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Um desafio para o cupido

(Cupid jones gets married)

Digitalização: Joyce
Revisão : Léa

Cupido versus Cupido?!


Fazia anos que Marjorie "Cupido" Jones ajudava as pessoas de Valentine, uma pequeno
cidade no Estado do Kansas, a encontrar o verdadeiro amor.
Mas quando Christopher Easterbrook chegou à agência do correio de Valentine para se
encontrar com a mulher com a qual namorava por correspondência e com quem pretendia
casar-se, Marjorie já a havia destinado a outra pessoa.
Furioso, Christopher exigiu que aquela atendente intrometida e irritante, com aquele
apelido ridículo, reparasse seu erro encontrando uma substituta para sua noiva... e rápido!
Confiante em sua habilidade, Marjorie prometeu que conseguiria solucionar o problema. E decidiu
resolver de uma maneira nada convencional... Ou aquela seria sua última façanha ou seria a
melhor de todas!

Projeto Revisoras -1-


CAPÍTULO I

Em Valentine, uma pequena cidade na região oeste do Estado do Kansas, o


dia se mostrava ensolarado com o céu muito azul, apesar da neve acumulada no
meio fio das calçadas.
A rua principal que atravessava a cidadezinha de ponta a ponta continha a
maior parte do comércio local, com duas agências bancárias, um posto do correio e
uma bela igreja na pracinha cujas árvores haviam perdido todas as folhas naquele
meio de inverno.
Sentada atrás do balcão, revisando a correspondência que chegara naquela
manhã, Marjorie "Cupido" Jones Swet-tenham levantou os olhos cor de mel para
observar a bela forasteira que acabara de entrar pela porta dupla do correio.
Aparentava ter cerca de trinta e poucos anos e o batom vermelho que usava nos
lábios cheios e sensuais contrastava com a pele muito branca e os olhos azuis. Sob o
casaco longo de lã, trajava um tailleur bege discreto, e os cabelos longos e loiros
caíam sobre seus ombros.
Ela aproximou-se com um sorriso simpático e disse:
— Bom dia. Acabei de chegar de Chicago e marquei encontro com uma
pessoa aqui no correio. Espero que minha presença não a incomode...
— Bom dia. — Marjorie devolveu o sorriso. — Fique à vontade. Este é um
local público e as pessoas transitam por aqui o dia todo.
— Eu agradeço. Apesar do sol, está frio lá fora - Ela aproximou-se de um
póster fixado na parede com fotos de várias crianças da comunidade. — Quem são?
perguntou interessada.
— Os vencedores da gincana que tivemos na cidade, na semana passada.
— São lindas e parecem tão felizes! Esta, principalmente... — Ela apontava
para a foto no alto. — Que olhos expressivos...
— É Mariah, filha de Pop Tomlinson. A maioria dos moradores de Valentine
a considera a criança mais bonita das redondezas.
Com um suspiro indisfarçável a forasteira confidenciou:
— Eu adoro crianças... Pena que não possa ter filhos.
— Oh... eu sinto muito.
— Não se preocupe. De certa forma já me habituei com a ideia. — A jovem se
aproximou do balcão e estendeu a mão para Marjorie. — Meu nome é Moira.
— O meu é Marjorie — ela retribuiu o cumprimento.
— Devo estar atrapalhando você com minha conversa — Moira desculpou-se.
— Na verdade, não. Depois de tantos anos nessa profissão, o trabalho se
torna praticamente automático — disse Marjorie, enquanto fazia a triagem da
correspondência.
Naquele instante viu Jake Crowell entrar e uma ideia irresistível surgiu em
sua mente, como uma inspiração divina. Na sua frente encontrava-se uma mulher
bonita, que demonstrava claramente sentir falta de crianças em sua vida... Logo
atrás, Jake, viúvo havia dois anos, com três lindas meninas carentes de uma figura
materna em casa...

Projeto Revisoras -2-


O quadro saltava nitidamente aos olhos, pelo menos aos de Marjorie,
possuidora de um dom especial desde a mais tenra idade, e que lhe rendera o
apelido de "Cupido" entre os moradores da cidade. Era uma história interessante,
pois como um verdadeiro cupido em forma de gente, Marjorie aproximara mais de
uma dezena de casais que, conscientes ou não de sua participação, acabaram por
tornar-se marido e mulher.
Assim, enquanto Jake Crowell se aproximava do balcão, ela perguntou à
forasteira em voz suficientemente alta:
— Seu nome completo é...
— Moira McPherson... e o seu?
— Marjorie Jones Swettenham.
— Olá, Marjorie — cumprimentou Jake. — Alguma coisa para mim?
— Vou verificar... Ah, sim... Jake... deixe-me apresentar-lhe a srta.
McPherson. Ela acabou de chegar de Chicago.
Jake voltou-se para a forasteira com a mão estendida e só então seus olhos se
depararam com a beleza da mulher que lhe sorria levemente.
— Moira — interveio Marjorie. — Este é Jake Crowell, dono do armazém da
cidade, mas cuja verdadeira profissão é cuidar das três filhas, as crianças mais
bonitas do Kansas.
Jack e Moira se cumprimentaram com um aperto de mão e Jake murmurou
meio embaraçado:
— O que Marjorie quer dizer é que eu sou viúvo. Muito prazer, senhorita.
— Igualmente — respondeu Moira, os olhos brilhando num óbvio interesse.
Bingo, disse Marjorie para si mesma, disfarçando um sorriso. Com sua vasta
experiência era capaz de apostar o salário de um mês que aquele caso estava
solucionado. Mais duas almas solitárias que se encontravam bem diante de seus
olhos atentos. Agora, era apenas uma questão de tempo, ela pensou.
Conversando, os dois se afastaram do balcão e Marjorie prosseguiu nos seus
afazeres. Havia naquele lote duas cartas comerciais para Jake, mas ela não iria
entregá-las naquele momento. Coisas mais importantes aconteciam, ela julgou,
olhando-os, parados em frente à vidraça que dava para a rua ensolarada.
Foi então que pela porta dupla entrou um homem desconhecido que fez o
coração de Marjorie parar por um segundo. Pelas roupas e modos, era obviamente
um fazendeiro, mas ela nunca o vira na cidade.
Muito alto, o homem poderia ser considerado magro, mas a agilidade e
equilíbrio de seus movimentos desmentiam aquela primeira impressão. Era esbelto
e musculoso. As mãos eram grandes, com dedos longos e fortes. Os olhos verdes
suavizavam o rosto de traços marcantes. O queixo era bem definido, e os cabelos
pretos, um pouco compridos demais, completavam a imagem do homem mais
impressionante que ela já vira.
Com quatro longos passos ele estava na frente de Marjorie e numa voz bem
modulada, disse:
— Por favor, senhorita... Vim me encontrar com uma pessoa. Meu nome é
Christopher Easterbrook.
Antes que Marjorie pudesse dizer alguma coisa, a outra mulher virou-se um
tanto relutante e interpelou:
— Você é Christopher... Christopher Easterbrook?
— Sim... e você...

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— Moira McPherson. Um instante, por favor. — Colocando a mão no braço
de Crowell, parado a seu lado, disse-lhe com um sorriso meigo: — Tenho um
assunto para resolver. Poderíamos continuar nossa conversa no restaurante que
você mencionou?
— No Rusty Nail? — perguntou Jake Croweel sem demonstrar surpresa ou
desagrado pela interrupção.
— Esse mesmo — ela confirmou. — Em dez minutos.
— Estarei esperando lá.
Sem despregar os olhos de Moira, o viúvo cumprimentou distraidamente
Marjorie e o estranho parado no balcão, e saiu para a rua.
Imediatamente, Moira aproximou-se de Christopher Easterbrook e depois de
se apertarem as mãos cerimoniosamente, ela o conduziu para perto da porta, onde
começaram a falar baixinho.
Marjorie podia ouvir uma ou outra palavra, mas, para não ser indiscreta, foi
colocar as cartas nas caixas correspondentes, inclusive as de Jake que, com sua
saída intempestiva, não lhe dera chance de entregá-las. Mas mesmo distante não
pôde deixar de ouvir a exclamação espantada do forasteiro, e o diálogo que se
seguiu:
— O quê? Você está querendo dizer que....
— Por favor... não se exalte. Sei que criamos expectativas e que você está
desapontado.
— Desapontado não é a palavra certa. Estou perplexo e começando a ficar
aborrecido.
— Eu compreendo, Christopher... mas existem certas ocasiões em que
devemos tomar decisões difíceis e esta é uma delas.
— E quando chegou a essa brilhante conclusão? — A ironia era cortante na
voz dele.
— No exato momento em que ouvi seu nome.
— Eu não acredito no que estou ouvindo. Você já conhecia aquele homem
com quem conversava, não é mesmo?
— Juro que não. Acabei de chegar... Foi a moça do correio, Marjorie, que nos
apresentou — disse, sincera.
— Não faz sentido.
— Eu sei... Também estou surpresa... Mas a verdade é que teremos de
mudar nossos planos. Desculpe, mas estou decidida.
Marjorie voltava ao balcão e viu quando Moira aprumou-se na ponta dos pés
para beijar o rosto contrariado de Christopher Easterbrook, dizendo-lhe baixinho:
— Me perdoe, por favor. — E se retirou sem olhar para trás.
Por um longo tempo Christopher permaneceu parado, olhando para a porta
por onde Moira desaparecera. Então girou nos calcanhares e, encarando Marjorie,
perguntou desalentado:
— Você poderia me explicar o que está acontecendo aqui?
— Uma mudança brusca de planos, eu creio — respondeu um tanto tímida.
— Parece que você terá que procurar uma nova correspondente.
— Correspondente, nada — ele desabafou. — Estávamos noivos e íamos nos
casar.
— Mas pelo que me consta, vocês nem se conheciam — ela tentou
argumentar.

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— E por acaso Moira conhecia o homem pelo qual rompeu nosso acordo? —
perguntou desconfiado.
— Não... Isso eu posso garantir, pois fui eu mesma quem os apresentou.
Uma fração de segundo depois de dizer aquelas palavras, Marjorie
compreendeu que cometera um erro. A indignação do fazendeiro voltou-se contra
ela:
— Belo serviço você me prestou. Por que tinha de se meter num assunto que
não lhe dizia respeito?
— Mas eu não fiz nada... — ela tentou protestar.
— Claro que não — disse ele irónico. — Apenas destruiu meu projeto de vida.
Marjorie sentiu o sangue subir-lhe às faces e, moderando a voz para que não
tremesse, replicou pausadamente:
— Nem tudo na vida acontece como desejamos, sr. Eas-terbrook. E de
qualquer modo, Moira não era mesmo para o senhor.
A surpresa e indignação fez com que Christopher hesitasse.
— E no que você se baseia para dizer isso? — A voz dele era perigosamente
calma.
— É evidente que Moira é como uma flor de estufa, delicada e sensível. Iria
perder a alegria e definhar se fosse exposta a um ambiente inadequado.
— Quer dizer que a vida que levo seria inadequada a Moira... Como pode me
dizer isso se nem me conhece?
— Está em torno de você como uma aura — ela explicou
pacientemente. — Suas roupas, suas mãos, seu modo de olhar e se mover...
Você não compreende, não é mesmo?
— Não. E não tenho a menor vontade de entender o mecanismo interno de
seus pensamentos confusos. Só sei que estou frustrado e com raiva.
— É exatamente disso que estou falando. Moira, pelo jeito dela, precisa de
paz, de um lar metódico, calmo, sem surpresas e explosões. Ela é muito maternal e
precisa dar vazão a esses sentimentos — Marjorie tentou explicar.
— E vai conseguir tudo isso ao lado daquele pacato cidadão que acabou de
conhecer aqui no correio?
— Exatamente — ela respondeu animada. — Você não vê o óbvio porque está
exaltado. Eles combinam com perfeição um com o outro. Acredite, eu sei do que
estou falando.
Christopher a olhava espantado. A bela jovem de olhos cor de mel parecia
convicta de suas palavras e até sorria em meio àquelas explicações surpreendentes.
O tom de sua voz lembrava o de uma professora falando com uma criança rebelde,
que se negava a entender uma lição simples.
— Escute... que tipo de pessoa é você? Uma dessas mulheres que lêem
literatura alternativa com discos voadores estampados na capa, se alimentam de
raízes e toda aquela parafernália naturalista...
Marjorie balançou a cabeça negando e um sorriso travesso apareceu em seu
rosto.
Christopher Easterbrook olhou com atenção para a aten-dente do correio.
Parada, em pé, atrás do balcão, ela gingava sobre os pés como se sua natureza alegre
e inquieta quisesse saltar de dentro dela.
Marjorie era alta, tinha quase um metro e setenta e um corpo com curvas
generosas que o vestido de tecido macio cobria sem esconder. Seus seios rígidos,

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bem delineados pelo vestido justo, deixavam adivinhar-se alvos, pela brancura da
pele em seu pescoço, que subia a um rosto em forma de coração, onde a boca
vermelha, entreaberta num sorriso, mostrava dentes pequenos, regulares e muito
brancos. O nariz era arrebitado, como de uma boneca de porcelana e os olhos cor de
mel luziam travessos. Os cabelos dourados com reflexos avermelhados pareciam
revelar ascendência irlandesa e génio forte. Os braços longos terminavam em mãos
pequenas e bem formadas.
— Sabe quem eu sou, sr. Easterbrook? — disse provocante. — Um cupido.
E, colocando as mãos na cintura, flexionou os braços para frente e para trás,
imitando um bater de asas.
— Deixe de histórias.
— É verdade. Aqui em Valentine me conhecem como Mar-jorie "Cupido"
Jones Swettenham e tenho orgulho de dizer que já promovi nada menos que treze
casamentos. Por isso, quando lhe digo que Moira não era para ser sua parceira, falo
com conhecimento de causa.
— Você só pode estar brincando.
— Não estou, não.
— Pois muito bem. Já que se acha um cupido, por que não encontra uma
mulher para mim? — ele desafiou.
— As coisas não funcionam assim, sr. Easterbrook.
— Pare de me chamar de sr. Easterbrook. Sou Christopher.
— Certo, Christopher. Como eu estava lhe dizendo, a influência que exerço
sobre as pessoas é sutil. Uma questão de dizer a palavra certa na hora certa. De
perceber as afinidades entre dois seres que se procuram e não se vêem.
— E foi o que aconteceu entre Moira e aquele cidadão...
— Jake Crowell é o nome dele. — Ela fez uma pausa. — E isso mesmo. Moira
acabava de me dizer que adora crianças e que não pode ter filhos. Jake é viúvo há
dois anos e está murchando a olhos vistos. Está consumindo toda sua capacidade de
amar uma mulher no amor paternal por suas três filhas.
— Até aí, o caso não me diz nada. Eu, por exemplo, estou sozinho numa
fazenda a cinquenta milhas daqui e esperava de meu casamento com Moira uma
vida confortável e menos solitária.
— E sem filhos?
— E quem lhe disse que eu preciso de filhos? Não lhe ocorre que eu possa ter
escolhido Moira para ser minha esposa, também por esse motivo?
— Aí é que está o problema, Christopher. O que fez pender a balança em
direção a Jake Crowell... Ele tem três filhas e precisa de Moira.
— Mas eu...
— Também pesa o fato de ele ser um homem sossegado, de hábitos
previsíveis e de uma doçura que a encantou.
— E como sabe que não sou assim?
— Você é?
— Não. Não sou — ele murmurou por entre os dentes.
— Está vendo?! — disse vitoriosa.
— Mas isto não quer dizer que não possa ser um bom marido e um
companheiro compreensivo — defendeu-se brusco.
— É claro que não. Mas não para Moira.
Marjorie voltara àquele tom professoral que tanto irritara Christopher. Ele

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curvou-se sobre o balcão e, apoiando as mãos espalmadas na madeira, disse:
— Depois de espremer os miolos para escrever uma de-, zena de cartas para
Moira em Chicago, mandar fotografias e tecer planos para uma vida em comum,
acabei sozinho, no balcão de um correio, conversando absurdos com uma mulher
que acha que é um cupido. Pois muito bem, Marjorie "Cupido" Jones Swettenham...
Você tem três semanas para me arranjar uma esposa ou...
— Ou o quê? — Ela engoliu em seco.
— Vou arrancar as penas de suas asas de cupido, uma por uma — decretou
ameaçador.

CAPITULO II

Na Agência do Correio e no Saloon como vê, sr. Easterbrook, eu tinha razão


quanto a agressividade de seu caráter.
Marjorie afastara-se um passo do balcão, não por um gesto instintivo de
temor, mas porque a colónia que ele usava, misturado ao suave cheiro de couro de
sua jaqueta nova, provocava sua feminilidade de maneira perigosa.
— Já lhe pedi que para me chamar de Christopher e não sou mais agressivo
que qualquer vaqueiro do Kansas.
— Então é um cowboyl
— Quando eu tinha seis meses meu pai me colocou sobre uma sela. Antes de
aprender a andar, eu já cavalgava. Mesmo assim prefiro ser qualificado de
fazendeiro. Os cowboys são andarilhos e não têm uma parada certa. Eu tenho um lar
com muita terra ao seu redor. Sou trabalhador e honesto. O que me falta é uma
esposa, dedicada e bonita, para dividir comigo o conforto de minha casa, minha
conta no banco e minha cama, que parece maior a cada inverno.
Aquela confissão, espontânea e simples, comoveu Marjorie. O homem a sua
frente tinha a pureza de um diamante bruto que, lapidado pelo carinho e afeto de
uma boa mulher, na certa revelaria brilhos espantosos...
Um arrepio subiu pela espinha de Marjorie. Procurando dominar-se, ela
argumentou:
— Certo, Christopher. Entendi seu recado. Só não compreendo por que está
solteiro até hoje. A seu modo, você é um homem bonito, saudável, estável na vida...
— Nunca me interessei por casamento antes.
— E por que mudou de ideia?
— Fiz trinta e cinco anos e já não acho graça em viver sozinho.
— Compreendo. — Ela o olhou com simpatia. — E tenho certeza de que
acabará encontrando uma boa mulher para você.
— Onde?
— Ora... Em todo lugar existem mulheres procurando por um
relacionamento sério e estável. Basta você se dispor a encontrá-las.
— Aí é que está o problema. Eu não sou muito bom nisso.
— Perdão... eu não entendi...
— Esse negócio de namorar, de dizer as coisas que as mulheres direitas
gostam de ouvir — confessou um tanto encabulado.
Marjorie não pôde deixar de sorrir diante de tanta inocência.

