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Obra Coletiva.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-99099-25-0.
Conselho Editorial
Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados - LAECC
http://laecc.org.br/conselho-editorial
ALESSANDRA SILVEIRA
Doutora em Direito pela Universidade de Coimbra – UC. Professora da Universidade do Minho –
Portugal.
ALEXANDRE DE SÁ AVELAR
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Professor da Universidade
Federal de Uberlândia – UFU.
DANIEL USTÁRROZ
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Pro-
fessor Adjunto de Direito Civil na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
VIVIANE SÉLLOS-KNOERR
Pós-Doutora pela Universidade de Coimbra – UC. Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC/SP. Professora do Centro Universitário Curitiba – UniCURITIBA.
WELLINGTON MIGLIARI
Doutor e Mestre em Direito Internacional Público pela Faculdade de Direito, Universitat de Barce-
lona – UB.
SOBRE OS AUTORES
Organizadores
GUSTAVO FERREIRA SANTOS
Procurador Municipal do PROCON de Uberlândia (MG). Mestre em Direito pelo Pro-
grama de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail:
gustavo.ferreirasantos@yahoo.com.br
Autores
CAROLINA GUERRA E SOUZA
Advogada e Professora Substituta na Universidade Federal de Uberlândia. Mestra em
Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Uber-
lândia. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Economia
pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: cguerra1909@gmail.com
DIEGO NUNES
Professor Adjunto de Teoria e História do Direito dos cursos de Graduação e Pós-
Graduação em Direito da UFSC. Foi Professor Adjunto de Fundamentos do Direito dos
cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFU. Doutor em Direito pela Uni-
versidade de Macerata (Itália). CV: http://lattes.cnpq.br/7745448598386819. E-mail:
nunes.diego@ufsc.br
Idealizado há alguns anos pelo Prof. Me. Jonatan, o projeto Linhas Ju-
rídicas do Triângulo Mineiro ganhou vida em 2019, com a primeira edi-
ção lançada em formato de e-book no site da Editora Navegando.
O trabalho, coordenado pelo Prof. Me. Jonatan Alves e pelo Me. Gusta-
vo Santos, contou com a publicação de onze artigos inéditos, que trataram
de temas de direito civil (contratos e família), direito tributário, direito
processual (coletivo e penal), direito do consumidor, justiça de transição,
mecanismos consensuais de resolução de conflitos e de teoria do direito.
O propósito, desde o nascedouro, foi e ainda é o do incentivo à pesqui-
sa jurídica de rigor científico e com matiz multidisciplinar e versátil, aliado
à promoção e à ampla difusão do conhecimento do direito.
Como largamente divulgado nos editais de convocação para submissão
dos artigos, o Linhas é um projeto sem fins lucrativos e autofinanciado por
seus autores. A novidade, para essa edição especial em homenagem ao
mestre lusitano António Manuel Hespanha, é que, a par da edição total-
mente gratuita, o e-book ficará disponível em uma plataforma para aquelas
pessoas que optarem por adquirir uma versão impressa da obra, ao custo
de um valor mínimo sugerido pela empresa e a ela destinado.
Desde já desejamos uma boa leitura!
OS ORGANIZADORES
XIII
INTRODUÇÃO
CIENTÍFICA
XVII
Diego Nunes
Já esta segunda obra tratava-se de uma adaptação do primeiro livro
e, em 2013, o tenha refundido num livro novo, mais adaptado às finalida-
des didáticas que tinha em vista. Compactando-o, afinando ideias e for-
mulações e, sobretudo, incorporando uma preocupação nova, que me sur-
gia perante a situação político-jurídica brasileira, dominada por um mo-
vimento de menorização do direito legislado (HESPANHA, 2019a, p. 8).
Em um semestre de intensos debates, partíamos dos temas trazidos nas
obras, conjugando o estudo teórico com a apresentação de estudos de caso
que pudessem ilustrar algumas inquietações, como a interação entre o
sistema constitucional brasileiro e o interamericano de direitos humanos,
entre a justiça comum estatal e a justiça desportiva privada, entre o direito
econômico nacional e a autorregulação global do mercado, entre o direito
estatal brasileiro e o direito das comunidades indígenas em solo nacional, à
então recentíssima abertura do direito penal brasileiro à negociação pro-
cessual, à institucionalização de conselhos populares de política públicas,
ao caráter normativo da doutrina jurídica, dentre outros que os noticiários
e a prática jurídica dos alunos levantavam dia a dia.
Justamente neste período, eu me encontrava em comunicação com o
professor Hespanha, preparando sua segunda estada no Triângulo Minei-
ro. E nas trocas de mensagens essas inquietações da sala de aula eram re-
passadas. E no meio destas discussões veio a lume a segunda edição da
obra, em formato exclusivamente digital (HESPANHA, 2016), que já fazia
menção ao debate travado em Uberlândia nos últimos tempos (HESPA-
NHA, 2016, p. 4; HESPANHA, 2019a, p. 5). A última e definitiva edição
também menciona o trabalho feito àquele período e seus frutos na sala de
aula (HESPANHA, 2019a, p. 9) e na pesquisa4.
A proposta de Hespanha5 buscava ver o direito como ele se apresentava
6 Algo importantíssimo no Brasil, dado que até o presente momento não se cumpriu o
mandamento do art. 224 da Constituição de 1988 que prevê um “Conselho de Co-
municação Social” e que o Supremo Tribunal Federal aceitou a desregulação estatal
da profissão de jornalista (RE 511961/SP). Como exemplo, veja-se o caso da Globo
(http://estatico.redeglobo.globo.com/2014/PRINCIIPIOS-EDITORIAIS-DO-
GRUPO-GLOBO.pdf)
7 A Associação Brasileira de Normas Técnicas há muito consolidou-se como o princi-
pal fornecedor de standards para a normalização (formatação) de textos científicos,
ainda que se trate de órgão privado que cobra o acesso às suas normativas. Para deta-
lhes, veja-se http://www.abnt.org.br.
8 As questões essenciais podem ser verificadas em Hart (2007), especialmente os capí-
XIX
Diego Nunes
pande para uma lógica pluralista. Isto significa dizer que, para além da
justiça e da burocracia estatal, outras formas de jurisdição (para além da-
quelas “permitidas” pelo estado, como cortes internacionais e tribunais
arbitrais) podem ser capazes de aceitar determinada norma como válida
em uma ordem jurídica. Isto importa em uma revisão da teoria das fontes,
para incluir as normas não estatais que são capazes de obter reconheci-
mento de instâncias não necessariamente estatais que conseguem afirmar
seu conjunto de regras. Porém, aqui ainda há um critério fraco de validade.
Do segundo9, retoma a ideia de consensos reflexivos da sua teoria do
agir comunicativo. Isto implica que, para além de determinada jurisdição
conseguir se impor ao estado ou o que o estado aceite determinada norma-
ção privada, para que seja válido são necessários consensos genuínos, ob-
tidos sem manipulação, ou impostos e mesmo superficiais. Trata-se de um
aprofundamento democrático que exige ir além do pensamento haberma-
siano clássico de aceitar as condições de partida do diálogo como ideais, ou
seja, de compreender que os consensos são construídos de modos diversos,
mas que não se pode ignorar que a existência de determinados procedi-
mentos de diálogo não são por si capazes de obter uma solução democráti-
ca.
Do terceiro10, enfim, retoma a ideia de que o direito é um sistema auto-
poiético e que, por isso, ao mesmo tempo em que possui abertura para
reler-se a partir de outros sistemas (p. ex., a economia, a política, a moral,
etc.), detém autonomia capaz de não confundir-se com outras ordens de
saber e de poder. Assim, para que as normas reconhecidas de modo con-
sensual possam ser finalmente consideradas como direito, elas devem ser
capazes de demonstrar sua capacidade estabilizadora dentro do sistema-
XXI
Diego Nunes
junto de sentidos vivo em uma sociedade. Por fim, na terceira, conclama
os juristas a um projeto de humildade, em que se coloquem como servido-
res da sociedade e não como pretensos demiurgos dos comportamentos
alheios, fechados em seus círculos (BOURDIEU, 2011). Sair da arrogância
e encontrar o seu lugar na construção do aprimoramento da democracia
através do direito, eis o desafio para os profissionais do direito.
Toda essa série de debates no curso de 2016 resultaram em trabalhos
finais à disciplina, em forma de papers. Os resultados foram apresentados
pelos então mestrandos e debatidos um a um por Hespanha, que pode
exarar seu juízo, bem como auxiliar com uma série de questões. Este con-
junto de trabalhos formam as partes segunda e terceira desta coletânea,
pensada para acolher questões acerca do pluralismo jurídico contemporâ-
neo a partir da obra de nosso autor.
A segunda parte aborda o tratamento do pluralismo jurídico dentro da
jurisdição estatal. Dentro deste, um tema fundamental, o da representação
política11, foi abordado por Clayton Moreira de Castro e Samir Alves Dau-
ra em “Pluralismo Jurídico de António Manuel Hespanha: Um estudo do
Decreto presidencial n.º 8.243/2014 à luz da teoria da ação comunicativa
de Habermas”. Os autores, a partir de Hespanha e Habermas, buscaram
analisar os consensos comunitários que seriam possíveis por meio da Polí-
tica Nacional de Participação Social, instituída pelo Decreto n.º 8.243, de
23 de maio de 2014. Como se sabe, tal decreto, que ficou conhecido como
“decreto bolivariano de Dilma”, foi derrubado pelo Congresso Nacional e
não gerou efeitos, mas não deixa de ser um importante exercício à teoria
do pluralismo jurídico e direito democrático.
A sequência dos próximos artigos revela a relação do poder judiciário
estatal, especialmente a jurisdição constitucional, com esta nova proposi-
ção de fontes do direito, em uma interface entre pluralismo jurídico, ques-
tões políticas sensíveis e política. Em “Pluralidade de cortes e o conflito
XXIII
Diego Nunes
que a esta seja oportunizada a perseguição de seus direitos e interesses.
A terceira e última parte da obra aborda temas de pluralismo jurídico
em jurisdições não-estatais. O direito desportivo, caso tradicional no Brasil
(VIANNA, 1949, v. I, p. 81ss), foi abordado por Jonatan de Jesus Oliveira
Alves e Gabriel Faustino Santos em “O Código Brasileiro Antidopagem e a
tensão da autonomia do direito desportivo sob a ótica do pluralismo jurí-
dico” e “Pluralismo Jurídico e Jurisdição Desportiva: Estudo de caso sobre
a condenação do Cruzeiro Esporte Clube pelo Comitê Disciplinar da FIFA
(2019)” por Gabriella Coelho Santos (à época uma das graduandas que
acompanhou os eventos) e Marcello Augusto Souza Neves.
No primeiro trabalho, se investigou a relação entre a ordem jurídica es-
tatal e a ordem jurídica autônoma do esporte e suas tensões, como no caso
das Olimpíadas em solo brasileiro, em que legislação estatal interna de
controle de dopagem cedeu passo à normativa internacional privada. No
segundo artigo, apresentou-se a condenação do clube de futebol brasileiro
pelo Comitê Disciplinar da Federação Internacional de Futebol como apli-
cação da lex sportiva em um contexto clássico de pluralismo jurídico.
Outro tema de grande importância foi abordado por Gabriel Lisboa Sil-
va e Dias Ferreira e Marcela Cecília Siqueira Santos de Moura em “Alter-
nativas plurais aplicadas ao direito: doutrina como fonte jurídica e o prin-
cípio da insignificância”. O trabalho apresenta um dos vários exemplos de
institutos criados pela doutrina penal e consolidados na jurisprudência,
bem como a importância do reconhecimento e aplicação eficaz de fontes
não estatais em busca de um sistema jurídico justo e equânime.
Por fim, um tema muito caro ao autor, a relação entre direito e econo-
mia12, foi tratado em “A necessidade de uma governança democrática na
regulamentação das agências de rating: Pluralismo Jurídico e a crise eco-
nômica de 2008” por Carolina Guerra e Souza e Gustavo Ferreira Santos.
DIEGO NUNES
Professor Adjunto de Teoria e História do Direito dos cursos de
Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFSC. Foi Professor
Adjunto de Fundamentos do Direito dos cursos de Graduação e
Pós-Graduação em Direito da UFU. Doutor em Direito pela Uni-
versidade de Macerata (Itália).
Bibliografia
XXVI
Introdução Científica
LUHMANN, Niklas. Closure and openness: on reality in the world of law.
TEUBNER, Gunther (ed.). Autopoietic law: a new approach to law and
society. Berlin: Walter de Gruyter, 1988.
MACEDO, Maiara Batalini de. A judicialização da saúde pública e o diálo-
go institucional: os espaços interinstitucionais como garantia funda-
mental de acesso à saúde. 2016. 178 f. Dissertação (Mestrado em Direi-
to Público) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2016.
NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fon-
tes, 2009.
SANTOS Gustavo Ferreira; ALVES, Jonatan de Jesus Oliveira (org.). Li-
nhas Jurídicas do Triângulo. Uberlândia/MG: Navegando Publicações,
2019.
VIANNA, Francisco de Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. Vol. I.
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1949.
WARAT, Luiz Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas.
Seqüência, Florianópolis, v. 3, n. 5, 1982.
XXVII
SUMÁRIO
Capítulo 1
Deivy Ferreira Carneiro
MICROANÁLISE E O LEVIATÃ: UMA HOMENAGEM A ANTÓNIO MANUEL HESPANHA
...................................................................................................................................... 37
1 Introdução ................................................................................................................ 37
2 As vésperas do Leviathan: redução de escala e complexificação da realidade de
uma monarquia pluricontinental .............................................................................. 38
3 Microstoria: redução de escala e complexificação da realidade .......................... 43
4 Conclusão ................................................................................................................. 52
Bibliografia .................................................................................................................. 53
Capítulo 2
Maiara Batalini de Macedo
Luiz César Machado de Macedo
O PODER DOS JUÍZES EM DIZER O DIREITO: UMA BREVE INCURSÃO HISTÓRICA E A
PROPOSTA DE ANTÓNIO MANUEL HESPANHA .......................................................... 59
1 Introdução ................................................................................................................ 59
2 A função judicial: do medievo ocidental à contemporaneidade ......................... 60
3 Solucionado o (aparente) paradoxo: quem teria o poder de dizer o direito? .... 72
4 Conclusão ................................................................................................................. 77
Bibliografia .................................................................................................................. 78
XXIX
Sumário
PARTE II - Pluralismo Jurídico e Jurisdição Estatal
Capítulo 3
Clayton Moreira de Castro
Samir Alves Daura
PLURALISMO JURÍDICO DE ANTÓNIO MANUEL HESPANHA: UM ESTUDO DO
DECRETO PRESIDENCIAL N.º 8.243/2014 À LUZ DA TEORIA DA AÇÃO
COMUNICATIVA DE HABERMAS .................................................................................. 83
1 Introdução ................................................................................................................ 83
2 O Decreto Presidencial n.º 8.243/2014 .................................................................. 88
3 Apreciação técnica e crítica do caso objeto de análise ......................................... 92
3.1 A participação da sociedade civil na tomada de decisões sobre políticas
públicas no Brasil ........................................................................................................ 93
3.2 A teoria pluralista do direito de António Manuel Hespanha ........................... 94
3.3 O consenso como elemento legitimador do direito .......................................... 99
3.4 A ação comunicativa de Jürgen Habermas e o Decreto Presidencial n.º
8.243/2014 ................................................................................................................. 101
4 Conclusão ............................................................................................................... 104
Bibliografia ................................................................................................................ 106
Capítulo 4
Larissa Sampaio Teles
Marcella Rosiére de Oliveira
PLURALIDADE DE CORTES E O CONFLITO ENTRE SUAS DECISÕES: A LEI DE ANISTIA, O
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS .................................................................................................................. 109
1 Introdução .............................................................................................................. 109
2 Guerrilha do Araguaia........................................................................................... 111
3 Lei de Anistia.......................................................................................................... 112
4 Decisão da CIDH e do STF ................................................................................... 114
4.1 Corte Interamericana de Direitos Humanos: “caso Gomes Lund e outros” 114
4.2 Supremo Tribunal Federal: Ação de Declaração de Descumprimento de
Preceito Fundamental de n° 153 ............................................................................. 116
5 Pluralidade de Cortes, transconstitucionalismo e a supremacia dos direitos
XXX
Sumário
humanos .................................................................................................................... 118
6 Considerações finais .............................................................................................. 124
Bibliografia ................................................................................................................ 126
Capítulo 5
Gustavo Nascimento Tavares
Ruan Carlos Pereira Costa
O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE NA QUESTÃO DAS TERRAS INDÍGENAS
BRASILEIRAS DIANTE DO NOVO CONSTITUCIONALISMO DA AMÉRICA LATINA E O
PLURALISMO JURÍDICO .............................................................................................. 131
1 Introdução .............................................................................................................. 131
2 O novo constitucionalismo da América Latina como paradigma do pluralismo
jurídico e do direito fundamental à diversidade e promoção da pessoa humana
.................................................................................................................................... 133
3 O controle de convencionalidade como instrumento de promoção à diversidade
dos povos indígenas no Brasil ................................................................................. 140
4 Raposa Serra do Sol e Aldeia Maracanã: análise à luz do pluralismo jurídico, do
novo constitucionalismo da América Latina e da jurisprudência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos .................................................................... 146
5 Considerações finais .............................................................................................. 154
Bibliografia ................................................................................................................ 155
Capítulo 6
Gustavo Nascimento Tavares
Ruan Carlos Pereira Costa
AUSÊNCIA DE EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO SISTEMA PENAL E
PRISIONAL BRASILEIRO: DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL AO ESTADO DE
DESOBEDIÊNCIA CIVIL ............................................................................................... 159
1 Introdução .............................................................................................................. 159
2 Desconstrução dos direitos fundamentais no sistema penal e prisional: a
criminologia segregadora no Brasil sob aspectos históricos, sociais e jurídicos . 161
3 O estado de coisas inconstitucional no sistema prisional brasileiro: os direitos
fundamentais como marco para o diálogo institucional na legislação penal...... 168
3.1 Análise da ADPF nº 347: fundamentos da decisão liminar do STF que julgou a
XXXI
Sumário
inconstitucionalidade estrutural do sistema prisional brasileiro ......................... 173
4 A desobediência civil como direito fundamental de exigir resposta estatal e
instrumento de exercício da cidadania frente ao estado de coisas inconstitucional
.................................................................................................................................... 176
5 Considerações finais .............................................................................................. 181
Bibliografia ................................................................................................................ 182
Capítulo 7
Victor Henrique Machado Duarte
Jonatan de Jesus Oliveira Alves
PLURALISMO JURÍDICO E JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL: UM NOVO PARADIGMA DE
PROCESSO PENAL NA PÓS-MODERNIDADE ................................................................ 187
1 Introdução .............................................................................................................. 187
2 Pluralismo jurídico e seus aspectos conceituais.................................................. 188
3 Justiça penal consensual e um novo paradigma pluralista de processo penal . 196
4 Considerações finais .............................................................................................. 202
Bibliografia ................................................................................................................ 203
Capítulo 8
Gabriel Faustino Santos
Jonatan de Jesus Oliveira Alves
O CÓDIGO BRASILEIRO ANTIDOPAGEM E A TENSÃO DA AUTONOMIA DO DIREITO
DESPORTIVO SOB A ÓTICA DO PLURALISMO JURÍDICO ............................................. 207
1 Introdução .............................................................................................................. 207
2 O Código Mundial Antidopagem vs. o Código Brasileiro Antidopagem......... 209
3 O pluralismo jurídico e o Estado que ainda vive ................................................ 215
4 Considerações finais .............................................................................................. 220
Bibliografia ................................................................................................................ 222
Capítulo 9
Gabriella Coelho Santos
Marcello Augusto Souza Neves
PLURALISMO JURÍDICO E JURISDIÇÃO DESPORTIVA: ESTUDO DE CASO SOBRE A
XXXII
Sumário
CONDENAÇÃO DO CRUZEIRO ESPORTE CLUBE PELO COMITÊ DISCIPLINAR DA FIFA
(2019) ......................................................................................................................... 225
1 Introdução .............................................................................................................. 225
2 Entre o estadualismo e o antiestadualismo: a concepção de pluralismo jurídico
para António Manuel Hespanha ............................................................................. 227
3 Lex sportiva como expressão do pluralismo jurídico ......................................... 232
4 Estudo de caso: a condenação do Cruzeiro Esporte Clube pelo Comitê
Disciplinar da FIFA (2019) ...................................................................................... 233
5 Aplicação prática da lex sportiva em uma ordem pluralista: caso do Cruzeiro
Esporte Clube ............................................................................................................ 235
6 Considerações finais .............................................................................................. 238
Bibliografia ................................................................................................................ 240
Capítulo 10
Gabriel Lisboa Silva e Dias Ferreira
Marcela Cecília Siqueira Santos de Moura
ALTERNATIVAS PLURAIS APLICADAS AO DIREITO: DOUTRINA COMO FONTE
JURÍDICA E O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA ......................................................... 247
1 Introdução .............................................................................................................. 247
2 Pluralidade de fontes no ordenamento jurídico ................................................. 248
3 Doutrina como fonte não estatal do direito ........................................................ 250
4 Princípio da insignificância: criação doutrinária................................................ 253
5 Conclusão ............................................................................................................... 258
Bibliografia ................................................................................................................ 259
Capítulo 11
Carolina Guerra e Souza
Gustavo Ferreira Santos
A NECESSIDADE DE UMA GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA NA REGULAMENTAÇÃO DAS
AGÊNCIAS DE RATING: PLURALISMO JURÍDICO E A CRISE ECONÔMICA DE 2008 ..... 261
1 Introdução .............................................................................................................. 261
2 Breve histórico das agências de rating e as perspectivas regulatórias nos EUA,
União Europeia e Brasil............................................................................................ 264
3 Pluralismo jurídico e governança democrática regulatória ............................... 269
XXXIII
Sumário
4 Conclusão ............................................................................................................... 274
Bibliografia ................................................................................................................ 276
XXXIV
PARTE I
História & Direito
MICROANÁLISE E O LEVIATÃ: UMA
HOMENAGEM A ANTÓNIO MANUEL
HESPANHA
1
Deivy Ferreira Carneiro
__________________________________________________
RESUMO: O presente ensaio deve ser pensado como uma homenagem póstuma
ao historiador António Manuel Hespanha. Nesse sentido, examinarei como o
livro As vésperas do Leviatã: instituições e poder político. Portugal – século
XVII, foi fundamental para uma renovação não só do entendimento do que se-
ria o absolutismo português, mas também para uma melhor compreensão da
história do Brasil colonial. A partir disso, apresentarei de que forma essa obra
de Hespanha foi fundamental para o meu trabalho, tanto por me revelar a pos-
sibilidade da complexificação do objeto histórico através da redução de escala
de análise, quanto por me apresentar à micro-história italiana. Por fim, exem-
plificarei como essa redução de escala fundamentou meu último livro.
__________________________________________________
1 Introdução
O objetivo do presente texto é mostrar um pouco da relevância das
pesquisas de António Manuel Hespanha para o meu trabalho enquanto
pesquisador; mostrar o quanto a leitura de um de seus livros acabou de-
terminando indiretamente a minha trajetória. Hespanha produziu uma
obra fundamental1 em áreas variadas como a História do Direito, a Histó-
39
Deivy Ferreira Carneiro
pertencente ao monarca e aos seus ministros, tribunais e conselhos. Nessa
ordem, o poder real atuava como um centro coordenador que agia no
sentido de garantir que os mecanismos político-administrativos
desempenhassem suas funções e preservassem sua autonomia funcional.
Os monarcas atuavam como árbitros evitando a intromissão de funções e
competências entre os diversos órgãos político-administrativo. Por outro
lado, o poder real tinha sua atuação restringida na medida em que estava
submetido à pluralidade jurisdicional e ao imperativo de consulta das
instâncias representativas, o que garantia a cada parte do corpo social
estamental português o direito de participar do processo de governação.
Sendo assim, não é possível falar de monarquia absolutista centralizada
uma vez que os poderes das estruturas intermediárias e dos setores sociais
impunham restrições práticas, políticas, simbólicas e jurídicas aos
monarcas lusitanos (CONSENTINO, 2013, p. 79).
Segundo Hespanha, os modelos clássicos de organizar o Poder, na
tradição europeia, por meio de uma rede de funcionários dotados de
competências bem estabelecidas, eram incompatíveis com a extensão das
regiões a serem dominadas e com a variedade de dinâmicas e realidades
encontradas. Nas múltiplas conquistas ultramarinas, seriam adotadas
soluções diversas que foram do estabelecimento de relações informais à
montagem de formas de organização político-administrativa mais ou
menos formais.
Diminuindo a escala de observação do seu objeto, o historiador portu-
guês quebrou com a lógica tradicional de que bastaria examinar os câno-
nes da História do Direito e das instituições para se compreender as sutile-
zas do exercício do poder. Olhando como o poder se distribuía nas intera-
ções entre os atores sociais, ele percebeu que a tradicional imagem de uma
monarquia centralizada escondia uma pluralidade e uma concorrência
entre inúmeras jurisdições, assim como uma série de limitações institucio-
nais que se impunham ao poder absoluto do rei. Em suma, a centralidade
da coroa ofereceria uma visão distorcida e simplista da dinâmica política
40
Microanálise e o Leviatã
do Antigo Regime (COELHO, 2011, p. 2).
Por meio da análise de uma enorme quantidade de documentos (como
as cartas de doação de terras com administração autônoma existentes nas
chancelarias régias seiscentistas e um imenso códice – “Livro das avalia-
ções de todos os ofícios do reino de Portugal. Ano de 1640”, em dois vo-
lumes), o historiador português conseguiu produzir uma impressionante
análise do aparelho administrativo e dos fenômenos do poder por ele en-
gendrados. Com uma leitura das fontes através da lente de um microscó-
pio, ele colocou em relevo um poder régio muito mais complexo, no qual o
monarca exerceria seu poder como a cabeça de um corpo político; um
poder que se sobrepõe aos demais poderes, mas com direitos e jurisdições
próprias e que deveriam ser respeitados. Ao reduzir a escala de análise,
Hespanha percebeu que havia limites importantes colocados ao direito
régio, a começar pelos direitos e liberdades dos diferentes corpos, pelos
direitos dos povos e pelos costumes. A lógica de pertença ao corpo expli-
car-se-ia pelos laços pessoais de dependência e de fidelidades apreendidos
por meio da análise de redes sociais e, principalmente, através do exame da
chamada rede clientelar (XAVIER; HESPANHA, 1993).
A leitura de Às vésperas do Leviathan impactou profundamente a mi-
nha perspectiva metodológica quando o li em 1999, durante a graduação.
No início dos anos 2000, esse modelo interpretativo foi fortemente acatado
pela historiografia brasileira referente ao período colonial e provocou um
profundo deslocamento na interpretação dominante em nossa historiogra-
fia. O modelo do exclusivismo colonial, defendido por Fernando Novais
(1983) com base em Caio Prado Júnior (1977), afirmava que devido à
constituição de um capitalismo comercial na Europa, a América lusa dos
séculos XVI e XVII serviria, groso modo, somente para fornecer matéria
prima para a sua metrópole. Para esses autores, a economia colonial não
tinha dinâmica própria, e seu destino dependia dos humores do mercado
europeu. Logo, a América portuguesa seria marcada pela inexistência de
um mercado interno ou ainda de produções mercantis in loco voltadas
41
Deivy Ferreira Carneiro
para o abastecimento da América. Estas atividades não podiam existir, pois
colocariam em perigo o “sentido da colonização”. Quando tais lavouras de
abastecimento ou currais surgiam, isto se dava em razão dos interesses das
atividades exportadoras (FRAGOSO, 2012, p. 108).
A partir das reflexões de Hespanha, mas também de Nuno Gonçalo
Monteiro, seu ex-aluno, alguns historiadores brasileiros e portugueses
passaram a adotar a ideia de uma monarquia pluricontinental, que passa a
compreender as relações entre centro e periferia na Monarquia lusa (“me-
trópole e colônia”) pautadas na concepção de mundo predominante na
península ibérica daquela época, de uma monarquia corporativa. Assim,
uma das chaves (mas, não a única) para a compreensão da sociedade ame-
ricana eram os traços do Antigo Regime, tais como a hierarquia social es-
tamental, a disciplina católica e o autogoverno dos municípios2. A partir
deste cenário desenvolveu-se a hipótese de “Antigo Regime nos trópicos”.
Por meio dela tentar-se-ia observar as tensões e a dinâmica de uma socie-
dade baseada, simultaneamente, no Antigo Regime católico e na escravi-
dão africana. Um dos resultados de tal dinâmica seria o entrelaçamento da
hierarquia estamental com a mobilidade social na forma de grupos sociais
saídos da escravidão (forros, mestiços, etc.) e de uma nobreza da terra
(FRAGOSO, 2012, p. 107).
No interior da ideia sistêmica de monarquia pluricontinental, os
municípios passam a ser entendidos como repúblicas. Tanto em Portugal
como nas conquistas, o município surgia como poder concorrente e
complementar, pois aos oficiais da Câmara e aos chamados “homens
bons” cabia o cuidado com o bem público. Ou seja, esses homens
respondiam pela justiça ordinária, pela administração do mercado local e
3 Para uma análise dos elementos políticos que influenciaram o surgimento e desen-
volvimento da microstoria, ver: Maurizio Gribaudi (2016).
44
Microanálise e o Leviatã
tativa e serial de documentos escolhidos por seu caráter repetitivo, o que
acabava deixando de fora da análise alguns contextos (Antigo e Medieval –
séries incompletas) e temas (história política, das ideias, etc.) (GINZ-
BURG, 2007, p. 262). Em resumo, a micro-história nasceu criticando uma
forma de se fazer história que, para identificar os atores, abre mão do hete-
rogêneo em benefício do repetitivo e do comparável, descartando toda e
qualquer documentação anômala (GINZBURG; PONI, 1991). De acordo
com Giovanni Levi, a micro-história seria uma espécie de declaração de
desilusão; uma espécie de rebelião contra o fato de certas generalizações
não responderem adequadamente aos problemas que colocamos (2017, p.
166). E para resolver tal questão, os micro-historiadores propõem também
problemas generalíssimos, mas ao reduzir a escala de observação, passam a
compreender sinais discrepantes que, em nível geral, não conseguiriam
explicar e nem mesmo perceber (LEVI, 2017, p. 170). Afinal de contas,
para Levi, o verdadeiro problema não é de análise de um conteúdo especí-
fico, mas de procedimento, isto é, demonstrar como pequenos fatos apa-
rentemente insignificantes estão cheios de significados históricos comple-
xos (2017, p. 180).
Quais seriam, então, suas principais características? De acordo com
Aguirre Rojas, o primeiro elemento que caracteriza a micro-história é a
redução de escala como paradigma epistemológico, ou seja, a escala redu-
zida é percebida como um novo local de experimentação, mas sem deixar
de explicar os processos globais. Não há a renúncia do macro, mas sim o
seu enriquecimento (2012, p. 9 e 10). Já que a análise macro tende a ser
extremamente generalizante, pouco empírica e muito retórica (GRIBAU-
DI, 1998), os micro-historiadores buscam descrever as estruturas sociais
sem perder o que há de mais fundamental nas interações sociais. Afirmam
também que o homem possui uma liberdade de ação; uma margem de
manobra e que todas as ações que constroem as normas sociais são vistas
como fruto de escolhas, negociações e estratégias dos atores sociais, sem
considerar, evidentemente, o sujeito social como hiper-racional. Eviden-
45
Deivy Ferreira Carneiro
temente que Hespanha nunca foi um micro-historiador, mas essa perspec-
tiva historiográfica se assemelha, como vimos, a muitas interpretações
produzidas em As vésperas do Leviathan.
Associado a tudo isto que falamos até agora podemos dizer que a mi-
cro-história é também um paradigma indiciário (GINZBURG, 1989): ela
busca decifrar certos indícios para interpretar os múltiplos sinais que per-
mitem acessar a essência do problema por meio de traços aparentemente
irrelevantes. Assim, nosso objeto de estudo não seria necessariamente
aquilo que as fontes nos dizem de maneira mais aparente, já que os ele-
mentos mais reveladores da realidade são aqueles que se encontram nos
bastidores (CERUTTI, 2011, p. 567). Eles seriam, na verdade, os traços não
conscientes e não controlados, que escapariam ao controle do redator da
fonte. Desta maneira, as informações fundamentais das fontes não se en-
contram onde o historiador positivista espera encontrar, ou seja, nos ele-
mentos deliberadamente explicitados. Eles se encontram, todavia, nos
traços, nos indícios e nos sinais; na medida em que estes sim são revelado-
res de uma realidade profunda e inconsciente. Nessa forma de lidar com as
fontes proposta pelo paradigma indiciário, um método particular de análi-
se é adotado: uma leitura “a contrapelo”, realizada “contra as intenções
dos redatores das fontes”, no intuito de capturar justamente aqueles ele-
mentos que escapam ao controle deles (CERUTTI, 2011, p. 567).
A micro-história italiana chega ao Brasil com a tradução dos livros de
Carlo Ginzburg no final dos anos 1980 e adentra nos manuais de metodo-
logia de história nos anos 1990 e 2000. E como toda novidade intelectual,
sua “absorção” se deu com alguns equívocos. Se analisarmos alguns dos
primeiros debates4 ocorridos no país, ela aparece como uma variação da
História Cultural ligada à chamada terceira geração dos Annales. Apesar
5 Ver, por exemplo: Henrique Espada Lima (2006); Mônica Ribeiro Oliveira (2009);
João Fragoso, Roberto Guedes e Antonio Carlos Sampaio (2014); Tiago Gil (2011);
Luiz Augusto Farinatti (2008). João José Reis (2008; 2010); Gabriel Santos Berute
(2016); Jonas Moreira Vargas (2016); Marcos Ferreira Andrade (2014).
47
Deivy Ferreira Carneiro
uma vontade de criar o verossímil (FARGE, 2009, p. 16): “[...] nelas se
demarcam identidades sociais exprimindo-se por formas precisas de re-
presentação de si e dos outros, esboçam-se formas de sociabilidade e ma-
neiras de perceber o familiar e o estranho, o tolerável e o insuportável”
(FARGE, 2009, p. 80).
