia ao gosto ou aceitago da respectiva literatu- 232

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