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— Quer dizer que nunca namorou?
— Depende do que você chama de namoro.
— O que se faz na escola quando encontramos alguém para dividir o lanche,
conversar durante os intervalos no pátio, caminhar de volta para casa, na saída das
aulas...
O riso de Christopher soou forte e profundo, fazendo Marjorie estremecer.
— O que foi que eu disse de engraçado? — perguntou embaraçada.
— Nada... É que você me fez lembrar minha infância...
— E?
— Bem... — Ele ainda sorria. — Para você entender como era minha vida
naquela época preciso dizer que aos treze anos já tinha minha pequena boiada. As
meninas direitas não queriam conversa comigo...
— Não estou entendendo...
— Eu pulei essa fase de namoro.
— Você quer dizer que... — Os olhos cor de mel de Mar-jorie abriram-se
espantados.
— Havia uma garota, Sarita, que não se incomodava de satisfazer a
curiosidade de alguns rapazes... Compreende?
— Meu Deus... Com treze anos...
— Na verdade foi um pouco antes disso — falou, como que se desculpando.
— Eu era desenvolvido para a idade. Fisicamente, quero dizer.
Marjorie cerrou os olhos tentando imaginar o homem parado a sua frente
como um rapazola de treze anos. Não conseguiu.
A voz de Christopher a trouxe de volta à realidade.
— Com o passar do tempo, foi natural procurar sempre a companhia de
mulheres mais velhas, nos rodeios e vaquejadas. Eu vivia entre adultos e agia como
eles.
— Sinceramente, não sei o que dizer, Christopher. Lamento que sua infância
e adolescência tenham sido tão prejudicadas.
— Mas por que lamenta? — Ele parecia realmente surpreso.
— Bem... não é para lamentar?
— De maneira alguma. Aquelas garotas eram generosas e bastante
maternais... Me ensinaram tudo o que sabiam e algumas se tornaram boas amigas.
Nunca me exploraram ou exigiram qualquer coisa. Se há algo a ser lamentado, e não
tenho certeza disso, é a vida de algumas delas.
Havia uma grande verdade naquelas palavras simples, constatou Marjorie,
espantada. Mais que verdade... Generosidade de julgamento, uma compreensão
madura das ásperas realidades da vida.
— Quer dizer que nunca teve um namoro sério?
— Eu tentei, duas ou três vezes.
— E o que aconteceu?
— Foi desastroso. Elas me acharam muito... direto, eu creio.
— Eu compreendo.
— Bem, srta. Marjorie... Vai me ajudar a arranjar uma esposa ou não?
— Sempre direto, não?
— Creio que é o meu estilo. — Ele sorriu, encantador.
— Vamos fazer o seguinte, Christopher... — Marjorie consultou o relógio de
pulso. — Eu saio às cinco do trabalho. Se você estiver me esperando nesse horário,

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poderemos dar uma volta pela cidade e quem sabe comer alguma coisa no saloon do
Halley. Não estou prometendo nada, mas vou pensar no assunto.
— Já é alguma coisa. — Ele empertigou-se. — Às cinco, então?
— Combinado.
Christopher curvou-se levemente e saiu.
Com um suspiro de alívio, Marjorie sentou-se na alta cadeira giratória e
relaxou os membros tensos. Por algum tempo ficou pensando por que cedera aos
apelos de Christopher Easterbrook e logo encontrou a resposta. O misto de encanto
selvagem e inocência que ele demonstrava, mais a pressão que exercera sobre ela,
causara o efeito por ele desejado. Agora era seguir em frente e ver como aquela
história ia acabar. Bastante inquieta, Marjorie voltou aos seus afazeres.
Às cinco horas, pontualmente, a atendente do correio de Valentine encerrava
o expediente, fechando a porta dupla atrás de si. Trajava um longo casaco de couro
creme sobre o vestido e envolvera o pescoço com um cachecol multicolorido. As
luvas estavam no bolso e ela as calçou, parada na calçada, enquanto esquadrinhava
as imediações, procurando a alta figura de Christopher Easterbrook, sem nenhum
sucesso.
Sorriu para o sol amarelo e pálido que se punha em meio à bruma e
caminhou na direção da praça. A cada passo que se afastava do correio a frustração
crescia dentro dela. Fora reticente demais em resposta ao pedido aflito de
Christopher e ele resolvera partir, ela concluiu pesarosa.
"Mas eu deveria estar contente", disse a si mesma. "Quem precisa de
problemas?"
O sorriso encantador do fazendeiro voltava-lhe à mente com aquelas frases
ditas numa clareza quase rude, com a simplicidade de quem não está acostumado a
meias verdades.
Quase triste, ela forçou o pensamento em outra direção, sabendo, no fundo,
que levaria um tempo enorme para esquecer aquele breve encontro.
Apressando o passo, ela atravessava a rua quando Christopher surgiu na
esquina, de costas para o sol poente, sua sombra alongada projetando-se sobre a
calçada fria.
Uma alegria intensa, impossível de ser ignorada, cresceu dentro de Marjorie,
extravasando em seu belo rosto num sorriso amplo que não tentou esconder. Ele se
aproximou, saudando:
— Você parece bem-disposta. Pensou que eu não viria?
— Confesso que sim. Mas isso não tem importância agora.
— Sabe — ele a olhava intensamente —, você é linda quando sorri de
verdade.
— Obrigada. Mas vamos sair desse frio. O Halley fica a dois quarteirões
daqui.
— Boa ideia.
Christopher ofereceu o braço a Marjorie em outro gesto inesperado, que ela
aceitou surpresa. Juntos caminharam em passos rápidos pela rua vazia.
— Onde você aprendeu esses modos elegantes? — ela perguntou por fim.
— Do que você está falando?
— Quando se despediu no correio, fez uma mesura e agora me oferece o
braço com toda naturalidade... Não creio que isso seja muito comum entre os
cowboys.

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— Sou fazendeiro, já lhe disse.
— Mesmo assim — ela replicou.
— Você é observadora — ele tentou desviar o assunto.
— Sim, sem dúvida. E por isso mesmo sei que está tentando não responder a
minha pergunta.
— Está bem... Vivi alguns anos com minha mãe na capital do Estado. Topeka
é uma cidade grande e devo ter adquirido alguns desses hábitos por lá — disse
vagamente.
— E o que fazia em Topeka? — perguntou Marjorie, com curiosidade.
— Estudava.
Ela chegou a retardar os passos com a surpresa.
— Estudava o quê?
— Manejamento de rebanhos... Confinamento... Inseminação artificial...
Essas coisas que interessam a um fazendeiro.
— Você é mesmo cheio de surpresas — ela comentou.
— Tenho trinta e cinco anos e muitas histórias para contar. Mas acho que já
chegamos.
Uma placa luminosa indicava o saloon do Halley e Christopher abriu a porta,
dando passagem para Marjorie em outro dos seus gestos elegantes.
O local estava superaquecido e havia uma dezena de pessoas em torno do
grande balcão. Os rostos voltaram-se todos para contemplar os recém-chegados, e
um coro de saudações encheu o recinto, enquanto Marjorie respondia com sorrisos e
acenos.
Uma mulher bonita, não muito jovem, sorvia, por dois canudos, um drinque
colorido, e olhou para Christopher com interesse.
— Quem é ela? — ele perguntou a Marjorie.
— Jane Campbell. É casada e infiel. Não é o que você está procurando.
— Certo. Você é quem sabe.
Eles procuraram uma mesa não muito afastada do círculo dos
frequentadores e ali se acomodaram depois de se livrar dos agasalhos.
Marjorie notou que Christopher havia tomado banho e trocado de roupa.
Usava agora sob o paletó um colete cor de vinho sobre a camisa branca social e calça
preta. Sapatos de couro fino substituíam as botas de montaria. Parecia tão à vontade
quanto no correio, com seu traje de fazendeiro.
O garçom se aproximou com os cardápios e Christopher pediu uma cerveja
escura, amarga, com alto teor alcoólico, enquanto Marjorie preferiu um vinho
branco suave.
— Você não me falou quase nada a seu respeito — ele disse assim que o
garçom se afastou da mesa.
— Minha vida é uma rotina trabalhosa na pequena Va-lentine. Mas não me
aborreço porque leio muito e ouço música o tempo todo — ela resumiu.
— E seus pais... Como são... O que fazem?
— Minha mãe aposentou-se no mesmo posto que ocupo na agência do
correio. É esotérica e leva seus estudos muito a sério. Meu pai está em vias de se
aposentar na companhia telefónica. Passa todo o tempo disponível cuidando do
jardim e de uma coleção de selos que é seu orgulho. Tenho também uma irmã mais
velha, Lysandra, que mora em Nova York.
Ele sorriu com simpatia.

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— E por que você não se casou?
— Não sei. Mas creio que a pessoa certa ainda não apareceu em minha vida.
— As opções não são muitas em uma cidade pequena como Valentine — ele
comentou.
— Aí é que você se engana, Christopher Easterbrook. Neste "pequeno
hospício", como costumamos chamar carinhosamente a cidade, temos de tudo o que
você pode imaginar. Valentine é um universo em miniatura. E se não bastassem os
moradores, temos também os turistas, que invadem a cidade diversas vezes no ano.
Absortos na conversa, os dois não notaram a chegada de um grupo que
depois da troca habitual de cumprimentos no balcão foi em direção à mesa onde se
encontravam.
— Marjorie, querida... Que novidade vê-la por aqui!
— Olá, Frank. Vejo que está bem acompanhado — ela respondeu.
— Consegui arrastar Susanne de suas eternas traduções.
E junto com ela Rose e Paul, que estavam fazendo exatamente nada.
— Oh... não é bem assim, Frank — protestou Rose. — Paul e eu estávamos
planejando o que fazer no próximo domingo.
— Pessoal... deixem-me apresentar-lhes Christopher Easterbrook, que acaba
de chegar na cidade.
As apresentações foram feitas e todos sentaram-se em torno da mesa. O
garçom que trazia as bebidas de Marjorie e Christopher anotou o pedido dos
recém-chegados.
— E onde mora, sr. Easterbrook? — perguntou Susanne com evidente
interesse.
— A pouco mais de trinta quilómetros daqui, a oeste. Mas pode me chamar
de Christopher.
A voz dele descera um tom e se amaciara ao dirigir-se à bela morena que se
sentara a seu lado, ignorando totalmente o acompanhante que Marjorie chamara de
Frank.
— Eu conheço bem esta região e não sei de nenhuma cidade trinta
quilômetros a oeste de Valentine — ela retrucou aproximando-se mais de
Christopher.
— Não se trata de uma cidade e sim de uma fazenda — ele explicou.
— Quer dizer que mora sozinho no meio do nada? — Susanne arqueou as
sobrancelhas, esbanjando seu charme.
— Não é bem assim. — Christopher parecia estar se divertindo com a
situação. — Tenho uma governanta que cuida da casa e atende aos empregados. Tem
também os peões, o gado, e... recebo visitas, ocasionalmente.
— Então deve ser uma bela fazenda... Gostaria de conhecê-la.
Os outros quatro ocupantes da mesa, inclusive Marjorie, trocaram olhares
irónicos e zombeteiros. Susanne atacava uma vez mais com a rapidez conhecida por
todos.
— Bem... acho que... — começou Christopher.
Antes que ele se comprometesse com um convite a Susy, Marjorie interferiu
com precisão:
— Conte-nos sobre o método que usa na criação do gado em sua fazenda,
Christopher.
— É um processo misto... Semi-confinamento, com pastagens rotativas —

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disse apressadamente, ansioso para retomar a conversa com Susy.
Maldosamente, Frank estendeu-se sobre o assunto:
— Pelo que ouço dizer, a tecnologia não é muito desenvolvida em nosso
Estado, na criação bovina.
— Aí é que você se engana. Temos conseguido resultados surpreendentes...
Christopher fora fisgado por Frank para um assunto dó qual gostava e sobre
o qual entendia profundamente, pensou Marjorie, anotando mentalmente um ponto
a favor de Frank. A preguiça mental de Susy nunca lhe permitia uma segunda
tentativa. Ela nunca insistia.
Um pouco mais à vontade, Marjorie sorveu o vinho branco com prazer.

CAPÍTULO III

Christopher e Cupido Fazem um Acordo

Marjorie e Christopher ficaram no saloon até tarde da noite. O jantar foi


excelente, começando com uma sopa de ervilhas frescas, depois contrafilé com arroz
branco e batatas coradas, e como sobremesa, doce de leite e morangos em calda.
Marjorie comia com moderação, sem parecer afetada. Tinha um apetite saudável e
equilibrado, de alguém com boa disposição e saúde, notou Christopher com agrado.
Irritava-se com mulheres com apetite de passarinho, beliscando a comida como se
tudo fosse prejudicial à saúde. Sabia por experiência própria que eram essas que ao
chegar em casa devoravam uma caixa de bombons em frente à televisão e depois
tomavam três ou quatro drágeas de complementos vitamínicos, para tentar compen-
sar o desequilíbrio alimentar.
— Você come bem. Cheguei a temer que fosse vegetariana ou macrobiótica —
ele disse por fim.
Ela riu do comentário antes de responder:
— Já tive minha fase naturalista e aprendi muito com a experiência. Hoje sei
que, para uma pessoa que goza de boa saúde, basta seguir os instintos... ouvir a voz
do corpo. Ele sabe do que precisa para funcionar bem.
— E o que a voz do seu corpo diz deste jantar? — ele provocou.
— Que exagerei na carne vermelha e que, amanhã, não vou ingerir nenhum
tipo de proteína animal no almoço.
— Simples assim?
— Equilíbrio, meu caro. — Ela sorriu, encantadora. — Equilíbrio e bom
senso.
— O que posso dizer é que parece estar funcionando muito bem em você. —
Ele olhou o corpo de Marjorie com evidente admiração.
— Obrigada — ela respondeu sem nenhum constrangimento. — E você...
Como é sua alimentação diária?
— Deixo a cargo de Murgatroyd, minha governanta. Mas posso lhe adiantar
que não sou difícil de agradar. Qualquer prato, preparado com capricho, me cai
bem.
- Eu imaginava mais ou menos isso. E aparentemente está funcionando
muito bem com você — ela devolveu a frase e a avaliação que recebera pouco antes,
exagerando na intenção sensual.

Projeto Revisoras - 12
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O resultado foi extremamente cómico e Christopher deixou-se levar por um
riso franco e bem-humorado.
O café foi servido para ambos e foi então que ele comentou:
— Fiquei surpreso com a beleza das mulheres de Valentine. Pela amostra que
tive hoje posso imaginar o resto.
— A mistura do sangue irlandês com o alemão e o inglês tem resultados
surpreendentes — foi o único comentário de Marjorie.
— Mas notei também que você não tentou facilitar nenhuma aproximação
possível para mim. Por quê?
— Não eram as pessoas certas.
— E como sabe?
— Eu sei e basta. Vai confiar ou não?
Ele estirou as longas pernas sob a mesa e endireitou os ombros,
sacudindo-os levemente.
— Não tenho muita escolha, não é verdade?
— Isso é com você — ela respondeu com firmeza.
— Bem... você deve saber o que está fazendo.
— Sem dúvida. Agora, se não se importa, gostaria de ir para casa. Foi uma
noite muito agradável, mas tenho de acordar cedo.
— É claro.
Christopher fez um sinal para chamar o garçom e se encarregou da conta.
Logo depois saíam do saloon para o frio cortante da noite.
— Sua casa fica distante do centro? — ele perguntou.
— Bastante. Moro em uma chácara ao sul da cidade.
— Então é melhor pegarmos o carro que deixei em frente ao hotel.
— Como quiser — ela concordou.
Novamente Christopher ofereceu-lhe o braço e, aconchegados um ao outro,
venceram os poucos quarteirões que os separavam do hotel.
O carro de Christopher era um seda luxuoso, espaçoso e confortável, com
bancos de couro e aquecimento interno. Acomodada no banco do passageiro,
Marjorie deixou-se relaxar quando a potente máquina deslizou pelo asfalto frio.
Christopher sintonizou uma estação de rádio que transmitia um programa
de jazz tradicional.
— Você diz que ouve música o tempo todo — ele lembrou. — Do que gosta
particularmente?
— De bluesjazz, country... todos os gêneros. O importante é a música ser
feita com paixão... com inspiração verdadeira, que fale dos sentimentos humanos...
— Profundo — ele admitiu. — Mas sua visão parece definir você como uma
pessoa romântica.
— E de fato sou. Mas não daquele romantismo apelativo que quer manipular
o sentimento das pessoas.
— Eu sei o que você quer dizer. Mas é muito difícil separar o que é um
sentimento verdadeiro do exagero emocional de quem se entrega ao dramático — ele
colocou.
— O drama é uma consequência natural da vida.
A conversa entre os dois prosseguiu animada dentro do veículo aquecido,
onde a música permeava as palavras, enquanto os faróis potentes iluminavam a
desolada paisagem de inverno. Marjorie estava surpresa com a clareza de raciocínio

Projeto Revisoras - 13
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de Christopher, embora não concordasse com algumas de suas conclusões. Mas
compreendia que o dia-a-dia em uma fazenda de gado o obrigava a um realismo
prático sobre questões fundamentais como o lucro e a sobrevivência.
— Agora você deve tomar a pista à direita. Está vendo aquele chalé? É lá que
eu moro.
— Seus pais dormem cedo?
— Sim. Mas por que pergunta?
— Bem... eles podem estar preocupados com sua demora.
— Eu moro sozinha, Chris. Desde que minha mãe se aposentou, meus pais
moram na cidade.
— Desculpe, Marjorie... Não me interprete mal, mas prefiro ser chamado de
Christopher. O apelido Chris me remete a lembranças não muito... agradáveis.
— Oh, me perdoe... eu...
— Não, não, sou eu que peço desculpas —- ele a interrompeu. — É natural as
pessoas me chamarem de Chris, mas... deixe para lá. — Ele apressou-se a retomar o
assunto da conversa: — Você estava dizendo que mora sozinha, desde que sua mãe
se aposentou. Não tem medo de viver assim isolada?
— Não. Por que teria?
— Não sei... Existe muita maldade nesse mundo.
— Tenho vizinhos próximos, que ouvirão o menor grito meu e que se
preocupam comigo. Além disso tenho telefone e uma cadela, que é a docilidade
sobre quatro patas, desde que não mexam comigo.
— Assim me parece melhor.
Ela o olhou com curiosidade antes de perguntar:
— Você chegou a se preocupar realmente com minha segurança?
— Sim. De repente você se tornou uma pessoa importante para mim.
— Por minha utilidade como cupido em sua procura por uma esposa...
— Digamos que sim — Christopher desconversou, estacionando em frente ao
gracioso chalé. — E por falar nisso, você não se comprometeu verdadeiramente com
o caso.
— Você notou, é?
— Claro.
— Estava estudando-o.
— E a que conclusão chegou?
— Eu vou ajudá-lo — ela disse sem esforço.
— Otimo — ele exclamou aliviado.
— Mas ouça bem, Christopher... não quero que me apresse. Eu não reajo
bem sob pressão e detesto cobranças.
— Como você quiser. Quem está pedindo um favor sou eu...
— Que bom que entende assim.
— Então precisamos selar esse acordo. — Ele voltou-se para Marjorie e,
enlaçando-a com o braço direito, beijou-a nos lábios.
Foi um beijo agradável, quente e, sobretudo, compartilhado.
Para sua própria surpresa, Marjorie sentiu uma extrema naturalidade
naquele gesto inesperado de Christopher. O que não lhe ocorria era analisar a
intensidade do beijo e o quanto estava gostando. Mas houve um momento em que se
perguntou o que realmente estava acontecendo. Aquele homem charmoso e atraente
era um completo desconhecido que pedira seu auxílio para resolver um caso

Projeto Revisoras - 14
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particular, e não seu namorado!
Controlando-se com dificuldade, ela o afastou, dizendo um tanto sôfrega:
— Creio que já demonstrou gratidão suficiente, Christopher Easterbrook.
— Ainda tenho muito mais gratidão aqui dentro de mim — ele respondeu
com bom humor.
— Guarde-a para uma outra ocasião. — Marjorie fez menção de abrir a porta
do carro.
— Você não me deu o número do seu telefone — ele disse baixinho.
— Nem você me deu o seu.
— Isso é fácil de ser corrigido. — Christopher abriu o porta-luvas e de lá
tirou um bloco de anotações. — Você primeiro. — E entregou o bloco a ela,
acendendo a luz do teto.
— No horário comercial estarei no correio. — Ela anotou o número. —
Depois, em casa. Aqui estão os dois telefones — disse, devolvendo o bloco.
Christopher escolheu uma página em branco e rabiscou dois números.
— O primeiro é da fazenda e o segundo meu celular. — Arrancando a folha,
estendeu-a para ela.
— Ótimo. — Marjorie passou os olhos sobre o papel, dobrando-o e
colocando-o no bolso do casaco. — Vai ficar em Valentine esta noite?
— Não creio. Amanhã será um dia cheio na fazenda...
— Certo. Então, boa noite, Christopher. Foi bom conhecer você.
— Digo o mesmo, Marjorie. — Ele tentou beijá-la mais uma vez, mas ela se
esquivou descendo do carro.
— Eu ligo se tiver novidades — ela disse do lado de fora.
— Faça isso. Estarei aguardando.
Ela bateu a porta e correu até a varanda do chalé, iluminada pelos faróis do
carro.
Com um suspiro ele esperou que ela abrisse a porta e entrasse antes de
arrancar.
— Que mulher surpreendente — disse baixinho enquanto punha o carro em
movimento.
Três dias haviam se passado desde que Christopher voltara de Valentine
para a fazenda. O movimento de inverno para os criadores de gado daquela região
consistia na manutenção de grande parte do rebanho em confinamento. As
pastagens estavam queimadas pela geada e cobertas pela neve em vários pontos, e
pouco alimento podiam oferecer ao gado. Mesmo assim, um grande contingente
ainda pastava o que restara de capim, caminhando longos trechos à procura de
comida. Era uma época de recolhimento na qual se planejava o futuro e reavaliava o
passado.
Christopher conhecia bem os invernos do Kansas e por isso planejara se
casar nessa época. Havia tempo de sobra para a adaptação e conhecimento mútuo
de um casal em lua-de-mel. Mas nada correra como havia planejado. Moira
McPherson o deixara desestruturado com a súbita deserção em favor de um pacato
dono de armazém em Valentine. Quem diria!
Sentado em sua poltrona predileta, em frente à televisão, Christopher
manuseava as cartas que recebera de Moira, procurando, numa leitura atenta,
descobrir sinais do que acabara por acontecer poucos dias atrás. Sem sucesso. Nada
naquelas mensagens esclareciam o sucedido.