Os processos criminais, como fontes produzidas nesses arquivos, têm
sua complexidade e não podem ser simplesmente reproduzidos ou descri-
tos, mas sim analisados em seus componentes múltiplos e até mesmo con-
traditórios (CORRÊA, 1983). É incontestável o valor destes documentos,
que possibilitam perceber como se produzem e se explicam as diferentes
versões dos agentes envolvidos nos diferentes casos (acusado, delegado,
testemunhas, promotor, juiz) (CHALHOUB, 2002). Sendo assim, busca-
mos descrever, através dos processos criminais, mesmo que às vezes muito
parcialmente, alguns aspectos relevantes das formas de pensar e agir dos
atores sociais, bem como tentamos historicizar suas condutas descritas na
documentação coligida. Segui de perto Edoardo Grendi, que nos lembra
que através da análise de valores honoríficos, os documentos judiciários
ajudam a revelar elementos das relações sociais dos mais difíceis de serem
reconstruídos no domínio da História, na medida em que nos apontam o
papel de determinados valores no processo de conformação da comunida-
de (GRENDI, 2009, p. 26-27). Nessa situação, a documentação excepcional
acaba sendo extraordinariamente “normal”, precisamente devido ao seu
caráter revelador.
Assim, o crime, a violência e a ação do aparato jurídico-policial foram
tomadas como algo que envolve tanto eventos quanto representações que
esboçam poderes e sua dinâmica social. Por sua vez, tais marcas de poder
também me ajudam a definir os indivíduos numa gama de papéis sociais
como vítimas, réus, criminosos, juízes e também nos oferecem uma visão
sobre as categorias ignoradas de família, amigos, vizinhos, espectadores
“inocentes”, e de agentes do poder. A análise da criminalidade me auxili-
ou, dentre outras coisas, a perceber que tipo de relações legitimavam o
48
Microanálise e o Leviatã
teatro do poder e da autoridade. Esse teatro interage e legitima uma parte
de um sistema de símbolos gerados em resposta aos crimes, em grande
parte porque os crimes testam e mensuram valores. Ou seja, apreendi que
a relação entre ditames e comportamentos não pode ser concebida apenas
em termos de imposição, execução e desvio.
Os processos criminais revelam que, para os sujeitos e grupos envolvi-
dos, não havia apenas a possibilidade de se revoltarem ou se adaptarem à
repressão. Os documentos sugerem a possibilidade real dos indivíduos
contornarem a lei e o sistema; de manipularem os ditames legais e assim,
frente a uma pluralidade de disposições normativas cuja característica
principal é a incoerência; de adotarem estratégias de manipulação para
tirar vantagem dessas contradições. Esses sujeitos e grupos sociais podem
operar nos interstícios existente entre vários sistemas normativos e recor-
rer a um sistema ao invés do outro de acordo com sua conveniência (AGO,
2004, p. 46).
Como disse, essa leitura somente foi possível porque os processos mos-
tram em suas linhas e entrelinhas todo o desenrolar da montagem, negoci-
ação, estratégias e conclusão de certos conflitos. Revelaram os dramas, os
valores, as noções de justiça, honra, moral e as concepções de mundo que
surgiram nos processos de interação que se estabelecem nas ruas, no inte-
rior do campo jurídico e na disputa aí aberta (MOMSMA, 2005, p. 159).
Permitiram, assim, reconstruir os modos pelos quais os homens e mulhe-
res percebiam, praticavam e exprimiam a realidade (VENDRAME, 2016) e
a demonstrar como pequenos fatos aparentemente insignificantes estão
cheios de significados históricos complexos (LEVI, 2017, p. 180).
Assim, uma das principais conclusões que cheguei em meu último livro
(CARNEIRO, 2019) é que as ofensas verbais relatadas nos processos cri-
minais analisados refletem, a seu modo, a sociedade juizforana, expondo
valores sociais que eram admitidos ou transgredidos; revelando a impor-
tância da manutenção de certos comportamentos públicos. Os insultos
contra os homens ocorreram em especial em situações que envolviam al-
49
Deivy Ferreira Carneiro
gum tipo de negociação, atuando como uma forma de trazer segurança e
previsibilidade em relações sociais e econômicas fundamentais àquela
cidade. Neste sentido, como forma de defesa social, elementos como honra
e vergonha se tornaram valores fundamentais entre os homens de Juiz de
Fora. No caso das mulheres os insultos surgiram nas mais variadas situa-
ções, mas sempre com o intuito de relembrar à mulher seu papel social:
mãe, casta e atrelada ao universo doméstico. Os insultos direcionados às
mulheres que habitaram em Juiz de Fora no período analisado nada mais
fizeram do que evocar um dos mais antigos tabus que perpassam por quase
todas as sociedades humanas: o controle sexual da mulher pelo homem; o
eterno medo do macho em deixar sua fêmea livre e com isso, arcar com a
eterna dúvida da paternidade de seu filhote. Mesmo em uma cidade medi-
ana do interior brasileiro, este tabu ancestral foi evocado em todos os mo-
mentos em que a mulher atuava contrariamente ao comportamento que
dela era esperado pelos homens e, consequentemente, esperado pela socie-
dade como um todo.
Além de funcionarem como meio de ferir a honra daqueles que des-
cumpriam as mais variadas regras comunitárias, as ofensas e os xingamen-
tos serviram também como veículo para a exteriorização das redes de in-
terdependência e para tornar pública as diferenças e conflitos outrora
ocultos. Consequentemente, também acabaram por revelar elementos
importantes do cotidiano dos habitantes de Juiz de Fora no período anali-
sado. Descortinamos elementos marcantes incrustados nas maneiras por
meio das quais os atores lidavam entre si, principalmente em contextos
envolvendo questões de trabalho, moradia, propriedade e até mesmo di-
versão. Observei, através dos conflitos relatados nos processos criminais, o
papel do paternalismo nas relações de trabalho em pequenas oficinas, bem
como o papel da propriedade de pequenos lotes de terra e a posse de ani-
mais para a sobrevivência daqueles que não queriam viver à sombra dos
grandes fazendeiros da região. Ressaltei também a atuação paradoxal da-
queles que dependiam de casas de aluguel para viverem: ora aceitavam a
50
Microanálise e o Leviatã
arbitrariedade do senhorio, ora resistiam, agrediam e processavam os
mesmos.
Outra conclusão a que cheguei é a percepção do uso pragmático da jus-
tiça pela população subalterna local e como a busca pela ordem era acio-
nada por ambas as partes. A população procurava a justiça por uma razão
bem simples: reparar sua imagem social com o intuito de resgatar a segu-
rança e o respeito necessários para o bom convívio social. Indiretamente,
ao procurar o aparato jurídico, um ordenamento social mínimo era reque-
rido por esta população; ordenamento este necessário às relações comuni-
tárias e comerciais, fundamental para assegurar boas relações com os vizi-
nhos, paz para trabalhar, para se divertir, etc. Estas ações da população
devem ser vistas como estratégias adotadas para minimizar as incertezas
da vida cotidiana. Acionar a justiça em momentos em que a honra era
manchada trazia benefícios para estas pessoas, visto que sua honra seria
protegida pelo Estado e a ordem necessária para o viver diário seria manti-
da. Nesta relação, a justiça também ampliava seus ganhos. Mediando os
conflitos verbais ela expandia sua legitimidade e conseguia impor, em al-
gum nível, um certo ordenamento social nas relações pessoais.
Por motivos distintos, ambas as partes saíam satisfeitas da interação.
Entretanto, devido ao uso pragmático da justiça por parte da população,
tal interação só foi bem-sucedida até o momento em que a justiça atuou
conforme foi requisitada, ou seja, condenando os ofensores da honra
alheia, trazendo de volta a estima social para o ofendido, bem como levan-
do um ordenamento às relações vividas em comunidade. A partir do mo-
mento em que a justiça deixou de condenar os réus nos processos de calú-
nia e injúria, a população deixou de acioná-la quando ofendida verbal-
mente, alterando as bases da relação entre ambas as partes. Acreditamos
que não seja coincidência o fato de que no mesmo período em que a popu-
lação deixou de buscar a mediação da justiça – a partir da década de 1890
– cresceu na cidade o número de processos envolvendo violência física
(lesão corporal, tentativa de homicídio e homicídios). Sendo ineficaz o
51
Deivy Ferreira Carneiro
arbítrio da justiça, a violência foi uma alternativa adotada para resguardar
e restaurar a honra.
É importante ressaltar que essa mudança na relação entre a população e
o aparato jurídico se deu também devido a uma mudança de interesses da
própria justiça que, a partir da transição para o século XX, com a consoli-
dação de relações sociais e econômicas de cunho capitalista, passou a atuar
sobretudo na regulamentação e punição de crimes contra a propriedade
privada e contra a integridade física das pessoas. Tal mudança de priorida-
de teria ocorrido com o intuito de preservar a ordem necessária para o
desenvolvimento e expansão do capital? Para tal pergunta ainda não temos
resposta. Seria necessário abordarmos as peculiaridades de tais crimes e a
relação dos envolvidos com a justiça para que este questionamento obti-
vesse uma resposta com o mínimo de embasamento empírico.
4 Conclusão
Foi com imensa tristeza que recebi, há quase um ano, a notícia da mor-
te de António Manuel Hespanha, que lutava contra o câncer. Tive o prazer
de ter alguns encontros com ele, mediados pelo Prof. Dr. Diego Nunes, na
Universidade Federal de Uberlândia, entre os anos 2015 e 2016. Antes
disso, como historiador, eu admirava o rigor e facilidade com que Hespa-
nha abordava temas complexos; admirava como, de forma clara, ele revo-
lucionava a concepção clássica da centralização do Estado Absolutista e
como contribuía, em especial, para uma visão mais empírica e complexa
sobre o funcionamento administrativo do Brasil Colonial.
António Manuel Hespanha “revolucionou a História”: a paráfrase ao
livro de Paul Veyne, nesse caso, não é sem propósito. Assim como Michel
Foucault, Hespanha revitalizou os debates sobre o poder e pluralizou suas
relações, superando dicotomias como dominante/dominado, metrópo-
le/colônia e centro/periferia. Dito de outra forma, o poder não se circuns-
crevia aos limites de um poder central concentrado na corte, pois a vasta
extensão do Império português não poderia prescindir de acordo e pactos
52
Microanálise e o Leviatã
entre o rei e seus subordinados; não poderia se manter sem a concessão de
mercês e honrarias. Logo o estudo sobre as monarquias corporativas con-
fere à historiografia um novo tom, caracterizado por abordagens refinadas
que, a depender da escala de observação, oferece subsídios para análises
amplas e complexas sobre o chamado Antigo Regime.
Leviatã é um monstro mitológico bíblico que serviu para Thomas
Hobbes como metáfora do absolutismo. Hespanha, depois de estudar e
produzir um vasto estudo, subjugou a animália com uma análise sofistica-
da que legou aos estudiosos, como este que vos fala, uma contribuição sem
igual, proporcional à honra de prestar-lhe esta homenagem.
Fui conferir a bibliografia de meu último livro e não encontrei indica-
ções à obra de Hespanha. Acho que esse ensaio foi capaz de corrigir esse
equívoco: por mais que atualmente suas obras não estejam presentes na
minha bibliografia principal, pois caminho longe da História do Direito, a
sua forma de enxergar e produzir História – na qual para se compreender
um problema de pesquisa, a complexificação do objeto é o elemento prin-
cipal; na qual a compreensão da interação dos atores é mais importante do
que apenas entender os meandros das instituições – continuam a me en-
cantar e moldar como o fizeram quando li pela primeira vez As vésperas do
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O PODER DOS JUÍZES EM DIZER O DIREITO:
UMA BREVE INCURSÃO HISTÓRICA E A
PROPOSTA DE ANTÓNIO MANUEL
HESPANHA
2
Maiara Batalini de Macedo
Luiz César Machado de Macedo
__________________________________________________
RESUMO: O presente artigo tem por finalidade apresentar ao leitor a evolução
histórica do ius dicere, tendo como ponto de partida sua configuração a partir
da idade média ocidental - onde se localiza pela primeira vez a distinção entre
a função de legislador e intérprete da lei, passando pelas revoluções burguesas -
nas quais se firma a figura do juiz independente e concluindo pela consolida-
ção dessa função de dizer o direito aos juízes, consignada nas constituições do
século XIX, que basicamente nesse ponto mantém suas características até os
dias presentes, momentos que servirão para António Manuel Hespanha pensar
uma solução para o aparente paradoxo: quem tem o poder de dizer o direito? É
através da pontuação dessa atividade nesses quatro momentos – idade média,
revoluções burguesas, constituições modernas e contemporaneidade – que se
consolidará a proposta de Hespanha, como uma visão condizente com a com-
plexidade que esta atividade requer, dentro de um paradigma pluralista.
__________________________________________________
1 Introdução
Compreender a evolução histórica do poder dos juízes em dizer o direi-
to foi parte essencial do estudo realizado para conclusão da dissertação de
mestrado da autora1, orientada pelo Prof. Dr. Diego Nunes, oportunidade
61
Maiara Batalini de Macedo · Luiz César Machado de Macedo
qualquer um desses poderes sobre outros, e muito menos “a ideia duma
posse exclusiva e ilimitada do poder político pela entidade soberana”. Ali-
ás, todas as entidades que exerciam certo poder político poderiam ser clas-
sificadas como “soberanas”.
Dessa forma é notável a distinção entre o conceito medieval e o con-
temporâneo de soberania, em que este último traduz o caráter exclusivo e
ilimitado do poder político estatal, pelo menos a partir da Revolução Fran-
cesa e do conceito nacional (Sieyès) e popular (Rousseau) de soberania,
representando, respectivamente o compromisso entre democracia repre-
sentativa e a democracia direta2. Aliás, segundo Fioravanti (2012) a produ-
ção do direito a partir da Revolução Francesa se concentra em duas figuras
públicas: o representante do povo soberano e o juiz. Segundo ele, entre
“uma e outra função há uma zona cinzenta [...] que é a função do ius dice-
re” (FIORAVANTI, 2012, s/p). Inicialmente os revolucionários chegaram
a proibir a interpretação das leis por parte dos juízes, que deveriam para
tanto formular dúvidas sobre a interpretação das mesmas à própria assem-
bleia nacional francesa3.
Segundo Fioravanti (2012), ao tratar do papel dos juízes em confronto
com os representantes populares conclui que um modelo de absoluta sepa-
ração entre legislar e julgar
2 Tal compromisso está presente nas constituições contemporâneas, como por exem-
plo, no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal de 1988: “Parágrafo único:
Todo o poder emana do povo [soberania popular = democracia direta] que o exerce
por meio de representantes eleitos [soberania nacional = democracia representativa]
ou diretamente, nos termos desta Constituição”. (grifo nosso)
3 Segundo Perelman “o poder de julgar será apenas o de aplicar o texto das leis às
situações particulares, graças à uma dedução correta e sem recorrer à interpretações
que poderiam deformar a vontade do legislador”. Para tanto cita a lei de organização
judiciária de agosto de 1790 que dispõe em seu artigo 12: “Eles (os tribunais) não po-
derão estabelecer regulamentos, mas deverão dirigir-se ao corpo legislativo sempre
que acharem necessário quer interpretar uma lei, quer fazer uma nova”. (PEREL-
MAN, 1998, p.23.)
62
O poder dos juízes em dizer o direito
[...] não existiu nunca em sua inteireza, ao menos por causa da insuprível
natureza prática do direito, que, em certa medida, tende, internamente a
cada modelo, e, em cada tempo, a realizar-se no caso concreto, através da
interpretação. (FIORAVANTI, 2012, s/p)
Para Fioravanti (2012), a “transformação constitucional” trazida a par-
tir da metade do século passado trouxe “uma extraordinária novidade: a
introdução nas Constituições Contemporâneas, em posição de permanên-
cia, de grandes normas de princípio, sobretudo em matéria de Direitos”
(FIORAVANTI, 2012, s/p 2)4. Dessa forma, conclui que nas democracias
contemporâneas tem ocorrido uma “diminuição do peso da legislação em
face da constituição, bem como em um paralelo e correspondente aumen-
to do peso da jurisdição”. (FIORAVANTI, 2012, s/p 3)
Pelas razões acima, segundo Fioravanti (2012), pode-se concluir pela
legitimidade da função jurisdicional caracterizada pela atuação do juiz no
atual estado Constitucional de Direito:
Hoje a democracia é infinitamente mais complexa. Consiste essencialmen-
te em um processo e, mais precisamente, em um processo de progressiva e
articulada concretização dos princípios constitucionais por obra do legis-
lador mas também dos juízes, cada um dos quais com seus próprios ins-
trumentos. [...] Existe a realização do princípio democrático também
quando um juiz fundamenta a sua sentença com base em uma interpreta-
ção da lei que concorre na concretização de um princípio constitucional.
(grifo nosso) (FIORAVANTI, 2012, última s/p)
Outro importante historiador do Direito, Michael Stolleis (2014), em
seu artigo “Interpretação judicial na transição do Antigo Regime ao Cons-
titucionalismo” inicia o seu artigo com a famosa citação de Thomas
Hobbes: “Todas as leis precisam de interpretação” (Leviatã, Parte 2, Capí-
tulo XXVI). Segundo Stolleis (2014), como decorrência da soberania en-
quanto poder estava contida a capacidade de fazer, suprimir ou mudar as
69
Maiara Batalini de Macedo · Luiz César Machado de Macedo
exclusivamente destinada a ser “a boca da lei6”.
Importante destacar também, como o faz Hespanha (2003), que o ima-
ginário jurídico e político dos juristas medievais terminou por conformar
o próprio ideal revolucionário que instruiu o Renascimento e o Iluminis-
mo. Como um exemplo esclarecedor desse fato, verifica-se que o conceito
jurídico de contrato como um acordo livre entre pessoas iguais, visando a
um objetivo comum, tornou-se um paradigma para o contratualismo polí-
tico que inspirou Thomas Hobbes, John Locke e Rousseau, resultando
ainda no constitucionalismo enquanto movimento político e jurídico, de-
talhadamente analisado na clássica obra de Quentin Skinner (1996) “As
fundações do pensamento político moderno”.
Portanto, as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII (Revolu-
ções Inglesas de 1640 e 1688, Revolução Americana de 1776 e Revolução
Francesa de 1789) passam a adotar o critério voluntarista de origem e re-
conhecimento do Direito: a vontade geral dos cidadãos como fonte de
legitimidade do Direito e do Estado.
No entanto, segundo Hespanha (2003, p.248) “se há algo que caracteri-
za o pensamento jurídico dos últimos dois séculos, é a sua multiforme
reação contra o domínio do exclusivo da criação do direito pela vontade
popular [...]”. Segundo ele, a classe dos juristas procurou,
[...] salvaguardar um monopólio de dizer o direito, que sempre lhes per-
tencera e de que a fase mais radical da revolução francesa (que em termos
constitucionais se exprime no projeto de constituição de 1791) ostentara
expropriar. (HESPANHA, 2003, p.248).
6 Célebre passagem da obra “Esprit des loi” de 1748 : "Mais les juges de la nation ne
sont, comme nous avons dit, que la bouche qui prononce les paroles de la loi ; des
êtres inanimés, qui n’enpeuvent modérer ni la force ni la rigueur". “Mas os juízes da
nação são, como dissemos, a boca que pronuncia as palavras da lei; seres inanimados
que não podem moderar nem a força nem o rigor”. (Tradução nossa) MONTES-
QUIEU, 1777, p. 327)
70
O poder dos juízes em dizer o direito
Dessa forma, desde os primórdios da afirmação do princípio democrá-
tico da soberania popular em dizer o direito já estava presente a reação da
poderosa classe de especialistas (juristas e magistrados) procurando salva-
guardar o seu relevante e até então exclusivo papel de dizer o direito (ius
dicere). Esse conflito, entre o elitismo social dos juristas e o princípio de-
mocrático popular será expresso por Hespanha (2003) na antítese razão
jurídica x razão popular.
As consequências desse confronto desembocam em um déficit de legi-
timidade na construção e aplicação do direito, visto que, segundo Hespa-
nha (2003, p.244):
O princípio democrático vem estabelecer que a única legitimidade política
é a legitimidade proveniente da vontade popular, manifestada pelos seus
representantes eleitos através das votações nos órgãos representativos (por
excelência, os parlamentos). A hegemonia política absoluta do parlamento
– com a consequente concentração nele de toda capacidade de criar direito
– decorria do princípio da soberania do povo.
Pelo exposto, concluirá Hespanha (2003, p.245-246) que:
Também a jurisprudência (legitimada pela competência técnica dos juízes)
devia ceder. Pois, de acordo com o princípio democrático a legitimidade
dos juízes é somente indireta, decorrente apenas do fato de se tratar de um
poder previsto na Constituição.
Para o modelo teórico americano, diferentemente do Europeu, a ideia
da soberania do povo, ou seja, o princípio democrático deveria ser restrin-
gido por meio do princípio republicano de um governo limitado, isto é,
[...] limitado, desde logo, pela instituição de uma série de poderes e contra
poderes no topo do Estado (bicameralismo, veto presidencial, controlo ju-
dicial da constitucionalidade das leis) Este modelo liberal – teorizado so-
bretudo por Alexander Hamilton (1755-1804) e James Madison (1751-
1836) – introduziu do mundo jurídico-político uma ideia nova, a do con-
trole constitucional das leis, a cargo do judicial. [...] mas com isto, voltava
a entregar aos juristas a última palavra sobre o direito constituído. (HES-
71
Maiara Batalini de Macedo · Luiz César Machado de Macedo
PANHA, 2003, p.253)
74
O poder dos juízes em dizer o direito
sentido de obtener solucionés que satisfagam en el grado más elevado y
sustentado posible, las varias redes de interación práctica existentes en la
sociedade [...] (HESPANHA, 2011, p.292).7
Da mesma forma, no texto de seu artigo acima citado, e intitulado
¿Habrán vuelto los jueces al cientro del derecho?, conclui Hespanha (2011)
que em uma democracia avançada de caráter participativo, as decisões
judiciais devem reconhecer o capital de saber prático ou conjunto de práti-
cas vivenciadas pela comunidade, formado a partir da experiência de todas
as redes sociais envolvidas, estatais ou não estatais, e não a partir apenas do
saber obscuro de peritos ou burocratas.
Dessa maneira, se for levado a sério esse novo paradigma democrático,
os conflitos políticos e jurídicos que exijam a intervenção judicial devem
orientar-se por uma solução mais consensual e estabilizadora, substituindo
o papel que tradicionalmente é dado aos juristas como um grupo corpora-
tivo especializado em justificar consensos internos, por um processo de
conversão onde um consenso restrito é substituído por um consenso alar-
gado e inclusivo. Nesse sentido, afirma Hespanha (2015, p.30):
[...] a ideia de que o direito corresponde a uma ordem consentida pela co-
munidade é incompatível com a concepção de que a declaração do conte-
údo dessa ordem esteja monopolizada por uma elite, com um discurso
frequentemente obscuro e pouco controlável por uma discussão acessível
ao entendimento comum. Há século que – como se diz - se afirma como
princípio jurídico que “o que toca todos deve ser aprovado por todos”
(quod ad omnes tangit, ab omnibus approbari debet) e isso implica um ti-
4 Conclusão
A figura do juiz ao longo da história do direito no ocidente assistiu a
grandes transformações, em especial após o advento da modernidade. A
partir da idade moderna e da vitória das revoluções burguesas, o ideal pro-
posto por Montesquieu, visando a neutralização do poder judiciário se
impôs: cabia ao juiz ser apenas “la bouche que prononce les paroles de la
loi”. Não havia liberdade aos juízes para interpretar ou criar direito, res-
tringida a sua atuação à mera aplicação do direito, com interpretação rela-
tiva das normas, jungida apenas à dimensão sintático-semântico, vale di-
zer, lógica das mesmas, ou ainda, simplesmente de interpretação das pala-
vras da lei.
No atual Estado Constitucional de Direito, no entanto, o judiciário
exerce poder político inegável, pois em virtude de exercer a função do Es-
tado em dizer o direito (ius dicere) em uma sociedade cada vez mais com-
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__________________________________________________
80
PARTE II
Pluralismo Jurídico e
Jurisdição Estatal
PLURALISMO JURÍDICO DE ANTÓNIO
MANUEL HESPANHA: UM ESTUDO DO
DECRETO PRESIDENCIAL N.º 8.243/2014 À
LUZ DA TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA
DE HABERMAS1
3
Clayton Moreira de Castro
Samir Alves Daura
__________________________________________________
RESUMO: O objetivo deste artigo é estudar o pluralismo jurídico de António
Manuel Hespanha, mormente quanto ao que o autor português adota da teoria
da ação comunicativa de Habermas, e analisar os consensos comunitários que
seriam possíveis por meio da Política Nacional de Participação Social (PNPS),
instituída pelo Decreto Presidencial n.º 8.243, de 23 de maio de 2014, que ficou
conhecido como “decreto bolivariano de Dilma”. Utilizou-se o método induti-
vo como método de abordagem e o estudo de caso como método de procedi-
mento. Concluiu-se que a PNPS consiste em uma possibilidade de concreção
da teoria pluralista do Direito de Hespanha.
__________________________________________________
1 Introdução
Vive-se em uma sociedade multicêntrica, globalizada e hipercomplexa.
A conjuntura traz em seu bojo uma crise do Direito, do Estado e da dog-
tensão velada de instalar no Brasil uma “ditadura por decreto”, que seria implemen-
tada por meio de instâncias e mecanismos semelhantes aos conselhos comunais ve-
nezuelanos ou até mesmo aos antigos conselhos operários (ou sovietes) da extinta
União Soviética. A expressão em comento foi bastante utilizada pela oposição ao go-
verno da Presidente Dilma, conforme pode ser verificado pela reportagem intitulada
“Câmara derruba decreto de conselhos populares e impõe 1ª derrota a Dilma após
reeleição”, veiculada pelo jornal Folha de São Paulo, em 28.10.2014, disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/10/1540016-camara-derruba-decreto-
de-conselhos-populares-e-impoe-1-derrota-a-dilma-apos-reeleicao.shtml>. Além do
mais, a própria imprensa utilizou-se fartamente da expressão, como pode ser consta-
tado pela matéria intitulada “O lado eleitoreiro do decreto bolivariano de Dilma”,
veiculada pelo portal da revista Veja (“Veja.com”), no dia 08.06.2014, disponível em
<http://veja.abril.com.br/politica/o-lado-eleitoreiro-do-decreto-bolivariano-de-
dilma/>.
85
Clayton Moreira de Castro · Samir Alves Daura
Política Nacional de Participação Social seriam alargados, adequados e re-
flexivos?
Diante dos problemas anteriormente formulados, podem ser apresen-
tadas as seguintes hipóteses de estudo, que consistem nas respostas provi-
sórias aos problemas da pesquisa: a) a Política Nacional de Participação
Social, instituída pelo Decreto n.º 8.243/2014 consiste em uma possibilida-
de de concreção da teoria pluralista do Direito de Hespanha, em especial
no tocante ao que o autor português adota da teoria da ação comunicativa
de Habermas; e b) os consensos comunitários possíveis de serem alcança-
dos por meio da Política Nacional de Participação Social poderiam ser
alargados, adequados e reflexivos.
A relevância e a atualidade do tema do presente artigo ficam evidencia-
das quando se percebe a escassez de trabalhos técnico-científicos voltados
ao estudo da possibilidade de concreção de uma teoria pluralista do Direi-
to, bem como o possível alcance social da Política Nacional de Participação
Social estabelecida pelo Decreto Presidencial n.º 8.243/2014.
Ademais, optou se por desenvolver o objeto de pesquisa por meio do
estudo de caso, porque, assim, é possível uma aproximação entre a teoria
(na espécie, a teoria pluralista do Direito de Hespanha) e o plano concreto
de prática do Direito.
Com efeito, o presente trabalho possibilita reflexões aprofundadas so-
bre questões jurídicas, orientadas pelas situações concretas decorrentes da
possibilidade de implementação de uma Política Nacional de Participação
Social, nos moldes da estabelecida pelo Decreto Presidencial n.º
8.243/2014.
Por todo o exposto, ficam evidenciadas a relevância e a atualidade do
tema desta pesquisa, cujo objeto é investigado, do ponto de vista metodo-
lógico, por intermédio do estudo de caso.
Como marco ou referencial teórico deste artigo, tem-se a teoria plura-
lista do Direito de António Manuel Hespanha, em especial o que o jurista
86
Pluralismo jurídico de António Manuel Hespanha
português adota da teoria da ação comunicativa formulada por Jürgen
Habermas4.
Hespanha (2009, 2013) defende a necessidade de “democratização do
Direito” e adverte para o risco que o atual contexto impõe em mitigar essa
necessidade. Para o autor, além do Direito estatal, existem normas de ori-
gem diversas e com diversas fontes de manifestação, o que evidencia um
novo paradigma pluralista ou pós-estatal do Direito. Isso ocorre, princi-
palmente, pela mobilidade do mundo de hoje, pela globalização e pelo
desajustamento e lentidão do Direito e da justiça estatal.
O objetivo geral ou mediato do presente trabalho é estudar o pluralis-
mo jurídico de António Manuel Hespanha e os consensos comunitários
que seriam possíveis por meio do que dispõe o Decreto Presidencial n.º
8.243/2014.
Os objetivos específicos ou imediatos do trabalho são: a) estudar o plu-
ralismo jurídico de António Manuel Hespanha, de forma orientada por
uma situação concreta, a saber: o Decreto Presidencial n.º 8.243/2014; b)
verificar a possibilidade de concreção da teoria pluralista do Direito de
Hespanha; e c) permitir a aproximação entre essa teoria e o plano concreto
de prática do Direito.
Para consecução dos objetivos propostos, adotou-se o método indutivo
como método de abordagem, que diz respeito aos fundamentos lógicos e à
organização do raciocínio desenvolvido em todo o trabalho.
4 Hespanha (2013, p. 189-190) esclarece que inicialmente era negativa a ideia de Habe-
rmas sobre o Direito do Estado, de forma que este defendia a multiplicidade de esfe-
ras comunicativas, geradoras de direitos libertadores. Não obstante, posteriormente,
Habermas modifica seu pensamento, passando a considerar o poder do Estado (de-
mocrático) como uma força positiva, uma vez que possui origem dialogal. Hespanha
deixa claro que a ideia inicial, da multiplicidade de esferas comunicativas, geradoras
de direitos libertadores, permanece como fundamento de algumas versões do plura-
lismo jurídico (como a dele próprio) e como base teórica adequada às principais cor-
rentes da “teoria da argumentação” (como a de Robert Alexy).
87
Clayton Moreira de Castro · Samir Alves Daura
Quanto ao método de procedimento, o qual se refere à forma como se
obtém, processa e valida dados sobre o problema investigado, utilizou-se o
estudo de caso.
Este trabalho envolve levantamento bibliográfico, com compilação e
revisão de material doutrinário bibliográfico acerca do tema proposto.
Foram revisados conceitos e ideias importantes para a compreensão de
toda a extensão desta pesquisa. Paralelamente, adotou-se a análise docu-
mental, com avaliação (crítica) em profundidade da legislação.
88
Pluralismo jurídico de António Manuel Hespanha
Federal5.
A PNPS, nos termos do art. 1º do Decreto Presidencial n.º 8.243/2014,
possui “objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias
democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração públi-
ca federal e a sociedade civil.” (BRASIL, 2014).
O objetivo da PNPS, de acordo com o que dispõe o Decreto, está perfei-
tamente em consonância com a democracia, quiçá se encontra além da
democracia reinante atualmente no país, porquanto pretende instituciona-
lizar a busca pelo diálogo e a atuação conjunta entre a administração pú-
blica federal e a sociedade civil.
O Decreto estabelece as diretrizes gerais e os objetivos da PNPS, bem
como estatui instâncias e mecanismos de participação social (formas de
diálogo entre administração pública federal e sociedade civil).
O art. 3º do Decreto Presidencial n.º 8.243/2014 estabelece que, dentre
outras, “são diretrizes gerais da PNPS: I - reconhecimento da participação
social como direito do cidadão e expressão de sua autonomia; [e] II - com-
plementariedade, transversalidade e integração entre mecanismos e ins-
tâncias da democracia representativa, participativa e direta” (BRASIL,
2014). É importante destacar, uma vez mais, que o Decreto evidencia a
pretensão da participação social e da democracia.
Relativamente aos objetivos da PNPS, em seu art. 4º, o Decreto Presi-
dencial em comento estabelece, dentre outros, os seguintes: “I - consolidar
a participação social como método de governo; II - promover a articulação
das instâncias e dos mecanismos de participação social; III - aprimorar a
relação do governo federal com a sociedade civil, respeitando a autonomia
das partes; IV - promover e consolidar a adoção de mecanismos de parti-
5 A informação de que o Decreto Legislativo n.º 147, de 2014, ainda está em tramitação
no Senado Federal foi confirmada pela última vez no dia 3.7.2016, no site do Senado.
Disponível em: <http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-
/materia/118766>.
89
Clayton Moreira de Castro · Samir Alves Daura
cipação social nas políticas e programas de governo federal; e V - desen-
volver mecanismos de participação social nas etapas do ciclo de planeja-
mento e orçamento” (BRASIL, 2014).
Não há como afastar-se do que o Decreto Presidencial n.º 8.243/2014
estipula de forma clara: a PNPS visa a consolidar a participação social na
atividade administrativa da União, deixando evidente que, assim sendo,
essa participação social já existe, senão não haveria que se falar em conso-
lidação.
De fato, no Brasil já há casos de participação social exitosa, como os
Conselhos de Saúde existentes em âmbito federal, estadual e municipal; o
Orçamento Participativo surgido no final da década de 1980, cujas experi-
ências de maior projeção (nacional e internacional) ocorreram em Porto
Alegre e Belo Horizonte; e as audiências públicas, que propiciam a troca de
informações entre particulares e agentes públicos.
Segundo a legislação brasileira, as audiências públicas podem ocorrer
como instrumento de realização da missão institucional do Ministério
Público e como instrumento de diálogo no âmbito de processo legislativo,
processo judicial e processo administrativo (em casos específicos que ver-
sam sobre meio ambiente, licitações e contratos administrativos, conces-
são e permissão de serviços públicos, etc.).
