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A substância católica e o princípio

protestante no presbiterianismo.
Apontamentos
Carlos Jeremias Klein

Resumo
Para Tillich, a substância católica e o princípio protestante são comple-
mentares e corrigem-se e mutuamente. São elementos da substância ca-
tólica os sacramentos, a comunidade e a autoridade real, essencial para a
vida. Por princípio protestante, entende-se o protesto contra toda tentativa
de qualquer sistema identificar-se com o “incondicionado”. Conquanto
a mensagem profética original do protestantismo, a justificação pela fé,
tenha representado um protesto contra o sistema hierárquico da Igreja
Católica; no protestantismo e, particularmente, no presbiterianismo, sur-
gem novas autoridades absolutas, como a Bíblia, considerada “única e
infalível regra de fé e prática” e confissões de fé. O princípio protestante
deve, portanto, dirigir seu protesto ao próprio protestantismo.
Palavras chaves: Substância católica, princípio protestante, finito, incon-
dicionado, Bíblia, presbiterianismo.

Abstract
According to Tillich, Catholic Substance and Protestant Principle are
complementary and correct themselves mutually. Sacraments, community
and real authority, essential for life, are Catholic substance elements.
Protestant principle comprehends the protest against the attempt of every
system to identify itself with the “unconditional”. Although the original
prophetic message of Protestantism, the justification by faith, represents
a protest against the hierarchical system of Catholic Church; in Protes-
tantism, particularly in Presbyterianism, new absolute authorities arise,
such as the Bible, considered “unique norm of faith and pratice”, as well
as the confessions of faith. Protestant principle might consequently lead
its protest to Protestantism itself.
Keywords: Catholic Substance, Protestant Principle, finite, inconditional,
Bible, Presbyterianism

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Introdução
O teólogo Etienne Higuet conceitua três elementos da substância
católica, em Tillich: “o sacramental ou intuição da presença do sagrado
e da profundidade do ser; a comunidade ou substância do amor, baseada
na realidade sacramental do novo ser... a autoridade real, essencial para
a vida, que exprime a verdade do fundamento do ser, manifestando-se
através da tradição e dos seus símbolos”. [1]
O “princípio protestante”, para Tillich, “contém o protesto divino
e humano contra qualquer reivindicação absoluta feita por realidades
relativas, incluindo mesmo qualquer igreja protestante. O princípio
protestante é o juiz de qualquer realidade religiosa... Guarda-nos
contra as tentativas do finito e do condicional de usurpar o lugar do
incondicional no pensamento e na ação” [2] . John Dourley resume
o princípio protestante na fórmula: “os meios pelos quais o sagrado
aparece não podem ser identificados com o sagrado” [3] , e acrescenta:
“esta formulação negaria quaisquer reivindicações de identidade com
o divino feitas por qualquer religião, credo religioso, doutrina ou rito,
bem como qualquer movimento histórico ou político ou por destacadas
personalidades religiosas” [4] . Em outras palavras, o princípio pro-
testante levanta-se contra qualquer sistema que se propõe identificado
com o “incondicionado”.
A substância católica e o princípio protestante corrigem-se e
completam-se reciprocamente: Se a substância católica, sem o princípio
protestante, nas manifestações históricas religiosas, soe degenerar em
idolatria, o princípio protestante, sem a substância católica “torna-se
insípido, intelectualmente unilateral para facilmente degenerar em
moralismo casuísta” [5] .

1. A substância católica e o princípio protestante em Zuínglio e


Calvino
Em primeiro lugar, cumpre observar que o protestantismo não
prescinde da “substância católica”, até mesmo porque o princípio
protestante a pressupõe. “O protestantismo não é somente protestan-
tismo mas, também, e em primeiro lugar, cristianismo”, nas palavras
de Tillich. [6]

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A Reforma na Suíça começou em Zurique, com o sacerdote Ulrico