Projeto Revisoras - 15
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Lentamente, caminhou até a lareira ainda quente do fogo da noite anterior e,
acendendo um fósforo, ateou fogo às folhas finas, aos envelopes coloridos por
carimbos, e contemplou sem nenhum sentimento de pesar o papel arder em suas
mãos antes de ser atirado sobre as cinzas.
Era um capítulo encerrado em sua vida e o simbolisnio do gesto que fizera
confirmava isto.
Caminhando até a cozinha, serviu-se de café e depois saiu para o pátio,
olhando o céu cor de chumbo, que se abria em alguns trechos. O dia iria esquentar
um pouco, ele julgou. O suficiente para uma boa cavalgada. Mas naquela manhã
Christopher não desejava a companhia de nenhum de seus peões, nem mesmo do
capataz, Rick, que considerava um amigo. Também não queria a solidão dos pastos
gelados e a visão do gado em desanimado movimento.
Uma súbita vontade de rever Marjorie o dominou como um convite
irresistível. A imagem daquela jovem de cabelos avermelhados acendia em seu peito
uma chama de prazer que aquecia. Então Christopher sorriu ao lembrar-se do beijo
que roubara da linda atendente do correio de Valentine. Que lábios macios e
doces...
Girando nos calcanhares, ele entrou pela cozinha e, chegando à sala,
caminhou até o telefone. Ainda era muito cedo para que Marjorie estivesse no
trabalho, ele considerou. Então discou o outro número, e aguardou, com uma
agradável sensação de expectativa, que ela atendesse.
Em seu gracioso chalé, Marjorie preparava o desjejum com o rádio ligado.
Cantarolava distraidamente os versos de uma canção que não tinha consciência de
saber. Eram versos tolos e açucarados que condiziam com a manhã indecisa onde o
sol não conseguia vencer a barragem das nuvens, clareando mas não aquecendo
suficientemente a terra.
Ela estava alegre e não se perguntava o motivo. O dia prometia a rotina de
sempre, o que não lhe desagradava. Gostava de Valentine, de seu trabalho no
correio, dos amigos, da família, de seu pequeno chalé... de sua vida, enfim. Vinte e
cinco anos e o mundo todo oferecendo-se como uma fruta sumarenta a ser mordida.
Mas existia algo atrás daquela benevolência e alegria, sim, ela se confessou com um
sorriso maroto. E o beijo trocado com aquele fazendeiro surpreendente tinha muito
a ver com isso, concluiu com honestidade. Conhecer Christopher Easterbrook havia
dado uma nova dimensão aos fatos corriqueiros de sua vida. Não importava o fato
de que ele procurava uma esposa e que ela tivesse se comprometido em ajudá-lo
naquela busca. O que contava era a emoção que sentira ao lado daquele homem,
como se as vibrações do planeta se houvessem condensado nos gestos, na voz e na
presença dele.
O beijo... Ah... Aquele beijo, mais roubado que consentido...
Nada na vida emocional de Marjorie a havia preparado para o que sentira ao
ser beijada por Christopher Easterbrook. O namoro de dois anos com Roger, depois
que se formara, havia sido uma continuação da amizade que cultivavam desde a
infância.
Roger era amoroso, honesto, calmo... daria um bom marido sem dúvida
alguma. Mas Marjorie, sem saber, desejava o sol. Não aquele que se escondia,
amarelado, atrás das nuvens de inverno. E sim, o sol de pleno verão, mais ainda, o
sol que incendeia a pele e faz o corpo desejar um mergulho em águas geladas de uma
grande cachoeira. E Christopher lhe mostrara que isso existia, que aquele anseio,

Projeto Revisoras - 16
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que adivinhava sem conhecer, tinha fundamento na realidade. Era real. Ela o sentira
no formigamento da pele, na revolução química que ocorrera em seu íntimo, como
se uma grande fogueira se acendesse do nada, iluminando recantos desconhecidos
no enorme vazio de seu mundo.
Só isso bastava, ela disse a si mesma em profundo reconhecimento. Não
fazia planos para um futuro glorioso, não acalentava sonhos impossíveis e projetos
inviáveis. Bastava a consciência de saber-se capaz de sentir aquelas emoções
avassaladoras que os livros descreviam em misteriosos capítulos, que os versos
cantados repetiam em cada melodia...
Um latido agudo fez com que Marjorie voltasse à realidade. Bella, a pastora
belga, de longos pêlos negros, a fitava pela tela da porta da cozinha. Seus olhos
castanhos, muito doces, pareciam sorrir para a dona com aquele amor desmedido
que só os cães sabem ter.
— Parece que atrasei seu desjejum, Bella — ela disse com carinho.
Pegando uma caixa de flocos de milho, Marjorie despejou uma porção numa
travessa de louça, colocando leite morno por cima. Depois cortou uma grande fatia
de mamão, tirando a casca e deixando as sementes e colocou em outro recipiente.
Faltava agora a carne moída, misturada à farinha de rósea, que ela preparou num
instante.
— Pronto, Bella. Sua primeira refeição do dia, do jeito que você gosta.
Ela colocou as três vasilhas no chão e foi abrir a porta de tela, deixando a
cachorra entrar alegremente na cozinha. Então o telefone tocou na sala e ela correu
para atender.
Ninguém ligava àquela hora da manhã, exceto sua mãe, e por isso ela disse
ao levantar o receptor:
— Não me esqueci das sementes de rododendro que prometi lhe levar. Pode
ficar tranquila e bom dia para você também.
— Marjorie... é Christopher. Que raio de coisa é isso de rododendro?

CAPITULO V

Christopher Conversa com Murgatroyd


Você viu o céu hoje? A pergunta de Christopher soou estranha aos ouvidos
de Marjorie, ainda não refeita da surpresa pelo telefonema inesperado. . — Sim...
está cinzento.
— Totalmente cinzento? — ele insistiu.
— Não. Há algumas partes azuis em meio às nuvens.
— Exato. Isto significa que teremos um dia de sol, se o vento permanecer
constante.
— Ótimo. Fico feliz em ouvir isso. Mas não sabia que você se interessava por
previsão meteorológica.
— Não particularmente... Acontece que amanhã é sábado e você não
trabalha. Estou certo?
— Quase. Tenho que ir à agência do correio para receber e despachar a
correspondência.
— E você estará livre a que horas?

Projeto Revisoras - 17
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— Entre dez e dez e meia. Mas a que vem toda essa conversa, Christopher?
Estou ficando curiosa.
— Estava pensando em fazer uma cavalgada com você amanhã. O que acha
do programa?
— A princípio, ótimo. Mas como faríamos isso? Eu não tenho montaria.
— Não se preocupe, cuidarei de tudo. Tenho os animais e o transporte, que
poderia deixar estacionado em frente a seu chalé.
— Então pretende que cavalguemos ao redor de Valentine?
— Mais ou menos isso. Conheço bem a região e as estradas secundárias
municipais. Então... o que me diz?
Havia uma ansiedade explícita na pergunta, que encantou Marjorie mais que
a ideia do programa em si. Christopher queria estar com ela e isso a deixava feliz.
Por outro lado, fazia muito tempo que não cavalgava e podia prever como estaria seu
corpo no domingo, depois de horas sobre uma sela.
— Não sei, Christopher. Estou sem prática — confessou por fim.
— Já previa isso e vou reservar para você uma égua dócil, com passo de
pluma. Confie em mim.
Era quase impossível resistir àquele apelo direto e ela cedeu:
— Está bem. Vou tentar estar em casa às dez e meia para não sairmos muito
tarde.
— Excelente. Estarei aí nesse horário, Marjorie.
— Então... até amanhã, Christopher.
— Até.
Marjorie desligou o telefone e caminhou pela sala, deten-do-se em frente ao
grande espelho de cristal sobre a lareira. A imagem ali refletida era, sem dúvida, a de
uma mulher feliz. Os olhos brilhantes, as faces afogueadas... Que poder estranho
tinha aquele homem de fazê-la pulsar e vibrar, apenas com um simples telefonema,
constatou maravilhada. Mas estava deixando-se levar longe demais pelas emoções,
lembrou a si mesma. Era preciso refrear a imaginação.
Christopher Easterbrook era apenas mais um cliente potencial para seu dom
de cupido. E como cupido, cabia a ela arranjar uma parceira ideal para aquele
homem e não se apaixonar por ele.
A triste realidade apagou momentaneamente o brilho dos olhos cor de mel.
Mas a vida pulsava forte e o dia estava apenas começando. Ela reagiu voltando a
cantar.
Pouco depois estava sob o chuveiro e, quinze minutos mais tarde, vestia-se
para o trabalho. O telefone tocou uma vez mais, acendendo uma esperança tola no
coração de Marjorie. Seria Christopher que esquecera de combinar algum outro
detalhe da cavalgada?, ela se perguntou correndo para atender. Mas não era
Christopher e sim sua mãe, que mal se identificou antes de dizer:
— Não vá esquecer minhas sementes de rododendro...
O dia se arrastava monótono na fazenda de Christopher Easterbrook que,
desatento, executava as tarefas necessárias, automaticamente. Quando Murgatroyd,
a governanta, veio chamá-lo para o almoço, estava sem apetite, inquieto, irritado.
Mesmo assim lavou as mãos e foi sentar-se à mesa. Não queria contrariar a boa
mulher. Mesmo assim não foi possível esconder o desinteresse pela comida. Tudo
lhe parecia sem sabor.
— O que está havendo com você, Christopher? — perguntou a governanta

Projeto Revisoras - 18
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por fim.
— Comigo? Nada, ora... Estou sem fome.
— Puré de batata e lombo recheado sempre foi um dos pratos que você mais
gosta. E até agora você só remexeu a comida com o garfo.
— E você não tem mais nada a fazer além de me vigiar? — ele provocou.
— Tenho. Mas não vou. — Ela puxou uma cadeira e sentou-se do outro lado
da mesa, com a intimidade que os anos de serviço lhe permitiam ousar. — Vamos
lá... comece a falar.
— Meu Deus... você realmente sabe ser impertinente quando quer.
— Pensa que não vi toda a movimentação dos últimos dias? Você cantando
no chuveiro, ligando para Las Vegas, lendo e escrevendo cartas... todo animado.
— E daí? Um homem não pode estar disposto e contente?
— Pode e deve. Mas depois de se empetecar todo e arrumar a mala com suas
melhores roupas, foi para Valentine e voltou murcho, com cara de quem se deu mal.
O que foi que aconteceu... A namorada lhe deu o fora?
— Mais ou menos isso — ele resmungou.
— Vamos lá, coragem. Conte tudo para a velha Murga-troyd. Um homem
precisa desabafar de vez em quando.
Christopher começou a rir olhando a governanta com carinho.
— Você não perde nada, não é mesmo?
— Tenho de adivinhar, já que o senhor ficou muito importante para me
contar o que se passa em sua vida.
— Então é isso... Você está morrendo de curiosidade e com vergonha de
perguntar o que está acontecendo. E então finge essa preocupação toda...
— Mas olhe só que atrevimento... Está por acaso querendo insinuar que sou
bisbilhoteira?
— Não, mas penso que se não lhe contar o que quer saber, vai explodir de
curiosidade.
— Preocupação... é isso — afirmou ela com dignidade.
— Pois bem... o que quer saber?
— O que aconteceu com a loira da fotografia? Vocês iam se encontrar em
Valentine, não é mesmo?
— íamos. E de fato nos encontramos.
— E por que ela não veio com você?
— Porque mudou de ideia no último minuto.
— Mas vocês não iam se casar? — perguntou Murgatroyd espantada.
— Era essa a ideia.
— Você está querendo me dizer que a loira de Chicago simplesmente lhe deu
o fora?
— Sim.
— Essa é difícil de acreditar! O que você fez para que ela o rejeitasse?
— Cheguei quinze minutos atrasado ao encontro no correio de Valentine. —
Christopher sorria do espanto de Murgatroyd.
— E o que mais?
— Ela estava conversando com o dono do armazém que é viúvo e tem três
filhas pequenas. Parece que se entenderam e Moira resolveu mudar de noivo.
— Mas que tipo de mulher faria uma coisa dessas... — ela comentou
perplexa. — Se fosse uma interesseira, não iria querer cuidar de uma penca de

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crianças desconhecidas. Quantos anos tem o dono do armazém?
— Uns quarenta.
— Não faz sentido. Você é mais moço e pode ser considerado um homem
rico, pelas terras e cabeças de gado que tem. Sem falar que a natureza não foi
mesquinha com você e lhe deu uma aparência melhor do que à maioria dos homens.
Eu não entendo. Alguma coisa está muito errada nessa história toda.
— Eu andei pensando um bocado nesses últimos dias e acho que entendi.
— Então, por favor, me explique. Para mim é um mistério.
— O que você sabe a respeito de Moira?
— Ora... muito pouco. Sei que é de Chicago, tem mais de trinta anos e é
muito bonita. Acompanhei a chegada das cartas e suas respostas. Vi a fotografia dela
sobre a mesa do escritório e pelas suas atitudes achei que tudo corria muito bem.
— O que você não sabe, Murgatroyd, é que Moira não pode ter filhos...
— Como?
— Isso mesmo que você ouviu. Ela é estéril.
— E mesmo assim você ia se casar com ela?
— Era um dos principais motivos.
— Você nunca me disse que não queria filhos. Eu deveria ter previsto... Com
o pai que teve...
— Deixe o velho descansar em paz. Ele teve sua dose de sofrimento.
— E causou muito mais. Sua mãe conseguiu escapar, não sei como.
— Deixando-me para trás — Christopher disse com tristeza na voz.
— Você sabe muito bem que ela não teve alternativa. Seu pai jamais
permitiria que ela o levasse junto.
— Essas são histórias antigas e dolorosas, Murgatroyd. O melhor a se fazer
com elas é esquecer.
— Mas as marcas ficam, Christopher, e aparecem depois, durante toda a
nossa existência.
— Você sabe o que penso a respeito. Não dou muita importância a essas
histórias de psicanálise, depressões e traumas. A vida é o que é. Todo mundo tem
problemas, ou marcas, como você prefere dizer.
— Pois deveria dar importância. Você nunca se perguntou por que não quer
ter filhos?
— A resposta é fácil. Sou um sujeito que gosta de sossego. Tenho trinta e
cinco anos e não quero um bando de crianças impossíveis e barulhentas pondo a
casa de pernas para o ar e infernizando a minha vida.
— É uma boa explicação. Pena que não seja verdade.
— E qual é a verdade, Murgatroyd... Existe uma? Algo no tom de voz de
Christopher conteve o ímpeto da velha governanta. O terreno era delicado, mas ela
não podia retroceder. E assim prosseguiu temerosamente:
— A verdade, Christopher, é que você teve uma infância infeliz e tem medo
de não saber dar a seus filhos nada mais do que recebeu.
Ao contrário do que esperava Murgatroyd, a reação de Christopher foi calma
e equilibrada. Sorrindo tristemente, ele falou:
— Existe uma certa verdade em suas palavras, Murgatroyd. Mas isso não
muda nada. Seja por qual for o motivo, não pretendo ter filhos.
— O tempo faz coisas estranhas na vida da gente, Christopher — ela disse
filosoficamente.