A questão controversial refere-se ao fato de o Decreto n.º 8.243/2014,
consoante o seu art. 2º, inciso I, englobar como sociedade civil “o cidadão,
os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucio-
nalizados, suas redes e suas organizações” (BRASIL, 2014).
Não se pode questionar, por óbvio, que os movimentos sociais perten-
cem à sociedade civil. A celeuma criada em torno do Decreto Presidencial
n.º 8.243/2014 está no fato de os movimentos sociais (ou grande parte
deles) estarem ligados ao Partido dos Trabalhadores6. Entretanto, não se
guns autores, em conformidade com a visão de Karl Marx, os partidos são a expres-
são política de uma classe social. Nesse sentido, é natural os partidos políticos se arti-
cularem com os chamados movimentos sociais. Não obstante, no Brasil, diante da
falta de fidelidade partidária da maioria dos políticos e da aversão a partidos políticos
de grande parte dos eleitores, os maiores partidos brasileiros não têm significativa ar-
ticulação com os movimentos sociais. A relação desses partidos políticos com os mo-
vimentos sociais acontece incipiente e casualmente, em determinadas circunstâncias
e casos específicos. A exceção disso é o Partido dos Trabalhadores (além de outros
pequenos partidos de esquerda), que, desde sua origem, de forma permanente, estra-
tégica e institucionalizada, mantém relação estreita com sindicatos, movimentos ét-
nico-raciais, movimentos de gênero e grupos de sem-terra, sem-teto, trabalhadores,
estudantes, indígenas, quilombolas, etc.
91
Clayton Moreira de Castro · Samir Alves Daura
social, embora não tenha disciplinado a forma de ocupação desses espaços,
o que seria importante para assegurar os interesses do povo.
No tocante a essas instâncias e mecanismos, o Decreto Presidencial, em
seu art. 6º, cria as seguintes formas de diálogo entre administração pública
federal e sociedade civil: conselho de políticas públicas; comissão de políti-
cas públicas; conferência nacional; ouvidoria pública federal; mesa de diá-
logo; fórum interconselhos; audiência pública; consulta pública; e ambien-
te virtual de participação social (BRASIL, 2014).
A Constituição da República de 1988 (de forma não taxativa) estabele-
ceu instrumentos de democracia participativa, tais como o plebiscito, o
referendo e a iniciativa popular. Além disso, possibilitou a criação de ins-
tâncias e mecanismos de participação direta da sociedade no processo
decisório da administração pública. Nesse sentido, existem, há muito tem-
po, conselhos para os mais variados temas: saúde, educação, meio ambien-
te, segurança pública, idosos, juventude, merenda escolar, drogas.
Assim, o Decreto Presidencial n.º 8.243/2014 não inovou em relação à
participação da sociedade na gestão das políticas públicas. Em princípio,
com o Decreto, não houve (pronta) radicalização da nossa democracia,
tampouco foram dados privilégios do governo federal a qualquer segmen-
to da sociedade.
Isso porque, na prática, entre a previsão da participação social na for-
mulação e implementação de políticas públicas e a sua efetivação, certa-
mente haveria a necessidade de um longo tempo. O caminho seria espi-
nhoso. O tempo seria de negociação, inclusive quanto ao poder decisório
que teria a participação social disciplinada pela PNPS.
94
Pluralismo jurídico de António Manuel Hespanha
poder é difuso e fragmentado entre uma pluralidade de grupos que influ-
enciam de maneiras diversas o processo decisional complexivo. É a contí-
nua “contratação” e interação entre os diversos grupos e as diversas forças
sociais, é o conflito entre interesses em competição que determina a distri-
buição do poder e o funcionamento do sistema político. A democracia não
é o poder de um demos unitário: é a interação entre grupos e poderes di-
versos, é uma poliarquia; e é precisamente a substância poliárquica da de-
mocracia que a torna compatível com a liberdade. (COSTA, 2010, p. 263-
264).
Atualmente, o Estado tradicional enfrenta um processo de desconstru-
ção, agravado pela hipercomplexidade da sociedade contemporânea, de-
corrente principalmente da quantidade de fatos a serem regulados na soci-
edade globalizada.
Claudia Lima Marques e Bruno Miragem lembram que “se vive atual-
mente em uma sociedade pós-moderna7, sociedade de consumo e de pro-
96
Pluralismo jurídico de António Manuel Hespanha
municativa) e Niklas Luhmann (sistema autorreferencial)8.
Hespanha (2013, p. 153) inspira-se nesses três autores porque as pro-
postas teóricas deles seriam mais capazes de dar conta do atual modelo de
Direito, o qual, nas palavras do professor português, é descentralizado, não
hierárquico, pluralista, em rede (e não em pirâmide) e flexível (soft, mite,
dúctil9).
Do realismo (ou positivismo) de Hart, Hespanha (2013, p. 153) colheu
para sua teoria do Direito “a ideia de que a identificação do Direito deve
partir da observação do que se passa na comunidade, e não de uma noção
apriorística ou dogmática do que seja o Direito”.
De Habermas, embora de forma menos otimista, como deixa claro o
professor português, Hespanha (2013, p. 153) adotou a ideia de que o re-
conhecimento pelos tribunais de uma norma como Direito deve ter como
base os consensos comunitários inclusivos (alargados) e justos (adequa-
dos), e não uma lei do Estado.
Aqui, é interessante mencionar que o Decreto Presidencial n.º
8.243/2014, em seu art. 3º, inciso I, estabelece como diretriz geral o “reco-
nhecimento da participação social como direito do cidadão e expressão de
sua autonomia”.
Em verdade, esse direito de participação social possui envergadura
constitucional, se considerada uma releitura do princípio democrático,
adequada a um mundo pós-moderno, no qual existe notória vinculação da
atividade estatal e administrativa à consecução dos direitos fundamentais,
mormente em relação àqueles direitos que garantem minimamente uma
existência digna à pessoa humana.
8 Para maiores detalhes sobre as propostas teóricas em que se funda a teoria do Direito
de Hespanha, vide as seguintes obras: Hart (2001), Habermas (1997, 2002) e Luh-
mann (1983, 1985).
9 Sobre o Direito dúctil, vide a obra de Gustavo Zagrebelsky, “El derecho dúctil: ley,
derechos, justicia”. (ZAGREBELSKY, 2005).
97
Clayton Moreira de Castro · Samir Alves Daura
Essa vinculação da atividade administrativa aos direitos fundamentais
impõe uma nova relação entre a administração pública e o povo, de forma
que seja incentivado e consolidado o exercício da cidadania tão necessário
à promoção digna da pessoa humana, bem como buscada a legitimação na
formulação e na implementação de políticas públicas, por meio do diálogo
entre administração pública e sociedade, cuja finalidade consiste na for-
mação de consensos comunitários.
E, no atual momento histórico, somente na promoção da cidadania e
na busca por consensos comunitários poderia consistir a finalidade da
participação social prevista no Decreto Presidencial n.º 8.243/2014.
Feito esse adendo, é de se continuar dizendo que Hespanha (2013, p.
153-154) colhe de Luhmann a ideia de que é o próprio Direito que estabe-
lece o Direito, e não o Estado, a sociedade, a economia, a necessidade ou a
oportunidade. Enfim, Hespanha busca em Luhmann a confirmação de que
“o Direito diz o que ele é”.
Além disso, em Luhmann, Hespanha ainda busca a estabilidade que o
Direito deve proporcionar. Do sociólogo alemão, teórico da sociedade
como sistema autopoiético, António Manuel Hespanha colhe a ideia de
que o estabelecimento do Direito visa à redução da complexidade e à cria-
ção de situações de estabilização das expectativas.
Fiel à metodologia adotada, António Manuel Hespanha observa a reali-
dade e dela retira um fato: o pluralismo jurídico. Ele afirma que “o plura-
lismo normativo é um fato, antes mesmo de ser um ideal ou um perigo”
(HESPANHA, 2009, p. 524).
Para o autor, o pluralismo jurídico sempre existiu, ou seja, o Direito
sempre consistiu em uma ordem normativa pluralista. Esclarece ainda que
“o monismo legislativo é, na ordem dos fatos, uma ficção simplificadora”,
uma vez que “qualquer sociedade tem mais normas do que as legais”
(HESPANHA, 2009, p. 65).
98
Pluralismo jurídico de António Manuel Hespanha
3.3 O consenso como elemento legitimador do Direito
Na formulação de sua teoria do Direito, Hespanha (2013, p. 117) parte
do fato de que a Democracia é marco civilizacional dos nossos dias, de
forma que não se pode abandonar o paradigma democrático de legitima-
ção (validação).
O autor defende que o Direito deve ter pedigree democrático. Não obs-
tante, a democracia de Hespanha não é a democracia representativa. Para
ele, a legitimação do Direito a partir de um hipotético contrato social que
originasse uma vontade geral é um mito. O jurista de Portugal parte de um
conceito mais complexo de democracia, que, embora não exclua a demo-
cracia representativa, vai muito além dela (HESPANHA, 2013, p. 80-81).
Em verdade, a democracia de Hespanha tem como frutos os consensos
comunitários alargados e inclusivos. De fato, o autor defende que o ele-
mento de legitimação do Direito é o consenso.
Como se viu, o Decreto Presidencial n.º 8.243/2014, na essência, busca
o diálogo entre administração pública federal e sociedade civil, de forma
que haveria um claro propósito nisso: a formação de consensos comunitá-
rios.
É preciso observar que “há muitos consensos, uns aparentes, superfici-
ais, hegemônicos, manipulados; outros tendendo para condições ideais”,
em que o diálogo impera perfeitamente, abrangendo todos os interessados,
de forma inclusiva e abrangente, isenta de manipulação e rica em reflexão
(HESPANHA, 2013, p. 79-80).
Nessa senda, nem todo tipo de consenso produz Direito. Para produzir
Direito, é preciso que o consenso comunitário seja inclusivo, reflexivo e
estabilizador. Dessa forma, não produzem Direito os consensos internos
de um grupo corporativo assente nos seus pontos de vista particulares,
egoístas ou não. Hespanha (2013, p. 118) esclarece que, se uma norma é
fruto de um consenso imperfeito (aparente, superficial, hegemônico, ma-
nipulado, etc.), ela oferece poucas garantias de constituir uma moldura
99
Clayton Moreira de Castro · Samir Alves Daura
regulativa sustentável, porquanto estará sujeita à crítica deslegitimadora
daqueles que não participaram do consenso que a instituiu.
Assim, os consensos alargados e inclusivos são condições da eficácia ju-
rídica das normas e dos efeitos sociais estabilizadores que o Direito pre-
tende (HESPANHA, 2013, p. 118).
Partindo de uma observação empírica, para Hespanha (2013, p. 77), a
simples vigência de uma norma não garante a sua validade jurídica. É que
o autor faz claramente uma distinção entre vigência e validade jurídica.
Para ele, vigência é o “atributo das normas que são observadas numa co-
munidade de Direito” (HESPANHA, 2013, p. 291). Vigência é, portanto,
uma característica de obrigatoriedade da observância de uma determinada
norma, em um determinado espaço e tempo.
Validade jurídica, por sua vez, é “a vigência geral, inclusiva10, adequada
(justa, fair), sustentável11, estabilizadora12 para todos os destinatários”, em
decorrência de se fundamentar em um “consenso alargado, adequado e
reflexivo”, bem como cumprir “o requisito da consensualidade e capaci-
dade estabilizadora” (HESPANHA, 2013, p. 119).
Enfim, na teoria do Direito de Hespanha, as normas jurídicas devem
corresponder a consensos sociais alargados e adequados (fair), bem como
10 Para Hespanha (2009, 2013), norma inclusiva refere-se à necessidade de ela não ser
de solidariedade grupal, de defesa de interesses particulares, de comportamento
egoisticamente orientado.
11 A norma deve ter a capacidade para permanecer no tempo, com validade jurídica.
Entretanto, registre-se que, conforme Hespanha (2013, p. 78), a sustentabilidade não
será ilimitada, porque as sociedades evoluem, assim como os pontos de vista sobre a
adequação das normas.
12 Apesar de todos os elementos complexos e mutantes, a norma deve proporcionar
alguma estabilidade e ter condições de sustentação que lhe permita criar maior esta-
bilidade e previsibilidade. Isso será mais provável de acontecer se a norma tiver a ca-
pacidade de responder a expectativas gerais, sendo fruto de um consenso adequado
(HESPANHA, 2013, p. 78).
100
Pluralismo jurídico de António Manuel Hespanha
serem estáveis e estabilizadoras.
Uma questão que poderia ser colocada é quanto à capacidade de as ins-
tâncias e mecanismos de participação social institucionalizados pelo De-
creto Presidencial n.º 8.243/2014 serem capazes de produzir consensos
alargados, adequados e reflexivos.
Entretanto, a experiência brasileira com os conselhos comunitários, o
orçamento participativo e as audiências públicas sinaliza no sentido de ser
possível produzir consensos de boa qualidade. Seja como for, é sempre
hora de aprender a conversar, a ouvir e a decidir juntos. Isso é um proces-
so, em que todos ganham e a democracia se fortalece.
102
Pluralismo jurídico de António Manuel Hespanha
cracia participativa) adequam-se à teoria habermasiana ora estudada. Em
específico, é preciso perquirir a respeito da adequação ou não do Decreto
Presidencial n.º 8.243/2014 à teoria da ação comunicativa.
O citado Decreto, buscando instituir a Política Nacional de Participa-
ção Social no Brasil, em síntese, objetivou organizar e propiciar o relacio-
namento harmônico entre os diversos conselhos de participação social,
conferindo à sociedade civil, organizada ou não, a oportunidade de parti-
cipar das discussões relativas à formulação e à implementação de políticas
públicas.
Não obstante, a reação da maioria dos parlamentares do Congresso Na-
cional e de outros setores da sociedade foi extremamente contrária ao De-
creto n.º 8.243/2014, sob a alegação de que este usurparia a competência
legislativa e alteraria a própria Constituição, visto que esta não permitiria
outros mecanismos de democracia direta que não sejam o plebiscito, o
referendo e a iniciativa popular13.
Em relação a essa reação, importante é a análise de Habermas sobre o
desvirtuamento da ação comunicativa por meio do que ele denominou de
“colonização do mundo da vida”. Certamente, o modelo de democracia
representativa que não se abre à participação social, mas, ao contrário, visa
simplesmente a impor o paradigma estatal do Direito à sociedade civil,
ignorando a produção do Direito que ocorre no âmago da própria comu-
nidade, não é mais adequado nesta quadra da história.
Nesse sentido, como destaca Hespanha (2013), a “colonização do
4 Conclusão
O Brasil apresenta uma Constituição aberta quanto ao aprofundamento
da democracia, sendo perfeitamente possível a implementação de proce-
dimentos democráticos de participação social, como a Política Nacional de
Participação Social (PNPS), instituída pelo Decreto Presidencial n.º
8.243/2014.
Ademais, o ambiente democrático e o grau de maturidade de nossas
instituições garantem que a PNPS somente pudesse ser implementada com
espírito democrático, esvaziando qualquer eventual pretensão escusa que
pudesse existir na edição do Decreto n.º 8.243/2014.
Portanto, qualquer comparação entre o Decreto n.º 8.243/2014 e o de-
nominado “bolivarianismo”, não se mostra adequada, sobretudo porque o
Decreto visa apenas a estabelecer o diálogo entre a sociedade civil e o Esta-
do, o que certamente contribuiria para o fortalecimento da democracia e o
aprimoramento das políticas públicas.
Diante das inúmeras críticas, muitas vezes desproporcionais, proferidas
por determinados setores da sociedade, a PNPS acabou não sendo efetiva-
da, sendo o Decreto Presidencial alvo de Projeto de Decreto Legislativo
104
Pluralismo jurídico de António Manuel Hespanha
para sustação de seus efeitos. Certo é que o Brasil perdeu a chance de ao
menos aprofundar as discussões em torno do seu sistema democrático, o
que demonstra que o paradigma estatal do Direito ainda se encontra for-
temente arraigado em nossa cultura política.
No tocante à teoria do Direito de António Manuel Hespanha, fundada
no paradigma pós-estatal ou pluralista do Direito, é de se ressaltar que ela
tem como elemento legitimador o mesmo elemento último da Política
Nacional de Participação Social: o consenso.
Com efeito, a PNPS, instituída pelo Decreto Presidencial n.º
8.243/2014, busca na essência o diálogo entre o Estado e a sociedade civil,
havendo um claro propósito: a formação de consensos comunitários.
Assim, é bastante nítido que a Política Nacional de Participação Social
consistiria em uma possibilidade de concreção da teoria pluralista do Di-
reito de Hespanha, em especial no tocante ao que o autor português adota
da teoria da ação comunicativa de Habermas.
Além disso, é perfeitamente razoável admitir, em decorrência de nossa
experiência exitosa de participação social (conselhos comunitários, orça-
mento participativo e audiências públicas), a capacidade de as instâncias e
mecanismos de participação social institucionalizados pelo Decreto Presi-
dencial n.º 8.243/2014 serem capazes de produzir consensos alargados,
adequados e reflexivos.
Por fim, é importante registrar que neste artigo não se faz uma defesa
parcial da Política Nacional de Participação Social estabelecida pelo Decre-
to n.º 8.243/2014, muito menos de eventuais pretensões veladas de grupos
sociais, sejam eles partidos políticos ou não. Da mesma forma, não se ataca
o Decreto simplesmente por ele institucionalizar canais de diálogo com a
sociedade civil, aí incluídos os movimentos sociais. O que se pretendeu
neste trabalho, repita-se, uma vez mais, é discutir a teoria pluralista do
Direito de António Manuel Hespanha, orientada pela participação social
institucionalizada pelo Decreto Presidencial n.º 8.243/2014.
105
Clayton Moreira de Castro · Samir Alves Daura
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107
PLURALIDADE DE CORTES E O CONFLITO
ENTRE SUAS DECISÕES: A LEI DE
ANISTIA, O SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL E A CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS1
4
Larissa Sampaio Teles
Marcella Rosiére de Oliveira
__________________________________________________
RESUMO: O estudo, abordando o pluralismo jurídico, objetiva analisar uma das
consequências da pluralidade de cortes: o conflito entre decisões por elas ema-
nadas. Através do caso “Guerrilha do Araguaia” e da lei de anistia, examinar-
se-á as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, na ADPF n° 153, e
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento do caso “Go-
mes Lund e outros”. Buscar-se-á um posicionamento em caso de conflitos en-
tre decisões de diferentes cortes. A metodologia terá cunho dogmático, com
abordagem indutiva e método monográfico. Os resultados consistem no estu-
do do transconstitucionalismo e da supremacia dos direitos humanos.
__________________________________________________
1 Introdução
O pluralismo jurídico trata-se da denominação atribuída ao modelo vi-
venciado por vários países, dentre eles o Brasil, caracterizado por um
2 Guerrilha do Araguaia
A Guerrilha do Araguaia foi um movimento de luta armada, ocorrido
entre os anos de 1972 e 1975, na região do Araguaia, entre estados de To-
cantins, Maranhão e Pará, apresentando-se como resistência ao regime de
ditadura militar implantada no Brasil quando do golpe de 1964 (ARAÚJO;
SUTIL, 2010, p. 168).
O movimento possui inspiração em casos bem sucedidos de outros paí-
ses do mundo, a exemplo dos movimentos revolucionários socialistas
ocorridos em Cuba e China, sendo que os confrontos armados entre os
guerrilheiros e forças armadas brasileiras foram iniciados no ano de 1972.
111
Larissa Sampaio Teles · Marcella Rosiére de Oliveira
O movimento tinha como principais líderes os dirigentes do Partido
Comunista do Brasil (PCdoB), contando, ainda, com a participação de
universitários, operários, profissionais liberais e camponeses (ARAÚJO;
SUTIL, 2010, p. 169).
Durante o movimento foram realizados três ataques militares com o in-
tuito de extinguir a guerrilha, através das Operações Papagaio, Sucuri e
Marajoara, de forma que aproximadamente cinco mil militares atuaram
nestas operações (COMISSÃO DA VERDADE, 2014, p. 686).
O objetivo primordial dos guerrilheiros era a derrubada do governo mi-
litar, por meio de uma revolução iniciada no campo, sendo que, após a
tomada do poder, eles pretendiam introduzir um governo de natureza
socialista no Brasil.
As operações militares foram realizadas na clandestinidade e, devido a
isso, a sociedade e a imprensa, não souberam, nem tiveram conhecimento,
na época, da existência da citada Guerrilha, a não ser aqueles que presenci-
aram e, de alguma forma, foram afetados por esse conflito.
O que se tem notícia é de que as tropas militares brasileiras obtiveram
vitória e reprimiram os guerrilheiros, o que resultou em diversas prisões e
morte de aproximadamente 70 pessoas, entre militantes do PCdoB e agri-
cultores que lutaram a favor da guerrilha (a maior parte é considerada
desaparecida até o presente momento) e, cerca de 20 militares (PEIXOTO,
2011, p. 482).
3 Lei de Anistia
A lei de Anistia – Lei 6683/79, foi apresentada ao Congresso pelo Presi-
dente General João Batista Figueiredo, e por ele publicada em 28 de agosto
de 1979. No país vigia a ditadura militar – 1964 a 1985, com um sistema de
bipartidarismo representado pelos partidos Arena e MDB.
Sob a designação de se tratar de uma anistia ampla, geral e irrestrita,
112
Pluralidade de Cortes e o conflito entre suas decisões
militares e guerrilheiros que praticaram crimes, tanto no conflito da Guer-
rilha do Araguaia, como durante toda a ditadura militar, foram “agracia-
dos” pela Lei 6.683/79 com a anistia de seus delitos.
A lei de Anistia foi apresentada ao Congresso Nacional pelo então Pre-
sidente, General João Batista Figueiredo e, após ser objeto de inúmeras
emendas, por votação de 206 a 201, foi aprovada e por ele publicada em 28
de agosto de 1979 (RODRIGUES, 2012, p. 54).
O objetivo da lei era conceder anistia àqueles que houvessem praticado
crimes políticos, conexos ou eleitorais no período compreendido entre 02
de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, conforme preceitua o artigo
primeiro de referida lei, nele incluído a Guerrilha do Araguaia.
A lei foi classificada como anistia em branco, tipo característico utiliza-
do na América Latina (LUCIA BASTOS, 2009, apud SANTOS, 2010, p.
75), por não diferenciar crimes comuns de crimes políticos e por benefici-
ar todos os agentes do Estado.
Analisando o contexto histórico que o diploma legal em comento é ela-
borado e apresentado, verifica-se que se trata de um período de ditadura
militar, vigente no Brasil entre os anos de 1964 a 1985, e de sistema de
bipartidarismo representado pelos partidos Arena e MDB.
Em virtude do cenário que foi elaborada e submetida ao Congresso,
não há consenso quanto ao que teria ocasionado, de fato, a sua aprovação.
Há aqueles que defendem que a Lei de Anistia foi imposta à população
(posicionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos), coadu-
nando-se ao tipo de postura adotada naquele período ditatorial.
Noutro lado, há os que afirmam ter sido ela resultado de pressão popu-
lar, especialmente dos exilados (versão apresentada por diversos meios de
comunicação), como se tivesse sido pensada pela própria população.
Por fim, uma terceira corrente, conciliadora, defende que se tratou de
uma espécie de acordo político, o qual teria viabilizado a transição da dita-
dura militar para a democracia (tese acolhida pelo Supremo Tribunal Fe-
113
Larissa Sampaio Teles · Marcella Rosiére de Oliveira
deral). Tratando-se de acordo entre partes em posições totalmente distin-
tas, militares e militantes, não se pode afirmar que não tenha ocorrido a
imposição de alguns termos deste acordo.
A célebre frase do Senador Teotônio Vilela, do partido MDB, que resis-
tia à aprovação da lei na forma como pretendida pelo então Presidente: “Se
houve morte de parte a parte, houve sangue de parte a parte. A substância
profunda da anistia está em reconciliar a nação” (RUBENS, 2009), indica,
em tom de aceitação, que a lei de anistia somente abrangeu os militares e
funcionários do Estado porque este ponto não seria objeto de negociação.
Não obstante, a turbulência envolvendo a lei de anistia não se findou
com sua aprovação, pelo contrário, somente incitou um debate que alcan-
ça o âmbito internacional e, passados mais de 35 (trinta e cinco) anos de
sua publicação, não aponta para um fim próximo.
115
Larissa Sampaio Teles · Marcella Rosiére de Oliveira
oportuno, perdendo então a possibilidade de defesa neste quesito em espe-
cífico (MORAES, 2011).
Nesse sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na sen-
tença de 24 de novembro de 2010, concernente ao chamado “Caso Ara-
guaia” (2010, CDIH), declarou a invalidade da Lei de Anistia brasileira,
tendo em vista que acobertava os crimes cometidos pelos agentes do Esta-
do durante o período da ditadura militar (1964-1985).
A CIDH afirmou que, em razão das disposições da lei de anistia, o país
violou o direito à justiça ao deixar de investigar os crimes, ferindo uma
obrigação internacional a que está submetido. Por isso, tais disposições são
incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos, de
forma que não podem continuar representando um empecilho para a in-
vestigação de crimes como os do presente caso.
Assim sendo, estabeleceu-se que a interpretação e aplicação da Lei de
Anistia estão em desacordo com o direito internacional, de forma que o
Brasil deve ser obrigado a apurar esses delitos, processar e punir aqueles
que os praticaram.
117
Larissa Sampaio Teles · Marcella Rosiére de Oliveira
nais do Brasil contidas na Convenção Americana, enquanto a segunda
partiu de uma análise de recepção da lei em face da Constituição da Repú-
blica Federativa do Brasil vigente.
Passados trinta e sete anos da promulgação da lei de Anistia, mesmo
após a prolação de decisões definitivas no Supremo Tribunal Federal e na
Corte Interamericana de Direitos Humanos, a questão ainda está pendente
de solução. O conflito entre as decisões proferidas por estas cortes de-
monstra que a celeuma não está perto de ter seu fim.
Nesta seara, destaca-se a questão do direito jurisprudencial e da plura-
lidade de cortes aptas a produzir direito, em que se insere o caso relacio-
nado à Guerrilha do Araguaia e à Lei de Anistia, na conjuntura da ditadura
militar e, consequentemente, das decisões conflitantes do Supremo Tribu-
nal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 e
da Corte Interamericana de Direitos Humanos, narradas acima. Nota-se
claramente nesse caso, que não houve a devida harmonização entre as
decisões, de forma que impossibilitou a concretização de um consenso que
pudesse gerar estabilidade.
Em incontestável demonstração de que o país não esta cumprindo a de-
cisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 21 de maio de
2014, o Partido Socialismo e Liberdade protocolou a Ação de Descumpri-
mento de Preceito Fundamental de n° 320, pleiteando que o Supremo Tri-
bunal Federal determine o cumprimento da decisão da Corte.
Diante disso, reforça-se a necessidade de adoção de uma teoria para so-
lucionar o conflito. A questão não pode ficar ad eternum sendo submetida
às cortes, até que uma se convença a ceder à outra.
119
Larissa Sampaio Teles · Marcella Rosiére de Oliveira
medida para viabilizar a estabilidade do atual panorama jurídico, o diálogo
entre as instâncias.
Em face da fragmentação, o método do transconstitucional precisa desen-
volver-se na busca de construir “pontes de transição” que possibilitem um
relacionamento mais construtivo (ou menos destrutivo) entre ordens jurí-
dicas, mediante articulação pluridimensional de seus princípios e regras
em face de problemas jurídico- constitucionais comuns, dependentes de
soluções suportáveis para todas as ordens envolvidas, sem uma última ins-
tância decisória (NEVES, 2009, p. 277).
De acordo com o jurista, inexiste hierarquia entre as cortes, razão pela
qual deve ocorrer uma conversação – diálogo constitucional entre elas, um
diálogo construtivo que seja capaz de soluções suportáveis.
Certamente a teoria de Marcelo Neves não se resume a simplória abor-
dagem apresentada, uma vez que sua tese foi resultado de intenso, apro-
fundado e árduo estudo. Mas, para o presente estudo esta concepção é
suficiente para que seja compreendida como método a ser adotado neste
modelo plural de instâncias e de fontes legitimadas para analisar a legisla-
ção.
Inobstante possa parecer demasiado simplória e intensamente otimista,
a necessidade de abertura das cortes para um diálogo se demonstra bastan-
te óbvia e decorrente das próprias características do que se denominou no
presente estudo de pluralismo jurídico, razão pela qual outros autores coa-
dunam com a necessidade de diálogo.
É necessário que o direito internacional e o direito interno, como partes
integrantes de um direito único, tenham um diálogo mais fluído que per-
mita que, mediante disposições de ordem interna, sejam implementadas as
decisões dos organismos internacionais, sem prejuízo da vontade dos go-
vernantes da vez (CANTON, 2011, p. 288).
Todavia, embora a tese de Neves tenha o intuito de buscar consenso en-
tre as cortes, o próprio caso analisado demonstra que o diálogo pode não
120
Pluralidade de Cortes e o conflito entre suas decisões
ser suficiente para alcançar este fim, uma vez que, ainda que os processos
tenham tramitado concomitantemente no STF e na Corte Interamericana
de Direitos Humanos, em nenhum momento houve comunicação entre os
órgãos, sendo que o diálogo já não é mais possível em virtude do trânsito
em julgado destas decisões.
A dificuldade do diálogo ou o simples ignorar a existência e as decisões
da Corte Interamericana de Direitos Humanos não se restringe ao cenário
brasileiro, ocorrendo também, no que tange a lei de anistia em El Salvador
e Uruguai.
No caso de El Salvador, o conflito não se operou entre cortes, mas entre
a Comissão da Verdade e o próprio legislativo que elaborou e promulgou a
Lei de Anistia cinco dias após a recomendação da comissão para que fos-
sem apurados os casos de violência da época que abarcou a anistia (CAN-
TON, 2011, p. 271).
No caso do Uruguai as recomendações da Comissão foram ignoradas a
pretexto da Lei de Anistia propiciar “um equilíbrio entre justiça e paz para
manter o sistema democrático”, em um discurso que se sobrepõe a demo-
cracia em detrimento dos direitos humanos (CANTON, 2011, p. 276).
Assim, para superar esse impasse faz-se necessária outra proposta para
os casos em que as decisões conflituosas já foram proferidas, em virtude da
inexistência de diálogo ou por não terem alcançado um consenso, consis-
tente na observação dos direitos humanos sob a ótica do direito internaci-
onal.
Ceia denuncia o fato da cultura político-jurídica no Brasil não ser aber-
ta ao direito internacional, o que, trazendo a questão para o presente estu-
do, pode ser apontado como uma das causas dos conflitos entre cortes.
Isso porque, uma vez conscientes da importância da efetividade dos direi-
tos humanos, os agentes públicos resolveriam os conflitos entre normas
constitucionais e normas convencionais segundo a regra interpretativa pro
homine, fazendo prevalecer a norma que mais assegura o direito. Vale di-
121
Larissa Sampaio Teles · Marcella Rosiére de Oliveira
zer, o que importa não é a posição hierárquica da norma, mas sim seu con-
teúdo (CEIA, 2013, p. 146).
Na perspectiva do direito internacional, os Direitos Humanos gozam
de absoluta primazia sobre a legislação doméstica naquilo que é mais bené-
fico ao ser humano. Conforme apresentado por Santos (2010), a principal
característica do direito internacional é assegurar aos direitos humanos
uma posição de superioridade em relação às leis internas dos Estados.
Com base nesta concepção, não se pode invocar o argumento da sobe-
rania estatal como justificativa para o não cumprimento de tratados inter-
nacionais que protejam tais direitos, ou seja, o reconhecimento em docu-
mentos internacionais faz com que a proteção dos direitos humanos extra-
pole os limites físicos dos países.
As normas internacionais sobre direitos humanos são caracterizadas
pelo fato de que compõem o chamado jus cogens do direito internacional,
ou seja, integram o direito cogente ou imperativo, devendo se sobrepor, na
proposta apresentada, à autonomia da vontade dos Estados, nos casos em
que garanta aos direitos humanos sua máxima eficácia e proteção.
Através desse entendimento, existe posição unificada no sistema uni-
versal e interamericano no sentido de considerar as leis de anistia e autoa-
nistia, que impedem a investigação e punição de graves violações de direi-
tos humanos e de crimes de lesa- humanidade, como contrárias aos trata-
dos internacionais que tratam do tema (SANTOS, 2010, p. 151).
A proposta desta segunda abordagem, neste sentido, é de que seja anali-
sado o conteúdo das decisões, adotando-se a tese de prevalência dos direi-
tos humanos, nos casos em que não tenha sido possível a construção das
“pontes de transição”, do diálogo que seja capaz de alcançar um consenso.
Assim sendo, retornando a questão ao estudo de caso, bem como con-
siderando que não há mais possibilidade de diálogo entre as cortes diante
do trânsito em julgado das decisões, ao adotar a tese da primazia dos direi-
tos humanos, conclui-se que os crimes contra a dissidência política, prati-
122
Pluralidade de Cortes e o conflito entre suas decisões
cados pelos agentes do Estado brasileiro no contexto da guerrilha do Ara-
guaia, devem ser processados e punidos.
Dessa forma, é possível inferir que os acontecimentos ocorridos durante o
período de ditadura militar no Brasil, assim como a promulgação da lei de
anistia em sua transição para a democracia, devem ser interpretados à luz
do direito internacional dos direitos humanos e da regulamentação de suas
graves violações pelo seu ‘braço armado’, o direito internacional penal, os
quais trouxeram os indivíduos, sejam vítimas ou perpetradores, para o
cerne da discussão do direito internacional (SANTOS, p. 98).
A repercussão desse posicionamento abrange não somente os anistia-
dos, mas as famílias das vítimas e, principalmente, a busca pela verdade e
pelo fortalecimento de direitos tão sensíveis à humanidade.
O caso da Guerrilha da Araguaia mostra-se como clara resistência ao
regime ditatorial vigente na época. Neste sentido, negar a responsabiliza-
ção dos envolvidos seria a um só tempo negar o direito a reparação como
também oportunizar o esquecimento, passando uma conjuntura em que
verdadeiras barbáries possam ser cometidas sem qualquer preocupação,
uma vez que poderão ser abarcadas por leis de anistia.