Zuínglio. Em janeiro de 1519, Zuínglio passou a pregar sobre o Evan-
gelho de Mateus, um capítulo a cada domingo. Nos anos subseqüentes,
os Conselhos da cidade decidiram não aceitar quaisquer injunções
eclesiásticas que não tivessem clara base bíblica. Seguiram-se ações
iconoclastas e, na Quinta Feira Santa de 1525 a missa foi substituída
por uma Ceia do Senhor com liturgia simplificada. Esta passou a ser
celebrada apenas quatro vezes por ano: Natal, Páscoa, Pentecostes e
no dia 11 de setembro, dia do padroeiro de Zurique.
Zuínglio manteve apenas dois sacramentos, o Batismo e a Ceia
do Senhor, tal como Lutero. Mas, ao contrário de Lutero, o reformador
de Zurique não considerou os sacramentos como meios de graça, mas
apenas atos de obediência ao mandato de Cristo. A Ceia do Senhor era
um ato de lembrança do sacrifício de Cristo na cruz.
O reformador João Calvino, o principal teólogo da tradição
reformada, consolidou a Reforma em Genebra, Suíça, iniciada por
Guilherme Farel. Calvino considerava os sacramentos como meios de
graça. Não obstante seu empenho em recuperar a celebração dominical
da Santa Comunhão em Genebra, não conseguiu atingir esse objetivo.
As Confissões Reformadas do século XVI oscilam entre as concepções
sacramentais de Zuínglio e de Calvino.
Os reformadores suíços levaram ao extremo o princípio da Sola
Scriptura. Enquanto os luteranos procuravam eliminar da prática eclesial
os elementos julgados contrários às Escrituras, os reformados suíços
decidiram eliminar do culto e da prática cristã tudo o que não se en-
contrasse na Bíblia.
O “princípio protestante” aparece por vezes de forma extrema. Na
resposta à pergunta 80 do Catecismo de Heidelberg, do século XVI,
encontra-se: “A missa não é, fundamentalmente, outra coisa que uma
completa negação do sacrifício oferecido uma vez por todas e da paixão
de Jesus Cristo, (e como tal uma condenável idolatria)” [7] .

2. A substância católica e o princípio protestante no presbiteria-


nismo
As igrejas presbiterianas têm suas raízes nos reformadores Zuín-
glio, Farel e Calvino. John Knox, que introduziu o presbiterianismo

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na Escócia, conviveu com Calvino, em Genebra, como refugiado


protestante.
As Igrejas presbiterianas exerceram a “crítica profética” ao sistema
sacerdotal da Igreja Católica, porém mantendo os três elementos da
“substância católica”, os sacramentos, a comunidade de fé e a autoridade
de governo e dos símbolos da fé.
Observou-se, no entanto, um empobrecimento na vida sacramen-
tal, em virtude do caráter “secularizante” do movimento da Reforma.
Quanto à comunidade da fé, ou a chamada “Igreja visível”, a mesma
perde importância para a chamada Igreja invisível, que a Confissão de
Fé de Westminster assim conceitua: “A Igreja católica ou universal é
invisível e consta do número total dos eleitos que já foram, dos que
agora são e dos que ainda serão reunidos em um só corpo sob Cristo,
seu cabeça” [8] .
Tillich observa que o protestantismo do século XVI, redesco-
brindo “a mensagem profética da majestade de Deus e ressaltando as
doutrinas da predestinação e da justificação pela fé protestou contra
o sistema hierárquico que se havia interposto entre o homem e Deus
com a ‘demoníaca reivindicação de absolutismo’. Essa mensagem pro-
fética reafirmava o caráter incondicional de Deus” [9] . Não obstante,
“sempre houve e ainda há tendências contraditórias dentro do protes-
tantismo... em muitos lugares formas rígidas de ortodoxia eclesiástica
ainda ignoram o protesto protestante original. Em lugar da autoridade
da Igreja Católica Romana criam-se novos absolutos como a Bíblia ou
as confissões de fé: um catolicismo da palavra” [10] .
Enquanto na Igreja Católica a interpretação da Bíblia e da Tradição
é exercida pelo magistério da Igreja, sob a autoridade papal, no protes-
tantismo, e em especial no presbiterianismo, a autoridade fundamenta-
se na Bíblia. Na Confissão de Fé de Westminster, sistema doutrinário
adotado pela grande maioria das igrejas presbiterianas, os livros do
Velho e do Novo Testamentos “todos eles foram dados por inspiração
de Deus para serem a regra de fé e prática” [11] . Esta passou a ser
considerada, em geral, como “única regra de fé e prática”. O primeiro
Artigo da Constituição da Igreja Presbiteriana do Brasil, promulgada
em 1950, reza: “A Igreja Presbiteriana do Brasil é uma federação de
igrejas locais, que adota como única regra de fé e prática as Escrituras