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— Eu sei. E não posso influir em nada nesse assunto. Mas nem por isso vou
viver na escuridão que a incompreensão trás.
— Do que você está falando?
— De Moira e sua decisão em casar-se com outro.
— Ela sabia que você não queria ter filhos, não é verdade?
— Sim. Fiz questão de deixar isso bem claro, julgando que ela se sentiria
aliviada, já que não podia tê-los. Pensei que nossa união seria uma ótima solução
para ambos.
— Mas não era bem isso o que ela queria — concluiu a governanta. — Talvez
se vocês tivessem considerado a ado-ção, o resultado tivesse sido outro.
— Isso jamais me passou pela cabeça. E para ser bem sincero, não creio que
concordaria.
— Eu entendo.
— Assim, fica bem claro o porquê da atitude de Moira. O pacato cidadão de
Valentine tem uma coisa que ela queria e não podia ter, mesmo comigo: filhos. E
outra coisa, sutil, mas não menos importante... O dono do armazém me pareceu um
homem conformado com sua existência. Um pai dedicado, tranquilo e sereno, que
dará a ela uma vida calma e sem sobressaltos.
— Fico feliz por você pensar assim. Foi preciso muita maturidade e clareza
de raciocínio para chegar a essa conclusão. Estou surpresa e orgulhosa de você.
— Mas não menos preocupada... certo? — ele sorriu, provocando-a.
— Agora quem é que está bisbilhotando a mente alheia?
— Fique tranquila, Murgatroyd. Depois do inverno vem a primavera.
— Para os que o sobrevivem, filho — retrucou ela de maneira misteriosa.
Christopher ergueu-se da mesa e foi até o fogão servir-se de café. Depois saiu
para o pátio e caminhou até o estábulo. Precisava de alguma atividade física para
aquietar a mente,e dar de comer aos animais parecia a tarefa mais indicada a fazer
naquela hora.
Os fardos de feno estavam empilhados no fundo do celeiro, e os sacos de
ração, no primeiro piso de madeira. Christopher transportou os alimentos para as
baias e entregou-se à tarefa proposta sem nenhuma pressa, sentindo um verdadeiro
prazer no que fazia.
O tempo escoava tranquilamente na semi obscuridade do estábulo. Cada
animal merecia do dono um cuidado especial e um olhar atento, minucioso.
Cerca de uma hora mais tarde Christopher conseguira se refazer das
recordações dolorosas que a conversa com Mur-gatroyd havia ressuscitado. Agora
podia pensar com calma o que fazer na sequência dos acontecimentos. E nada lhe
parecia mais prazeroso e gratificante do que a cavalgada com Marjorie, combinada
para o dia seguinte. Com aquela perspectiva em mente, foi vistoriar os cavalos que
pretendia levar a Valentine. Para si mesmo, Christopher pensava montar um
quarto-de-milha de cinco anos de idade, que estava precisando de exercício. Era um
animal fogoso, com uma massa muscular impressionante, que se ressentia da
inatividade obrigatória imposta pelo inverno. Para Marjorie, não havia o que
pensar; Red Flower, uma égua árabe, jovem e muito dócil, era a escolha perfeita.
Por um longo tempo ele escovou os animais escolhidos, e depois de vistoriar
os arreios foi examinar o reboque, onde os cavalos seriam transportados. Satisfeito,
deu o trabalho por encerrado e voltou para casa a passos lentos.
A trinta quilómetros da fazenda de Christopher Easter-brook, Marjorie

Projeto Revisoras - 21
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terminava de fechar a contabilidade da semana. O movimento fora normal, sem
surpresas. Ela enviou o relatório, por fax, para a central em Topeka e depois fechou
a agência. Apressada, caminhou até a oficina de Frederick Cartwright, onde seu
carro estava encalhado havia quase duas semanas, para reparos. Era um velho
Chevrolet, do
tipo popular e econômico. Marjorie tinha um carinho todo especial pelo
automóvel, já que o recebera de presente da mãe quando completara vinte e um
anos de idade.
O grande galpão onde Frederick tinha sua oficina sempre a deprimia um
pouco. Os carros quebrados pareciam fósseis em um museu arqueológico, vistos
assim parados, na luz insuficiente, que provinha de estreitos vitrais abertos no alto,
perto do teto. Os capôs abertos, os carros sobre cavaletes, sem portas ou rodas
aumentavam aquela sensação... Parecia que alguns haviam chegado ali para ficar,
como se a oficina fosse uma espécie de cemitério de máquinas.
Para grande surpresa e alívio de Marjorie, seu carro estava do lado de fora da
oficina, estacionado no meio fio, lavado e polido. Frederick veio a seu encontro com
a aparência de sempre: o macacão sujo de graxa com os bolsos descosturados e um
chumaço de estopa preso ao cinto.
— Como pode ver, Cupido, seu carro está pronto.
— Já não era sem tempo, Frederick. Quase duas semanas!
— Tive de mandar buscar as peças na capital. Você sabe...
— Tudo bem. O importante é que está pronto. Não aguentava mais vir para o
trabalho no caminhão do leite e voltar no ônibus escolar.
Ele riu divertido e sem pressa.
— Quando você era menina corria essa distância sem despentear os cabelos.
— Mas isso já faz tempo, Frederick. — Ela também sorriu da lembrança
antiga. — Agora sou uma mulher adulta e responsável.
— E bela, com todo o respeito.
— Obrigada — disse ela meio sem jeito.
— Só uma coisa eu não entendo, Cupido... Você casou metade da população
de Valentine... Por que não casou a si mesma?
— Não encontrei a pessoa certa. Eu acho.
— Está certo. O menino dos Dylan... Como se chama mesmo?
— Roger — ela citou o nome de seu ex-namorado.
— Pois é... Roger era lerdo demais... um rapaz sem pulso firme. Não teria
dado certo mesmo. Mas existem tantos outros por aí que dariam um olho para se
amarrar com você.
Marjorie respirou fundo e abriu a porta do carro, examinando-o por dentro
antes de responder:
— Sabe o que acontece, Frederick? Eu detesto ficar amarrada e não gosto de
caolhos.
Enquanto ele gargalhava com a resposta inesperada, ela entrou no carro e
deu a partida.
— Ei, Cupido... não está esquecendo nada?
Ele estendeu a mão direita para ela, esfregando o polegar no indicador.
— O pagamento pelo conserto? Daqui a duas semanas, Frederick. Você sabe,
meu salário vem da capital...
E, com um leve rangido dos pneus, ela arrancou, deixando Frederick parado

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na calçada, coçando a cabeça.

O sábado amanheceu cinzento, e quem não conhecesse o clima naquela


região do Kan-sas, diria que assim permaneceria pelo dia todo. Mas Chris-topher
estava tranquilo e tomou o café da manhã sossegadamente.
Murgatroyd, sempre atenta ao que se passava ao redor, viu com satisfação
que os ovos com bacon haviam desaparecido do prato que ela colocara na mesa. Não
sabia a que atribuir aquela mudança de ânimo, mas tudo parecia indicar que ele
havia superado o desapontamento pela tentativa frustrada de casamento.
Quando Christopher ligou o rádio e sintonizou uma estação que se dedicava
exclusivamente à música, ela sorriu, convencida de que a tempestade emocional se
afastara de todo.
— Murgatroyd... vou sair para uma cavalgada e não voltarei para o almoço —
ele avisou em determinado momento.
— Quer que lhe prepare algo para levar?
— Não havia pensado nisso. Mas seria uma boa ideia um lanche, com
biscoitos de polvilho, uma garrafa térmica com chá gelado, e torta de maçã.
— Vou fazer isso... Ah, sim... Johnnie Rydesdale esteve aqui, bem cedo, a sua
procura. Algo em relação ao setor onze. Não entendi muito bem o que ele quis dizer.
— Ele vai voltar?
— Às sete.
Christopher consultou o relógio na parede da cozinha e resolveu esperar o
administrador da fazenda, enquanto assistia ao noticiário rural na televisão. Tinha
tempo de sobra.
O programa de maior audiência no género, no Estado, trazia as notícias
esperadas: o preço do gado abaixava enquanto o da ração subia. Consequências da
estação.
Distraído, Christopher deixou-se ficar em sua poltrona preferida até que a
voz de Johnnie fez-se ouvir na cozinha. Murgatroyd o recebeu.
— Tome uma xícara de café, Johnnie. O patrão está na sala, vendo o
noticiário.
— Como ele está hoje?
— De bom humor.
— Tanto melhor. As notícias que trago não são boas.
Christopher sorriu ao ouvir a conversa dos dois na cozinha. Com seus anos
de experiência na lida da fazenda, sabia exatamente o que o administrador vinha lhe
dizer: que grande parte do gado do setor onze teria de entrar em regime de
confinamento, que não havia espaço nos estábulos para a vacas que iriam parir
naqueles dias, que a ração estava sendo consumida mais rapidamente e em maior
quantidade do que o previsto.
Assim, quando o administrador conseguiu deixar a cozinha, vindo em
direção à sala, ele desligou a tevê e foi ao seu encontro.
— Bom dia, Johnnie.
— Bom dia, Christopher.
— Vou embarcar duas montarias para uma cavalgada. Você poderia me dar
uma mão enquanto conversamos?
— É claro.
Os dois saíram em direção ao estábulo.

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Quando o relógio da cozinha marcava quinze minutos para as oito, a picape
da fazenda estacionou em frente à casa. Arrastava atrás de si um pequeno trailer de
dois compartimentos, onde se encontravam os cavalos. Murgatroyd foi ao encontro
de Christopher levando nas mãos um farnel com o lanche que preparara.
— Coloquei algumas frutas, queijo e figos em calda, além do que você pediu
— ela avisou.
— Ótimo, Murgatroyd, obrigado. Até mais tarde.
— Bom passeio, filho.
Ela ficou parada em frente à casa, vendo-o alcançar a estrada de terra que
dava acesso à pista asfaltada além da porteira. Só então notou que uma das duas
montarias que iam no trailer era a égua Red Flower, o xodó de Christopher, o animal
mais caro da fazenda.
A governanta sorriu com a agradável surpresa. O patrão sempre dizia que
aquela égua nascera para ser montada por uma linda mulher, de pouco peso e mãos
macias. Algo importante estava acontecendo, sem dúvida nenhuma, ela considerou.
Em Valentine, Marjorie resolvera tomar o café da manhã com os pais.
Verónica e Charles acordavam muito cedo e a receberam na mesa com alegres
interjeições.
— Pelo que fiquei sabendo, seu calhambeque finalmente ficou pronto —
gracejou o pai.
— Duas semanas de espera e voltou com o escapamento furado — ela
respondeu, curvando-se para beijá-lo. — Como está, papai?
— Bem. Um pouco de reumatismo, um pouco de insónia...
— Bastante mau humor... — completou Verónica, abrindo os braços para
aninhar a filha.
— E você, mamãe... melhorou da gripe?
— Coisa sem importância, filha. Sente-se e tome café co-nosco.
Marjorie acomodou-se entre os pais, na ponta da mesa, e serviu-se de suco
de laranja.
— Estou aliviada por poder contar com o carro de novo — ela comentou. —
Não aguentava mais ficar na dependência de caronas.
— Você poderia ter usado o carro de seu pai. Ele quase não sai da garagem.
— Eu sei, mamãe. Mas sempre que se empresta alguma coisa a alguém,
acontece um imprevisto. — Ela cortou uma fatia de bolo e a colocou em seu prato. —
É justamente quando se precisa daquilo que ficou sem utilidade por tanto tempo.
— Meu Deus, Marjorie! Você está se tornando terrivelmente racional —
disse Verónica.
— Para mim ela está certa — apoiou Charles. — Já estava na hora de alguém
nesta família ter um pouco de juízo.
— Lá vem você... — Verónica começou a protestar.
— A estufa está funcionando bem neste inverno, pai? — interrompeu
Marjorie, para evitar um princípio de discussão.
— Não muito. As orquídeas se ressentem da temperatura inadequada.
— Mas você não havia trocado o sistema de aquecimento?
— Troquei. Mas o problema é na calefação. Você quer ver como ficou depois
da reforma?
— E claro. Deixe-me terminar esta fatia de bolo e vou com você dar uma
olhada. — Ela voltou-se para a mãe. — Preciso falar com você antes de ir para o

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correio. Tem um tempo?
— Sem problema. Só vou sair lá pelas dez horas, para fazer umas compras.
Pouco depois, em companhia do pai, Marjorie caminhava pelo interior
aquecido da estufa. Era um prazer contemplar o trabalho minucioso do homem
dedicado as suas flores.
— Veja essa espécie que chegou da Guatemala no ano passado. E sua
primeira floração em nosso país.
Um longo cacho de flores azuladas pendia de um caule de bulbos verdes e
cinza, perfumando o ar ao redor com uma fragrância doce e penetrante.
— Que coisa mais linda, papai!
— Só floresce uma vez por ano, mesmo em seu meio natural. Aqui, é preciso
um cuidado extremo e muita sorte para que isso aconteça.
— Já fotografou?
— Que pergunta... Não só fotografei, como enviei para todos os amigos.
— Quanta dedicação, papai... Você merece o resultado.
— Essas plantas exóticas e delicadas, Marjorie, me fazem lembrar de certas
pessoas. — Ele parecia pensativo. — Sabe que bastaria uma hora exposta à
temperatura ambiente para que essa florescência desabasse completamente?
— Imagino que sim.
— Assim como essas plantas, certas pessoas precisam de cuidados especiais
para florescer.
— O que você está querendo me dizer, papai?
— Às vezes me preocupo com você, minha filha. Já está com vinte e cinco
anos e ainda não encontrou um parceiro que a fizesse desabrochar.
— Espere um pouco, papai... Você acha que sou uma pessoa infeliz ou
insatisfeita? — perguntou preocupada.
— Pelo contrário. Não existe ninguém mais alegre em Valentine — ele disse
com carinho.
— Então do que você está falando?
— Creio que de amor. De casamento, de uma família e filhos...
— Você sabe que é difícil encontrar a pessoa certa, papai.
— Sei. E às vezes penso que você deveria mudar de cidade... Ir para algum
lugar maior, conhecer pessoas diferentes...
Ela abraçou o pai com carinho e então disse:
— Fique tranquilo... No momento certo, a vida trará o que me cabe por
destino.
— Você acredita mesmo nisso, não é?
— Totalmente. De outro modo, talvez eu não fosse a pessoa alegre que você
vê na sua frente.
— Tomara que esteja certa, minha filha. Muitas vezes o tempo é cruel em sua
velocidade inexorável.
— Tenho certeza de que ele trabalha a meu favor. — Ela começou a cantar: —
O meu amor virá no vento... Quando a primavera chegar...
Pouco depois Marjorie deixou o pai cuidando das plantas na estufa e foi
reunir-se à mãe que a aguardava na sala.
— O que está havendo com papai? — perguntou ao entrar.
— Está se sentindo velho. Por quê?
— Parece preocupado com o fato de eu não ter me casado até agora. Ele

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comentou alguma coisa com você?
— Não sobre esse assunto. Mas anda telefonando para sua irmã em horas
tardias, assustando a pobrezinha...
— O que será que está havendo?
— Já lhe disse, é a idade — ela sentenciou.
— E você... não compartilha com ele da preocupação com meu estado civil?
— ela provocou.
— Por que eu faria tal coisa? E evidente que você só voltará a ter um
relacionamento amoroso com o homem com quem irá se casar. E não vai demorar
muito.
— Você fala disso com uma convicção...
— Eu sei e basta. Agora diga-me... Conheceu alguém interessante?
— Sim. Mas estou confusa com um problema.
— Do que se trata?
— Interferi sem querer num casamento arranjado por correspondência.
— Isso não é nada bom.
— A noiva desfez o compromisso e a esta altura deve estar cuidando dos
preparativos para o casamento com o outro, a quem a apresentei.
— Que confusão, minha filha!
— O pior é que o noivo desprezado exige que eu arrume uma. esposa para
ele.
— E você vai fazer isso?
— Estou tentando, mas é difícil.
— Por quê?
— Bem... A verdade é que Christopher não se afina com ninguém que eu
conheça. Ele é diferente...
— Então o rapaz se chama Christopher?
— Ele tem trinta e cinco anos. Não é um rapaz e sim, um homem — ela
esclareceu.
— Entendo. E o que você sente por ele?
— Uma grande atração.
— Como o mar pela lua?
— Não, não — ela protestou. — Como um alpinista pela montanha.
A sra. Swettenham riu balançando a cabeça.
— Acho que você está encrencada.
— Eu sei. Principalmente porque me sinto rompendo uma espécie de ética ao
me interessar por alguém que veio pedir minha ajuda.
— Compreendo. E o que pensa fazer?
— Deixar correr... Ver no que vai dar tudo isso — disse um tanto insegura. —
O que você acha?
— Você não tem muita escolha além de acreditar em si mesma. Vá em frente.
— Era o que imaginei que você fosse dizer.
— Esperava mais de mim?
— Francamente? Sim.
— Mas não vou interferir. Sua situação é delicada. Confie em si mesma e
tente esquecer essa bobagem de ética. Não faz sentido, nesse caso.
— Vou tentar. — Ela beijou a mãe no rosto. — Agora preciso ir. Obrigada,
mamãe.

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— Ora, filhinha...
Depois de sair da casa dos pais, Marjorie pegou seu carro e foi para a agência
do correio, onde permaneceu tempo suficiente para resolver os assuntos
necessários. Às dez horas deu por encerrado o trabalho e foi para casa. Estava feliz
por ter meia hora para se preparar para o encontro com Christopher. Mas ao
aproximar-se do chalé, avistou a imponente picape com o trailer, estacionada em
frente.
Christopher não estava à vista e o trailer estava vazio.
Intrigada, estacionou o carro na garagem e caminhou ao redor do chalé
procurando por ele. Ao fazer a volta na casa,Marjorie o avistou no quintal,
oferecendo água para dois dos mais formosos cavalos que tivera oportunidade de
ver na vida. Fascinada, ela se aproximou devagar. Christopher voltou-se ao ouvir
seus passos e um largo sorriso iluminou seu rosto de traços fortes.
— Olá, Marjorie. Venha conhecer Baloon e Red Flower. Ela retribuiu o
sorriso e, ignorando o quarto-de-milha, foi
diretamente até a égua árabe. Sem nenhum sinal de temor, acariciou o
pescoço do animal, que estremeceu levemente e depois abaixou a cabeça tentando
cheirá-la.
— Ela gostou de você.
— Christopher... Onde conseguiu essa formosura? — ela perguntou baixinho.
— E árabe, não é mesmo?
— Sim. Puro-sangue. Comprei-a em um leilão em Dálias no ano passado —
contou ele com indisfarçável orgulho.
— Que cabeça elegante... Que pernas... Deve voar num campo aberto!
— Não sabia que você entendia de cavalos.
— E não entendo. Só que é impossível viver nesta região e ignorá-los... Qual
é mesmo o nome dela?
— Red Flower.
— Apropriado para sua cor. Ela é mais que vermelha, é...
— Ruiva... como os reflexos do seu cabelo — ele completou. Marjorie sentiu
uma intensa emoção ao ouvir aquelas palavras. A seu modo, Christopher sabia ser
gentil e atencioso.
— Vou me trocar e já volto. Quer entrar?
— Não. Espero você aqui.
Ela não insistiu e com um aceno foi para dentro da casa.
Pouco depois voltou vestindo calça comprida, camisa branca de mangas
compridas e um colete jeans. Calçava botas de pelica marrons, de cano curto. Trazia
nas mãos um casaco de couro acolchoado.
— Estou pronta.
Christopher a olhou dos pés à cabeça com evidente admiração e depois disse:
— Está faltando o chapéu.
— Achei desnecessário, com o sol tão fraco.
— Você é quem sabe.
Entregando as rédeas da égua para Marjorie, ele saiu na frente, puxando o
quarto-de-milha.
Ao transporem o portão, em frente ao chalé, Marjorie perguntou:
— Red Flower tem lado certo para montar?
— Ela aceita os dois, mas é melhor montar pela esquerda. Quer ajuda?

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Mal ele terminara de falar e Marjorie já estava sobre a sela.
— Para quê? — ela provocou com um sorriso maroto. — Vamos, garota... — E
com a pressão das pernas colocou a égua em movimento.
Em segundos, Christopher emparelhava com ela.
— Você monta muito bem — disse com admiração.
— É Red Flower. — Ela acariciou a crina da égua. — E um colchão de plumas
em quatro patas. Como será no galope? — perguntou mais para si mesma do que
para ele.
— Experimente.
Não foi preciso falar duas vezes. Marjorie fincou os calcanhares na virilha da
égua, que reagiu com um salto para frente e disparou pela estrada de terra.
Christopher sorriu satisfeito e tratou de segui-la.