Assim, o principal desafio consiste em assegurar a efetiva investigação dos
fatos, bem como a identificação e sanção dos responsáveis pelas violações,
especialmente quando estejam ou possam estar envolvidos agentes do Es-
tado. Isso é indispensável para afastar o sentimento de impunidade, isto é,
a percepção de que o Estado protege violadores dos direitos humanos, ga-
rantindo que eles não sejam investigados, julgados ou punidos, e suas im-
plicações negativas para o tecido social (CEIA, 2013, p. 151).
O ponto que merece destaque reveste-se na grave violação de direitos
humanos perpetrados durante o regime ditatorial, razão pela qual o debate
em torno da lei da anistia não gira em torno da simples análise matemática
de regularidade procedimental do ato legislativo ou de sua, à época, capa-
cidade pacificadora.
123
Larissa Sampaio Teles · Marcella Rosiére de Oliveira
Desse modo, a solução mais apropriada, se é que passados tantos anos
dos crimes ainda se possa falar em solução, como sinônimo de resolver ou
como saída, seria a de acatar a decisão da Corte Interamericana de direitos
humanos, com a responsabilização do Brasil pela violação dos direitos
internacionais, bem como a necessária averiguação dos crimes praticados,
tendo em vista que é a decisão que mais beneficia e protege os direitos
humanos em sua máxima eficácia.
6 Considerações finais
A partir do presente estudo, é possível verificar que a Guerrilha do Ara-
guaia e a Lei de Anistia possuem peculiaridades que decorrem especifica-
mente do contexto em que foram deflagrada e elaborada, respectivamente.
A resistência diante de um regime ditatorial de um lado e a conforma-
ção da anistia dos envolvidos de outro, apresenta-se como um paradoxo
que exige uma reflexão muito mais aprofundada do que se pretende com a
simples orientação matemática ou subsuntiva da questão.
Analisando as decisões emanadas pelas duas cortes, não há como dis-
cordar que possuem respaldo jurídico e suficiente fundamentação a justifi-
car as posições adotadas. Contudo, o simples atendimento destes requisi-
tos se demonstram insuficientes em um panorama em que não há como
ser apontada hierarquia entre as cortes.
Inobstante as ações tenham tramitado concomitantemente, não se nota
nas questões por ela tratadas qualquer afinidade. A decisão do Supremo
Tribunal Federal possui um viés mais voltado à questão formal da legisla-
ção, enquanto que a Corte Interamericana de Direitos Humanos revela sua
preocupação conteudista do ato legislativo.
Outrossim, especificamente por se tratar de caso envolvendo direitos
humanos, ou dos denominados crimes de lesa-humanidade, a questão não
pode ser tratada como se fosse um easy case, com a adoção dos métodos
clássicos de interpretação para alcançar o deslinde do feito.
124
Pluralidade de Cortes e o conflito entre suas decisões
Ademais, se denota dessa conjuntura de pluralismo jurídico que, embo-
ra tenha a pretensão de alcançar um consenso alargado com objetivo de
estabilidade social, é em grande parte responsável por ocasionar essa di-
vergência de decisões, uma vez que neste cenário são admitidas diferentes
instâncias como competentes para dizer o direito e interpretar a lei, no
caso a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Supremo Tribunal
Federal.
Neste cenário, a proposta de Hespanha e o alerta quanto à necessidade
de uma nova dogmática jurídica foram cruciais para a combinação de teses
como propostas deste estudo para solucionar conflitos de decisões emana-
das de diferentes cortes.
Diante do que foi apresentado, conclui-se que a questão não se resume
a definir qual corte é hierarquicamente superior à outra e, portanto, qual
decisão deve prevalecer. Isso seria reconhecer, por um lado, a supremacia
absoluta de uma corte internacional, em detrimento da soberania nacional,
submetendo o país a qualquer tipo de decisão e, por outro lado, se admiti-
da a prevalência da decisão da corte interna, seria desconsiderar todo e
qualquer tratado celebrado pelo Brasil.
O pluralismo de cortes e de decisões por ela emanadas não deve ser re-
solvido somente com uma simplória regra de supremacia. O que se propõe
é que em um primeiro momento seja adotada a tese de Marcelo Neves, ou
seja, deve haver a tentativa de um diálogo entre as duas cortes, especial-
mente como em casos como o estudado, em que os processos tramitavam
concomitantemente.
Trata-se da proposta que tem maior capacidade de gerar estabilidade,
posto que prima pelo alcance do consenso entre as ordens jurídicas e as
instâncias, permitindo que seja afastada a ideia de imposição de uma corte
em detrimento de outra.
A possibilidade de realização de diálogo depende de abertura das cor-
tes, da concepção de que a sociedade não permite entendimentos estan-
125
Larissa Sampaio Teles · Marcella Rosiére de Oliveira
ques; o posicionamento das cortes, o fluxo de informações e a interpen-
dência dos Estados, para além da questão unívoca dos direitos humanos,
demonstram que o pluralismo jurídico é uma análise do direito vivo, não
apenas uma teoria do mundo das ideias.
Todavia, a proposta do diálogo pode não ser observada pelas cortes ou,
mesmo que observada, pode não garantir o alcance de seus objetivos, ou
seja, de um mínimo consenso para a produção das decisões.
Considerando que a alternativa do diálogo pode não alcançar a sua fi-
nalidade, como segunda alternativa se propõe seja considerado o conteúdo
da decisão, preferindo-se aquela que garanta os direitos humanos em sua
máxima eficácia e proteção.
A questão tem como supedâneo diversos tratados e posicionamentos da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas a própria evolução do
direito em que há o reconhecimento da dignidade da pessoa humana
apontam para a necessidade de atuação de todos os poderes em prol da
máxima efetivação dos direitos humanos e fundamentais.
Sem a pretensão de esgotar o assunto, através do estudo de caso e da
análise das decisões do Supremo Tribunal Federal, o presente estudo reve-
la-se como alerta dos novos desafios do pluralismo jurídico, bem como
uma tentativa de pensar teses ou métodos, seja isolada, subsidiária ou
complementarmente aplicados, sejam capazes de auxiliar nessa nova reali-
dade.
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130
O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE
NA QUESTÃO DAS TERRAS INDÍGENAS
BRASILEIRAS DIANTE DO NOVO
CONSTITUCIONALISMO DA AMÉRICA
LATINA E O PLURALISMO JURÍDICO
5
Gustavo Nascimento Tavares
Ruan Carlos Pereira Costa
__________________________________________________
RESUMO: O presente artigo propõe apresentar fundamentos que justifiquem o
controle de convencionalidade como instrumento de efetivação dos direitos
fundamentais dos povos indígenas, adotando o Novo Constitucionalismo
latino-americano como paradigma do pluralismo jurídico. Por meio do
método indutivo, o trabalho visa delinear a partir de casos concretos, como o
controle de convencionalidade pode garantir a máxima eficácia dos direitos
fundamentais em um contexto de direito pluralista. No Brasil, ainda que exista
abertura constitucional para o pluralismo jurídico, o controle de
convencionalidade não é exercido de forma a garantir a máxima proteção e
promoção à diversidade dos povos indígenas.
__________________________________________________
1 Introdução
Esta pesquisa se dá sob o enfoque teórico do pluralismo jurídico e como
esta nova realidade se amolda no direito brasileiro, particularmente, nas
decisões judiciais sobre terras e direitos indígenas. A área de concentração
da pesquisa são os direitos fundamentais. O tema delimita-se ao controle
de convencionalidade nas disputas de terras indígenas e como o
ordenamento jurídico brasileiro deve se comportar para reconhecer a
131
Gustavo Nascimento Tavares · Ruan Carlos Pereira Costa
diversidade e garantir direitos fundamentais destes povos. A hipótese da
pesquisa é: estabelecer o controle de convencionalidade como instrumento
de reconhecimento e promoção dos direitos fundamentais indígenas
dentro de um contexto pluralista, nos moldes do Novo Constitucionalismo
da América Latina.
O objetivo geral do artigo é analisar como o controle de
convencionalidade pode ser um instrumento de promoção dos direitos
indígenas dentro do contexto pluralista de direito. Os objetivos específicos
são: (i) apresentar o Novo Constitucionalismo na América Latina como
paradigma do pluralismo jurídico; (ii) demonstrar a possibilidade e
analisar o controle de convencionalidade como meio de se promover
direitos fundamentais nas questões indígenas; (iii) apresentar os casos
emblemáticos sobre as questões indígenas dentro do enfoque de proteção
dos direitos fundamentais e do pluralismo jurídico, fazendo uma
comparação com o arcabouço jurisprudencial do direito internacional.
O marco teórico será (HESPANHA, 2013)1. A função social da
pesquisa consiste em erguer a discussão sobre o controle de
convencionalidade do direito brasileiro em questões envolvendo direitos
fundamentais dos indígenas e enfrentar o pluralismo jurídico nas
especificações nacionais.
A metodologia de abordagem será indutiva. O trabalho será dividida
em três parâmetros: (i) apresentar argumentos que solidifiquem a tese do
Novo Constitucionalismo da América Latina como um paradigma do
pluralismo jurídico; (ii) discutir a aplicação do controle de
convencionalidade no direito brasileiro como instrumento de promoção
ao direito fundamental à diversidade dos povos indígenas; (iii) partindo da
jurisprudência internacional e dos parâmetros anteriores fixados, objetiva-
se analisar casos concretos julgados no ordenamento interno, busca-se
135
Gustavo Nascimento Tavares · Ruan Carlos Pereira Costa
constitucional. O fenômeno ganhou força e atraiu olhares de teóricos e
juristas diante do novo modelo constitucional, que pode ser visto como
um paradigma para o pluralismo jurídico. O fundamento que justifica essa
corrente constitucional é a promoção do direito fundamental à diversidade
e proteção às minorias com respeito as suas diferenças (NOVAIS, 2006).
O pluralismo na América Latina surge da quebra da relação vertical
entre direito e sociedade, tanto a sociedade quanto o direito se
ramificaram e adquiriram uma capilaridade horizontal, reorganizando a
estrutura e os sistemas jurídicos. Diante da necessidade de construção de
um modelo de direito próprio a cada nação, o direito teve que alcançar
onde o direito estatalista não conseguia penetrar. A diversidade social e
multicultural dos povos latino-americanos foi um campo fértil para o
surgimento desse fenômeno (TEUBNER, 2009).
O Novo Constitucionalismo na América Latina, na visão de alguns
autores, é divido em três ciclos, que são: (i) o primeiro ciclo (1982-1988), o
Constitucionalismo Multicultural, que reconheceu o multiculturalismo e
os direitos indígenas; (ii) o segundo ciclo (1989-2005), o
Constitucionalismo Pluricultural, que adotou o pluralismo jurídico
interno, reconheceu as tradições, os costumes indígenas, contudo tal ciclo
foi limitador de algumas garantias dos povos indígenas; (iii) o terceiro
ciclo (2006-2009), o Constitucionalismo Plurinacional, este ciclo é
claramente influenciado pela declaração das Nações Unidas sobre os
direitos dos povos indígenas, esta nova fase traz toda uma sistemática
constitucional, que reconhece à diversidade e proporciona os meios de se
corrigir diferenças sociais. Por meio da participação democrática e da
autonomia jurídica, o Estado reconhece o pluralismo e coordena os
sistemas jurídicos em torno de um Estado Plurinacional (BALDI, 2014).
A constituição não deve ser vinculada apenas ao seu caráter formal, de
matriz geradora de processos políticos, mas também deve ser um pacto
político-social que expresse a pluralidade de um povo e seus traços
históricos, permeada pela coexistência de concepções divergentes, produto
136
O controle de convencionalidade na questão das terras indígenas...
de lutas e esforços sociais. A cultura constitucional dos povos da América
foi imposta pelas ideias jurídicas do modelo europeu. Com o passar dos
anos, as incongruências dos modelos importados causaram efeitos sociais
indesejados (WOLKMER, 2008).
Todo este contexto histórico fez surgir no América Latina o movimento
do Novo Constitucionalismo, culminando com o constitucionalismo
plurinacional vivenciado em países como Bolívia, Equador e Venezuela.
Tais constituições apresentam o Novo Constituciona- lismo no seu
processo constitucional, no forma de ampla participação que estes países
introduziram para construir o documento democrático legítimo, que
representasse a universalidade da população. Para se alcançar
universalidade, igualdade e equitatividade, torna-se necessário dar voz às
minorias e ampliar o discurso que elabora o direito. Tais constituições
representam um avanço político sem diminuir a importância dos Estados,
mas sim reconhecendo a ampla participação popular, inclusive dos povos
indígenas, na construção democrática de um direito plural que atenda os
anseios sociais (NOVAIS, 2006).
O Novo Constitucionalismo na América Latina é um paradigma do
pluralismo jurídico, pois, modifica o direito estatal e realoca o sistema
jurídico constitucional admitindo influências externas e internas, desde
que estejam protegidos os direitos fundamentais e o caráter democrático
do direito pluralista. Na visão de outros consagrados autores o fenômeno é
visto de forma mais ampla, como para Ferrajoli, segundo o jurista italiano,
a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988)
inaugurou o constitucionalismo de terceira geração, devido a sua extensa
tratativa dos direitos sociais, do dever de proteção as minorias e do
reconhecimento aos direitos indígenas e relativos ao meio ambiente, a
CRFB/1988 potencializou o Estado Constitucional (FERRAJOLI, 2012)
(FERRAJOLI, 2015).
A história do constitucionalismo brasileiro por meio de suas
constituições refletiram o tipo de pluralismo que foi adotado ao longo da
137
Gustavo Nascimento Tavares · Ruan Carlos Pereira Costa
história do país. As constituições de 1824 e 1891 possuíam fortes traços
liberais, a constituição de 1934 pode ser considerada a primeira
constituição que rompeu com esta tradição monista, foi inovadora em
direitos sociais, econômicos e ampla participação política, reconhecendo
inclusive a representação classista (WOLKMER, 2008).
As constituições autoritárias (1937; 1967 e 1969) e também a
Constituição de 1946 de caráter mais social, podem ser classificadas como
constituições democráticas em seu aspecto formal, mas sem plenitude de
participação popular, nem tampouco inclusão de minorias no espaço
democrático político e jurídico. A CRFB/1988 foi significativamente a
carta magna nacional que mais encampou a tese pluralista por meio do
amplo reconhecimento dos direitos fundamentais. A grande importância
dessa carta foi o reconhecimento de atores preferenciais de proteção
constitucional, como a criança, o idoso, o consumidor e também o índio
(BARROSO, 2013) (WOLKMER, 2008).
A CRFB/1988 pode ser considerada uma constituição aberta ao
pluralismo. Mesmo após vinte e cinco anos de sua vigência, ela ainda
irradia normas de direitos fundamentais, justamente por sua possibilidade
de recepcionar direitos novos. O constitucionalismo vivido no Brasil após
a CRFB/1988 se amolda dentro do constitucionalismo garantista de Luiji
Fer- rajoli2 , por este traço, tal autor coloca o Brasil como um
2 Para Ferrajoli, o garantismo é uma teoria jusfilosófica que pode ser visto sob três for-
mas: (i) a primeira, como modelo normativo de direito, caracterizado no plano epis-
temológico como técnica de maximização de liberdades e no plano jurídico uma vin-
culação estatal de garantir direitos dos cidadãos; (ii) em uma segunda acepção, o ga-
rantismo de Ferrajoli é visto como uma teoria jurídica da validade, da efetividade e
da vigência, dentro desta perspectiva há uma redefinição destes conceitos, adotando
o modelo constitucional e o funcionamento efetivo do mesmo, existe uma conver-
gência entre os conceitos de validade e efetividade, mas ainda sim há distinção, den-
tro desta concepção o direito deve ser formalmente e materialmente válido; (iii) a
terceira concepção o garantismo é visto como filosofia política que impõe ao Direito
e ao Estado a carga de sua justificação externa, nesta concepção, a proposta do garan-
138
O controle de convencionalidade na questão das terras indígenas...
representante paradigmático da terceira fase do constitucionalismo
(FERRAJOLI, 2012).
O Garantismo é fundamento da democracia substancial, tal modelo
prima por um estado liberal mínimo (miníma restrição às liberdades
individuais) e um estado social máximo (máxima satisfação das
necessidades sociais do cidadão). Todas as constituições advindas depois
desse período tem importantes traços garantistas, de carta programática
para o Estado de efetivar e promover a realização dos direitos
fundamentais, consolidar a democracia e promover valores, como
igualdade e justiça social (FERRAJOLI, 2012).
O constitucionalismo garantista é uma teoria jusfilosófica mais ampla
que engloba o fenômeno pluralista do Novo Constitucionalismo da
América Latina, esta visão elucidada por Ferrajoli é de extrema
importância, pois, mesmo o Brasil não sendo considerado um Estado
Plurinacional, estabelece ampla gama de direitos fundamentais e
reconhece a normatividade dos direitos humanos e sua influência sobre o
Estado brasileiro. O constitucionalismo garantista funciona como um
aporte de direitos humanos (FERRAJOLI, 2015).
A América Latina como paradigma deste novo direito pluralista
redesenhou as políticas voltadas aos povos indígenas traçando um marco
do direito no que tange: a proteção, a promoção, o reconhecimento, a
ampla participação e a autonomia destes povos. A Corte Interamericana de
Direitos Humanos em sua jurisprudência ao longo dos últimos anos
também trouxe avanço aos direitos indígenas. (WOLKMER, 2008).
O direito internacional se consolidou como importante fonte do direito
que deve ser utilizada como instrumento para: a promoção, a proteção e a
diversidade dos direitos dos índios. A CRFB/1988, ao permitir que os
tratados de direitos humanos sejam incorporados ao nosso sistema, abre as
portas para que avanços em relação a estes direitos fundamentais sejam
141
Gustavo Nascimento Tavares · Ruan Carlos Pereira Costa
O STF firmou precedente3 em 2009, de que os tratados e convenções
internacionais de direitos humanos ingressam no ordenamento jurídico
com status de supralegalidade (art. 5º §2º) ou com status de norma
constitucional (art. 5º § 3º), a tese proposta pelo Ministro Gilmar Mendes
instituiu que os tratados internacionais sobre direitos humanos tem efeito
paralisante na legislação infraconstitucional. A supralegalidade os coloca
entre a constituição e a legislação ordinária. O controle de
convencionalidade exerce função de complementariedade em relação ao
controle de constitucionalidade e não de subordinação (MARINONI,
2013).
As fontes do direito interno e externo devem dialogar de forma que seja
promovido a máxima efetivação dos direitos humanos. O controle das leis,
baseado em tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo
país, pode ser referência para o controle difuso e concentrado de normas
infraconstitucionais, tal controle é um instrumento efetivo de promoção à
eficácia dos direitos fundamentais. Na Era do direito, essa abertura
sistêmica dá dinamismo e promove a renovação normativa sempre voltada
para a proteção e promoção dos direitos humanos (MARQUES, 2009)
(MENDES, 2005) (SARLET, 2006).
Os direitos indígenas diante do Novo Constitucionalismo da América
Latina e da recente jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos
Humanos alcançaram posição de destaque e se consolidaram como um
paradigma do pluralismo jurídico. A questão das terras indígenas no Brasil
foi recentemente colocada sob o espeque dos direito humanos em casos
emblemáticos que versaram sobre a inclusão jurídica e social dos índios na
sociedade brasileira.
No período Colonial e Imperial brasileiro os índios sofreram com
146
O controle de convencionalidade na questão das terras indígenas...
A convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho5
reconheceu amplos direitos aos povos indígenas, e é um marco da luta por
igualdade e inclusão social, sendo um efetivo instrumento de promoção do
direito à diversidade dos povos indígenas. A convenção além de
reconhecer direitos propõe a democratização das questões envolvendo
comunidades indígenas e a busca de consenso para se alcançar o equilíbrio
entre: autonomia, inclusão, livre desenvolvimento, combate as diferenças
sócioeconômicas, dentre outros fatores. A convenção é um instrumento de
proteção do índio, é também de promoção, emancipação e inclusão social,
respeitando a cultura dos povos e o seus direitos relativos à memória e a
diversidade cultural.
A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos
Indígenas6 de 2007 influenciou diretamente as constituições
plurinacionais e tem como principais pontos: (i) a autodeterminação dos
povos indígenas para o desenvolvimento econômico, social e cultural,
incluindo sistemas próprios de saúde, educação, resolução de conflitos
internos e outras formas de autogoverno; (ii) Direito ao consentimento
livre, prévio e informado, tal medida garante a participação dos povos
indígenas de forma democrática a serem adequadamente consultados
sobre medidas que atinjam sua esfera de autonomia; (ii) Direito a
reparação pelo furto de suas propriedades, tal direito permite que os índios
reivindiquem quaisquer prejuízos, de cunho patrimonial, cultural,
religioso e espiritual que estes povos sofreram ou venham a sofrer; (iii)
Direito a manter sua cultura, a sociedade deve oferecer mecanismos de
inclusão do índio respeitando sua cultura, seu idioma, sua língua e seus
costumes locais; (iv) Direito a comunicação, os índios tem direito de
manter sua própria comunicação e manter os meios de comunicação em
148
O controle de convencionalidade na questão das terras indígenas...
Serra do Sol7 , foi uma ação popular proposta em 2005 por dois senadores
do Estado de Roraima em face da União, que a principio discutia a
existência de vícios formais e materiais na portaria nº 534/2005 do
Ministério da Justiça. A portaria versava sobre demarcação de terras do
Estado de Roraima que seria destinada à comunidades indígenas. Após a
publicação da portaria em 2005, várias ações judiciais foram propostas
discutindo o teor material e formal da portaria. A ação popular intitulada
de petição nº 3.388/RR trouxe ao crivo da suprema corte o caso das terras
indígenas.
A primeira decisão do STF veio em 2009. No acórdão, por maioria de
10 ministros a favor, e apenas um contra, a corte decidiu pela manutenção
da portaria e fixou dezenove condicionantes que foram denominadas pela
própria corte de um regime jurídico para reger demarcações de terras
indígenas. Dentro os principais elementos das condicionantes temos: (i)
Os índios podem exercer sua posse mas estão submetidos a diversas
limitações do poder público e vinculados à necessidade de aprovação do
congresso nacional em determinados casos; (ii) As terras indígenas são
exclusivas para as comunidades; possuem imprescritibilidade,
inalienabilidade, indisponibilidade e imunidade tributária; não podem ser
ampliadas para fora das demarcações; e o ingresso, trânsito e permanência
de não índios não podem ser tarifados pelos índios e devem ser
controlados pela FUNAI.
Após esta decisão, foram apresentados sete embargos de declaração
questionando a amplitude da decisão; os embargos foram propostos pelos
autores da ação popular, pelos assistentes, pelo Ministério Público Federal,
pelas comunidades indígenas, pelo Estado de Roraima e por terceiros,
5 Considerações finais
O fenômeno conhecido por constitucionalismo plurinacional ocorrido
em países da América Latina representou novo paradigma para o direito
fundamental à diversidade e promoção da pessoa humana, em especial
para os povos e comunidades indígenas. O Brasil, apesar de não se
encontrar inserido no rol de Estados plurinacionais, possui em seu modelo
constitucional garantista abertura para adoção de um pluralismo jurídico
adaptado à nossa realidade e o controle de convencionalidade é um
importante instrumento que legitima este processo.
O Poder Judiciário brasileiro, no que tange a questão das terras
indígenas, está perdendo a oportunidade de corrigir a injustiça do nosso
passado colonial. O controle de convencionalidade é instrumento hábil e
eficaz para internalizar os direitos dos povos indígenas de forma que tais
direitos tenham máxima eficácia. O reconhecimento desta realidade
pluralista e humanitária é essencial para o desenvolvimento dos direitos
humanos nas questões internas envolvendo quaisquer minorias.
Nos casos conhecidos como Raposa Serra do Sol e Aldeia Maracanã, o
Poder Judiciário não elevou a jurisprudência para o nível internacional dos
154
O controle de convencionalidade na questão das terras indígenas...
direitos humanos, exercendo um efetivo controle de convencionalidade.
Nas decisões das cortes privilegiou-se a supremacia da soberania do
Estado e o isolamento dos indígenas como forma de garantir proteção,
quando o correto deveria ser a primazia dos direitos fundamentais, com a
promoção, proteção, valorização da diversidade e demais meios de
emancipação. Há de se utilizar os direitos humanos como um fator de
correção histórico da exclusão social que os povos indígenas sofreram ao
longo do tempo.
A CRFB/1988 é permissiva para se adotar um pluralismo jurídico de
fontes do direito internacional. O ordenamento brasileiro, a partir dos
parâmetros constitucionais, não tem exercido um controle de
convencionalidade efetivo. Para que no Brasil, o paradigma do pluralismo
jurídico da América Latina irradie efeitos nas questões indígenas é
necessário um maior diálogo entre o direito pátrio e o direito internacio-
nal.
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AUSÊNCIA DE EFICÁCIA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS NO SISTEMA PENAL E
PRISIONAL BRASILEIRO: DO ESTADO DE
COISAS INCONSTITUCIONAL AO ESTADO
DE DESOBEDIÊNCIA CIVIL1
6
Gustavo Nascimento Tavares
Ruan Carlos Pereira Costa
__________________________________________________
RESUMO: O presente artigo propõe discutir os fundamentos que justifiquem o
uso do instituto da desobediência civil dentro do sistema prisional brasileiro,
como instrumento de exercício da cidadania diante da omissão constitucional
do Estado em promover efetividade aos direitos fundamentais. Por meio do
método indutivo, o trabalho visa apresentar os fatores que deram causa a um
direito penal segregador, culminando em um litígio estrutural no sistema
penitenciário. No Brasil, o exercício da cidadania é um direito fundamental,
que diante de uma grave omissão constitucional permite a desobediência civil
como forma de defesa da pessoa humana contra o Estado.
__________________________________________________
1 Introdução
Esta pesquisa se dá sob o enfoque da teoria dos direitos fundamentais e
como o direito penal brasileiro se afastou desta evolução constitucional
161
Gustavo Nascimento Tavares · Ruan Carlos Pereira Costa
Os direitos fundamentais são uma etapa do desenvolvimento das
relações sociais humanas. Os conceitos e valores fundamentais de
liberdade e igualdade se tornaram o epicentro do direito, principalmente
com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, mas para se
chegar a este nível de importância, os direitos humanos passaram por um
longo processo de evolução histórica, jurídica, e social. A forma e a
importância dos direitos humanos variaram no tempo, mas em todos os
ramos do direito houve influência destes valores de maneira que o cenário
atual se configura pela supremacia dos direitos humanos em todas as áreas
jurídicas (SARLET, 2010) (WOLKMER, 2008).
Um dos fatores que contribuíram para este quadro decorre do processo
de constitucionalização dos países da América Latina, os modelos
constitucionais utilizados nos países latino americanos foram importados
dos modelos europeus, neste continente e no restante do mundo, houve
uma período de transição entre o Estado moderno para o Estado
constitucional, essa transição é representada pelo Estado Social, fenômeno
caracterizado pela efetivação de diversos direitos sociais, tais direitos
minimizaram as desigualdades sociais e alavancaram a qualidade de vida
da população.
Os países da América Latina não viveram plenamente o Estado Social,
tal ausência gerou um vácuo de direitos que o constitucionalismo tornou
ainda mais evidente de forma que as cartas de direitos fundamentais nestes
países ficaram com um grande encargo social de corrigir uma
desigualdade, que desequilibra a efetividade dos direitos fundamentais.
A desigualdade criou um abismo social polarizando a violência. Em
locais onde o Estado se fazia ausente era gritante o aumento da
criminalidade, tais fatores criaram uma falsa ideia de que a pobreza seria a
causa da violência. Não houve uma razoabilidade entre, a atuação estatal
no combate a criminalidade, e a sua atuação na redução das desigualdades,
bem como na garantia de que os direitos chegassem a todos de forma
equitativa e efetiva (PASTANA, 2003).
162
Ausência de eficácia dos direitos fundamentais no sistema penal...
Diante deste quadro de violência, desigualdade e crescimento da
criminalidade, houve um significativo aumento do encarceramento em
diversos países democráticos no mundo, tal fenômeno teve reflexos no
Brasil. Dentre os fatores que ocasionaram este aumento tem destaque o
declínio do ideal de reabilitação, que deu lugar, exclusivamente, a
preocupação em aplicar penas retributivas, neutralizantes e que atuassem
como um gerenciador dos riscos sociais, promovendo um isolamento que
agravou as desigualdades geradas pela ausência do Estado Social,
contribuindo para que a população carcerária brasileira, em sua grande
parte. fosse uma massa de excluídos inseridos em um sistema voltado para
punilos (FOUCAULT, 2000) (GARLAND, 2008).
O Brasil é uma democracia jovem, recém conquistada após longos
períodos de ditaduras e regimes autoritários, no qual a força do Estado
estava na manutenção da ordem por meio da opressão e das formas
arbitrárias de controle. O direito penal e processual penal é regido por leis
datadas da década de 1940, e forma confeccionados no período da
ditadura varguista, (1937 à 1945), na mesma linha, a reforma penal de
1984, a lei de execução penal, também de 1984, e os códigos penais e
processuais militares foram inseridas no ordenamento no período da
ditadura militar (1964 à 1985).
Além da legislação penal vigente, os regimes autoritários deixaram de
herança uma política autoritária de caráter repressivo alterando apenas as
vítimas da repressão estatal, onde antes era os cidadãos contrários ao
sistema político, após a redemocratização política, o alvo de forte repressão
estatal se tornou a população de baixa renda. O Estado caminhou no
sentido de adotar uma política pública criminal que priorizava a cultura do
medo e da violência como formas de controle (PASTANA, 2009).
A cultura do medo pode ser entendida como uma propagação de ideias
de insegurança e a criação de um medo constante na sociedade, tal
sentimento causa um isolamento e uma divisão social na qual a
desigualdade é mais acentuada como forma de garantir proteção e
163
Gustavo Nascimento Tavares · Ruan Carlos Pereira Costa
segurança às classes mais favorecidas economicamente. A cultura do medo
tornou-se uma justificativa para a violência do Estado, tal conjuntura
levou a resposta de que a política de controle do crime é efetiva quando
aprisiona em grande quantidade, e que o Estado é apenas um instrumento
de violência e vingança da sociedade, o conceito de justiça se tornou
próximo ao conceito de catarse e vingança social justificada (PASTANA,
2003).
A Justiça criminal foi se distanciando dos mecanismos de supremacia
dos direitos fundamentais, devido, em partes, a militarização das forças de
segurança, o passado de repressão estatal pela uso da violência, o Estado
por meio da cultura do medo consegue legitimar o uso da violência de
forma desproporcional, sob a justificativa de promover segurança a
qualquer custo, elegendo uma classe social como inimiga e outra como
vítima). Esse monopólio do uso da força se tornou instrumento do Estado
para garantir segurança, o controle da violência se dá pela violência do
controle, como se esta fosse a única forma de prover paz social
(PINHEIRO, 1997) (WACQUANT, 2007).
Com a redemocratização do país e o advento da CRFB/1988 uma nova
tipologia penal foi inaugurada consagrando um direito voltado a pessoa
humana por meio de um extenso rol de direitos fundamentais. O direito
penal e processual penal, apesar de ter evoluído sob o manto dos direitos
fundamentais, não acompanhou os demais ramos e o próprio
ordenamento como um todo. A Constituição inaugurou uma nova fase no
país de um constitucionalismo garantista2, que visa de fato, promover e
2 Para Ferrajoli, o garantismo é uma teoria jusfilosófica que pode ser visto sob três
formas: (i) a primeira, como modelo normativo de direito, caracterizado no plano
epistemológico como técnica de maximização de liberdades e no plano jurídico uma
vinculação estatal de garantir direitos dos cidadãos; (ii) em uma segunda acepção, o
garantismo de Ferrajoli é visto como uma teoria jurídica da validade, da efetividade e
da vigência, dentro desta perspectiva há uma redefinição destes conceitos, adotando
o modelo constitucional e o funcionamento efetivo do mesmo, existe uma conver-
164
Ausência de eficácia dos direitos fundamentais no sistema penal...
garantir os direitos fundamentais Deste cenário ocorreu uma tensão entre
o direito penal aplicado e os direitos fundamentais. Alguns fenômenos
jurídicos, como o constitucionalismo e a normatividade dos princípios
foram amortizados no direito penal por políticas públicas voltadas ao
controle pelo uso da violência e também pela privação da liberdade como
único meio de tornar o direito penal efetivo (FERRAJOLI, 2002)
(MACHADO, 2014).
No direito penal existe a tensão entre os limites da intervenção penal
diante das proteção e garantia dos direitos fundamentais e de outro lado a
pressão por mais eficiência na aplicação das normas penais, contrapondo-
se a isto, acrescenta-se o fato de que no Brasil existe uma distancia entre a
legislação penal anterior à CRFB/1988 e a legislação posterior a ela. O
modelo de constitucionalismo adotado no Brasil é o garantismo
constitucional, onde a Constituição garante um amplo rol de disposições
normativas e principiológicas e estabelece o dever do Estado em promovê-
los (FERRAJOLI, 2002) (MACHADO, 2013).
A justiça criminal tornou-se cada vez mais política pública de
segregação, arbitrariedade e violação de direitos constitucionais. Tal
conjuntura só agravou o problema da violência e promoveu o
distanciamento entre o Estado e os direitos fundamentais. A alternativa de
democratização do direito penal perpassa por ampliar as garantias
fundamentais e fomentar possibilidades alternativas às penas de privação
de liberdade diminuindo o encarceramento exacerbado e desprovido de
parâmetros de ressocialização (BARATTA, 2002).
gência entre os conceitos de validade e efetividade, mas ainda sim há distinção, den-
tro desta concepção o direito deve ser formalmente e materialmente válido; (iii) a
terceira concepção o garantismo é visto como filosofia política que impõe ao Direito
e ao Estado a carga de sua justificação externa, nesta concepção, a proposta do garan-
tismo é a separação entre direito e moral e justiça e validade. Para o presente artigo
adotar-se-á visão garantista sob o espeque da teoria jurídica que promove a conver-
gência entre validade e efetividade.