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Sagradas do Velho e Novo Testamentos e como sistema expositivo de


doutrina e prática a sua Confissão e os Catecismos Maior e Breve”
[12] . Na Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, uma reforma
constitucional adicionou o adjetivo “infalível”: “A Igreja tem como
única e infalível regra de fé e prática as Sagradas Escrituras do Antigo
e do Novo Testamentos (sic)” [13] . Com isto, a “substância católica”,
também no presbiterianismo, em certo sentido, degenerou-se em “he-
teronomia”, tal como na Igreja Católica Romana do século XVI.
James Luther Adams observa que o protestantismo, no seu de-
senvolvimento histórico, “teve de depender cada vez mais do apoio de
forças sociais extra-eclesiásticas. Especialmente depois do Iluminismo,
aliou-se com as novas burocracias estatais ou com os poderes e cos-
tumes burgueses” [14] . Tal como o catolicismo deixou-se prender no
“cativeiro babilônico da decadência da Idade Média e da petrificada
Contra-Reforma, assim também o protestantismo que tanto ajudou a
formar a era protestante, acabou, em grande parte, prisioneiro de um
novo cativeiro babilônico dentro da cultura capitalista... seu Deus foi
domesticado; acabou sendo um deus burguês” [15] .

Algumas considerações finais


Para Tillich, “todos os aspectos da crítica protestante podem ser
interpretados como ataques do espírito protestante à tendência católica
da objetivação sacerdotal e da demonização do cristianismo” [16] .
Contudo, esta crítica não deveria levar o protestantismo a “redução da
mediação sacramental do Espírito”, sob o perigo de um “desaparecimento
do sentimento sacramental”, como se deu nos Estados Unidos [17] . Essa
observação de Tillich é particularmente pertinente ao presbiterianismo.
O presbiterianismo, em geral, posiciona-se de maneira crítica à
questão da autoridade no catolicismo romano. Mas, ao absolutizar a
Bíblia como única regra de fé e prática, tende, por sua vez, a uma es-
pécie de “bibliolatria”. Cabe observar que no seio do presbiterianismo
brasileiro tem surgido protestos à absolutização da Bíblia, a exemplo
do falecido Rev. Jorge Bertolaso Stella, ex-pastor da Catedral Evangé-
lica de S. Paulo: “Uma religião viva procura continuamente romper os
liames do biblismo e da bibliolatria... Não há nenhum livro religioso

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humano que seja ‘a única regra de fé e prática’, porque na prática é


uma hipocrisia” [18] .
Etienne Higuet, comentando Tillich, observa que desde a época da
Reforma, a Igreja Romana “é marcada pela transformação do sacramen-
to em lei, pela despersonalização do amor, reduzido a obras salutares,
enfim, pela metamorfose da autoridade real em autoridade de princípio,
que institui um lugar absoluto de autoridade, escapando de qualquer
crítica” [19] . O princípio protestante deve constituir, então, “uma ação
profética contra a absolutização sacerdotal – heterônoma e idólatra -
de uma igreja, de um sistema de ordens, de sacramentos, de modos de
vida e de dogmas” [20] . Mutatis mutandis, a mesma observação pode
aplicar-se ao presbiterianismo.
Finalizo com a observação de Adams que o princípio protestante
não é exaurível: “Não depende da era protestante. Pode evoluir a uma
nova criação do ponto de vista qualitativo. Pode, também, em nome
do seu princípio, protestar contra a era protestante e contra o próprio
protestantismo organizado”. [21]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADAMS, J. L. O conceito de era protestante Segundo Tillich. In TILLICH, P.
A era protestante. São Paulo/São Bernardo do Campo, Ciências da Religião,
1992.
A Constituição da Igreja Presbiteriana Unida dos Estados Unidos da Améri-
ca. Parte I. Livro de Confissões. São Paulo, Missão Presbiteriana do Brasil
Central, 1969.
DOURLEY, John. Substância católica e princípio protestante: Tillich e o diá-
logo inter-religioso. www.metodista.br/correlatio/num_1/dourl2.htm.
HIGUET, Etienne Alfred. Alguns aspectos do catolicismo brasileiro atual.
Considerações a partir da visão de modernidade em Paul Tillich. In www.
metodista.br/correlatio/num_1.
Livro de Ordem. Igreja Presbiteriana Independente do Brasil. São Paulo,
Pendão Real, 2005
Manual Presbiteriano. São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1982. .
STELLA, Jorge Bertolaso. Jesus e os Evangelhos. São Paulo, Metodista,
1980.