CAPITULO VI

Uma Cavalgada

A velocidade da cavalgada, o sol, tímido mas . constante, o vento e a emoção


potencializavam a natureza alegre e expansiva de Marjorie, tornando-a eufórica.
Christopher deixava-se levar, deliciado, pelo fluxo de entusiasmo que dela irradiava.
Pouco conversaram nas duas primeiras horas, trocando apenas comentários rápidos
e impressões passageiras. Mas quando cruzaram o primeiro riacho que corria sobre
pedras, na divisa entre duas fazendas, ele sugeriu uma pausa; as montarias
mereciam um descanso, depois de toda aquela agitação.
Descendo de Red Flower, Marjorie deixou-a beber água até fartar-se e,
entregando as rédeas a Christopher, deitou-se no lajedo e mergulhou a cabeça na
água gelada.
— Como isso é bom! — ela gritou feliz. — Venha, Christopher...
Experimente...
Ele sorriu, negando com a cabeça, enquanto esperava que seu
quarto-de-milha acabasse de matar a sede. Depois conduziu os dois animais para
um pequeno bosque desfolhado pelo rigor do inverno e amarrou-os num tronco,
sentando-se numa pedra para observar sua companheira de cavalgada.
Marjorie parecia uma criança num parque de diversões. Queria
experimentar tudo. Andava sobre as pedras em meio à correnteza, saltando
perigosamente de uma para outra, pendurando-se em galhos arrastados pela água,
pesquisando o leito do rio à procura de peixes. Estava tão entretida que não notou
quando Christopher tirou do alforje o lanche preparado por Murgatroyd e colocou-o
sobre uma toalha estendida numa pedra plana e quase lisa.
Quando Marjorie veio juntar-se a Christopher encontrou-o encostado numa
árvore, mordendo uma pêra, as pernas esticadas no chão pedregoso e as botas
atiradas ao lado.
— Mas de onde surgiu tudo isso? — indagou surpresa.
— Com os cumprimentos de Murgatroyd McNish, minha governanta —
respondeu ele sem mover-se do lugar. — Sirva-se... Você é minha convidada.
Sem fazer-se de rogada, Marjorie sentou-se sobre as pernas dobradas e

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começou a provar um pouco de tudo.
— Isso não dói? — ele perguntou subitamente.
— Do que você está falando? — perguntou com um biscoito na boca.
— Sentar-se nessa posição.
— Não. — Ela balançou a cabeça, mastigando. — Pratico ioga desde menina.
— E fala de boca cheia como se ainda fosse — provocou ele.
Sem nada dizer, ela escolheu uma maçã entre as frutas e atirou com força em
cima dele.
Atento, embora aparentemente relaxado, ele a apanhou no ar dizendo:
— Como adivinhou o que Red Flower mais gosta? Sentando-se com
agilidade, ele esticou o braço oferecendo
o fruto vermelho à égua. Com uma delicadeza inacreditável o animal tomou a
maçã na boca e a mastigou lentamente.
— Eu quero fazer isso também! — Marjorie gritou, colocando-se em pé com
um simples balançar de corpo.
— Tudo bem... sem problema. Mas você vai ter de repetir esse negócio.
— Que negócio?
— Num momento você está sentada com um nó nas pernas, não sei de que
jeito. Um segundo depois está em pé, sem nem um osso quebrado. Você é de
borracha?
— Oh, Senhor... — murmurou ela, fingindo impaciência.
— Não acabei de dizer que...
— Que pratica ioga desde menina — ele completou. — Eu sei.
— Então... Posso dar outra maçã para Red Flower?
— Só se me mostrar seu truque de novo. E devagar.
— Você fala como se eu fosse uma contorcionista de circo. -— E não é, mais
ou menos, a mesma coisa?
— Não — ela protestou indignada. — A ioga é uma ciência milenar, destinada
a promover o desenvolvimento espiritual do ser humano, através de posturas físicas.
— E quem lhe disse que o contorcionismo é menos antigo... ou que seus
primeiros praticantes não conheciam os fundamentos da ioga?
Ela o fitou perplexa.
— Eu nunca havia pensado nisso — confessou por fim.
— Mas você só está especulando. Nunca estudou o assunto...
— Para quê eu estudaria?
— Ora... para ter um embasamento científico de suas opiniões.
— Ou seja, acreditar no que os outros concluíram através de observações.
— Isso mesmo.
— Prefiro concluir por mim mesmo.
— E se estiver completamente errado? — Marjorie não desistia.
— Ao menos terei o mérito da originalidade, por confiar em minhas próprias
deduções intuitivas — concluiu ele, pondo-se em pé num só movimento.
Marjorie ficou surpresa com a resposta de Christopher. Não esperava dele
um raciocínio tão ágil e bem fundamentado.
— Feche a boca que eu estou vendo um pedaço de biscoito na sua língua.
— O que você é, Christopher Easterbrook? — ela reagiu por fim. — Um
fazendeiro procurando uma esposa ou um filósofo escondido no interior do Kansas?
— Um fazendeiro, é claro. Mas, na solidão das extensas pastagens, tenho

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muito tempo para pensar. — Então acrescentou, em tom de voz brincalhão: — Não
posso trocar ideias com os animais, não é mesmo?
Marjorie abaixou-se e pegou uma maçã.
— Deixe-me dá-la a Red Flower, sim? — Ela tentou passar por ele em direção
ao local onde os cavalos estavam amarrados.
— Só se me der um beijo.
— O que é isso, chantagem?
— Não... Duas vontades. A sua e a minha. Não lhe parece uma troca justa?
— Olhe só para aquilo! — Ela apontou na direção do bosque desfolhado à
esquerda de Christopher.
Ele voltou-se para ver o que era e no mesmo instante Marjorie pulou
agilmente, tentando chegar até a égua. Mas Christopher percebeu a manobra a
tempo e agarrou-a pela cintura, em pleno ar.
— Trapaceira!
— Chantagista!
Ele a apertou contra si e, aproximando o rosto, procurou os lábios de
Marjorie. Foi um beijo quente e terno, desmentindo a aparente agressividade de
toda a cena.
Marjorie sentiu-se derreter. Tinha os braços livres para tentar afastá-lo se
quisesse. Apenas a maçã em uma das mãos... Mas ela queria afastá-lo?
Envolvendo o pescoço de Christopher com os braços, ela fez mais do que
deixar-se beijar por ele... Beijou-o também, com intenso desejo. E então afastou o
rosto corado e pediu:
— Ponha-me no chão.
Alguma coisa no tom de voz de Marjorie advertiu o instinto aguçado de
Christopher que era melhor obedecer. E ele o fez... só que lentamente, deixando-a
escorregar contra seu corpo, desfrutando cada centímetro daquele contato íntimo e
delicioso até que os pequeninos pés tocaram o solo.
— Pronto — murmurou, a voz rouca de desejo.
— Agora, solte-me.
Foi com relutância que Christopher cedeu. Penosamente, ele deixou cair os
braços, libertando-a. Por alguns segundos, Marjorie permaneceu no mesmo lugar,
os olhos baixos, respirando profundamente. Depois contornou Christopher e foi
levar a maçã para Red Flower. Mas a descontração havia cedido lugar à seriedade do
momento. E foi assim que terminaram o lanche, trocando poucas palavras, cada um
absorto em seus próprios pensamentos. Pouco depois, Christopher recolhia
cuidadosamente as sobras do lanche e, seguida por Marjorie, tornou a montar seu
cavalo.
— Conhece o entreposto do Bill? — perguntou, já em movimento.
— Na encruzilhada com a ferrovia? — quis certificar-se Marjorie.
— Isso mesmo. Quem chegar por último paga a cerveja. — E com isso, saiu a
galope.
Cerca de uma hora mais tarde, eles chegavam ao entreposto do Bill, um
curioso agrupamento de casas em torno de um grande armazém.
Bill não existia mais e seus descendentes haviam se espalhado pelo país.
Ficaram o nome e as histórias na memória de antigos moradores, que haviam se
recusado a abandonar o local, criando ali suas famílias com os parcos recursos ti-
rados de suas pequenas propriedades rurais.

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— Você sabia que o armazém com seus grandes depósitos foi financiado pela
companhia da estrada de ferro? — perguntou Christopher ao entrar no vilarejo.
— Não — respondeu Marjorie, controlando a marcha de Red Flower para
emparelhar-se com ele.
Eram as primeiras palavras que trocavam depois do episódio à beira do
riacho de pedras, e ela sentia certa dificuldade em reatar a comunicação com
Christopher. Mas ele prosseguiu com o diálogo sem parecer dar-se conta disso.
— Bill era funcionário da empresa, uma espécie de administrador setorial.
Foi ele quem supervisionou a construção do armazém e dos depósitos. Mas então
conheceu uma moça mestiça, filha de um branco com uma índia, com quem acabou
se casando. Nunca mais saiu daqui.
— Como você sabe tanto sobre a história desse lugar?
— Eu costumava percorrer a região, duas ou três vezes por ano, para
comprar gado e vender cavalos.
— Seu pai criava cavalos?
— Não... Ele só se dedicava à criação de gado bovino. Os cavalos eram para
ele simples meios de transporte.
— Então você os criava?
— Sim. Comecei com quatro éguas e um garanhão, que comprei com o
dinheiro que minha mãe me mandava como mesada, sempre que tinha uma
oportunidade.
— Seus pais eram divorciados?
Ele sorriu, sem nenhum traço de ironia no rosto másculo.
— Minha mãe abandonou meu pai para livrar-se de suas crueldades e
constantes bebedeiras. Depois pediu o divórcio, que foi litigioso, já que meu pai não
queria nem ouvir falar sobre o assunto.
— Quantos anos você tinha na época?
— Onze para doze anos.
— Deve ser uma decisão difícil para uma mãe, separar-se de um filho nessa
idade — comentou Marjorie pesarosa.
— Ela não teve escolha. Se tivesse tentado me levar, ele a seguiria até o fim
do mundo. Meu pai era assim.
— Você parece ter superado esses problemas, pela naturalidade com que
relata os fatos.
— Digamos que me acostumei a eles.
Marjorie sorriu e depois de um silêncio meditativo falou por fim:
— Dizem que o perdão absoluto é o esquecimento.
— Eu não esqueço nada — retrucou ele quase ríspido. — Compreendo e
procuro não pensar no assunto.
— Compreender também é uma forma de perdão.
— Eu nunca havia pensado nisso — ele imitou-a com uma precisão
espantosa.
Ela riu com vontade, lembrando-se da conversa sobre ioga e contorcionismo
que haviam tido uma hora antes.
— Eu não falo desse modo pedante — defendeu-se.
— Mas reconheceu a imitação.
— Pela frase e não pelo tom de voz — ela insistiu.
Foi a vez de Christopher sorrir, e o clima tornou-se descontraído o suficiente

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para a pergunta final, que Marjorie trazia na ponta da língua: — Sua mãe ainda está
viva?
— Sim. Está casada com um antropólogo e mora em Caracas, na Venezuela.
Raramente nos correspondemos, mas às vezes nos falamos por telefone. Ela parece
estar feliz.
— Fico contente em ouvir isso.
Os dois haviam chegado em frente ao armazém e desmontaram, para então
amarrar os cavalos perto de um bebedouro.
Marjorie adiantou-se a Christopher, entrando no recinto antes dele. Quando
ele a alcançou ela disse com humor:
— Você paga a cerveja. Eu cheguei primeiro.
— Discordo. Chegamos juntos.
— Não seja mau perdedor. Você bobeou.
— Meio a meio ou vai voltar a pé.
— Chantagista!
— Trapaceira!
Quando os dois deixaram o entreposto de Bill, estavam novamente felizes e
relaxados. Uma terna amizade nascia da forte atração que um exercia sobre o outro.
A volta foi rápida e tranquila e, quando o sol se pôs, já se encontravam perto
do chalé de Marjorie.
— Foi um dia e tanto — Christopher disse, rompendo um longo silêncio. —
Precisamos repetir a aventura um dia desses.
— Sem dúvida.
Os cavalos estacaram ao lado do trailer e os dois tiveram de somar esforços
para embarcá-los, depois de livrá-los das selas.
— Você quer entrar para beber alguma coisa? — Marjorie convidou.
— Fica para outra vez, obrigado. Já está tarde e ainda estou longe de casa.
— Tudo bem. — Ela aproximou-se e, erguendo-se na ponta dos pés, beijou-o
levemente nos lábios. — Muito obrigada por esse dia feliz.
— Sem você ele não teria acontecido. Até outro dia, Marjorie.
Alguma coisa na voz de Christopher a surpreendeu, como se aquilo fosse
uma despedida. Um súbito medo de nunca mais vê-lo apertou seu coração. Mas não
sabia o que fazer ou dizer para retê-lo junto a si, sem parecer tola ou inconveniente.
— Você me liga? — murmurou por fim.
— Você quer que eu ligue? — ele retrucou no mesmo tom.
— Quero. Afinal posso ter novidades sobre sua possível futura noiva.
Marjorie não acreditava que acabara de dizer aquelas palavras. Não era
absolutamente o que estava sentindo. Lançara mão de um estratagema para
esconder o desejo, tão natural, de não perder o contato com ele. Mas antes que
pudesse corrigir-se ele retrucou:
— Por um momento esqueci por que estamos em contato. Você tem razão.
Precisamos objetivar nossos encontros.
— Sim... — ela respondeu tolamente.
— Então, até outro dia, Marjorie.
— Boa noite, Christopher.
Ele contornou o trailer, abriu a porta da picape, instalou-se atrás do volante
e deu a partida.
Marjorie ficou parada na porta de seu chalé, vendo as luzes traseiras do

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trailer desaparecer na estrada, envolta pela escuridão.

CAPÍTULO VII

Viagem para Las Vegas

Os dias de inverno transcorriam um após o outro, iguais, cinzentos e frios.


Em sua fazenda, Christopher Easterbrook esforçava-se para manter-se de
bom humor nos afazeres diários. Duas semanas haviam se passado desde a
cavalgada com Marjorie e até aquele momento ele conseguira controlar a tentação
de entrar em contato com ela.
Para Christopher ficara evidente que sua carência o fizera ultrapassar os
limites do razoável com a graciosa atendente do correio.
O fato de Marjorie ter interrompido aquele beijo, ao lado do riacho, não saía
de sua mente. O modo com que d fizera parecia mostrar claramente uma
superioridade na interpretação dos fatos, o que o deixava um tanto humilhado. Mar-
jorie não negava o desejo, mas não se agarrava a ele como um náufrago à tábua da
salvação.
Por quê? Era a pergunta que se fazia, e a resposta era evidente... Porque ela
sabia que se tratava de um capricho que não os levaria a lugar algum. Afinal, quem
pretendia se casar era ele. Marjorie parecia muito satisfeita com a própria vida,
concluiu desgostoso.
— O que houve?
A voz da governanta interrompeu o devaneio de Christopher. Ele suspirou.
— Acho que estou sofrendo de carência crônica, Murgatroyd.
— De onde tirou essa ideia?
— Basta uma mulher bonita demonstrar simpatia e carinho por mim para
que eu comece a fantasiar a respeito.
— Espere um pouco, Christopher... Você não é o tipo de homem para
despertar apenas simpatia e carinho em uma mulher.
— Está bem... atração, talvez... mas nada sério... nada duradouro, como uma
perspectiva de casamento, por exemplo.
— O que estou vendo é que a tal loira de Chicago destroçou sua auto-estima.
— Você acha?
— Tenho certeza. E o que me assusta é essa sua disponibilidade exagerada
para se casar. Tome cuidado, Christopher. Você pode se tornar presa fácil para
alguma vigarista.
— Não se preocupe com isso, Murgatroyd. Tenho faro para esse tipo de
mulher... ou pelo menos, tinha.
— Eu me lembro de Vivian, Érica, Simone, Mary Jane... Quantas! Tinha
praticamente que varrê-las para fora de casa.
Ele riu baixinho.
— Não sou mais assim, Murgatroyd. Cansei-me de aventuras. Quero um lar,
uma mulher para todos os dias e não para uma noite.
— Mas, meu Deus... isso é o que a maioria das mulheres solteiras da sua

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idade querem... Por que tanta dificuldade?
— Eu também pensava assim. Mas estou vendo que não é nada fácil.
— Você precisa é sair da fazenda... Conhecer outras pessoas, conviver... Onde
já se viu procurar uma noiva por correspondência... É pura loucura!
— Outro dia fui a Valentine...
— Mas Valentine é um lugarejo perdido no mapa. Vá para uma cidade maior,
gastar um pouco de dinheiro, aproveitar a vida.
— Eu detesto Topeka, Salt Lake City, San António, Dai-las... — disse ele com
enfado.
— Vá para Nova York, Los Angeles, Las Vegas...
— Nem me fale em Las Vegas... E pensar que reservei uma suíte no melhor
hotel de lá, para a lua-de-mel com Moira... Que idiota eu sou! Aliás, preciso cancelar
a reserva.
— Aí está a solução para o seu problema. Aproveite a reserva e vá dar um
passeio em Las Vegas, jogar na roleta e na mesa de pôquer. Tome um pouco de sol...
Se não arranjar uma noiva, pelo menos voltará curado dessa melancolia.
— Sabe que você tem razão... Essa falta do que fazer está acabando comigo.
Murgatroyd... onde está minha agenda?
— Em cima da mesa no escritório. Quer que pegue para você?
— Não. Eu mesmo cuido disso. Você pode separar algumas roupas para
mim? Eu vou para Las Vegas.
— Aleluia! Eu não estava aguentando mais ver você nessa tristeza. —
Murgatroyd afastou-se resmungando alegremente. — Antes tarde do que nunca!
Mas a governanta deixou a sala, Christopher pegou o telefone e discou um
número que sabia de cor. O sinal de chamada soou três vezes antes que uma voz
familiar atendesse:
— Agência do Correio de Valentine... Bom dia.
— Marjorie, é Christopher. Preciso falar com você pessoalmente.
No sofá do chalé de Marjorie, Christopher contemplava admirado o
descomunal calendário solar asteca que servia de mesa de centro.
— Ir para Las Vegas com você? Mas por que eu faria tal coisa?
— Primeiro, para sair um pouco de Valentine, conhecer a famosa cidade dos
cassinos. Depois para cumprir sua promessa de me ajudar a encontrar uma mulher
para casar — ele explicou com candura.
— Você pensa que é fácil assim? Tenho um emprego, meus compromissos...
— Aposto que não tira férias há séculos. Estou errado?
— Está certo. Mas de qualquer modo, teria de comunicar à central com
antecedência para solicitar uma substituta. Isso leva tempo, e ainda preciso contar
com a boa vontade dos meus superiores.
— Não, se a sua mãe interferir. Como funcionária aposentada ela tem
influência... Poderia até, quem sabe, ser a sua substituta.
— E como tem tanta certeza disso?
— Andei me informando aqui e ali — respondeu ele evasivo.
— E Bella? Não posso deixar minha cachorrinha sozinha. Tenho de deixar
alguém encarregado de alimentá-la.
— Podemos deixá-la na fazenda. Garanto que será tratada como se fosse da
família.
— Não sei, Christopher. Estou achando isso tudo uma loucura.

Projeto Revisoras - 34
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— Loucura é passar a vida inteira em Valentine.
— O que há de errado com Valentine?
— Nada. E o que há de errado em umas férias em Las Vegas?
— Tudo. Quero dizer... Aquilo não é uma cidade e sim um parque de
diversões para adultos, criado do nada em meio ao deserto.
— Esse não é um argumento válido e você sabe muito bem.
— É um lugar extremamente caro e não tenho roupas adequadas e nem
dinheiro para jogar fora.
— Uma parada em Topeka resolverá o problema das roupas e você é minha
convidada. Não terá nenhuma despesa.
Marjorie estava esgotando seus argumentos e começando a fraquejar. Mas o
ponto central de suas preocupações ainda não havia sido revelado.
Percebendo que algo preocupava Marjorie, além do que ela externava,
Christopher falou gentilmente:
— Deixe-me dizer uma coisa... Se você está preocupada com sua integridade
física e moral, pode ficar tranquila. Apesar de ser um rústico fazendeiro do interior
do Kansas, sou um homem de bem. Não abusaria de você.
— Eu sei.
— Sabe mesmo? — ele insistiu.
— Sei... Quero dizer... Tenho minhas dúvidas de que sejamos capazes de uma
vigilância eficiente sobre essa atração que existe entre nós.
A sinceridade daquelas palavras tocou Christopher profundamente. Marjorie
não procurava transferir a responsabilidade da atração mútua apenas para ele.
Pouquíssimas mulheres teriam tal coragem, ele julgou antes de dizer:
— Quanto a manter a guarda todo o tempo, não posso me comprometer. Sou
um ser humano. Só lhe garanto que não farei nada que você não queira — disse
muito sério.
— É bom ouvi-lo falar assim. Sinto-me melhor.
— Relaxe, Marjorie... Pense no quanto poderemos nos divertir.
— Tenho uma natureza cautelosa, Christopher Easter-brook. Gosto de pesar
os contra antes dos prós.
— Eu entendo e respeito. Só que você já olhou demais para um lado só da
moeda. Diga-me, Marjorie... Você não gosta da minha companhia?
— É claro que gosto! Você é meio durão, mas é simpático e tem senso de
humor.
Sentindo-se nas nuvens, Christopher encorajou-a:
— E o que mais?
— E generoso e, às vezes, terno.
— E?
— Terrivelmente carente e inseguro — ela provocou.
— Opa... Estava indo tão bem.
Os dois riram, fitando-se intensamente.
— Falando a sério... Você é uma pessoa interessante.
— Obrigado.
Os dois ficaram em silêncio por alguns minutos. Então Christopher arriscou:
— Posso contar com a sua companhia para essa viagem?
— Acho que sim — respondeu Marjorie com um longo suspiro.
— Acha? — ele perguntou apreensivo.