165
Gustavo Nascimento Tavares · Ruan Carlos Pereira Costa
O processo penal brasileiro sofreu e vem sofrendo um processo de
democratização, justamente pelos traços garantistas da CRFB/1988 e
também pela possibilidade de tratados internacionais de direitos humanos
serem incorporados à constituição com status de emenda constitucional
(Art. 5º, §§ 1º e 2º da CRFB/1988), o processo penal possui capacidade de
respirar avanços democráticos. Mas o que de fato ocorre é a baixa
aplicabilidade de princípios que promovam o garantismo constitucional,
como a reserva jurisdicional, a fundamentação da decisão, a presunção de
inocência, a reserva legal, o amplo contraditório, a provisionalidade,
provisoriedade, a proporcionalidade e a prisão como extrema ratio
(GIACOMOLLI, 2013) (MACHADO, 2013).
O princípio da reserva jurisdicional é extraído das garantias
constitucionais no artigo 5º, e também possui consonância com artigos do
Código de Processo Penal de 1941, como no artigo 306, § único e o art.
282, alterado pela lei 12.403/2011. Tal princípio garante que, não haja a
banalização da prisão como forma de conter a violência. A prisão em
flagrante não pode continuar sem uma justificativa judicial decretada por
um juiz, a revogação é a regra e a manutenção é a exceção. Mas ainda sim,
na prática ocorrem várias prisões que violam este princípio,
principalmente em classes sociais de baixa renda, devido ao precário e
desequilibrado acesso à Justiça. O problema do acesso à Justiça no direito
penal causa diretamente um encarceramento segregador e torna o sistema
carcerário fábrica de exclusão social (GIACOMOLLI, 2013).
A fundamentação da decisão caminha no mesmo sentido, possui
respaldo constitucional no art. 93, inciso IX da CRFB/1988. É necessário
concretizar a decisão penal com o mais absoluto grau de certeza e
fundamentação jurídica para que a prisão não seja injusta, o que na prática
não ocorre, visto que, um grande número de prisões são expedidas sem
bases legais e com baixo nível de argumentação jurídica. A fundamentação
da prisão e sua manutenção por questões econômicas, desemprego e falta
de renda fixa, a título de exemplo, refletem uma face discriminatória do
166
Ausência de eficácia dos direitos fundamentais no sistema penal...
sistema penal. Esse quadro também acarreta inflacionamento de presídios
e penitenciárias em todo o país. A presunção de inocência é pilar de
qualquer estado democrático, mas, onde a violência policial é a regra e os
direitos fundamentais são desrespeitados, a população que em tese mais
precisaria de apoio do Estado recebe a dura força repressiva estatal e a
presunção de inocência se torna presunção de culpabilidade pelo
esteriótipo social e a classe econômica (GIACOMOLLI, 2013).
A reserva legal, a proporcionalidade e a prisão como extrema ratio,
estão diretamente ligadas a proteção que o Estado deve fornecer aos
cidadãos para que este mesmo Estado não puna exacerbadamente ou
desproporcionalmente. A provisionalidade, provisoriedade e o amplo
contraditório se ligam a ideia de garantias processuais onde deve haver
equilíbrio entre a proteção do bem jurídico e a pena, são medidas que
garantem a persecução penal de forma que a finalidade do direito penal
não seja simplesmente punir, mas sim garantir o comprimento com
efetividade e dar uma resposta constitucionalmente adequada. Tanto o
fato que dá causa, quanto o tempo de duração são condicionantes para a
manutenção da prisão, o Estado deve negar prisões sem justificativa fática
e por um período excessivo de tempo (FERRAJOLI, 1999) (STRECK,
2014).
O princípio da proteção dos bens jurídicos não pode se contrapor como
ponto de fuga dos limites constitucionais, o direito penal possui limites
invioláveis. A realidade não contempla tais princípios, o sistema carcerário
brasileiro está entre os primeiros do mundo em quantidade de prisões e
nas piores condições humanas. Muito disso deve-se a violação das
garantias constitucionais dentro do processo penal. A lei de execução
penal vem passando por várias transformações legislativas ao longo das
últimas décadas a fim de se tornar mais humanista e inclusiva, como por
exemplo, a ampliação da atuação das defensorias, aumento das medidas
alternativas dentre outras, mas ainda sim, existe uma carência de
efetividade dos preceitos fundamentais no sistema prisional (GRECO,
167
Gustavo Nascimento Tavares · Ruan Carlos Pereira Costa
2013) (STRECK, 2014).
Portanto o direito penal quando se apresenta contrário aos valores
constitucionais sobre o pretexto de elevar a proteção dos bens jurídicos em
detrimentos das garantias fundamentais, acaba se transofrmando em uma
fábrica de encarceramento em massa e um mecanismo estatal de exclusão
social provocando uma situação de extrema violação constitucional
(ROXIN, 2013).
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169
Gustavo Nascimento Tavares · Ruan Carlos Pereira Costa
A discussão que se tem sobre a aplicação do ECI é sua imprevisibilidade
constitucional e se tal medida fere a divisão dos poderes. A justificativa
para a aplicação do ECI está na teoria dos diálogos institucionais4 , tal
teoria preconiza novas formas do Estado enfrentar seus problemas
estruturais e garantir que os direitos fundamentais sejam aplicados com
máxima efetividade.
175
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180
Ausência de eficácia dos direitos fundamentais no sistema penal...
O Estado, por meio do direito penal, deve realizar o jus puniendi com
respeito aos direitos humanos. Ao retirar a liberdade dos indivíduos que
cometem crimes, torna-se responsável pela tutela dos demais direitos
humanos destas pessoas. Dentro da formatação de Estado onde a
dignidade da pessoa humana é o valor máximo, caso este ente não consiga
realizar plenamente sua função cabe ao particular que tem sua dignidade
comprometida reagir sem que tal reação seja novamente punida.
5 Considerações finais
Na esteira da teoria dos direitos fundamentais, influenciado pelas ideias
pós-modernas do ser humano visto como o centro das ciências sociais, os
valores penetraram no direito, estabelecendo um fluxo deste com a ética e
a filosofia. No direito penal, em especial no direito penal brasileiro, este
ramo do direito tem se afastado dessa premissa. O que se tem visto é um
Estado punitivo com peso seletivo dos direitos humanos.
A desigualdade estrutural causada em grande parte pela ausência do
Estado Social nos estados da América Latina, geram uma segregação social
e a falsa ideia de que a criminalidade está ligada à condição econômica. O
autoritarismo do passado recente ainda produz efeitos sociais, a política de
controle pelo uso da violência e a propagação da cultura do medo causam
uma fenda social que separa a sociedade em classes, nesse contexto o
Estado promove a segurança das classes altas, marginalizando e violando
direitos humanos das classes baixas, compensando a ausência do Estado
com uma presença violenta e segregadora deste.
A CRFB/1988 traz um constitucionalismo garantista, mas sua aplicação
não é completa. Os fatores que levam a esta incompletude residem na
incompatibilidade entre as leis penais vigentes, e a CRFB/1988. Somente o
rol de direitos fundamentais não é capaz de revigora e democratizar a
justiça penal do país. O conflito normativo e principiológico causa
distorções no processo penal e permite que direitos fundamentais sejam
181
Gustavo Nascimento Tavares · Ruan Carlos Pereira Costa
relativizados, desta forma esta aplicação falha das garantias
constitucionais, acarreta uma justiça criminal que encarcera
predominantemente uma parte vulnerável da população.
Diante deste quadro, foi proposta uma ação de Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental pleiteando a declaração de um
Estado de Coisas Inconstitucional no sistema prisional brasileiro. O litígio
estrutural demonstra o fracasso do Estado em garantir os direitos postos
na CRFB/1988. Portanto a solução para o Estado, caminha no sentido de
buscar diálogos institucionais que visem devolver a constitucionalidade do
sistema penal a partir de medidas e políticas públicas conjuntas e
estruturais.
O problema ocorre quando se está diante dos casos individuais, o ECI
reconhece uma falha do Estado e aponta caminhos para alcançar uma
solução, mas para o indivíduo que sofre tamanha violação de sua
dignidade não há soluções.
Contudo a desobediência civil, por meio da evolução do Direito,
também se modificou, e hoje pode ser apontada como um direito
fundamental, que instrumentaliza o exercício da cidadania quando o
Estado viola gravemente direitos humanos. No sistema prisional brasileiro
existe a possibilidade de se utilizar a desobediência civil como forma de
exercício da cidadania, dentro da própria moldura dos direitos humanos.
A aplicação da desobediência civil deve ser amplamente discutida, pois
é totalmente incoerente em uma soberania popular, uma parcela da
população sofrer tão grave lesão e não poder transgredir determinadas
normas, dentro dos limites constitucionais, no intuito de obter uma
prestação que está entre as obrigações fundamentais do Estado, a de
promover e zelar pela dignidade da pessoa humana.
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PLURALISMO JURÍDICO E JUSTIÇA PENAL
CONSENSUAL: UM NOVO PARADIGMA DE
PROCESSO PENAL NA PÓS-MODERNIDADE
7
Victor Henrique Machado Duarte
Jonatan de Jesus Oliveira Alves
__________________________________________________
RESUMO: O pluralismo jurídico impõe o reconhecimento de novas fontes,
tanto de criação, quanto de aplicação do direito. O Direito Penal, por outro
lado, foi construído sob a perspectiva de um Estado monista, pelo qual existe
monopólio na função punitiva. Os dias atuais clamam por uma nova
perspectiva de justiça criminal, que permita flexibilizar o modelo hegemônico
construído ao longo dos anos. Neste cenário nasce o discurso de abertura do
sistema penal para métodos alternativos de solução de conflitos, permitindo a
atuação participativa da vítima com o fim de que a esta seja oportunizada a
perseguição de seus direitos e interesses. A ideia de jurisdição voluntária em
matéria criminal se apresenta como forma de solução de conflito que
abandona antigas formas legalistas estatais, fundadas em concepções simplistas
de controle da paz social, para galgar a busca de novas formas de justiça.
__________________________________________________
1 Introdução
As clássicas definições de Direito Penal nos mostram um conjunto de
leis e sistemas criados para a manutenção e regulação social. Tal definição
faz permear a ideia de um modelo cujo monopólio é estatal.
As concepções multifacetadas presentes na sociedade pós-moderna tra-
zem à tona os conceitos de pluralismo jurídico e, tais concepções, dão
perspectiva para a criação de um novo paradigma: um sistema de resolu-
ções consensuais de conflitos em matéria criminal. Para tanto, se faz ne-
187
Victor Henrique Machado Duarte · Jonatan de Jesus Oliveira Alves
cessário pôr de lado as concepções tradicionais e inflexíveis do monopólio
estatal, ou, como diz Hespanha (2016, p. 55), estatalismo.
Não se nega completamente o discurso da tutela penal por parte do Es-
tado; o questionamento do presente estudo concentra-se no atual contexto
do sistema e nos discursos que apontam suas falhas e pontos de melhoria.
Note-se: em períodos históricos mais remotos o sistema negocial já havia
sido implantado, conforme escreve Massimo Meccarelli:
More generally, we can observe that imperial and canon laws regulate
criminal matters, but these—like other possible territorial sources of crim-
inal law in its various forms (legislative, judicial, customary) establish a
symbiotic relationship with the doctrine of ius commune which is the
point of gravitation and order for criminal law before a state monopoly.
(MECCARELLI, 2018, p.5).
Não se pode ignorar que os valores sociais estão em constante movi-
mento. Assim, por vezes a sociedade seleciona como valor basilar a segu-
rança jurídica e, para assegurá-la, concebe uma ordem jurídica atribuída,
de forma exclusiva, ao Estado. Por outro lado, em outros momentos histó-
ricos, a justiça parece ser o sentimento que envolve todas as interações e
norteia os parâmetros de atuação do Direito, que, demonstra aqueles valo-
res, encontrados em espaços comunitários diversos.
A presente pesquisa busca analisar o modelo pluralista e, posteriormen-
te, relacionar suas bases fundamentais a uma ideia de sistema de resolução
consensual de conflitos em matéria criminal baseado em uma análise cri-
minológica da neutralização do papel da vítima no Processo Penal, bem
como sobre a necessidade de desenvolver uma justiça participativa para
trazê-la novamente à busca de seus interesses.
1 Ainda nesta discussão Hespanha (2016, p.46) aponta que “o direito com o Estado
(staatsrecht) corresponde a essa norma neutral com o que Estado garante, face a ou-
tros interesses particulares, o interesse geral embebido num direito geral e abstrato”.
Percebemos aqui que a construção funcional do Direito Penal segue as mesmas pro-
posições destacadas por Hespanha de um Estado monista. A cultura do monopólio
das sanções criminais se torna possível uma vez que existe aquele que chama para si a
função de fazer justiça coletiva em detrimento de interesses particulares.
189
Victor Henrique Machado Duarte · Jonatan de Jesus Oliveira Alves
lho:
[...] desenvolveu-se concomitantemente com a doutrina política da sobe-
rania, elevada esta à condição de característica essencial do Estado. Com
efeito, o Estado Moderno define-se em função de sua competência de pro-
duzir o Direito e a ele submeter-se, ao mesmo tempo em que submete as
ordens normativas setoriais da vida social. (1986, p. 258).
O contexto apresentado revela um Estado legalmente organizado e cen-
tralizador, com sua fundamentação existencial na soberania (TOURINHO,
2016). Na mesma linha de raciocínio, destaca Tourinho (2016, p. 98) que:
[...] nesse aspecto, que o Direito moderno não se apresenta apenas como
resultado de uma produção de uma formação social e econômica, como
informa Antonio Carlos Wolkmer (2001), mas, antes de tudo, fundamen-
ta-se na historicidade unificadora da legalidade estatal e da centralização
burocrática.
A ideia de legalidade apresentada delineia sentido pelo qual existe um
conjunto de regras que sistematizam e colocam em ordem toda a matéria
estatal. Existem ali conceitos definidores claros pelos quais todas as fun-
ções se encontram bem desenhadas. Inclusive, dentre essas regras, as insti-
tuições de Direito Penal e do Direito Processual Penal são construídas
através da mesma ideia: legalidade, constituindo meio fechado de sistemas,
cuja titularidade explícita é do próprio Estado.
Trata-se de um Estado de Direito, que garante e, ainda, justifica, a mo-
nopolização do Direito pelo Estado, que o exerce de forma centralizadora e
unitária, com um corpo normativo com características gerais, abstratas e
impessoais, como atribuições distintivas da lei, considerando-o a partir do
positivismo jurídico (TOURINHO, 2016, p.98).
Conforme ensina Wolkmer (2001, p.54) o cenário que se delineou foi
vislumbrado com as grandes codificações, numa ideologia positivista de
exclusão das considerações de natureza metafísico-racionalista do Direito,
reduzindo tudo à análise de categorias empíricas na funcionalidade de
190
Pluralismo jurídico e justiça penal consensual
estruturas legais em vigor.
Norberto Bobbio, ao elaborar sua teoria sobre o ordenamento jurídico,
que:
A teoria estatalista do direito é produto histórico da formação dos grandes
Estados modernos, erigidos sobre a dissolução da sociedade medieval. Esta
sociedade era pluralista, isto é, formada por vários ordenamentos ju-
rídicos, que se opunham ou se integravam: havia ordenamentos jurídicos
universais, acima daqueles que hoje são os Estados nacionais, como a Igre-
ja e o Império, e havia ordenamentos particulares abaixo da sociedade na-
cional, como os feudos, as corporações e as comunas. Também a família,
considerada pela tradição do pensamento cristão como uma societas natu-
ralis, era em si mesma um ordenamento. O Estado moderno foi formado
através da eliminação ou absorção dos ordenamentos jurídicos superiores
e inferiores pela sociedade nacional, por meio de um processo que se po-
deria chamar de monopolização da produção jurídica. (2001, p. 31).
Em específico campo podemos dizer que a história do “penal”2, curio-
samente, destaca período inicial no qual o Estado não monopolizava o
sistema de punições e, vítima e agressor, gozavam de um sistema consue-
tudinário e aberto para resolução de conflitos (SBRICOLLI, 2004, p. 459)
O ponto fulcral das observações expostas é que, com o passar dos anos,
houve uma aproximação constante dos conceitos de Direito e Estado.
Carnelutti (2005, p.53) afirma em seus escritos que “a sociedade juridi-
camente ordenada se chama Estado. A ideia do direito e a ideia do Estado
estão, portanto, intimamente relacionadas: não há Estado sem direito e
nem direito sem Estado”.
No mesmo sentido, Kelsen (1999) mostra que o Direito é o Estado, e o
Estado é o Direito Positivo.
2 Do italiano “il penale”, expressão que não possui tradução exata para o português. A
ideia mais aproximada seria “a pena”, mas Sbriccoli utiliza para levantar questões re-
lacionadas para além das discussões penais e processuais penais.
191
Victor Henrique Machado Duarte · Jonatan de Jesus Oliveira Alves
Talvez não por outro motivo que Sbriccoli destaca que no final do sécu-
lo XIII e início do século XIV os governos citadinos percebem que a justiça
penal é um importante meio de governo e que não existe um sentido justi-
ficável para deixá-la à iniciativa das vítimas (SBRICCOLI, 2004, p. 461).
Tourinho (2016, p.99), sobre o monismo estatal:
A cultura jurídica unitária foi prevalecente na formatação do Estado Mo-
derno, com a reprodução de idealizações normativas e representações mí-
ticas que revelaram certa racionalização formal e legalidade estatal. As atu-
ais sociedades, no entanto, passam por mudanças drásticas, conduzindo a
espaços dinâmicos de construção e aplicação da justiça, ao que se pode de-
nominar de momento de crise. Trata-se, em verdade, de uma substituição
paradigmática, numa ordem de ruptura com o paradigma anterior, que se
demonstrou insuficiente para resolver determinados problemas.
As mudanças paradigmáticas mencionadas acima por Tourinho são
bem explicadas por Celso Fernandes Campilongo, o qual afirma que al-
cançamos o momento em que é exigido de o Estado flexibilizar as formas
de exercício de jurisdição.
Nas lições do autor:
[...] o paradigma positivista – herdeiro das fórmulas jurídicas e políticas do
século passado – ainda possui um enfoque estrutural, formalista e estático
do Estado e do Direito, os paradigmas alternativos assumem uma perspec-
tiva que transcende os limites normativos da dogmática, procurando cap-
tar os antagonismos sociais e conferindo dinamismo e flexibilidade aos
mecanismos jurídicos legais e extralegais, estatais e extra-
estatais(CAMPILONGO, 1991, p.14).
Tourinho (2016, p. 103), em comentários sobre a obra de Campilongo,
aduz que:
De acordo com as lições de Campilongo o processo de mudança paradig-
mática significa uma superação da identificação formal do Direito com a
lei, o que era percebido de forma rígida, e, ainda, uma revisão do mono-
pólio estatal da produção normativa. Nesse sentido, a efetivação de novas
192
Pluralismo jurídico e justiça penal consensual
fórmulas de negociação, mediação e arbitragem, valendo-se, para tanto, de
mecanismos informais, infere no abandono de técnicas meramente legalis-
tas, que revelam uma racionalidade formal dos ordenamentos de inspi-
ração liberal e, ainda, na adoção de práticas norteadas pela racionalidade
material dos interesses e valores conflitantes.
Hespanha (2016, p. 53) traz como questões problemáticas relacionadas
ao formalismo jurídico justamente a questão de como evitar que o direito
funcione como ferramenta subjetiva do julgador, ou até mesmo como fer-
ramenta arbitrária do magistrado.
A questão que se sustenta, a partir deste ponto de vista, é a de que não
se sustenta mais uma ideia de processo estritamente arbitrado à vontade
do Estado. O modelo pluralista, o qual inegavelmente encontra-se em prá-
tica, exige do Direito uma adaptação total, de modo que sejam inseridos
nos ordenamentos processuais e nas regras definidoras de competência
maior ênfase aos métodos consensuais de resolução de conflitos.
Daniel Amorim Assumpção Neves (2017, p. 61-62), em sua obra sobre
processo civil, destaca que a valorização das formas consensuais de resolu-
ção de conflitos já fora demonstrada no Novo Código de Processo Civil. As
previsões do artigo 3º demonstram que o Estado possui o dever de incenti-
var a resolução não conflitosa dos litígios.
A preocupação do legislador processualista foi intensa e este não se de-
dicou apenas a criar uma base de princípios, mas, também, toda uma seção
de regramentos e procedimentos destinadas a regular a aplicação dos insti-
tutos não conflituosos. Nas palavras de Neves (2016, p. 62):
O Novo Código de Processo Civil, entretanto, não trouxe apenas disposi-
ções principiológicas no que se refere às formas consensuais de solução de
conflitos. Há uma seção inteira de um capítulo destinada a regulamentar a
atividade dos conciliadores e dos mediadores judiciais (arts. 165-175), in-
clusive fazendo expressamente a distinção entre conciliação [...] e media-
ção.
193
Victor Henrique Machado Duarte · Jonatan de Jesus Oliveira Alves
Complementa, ainda, o autor:
Entendo extremamente positiva a iniciativa do legislador, até porque, se há
essas formas consensuais de solução de conflitos, é melhor que exista uma
estrutura organizada e um procedimento definido e inteligente para viabi-
lizar sua realização da forma mais ampla possível.
Já no processo criminal as figuras consensuais de resolução de conflitos
são extremamente limitadas a um nicho específico de infrações penais e,
na maioria dos processos penais a vítima é tratada como mera peça pro-
cessual e, seus interesses primários, são deixados a margem.
Destaca Eduardo Viana (2015, p. 155) “Com efeito, o modelo de Direi-
to Penal retribucionista – cujo veículo viabilizador é o Processo Penal –
tem como marca perene a marginalização da vítima”.
Quando observamos o problema sob a ótica pluralista percebemos que
não encontramos uma matriz essencial de princípios e regras, justamente
pelo fato de existirem, no mesmo plano, diversos modelos e construções
doutrinárias.
Tourinho (2016, p. 104) destaca:
Por certo, a fundamentação comum que se apresenta diz respeito à ne-
gação do Estado enquanto fonte única e exclusiva do Direito, sendo este o
alicerce ou o núcleo estruturante do pluralismo jurídico. Nas palavras de
Wolkmer (2001, p. 181), essa é uma visão antidogmática e interdiscipli-
nar que advoga a supremacia de fundamentos ético-sociológicos sobre cri-
térios tecnoformais . Dessa forma, tenta-se minorar ou excluir a legislação
formal do Estado, priorizando-se a produção normativa multiforme de
conteúdo concreto gerada por instâncias, corpos ou movimentos organi-
zados semi-autônomos que compõem a vida social.
A conceituação de pluralismo jurídico consiste em um conjunto de
meios diversos de produção de normas, bem como de sua aplicação, atra-
vés da ideia de consenso social. Estes, por sua vez, são espaços comunitá-
rios que funcionam através da minimização da interferência estatal (HES-
194
Pluralismo jurídico e justiça penal consensual
PANHA, 2016, p. 66).
Tourinho (2016, p. 105) diz que:
Nessa perspectiva, há uma necessidade de reconhecimento do Direito
produzido no âmbito interno das organizações e de ampliação das relações
de natureza comunitária, a partir da legitimação externa de seus espaços
de construção e de decisão enquanto fontes do Direito.
André Franco Montoro (2009) escreve que o ideal pluralista recebe um
caráter de fluidez na sociedade contemporânea, no sentido de que não
mais é possível afirmar a existência de uma fonte jurídica única e exclusi-
vista, o que, dessarte, é reafirmado pela configuração de coletividades mul-
tifacetárias. As normas estatais constituem o grau mais elevado de forma-
ção do Direito positivo, não importando em óbice ao reconhecimento de
outras formações jurídicas que surgem no seio da sociedade que possuem
vigência efetiva e se desenvolvem de forma continua ao lado das leis esta-
tais.
Antônio Carlos Wolkmer (2001, p. 219), sobre o pluralismo jurídico,
diz que este é percebido como “a multiplicidade de práticas jurídicas exis-
tentes num mesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou con-
sensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessida-
des existenciais, materiais e culturais”.
Com estes aspectos fica evidente que a presença do pluralismo jurídico
no ordenamento jurídico brasileiro exige adaptações das legislações penais
e processuais penais com o fim de flexibilizar as normas procedimentais
impostas e permitir novos métodos de solução de conflitos. Por óbvio não
se espera um espelho ao que foi produzido no Direito Processual Civil,
mas mudanças que permitissem ao sistema penal se adequar a novos mei-
os de solução de conflitos que demandassem menos práticas burocráticas e
privilegiasse a satisfação pessoal da vítima.
195
Victor Henrique Machado Duarte · Jonatan de Jesus Oliveira Alves
3 Justiça penal consensual e um novo paradigma pluralista de processo
penal
Enquanto movimento histórico o Direito Penal apresenta passado mar-
cado por verdadeiras atrocidades respaldadas pela estrutura de legitimação
do Estado. O discurso da paz social e de sua respectiva manutenção acom-
panha a ideia do caráter retribucionista e foi capaz de se enveredar para os
núcleos essenciais das legislações penais.
Mario Sbriccoli (2004, p.459) narra que a perspectiva da fuga da vin-
gança (vingança individual, social e estatal) é o que melhor revela o pro-
cesso de civilização dos sistemas penais. Destaca também que merece rele-
vância a função destes sistemas em defender juridicamente as pessoas, os
bens e a sociedade em geral.
Em um primeiro momento podemos perceber a existência de uma jus-
tiça penal negociada3, marcante nas citadinas medievais (século XI e XIII),
pela qual a vítima possuía o chamado direito de vingança.
Sbriccoli (2014, p. 459) define que:
[...] não se trata, então, de reprováveis pretensões privadas, nem mesmo de
um excesso tolerado, mas, ao contrário, de um modo reconhecido para re-
estabelecer equilíbrios violados4, para conseguir um ressarcimento e obter
satisfação.
Já no final do século XIII, início do século XIV os governos passam a
perceber que é necessária uma transição para o modelo decisivo, ou seja,
que os juízes passem a atuar de ofício na persecução de todos os delitos, até
3 Interessante tal afirmação encontrada em Sbriccoli (2004), uma vez que a justiça
penal negociada, a qual atende a ideias pluralistas já existiu e, hoje, a grande questão
é como reinseri-la novamente em nosso ordenamento jurídico.
4 Destaca-se que os crimes que atingem as pessoas – na vida, na incolumidade, nos
bens, na honra – são assuntos privados, a serem tratados entre os interessados, en-
volvendo famílias e amigos, mas não os poderes públicos. Ou, ao menos, não neces-
sariamente (SBRICCOLI, 2014, p. 460).
196
Pluralismo jurídico e justiça penal consensual
mesmo naqueles considerados de interesse particular dos indivíduos. Ain-
da que a vítima, satisfeita negocialmente, não tenha mais nenhum interes-
se no processo (SBRICCOLI, 2014).
A partir desta transição o sistema penal passa a adotar o princípio de
que quem pratica um delito prejudica a vítima, mas também prejudica o
interesse público e esta, enquanto lesada, detém o direito de obter a sua
satisfação, porém através da aplicação de penas.
Destaca Sbriccoli (2014, p. 462):
O novo modo de fazer justiça assuma rapidamente traços hegemônicos.
Reduz enormemente os espaços de negociação em matéria penal, impon-
do como princípio a oficiosidade da ação pública, a indisponibilidade do
processo e sua direção conferida ao juiz. Enfraquece o papel da mediação
social na solução dos conflitos nascidos de crimes, pois impõe a ideia de
que não há justiça sem a punição do culpado.
A justiça negocial estruturava-se através de um sistema consuetudiná-
rio, já a justiça hegemônica é fundada nas bases de quatro pilares: a lei, a
ação, a prova e a pena.
Em relação ao primeiro pilar destacamos que a lei se torna antagônica
ao direito negociado, “a dicção da lei não é passível de negociação: pode
ser ignorada, elidida ou evitada, mas representa um elemento de qualquer
forma antagônico à lógica do negociado” (SBRICCOLI, 2014, p. 462).
Já a ação e a prova constituem a substância do processo hegemônico.
Este tipo de justiça se vale de um processo desenvolvido eminentemente
por ação pública e, a coleta da prova é confiada ao juiz. Novamente pode-
mos verificar que os pilares da justiça hegemônica conferem aos órgãos do
Estado todo o protagonismo do processo.
Por fim a pena é o ideal pelo qual a justiça hegemônica se afirma. O
processo se deslinda perseguindo esta finalidade (SBRICCOLI, 2014).
Aqui retornamos ao início deste tópico: a evolução histórica da chama-
da justiça de aparato nos trouxe ao que vivenciamos hoje. E o discurso que
197
Victor Henrique Machado Duarte · Jonatan de Jesus Oliveira Alves
circunda o Direito Penal traz à tona todas as mazelas e fracassos evolutivos
da justiça hegemônica.
Tourinho (2016, p. 107) esclarece que:
Nos últimos anos, o discurso abolicionista se fortaleceu, notadamente
quando da afirmação do cumprimento daquelas finalidades penais não-
formais, caracterizadas por interesses ilegítimos, mascarados pela ideia de
segurança. Não se pode negar a influência marcante de um pensamento li-
beral na seleção de bens jurídicos incluídos na esfera de atuação penal.
Todavia, o que se observa naquela preleção é uma tentativa de invalidar o
sistema penal, notadamente na criminologia crítica de Baratta (1999), sem
uma apresentação de propostas substitutivas, afrontando uma construção
de buscas alternativas que coadunem com a realização efetiva das finalida-
des das penas.
Através destas digressões percebemos que o contexto atual do Direito
Penal clama por uma nova estrutura5 e, a solução não conflitosa dos lití-
gios penais ganha lugar central em toda a discussão.
Ainda citando Tourinho (2016, p. 108):
O contexto atual apresenta uma verdadeira tentativa de construção de um
modelo penal pós-moderno, o que, demonstra uma nova edificação para-
digmática, de caráter pluralista, uma vez que pode ser desenvolvida fora
das instituições formais do Estado. É inegável e, até certo aspecto, inevi-
tável, a demolição do projeto liberal que se arrasta por séculos, com supos-
tos traços humanistas originários do movimento iluminista, para a apre-
5 Tourinho (2016, p. 110) afirma que: “por óbvio, tal participação não deve retroceder
à vingança privada. O sentido que se vislumbra é o de possibilitar, nas palavras de
Francisco Amado Ferreira (2006, p. 12), uma visão reconstrutiva dos laços humanos
e sociais estilhaçados”. Essa perspectiva reconstrutivista é possível num processo de
democratização das instâncias decisórias, notadamente com atribuições participati-
vas informais ou extra-estatais. Para além de tais considerações, trata-se de um re-
torno constante ao conhecimento do próprio eu que se insere a qualidade de conhe-
cimento do outro, conduzindo à abertura de um terreno sólido onde o diálogo é de-
senvolvido sem a necessidade de persuasão (ARENDT, 2010).”
198
Pluralismo jurídico e justiça penal consensual
sentação de um cenário em que os valores se diferenciam a partir da relei-
tura principiológica e, ainda mais, com a legitimação do próprio Direito
Penal.
O discurso estatal da paz social torna pública a vingança e, tomando
para si o “direito de punir”, o Estado pratica várias violações com justifica-
tivas na busca da manutenção social.
Selma Pereira de Santana ensina:
O nascimento e o desenvolvimento do Direito Penal propiciaram a ex-
tinção das formas de justiça privada. Todavia, o que, nomeadamente, mar-
cou a história do Direito Penal, nesse aspecto, foi o jus puniendi competir
exclusivamente ao Estado, implicando, porém, em contrapartida, o co-
meço do abandono da figura da vítima. O Estado é alçado à condição de
garantidor da ordem pública e, somente a ele, compete o direito de impor
a sanção penal. A reação ao delito relaciona o Estado com o delinqüente,
resultando a vítima cair no esquecimento. Iniciou-se, assim, o processo de
neutralização da vítima. (2010, p. 18).
Leonardo Sica (2007), menciona que:
[...] a aceitação da justiça restaurativa, de onde se tem a mediação dos con-
flitos penais, passa por um caminho de rompimento com o paradigma pu-
nitivo alicerçado em concepções e postulados que impedem a construção
de um modelo alternativo. Isso porque a mediação penal apresenta in-
compatibilidade com o ordenamento jurídico erigido a partir do modelo
punitivo, o que pode ser superado com a mudança de paradigma.
Eduardo Viana (2015, p. 158), em seus escritos sobre vitimologia, es-
creve que:
Com a assunção do monopólio punitivo por parte do Estado, não há espa-
ço para a vítima tanto no âmbito do sistema legal quanto no criminológi-
co. No sistema legal, por exemplo, toma assento um modelo de processo
baseado essencialmente em ações públicas, inclusive, basta percorrer o vi-
gente código penal para verificar: as pouquíssimas hipóteses de ação penal
de natureza privada; escassas possibilidades de interferência da vítima no
199
Victor Henrique Machado Duarte · Jonatan de Jesus Oliveira Alves
Processo Penal.
No ponto de vista pluralista não existe razões para não afirmar a impor-
tância de trazer a vítima para o campo das soluções penais. Conforme
afirmado por Sbriccoli (2004) a ideia do delito é, em primeiro lugar, uma
ofensa que importa antes reparar do que punir, que a reparação consiste
na satisfação e que a satisfação deve passar por uma negociação.
Disserta, ainda (2004, p. 460) “a justiça negociada repousa sobre o con-
senso, antes e mais do que sobre a certeza”.
Sobre consenso, ensina Flávio da Silva Andrade (2018, p.29):
[...] no campo do direito processual, enquanto o conflito é caracterizado
pelo exercício do contraditório, o consenso é justamente o contrário da
oposição dialética, da confrontação entre as partes. O consenso é represen-
tado pela convergência de vontades, pois o processo penal não se resume a
uma contraposição em todos os casos e a todo custo entre as partes.
As razões informadas parecem suficientemente coerentes para ensejar
uma conclusão que se aproxima da concepção de um novo momento his-
tórico na esfera penal, firmado na origem de matrizes originais de justiça
penal, caminhando no sentido de legitimar a atuação desse sistema. Nesse
contexto, a mediação dos conflitos penais acolhe as mais variadas perspec-
tivas do pluralismo jurídico. Inicialmente, percebe-se a existência de prati-
cas pluralistas alternativas surgidas no interior da própria ordem jurídico-
estatal, com a mediação penal realizada por um agente estatal e, ainda, de
práticas pluralistas alternativas instituídas à margem da juridicidade ori-
unda do Estado, com a criação de conselhos comunitários.