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TILLICH, Paul. A era protestante. São Paulo/S. Bernardo do Campo, Ciências


da Religião, 1992.
TILLICH, Paul. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX.
TILLICH, Paul. Substance catholique et principe protestant. Paris/Genève,
Cerf/Labor et Fides, 1995.
TILLICH, Paul. “The significance of the History of Religions for the Syste-
matic Theologian”, In The future of Religions, New York, Harper and Row,
1966 (Ed. J. C. Bauer).

Carlos Jeremias Klein é Mestre e Doutor em Ciências da Religião pela


Universidade Metodista de São Paulo. Professor no Curso de Teologia
do Centro Universitário Filadélfia de Londrina (Unifil) e no Seminário
Teológico Rev. Antonio de Godoy Sobrinho, em Londrina, da Igreja
Presbiteriana Independente do Brasil.

NOTAS
[1] Higuet, Etienne Alfred. “Alguns aspectos do catolicismo brasileiro
atual – Considerações a partir da visão da modernidade em Paul Tilli-
ch”. Correlatio n. 1, www.metodista.br/Notícias/correlatio.
[2] Tillich, Paul. A era protestante. São Paulo/S. Bernardo do Campo,
Ciências da Religião, 1992, p. 183.
[3] Dourley, John. “Substância católica e princípio protestante: Tillich e
o diálogo inter-religioso. Correlatio n. 1. www.metodista.br/correlatio/
num_1/a_dourl2.htm , p. 3.
[4] Ibidem, p. 4.
[5] Tillich, Paul. “The significance of the History of Religions for the
Systematic Theologian”, in The Future of Religions, ed. J. C. Bauer.
New York: Harper and Row, 1966, p. 92 (Apud Dourley, Op. cit., p.
3).
[6] Tillich, Paul. A era protestante, Op. Cit., p. 212.
[7] O Livro de Confissões, Igreja Presbiteriana Unida dos Estados Uni-
dos. São Paulo, Missão Presbiteriana do Brasil Central, 1969, 4.080. A
parte entre parêntesis apareceu na terceira edição do catecismo.
[8] Ibidem, 6.125.
[9] Tillich, P. A era protestante, Op. Cit., p. 288.
[10] Ibidem, p. 289.

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[11] O Livro de Confissões, Igreja Presbiteriana Unida dos Estados


Unidos da América. São Paulo, Missão Presbiteriana do Brasil Central,
1969, 6.022.
[12] Manuel Presbiteriano. São Paulo, Casa Editora Presbiteriana,
1982, p. 8.
[13] Livro de Ordem. Igreja Presbiteriana Independente do Brasil. São
Paulo, Pendão Real, 2005.
[14] Adams, J. L., “O conceito de era protestante segundo Tillich”. In
Tillich, P. A era protestante, Op. Cit.,. p. 290.
[15] Ibidem, p. 298.
[16] Tillich, Paul, A era protestante, Op. Cit.
[17] Tillich, Paul. Perspectivas da teologia protestante nos séculos
XIX e XX.
[18] Stella, Jorge Bertolaso. Jesus e os Evangelhos, São Paulo, Meto-
dista, 1980, p. 9.
[19] Tillich, P. Substance catholique et principe protestant. Paris/Genève,
Cerf/Labor et Fides, 1995, p. 366, Apud Higuet, E. Op. cit., p. 2.
[20] Idem.
[21] Adams, J. L. Op. cit., p. 298.

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