Projeto Revisoras - 35
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— Sim. Não posso lhe dar certeza. Dependo de muitas coisas, como já disse.
— Vai dar certo.
— Como sabe?
— Eu sei, simplesmente — ele afirmou com toda a convicção.
Sentado ao lado de Marjorie no vôo de Topeka a Las Vegas, Christopher
falou:
— Eu não lhe disse?
— O quê?
— Que tudo daria certo.
— Confesso que cheguei a duvidar. Mas agora estou feliz por ter arriscado.
Christopher olhou para Marjorie com admiração. Nunca a vira tão elegante.
As roupas que haviam comprado em Topeka lhe caíam com perfeição, como se
tivessem sido feitas sob medida para ela. Seu corpo esguio ficava bem em qualquer
estilo de roupa, e ele não podia deixar de imaginar como seria a visão dela em um
penhoar de seda, leve e es-voaçante.
— Você está linda como nunca — disse por fim.
— Você também não está nada mal. Nunca imaginei que se sentisse tão à
vontade sem seu jeans e suas botas de montaria.
Ele riu e tomou a mão dela entre as suas.
— Obrigado por ter vindo.
— Deixe os agradecimentos para a volta, quando tiver encontrado a mulher
certa para ser a sra. Easterbrook.
— Você acha que vamos encontrá-la em Las Vegas?
— Não sei. Mas vamos tentar.
— Certo. É essa a ideia.
Christopher soltou a mão de Marjorie. O curioso era que ele não se sentia
muito entusiasmado com a ideia de procurar uma noiva, que, afinal, era o objetivo
daquela viagem. Na verdade, sentia-se bem por estar com Marjorie naquele vôo e
não queria se preocupar com o que viria depois. Colocando os fones de ouvido,
sintonizou uma música relaxante e fechou os olhos.
Marjorie folheava uma revista distraidamente e de vez em quando lançava
um olhar ao redor, procurando captar uma expressão mais viva no rosto de algum
passageiro daquele curto vôo. Em vão. Todos pareciam semi-adormecidos, entor-
pecidos pelo tédio de uma viagem corriqueira e maçante. Ao que parecia, ela era a
única que vibrava por estar num avião ao lado de Christopher, a caminho de uma
aventura.
Quando a aeromoça informou que se preparavam para o pouso, pedindo que
os passageiros colocassem os assentos na posição vertical e fixassem o cinto de
segurança, Marjorie virou-se para Christopher e só então notou que ele dormia a
sono solto, ressonando ritmadamente. A expressão forte daquele rosto viril se
suavizara com o sono e ele parecia tão jovem e indefeso que ela teve de se controlar
para não tomar o rosto dele entre as mãos e beijá-lo.
— Christopher... — Ela o sacudiu levemente. — Estamos chegando.
— Já? Que horas são?
Os olhos enevoados eram de um verde-escuro profundo, ela notou
encantada, e pareciam sorrir de prazer ao reconhecê-la.
— Faltam quinze minutos para as quatro — ela informou, consultando seu
relógio de pulso.

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A aterrissagem foi suave, e o desembarque transcorreu sem transtornos.
Enquanto aguardavam a bagagem ser liberada, Christopher ligou para o hotel, que
confirmou a presença de um dos veículos da empresa no aeroporto, para levá-los a
seu destino.
A surpresa de Marjorie ao ver a lustrosa limusine aguardando-os na saída do
aeroporto foi compartilhada momentaneamente por Christopher, que depois se
lembrou que o preço exorbitante que ele pagara pelo pacote do hotel incluía o
tratamento VIP, que era ainda mais especial para os casais em lua-de-mel.
Sim, esses haviam sido os termos da reserva. Portanto, ao se acomodarem no
espaçoso e luxuoso interior do automóvel, Christopher já esperava o champanhe
que o motorista uniformizado, e bastante formal, insistiu em servir-lhes, com os
cumprimentos do hotel.
Quando o carro deslizou para o meio do tráfego, Marjorie não se conteve e
comentou:
— Quanta extravagância, Christopher! Para que todo esse luxo?
— Para todos os efeitos, Marjorie, estamos em lua-de-mel. Pelo menos é o
que consta na reserva que fiz, quando pensava em me casar com Moira.
— Eu havia me esquecido desse detalhe.
— Pois então, vá se acostumando.
— Só até chegar ao hotel. Espero que você desfaça o equívoco na recepção.
Seria muito estranho um casal em lua-de-mel dormindo em quartos separados.
— Cuidarei disso, não se preocupe — Christopher respondeu, tranquilo.
Mas as coisas não correram do modo que eles previram. Para seu
constrangimento, o hotel estava lotado devido a um congresso nacional de
odontologia, conforme informou o funcionário da recepção em resposta às
explicações de Christopher.
— Sinto muito, sr. Easterbrook. Mas não há a menor possibilidade de
conseguirmos um quarto vago nos próximos três dias.
— Bem... creio que teremos de procurar outro hotel — ele disse aborrecido.
— Não quero parecer pessimista, sr. Easterbrook, mas não é provável que
consiga, assim de última hora. Todos os hotéis da cidade agendam as reservas com
até seis meses de antecedência.
— De qualquer forma, eu vou tentar.
Elevando uma das sobrancelhas em sinal de desagrado, o educado
recepcionista prontificou-se:
— Farei isso para o senhor. Mas acredite... será quase impossível.
— Por favor, tente... — Christopher voltou-se para Mar-jorie. — Eu sinto
muito... Não contava com esse contratempo. Um hotel tão grande...
— Relaxe, Christopher. A culpa não é sua.
Depois de alguns minutos, o recepcionista voltou com o mesmo sorriso
impessoal.
— Como lhe adiantei, sr. Easterbrook, não há nada para hoje. Amanhã, quem
sabe...
— Mas que absurdo...
— Christopher... está tudo bem. Vamos ficar no mesmo apartamento esta
noite. Amanhã veremos o que se pode fazer.
-— Você realmente não se importa? — Havia um imenso alívio na voz dele. —
Claro que não.

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— Desculpe-me...
— Ora, deixe disso.
— Está bem.
Christopher voltou-se para o funcionário que não movera um só músculo
facial durante o rápido diálogo trocada por ambos e confirmou:
— Tudo bem, vamos ficar com a reserva.
— Ótimo.
O recepcionista acenou para um camareiro que se aproximou solícito e
entregou-lhe a chave do apartamento.
— Acompanhe os hóspedes à suíte 501 — ordenou.
O rapaz, cujo uniforme era impecável, pegou as malas e encaminhou-se para
o elevador.
Christopher ofereceu o braço a Marjorie e assim atravessaram o gigantesco
saguão atrás do camareiro. O elevador os conduziu ao quinto andar e lá esperaram
que a porta fosse aberta e as malas colocadas no interior da suíte.
Após receber uma gorjeta de Christopher, o rapaz agradeceu e afastou-se ao
longo do corredor. Só então eles entraram na suíte.
Marjorie parou no centro do vestíbulo com os olhos arregalados e uma
espécie de riso nervoso brotou de seus lábios ao exclamar:
— É duas vezes maior que o meu chalé inteiro. Que loucura!
— Bem... — murmurou Christopher, embaraçado. — E um tanto
extravagante, eu admito. Parecia menor, no folheto...
Marjorie caminhou sobre o tapete macio até o quarto, parando ao lado da
maior cama de casal que sua imaginação poderia conceber. A colcha era de veludo
negro, e as capas dos enormes travesseiros de plumas eram ocres.
— O... O que é isso?
— A suíte nupcial, eu presumo — Christopher respondeu baixinho.

CAPITULO VIII

A Surpresa de Cupido

Aatmosfera de constrangimento entre Chris-topher e Marjorie na suíte


nupcial do hotel era quase palpável. Ambos se moviam de um lado para outro
trocando sorrisos tensos, enquanto dispunham no guarda-roupa as peças
necessárias para uso imediato.
— Você vai usar o banheiro agora? — Marjorie perguntou, sem olhar para
Christopher.
— Não. Fique à vontade. Mais tarde tomarei um banho e trocarei de roupa.
— Já planejou o que fazer hoje?
— Estava pensando em sair para um passeio depois do jantar. O que você
acha?
— Perfeito.
Ela já se encaminhava para o banheiro quando viu a garrafa de champanhe
num balde de prata sobre a mesa de centro. Uma cortesia do hotel para o casal em
suposta lua-de-meL Num gesto corajoso, sacou a rolha previamente afrouxada do

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gargalo e serviu duas taças, levando-as nas mãos até Christopher.
— É um pecado deixar o champanhe esquentar — disse, estendendo uma das
taças para ele.
— Sem dúvida — ele concordou com evidente alívio. — A que vamos brindar?

— Ao sucesso de nossa empreitada em Las Vegas — ela propôs.


Christopher assentiu com um meneio de cabeça e os cristais retiniram no
ambiente silencioso da suíte nupcial.
— Está uma delícia. Devíamos tomar champanhe pelo menos uma vez por
semana — Marjorie comentou com naturalidade.
— É realmente uma bebida maravilhosa. Ela sorveu a taça até o fim.
— Outra taça? — ela propôs.
— Sim. Mas agora, eu sirvo.
Em pé na sala, brindaram pela segunda vez, dessa vez em silêncio, e
Marjorie caminhou até o banheiro, sorvendo lentamente o líquido espumante.
— Minha nossa! Este banheiro é maior que a sala da minha casa. Vou tomar
um banho de banheira.
— Divirta-se. Enquanto isso vou dar uma volta pelo hotel e conhecer as
dependências.
— Aproveite o passeio.
— Até mais tarde, Marjorie.
— Até, Christopher.
Quando a porta do banheiro se fechou, Christopher colocou a taça de
champanhe sobre a mesa e depois de verificar seu reflexo em um espelho imenso,
passou a mão pelos cabelos num gesto instintivo e saiu para o corredor.
Minúsculas luzes no rodapé iluminavam o longo corredor acarpetado, que
Christopher percorreu em direção ao elevador. A iluminação indireta e o silêncio
que ali reinava eram incómodos e sufocantes para alguém acostumado aos espaços
abertos e ao ar livre. Foi com verdadeiro alívio que Christopher entrou no elevador e
desceu ao piso térreo, onde a luz natural do dia que findava filtrava-se através das
vidraças foscas. O movimento dos hóspedes era contínuo, sem parecer intenso,
disperso no amplo espaço do saguão.
Um grupo de mulheres, muito bonitas e conversando animadamente,
chamou a atenção de Christopher. Não pareciam protótipos das aventureiras que
frequentavam Las Ve-gas em busca de fortes emoções. Eram atentas e dinâmicas,
como costuma ser os profissionais liberais, e ele deduziu que se tratavam de
dentistas que estavam ali para participar do congresso de odontologia.
Uma curiosidade natural fez com que Christopher se aproximasse do grupo
e, fingindo examinar a vitrina de uma butique, prestasse atenção ao que diziam.
Uma das mulheres, de olhos castanho-escuros e cabelos muito negros e
longos, o olhou com interesse e comentou alguma coisa em espanhol com a amiga
ao lado. Risinhos tipicamente femininos soaram entre elas e então, para surpresa de
Christopher, a estrangeira se aproximou e perguntou num inglês correto, quase sem
sotaque:
— Você está no congresso?
— Não — ele respondeu. — Sou fazendeiro do Kansas e estou aqui em férias.
Posso ajudá-la em alguma coisa?
— Não é bem ajuda o que eu queria de você — disse a moça com uma classe

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incomum.
— E o que queria, então? — perguntou ele, sorrindo com simpatia.
— Sua companhia para conhecer o hotel. Acabei de chegar e não pretendo
compartilhar minhas horas de lazer com colegas de profissão. Compreende?
— Sem dúvida. Mas temo não ser a pessoa ideal para lhe mostrar o hotel.
Também acabei de chegar e não conheço nada por aqui.
— Ótimo. Podemos descobrir juntos as maravilhas que o dinheiro pode criar
através da engenharia, arquitetura e decoração.
— E uma ótima ideia, senhorita...
— Ignês... Apenas Ignês — disse estendendo a mão.
— Muito prazer, Ignês. Meu nome é Christopher. — Ele estreitou a mão
morena e delicada na sua.
— Prazer, Christopher. E por onde começaríamos a aventura?
— Pelos espaços abertos. O sol está se pondo no deserto e a temperatura
deve estar agradável lá fora.
— Boa ideia. — Com um discreto aceno para as amigas, ela tomou o braço de
Christopher com naturalidade. — Vamos?
Conversando animadamente, caminharam pela extensa área de circulação
do andar térreo, passando por lojas, restaurantes e cinemas, até chegar numa
varanda imensa de onde se avistavam as quadras de ténis, as piscinas e um extenso
gramado aveludado que dominava toda a ala leste do jardim.
— De onde você é, Ignês? — Christopher perguntou num dado momento.
— De Maracaibo, na Venezuela.
— Minha mãe mora atualmente em Caracas.
— Que coincidência! A capital do meu país é linda. Você conhece?
— Não tive oportunidade. Mas as fotos e postais que recebi de lá são
fantásticas.
— O litoral é bastante frequentado por turistas. Mas a verdadeira beleza da
Venezuela, para mim, está no interior.
— A selva...
— Sim. E de um esplendor indescritível. Meu pai é arqueólogo e costumava
me levar em suas expedições pelo interior do país, sempre que possível.
— E sua mãe... o que dizia disso?
— Ela sorria e tocava piano.
Christopher riu, divertido com a resposta concisa.
Os dois estavam parados, em pé, contra o fundo azul-es-curo do céu, onde as
primeiras estrelas começavam a brilhar. Um funcionário do hotel se aproximou,
discreto e solícito:
— Temos mesas, à direita, e serviço de bar vinte quatro horas — informou.
— Obrigado — agradeceu Christopher. E voltando-se para sua
acompanhante, indagou: — Quer tomar alguma coisa?
— Rum da Jamaica com limão, uma colher de sobremesa de licor de abricot e
bastante gelo picado — ela pediu diretamente para o funcionário do hotel com um
sorriso irresistível. — Pode ser?
— Sem dúvida, senhorita.
— Dois — apressou-se Christopher a dizer.
— Pois não, senhor, imediatamente.
O funcionário se afastou em direção ao bar enquanto Christopher e Ignês

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procuravam uma mesa bem posicionada na imensa varanda. Havia poucos hóspedes
no local, àquela hora. A maioria se encontrava em seus apartamentos preparando-se
para o jantar. Uma brisa agradável soprava das montanhas distantes.
— Você disse que é fazendeiro. Tem plantações?
— De sorgo, feno e alfafa — Christopher respondeu com um aceno de cabeça,
e acrescentou: — Sou criador de gado e de cavalos.
— Em meu país a criação de gado é uma atividade extensa. Os animais são
criados praticamente soltos em imensas pastagens.
— O clima permite essa liberdade. Deve ser fantástico morar em um país
onde o clima pouco varia em qualquer das estações do ano.
— Não é bem assim. As chuvas e os ventos fazem toda a diferença. Mas
diga-me, Christopher... você tem família? Esposa, filhos?
— Não. Só minha mãe, que mora longe, como lhe contei. Meu pai faleceu há
algum tempo e não sou casado. Moro com uma governanta e os empregados da
fazenda.
— Opção pessoal ou falta de oportunidade? — quis saber Ignês,
observando-o atentamente.
— Na verdade, displicência... Fui deixando o tempo passar — respondeu ele
vagamente.
Sem esperar que Christopher devolvesse a pergunta, a bela venezuelana
esclareceu, com seu encanto e charme naturais:
— Eu me casei aos dezessete anos com um arqueólogo, cuja tese de
doutorado era meu pai quem orientava. Era doze anos mais velho que eu, o que
criou certa polémica na minha família, mesmo sendo todos tradicionalmente
liberais.
— E vocês são felizes?
— Nós fomos... muito felizes.
— Tiveram filhos? — perguntou Christopher, sem deixar de perceber o tom
melancólico da resposta. — Era evidente que o casamento de Ignês terminara, ou
seu marido morrera.
— Não. Com o ritmo de vida que nós tínhamos, não havia espaço ou tempo
para dedicar a uma criança. E sempre havia o amanhã, entende? Eu achava que
tinha muito tempo pela frente. Quando a gente se casa, acredita que vai ser para
sempre. — Ela fitou o horizonte, com expressão triste.
— Eu lamento...
Ignês interrompeu Christopher colocando um dedo nos lábios dele com
graça e leveza.
— Não lamente. Não se deve lamentar o final de um bom filme ou de um
livro que nos encantou. Por que fazê-lo com uma linda história de amor?
— É uma maneira bonita de se encarar uma separação.
— É o que eu digo. Foi muito bom. Tenho lembranças maravilhosas e muito
pelo que agradecer. Mas confesso que às vezes sinto saudade...
O garçom se aproximou com os drinques, e o momento de emoção
dispersou-se na brisa.
Ignês provou o drinque e sorriu satisfeita.
— Está perfeito. Prove, Christopher.
Ele obedeceu, reconhecendo os ingredientes na mistura, o contraste entre a
doçura do licor e a acidez do limão na rica densidade rica do rum Jamaicano.