Rafaella da Porciuncula Pallamolla (2015) aponta algumas experiências
que já existem no mundo:
Foi diante da insuficiência do modelo institucionalizado de administração
de conflitos oferecido pela justiça penal que práticas de justiça restaurativa,
paulatinamente, foram sendo experimentadas em diversos países a partir
da década de 1970. As primeiras e mais conhecidas experiências foram
200
Pluralismo jurídico e justiça penal consensual
realizadas no Canadá (1974), Estados Unidos da América (1978), Noruega
(1981) e Nova Zelândia (1989). Destas, as da Noruega e da Nova Zelândia
se desenvolveram no contexto da justiça juvenil, sendo que apenas esta
última utilizou a conferência de família (family group conference) como
prática restaurativa. Todas as demais experiências utilizaram a mediação
vítima-ofensor (VOM) e eram voltadas para casos envolvendo ofensores
adulto.
Destaca, ainda, sobre a situação no Brasil:
Voltando ao Brasil, as práticas restaurativas recentemente receberam novo
impulso com o advento da Emenda n. 1 à Resolução 125 do Conselho Na-
cional de Justiça (CNJ) de janeiro de 2013. O ato normativo do CNJ esta-
belece que os Tribunais de Justiça, deverão criar Núcleos Permanentes de
Métodos Consensuais de Solução de Conflitos , e estes poderão imple-
mentar e estimular a implementação de programas de mediação penal ou
outra prática restaurativa, visando sua utilização nos conflitos que sejam
da competência dos Juizados Especiais Criminais e dos Juizados da In-
fância e da Juventude.
O interessante é que a Resolução confere lugar de destaque para a me-
diação penal, pois é a única prática restaurativa que é especificada. Talvez,
e só talvez, isso indique que é chegada a hora de implementar novas expe-
riências em justiça restaurativa, experiências que levem em consideração
muitas décadas de produção de conhecimento e de prática em mediação –
seja em âmbito penal ou não – provenientes dos mais diversos contextos,
inclusive do brasileiro, pois aqui, a mediação em âmbito não-criminal já
passou da fase experimental.
A prática da mediação penal é considerada como espécie de justiça
consensual que, segundo Wolkmer (2001, p. 299), reaparece na atualidade
em razão da crise do sistema de jurisdição estatal moderna, podendo ser
considerada como forma de solução de conflito em que os sujeitos “em
desavença, de forma rápida, informal e voluntária, buscam resolver suas
pendências e seus interesses, com ou sem a ajuda de outra pessoa neutra, e
201
Victor Henrique Machado Duarte · Jonatan de Jesus Oliveira Alves
deixando de se submeter aos princípios e regras processuais do Direito
formal”. Por que razão, torna-se irrealizável a negativa da existência de um
espaço participativa e democrático na construção da justiça penal, ainda
mais quando do desenvolvimento de novas formas de mediação penal com
inclusão de sujeitos comunitários extra estatais.
4 Considerações finais
Os discursos abolicionistas trouxeram à tona os principais defeitos e
fraquezas do Direito Penal. A história evolutiva deste sistema demonstra
que a chamada justiça hegemônica não prosperou de modo a satisfazer
completamente as pretensões punitivas estatais.
A presente pesquisa tem por escopo demonstrar teoricamente os pon-
tos positivos (e porque não necessários) de uma flexibilização do monopó-
lio punitivo, bem como da necessidade de valorizar a vítima enquanto
sujeito relevante na relação processual criminal, permitindo a ele novos
momentos de participação e oportunizando que persiga seus interesses
pessoais, ao invés de simplesmente servir ao Processo Penal como instru-
mento probatório.
Merece destaque o fato de que a produção e aplicação de fontes norma-
tivas fora dos domínios estatais é mais do que uma realidade: é uma neces-
sidade que merece destaque nos discursos de construção de novas estraté-
gias de persecução criminal.
Diante desse contexto inconstante da justiça penal, a mediação de con-
flitos pode representar um marco na história jurídico-penal, em razão de
oferecer propostas de natureza diversa. Garantindo os fins preventivos,
seja geral, em seu aspecto integrador, seja especifico, em sua vertente res-
socializadora, a mediação penal valoriza a reparação do dano, voltando o
olhar para a vítima do delito.
202
Pluralismo jurídico e justiça penal consensual
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204
PARTE III
Pluralismo Jurídico e
Jurisdições Extra-Estatais
O CÓDIGO BRASILEIRO ANTIDOPAGEM E A
TENSÃO DA AUTONOMIA DO DIREITO
DESPORTIVO SOB A ÓTICA DO
PLURALISMO JURÍDICO
8
Gabriel Faustino Santos
Jonatan de Jesus Oliveira Alves
__________________________________________________
RESUMO: Neste trabalho, o que se pretende é investigar a relação – por vezes,
tensa – que se desenha entre a ordem jurídica produzida pela autoridade esta-
tal e as ordens jurídicas autônomas e estranhas ao Estado, num contexto de
marcante pluralismo jurídico. Para tanto, e em tempos de Olimpíadas a serem
sediadas no Brasil, um aspecto que chama especial atenção e que se comunica
precisamente com o objetivo proposto é a questão do tratamento legal do do-
ping. A pesquisa, que parte do estudo da internalização pelo Brasil do Código
Mundial Antidopagem, constroi-se pelo método indutivo de abordagem. O
método de procedimento, por sua vez, combina o estudo do caso proposto e o
monográfico, com uso de pesquisa bibliográfica. Espera-se demonstrar que a
recente adaptação da legislação interna de controle de dopagem aos padrões
definidos internacionalmente é exemplo de uma configuração de acolhimento
oficial das normas de prevenção mundial do doping, no seio da relação entre
os diferentes sistemas jurídicos autônomos (estatal e desportivo).
__________________________________________________
1 Introdução
Já é possível admitir, sem maiores dificuldades, que o mundo é hoje ne-
cessariamente mais complexo. Na realidade, toda a construção jurídico-
dogmática, verdadeiramente compromissada com o estado atual de coisas,
precisa partir do pressuposto de que já não é mais possível reproduzir os
conceitos tipicamente modernos acerca da Teoria do Direito e do Estado.
Vive-se numa modernidade descontinuada, porque, na prática, mais fluida
207
Gabriel Faustino Santos · Jonatan de Jesus Oliveira Alves
e dinâmica que a experiência do Estado Moderno, que perdeu fôlego já na
segunda metade do século XX, quando sua vertente de Estado Social foi
quase que inteiramente abandonada e substituída pelas práticas neoliberais
das décadas de 1980 e 1990.
A complexificação das esferas da vida, agravada principalmente pelo
fenômeno da globalização, exige novos padrões de estabilização e pacifica-
ção das relações sociais, que só podem ser alcançados mediante o consenso
dos diferentes grupos e em novos planos de regulação. O direito, nesse
sentido, vai se subdividir em vários subsistemas autônomos, cada um deles
responsável por regular determinado aspecto dessas relações sociais.
Um claro exemplo de autonomia é o Direito Desportivo, que representa
um conjunto de normas jurídicas produzidas antes e para além do Estado,
destinadas a regular uma porção muito específica da vida social, relaciona-
da à prática de atividades desportivas em competições ou eventos, inclusi-
ve, de âmbito internacional. A partir do caso estudado, espera-se demons-
trar um aspecto ao mesmo tempo relacionado à autonomia dos subsiste-
mas jurídicos e que, de certa forma, também a ultrapassa: a questão do
equilíbrio delicado entre a autorreferencialidade dos sistemas jurídicos e o
estatalismo, aqui entendido como a manifestação da ordem jurídica oficial
do Estado, que, nos moldes próprios da modernidade, era responsável pela
produção única do Direito. Essa tensão que se desenha com contornos
drásticos nos dias atuais é bastante bem ilustrada pelo Código Brasileiro
Antidopagem o qual, adotado pela Portaria nº 1 da Autoridade Brasileira
de Controle de Dopagem, representa, em grande extensão, uma verdadeira
cópia do Código Mundial Antidopagem, escrito pela World Anti-Doping
Agency. O problema é ainda mais delicado tendo em vista a criação de um
procedimento sumário para a solução dos casos de doping em eventos
esportivos, excetuando, quanto ao prazo, norma de estatura constitucional
(art. 217, §2°, da CR/1988).
208
O Código Brasileiro Antidopagem e a tensão da autonomia...
2 O Código Mundial Antidopagem vs. o Código Brasileiro Antidopagem
Inicia-se este trabalho pela delimitação do estudo de caso proposto en-
quanto método de procedimento da pesquisa. O foco será sobre o recente
acolhimento da regulamentação antidopagem internacional pelo direito
estatal oficial brasileiro, demonstrando, com fortes evidências, que, a des-
peito de um contexto marcadamente pluralista, a harmonização entre dife-
rentes sistemas jurídicos autônomos ainda passa, no Brasil, pelo direito
oficial do Estado.
O doping é termo que, apesar dos intensos esforços de regulação nas úl-
timas décadas, não encontra uma definição universal (LUCE, 2015, p.
122). Diversas são as agências e organizações internacionais que produzi-
ram seus próprios conceitos de doping e as autoridades nacionais tendem,
hoje, cada vez mais a adotar essas definições, num esforço global de pa-
dronização (CASTANHEIRA apud LUCE, 2015, p. 123).
Para o nível desta investigação, a fonte que mais interessa é o Código
Mundial Antidopagem, documento produzido pela World Anti-Doping
Agency (WADA) – ou, em português, Agência Mundial Antidopagem
(AMA) –, uma agência internacional independente, criada na cidade de
Lausanne, Suíça, em 10 de novembro de 1999, cujo objetivo principal é
combater a dopagem nas competições e nos eventos desportivos, harmo-
nizando, para tanto, políticas antidopagem em todas as modalidades es-
portivas e em todos os países do mundo. Foi criada por influência do Co-
mitê Olímpico Internacional (COI) e, atualmente, tem sede em Montreal,
no Canadá. É hoje constituída por 660 representantes de diversas entida-
des do Movimento Olímpico e de autoridades nacionais antidopagem,
dentre as quais a Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD).
Organizada pelo Decreto nº 7.630, de 30 de novembro de 2011, à ABCD
foi atribuída a missão de consolidar a consciência antidopagem e defender,
no âmbito nacional, o direito fundamental dos atletas de participarem de
competições esportivas livres de quaisquer formas de dopagem.
209
Gabriel Faustino Santos · Jonatan de Jesus Oliveira Alves
É o artigo 2 do Código Mundial Antidopagem que define e prevê, em
termos técnicos, as violações das normas antidopagem:
Código Mundial Antidopagem.
Artigo 2 – Violações das normas antidopagem
1. A presença de uma substância proibida, dos seus metabolitos ou marca-
dores, numa amostra recolhida a partir de um praticante desportivo.
2. Utilização ou tentativa de utilização de uma substância proibida ou de
um método proibido por um praticante desportivo tenham sido utilizados
ou que tenha sido tentada a sua utilização para se seja cometida uma viola-
ção de normas antidopagem.
3. Evasão, recusa ou falta de submissão à recolha de amostras evasão à re-
colha de amostras, ou a recusa sem justificação válida ou uma falta de
submissão à recolha de amostras após notificação, em conformidade com
as normas antidopagem vigentes.
4. Incumprimento do dever de informação sobre a localização do pratican-
te desportivo.
5. A manipulação, ou tentativa de manipulação de qualquer elemento in-
tegrante do controlo de dopagem.
6. Posse de uma substância proibida ou de um método proibido.
7. Tráfico ou tentativa de tráfico de qualquer substância proibida ou méto-
do proibido.
8. A administração, ou tentativa de administração de uma substância proi-
bida ou método proibido a qualquer praticante desportivo, ou a adminis-
tração ou tentativa de administração a qualquer praticante desportivo fora
de competição de qualquer substância proibida ou método proibido que
seja proibido fora de competição.
9. Cumplicidade.
10. Associação proibida.
(AMA, 2015. Disponível em:
<http://www.pcand.pt/sites/default/files/documentos/codigo_mundial_an
tidopagem_2015_0.pdf>. Acesso: 3 de maio de 2016)
É importante sublinhar que essas regras e conceitos técnicos de doping
e outras práticas vedadas pela WADA se inserem no programa mundial de
210
O Código Brasileiro Antidopagem e a tensão da autonomia...
combate a essa prática danosa ao esporte e se impõem de forma obrigató-
ria a todos os países que se comprometeram a adotar essa regulamentação.
É que, em 19 de outubro de 2005, na 33º Conferência Geral da UNESCO,
os governos assinaram a Convenção Internacional contra o Doping no
Esporte (ICADIS, na sua sigla em inglês), o primeiro tratado internacional
voltado à antidopagem. Os países que a ratificaram – o que inclui o Brasil
– firmaram, formalmente, sua intenção de se submeter às regras do Códi-
go, mediante a adoção de normas próprias de Direito Público interno,
sejam de natureza legislativa ou administrativa. Foi essa a solução encon-
trada pela comunidade internacional para garantir efetividade às disposi-
ções do Código Mundial Antidopagem, formalizando e padronizando
regras antidopagem:
ICADIS, arts. 3, 4 e 5.
Article 3 – Means to achieve the purpose of the Convention
In order to achieve the purpose of the Convention, States Parties undertake
to:
(a) adopt appropriate measures at the national and international levels
which are consistent with the principles of the Code;
(b) encourage all forms of international cooperation aimed at protecting
athletes and ethics in sport and at sharing the results of research;
(c) foster international cooperation between States Parties and leading or-
ganizations in the fight against doping in sport, in particular with the
World Anti-Doping Agency.
Article 4 – Relationship of the Convention to the Code
1. In order to coordinate the implementation, at the national and interna-
tional levels, of the fight against doping in sport, States Parties commit
themselves to the principles of the Code as the basis for the measures provid-
ed for in Article 5 of this Convention. Nothing in this Convention prevents
States Parties from adopting additional measures complementary to the
Code.
2. The Code and the most current version of Appendices 2 and 3 are repro-
duced for information purposes and are not an integral part of this Conven-
tion. The Appendices as such do not create any binding obligations under
211
Gabriel Faustino Santos · Jonatan de Jesus Oliveira Alves
international law for States Parties.
3. The Annexes are an integral part of this Convention.
Article 5 – Measures to achieve the objectives of the Convention
In abiding by the obligations contained in this Convention, each State Party
undertakes to adopt appropriate measures. Such measures may include leg-
islation, regulation, policies or administrative practices.
(UNESCO, ICADIS, Disponível em: <http://portal.unesco.org/en/ev.php-
URL_ID=31037&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html>.
Acesso: 4 de maio de 2016)
No Brasil, a aproximação dos Jogos Olímpicos de Verão, na cidade do
Rio de Janeiro, em agosto de 2016, repercutiu sobre a necessidade urgente
de adaptação do sistema nacional de controle e repressão ao doping aos
padrões impostos pela WADA. De fato, a própria imprensa nacional espe-
cializada denunciou o desacordo da legislação interna brasileira com as
exigências do Código Mundial Antidopagem e a pressão imposta pela
WADA para que o Brasil adaptasse sua ordem jurídica consoante os pa-
drões internacionais. Em reportagem de Jonas Moura, publicada na revista
eletrônica “O lance!”, de novembro de 2015, o jornalista informa:
A Agência Mundial Antidoping (Wada) vem alertando seis países, dentre
eles o Brasil, por não cumprirem todas as exigências do atual código a res-
peito do uso de substâncias proibidas por atletas, em vigor desde o início
do ano. Até o dia 18 de março de 2016, eles deverão se adaptar totalmente
para não terem seus órgãos internos descredenciados. É o caso da Autori-
dade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD). Para isso, é preciso alte-
rar um dispositivo na lei do país.” (2015, disponível em
<http://esportes.terra.com.br/lance/brasil-tem-pressa-para-mudar-lei-e-
nao-perder-agencia-
antidoping,8fc2fdbfdfa778deb55e42840f756ccdeahv08gu.html>. Acesso
em 31 de maio de 2016).
O tema trouxe graves implicações para o sistema jurídico brasileiro. Há,
no caso, uma verdadeira tensão com a ordem constitucional, principal-
mente em face do §2º, do artigo 217 da Constituição de 1988, que afirma:
212
O Código Brasileiro Antidopagem e a tensão da autonomia...
“A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da
instauração do processo, para proferir decisão final”. A WADA, por sua
vez, invocando a disposição contida no artigo 8.2 do Código Mundial An-
tidopagem, exigia do país organizador não só a criação, durante os Jogos
Olímpicos, de um tribunal específico para os casos de doping, como tam-
bém a previsão de um procedimento mais célere a ser aplicado nesses jul-
gamentos, tudo antes do prazo final de 18 de março de 2016:
Código Mundial Antidopagem, artigo 8.2.
8.2 Audições relativas a Eventos Desportivos
As audições efetuadas no quadro de Eventos Desportivos poderão ser
conduzidas através de um processo urgente, se este for autorizado pelo re-
gulamento da Organização Antidopagem em causa e pelo respectivo pai-
nel de audição. (AMA, 2015. Disponível em:
<http://www.pcand.pt/sites/default/files/documentos/codigo_mundial_an
tidopagem_2015_0.pdf>. Acesso: 3 de maio de 2016)
Para não ter seus órgãos internos junto à WADA descredenciados, o
Brasil acabou por buscar uma alteração legislativa para filiar-se às práticas
e condutas internacionais. Inclusive, vale lembrar que desde meados de
2015 as autoridades brasileiras procuravam afinar as diretrizes nacionais
de combate ao doping com o Código Internacional Antidopagem, con-
forme resolução Nº 42 do Conselho Nacional do Esporte, de 25 de junho
de 2015. O governo brasileiro, contudo, não indicou qual seria o teor dessa
mudança legislativa. A celeuma só se agravou quando, com o prazo estipu-
lado pela WADA já quase vencido, o presidente do Superior Tribunal de
Justiça Desportiva manifestou-se de forma contrária à criação de um tri-
bunal específico para os casos de doping. Foi o que informou Rodrigo Viga
para o Jornal Eletrônico Reuters Brasil, do dia 14 de março de 2016:
O Brasil tem até sexta-feira para cumprir o compromisso firmado com a
Agência Mundial Antidoping (Wada) e criar um tribunal para julgar casos
de doping nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. O presidente do STJD,
Caio César Rocha, no entanto, declarou que é contra a medida por enten-
der que o modelo em vigor de julgamento de casos de doping no país é o
213
Gabriel Faustino Santos · Jonatan de Jesus Oliveira Alves
mais adequado e mais independente. Atualmente, se um atleta de uma de-
terminada modalidade é flagrado em um exame antidoping, inicialmente
ele é julgado por um tribunal de sua própria federação, e, depois, o caso
pode ir ao STJD. (2016, disponível em
<http://br.reuters.com/article/sportsNews/idBRKCN0WG2MW>. Acesso
em 31 de maio de 2016).
Enfim, na antevéspera do prazo limite fixado pela WADA, o governo
brasileiro tomou uma série de medidas significativas, que finalmente in-
corporaram à ordem jurídica nacional as regras definidas pelo Código
Mundial Antidopagem. Competiu à Medida Provisória nº 718, de 16 de
março de 2016, a criação da Justiça Desportiva Antidopagem (JAD), pre-
vista num novo artigo da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998 (Lei Pelé):
Art. 55-A. Fica criada a Justiça Desportiva Antidopagem - JAD, composta
por um Tribunal e por uma Procuradoria, dotados de autonomia e inde-
pendência, e com competência para:
I - julgar violações a regras antidopagem e aplicar as infrações a elas cone-
xas; e
II - homologar decisões proferidas por organismos internacionais, decor-
rentes ou relacionadas a violações às regras antidopagem.
No mesmo dia em que foi editada a referida Medida Provisória, a
ABCD publicava também a sua Portaria nº 1, criando o Código Brasileiro
Antidopagem. Coube a esse instrumento normativo atípico a regulação
daquela outra exigência da WADA, isto é, do procedimento sumário de
resolução dos casos de doping ocorridos durante os Jogos Olímpicos e
outros eventos desportivos.
ABCD, Código Brasileiro Antidopagem, art. 133.
Art. 133. Audiências perante as Câmaras e o Plenário do TJD-AD devem
ser realizadas em conformidade com o Regimento Interno do TJDAD, e
com o seguinte:
I – os membros nomeados não devem ter nenhum envolvimento prévio
com qualquer aspecto do caso. Em particular, nenhum membro deve ter
considerado previamente qualquer pedido de AUT ou recurso envolvendo
214
O Código Brasileiro Antidopagem e a tensão da autonomia...
o mesmo Atleta;
II - a Federação Internacional em causa, se não for parte no processo, o
Comitê Olímpico do Brasil, Comitê Paralímpico Brasileiro se não for parte
no processo, e WADA-AMA, cada um tem o direito de assistir às audiên-
cias do TJD-AD na qualidade de observador;
III – julgamentos nos termos do presente artigo devem ser concluídos ra-
pidamente e em todos os casos no prazo de sessenta dias a contar da data
da decisão do TJD-AD de aceita a Denúncia, salvo se aplicável caso de cir-
cunstâncias excepcionais;
IV - julgamentos realizados em relação aos Eventos podem ser conduzidos
de forma sumária. (grifo nosso) (BRASIL, 2016, disponível em
<http://www.abcd.gov.br/legislacao>).
O novo Código Brasileiro Antidopagem oferece abertura para que os
casos sejam resolvidos em tempo reduzido, naquilo que chama de condu-
ção “sumária” do processo. Aqui, o governo brasileiro acabou por “dri-
blar” a Constituição Federal, mediante simples Portaria da ABCD, que
excetua o prazo definido pelo parágrafo 2º, Inciso IV, do seu artigo 217,
impondo prazos mais céleres que aqueles estabelecidos pelo Constituinte.
Uma vez apresentado o caso, passa-se agora à acomodação teórica de
todas as questões principais, ressaltando o fato de que, em que pese a au-
tonomia da lex sportiva, a dimensão atual das instituições do Estado brasi-
leiro demandam sua participação ainda ativa e decisiva no papel de reco-
nhecimento de normas produzidas por agentes que lhe são estranhos. A
autonomia dos sistemas jurídicos, portanto, não é sinônimo de superação
do Estado, que até hoje é chamado a desempenhar funções de bastante
relevância, mesmo que ratificatórias.
215
Gabriel Faustino Santos · Jonatan de Jesus Oliveira Alves
ideia do pluralismo jurídico, conceito aqui empregado no sentido que lhe
atribuiu o prof. António Manuel Hespanha. Para o historiador português,
o pluralismo jurídico parte da ideia de que “qualquer sociedade tem mais
normas do que as legais” e “de que o direito se pode encontrar em vários
ordenamentos, de vários níveis, sem que entre eles exista um que determi-
ne a validade dos outros ou estabeleça a hierarquia entre eles” (HESPA-
NHA, 2009, p. 65).
É com base nessa ideia que, depois de introduzir as principais premis-
sas históricas e culturais da teoria do pluralismo jurídico, este artigo pro-
curará demonstrar que as diferentes esferas de regulação de uma realidade
cada vez mais complexa são autorreferenciais e, portanto, autônomas entre
si. No entanto, em que pese essa autonomia, o objetivo principal do traba-
lho é demonstrar, a partir do caso narrado logo acima, que o Estado e sua
ordem jurídica oficial não foram completamente superados e desempe-
nham, ainda, funções importantes de estabilização social.
Partimos, então, de uma retomada histórica. O direito moderno e, até
certa medida, o direito contemporâneo constituem importante contrapon-
to à ordem jurídica medieval (GROSSI, 20014). Numa realidade marcada
pela diferença institucionalizada e pela divisão em grupos bem marcados, a
principal característica da ordem medieval era a pluralidade. Hespanha
(2009, p. 131-132) define isso muito bem, quando afirma:
[n]os jovens reinos medievais, nas cidades (sobretudo em Itália), nos se-
nhorios, nas comunidades camponesas e noutras corporações de base pes-
soal (universidades, corporações religiosas, corporações de artífices), exis-
tiam e continuavam em pleno desenvolvimento direitos próprios, funda-
dos em tradições jurídicas romano-vulgares, canônicas e germânicas, na
vontade dos seus senhores de criarem um direito próprio ou, simplesmen-
te, nos estilos locais de governo, de regulação e de resolução de litígios.
A descontinuidade, por isso, é marcante, uma vez que o direito, na mo-
dernidade, se confunde e se identifica com o Estado. A partir de então, o
que se obseva é justamente a predominância da política e a verticalidade da
216
O Código Brasileiro Antidopagem e a tensão da autonomia...
sociedade, organizada sobre as bases de um Estado que passa a monopoli-
zar o direito: “the old chaos of legal pluralism is replaced by an extremely
rigid legal monism: the law is now bound to the apparatus of state power
and tends to become conflated with legislation” (GROSSI, 2010, p. 69). A
legitimidade para impor normas aos cidadãos resultava de ser o próprio
Estado o produto da vontade dos mesmos cidadãos, expressa pelos órgãos
que oficialmente os representavam. De fato, Grossi (2006, p. 4) vai dizer
que “identificada a vontade geral na lei, isso tornava possível a identifica-
ção do direito na lei e possibilitava sua completa estatização”.
Hoje, contudo, vivemos uma tendência de complexificação da realidade
atual. É Hespanha (2013, p. 18) quem a identifica e assim a descreve: “ho-
je, tudo se tornou menos nítido e mais complexo. [...] O Estado tende a
deixar de ser considerado quer como a origem única do direito quer como
a fonte da sua legitimação última”. Esse agravamento da realidade se asso-
cia ainda a uma retomada, com importantes ressalvas, do modelo plural de
produção do direito medievo, implicando numa nova ruptura do discurso
jurídico e impondo a rediscussão dos padrões de produção das normas
jurídicas. Nesse sentido, a História demonstra que o direito, na maior par-
te de sua existência, sempre foi um discurso autorreferencial. Isso não ex-
clui, no entanto, a ideia de que os fatos passam, necessariamente, pelo fil-
tro do sistema jurídico; o direito, em outras palavras, tem necessária rela-
ção com o ambiente, pois, ainda que autônomo e autorreferencial, é influ-
enciado – ou, em termos mais técnicos, “estimulado” – por fatores exteri-
ores ao próprio sistema jurídico, o que traduz, em termos mais simples,
um dos aspectos da autopoiesis de Luhmann (openessnes) (HESPANHA,
2009, p. 217). Valores que são arraigados numa sociedade repercutem
sobre o direito, desde que consigam se traduzir em discursos jurídicos
satisfatórios, porque “o fechamento do sistema direito ao ambiente não
exclui transações entre um e outro” (HESPANHA, 2009, p. 220).
A absorção de fatores do ambiente precisa produzir estabilidade e o di-
reito é o sistema que mais produz estabilidade, segurança e previsibilidade
217
Gabriel Faustino Santos · Jonatan de Jesus Oliveira Alves
(HESPANHA, 2013, p. 215). O século XX, no entanto, mostra bem clara-
mente que a lei não é sinônimo de segurança jurídica. O legalismo e estata-
lismo simplesmente não conseguem traduzir o todo. A mensagem que se
extrai deste diagnóstico é a de que precisamos prestar atenção a outros
sistemas jurídicos que não o direito estatal. Aqui é importante ressaltar, no
entanto, que Hespanha não nega o Estado; muito pelo contrário, reserva-o
a uma posição ainda de destaque, com funções muito importantes a de-
sempenhar, como o ente mais estabilizador à disposição da comunidade.
O problema que se coloca numa sociedade de risco, de acordo com as
teorias de Beck, é, em grande medida, também o problema da segurança
jurídica. Se o direito não é habitual e previsível, não é estabilizador. Assim,
a estabilização da vida social por meio do direito depende de consensos
múltiplos, cuja regulação se encontra, hoje, em vários planos: “com isto, o
próprio direito diferenciou-se internamente, dividindo-se em vários (sub)
sistemas, cada um dos quais regulando juridicamente uma dimensão da
vida” (WOLKMER, 2003, p. 89 e 216). Marcelo Neves (2009, p. 115), por
sua vez, vai dizer que “dentro de um mesmo sistema funcional da socieda-
de mundial moderna, o direito, proliferam ordens jurídicas diferenciadas,
subordinadas ao mesmo código binário, isto é, ‘lícito/ilícito’, mas com
diversos programas e critérios”. O autor ainda afirma:
[...] essa diferenciação entre ordens não se limita, porém, à diferenciação
segmentária entre ordens jurídicas estatais com âmbitos territoriais de va-
lidade delimitados. Além disso, há não só uma diferenciação de ‘níveis’
entre ordem jurídica estatal, supranacional e internacional, mas também a
diferenciação funcional de ordens jurídicas transnacionais, desvinculadas,
por sua transterriorialidade, do direito estatal. (NEVES, 2009, p. 116)
Nesse sentido – e resgatando o tema principal deste trabalho – há um
setor do direito que nasceu completamente à revelia do próprio Estado,
partindo de tradições costumeiras para regular atividades de lazer e de
desporto. No Brasil, de fato, este é um subsistema do direito já reconheci-
do desde meados do século passado, consoante as palavras de Oliveira
218
O Código Brasileiro Antidopagem e a tensão da autonomia...
Vianna (1987 [1949], p. 16):
Há, por exemplo, um largo setor do nosso direito privado que é inteira-
mente costumeiro, de pura criação popular, mas que é obedecido como se
fosse um direito codificado e sancionado pelo Estado. Quero me referir ao
direito que chamo esportivo e que só agora começa a ser ‘anexado’ pelo
Estado e reconhecido por lei.
Trata-se, como é óbvio, do direito desportivo, ou, como a doutrina
também costuma se referir, ainda que num sentido mais restrito ao corpo
de normas desportivas criado pelas agências internacionais do esporte
(FOSTER, 2003), lex sportiva. Para o advogado brasileiro Valed Perry
(1981, p. 81), o direito desportivo é “o complexo de normas e regras que
regem o desporto no Mundo inteiro e cuja inobservância pode acarretar a
marginalização total de uma Associação Nacional do concerto mundial
esportivo”. Ainda em outro sentido, e focando na origem peculiar desse
subsistema jurídico, para o professor Eduardo Viana da Silva (1997, p. 37)
o “direito desportivo é constituído pelo conjunto de normas escritas ou
consuetudinárias que regulam a organização e a prática do desporto e, em
geral, de quantas questões jurídicas situam a existência do desporto como
fenômeno da vida social”.
A partir do exemplo citado no tópico anterior, fica muito claro o grau
de autonomia, de produção e de autorregulação do direito desportivo,
principalmente na sua esfera transnacional. Esse, aliás, é um aspecto parti-
cularmente ressaltado pela doutrina especializada. Ramón Negócio (2014,
p. 146) já afirmava:
[a] ordem desportiva tem uma localidade, seja onde se instala sua sede seja
onde se realizam suas competições, mas suas decisões possuem múltiplas
localidades dada a existência de outros órgãos e atletas a elas vinculados.
Esses, em uma coordenação associativa, vinculam-se às suas decisões,
mesmo em territórios diferentes de onde se tomam decisões vinculantes.
Embora existam países que veem no esporte valores merecedores de seu
controle, as regras transnacionais do direito desportivo se sobrepõem,
219
Gabriel Faustino Santos · Jonatan de Jesus Oliveira Alves
quase na integralidade, ao controle estatal quando estão envolvidas medi-
das disciplinares que visam o bom desenvolvimento da competição inter-
nacional. Tais medidas podem tocar em questões como nacionalidade,
contratos trabalhistas, saúde, além de questões econômicas, como a co-
mercialização do esporte.
O Código Mundial Antidopagem foi criado inteiramente pela WADA,
num esforço de padronização e universalização da normativa antidopa-
gem. No entanto, o que a tensão observada entre essa mesma agência in-
ternacional e o governo brasileiro comprova é que, por mais avançado que
seja o estágio de globalização da sociedade atualmente, a autonomia do
sistema jurídico desportivo na sua relação com o sistema do direito estatal
parece vincular-se a uma configuração que atribui ao Estado o papel de
reconhecimento das normas de direito desportivo, para se impor a estas.
Isso parece estar intrinsecamente ligado ao que A. M. Hespanha ressalta
em seus textos, quando diz que o sistema de regulação estadual, “por po-
der combinar interesses mais diversos e por poder ser capaz de processar
maior complexidade, pode produzir uma regulação com maiores virtuali-
dades estabilizadoras, introduzindo confiança onde os sistemas mais espe-
cializados tinham produzido incerteza” (HESPANHA, 2009, p. 225). A
criação do Código Brasileiro Antidopagem é exemplo dessa nova configu-
ração dos diversos subsistemas jurídicos que, de forma compreensivel-
mente paradoxal, demonstra a fraqueza e, ao mesmo tempo, a resiliência
do direito estatal.
4 Considerações finais
Se o mundo muda, o direito – que não é sozinho no mundo – trans-
forma-se com ele. Prova das mútuas influências entre ambos está nas
constantes viradas paradigmáticas sofridas pelo pensamento jurídico ao
longo dos anos, até chegar-se ao tempo presente, que se convenciona
chamar de pós-moderno. Tal período é marcado pela globalização, pelo
220
O Código Brasileiro Antidopagem e a tensão da autonomia...
enfraquecimento das fronteiras ditadas pelo Estado e pela retomada do
pluralismo jurídico, o que leva ao surgimento, para além da legislação esta-
tal, de sistemas autônomos e capazes de regularem diferentes aspectos da
vida social. Tem-se como exemplo o Direito Desportivo, que regula as
normas internacionais antidopagem e é campo de legislação específica,
isto é, autônoma, porque produzida fora do âmbito de qualquer Estado e
capaz, inclusive, de influenciar a modificação da legislação interna dos
países.