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— Delicioso! — admitiu, vencido.
Ignês sorriu, e Christopher refletiu que ela parecia jovem demais para já ter
passado por toda aquela experiência sofrida.
Os dois beberam em silêncio, desfrutando da companhia um do outro.
Pareciam satisfeitos, assim, na noite estrelada que cobria a cidade da fantasia, no
meio do deserto de Nevada.
— Poucas vezes eu senti, na companhia de uma bela mulher, tamanho
bem-estar — Christopher confessou por fim. — Você irradia uma paz contagiante.
— Não sei se devo tomar isso como um elogio. A maioria dos homens que
conheço procura emoções fortes, companhias dinâmicas e aventureiras.
— Não faço parte dessa maioria, acredite.
— Percebo que não.
Enquanto os dois saboreavam o drinque exótico e conversavam sobre
amenidades, na suíte nupcial Marjorie acabara de sair do banho delicioso e
relaxante que a deixara revigorada e refeita das emoções da viagem. Sentia-se
disposta para desfrutar sua estada naquele hotel luxuoso, naquela cidade de
fantasia, em companhia dè Christopher Easterbrook.
Enxugando-se na toalha felpuda e macia, ela saiu do banheiro, abriu o
enorme guarda-roupa e escolheu cuidadosamente o que iria usar naquela noite.
A visão da porta entreaberta ao lado, da parte do armário onde Christopher
colocara apressadamente suas roupas, aguçou a curiosidade de Marjorie. Com calma
resolução, ela abriu a porta e seu olhar percorreu as peças masculinas ali dispostas.
Com a ponta dos dedos ela tocou os tecidos como uma carícia fugidia e sorriu com a
ideia súbita que lhe ocorreu... Não ficaria na suíte esperando que Christopher vol-
tasse de seu passeio exploratório pelo hotel. Iria ao encontro dele e quem sabe o
convencesse a tomar um drinque no bar antes que ele subisse para tomar banho e
vestir-se para o jantar.
Assim, pouco depois, Marjorie deixava a suíte nupcial num vestido longo
acetinado, cinza-claro, sem mangas e com um generoso decote, complementado por
um par de delicadas sandálias prateadas de salto alto, uma leve maquiagem e os
cabelos loiros, com reflexos avermelhados, escovados e caindo soltos sobre os
ombros. Trazia no pescoço uma gargantilha de platina muito delicada e o espelho do
corredor mostrou-lhe a imagem de uma mulher madura e elegante, que a agradou
profundamente.
Confiante e feliz, desceu no elevador até o andar térreo, sorrindo
intimamente ao notar que atraía olhares de admiração dos homens por quem
passava ao atravessar o imenso hall. Mas seu verdadeiro objetivo era receber aquele
olhar de um homem em especial.
Sem pressa, ela percorreu os diversos corredores, olhando as vitrinas,
entrando nos bares já bastante cheios àquela hora, parando onde algo lhe chamasse
a atenção, até distanciar-se do discreto burburinho dos hóspedes.
Inevitavelmente, os passos de Marjorie a conduziram para o amplo terraço
que proporcionava uma vista esplendorosa da cidade e suas luzes coloridas. O ar
estava fresco, quase frio, e depois de se demorar alguns minutos junto à amurada
contemplando a noite estrelada, ela voltou-se e avistou, a distância, na outra
extremidade do terraço, as mesas de um bar, onde alguns casais conversavam
enquanto saboreavam seus drinques.
Um dos casais chamou a atenção de Marjorie, pelo refinamento de seus

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gestos e pela gostosa intimidade que pareciam desfrutar ali sob o céu do deserto.
Mesmo a distância era possível perceber as costas rijas e musculosas do homem,
assim como a beleza exótica da moça, claramente estrangeira, que sorria para ele em
total deslumbramento.
Foi então que, num gesto de expressão, o homem virou-se, apontando as
luzes da cidade em meio a algo que dizia, e Marjorie reconheceu, com um doloroso
sobressalto no coração, o perfil de Christopher Easterbrook.
Sentimentos contraditórios subitamente envolveram a mulher solitária no
imenso terraço do hotel mais luxuoso de Las Vegas. A base de tais sentimentos era o
ciúme: insidioso, corrosivo, mordaz, doloroso, ela reconheceu assustada. Que direito
tinha de se sentir assim quando o motivo daquela viagem era justamente tentar
encontrar uma esposa paraChristopher?, repreendeu a si mesma, inutilmente. A dor
crescia em seu íntimo, ameaçando sufocá-la. Que papel ridículo aquele a que estava
se submetendo, parada ali, espionando a intimidade de um homem a quem
prometera ajudar em seus desígnios!
Girando nos calcanhares, Marjorie dirigiu-se para dentro do hotel,
esforçando-se para não correr... e para não chorar.
— Oh, meu Deus... o que estou fazendo aqui? — sussurrou para si mesma,
exasperada. — Em que situação fui me meter?!
Como percorrera todos aqueles corredores, atravessara o saguão e tomara o
elevador para o quinto andar, Marjorie não saberia dizer. Rostos, vozes e risos
misturavam-se, confundindo seus sentidos.
Quando finalmente ela girou a chave na fechadura com as mãos trémulas e
abriu a porta da suíte, conseguiu respirar um pouco melhor. Enquanto cruzava o
hall e a sala, a caminho do quarto, ia se livrando da gargantilha, do vestido e das
sandálias, que atirou para dentro do guarda-roupa, e envolvendo-se num roupão
felpudo, deixou-se cair sobre a cama imensa e chorou toda a sua desilusão.
Quando Christopher Easterbrook entrou na suíte, estava bem-humorado e
alegre. Conhecer Ignês lhe parecera um sinal positivo naquela viagem de incertezas
na qual nem ele próprio sabia o que buscava realmente. Era como se estivesse num
vôo livre, andando às cegas, seguindo seus instintos. Ele esperava que alguma coisa
acontecesse que invertesse o rumo de sua vida, que mudasse aquela situação
insustentável de ser um homem solitário, confinado numa fazenda, vendo os
melhores anos de sua vida se escoar, a cada longo e triste inverno.
A encantadora dentista venezuelana insuflara seu ego masculino, mostrara
que ele ainda era um homem charmoso e atraente, capaz de despertar o interesse de
uma mulher bonita, inteligente e segura de si mesma. Claro que não passaria disso,
já que os caminhos de ambos apontavam para diferentes direções: ela, recém-saída
de um casamento longo e precoce, buscava novas aventuras e sensações, como uma
ave anseia por voar. Ele estava em busca de alguém para partilhar um ninho.
Haviam se despedido sem combinar outro encontro, o que deixava claro que ambos
haviam chegado implicitamente à mesma conclusão sobre a possibilidade de um
relacionamento.
Ainda pensando naquele encontro fortuito, Christopher estranhou encontrar
a suíte às escuras. Cautelosamente entreabriu a porta do quarto para divisar na
penumbra a silhueta de Marjorie, envolta em um roupão, encolhida sobre a cama.
Pé ante pé, aproximou-se e constatou que ela dormia profundamente. Com cuidado,
cobriu-a com a metade livre da colcha sobre a qual ela adormecera e saiu do quarto,

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fechando silenciosamente a porta atrás de si.

CAPÍTULO IX

A Surpresa de Christopher
Na manhã seguinte, com o pretexto de estar com dor de cabeça, Marjorie
manteve-se o mais distante possível de Christopher. O fabuloso sol do deserto a
atraiu à piscina, onde ela passou toda a manhã. Almoçaram juntos num restaurante
indiano dentro do próprio hotel, Christopher sempre respeitando os longos períodos
de silêncio de sua acompanhante. Ele não insistiu quando ela recusou o convite para
acompanhá-lo em um tour pela cidade, alegando que precisava descansar mas
insistindo para que ele não perdesse a oportunidade.
No final do dia, Marjorie parecia mais disposta e o recebeu afetuosamente, o
que o animou a reservar uma mesa no melhor restaurante do hotel, para o jantar.
Às nove horas da noite, vestidos com elegância, eles se dirigiram para o
restaurante, conversando animadamente. Nada na expressão ou nas palavras de
Marjorie deixava entrever o tormento que a havia devastado na noite anterior. Com
tato e sensibilidade, Christopher nada comentou sobre seu encontro com a
venezuelana.
A mesa reservada para o casal supostamente em lua-de-mel ficava em um
canto privilegiado do restaurante. Era a mesa mais bem posicionada para assistir ao
show musical, estrelado por uma cantora de blues, negra, jovem e extremamente
bonita.
— Quer que lhe sirva um pouco mais? — ofereceu Christopher, gentil.
— Acho que estou exagerando, mas simplesmente não resisto — comentou
Marjorie, estendendo a taça. — A que vamos brindar desta vez?
— Você escolhe.
— Bem... deixe-me ver... Já brindamos aos roupões de seda...
— Sim. E pretendo levar o meu como lembrança — ele confessou afoito.
Marjorie pôs-se a rir como se tivesse ouvido o comentário mais engraçado do
mundo. Estava levemente embriagada pelo champanhe.
— O que é tão divertido?
— Pensar em você na fazenda, acordando no meio da noite para atender a
uma emergência qualquer...
— Sim? — Os olhos de Christopher, fixos em Marjorie, brilhavam de
admiração.
— Imagine a cena... Os peões parados na porta da sua casa, no meio da
noite, com um problema qualquer... um problema grave...
— Estou imaginando — ele mentiu, olhando para o generoso decote do
vestido preto que havia comprado para Marjorie em Topeka.
— Então você aparece na porta de chinelos, os cabelos desgrenhados, os
olhos inchados de sono e... preste atenção... — ela tentava controlar o riso —,
vestindo um roupão preto de seda, com o logotipo do hotel...
Os ombros de Marjorie sacudiam com o riso, os olhos cerrados, o pescoço
delicado exposto pelo gesto de inclinar a cabeça para trás.
Hipnotizado, Christopher só pensava em beijar aqueles lábios entreabertos,
vermelhos e sensuais, que ele sabia que eram macios e quentes ao contato...

Projeto Revisoras - 44
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— Você percebeu? — ela disse ainda rindo. — Imagine a cara dos peões, os
olhos arregalados na noite...
Christopher engoliu em seco, o coração pulsando forte.
— E... de fato, é muito engraçado.
— Então, por que está tão sério? Tome mais champanhe.
— Você não acha que está indo depressa demais? — ele tentou alertá-la.
— Eu estou parada, Christopher. O mundo é que gira, como diz a música.
Ele encheu novamente as duas taças. Marjorie era a companhia mais
divertida e adorável que um homem poderia desejar, pensou feliz.
— Coitada da Moira... — ela murmurou, numa súbita mudança de humor. —
Ela nunca o verá de roupão de seda.
E novamente explodiu numa gargalhada.
— Acho que podemos pedir o jantar agora — Christopher sugeriu,
preocupado.
— Não. Eu quero dançar. Não é todo dia que se passa uma lua-de-mel em
Las Vegas.
— Você é quem manda.
Ele se levantou e a conduziu para a pista no centro do restaurante. Poucos
casais dançavam na agradável obscuridade do recinto. Enlaçados, começaram a
mover-se lentamente sobre o piso de madeira. O contato do corpo de Marjorie com
o seu era perfeito, descobriu Christopher uma vez mais. Macio e tépido, parecia
moldar-se às formas do seu próprio corpo. Ele a apertou com mais força nos braços,
como se quisesse sentir através do tecido das roupas, a pele daquela mulher.
Marjorie gemeu baixinho, o rosto encostado ao peito de Christopher, que
beijava levemente seus cabelos. Com os olhos fechados, ela entregou-se à sensação
do momento. Não pensava em nada. As imagens fugidias, os sons, os cheiros, o
movimento e a música atravessavam-na como um fluxo de prazer inesgotável,
fundindo-a ao corpo de Christopher. Erguendo o rosto, ela abriu os olhos, curiosa
para ver se ele compartilhava pelo menos um pouco do que ela estava sen-
tindo naquele momento mágico. Precisava daquela constatação e não se
decepcionou.
Christopher a olhava com ternura e desejo, os olhos brilhando através da
pálpebras semicerradas. Seus lábios tocaram a testa de Marjorie e depois desceram,
beijando a ponta do nariz delicado e os lábios, que esperavam entreabertos por
aquele beijo.
Outros casais se animaram e agora um grupo considera-velmente numeroso
se deslocava na pista de dança. Alguns se estreitavam nos braços um do outro,
íntimos e sussurrantes... Havia no ar um perfume sutil e doce, que despertava os
desejos mais secretos.
Quando os músicos encerraram aquele segmento de melodias lentas e
românticas, e o som da bateria anunciou um ritmo mais agitado, Marjorie se afastou
de Christopher e, sem nada dizer, caminhou para a mesa, seguida por ele.
O maltre apressou-se para atendê-los, gentil e discreto, passando a um
garçom os pedidos para o jantar.
Pouco depois vieram os pratos, em constante e harmoniosa sucessão.
Marjorie provava um pouquinho de tudo, sempre entre goles de champanhe.
Christopher estava como que hipnotizado e seus olhos não se desviavam de Marjorie
nem por um momento sequer. Comia e bebia com moderação, como se aqueles

Projeto Revisoras - 45
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pratos sofisticados e o caro champanhe francês não tivessem grande importância.
— Por que está me olhando desse jeito? — Marjorie perguntou num dado
momento.
— Não me lembro de uma ocasião mais feliz do que esta em toda a minha
vida. E perfeito... — ele confessou. — Ouça, Marjorie... por que não esquecemos essa
coisa de procurar uma esposa para mim e nos casamos?
— Eu sabia que íamos acabar chegando nisso... Você não percebe que nunca
daria certo, Christopher?
— Por quê, Marjorie? — perguntou ele com ternura.
— Você quer uma mulher madura, para ter uma vida sólida e acomodada, e
eu não sou essa mulher.
Um Desafio para o Cupido
— E de onde vem essa certeza?
— Do fato de que não posso me casar e virar as costas para a missão de
aproximar as pessoas, que me foi confiada nesta vida. — Ela tentou parecer alegre:
— Cupidos não casam, promovem casamentos!
— Ora, Marjorie... isso é levar longe demais uma fantasia.
— Você pode considerar uma fantasia, mas esse dom que eu tenho é a minha
razão de viver, o motivo da alegria e felicidade que trago em mim. Negá-lo seria
negar minha própria existência.
Christopher compreendeu que Marjorie falava a sério. Ele sorveu um longo
gole de champanhe e então sentenciou:
— As pessoas, em períodos de sofrimento, descobrem que viver cada dia
como se fosse o único é uma maneira de erguer-se, de somar energias, para
sobreviver à dor.
— Por que está me dizendo isso? — ela perguntou, perplexa.
— Porque não importa o que vá acontecer depois, Marjorie, esta noite
perfeita ficará para sempre na minha lembrança, como uma prova de que a
felicidade existe e de que nós humanos fomos feitos também para desfrutá-la.
Marjorie estendeu a mão por sobre a mesa procurando a dele e os dedos se
entrelaçaram por um longo e delicioso momento.
Por fim, depois de servidos todos os pratos do jantar, um carrinho de
sobremesas foi conduzido para o lado da mesa, exibindo uma variedade de
tentações, porém ambos recusaram.
Christopher pediu café e licor ao garçom e, mudando sua cadeira para perto
dela, envolveu-lhe os ombros com um braço, e assim permaneceram por um longo
tempo, sem falar, simplesmente ouvindo a música.
Foi então que um funcionário do hotel aproximou-se e pediu licença para
fotografá-los.
— Queremos que levem desta noite, em nossa companhia,uma lembrança
para toda a vida — explicou o rapaz. — É um presente do hotel para os
recém-casados.
Christopher e Marjorie já haviam desistido de esclarecer aquele equívoco e
aceitaram a gentileza, sorridentes.
A foto foi tirada e, depois de prometer entregá-la na suíte nupcial, o
funcionário se afastou discretamente.
— Estou com sono — disse Marjorie com um leve bocejo. — Acho que
exagerei na bebida.

Projeto Revisoras - 46
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— Podemos nos recolher, se você quiser.
— Não. Você está gostando do show. Fique. Eu vou na frente.
— De maneira alguma.
Ele fez sinal para um garçom, que se aproximou respeitosamente, e pediu a
conta. A nota veio em seguida, e depois de assiná-la Christopher se pôs de pé,
dizendo:
— Seria estranho se eu a deixasse ir para a suíte sozinha, não acha?
— Eu nem sei mais o que estão pensando dessa história toda. Mas acho que
tem razão. Me dê seu braço que o chão está balançando — ela disse, rindo.
Quando eles entraram na suíte o balde de gelo com o champanhe já estava
sobre a mesa, e Marjorie serviu-se de uma taça, que levou consigo para o banheiro,
juntamente com o roupão de seda com o logotipo do hotel.
— Volto já — anunciou, afastahdo-se em passos inseguros.
Livrando-se dos sapatos e do paletó, Christopher desabotoou a camisa e
afrouxou o cinto, antes de ligar a televisão num programa de dança clássica e
estirar-se no confortável sofá.
Pouco depois, Marjorie saiu do banheiro, envolta no roupão, com os cabelos
presos no alto da cabeça e os pés descalços. Aproximou-se de Christopher com
passos miudinhos.
— Que tal? — perguntou, tentando precariamente manter o equilíbrio.
— Deslumbrante! — exclamou ele sincero.
Marjorie passou por ele e caminhou em direção ao quarto.Chegando na
cama, atirou-se de bruços sobre a colcha, onde permaneceu imóvel.
— Ei, Marjorie... venha ver como dança essa menina! É um fenómeno — ele
chamou da sala.
O silêncio foi sua única resposta. Um tanto preocupado, levantou-se do sofá
e foi até o quarto. Marjorie ressonava baixinho, encolhida no centro da cama.
Com delicadeza, ele retirou a colcha e acomodou-a entre os lençóis.
Em seguida sentou-se na cama e ali ficou, por um longo tempo,
contemplando a mulher profundamente adormecida.
Na manhã seguinte Marjorie saltou da cama bem cedo. Sonhara com Bella,
sua pastora belga, e queria vê-la antes de qualquer outra coisa. Só então deparou-se
com a janela panorâmica aberta sobre a mais famosa cidade-cassino do mundo. Las
Vegas estendia-se a seus pés, sob a luz lilás da manhã fria, coberta por um céu
absolutamente sem nuvens e no qual o sol começava a despontar. Era um espetáculo
sublime que se descortinava aos olhos de Marjorie, cuja sensibilidade encontrava-se
aguçada pelos acontecimentos dos últimos dias e pelo champanhe que bebera
excessivamente na noite anterior. Ela deixou-se ficar ali, a testa colada ao vidro frio,
até que o sol a cegasse, com seus raios avermelhados e rasantes.
Com um suspiro profundo, Marjorie voltou-se para o quarto vazio,
perguntando-se onde estaria Christopher. Teria dormido no sofá?
Com passos cautelosos, transpôs a porta aberta e lá estava ele, entregue ao
sono, a televisão ligada, o rosto forte em profundo repouso. A colcha da cama com
que se cobrira havia escorregado para o chão, deixando exposto o corpo musculoso e
bem-proporcionado. A pele de Christopher era morena e seus pêlos eram escuros e
lisos.
Por alguns instantes, Marjorie ficou imóvel, olhando ex-
Um Desafio para o Cupido