A recente internalização operada pelo Brasil da legislação internacional
antidopagem, reunida no Código Mundial Antidopagem da WADA, é
exemplo claro da tensão que se desenha entre o paradigma atual de cres-
cente pluralismo jurídico e o modelo do monismo jurídico estatal, que
prevaleceu resoluto até meados do século passado. Essa tensão, como se
viu ao longo do trabalho, resolve-se, na verdade, num paradoxo. Sim, o
Estado brasileiro foi constrangido a aceitar, nos exatos termos propostos
pela WADA, as regras internacionais de combate ao doping, a criação de
tribunal específico para os Jogos Olímpicos de 2016 e a previsão de proce-
dimento sumário que excetua, quanto ao prazo, regra constitucional. Ao
mesmo tempo, no entanto, foram os órgãos oficiais do governo brasileiro
que inovaram a ordem jurídica nacional, mediante instrumentos normati-
vos específicos, ainda que de baixa estatura ou hierarquia.
De fato, a Portaria n. 1 da ABCD, que inaugurou o Código Brasileiro
Antidopagem, é uma peça jurídica bastante peculiar e interessante, por
reunir todos os aspectos discutidos no trabalho. Foi ela que conciliou as
ordem jurídicas desportiva e estatal, que se mostravam em posição de apa-
rente antagonismo. Afinal, parece ser marca do direito brasileiro o com-
promisso com o direito oficial do Estado, que – ainda – tem muito a dizer,
embora não mais possa se colocar como o árbitro definitivo de todas as
coisas. Só mesmo a teoria do pluralismo jurídico de António Manuel Hes-
panha, da forma como foi apresentada, dá conta deste novo fenômeno do
direito, em que uma mera portaria é capaz de promover alterações tão
221
Gabriel Faustino Santos · Jonatan de Jesus Oliveira Alves
profundas e paradigmáticas na ordem jurídica nacional, assumindo, ao
mesmo tempo, essa marca do sistema jurídico brasileiro de ainda apostar
na função estabilizadora do Estado.
Evidencia-se que o pluralismo é uma realidade e constitui o atual para-
digma da Teoria do Direito, que talvez choque em primeiro momento
devido a uma tradição monista ainda profundamente arraigada na dogmá-
tica. Entretanto, é novo paradigma que ainda está em construção e convive
com um velho modelo que ainda dá provas de sua força e resiliência. O
Estado, enfim, ainda vive, ainda que enfraquecido e, por vezes, ameaçado.
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O Código Brasileiro Antidopagem e a tensão da autonomia...
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__________________________________________________
223
PLURALISMO JURÍDICO E JURISDIÇÃO
DESPORTIVA: ESTUDO DE CASO SOBRE A
CONDENAÇÃO DO CRUZEIRO ESPORTE
CLUBE PELO COMITÊ DISCIPLINAR DA FIFA
(2019)
9
Gabriella Coelho Santos
Marcello Augusto Souza Neves
__________________________________________________
RESUMO: Busca-se, neste artigo, apresentar o caso acerca da condenação, em
2019, do Cruzeiro Esporte Clube pelo Comitê Disciplinar da Federação Inter-
nacional de Futebol (FIFA) como aplicação da lex sportiva em um contexto de
pluralismo jurídico. Entende-se por ordem pluralista, aquela que contempla os
três pilares da teoria de António Manuel Hespanha: as normas de reconheci-
mento, os consensos sociais e a estabilidade. Esta pesquisa justifica-se pela ne-
cessidade de se explicitar as formas espontâneas de regulação da sociedade,
visto que o modelo estadualista, embora teoricamente reformulado, ainda seja
utilizado como principal base para explicar o direito. O artigo empregou o es-
tudo de caso enquanto tipo de pesquisa.
__________________________________________________
1 Introdução
Hebert Hart (2009, p. 13) aponta que “poucas questões relativas à soci-
edade foram postas com tanta persistência e respondidas por grandes pen-
sadores de forma tão diversa, estranha ou até mesmo contraditória, como
a questão ‘o que é o direito?’”. Nesse âmbito de discussão, António Manu-
el Hespanha (2019, p. 24) acrescenta que
o direito é um fenômeno mutável nas suas fronteiras, plural nas suas fon-
tes de criação ou de revelação, complexo na sua lógica interna, não consis-
225
Gabriella Coelho Santos · Marcello Augusto Souza Neves
tente nem harmônico nos seus conteúdos, e, finalmente, nada afeito a um
saber que pretenda certezas e formulações seguras e não opináveis. Em
suma, trabalhar com o direito exige que se assuma que ele é algo de “lo-
cal”, de plural, de equívoco, sujeito a controvérsias (“opinável”, “argu-
mentável”) e ao convívio e disputa com outras ordens normativas.
As reflexões de ambos os autores convergem para a permeabilidade do
conceito de direito. Essa porosidade permitiu que a concepção de norma
jurídica passasse a ser percebida enquanto produto social, e não exclusi-
vamente como criação estatal. A ultrapassagem do modelo estadualista de
pensar o direito possibilita admitir que ordens normativas plurais coexis-
tam no mesmo ordenamento jurídico, para além das leis que o Estado
emana (HESPANHA, 2014). Nesse contexto, este artigo pretende apresen-
tar o estudo de caso acerca da condenação, em 2019, do Cruzeiro Esporte
Clube pelo Comitê Disciplinar da Federação Internacional de Futebol (FI-
FA) como aplicação da lex sportiva em um contexto de ordem normativa
plural.
A fim de cumprir com esse objetivo, o artigo subdivide-se em quatro
tópicos. O primeiro desenvolve, brevemente, o pluralismo jurídico a partir
da teoria de António Manuel Hespanha. O tópico subsequente situa a lex
sportiva enquanto expressão de uma ordem plural. O terceiro aborda os
acontecimentos do estudo de caso supracitado e, por fim, o último item
correlaciona o caso do Cruzeiro com os tópicos antecedentes ao analisá-lo
com base nos conceitos desenvolvidos. Essa pesquisa justifica-se pela ne-
cessidade de se explicitar a ordem normativa pluralista, visto que o modelo
estadualista, embora teoricamente reformulado, ainda seja utilizado como
principal base para explicar o direito. O artigo empregou o estudo de caso
enquanto tipo de pesquisa. Escolheu-se a condenação do Cruzeiro pelo
Comitê Disciplinar da FIFA por se tratar de um caso brasileiro recente.
Cabe notar que, no plano constitucional, o Brasil reconhece a existência de
226
Pluralismo jurídico e jurisdição desportiva
um direito desportivo autônomo.1
1 Nesse sentido, “Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e
não-formais, como direito de cada um, observados: I. a autonomia das entidades
desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento. [...]
§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições des-
portivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei. [...]”
(BRASIL, 1988).
2 Nesse sentido, “Durante os últimos 200 anos, este movimento antiestadualista não
deixou de se fortalecer, insistindo alternadamente nos seus vários argumentos. Os
regimes políticos autoritários dos meados do séc. XX (fascismos, nazismo, bolche-
vismo), identificando o direito com leis e com a autoridade totalitária do Estado, fo-
ram apenas a cereja do bolo” (HESPANHA, 2014, p. 25-27).
227
Gabriella Coelho Santos · Marcello Augusto Souza Neves
28). Todos esses fatores, que são civilizacionais antes de serem jurídicos,
alteraram definitivamente as bases do direito contemporâneo.
A natureza do direito atual modificou-se intensamente tanto na acep-
ção teórica quanto na dogmática, “não sendo mais possível continuar a
utilizar conceitos e fórmulas que foram cunhados num período de mono-
pólio legislativo do direito para descrever um direito que se afasta progres-
sivamente da lei” (HESPANHA, 2014, p. 29). Apenas superficialmente – e
de certa forma cada vez mais irrealista – a lei pode ser a identidade do di-
reito. Em que pese o direito estatal continue como expressão relevante da
ordem jurídica, as suas múltiplas acepções que surgem espontaneamente
na sociedade conquistaram – e ainda conquistam – espaço.3 Nesse âmbito,
o modelo antiestadualista supera gradativamente o estadualista (HESPA-
NHA, 2014, p. 25-42),4 e nessa interpretação atualizada do direito, o pro-
cesso social da sua produção deve ser considerado (HESPANHA, 2017, p.
38). Para Hespanha, “a ideia é a de relacionar o direito com os espaços
sociais (‘campos’, para usar a terminologia de Bourdieu, ‘práticas discursi-
vas’ ou ‘dispositivos’, para utilizar a de M. Foucault), explicando a partir
daí os efeitos (jurídicos) produzidos” (HESPANHA, 2017, p. 38-39). Nessa
visão, portanto, o direito assume expressão de produto social e alcança
formas espontâneas de regular a sociedade, para além das normas estatais.
Esse contexto de coexistência de ordens distintas no âmbito do mesmo
ordenamento denomina-se pluralismo jurídico.5 Segundo António Hespa-
3 Nesse mesmo sentido, “a ideia de pluralismo jurídico desafia cada vez mais ousada-
mente a antiga ideia de que o direito se reduziria à constituição, ao código e à lei do
Estado” (HESPANHA, 2017, p. 37).
4 Para mais informações, ler também o tópico 3.1.1 (“A crise política do estadualis-
mo”) do livro Cultura jurídica europeia (HESPANHA, 2017, p. 49-52).
5 Nesse contexto, tema que não será explorado diretamente por este artigo, mas está
associado ao pluralismo jurídico é o Direito Achado na Rua, com bases em Roberto
Lyra Filho e continuidade em José Geraldo de Sousa Júnior. “A proposta da Nova Es-
cola insere-se na conjuntura de luta social e de cínica teórica, como pensamento al-
228
Pluralismo jurídico e jurisdição desportiva
nha (2017, p. 161):
por pluralismo jurídico quer-se, portanto, significar a situação em que dis-
tintos complexos de normas, com legitimidades e conteúdos distintos, co-
existem no mesmo espaço social. Tal situação difere da actual - pelo me-
nos tal como ela é encarada pelo direito oficial -, em que uma ordem jurí-
dica, a estadual, pretende o monopólio da definição de todo o direito, ten-
do quaisquer outras fontes jurídicas (v.g., o costume ou a jurisprudência)
uma legitimidade (e, logo, uma vigência) apenas derivada, ou seja, decor-
rente de uma determinação da ordem jurídica estadual. [...] A unidade e
exclusividade do direito oficial corresponde à unidade e indivisibilidade
do poder político (soberania), tal como o concebe o imaginário estadualis-
ta.6
Antes mesmo de se apresentar como ideal, o pluralismo normativo é
um fato, reconhecido como atual modelo de manifestação de direito, o
qual pressupõe repensar as tradicionais formas de identificá-lo ou circuns-
crevê-lo (HESPANHA, 2019, p. 63). Dentre os requisitos clássicos, desta-
cam-se a origem estatal, a coercibilidade e a convicção dos destinatários de
que certa norma seja jurídica – opinio iuris (HESPANHA, 2019, p. 63-64).
A reformulação desses elementos advém da necessidade de identificar nas
manifestações jurídicas extra estatais quais normas são válidas, uma vez
que nem todas as formas espontâneas que surgem socialmente farão parte
do ordenamento jurídico pluralista. Para tanto, Hespanha (2019), utiliza-
se de pressupostos teóricos de Hebert Hart, Jürgen Habermas e Niklas
Luhmann.
7 Para informações detalhadas sobre como esses pressupostos interagem com a teoria
de António Hespanha (2019), ler os capítulos 11 (Os fundadores), 12 (O realismo ju-
rídico: exposição e objeções), 13 (A pluralidade dos direitos como espelho da plurali-
dade das esferas de comunicação social) e 14 (Autonomia e contextualidade dos sis-
temas de direito) do livro Pluralismo jurídico e direito democrático. Nota-se, ademais,
que Hespanha aplica esses critérios a alguns exemplos para um primeiro teste de va-
lidade. O autor, no capítulo seis do livro supracitado, analisa o direito comunitário
europeu, o direito internacional, a lex mercatoria, a doutrina, o costume, os códigos
de boas práticas e, por fim, a própria lei.
230
Pluralismo jurídico e jurisdição desportiva
às suas normas concretas, quer quanto aos seus princípios orientadores e
aos seus imaginários subjacentes”.8 Na história do direito ocidental, o le-
gislador declarou quais normas são jurídicas, em que pese essa declaração
tivesse constantemente um conteúdo vago. Perguntar ao direito oficial,
portanto, não resolve o problema da imprecisão jurídica, visto a sua inca-
pacidade para identificar todas as possibilidades normativas na ordem
pluralista.9 Hespanha (2019, p. 70) acrescenta que, por outro lado, “é o
próprio direito estadual que, quase sempre, prevê que certos casos jurídi-
cos não possam ser resolvidos pelas suas normas, devendo sê-lo por outra
forma prescrita pelo direito. Isto corresponde à admissão de que há outro
direito para além do expressamente declarado em lei”. Em suma, ainda
que não houvesse reconhecimento do direito estatal, as possibilidades
normativas em uma ordem jurídica seriam plurais.10 Tem-se como exem-
plo de pluralismo jurídico a lex sportiva, a qual será discutida em tópico
subsequente para a análise do estudo de caso acerca da condenação do
Cruzeiro Esporte Clube pela FIFA.11
13 Para mais informações acerca do Calciopoli, olhar: Walter Distaso, Leone Leonida,
Dario Maimone Ansaldo Patti e Pietro Navarra (2012).
233
Gabriella Coelho Santos · Marcello Augusto Souza Neves
Em 18 de julho de 2016, o Cruzeiro Esporte Clube firmou acordo de
empréstimo com o Al-Wahda Footbal Club, dos Emirados Árabes Unidos,
pelo volante Denílson Pereira Neves (FIFA, 2017). O contrato possuía
validade até 31 de dezembro de 2016, e estipulava o pagamento de
€850.000 (oitocentos e cinquenta mil euros) pela transferência do jogador,
dividido em sete parcelas. Acordou-se, ainda, uma multa de 10% ao mês
caso não houvesse adimplemento do valor estipulado nas datas previstas.
O montante, todavia, não foi pago. Contatado por três vezes pelo time
árabe acerca da dívida, o Cruzeiro não efetuou os depósitos, razão pela
qual o credor acionou o órgão judicial da FIFA. Em decisão do Comitê de
Status de Jogadores da instituição, o clube brasileiro foi condenado a arcar
com juros de 5% ao ano em relação a cada parcela do empréstimo (FIFA,
2017). Inconformado, ainda, com duas datas de pagamento, o devedor
interpôs recurso ao Tribunal Arbitral do Esporte (CAS)14, no qual logrou
sucesso e obteve as alterações desejadas (CAS, 2018).
O time brasileiro, não obstante as decisões proferidas, seguiu inadim-
plente. Por essa razão, o Comitê Disciplinar da FIFA iniciou, em 13 de
dezembro de 2018, um procedimento disciplinar contra o devedor, a fim
de intimá-lo a pagar até a data limite de 14 de janeiro de 2019, sob pena de
judicialização da questão na instituição (FIFA, 2019c).15 O Cruzeiro não
cumpriu novamente com sua obrigação e alegou que o país passava por
grave crise financeira, com uma forte desvalorização da moeda nacional, o
que levou à diminuição da receita dos clubes brasileiros. Submeteu-se,
então, o caso a um membro do Comitê Disciplinar da FIFA (FIFA, 2019c).
18 Nota-se que, até 31 de maio de 2020, não havia processos na justiça estadual brasilei-
ra referente ao caso supracitado, tampouco procedimentos de homologação de sen-
tença estrangeira no Superior Tribunal de Justiça (caso o Al-Wahda tivesse acionado
a jurisdição dos Emirados Árabes Unidos e precisasse executar a dívida no Brasil).
Embora todo o processo tenha transcorrido na justiça desportiva, ressalta-se que isso
não constitui uma obrigação. De acordo com as próprias normativas da FIFA (2020),
é possível a busca de cortes civis para que se promova uma reparação em face de dis-
putas entre clubes pertencentes a diferentes associações. Ademais, há exemplos de
casos que não tramitaram unicamente pela justiça desportiva, como o Caso da Taça
das Bolinhas, que também envolveu decisões do Superior Tribunal de Justiça e do
Supremo Tribunal Federal. Para mais informações sobre o caso, ver: Andrei Kampff
(2019).
19 Nesse sentido, defende Ken Foster (2003) que uma das condições para a vigência de
uma lei esportiva global consiste na existência de uma federação internacional des-
portiva, que possa conferir uma obrigatoriedade social às normas produzidas nesse
contexto.
236
Pluralismo jurídico e jurisdição desportiva
Defensora de um pluralismo jurídico consubstanciado na coexis-
tência de diferentes complexos de normas em um mesmo espaço social, a
teoria de Hespanha contém três pilares para a validação de uma ordem
pluralista: normas de reconhecimento, consenso social e estabilidade. To-
dos os requisitos verificam-se na lex sportiva. As normas de reconheci-
mento encontram-se no próprio Estatuto da Fifa, no qual se determina
aqueles que podem legislar e se delimita o alcance dos regulamentos des-
portivos.20 Para que essas regras fossem criadas, fez-se necessário um con-
senso social anterior, observado na mobilização internacional para que se
legislasse especificamente na área do esporte, visto que as leis estatais não
eram suficientes. Caso não houvesse consenso, as instituições internacio-
nais supracitadas não estariam consolidadas como estão. A estabilização
surge dentro da própria ordem pluralista, há segurança jurídica, sobretu-
do, na atuação da jurisdição desportiva, por meio, por exemplo, do Comitê
Disciplinar da FIFA e do Tribunal Arbitral do Esporte. O surgimento da
lex sportiva, possibilitou a análise da dívida do Cruzeiro pela jurisdição
desportiva. O caso explicita o respeito nacional e internacional dessa or-
dem normativa, em que o Estado se torna subsidiário.21
A disputa de times supracitada permite, ademais, a visualização prática
do conjunto de normas desportivas elencado por Ken Foster. De acordo
20 Nesse sentido, “laws of the game: the laws of association football issued by the Inter-
national Football Association Board (IFAB) in accordance with art.7 of these Stat-
utes”. Para mais informações sobre as regras do jogo, ver capítulo V do Estatuto da
Fifa (FIFA. 2019a).
21 O reconhecimento brasileiro em relação à essa legislação traduz-se, no plano consti-
tucional, em disposição que garante a sua autonomia, conforme artigo 217, inciso I e
§ 1º da Constituição Federal. “Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas despor-
tivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados: I. a autonomia das
entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funciona-
mento. [...] § 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às com-
petições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada
em lei. [...]” (BRASIL, 1988).
237
Gabriella Coelho Santos · Marcello Augusto Souza Neves
com o autor, essa legislação é marcada por regras desportivas internacio-
nais, que consistem em princípios aproveitados do direito estatal na esfera
desportiva, e pelas normas desportivas globais, produção exclusiva do âm-
bito do esporte. No caso estudado, há a coexistência de ambos os grupos.
Em um primeiro momento, o clube brasileiro alegou que não poderia
adimplir com a dívida em função da crise financeira do país, o juiz singular
do Comitê Disciplinar da FIFA refutou o argumento a partir do princípio
do pacta sunt servanda, que não é próprio da lex sportiva, mas advém ori-
ginalmente do direito estatal geral. Consiste, portanto, em expressão das
leis desportivas internacionais. A punição imposta ao final do processo,
bem como a determinação da jurisdição do comitê para a resolução do
caso, por sua vez, são baseadas no Código Disciplinar da FIFA (2019b),
conjunto de regras criadas exclusivamente na seara desportiva, que repre-
sentam as normas desportivas globais elencadas por Foster.
6 Considerações finais
Buscou-se, nesta pesquisa, apresentar o caso acerca da condenação, em
2019, do Cruzeiro Esporte Clube pelo Comitê Disciplinar da FIFA como
aplicação da lex sportiva em um contexto de pluralismo jurídico. O artigo
subdividiu-se em quatro tópicos, a saber: (1) Entre o estadualismo e o an-
tiestadualismo: a concepção de pluralismo jurídico para António Manuel
Hespanha; (2) Lex sportiva como expressão do pluralismo jurídico; (3)
Estudo de caso: a condenação do Cruzeiro Esporte Clube pelo Comitê
Disciplinar da FIFA (2019); e, por fim, (4) Aplicação prática da lex sportiva
em uma ordem pluralista: caso do Cruzeiro Esporte Clube.
O primeiro item abordou o pluralismo jurídico situado na teoria de
António Manuel Hespanha. Nesse âmbito, demonstrou-se como o modelo
antiestadualista ultrapassou, gradualmente, o estadualista a fim de conce-
ber o direito enquanto produto social para além da criação estatal. A or-
dem pluralista é um fato reconhecido como a atual manifestação do direi-
238
Pluralismo jurídico e jurisdição desportiva
to, o qual pressupõe repensar as tradicionais formas de identificá-lo. A
reformulação desses elementos advém da necessidade de identificar nas
normativas plurais quais serão consideradas válidas. Para tanto, Hespanha
utiliza-se de pressupostos teóricos de Hebert Hart, Jürgen Habermas e
Niklas Luhmann que são, respectivamente, as normas de reconhecimento,
os consensos sociais formados a partir das esferas comunicativas e a esta-
bilidade originada nos sistemas autopoiéticos do direito. Nesse contexto,
procurou-se enquadrar a lex sportiva enquanto expressão do pluralismo
jurídico.
O tópico subsequente localizou a lex sportiva dentro da teoria pluralista
do direito. As organizações que regulam o direito desportivo internacional
dissociam-se dos governos nacionais, as quais dão origem a uma ordem
legal autônoma e transnacional. As normas que se aplicam no âmbito dos
esportes fragmentam-se em quatro: as regras do jogo, os princípios éticos
do esporte, as leis desportivas internacionais – tratam de princípios gerais
do direito estatal que se aplicam à esfera desportiva como o pacta sunt
servanda – e, por fim, as leis esportivas globais – criadas pelas próprias
federações desportivas internacionais para reger os esportes. O caráter
autônomo da lex sportiva pode ser constatado em exemplos práticos. Nes-
sa pesquisa, optou-se por evidenciar o caso da condenação do Cruzeiro
Esporte Clube pelo Comitê Disciplinar da FIFA (2019).
O terceiro item do artigo apresentou o estudo de caso supracitado. O
Cruzeiro firmou, em junho de 2016, acordo de empréstimo com Al-
Wahda Footbal Club, dos Emirados Árabes Unidos, pelo volante Denílson
Pereira Neves. O montante previsto, entretanto, não foi pago, razão pela
qual se acionou o órgão judicial da FIFA. Nessa ocasião, condenou-se o
clube brasileiro, o qual interpôs recurso para o Tribunal Arbitral do Espor-
te para que determinadas datas do pagamento da dívida fossem modifica-
das e logrou êxito, obtendo as alterações. O clube brasileiro, não obstante
as decisões emanadas, seguiu inadimplente. Por essa razão, o Comitê Dis-
ciplinar da FIFA iniciou, em dezembro de 2018, um procedimento disci-
239
Gabriella Coelho Santos · Marcello Augusto Souza Neves
plinar contra o devedor. Impôs-se uma multa ao clube e determinou-se o
pagamento ao credor em noventa dias e, caso persistisse o inadimplemen-
to, a perda automática de seis pontos no campeonato nacional, a ser im-
plementada pela CBF. O Cruzeiro recorreu novamente ao CAS que, no
entanto, manteve a condenação do clube. Como a dívida não foi quitada,
em maio de 2020, o clube recebeu punição e a subtração dos pontos. Resta,
ainda, correlacionar o estudo de caso com os conceitos desenvolvidos na
pesquisa.
O quarto, e último, tópico – Aplicação prática da lex sportiva em uma
ordem pluralista: caso do Cruzeiro Esporte Clube – confirma as ideias
apresentadas no artigo. Demonstrou-se a existência de um ordenamento
jurídico autônomo, dissociado do direito estatal, reforçando o pluralismo
jurídico da teoria de António Manuel Hespanha. Analisou-se, ainda, os
três pilares utilizados pelo autor – normas de reconhecimento, consenso
social e estabilidade. O caso analisado permitiu, ademais, a visualização
prática da aplicação das normas características da legislação desportiva
elencados por Ken Foster, sobretudo a terceira e quarta categoria: leis des-
portivas internacionais e as leis desportivas globais. Em suma, pretendeu-
se com esse estudo de caso explicitar a ordem normativa pluralista, visto
que o modelo estadualista, embora teoricamente reformulado, ainda seja
utilizado como principal base para explicar o direito.
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245
ALTERNATIVAS PLURAIS APLICADAS AO
DIREITO: DOUTRINA COMO FONTE
JURÍDICA E O PRINCÍPIO DA
INSIGNIFICÂNCIA
10
Gabriel Lisboa Silva e Dias Ferreira
Marcela Cecília Siqueira Santos de Moura
__________________________________________________
RESUMO: O presente trabalho cuida de discorrer sobre a teoria do pluralismo
jurídico, na perspectiva de um sistema jurídico amplo e aberto, que admite vá-
rias fontes como criadoras do Direito, inclusive as criações doutrinárias, em
oposição ao estatalismo positivista. Para tanto, será apresentado o princípio da
insignificância, como um dos vários exemplos de institutos criados pela dou-
trina, e a importância do reconhecimento e aplicação eficaz de fontes não esta-
tais em busca de um sistema jurídico justo e equânime. Como resultado da
pesquisa, afere-se que tal princípio encontra-se consolidado na doutrina e ju-
risprudência e ratifica a aplicação dos princípios da intervenção mínima e da
ofensividade do bem jurídico.
__________________________________________________
1 Introdução
Os cientistas do Direito não consideram a doutrina como fonte imedia-
ta do direito, mas sim como fonte mediata. Entende-se a doutrina como
meio de aclarar conceitos. Entretanto, ao se analisar os institutos jurídicos,
inclusive os inseridos em lei, afere-se que foram criados pelos doutrinado-
res, e, posteriormente, inseridos na legislação brasileira.
O presente trabalho justifica-se como forma de desconstruir, ou ao me-
nos questionar essa classificação da doutrina como fonte mediata. O pro-
blema buscado é demonstrar que a classificação dominante deve ser relati-
247
Gabriel Lisboa Silva e Dias Ferreira · Marcela Cecília Siqueira Santos de Moura
vizada.
Por mais que se demonstre de fato a influência da doutrina, as obras de
Introdução ao Estudo do Direito não alteram este capítulo, permanecendo
com a antiga classificação. Objetiva-se, portanto, ao trabalhar o princípio
da insignificância, demonstrar como a doutrina cria direito e influência
nas decisões judiciais. E, desta forma, questionar a sua posição dentre as
fontes do direito.
Foi utilizado o método indutivo ao considerar o conhecimento com ba-
se na experiência. Em primeiro lugar, buscou-se as obras clássicas de In-
trodução ao Estudo do Direito, bem como a obra de António Manuel Hes-
panha como forma de alterar o paradigma.
Em seguida, com base na jurisprudência dos Tribunais, bem como na
dogmática penal, comprovou-se a errônea classificação da doutrina como
fonte mediata do direito, o que deveria mudar para fonte imediata.
O ponto central deste trabalho é demonstrar a possibilidade de criação
de institutos materiais e processuais na seara jurídica por meio de ideias
doutrinárias, a partir de uma perspectiva pluralista das possíveis fontes do
Direito.
Para tanto, o presente mostrará a orientação doutrinária no sentido de
considerar o princípio da insignificância como medida de política crimi-
nal, enfatizando a necessidade de adoção de outras alternativas ao direito a
fim de se preservar e efetivar a devida paz social.
248
Alternativas plurais aplicadas ao direito
a lei estabelecesse regras a serem obedecidas por todos, principalmente
pelo Estado.
Todavia, a partir do final do século XVIII, observou-se uma transfor-
mação nas instâncias criadoras de normas jurídicas. Tudo isso porque a
iminência do pluralismo jurídico trazia, àquela época, a possibilidade de o
Direito emanar de outras fontes, que não fossem meramente estatais.
O sistema pluralista enxerga a necessidade de adaptação do Direito às
constantes alterações e evoluções sociais, o que, por inúmeros motivos, a
Lei não consegue lograr alcance, seja em virtude do seu caráter estático, ou
até mesmo em função da burocracia inerente à criação legislativa. Neste
sentido, Grossi (2006, p. 52) preleciona que
Parte do ponto de partida que o Direito é mutante em função da humani-
dade e socialidade inerentes à ciência jurídica: o Direito não é escrito em
uma paisagem física, que aguarda a inserção humana e sim, o contrario; é
no interior da história que se consolida o Direito, pois a dimensão do
mesmo é intrinsicamente intersubjetiva, marcados essencialmente por sua
socialidade e humanidade.
Não obstante, não se pode ficar refém de um direito tão somente estata-
lista, que muitas vezes representada por si só a vontade das elites políticas,
sobretudo porque não representa ideal de justiça, já que os processos esta-
duais não conseguiriam acompanhar as evoluções e mudanças na socieda-
de. Todas as variáveis deveriam ser levadas em consideração, tais como
globalização e a injustiça social.
Para Wolkmer (2001, p. 27) o critério do "justo" resulta daquilo que os
grupos comunitários reconhecem como tal, correspondendo eficazmente
aos padrões da vida cotidiana almejada pelas coletividades submetidas às
relações de dominação. Desta forma, a noção de Justiça acaba se consti-
tuindo numa necessidade por liberdade, igualdade e emancipação. Neste
sentido, Lyra Filho (2005, p. 27)
O Direito não mais refletirá com exclusividade a superestrutura normativa
249
Gabriel Lisboa Silva e Dias Ferreira · Marcela Cecília Siqueira Santos de Moura
do moderno sistema de dominação estatal, mas solidificará o processo
normativo de base estrutural, produzido pelas cisões classistas e pela resis-
tência dos grupos menos favorecidos.
Como se sabe, Direito nada mais é do que manifestação de vontade, e
essa ocorre, portanto, de forma plural, seja através da expressão dos repre-
sentantes, ou através de análises sociais. O pluralismo não insurge cla-
mando pela erradicação do Estado e suas leis, mas sim pela alteração do
modelo segundo o qual o direito é encarado, trazendo a manifestação de
novas questões, mostrando que o saber jurídico segue um rumo incons-
tante e variado. Neste sentido, o professor Hespanha (2013, p. 119) alude
que
Direito é aquilo que a comunidade reconhece como tal, não apenas por re-
sultar dos processos de manifestação da vontade próprios do Estado de-
mocrático, mas também por ser reconhecido como tal por instâncias ju-
risdicionais na base de um consenso comunitário inclusivo, reflexivo e es-
tabilizador.
Nessa perspectiva, outras fontes do direito, tais como os costumes, a
equidade, a jurisprudência e até mesmo a doutrina, são encaradas como
possibilidade de nascedouro de normas jurídicas, dotadas inclusive de
exigibilidade e coercibilidade.
É sobre a importância da doutrina no paradigma pluralista que será a
ênfase do próximo capítulo.
250
Alternativas plurais aplicadas ao direito
Roma Antiga, na medida em que foram concedidas prerrogativas
aos jurisconsultos clássicos da época para responder diversas questões e
situações que os magistrados não conseguiam solucionar. O imperador
Adriano decidiu que os ditames dos jurisconsultos teriam força de lei, caso
fossem invariáveis, ou seja, seguissem a mesma linha de raciocínio para
todos os casos propostos.
Desse modo, a doutrina tornou-se uma das grandes fontes do Direito
Romano. Desta forma, posteriormente foi criada a “Lei de Citações”, que
atribuía obrigatoriedade de seguimento às opiniões de Papiniano, Paulo,
Gayo, Ulpiano e Modestino, que funcionava como se fosse um “tribunal
de jurisconsultos”.
Esse órgão colegiado romano se prestava a emitir uma opinião sobre o
caso a eles submetido, de forma que cada um dos jurisconsultos acima
citados deveria emitir seu parecer, e assim, a opinião da maioria prevalece-
ria. Em último caso, a referida Lei elegeu Papiniano como o jurisconsulto
com o poder de dissolver eventual empate de opiniões, funcionando o
referido como um presidente do referido órgão, munido do voto de quali-
dade.
Não obstante o surgimento de a doutrina remontar a séculos passados,
nem mesmo na atualidade a sua função como fonte criadora de direito é
plenamente aceita no meio jurídico. Diversos doutrinadores, inclusive
Miguel Reale, categorizam-na dentro da espécie de fontes não formais ou
indiretas.
Reale (2002, p. 97), afirma que para ser fonte jurídica, a doutrina tem
de ser modelo jurídico, ou seja, deve ter estrutura normativa que apresente
comportamento obrigatório que possa exercer disciplina nas diversas rela-
ções da sociedade. Para o referido autor, a criação doutrinária, apesar de
ser uma das molas propulsoras do ordenamento jurídico, não incide dire-
tamente na produção jurídica, e, por isso, não pode ser considerada como
fonte direta.
251
Gabriel Lisboa Silva e Dias Ferreira · Marcela Cecília Siqueira Santos de Moura
De outro lado, para a teoria pluralista, a doutrina apresenta uma impor-
tância extremamente relevante no mundo jurídico. Preleciona Hespanha
(2009, p. 105) que
A doutrina antepõe a lei soluções próprias – muitas vezes importadas de
contextos jurídicos estrangeiros muito diferentes do nosso, sem que isso
seja suficientemente tido em conta; outras vezes, decorrentes das “modas”
doutrinais; algumas vezes, também das particulares preferências filosófi-
cas, religiosas ou ideológicas do autor, que as impõe às opções legislativas,
emanadas de órgãos representativos, e, presumivelmente, mais neutrais,
inclusivas e atentas aos consensos comunitários.
Assim sendo, a doutrina colabora de grande maneira com o exercício
da Ciência Jurídica. É indispensável que todos aplicadores do direito te-
nham contato intenso com a doutrina, pois é responsável por inspirar e
criar inúmeros institutos, normas e regulamentos. Novamente, sobre o
tema, Hespanha (2009, p. 105) diz que
A doutrina tem um extraordinário impacto efetivo que sobre a conforma-
ção do direito. O seu alegado caráter meramente explicativo (anotativo) ou
derivado (ancilar) em relação à lei é uma ficção. Na realidade – se ultra-
passarmos estas ficções legalistas – verificamos facilmente que a doutrina
inova, criando regras autônomas de direito.
A título de exemplo, temos os institutos da exceção da pré-
executividade, usada como forma de defesa do executado e a desconside-
ração da personalidade jurídica, como forma de proteção aos credores,
ambos do processo cível. No âmbito do direito civel, temos a proteção ao
nascituro, sendo criação doutrinária os direitos da personalidade à ima-
gem, nome e sepultura do natimorto, e a teoria da imprevisão como possi-
bilidade de revisão de cláusulas contratuais ante a imprevisibilidade supor-
tada pelo contratante.
Na seara do direito penal, tem-se a prescrição virtual, que se utiliza de
uma hipotética contagem do prazo prescricional para extinguir a ação
antes mesmo que o juiz possa cominar a pena, baseando-se a possível pena
252
Alternativas plurais aplicadas ao direito
que seria imputada ao réu. Todavia, o presente trabalho restringe-se na
discussão a respeito do princípio da insignificância, com ênfase na sua
importância com finalidade de política criminal, assunto esse abordado no
capítulo a seguir.
254
Alternativas plurais aplicadas ao direito
tiram de determinadas situações que exigiam uma resposta estatal diferen-
te, com intuito de resgate social. O princípio foi utilizado como uma solu-
ção imediata a explosão de crimes e não como forma de aplicação do prin-
cípio da intervenção mínima do direito penal e suas ramificações na frag-
mentariedade e subsidiariedade.
No Direito Penal Brasileiro, a lesão insignificante dispensa a necessida-
de da intervenção do Direito Penal e, consequentemente, da incidência de
suas graves reprimendas. Portanto, tal princípio exclui a tipicidade materi-
al do delito, funcionando como mensurador da tipicidade material, na
medida em que permite a atuação do Direito Penal apenas diante de con-
dutas que afrontem materialmente o bem jurídico protegido.
Dispõe Toledo (2000, p. 147), um dos primeiros doutrinadores que en-
carou o assunto no Brasil, que
Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua
própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só
vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve
ocupar-se de bagatelas. Assim, no sistema penal brasileiro, por exemplo, o
dano do art. 163 do Código Penal não deve ser qualquer lesão à coisa
alheia, mas sim aquela que possa representar prejuízo de alguma significa-
ção para o proprietário da coisa; o descaminho do artigo 334, parágrafo 1°,
d, não será certamente a posse de pequena quantidade de produto estran-
geiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo
valor indique lesão tributária, de certa expressão, para o Fisco; o peculato
do artigo 312 não pode ser dirigido para ninharias como a que vimos em
um volumoso processo no qual se acusava antigo servidor público de ter
cometido peculato consistente no desvio de algumas poucas amostras de
amênduas; a injúria, a difamação e a calúnia dos artigos 140, 139 e 138,
devem igualmente restringir-se a fatos que realmente possam afetar a dig-
nidade, a reputação, a honra, o que exclui ofensas tartamudeadas e sem
consequências palpáveis; e assim por diante
Por definição sugerida, o princípio da insignificância é um princípio de
255
Gabriel Lisboa Silva e Dias Ferreira · Marcela Cecília Siqueira Santos de Moura
política-criminal, de criação doutrinária, segundo o qual condutas provo-
cadoras de ínfima lesão ao bem jurídico tutelado pelo Direito não devem
ser levadas em consideração para fins típicos. Guilherme de Souza Nucci
(2011, p. 231) elenca três regras de aplicação do princípio da insignificân-
cia:
1º) Consideração do valor do bem jurídico em termos concretos: verifica-
se o valor do bem atingido, tanto do ponto de vista do agressor, quanto da
vítima e sociedade. O autor exemplifica como insignificante o furto de
uma folha de papel;
2º) Consideração da lesão ao bem jurídico em visão global, isto é, busca-se
uma visão panorâmica e não concentrada. Como exemplo, Nucci relata
um caso e furtos reiterados pelo mesmo agente a um mesmo supermerca-
do, sendo o objeto do delito de valor ínfimo, considerado individualmente.
Porém, no global, houve efetiva e relevante lesão a um bem jurídico.
3º) Consideração particular aos bens jurídicos imateriais de expressivo va-
lor social, tal como o meio ambiente e moralidade administrativa.
Raul Eugênio Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (2001, p. 562) lecio-
nam que a insignificância é uma causa excludente da tipicidade e enten-
dem que os bens jurídicos afetados pelo direito penal requerem maior
gravidade. Entendem que a insignificância
Só pode ser estabelecida através da consideração conglobada da norma:
toda a ordem normativa persegue uma finalidade, tem um sentido, que é a
garantia jurídica para possibilitar uma coexistência que evite a guerra civi
(guerra de todos contra todos). A insignificância só pode surgir à luz da fi-
nalidade geral que dá sentido à ordem normativa, e, portanto, à norma em
particular, e que nos indica que essas hipóteses estão excluídas de seu âm-
bito de proibição, o que não ode ser estabelecido à simples luz de sua con-
sideração isolada.
Interessante as posições expostas nas duas obras. Nucci possui uma vi-
são mais restrita da aplicação do princípio da insignificância, enquanto
Zaffaroni e Pierangeli entendem por uma aplicação ampla.
256
Alternativas plurais aplicadas ao direito
Em entendimento consolidado no Supremo Tribunal Federal, no ano
de 2009, no HC nº HC 109.363/MG, estabeleceu determinados requisitos,
tais como: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) ausência de
periculosidade social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade do
comportamento; d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.
São requisitos amplos de verificação caso a caso, o que impõe a análise
jurisprudencial sobre determinadas situações. O próprio Supremo, no HC
123108 / MG - MINAS GERAIS, de relatoria de Luís Roberto Barroso,
adota o entendimento de Zaffaroni e de Pierangelli, e entendeu que não se
afasta a aplicação do princípio o fato de o réu ser reincidente. Entretanto,
no final do julgado, adota a posição de Nucci ao entender que não cabe a
aplicação do princípio, havendo necessidade da pena no caso concreto.
No tocante ao bem jurídico lesado, de acordo com as lições de Nucci
acima expostas, o princípio da insignificância não se aplicaria quando o
bem jurídico tutelado fossem imateriais de expressivo valor social, como
nos casos dos bens ambientais, Todavia, no HC 112563 / SC, publicado em
31.08.2012, o STF entendeu existir crime de bagatela no tocante ao crime
ambiental. No caso, abordou-se um pescador flagrado com doze camarões
e rede de pesca, em desacordo com a Portaria 84/02, do IBAMA. Art. 34,
parágrafo único, II, da Lei nº 9.605/98.
No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça entendeu, no RHC
71380/SC, a existência de crime de bagatela, no caso de crime ambiental.
No caso, o agente estava pescando em Unidade de Conservação, porém,
não foi apreendido nenhum peixe consigo, o que denota ausência de ofen-
sividade ao bem jurídico.
Em relação aos atos infracionais, é pacífica a adoção do princípio da in-
significância. No HC 112400 / RS, publicado em 22.05.2012, foi aplicado o
referido princípio em ato infracional análogo ao furto, sendo o valor do
objeto subtraído de R$ 80,00 (oitenta reais), entende-se pela mínima lesi-
vidade da conduta.
257
Gabriel Lisboa Silva e Dias Ferreira · Marcela Cecília Siqueira Santos de Moura
O mesmo entendimento foi adotado pelo Superior Tribunal de Justiça,
no REsp 1113155. O STJ não conheceu do recurso, porém, concedeu Ha-
beas Corpus de Ofício em favor do adolescente, por ato infracional análo-
go ao furto de um chocolate no valor de R$12,00 (doze reais).
As decisões acima comentadas demonstram uma pequena gama do que
vem decidindo os dois tribunais de superposição. O que se entende pela
análise dos acórdãos é a ampla aceitação do crime de bagatela e sua verifi-
cação caso a caso, de acordo com os requisitos delimitados pelo Supremo
Tribunal Federal.
O ponto indiscutível é fundamentação dentro da teoria do crime para
aplicação do princípio da insignificância. Em todos os julgados e na dou-
trina dominante, o princípio da insignificância é uma causa excludente da
tipicidade.
5 Conclusão
Durante muito tempo, viveu-se sob a ideologia do estatalismo, caracte-
rizado por propugnar como válida apenas uma ordem jurídica, ou seja, o
direito emanado do Estado, através de suas Leis e regulamentos. Contudo,
a constante evolução social fez surgir novos sistemas, consubstanciados
em ideias pluralistas, que consistem na negação do Estado como fonte
única e exclusiva do direito positivo.
Nesse diálogo de fonte de um contexto pluralista, insurge a doutrina ju-
rídica, que além de sua função interpretativa, veio exercendo também uma
vertente criativa e inovadora, inclusive dela emanando novos institutos de
aplicação explícita no ordenamento jurídico.
Dentre os mais relevantes, destacou-se a insignificância, que possui sta-
tus de princípio norteador da política criminal, no sentido de dar foco à
atuação do Direito Penal a delitos que realmente perturbem a paz social,
instituto esse de grande aplicação e aceitabilidade na seara criminal brasi-
leira, inclusive na seara do direito público.
258
Alternativas plurais aplicadas ao direito
Por mais que haja uma divergência no tocante a aplicação a determina-
dos casos, a aplicação deste princípio de criação doutrinária é indiscutível
no Direito Brasileiro, mesmo não havendo previsão legal. As balizas para
sua aplicação pelo Supremo Tribunal Federal, mesmo que num primeiro
momento pareçam abstratas em demasia, são possíveis de concretude pelo
julgador.
Conclui-se que a doutrina não pode ser dispensada com fonte do direi-
to, de forma imediata. Prova-se, principalmente, pela massiva aceitação do
princípio da insignificância, que reforça a importância de que o ordena-
mento seja balizado em múltiplas e plurais normas, seguindo os dizeres e
ensinamentos do saudoso Professor António Manuel Hespanha.
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260
A NECESSIDADE DE UMA GOVERNANÇA
DEMOCRÁTICA NA REGULAMENTAÇÃO
DAS AGÊNCIAS DE RATING: PLURALISMO
JURÍDICO E A CRISE ECONÔMICA DE 20081
11
Carolina Guerra e Souza
Gustavo Ferreira Santos
__________________________________________________
RESUMO: Em um contexto atual de mudança de paradigmas (estatal para pós-
estatal, monista para o de pluralismo jurídico) revela-se primordial o engaja-
mento de toda a coletividade na construção compartilhada de um consenso
alargado, inclusivo, refletivo e estabilizador. A crise econômica de 2008, apesar
de seus efeitos deletérios, evidenciou a necessidade de repensar a regulação ju-
rídica do mercado financeiro, principalmente quanto à atuação das agências de
rating. Pesquisa dogmática e teórica, valendo-se de um método de abordagem
indutivo, o presente paper tem o escopo de defender a governança democrática
como ferramenta de inclusão na atuação autorregulatória do mercado.
__________________________________________________
1 Introdução
Abordar o tema da regulação jurídica das agências de classificação de
risco (ou rating) nos leva ao clássico questionamento do por que, como,
para que e quando isto será feito. A regulamentação ou desregulamentação
é uma questão deveras proeminente e, quando o assunto é abordado, fugir
dele é tão improvável quanto se apresentava a uma crise econômica como
a observada em 2008: todo mundo sabia que ela ia acontecer, mas nin-
263
Carolina Guerra e Souza · Gustavo Ferreira Santos
2 Breve histórico das agências de rating e as perspectivas regulatórias nos
EUA, União Europeia e Brasil
Dentro do contexto deste trabalho, o objetivo dessa seção é de eviden-
ciar a forma como as agências de rating, de empresas privadas, ganharam
espaço no cenário econômico do início do século XX e, após isso, passa-
ram a ser reconhecidas como agentes do mercado com credibilidade para
sinalizar o risco de crédito inclusive de títulos públicos.
No mercado de títulos atual, saber por que se compra, o que se compra
e qual o retorno do que se compra é fundamental. Isso pode parecer im-
possível sem a existência das agências de classificação de risco, justamente
porque um título é, ao fim e ao cabo, um contrato. O comprador (investi-
dor), por um lado, possui o dinheiro em mãos. O vendedor de títulos (em-
presa, Governo, etc), por sua vez, em troca de receber o dinheiro que ne-
cessita para “financiar” seu negócio privado (empresa) ou o Governo (Es-
tado) promete que, em troca do recebimento do dinheiro, fará pagamentos
dos juros e do principal no futuro. Assim, as mencionadas agências afir-
mam oferecer ao comprador uma indicação da capacidade (e vontade) do
vendedor de cumprir todos os termos do contrato. Essa indicação inclui
não apenas a noção da probabilidade de que o dinheiro será devolvido
conforme um cronograma (juros e principal), mas também, caso ocorra
um default (declaração de insolvência), quanto do dinheiro emprestado
será devolvido e quando.
No início desse mercado, a análise dos riscos de um título era discutí-
vel. Os títulos, em sua maioria, ou eram públicos ou soberanos, ou seja,
representavam o financiamento de uma dívida de nações e governos que
os investidores consideravam confiáveis. Assim, pode-se dizer que no sé-
culo XVIII apenas países representativos podiam atuar neste mercado – ou
gozavam de credibilidade para tal (SYLLA, 2001, p. 5).
O surgimento da classificação de risco, a despeito da consideração acer-
ca da credibilidade da atribuição de risco feita pelos agentes econômicos já
264
A necessidade de uma governança democrática na regulamentação...
no século XVIII, ocorreu em meados do século XIX, com o desenvolvi-
mento das ferrovias norte-americanas (SYLLA, 2001, p. 21). Já em 1900, o
mercado de títulos naquele país era bastante desenvolvido, uma vez que o
financiamento da infraestrutura era feito por emissões de títulos corpora-
tivos (ferroviários) adquiridos por instituições na Europa. Com a expansão
do mercado, surgiu a necessidade de aprimorar as informações de crédito
das companhias ferroviárias americanas, principalmente por demanda de
bancos europeus. Atualmente as principais agências são: Moody’s, Stan-
dard & Poor’s e Fitch.
Particularmente, a história das agências de rating teve início em 1909,
com a criação nos EUA da antecessora da Moody’s Investor Service. Na-
quele ano, John Moody desenvolveu uma metodologia de classificação de
risco de crédito aos títulos, publicando uma opinião sobre a condição de
solvência dos títulos de dívida das companhias ferroviárias. Assim, foi
criada a Moody's, que publicava análises além das informações sobre as
companhias e sobre o setor.
Em 1916, surgiu uma nova empresa, a precursora da Standard and Po-
or’s. Criada por Henry Varnum Poor, essa agência passou a publicar in-
formações sobre as propriedades das companhias ferroviárias, seus ativos,
passivos e receitas. Em 1941, Poor uniu-se à empresa de classificação de
risco de crédito Standard Statistics, formando a Standard & Poor's.
A outra grande agência, a Fitch Publishing Company, foi criada em
1913, mas somente em 1924 introduziu uma escala de classificação de ris-
co nos moldes atuais.
Com o desenvolvimento do mercado de capitais nos Estados Unidos, a
indústria de classificação de risco se estabeleceu e se tornou conhecida por
sua independência, integridade e confiabilidade.
Braga (2008, p. 9) aponta que a crise financeira de 1929 ampliou ainda
mais a demanda por classificações de risco, dada a preocupação com os
altos índices de default por parte das empresas. Neste contexto vale a ob-
265
Carolina Guerra e Souza · Gustavo Ferreira Santos
servação feita por Ekins e Calabria (2012, p. 6) de que os serviços prestados
por John Moody e Henry Poor ganharam notoriedade e credibilidade por
darem risco de crédito baixos a títulos que de fato se revelaram com menor
risco de default.
Na década de 1930, a partir da Grande Depressão, conforme apontado
no sítio da Securities and Exchange Commission – SEC, equivalente à
Comissão de Valores Mobiliários brasileira, o Departamento do Tesouro
norte-americano reconheceu os ratings de crédito como normas restritivas
para alguns investimentos financeiros (os fundos públicos de pensão e as
companhias de seguros seriam impossibilitadas de investir em títulos abai-
xo de um nível considerado prudente, o chamado investment grade)2.
Após esse início, foi na década de 1970 que a indústria do rating passou
por outro boom, já que a recessão econômica vivida neste período fez com
que, mais uma vez, os investidores reconheceram a importância de utilizar
uma avaliação independente dos riscos de crédito. Importante destacar
que, nessa mesma na década, foi quando as agências adotaram como mo-
delo de negócio a cobrança pela avaliação do título já no momento da
emissão de dívida, fornecendo tais informações aos investidores para faci-
litar a aceitação do título no mercado. Antes, a receita das agências de clas-
sificação de risco provinha da venda de suas publicações que continham as
classificações de riscos, logo, dos investidores.
A década de 1970 também foi marcada pelo colapso do sistema de Bret-
ton Woods e a flexibilização das taxas de câmbio internacionais, o que
possibilitou a abertura de espaço para grandes fluxos de capitais e a inter-
nacionalização financeira. A possibilidade de captação de recursos em
2 Trust Indenture Act of 1939 – Conforme aponta a SEC “This Act applies to debt
securities such as bonds, debentures, and notes that are offered for public sale. Even
though such securities may be registered under the Securities Act, they may not be
offered for sale to the public unless a formal agreement between the issuer of bonds
and the bondholder, known as the trust indenture, conforms to the standards of this
Act. Texto acessível em: http://www.sec.gov/about/laws/tia39.pdf.
266
A necessidade de uma governança democrática na regulamentação...
escala global, por sua vez, tornava necessário um melhor e mais extenso
fornecimento de informações financeiras.
Como se nota da evolução histórica das agências de avaliação de risco,
pode-se perceber que, de empresas privadas, elas passaram por um proces-
so de reconhecimento pelo Estado, como uma espécie de publicização.
Ocorre que, antes da crise de 2008, os créditos das empresas foram classifi-
cados com grau de investimento seguro, ou mesmo misturados com títulos
podres, maquiando-se, assim, a nota atribuída.
Observa-se que ocorreram regulações destinadas às agências de rating,
como as emitidas pela SEC. Porém, vale notar que a regulação dessas agên-
cias ocorreu muito mais no sentido de incorporar as práticas já estabeleci-
das de classificação de crédito – já que a regulação era feita impedindo, por
exemplo, que bancos adquirissem títulos com classificação ruim – para
limitar a forma de atuação das agências.
Como apresentado no sítio da SEC, em 2006 o Congresso americano
aprovou uma lei (Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protec-
tion Act) estabelecendo que a SEC estabelecesse os parâmetros de deter-
minação de quais agências deveriam ser aceitas pela Organização Nacional
de Estatísticas de Agências de Rating (NRSROs - Nationally Recognized
Statistical Rating Organizations). Além disso, à SEC foi dado o poder de
regular internamente a NRSROs quanto ao armazenamento de dados e
conflitos de interesse da agência. Apesar disso, a lei proibia a SEC de regu-
lar os métodos de classificação de títulos estabelecidos pela NRSROs.
Ademais, a lei também estabeleceu inúmeras regras internas à agência,
como: consistência entre as classificações de rating entre as agências, reali-
zação de relatórios e controles internos, transparência em relação a dados e
estatísticas usadas, dentre outras.
Após a crise de 2008, novas regras foram aprovadas com o intuito de
aumentar o controle interno sobre os processos de elaboração de classifi-
cação de risco, maior transparência de dados e estatísticas, além de deter-
267
Carolina Guerra e Souza · Gustavo Ferreira Santos
minar padrões em relação a métodos, termos e definições constantes da
regulação que era ainda datada de 1934.
No caso Europeu, conforme apresenta a Diretoria Geral para estabiliza-
ção financeira da União Europeia, a regulação feita pela Comissão é muito
mais forte que a estadunidense. Muitas mudanças foram também imple-
mentadas após a crise de 2008, para diminuir a obrigatoriedade de utiliza-
ção de avaliação de risco de crédito pelos emissores de títulos. A primeira
categoria de regras que trata do tema na Europa é o Regulamento
462/2013, que define os princípios básicos para reduzir a dependência das
classificações feitas pelas agências de rating (European Comission, 2015).
A regra entrou em vigor em 2013 e exige, nomeadamente, que as institui-
ções financeiras façam a sua própria classificação de risco de crédito, sem
depender das agências internacionais de rating na avaliação de empresa ou
de instrumento financeiro.
Este regulamento visa ainda reduzir a dependência das agências de ra-
ting no longo prazo e de forma gradual. Para isso, estabelece que a Comis-
são continue a fazer uma revisão contínua do uso de agências de classifica-
ção de risco, especialmente quanto a um risco potencial ou real de default.
No Brasil, a legislação sobre o tema é composta basicamente pela Ins-
trução Normativa da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) nº
521/2012, que dispõe sobre a atividade de classificação de risco no Brasil, e
pela Resolução do Banco Central (BACEN) nº 2.682/1999, que fixa crité-
rios de classificação das operações de crédito e regras para constituição de
provisão para créditos de liquidação duvidosa. Como se percebe de ante-
mão, a crítica que se faz à regulamentação brasileira é a de que a classifica-
ção de risco de crédito não é regulamentada por lei em sentido estrito,
além de privilegiar as agências internacionais, de não prever punições se-
veras em caso de descumprimento e, ainda, de não tipificar certas condu-
tas praticadas no mercado.
Diante desse cenário legislativo débil, foi apresentado na Câmara dos
268
A necessidade de uma governança democrática na regulamentação...
Deputados o PL 4.707/2012, que, para além de criminalizar a divulgação
de análise e classificação de risco com objetivo de alterar artificialmente o
mercado de capitais e obter lucro (crime de manipulação de mercado),
regulamenta o funcionamento das agências de rating. Não obstante ainda
estar pendente de votação, o relator da matéria emitiu parecer contrário ao
projeto de lei3, aduzindo a necessidade de harmonização legal do Brasil
com a perspectiva normativa e de mercado do mundo, haja vista já existir
regulação internacional sobre o tema, não podendo a atuação legiferante
brasileira engessar a lex mercatoria.
Analisando, em síntese, a gênese das agências de rating e a atuação esta-
tal referente às normas de atuação destas, infere-se que há uma regulação
feita pelo mercado e para o mercado (autorregulamentação), que valida a
atuação das agências de classificação de risco, contudo sem debater o tema
(ou mesmo propiciar espaços) para formar consensos que contemplem os
interesses de grandes, médios e pequenos investidores (inclusive o indivi-
dual), descurando a população, que muitas das vezes é quem sofre com as
cruéis consequências de um erro de avaliação mercadológica.
Assim, mister reconsiderar a possibilidade da regulação jurídica do
mercado financeiro, principalmente no que tange à atuação das agências
de rating. Propõe-se, então, como será visto no capítulo abaixo, um mode-
lo de participação franco de todos os players do sistema de capitais, no
qual a democraticidade de gestão e o pluralismo jurídico são elementos
primordiais para se atingir tal objetivo.
270
A necessidade de uma governança democrática na regulamentação...
te, é a lei do mercado quem impera no caso concreto (FARIA, 2004 p. 23).
E mais, a lex mercatoria tem exigido do Estado profundas reformas estru-
turais, v.g, descentralização e delegação do poder, agências reguladoras,
privatizações, parcerias público-privadas (FERRAJOLI, 2002, p. VIII/IX).
Não se olvide que o ideário globalizante requer a relativização regulató-
ria do poder público, num ato de esvaziamento normativo e territorial
(quiçá da Lei Maior), forjando um rearranjo regulatório e novas formas
organizacionais e institucionais, de caráter até mesmo supraconstitucio-
nais (FARIA, p. 35).
Prova disto é a criação da Organização Internacional das Comissões de
Valores (em inglês, reconhecida pela sigla IOSCO), responsável pelo de-
senvolvimento, implementação e promoção de padrões internacionalmen-
te reconhecidos para a regulação dos valores mobiliários. Criada em 1983,
composta majoritariamente pelas autoridades de supervisão do crédito
mobiliário e, também, por empresas privadas, a IOSCO tem no seu Comitê
nº 6 (C6 Credit Rating Agencies) o braço operacional pertinente à política
regulatória das agências de classificação de risco (IOSCO, 2016).
As discussões e encontros do mencionado C6 resultam na elaboração
de relatórios, que são publicados pela IOSCO, no qual se fixam recomen-
dações sobre aspectos da regulação e supervisão da notação de crédito.
Não obstante, convém anotar a existência do Código de Conduta das
Agências de Avaliação de Crédito (ISOCO, 2015), o que per se comprova a
força desregulatória do mercado financeiro.
É o que Paolo Grossi, convém destacar, chama de globalização jurídica,
isto é, “uma auto-organização dos particulares que, por conta própria,
graças as obras de especialistas privados, inventam instrumentos adequa-
dos a ordenarem as suas trocas jurídicas, dando vida a um canal jurídico
que se coloca ao lado e escorre junto com aquele do Estado” (2005, p. 61).
A autorregulação do mercado, gerenciada por grupos de interesse, pode
gerar situações de crise, como a de 2008, que teve proporções mundiais
271
Carolina Guerra e Souza · Gustavo Ferreira Santos
catastróficas, trazendo consigo, outrossim, uma reflexão de viés jurídico,
principalmente no que toca à democraticidade da regulamentação própria
do mercado.
Com robusta propriedade, Hespanha (2009, p. 254) afirma que “a crise
[de 2008] representa, sobretudo, a prova de que a regulação autónoma do
mercado não responde a muitos dos interesses presentes na sociedade,
justamente porque a eficiência não se pode medir apenas pela satisfação
individual dos agentes do mercado.”
Ao afirmar que o paradigma democrático deve ser o da legitimação,
Hespanha (2013, p. 119) preleciona que o direito deve corresponder a uma
vontade geral, inclusiva, justa (fair), sustentável e estabilizadora para todos
os destinatários.
Pensar a democraticidade do direito como este sendo o fruto do traba-
lho parlamentar que, a seu turno, provém do sufrágio universal, é corrobo-
rar o modelo estatalista do direito, de que o único porta-voz da comunida-
de é o Estado. Dessa forma, a verificação da democracia no modelo pós-
estatalista (pluralismo jurídico) estaria no reconhecimento de outras for-
mas, outros mecanismos de manifestação do direito. Para Hespanha
(2009, p. 361), o direito será democrático quando ele surgir da vontade
popular, mantendo-se ao alcance do povo, tanto no plano cognitivo (co-
nhecimento do que seria direito pela população), quanto no plano prático
(atuação do povo para a resolução de conflitos).
Em resumo, ainda de acordo com Hespanha (2013, p. 37), num contex-
to de economia, sociedade e direitos globalizados mister
encontrar formas inclusivas de autorregulação, que refletissem interesses e
perspetivas de todos os interessados. Coisa que, pela sua complexidade e di-
namismo, os mecanismos do direito do Estado já não estão em condições
de fazer. Mas que os interesses parciais e hegemónicos que dirigem as prá-
ticas e as pretendem disciplinar sob a etiqueta da “autorregulação” não
podem também levar a cabo, justamente porque não incluem todos os
parceiros envolvidos nessas práticas.
272
A necessidade de uma governança democrática na regulamentação...
Nesse diapasão, propõe-se a participação de todos os interessados e não
somente de um grupo ou parcela da sociedade, pelo que o direito do mer-
cado seria tanto regulatório, quanto autorregulatório.
As alternativas vislumbradas para a regulação das agências de rating
têm seguido dois caminhos (COREMEC, 2012): a) regulação da atuação
das agências; b) a eliminação ou redução do uso obrigatório da classifica-
ção de risco para fins regulatórios. Observa-se que, tanto na Europa, quan-
to nos Estados Unidos tem-se buscado uma redução na dependência das
classificações de risco emitidas pelas agências de rating. O Brasil, apesar de
timidamente, tem seguido a orientação europeia, mais rígida que a estadu-
nidense.
Porém, a despeito da constante menção da participação de agentes de
mercado nas alterações propostas, não se consegue aferir uma discussão
ampla a respeito do tema. Ademais, tal discussão é conduzida basicamente
por aqueles que se sujeitam às regras (instituições financeiras e empresas).
Isso fica claro com a dificuldade de se seguir o caminho da regulação das
agências quando se opta, na verdade, por uma redução na obrigatoriedade
de se seguir uma ou outra classificação. Regras de disclosure são também
implementadas, mas deve-se ter claro que as informações apresentadas são
direcionadas a um público específico, sem cuidar da busca de clareza a
todos os participantes do mercado, inclusive os pequenos.
Por mais ideológico que possa parecer a participação de todos interes-
sados na regulação do mercado, a consequente formação de consenso
apontada por Hespanha é plenamente possível e salutar. Uma maneira de
se implementar essa participação é apresentada por Esteve (2012, p. 56).
Trata-se da governança democrática que, segundo o autor:
é um modo de governar que está emergindo na atualidade como conse-
quência da crise do governo provedor e gestor de recursos e, em especial,
pela obsolescência e anomalias provocadas pelo modo gerencial [...]. O
que caracteriza a governança como modo de governar é a gestão das inter-
dependências, gestão relacional (ou de redes). É um tipo de gestão especí-
273
Carolina Guerra e Souza · Gustavo Ferreira Santos
fica que se baseia em um conjunto de técnicas, instrumentos e processos
para alcançar a construção compartilhada do desenvolvimento humano
em um território.
Neste modelo, o governo deve envolver cidadãos na resolução de seus
próprios problemas, cooperando com eles e melhorando a capacidade
coletiva de atuação. O governo é, assim, um gestor e intermediário das
relações e interesses da sociedade. Nesta dimensão, a regulação das agên-
cias de rating é, para além de uma atuação privatista ou intervencionista
estatalizante, feita com a inclusão da sociedade e com a atuação estatal no
sentido de auxiliá-la nas decisões que entendem melhor para todos os gru-
pos interessados. A atuação do Estado deve ser, no lugar de oferecer solu-
ções, levantar questões e solucionar conflitos e amenizar os riscos.
Respondendo parcimoniosamente ao questionamento plasmado alhu-
res, nota-se que a chave está na governança calcada num direito plural, de
participação, tanto regulatório quanto autorregulatório, corolário do inte-
resse e perspectivas de todos os interessados, não somente de um grupo ou
parcela da sociedade e/ou mercado financeiro.
4 Conclusão
Assim, como apontado no início do texto, a regulação das agências de
rating necessariamente perpassa pela resposta às perguntas: por que, co-
mo, para que e quando isto será feito.
Em que pese a significativa evolução das agências de rating, com a pu-
blicização das suas atividades, revela-se indubitável que elas tiveram papel
central na crise financeira mundial de 2008, para além dos pretéritos es-
cândalos financeiros envolvendo empresas como a Enron (2001), Parmalat
(2003) e o Banco Santos (2004). A fórmula parece ser sempre a mesma:
antes da bancarrota, os créditos dessas empresas foram classificados com
grau de investimento seguro, ou mesmo misturados com títulos podres,
maquiando-se, assim, a nota atribuída.
274
A necessidade de uma governança democrática na regulamentação...
A classificação feita pelas agências de notação repercute tanto nas con-
tas públicas, quanto no setor privado do mercado. Aumentando-se os ju-
ros exigidos pelos credores, devido a um rebaixamento da nota, visando
estancar a fuga de credores e investidores estrangeiros, o governo dispõe-
se a modificar a sua política fiscal4. De igual forma, tem-se que os ratings
influenciam nos custos do financiamento do setor privado, inclusive nos
cenários de recessão e demissões em massa, servindo de guia, também,
para investidores alocarem seus recursos.
Como se vê, o próprio mercado acaba por forjar uma flexibilização das
normas a serem adotadas, sendo certo que a crise de 2008 deixa mais evi-
dente o problema que pode ser uma regulação ineficiente, bem como o alto
preço pago pelos investidores quando a regulação é ineficaz. A agravante,
nesta altura, é a ausência de diálogos com todos os envolvidos no esquema,
principalmente com quem, na maioria das vezes, sofre os impactos calami-
tosos da adoção de uma lex mercatoria desenfreada, ou seja, a sociedade.
Hespanha chama atenção ao fato de que qualquer tipo de regulação de-
ve ser democrática, reduzindo-se, pois, a complexidade, a irritabilidade das
relações sociais, vale dizer, que o processo de produção de normas (legísti-
ca, legiferação) deve refletir a vontade mais consensual dos cidadãos (in-
clusividade, fairness), implicando uma auscultação social (ouvir a todos,
com riqueza de informação, num linguagem inclusiva e acessível a todos).
Com efeito, a governança democrática mostra-se como uma ferramen-
ta de inclusão na prática autorregulatória do mercado, na medida em que
envida o envolvimento e a cooperação de todos os interessados, da coleti-
vidade, na construção compartilhada de um consenso, no sentido de mi-
nimizar as segregações ou a formação de grupos isolados e, por conseguin-
te, de colocar óbice na prevalência de um consenso restrito, seletivo, parti-
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__________________________________________________
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EPÍLOGO
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Epílogo
sentou sua pesquisa mais recente e discutidíssima entre os pares sobre
direito das índias. Era sinal de apreço, pois professor Hespanha gostava de
experimentar suas ideais novas com os mais jovens. Novamente, os meus
alunos de História do Direito na graduação participaram com muito entu-
siasmo
No dia seguinte, foi a vez de rediscutirmos sua obra de Teoria do Direi-
to com os meus alunos do mestrado. Desta vez, foram os alunos a apresen-
tar suas pesquisas baseadas no pensamento de Hespanha. Foi um momen-
to de grande congraçamento, pois é uma rara oportunidade poder discutir
com seu marco teórico. E o “Café com Hespanha”, como ficou conhecido
o brunch de intervalo às aulas pode finalmente ser compartilhado com seu
inspirador.
Faltou apenas uma foto nossa andando em meu Fusca 1973, que ele
passeou quando fui deixa-lo no aeroporto. Em seu modo sempre muito
jocoso, ele atribuiu tratar-se de “um legítimo veículo de um historiador do
direito”.
Estes momentos ainda hoje não me saem da mente, e por eles serei
eternamente grato. Creio que a recíproca tenha sido verdadeira, pois tal
esforço de diálogo científico me rendeu um pequeno agradecimento em
“Pluralismo Jurídico e Direito Democrático”, que guardo com muito cari-
nho, além de uma menção dos estudos feitos pelos mestrandos em Uber-
lândia, que agora finalmente ficam registrados em conjunto.
De professor Hespanha fica a lição de como ser pesquisador, professor
e, principalmente, de como ser “gente como a gente”.
DIEGO NUNES
Professor Adjunto de Teoria e História do Direito dos cursos de
Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFSC. Foi Professor
Adjunto de Fundamentos do Direito dos cursos de Graduação e
Pós-Graduação em Direito da UFU. Doutor em Direito pela Uni-
versidade de Macerata (Itália)
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