Projeto Revisoras - 47
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tasiada para o homem adormecido no sofá, usando apenas uma cueca branca
de algodão.
Marjorie nunca imaginara que a visão de um homem dormindo pudesse ser
tão fascinante. Contemplando Christopher, naquele momento, compreendeu o
significado da atra-ção sexual, da química que podia ocorrer entre um homem e
uma mulher, das emoções e sensações eletrizantes e esplendorosas que até então só
conhecera pelas descrições nos livros e nunca imaginara experimentar um dia,
julgando que fossem em grande parte fruto da imaginação fértil das autoras de
romances, fantasias que somente em sonhos pudessem se realizar.
Silenciosamente, como num transe, Marjorie livrou-se do roupão de seda e
deitou-se no sofá ao lado de Christopher, aninhando a cabeça em seu peito e
envolvendo-lhe a cintura com um braço.
Em meio ao sono, ele sorriu e aconchegou-a para si; Foi com naturalidade
que ela o livrou da pequena peça de algodão, presenteando-se com a visão de sua
virilidade pulsante.
Marjorie enterrou os dedos nos cabelos de Christopher, agora totalmente
desperto, e beijou-o na boca, numa entrega total, sem reservas.
Apoiando-se em um cotovelo, ele ergueu-se e a atraiu para si, cobrindo o
corpo macio com o seu, beijando-a nos seios e no pescoço, movendo os quadris
contra os dela numa tortu-rante provocação.
As sensações desencadeadas ganhavam força e velocidade enquanto os
corpos fundiam-se lentamente numa união harmoniosa e equilibrada, necessária,
perfeita.
Marjorie gritou o nome dele ao sentir-se invadida, envolvendo-o com seus
braços e pernas, como se ali quisesse aprisioná-lo para todo o sempre.
Um gemido rouco escapou da garganta de Christopher, enquanto lágrimas
de emoção e êxtase inundavam os olhos dela, vitrificados de prazer. Um prazer
indescritível, que ela sabia que não se limitava apenas ao plano físico. Naquele
momento, Marjorie teve plena consciência de que, o que quer que
acontecesse dali para frente, qualquer que fosse a maneira como o futuro se
desenrolasse, que outros homens cruzassem o seu caminho e porventura ela tivesse
com eles alguma intimidade, nos braços de ninguém mais ela sentiria o que sentira
nos braços de Christopher, enquanto vivesse. E então, como se fossem um só ser,
corpo, mente e alma, adormeceram aconchegados um ao outro, num encaixe per-
feito, que somente a natureza era capaz de criar.
Christopher e Marjorie tomaram o café da manhã na varanda do restaurante
do segundo andar, de frente para a avenida principal, já bastante movimentada
àquela hora do dia. Suco de laranja e torradas com geléia para ela, chá preto e pão
de centeio com manteiga, para ele. E café preto e forte, com açúcar, para ambos.
Depois do café, saíram do hotel num carro conversível, alugado por
Christopher, para uma volta pela cidade.
Marjorie divertiu-se bastante nas lojas e butiques, vendo os preços
astronómicos afixados em quinquilharias sem valor. O desfile de carros importados
era quilométrico, mas eles haviam sido avisados de que os astros e estrelas de
cinema e as figuras ilustres só apareciam à noite.
O almoço foi um delicioso cachorro-quente com mostarda e refrigerante bem
gelado, uma opção maravilhosa depois do jantar extravagante da véspera.
Foi no final da tarde que Marjorie pediu a Christopher que a levasse de volta

Projeto Revisoras - 48
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ao hotel. Queria descansar... sozinha, conforme fez questão de frisar.
Compreensivo, ele a deixou na entrada do hotel e entregou o carro ao
manobrista, para então voltar a percorrer as ruas extremamente limpas da cidade,
numa caminhada necessária para pôr seus pensamentos em ordem.
O efeito do que ocorrera entre ele e Marjorie naquela manhã ainda não havia
sido completamente absorvido. Estava
surpreso e assustado com a intensidade de seus sentimentos em relação a ela
e não sabia como lidar com a situação.
Na suíte nupcial do hotel, Marjorie olhava com ternura para o sofá onde
conhecera- o significado da palavra "amor". A mala de couro, a frasqueira e sua
bolsa estavam agrupadas no chão, perto da porta.
Pegando a caneta e o bloco de anotações ao lado do telefone, ela escreveu um
bilhete:
Christopher querido,
Não espero que compreenda o que estou fazendo, porque eu mesma não
entendo direito. O instinto me diz que devo partir e pôr um fim a essa farsa. Creio
que desde o início eu sabia, de alguma forma, que jamais poderia ser seu cupido.
Pela simples razão de haver me apaixonado por você, no momento que o vi entrar
na agência do correio em Valentine. Sei que estou lhe causando uma decepção
profunda, mas acredite, é melhor assim. Eu não suportaria vê-lo com outra mulher,
quanto mais ajudá-lo a encontrar uma esposa. Não me queira mal.
Um beijo.
Marjorie
Depois de dobrar a folha de papel ao meio e colocá-la num local visível sobre
o sofá, ela ligou para a recepção e pediu um táxi.
Minutos depois deixava o hotel, rumo ao aeroporto.

CAPÍTULO X

Christopher Conversa com Johnnie


O choque e a decepção que atingiram Christopher ao voltar para o hotel não
se comparavam, nem de longe, a qualquer outra coisa que tivesse acontecido em sua
vida marcada por desilusões, desapontamentos e frustrações.
Parado no meio da sala da suíte, com o bilhete de Marjorie nas mãos, ele
simplesmente não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo.
Enquanto caminhara pela cidade, tivera tempo de pensar e analisar a
situação, embora não compreendesse o que levara Marjorie a se entregar a ele,
depois de rejeitar a ideia de casamento.
A lembrança do ato de amor com Marjorie era a mais feliz da sua vida, e no
que dizia respeito a si próprio, tinha certeza de que era ela a mulher da sua vida.
Christopher não se considerava um ingénuo. Vivera desde a mais tenra
adolescência entre mulheres mais experientes que ele e sabia separar o joio do trigo.
Como todo jovem, apaixonara-se por um corpo sensual, uma carinha bonita, uma
conversa fantasiosa. O tempo lhe mostrara que o amor físico era uma necessidade
recíproca entre os sexos e que, se recebera muito das mulheres, muito mais dera em
troca, com sua pureza juvenil, virilidade e alegria.
Christopher chegara a considerar a possibilidade de nun-
Um Desafio para o Cupido

Projeto Revisoras - 49
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ca se casar. Não desejava ter filhos e o sexo era tão fácil e naturalmente
encontrado em todas as partes... Mas o tempo ia passando, e aos trinta e cinco anos,
ele começava a se questionar sobre o amor no relacionamento entre os casais. O que
era esse sentimento, tão exaltado nas poesias, nas letras das músicas, nos livros e
nos filmes?
Essa pergunta o perseguia nas longas cavalgadas, nos dias monótonos e
arrastados de trabalho físico, nas noites geladas e solitárias dos longos invernos. As
respostas lhe ocorriam e faziam sentido por algum tempo, até que a realidade dos
fatos da vida vinham provar que eram inconsistentes.
A amizade, sem dúvida alguma, era a estrutura básica do amor. Sobre esse
alicerce se construía a confiança, o afeto e o altruísmo.
A perigosa e traiçoeira paixão era fundamental na receita do amor. Era
preciso saber domá-la, como a um potro selvagem, com coragem e ousadia, mas
também com habilidade e paciência. A paixão era como a sede, tinha que ser
saciada.
A admiração pelo outro ser, o carinho, a compreensão, a ternura, e
principalmente a paz que se sentia ao lado de alguém começaram então a serem
valorizados por ele como fatores fundamentais em sua busca pelo amor.
Christopher descobrira que a grande ironia da vida era que todas essas
qualidades que ele descobrira e aprendera a valorizar vinham espalhadas,
distribuídas entre as mulheres. Nunca reunidas numa só. Até conhecer Marjorie.
Ela era como a água límpida e cristalina que mata a sede, era o sal e a
doçura, a união de todos os temperos e sabores... Era o ar e o fogo no crepitar da
paixão...
Caminhando pelas ruas de Las Vegas, Christopher sorrira para o sol.
Sim, ele vencera... Quando estava prestes a desistir de sua busca e casar-se
por conveniência recíproca, com uma mulher adequada, carinhosa e sossegada,
encontrara sem querer o que procurara por toda sua vida.
Fora uma sorte fenomenal. O amor existia. Não como uma palavra apenas, o
símbolo da utopia, algo que se almeja e nunca se alcança. Ele conhecera o amor na
forma de uma mulher, para tocar e beijar, acariciar e completar-se.
Exaltado por aqueles sentimentos, Christopher voltara ao hotel para
encontrar sobre o sofá, onde poucas horas antes conhecera a glória do amor, o
bilhete de Marjorie e seu adeus.
Mortalmente pálido, caminhou até a grande janela que dava para a avenida e
contemplou a cidade, exposta aos raios do sol que se punha as suas costas. Ali
permaneceu até que as primeiras luzes, artificiais e multicoloridas, iluminassem a
cidade da fantasia e da solidão.
Uma semana havia se passado desde que Marjorie voltara precipitadamente
de Las Vegas. A vida em Valentine seguia seu curso como em toda pequena cidade
interiorana, com seus dilemas previsíveis, suas alegrias e aborrecimentos.
Ainda de férias, com pouco o que fazer e nada para se distrair, Marjorie
decidira reformar o chalé onde morava, começando por ampliar a varanda dos
fundos. Para isso contratara dois homens, um mestre-de-obras e seu filho, que
começaram o trabalho imediatamente. Ela resolvera também pintar as paredes
internas e substituir o papel de parede da sala, que estava gasto e desbotado. Dessas
tarefas ela própria se encarregaria, como uma maneira de passar o tempo e desviar o
pensamento de Christopher e de tudo o que acontecera entre eles.

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No entanto, ao cair da noite, quando não ia à casa dos pais ou não estava em
companhia de amigos, era quase impossível não recordar os detalhes daquilo que
preferia considerar como um sonho. Um lindo sonho. Então ligava o rádio e
caminhava pela casa, fazia chá ou café, saía para o quintal na noite gelada com o
pretexto de ver as estrelas, voltava para a cozinha, lavava lentamente a louça, até
que cansada, recolhia-se ao quarto onde tentava ler algum livro até que o sono
fechasse suas pálpebras e ela mergulhasse em um sono leve e inquieto.
No dia seguinte saltava da cama muito cedo e, depois do desjejum, inventava
uma corrida pelos campos, ao redor da casa, em companhia de Bella, sua cachorra
belga, fiel companheira de todas as horas. Depois havia uma refeição para preparar,
um armário para ser arrumado, uma viagem à cidade em seu velho carro, para
comprar algum material necessário a reforma, ou para encontrar alguma pessoa co-
nhecida, uma visita aos pais...
Assim o tempo ia se arrastando para ela.
Após algumas semanas, a reforma terminou e, depois de uma faxina
minuciosa e completa, Marjorie decidiu comemorar o evento com um jantar para os
amigos. As férias estavam chegando ao fim e em breve ela reassumiria seu posto na
agência do correio. Tinha de aproveitar seus últimos dias de ócio e liberdade.
Foi naquela mesma tarde, enquanto estacionava seu velho automóvel em
frente ao chalé, que uma visão inesperada a sobressaltou, abalando a aparente
serenidade que ela conseguira impor a sua vida à custa de rígida disciplina. No topo
da colina, contra a luz do sol poente, delineava-se a silhueta de um homem na sela
de um cavalo. Podia ser qualquer vaqueiro, voltando para casa depois do trabalho ou
das compras, ou indo ao centro de Valentine para encontrar amigos no saloon do
Halley.
Mas a visão do cavaleiro alto e magro ressuscitou em Marjorie as lembranças
da cavalgada que fizera em companhia de Christopher, naquele dia mágico e
distante, que tentara encerrar na memória para não sofrer inutilmente.
Uma melancolia profunda a dominou, e ela permaneceu por um longo tempo
ali parada, com as sacolas de compras nas mãos, a porta do carro ainda aberta. O
impacto daquela imagem no alto da colina penetrara sua sensibilidade, agora
vulnerável e indefesa, fazendo-a reconhecer o cavaleiro, como se fosse realmente
Christopher Easterbrook, em seu cavalo quarto-de-milha, o corpo esbelto e forte
empertigado na sela, delineado contra o céu do entardecer.
Uma avalanche de sentimentos contraditórios manifestou-se em lágrimas
incontroláveis que correram por sua face pálida. Então, como num sonho, o cavalo
moveu-se lentamente, desaparecendo atrás da colina.
Trémula e confusa, Marjorie bateu a porta do carro e caminhou para dentro
de casa, tentando controlar-se. Depositou as sacolas no chão, num canto da área de
serviço, e foi para o banheiro, onde passou longos minutos debaixo do chuveiro,
com a esperança de que a água quente ajudasse a aliviar a dolorosa opressão em seu
peito.
Depois de secar e desembaraçar os cabelos, ela vestiu uma calça capri de
sarja listrada e uma camiseta de algodão, e calçou um par de alpargatas novas,
azul-escuras.
Quando os convidados chegaram, alegres e fazendo alarido, ela já recuperara
o equilíbrio. O único sinal ocasional do turbilhão emocional pelo qual passara era
um olhar vago no intervalo de uma conversa, um ar distraído e ausente em meio a

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uma frase engraçada. No mais, era a Marjorie "Cupido" Jones Swettenham de
sempre, com o sorriso mais meigo de Valentine, uma luz constante naquela
cidadezinha sem graça e perdida no mapa.
Christopher Easterbrook conhecera um grupo de estróinas em Las Vegas, no
dia seguinte à partida de Marjorie. Durante os dias em que ali permaneceu,
percorria com eles os cassinos, gastando rios de dinheiro mas também, muitas
vezes, ganhando quantias consideráveis.
Fazia parte do grupo um casal de artistas de cinema, com os quais ele
desenvolvera uma afinidade que, depois de três doses de uísque, podia ser
considerada como amizade. O resto do grupo não o desagradava particularmente.
Cínicos empresários da construção civil, um brasileiro filho de fazendeiros
milionários em férias nos Estados Unidos, uma bailarina, um jornalista decadente e
algumas companhias fortuitas.
Com esse grupo, Christopher permaneceu até cansar-se de tentar esquecer o
que não podia ser esquecido. Até que numa manhã nublada, de ressaca e um
tremendo mau humor, ele fechou a conta no hotel e pegou o primeiro vôo para
Kansas. Não voltou imediatamente à fazenda. Não tinha qualquer espécie de
compromisso. Seu carro havia ficado no estacionamento do aeroporto de Topeka e
por essa tola razão, passou um fim de semana na capital, esquadrinhando a cidade
que não conhecia muito bem. Na segunda feira, depois de comprar uns presentinhos
para a governanta Mur-gatroyd e o capataz Johnnie, partiu de carro para casa.
Murgatroyd o recebeu na porta com um abraço apertado e afetuoso.
— Você está abatido! O que foi que aconteceu? — ela perguntou ao estudá-lo
de perto.
— Histórias para ser contadas aos poucos, em frente à lareira, e não aqui,
em pé, depois de dirigir o dia todo.
— Você tem razão. Vamos... entre. Vou fazer um café enquanto você toma
um banho e troca de roupa.
— É uma boa ideia. Como vão as coisas por aqui?
— Nenhuma novidade. Johnnie sabe administrar a fazenda e estamos no
inverno...
— Alguém telefonou? — Havia uma vaga esperança em sua voz.
— Deixei a secretária eletrônica ligada para guardar os recados para você.
Minha memória já não é a mesma, você sabe.
Subitamente animado, Christopher deixou as malas na sala e foi ao escritório
conferir as mensagens: uma era do gerente do banco, algumas de fazendeiros
vizinhos e uma dos novos amigos de Las Vegas. Nenhuma de Marjorie.
Desalentado, foi para o quarto e entrou no banheiro. Pouco depois, tomava
um café na sala em companhia de Murgatroyd. O administrador chegou logo depois
e ficou para o jantar. Até as dez da noite ficaram os três conversando sobre os
assuntos da fazenda, e assim que Johnnie se despediu, Christopher foi para o quarto
e atirou-se sobre a cama, onde logo adormeceu profundamente.
No dia seguinte, bem cedo, arreou seu cavalo preferido e saiu sem destino,
com a intenção de ver como andavam as coisas na fazenda. Tomou o café da manhã
na casa do administrador, Johnnie Rydesdale, que o recebeu na mesa com sua
simpática esposa Anna e os dois filhos adolescentes. De lá partiram juntos, visitando
cada setor, até chegar ao limite da propriedade, demarcado por uma estrada de
terra.

Projeto Revisoras - 52
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— O senhor não é mesmo de conversar muito, mas não disse uma única
palavra desde que saímos de casa — observou Johnnie, puxando as rédeas de seu
cavalo.
— Estou pensando, meu amigo.
— Problemas?
Christopher assentiu com um gesto de cabeça e desmontou, esticando as
pernas. Johnnie o imitou.
— O inverno não vai ser muito longo esse ano — comentou Christopher ao
acaso.
— De fato. O tempo está quente para esta época.
O silêncio das pastagens era profundo e o vento balançava os ramos
desfolhados dos arbustos.
— Às vezes penso em vender tudo isso, Johnnie... essas terras, o gado, os
cavalos... tudo. — Ele fez um gesto abrangente com as mãos. — E sair por aí, mundo
afora — acrescentou quase com amargura.
— Mas o senhor iria fazer o quê? — perguntou o administrador, espantado.
— Sei lá...
Johnnie Rydesdale sorriu e balançou a cabeça, numa concordância
automática.
— Eu também tenho essa vontade, às vezes... mas então penso em Anna e
nas crianças e acabo ficando mais um ano e outro...
— Você tem uma família... É diferente.
— Vai ver que é isso que está lhe fazendo falta. Não é bom viver sozinho.
Principalmente no inverno.
— E você acha que eu não sei disso? — retrucou Christopher irritado.
— Então por que não se casa?
— Porque se eu me casar, Johnnie, terá de ser com alguém especial para
mini. Até cheguei a fazer planos com uma moça com quem me correspondi, mas ela
mudou de ideia e preferiu se casar com o dono do armazém de Valen-tine —
desabafou.
— O Crowell?
— Eu não sei o nome dele, mas deve ser esse mesmo.
— Mas o homem é viúvo e tem três filhas! Que mulher iria se dispor a
enfrentar uma empreitada dessas?
— A que eu escolhi para casar — respondeu ele com um sorriso amargo e
irónico.
— Então o senhor se livrou de uma dor de cabeça. A mulher deve ser maluca.
— Não é não, Johnnie. Ela não pode ter filhos e queria... O sujeito tem as
filhas e queria uma mulher... Juntaram-se a fome e a vontade de comer.
— Bem... assim, até que dá para entender. Trocar um homem jovem e
vigoroso, proprietário de terras, por um bem mais velho, com três filhas e um
armazém... não é coisa muito comum de se ver por aí.
— Mas acontece... comigo, é claro.
O capataz começou a rir, tentando disfarçar com o chapéu.
— E por que não arruma outra? Não é tão difícil assim, eu acho.
— Eu arrumei, Johnnie.
— Bonita?
— Linda.

Projeto Revisoras - 53
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— Honesta?
— Mais que honesta. Pura.
— Então por que está com essa cara infeliz?
— Ela acha que é um cupido.
Christopher fitou o capataz nos olhos como se ali estivesse a resposta para
todos os seus problemas.
— E o que é um cupido? Christopher riu.
— É uma figura mitológica, um anjinho traquinas que atira flechas nas
pessoas, fazendo com que elas se apaixonem umas pelas outras.
— O senhor só pode estar brincando comigo!
— Não estou, não — ele assegurou, muito sério.
— E por que essa moça pensa que é esse anjo?
— Porque ela já aproximou vários casais em Valentine. É responsável por um
bom número de uniões que deram muito certo. Parece que ela tem um dom
especial...
Johnnie não parecia muito convencido.
— Não sei não, patrão... A outra, pelo menos, tinha um motivo razoável, já
que queria tanto ser mãe... mas essa... O senhor vai me desculpar, mas acho que está
precisando se benzer. Onde já se viu uma coisa dessas...
— E sabe o que mais, Johnnie... Você a conhece.
— Eu? — ele perguntou espantado.
— Você nunca foi ao correio de Valentine?
— Claro. Muitas vezes... Mas o que tem isso a ver...
— Não se lembra da agente de lá, uma moça bonita, meio ruiva, com olhos
cor-de-mel?
— Ah... Agora sei de quem o senhor está falando. A mãe dela também foi
funcionária do correio. Agora me recordo de ter ouvido comentários... De fato, o
povo lá em Valentine diz que essa moça arrumou casamento para muita gente da
cidade. É ela, então?
— Essa mesmo.
— E ela não quer se casar com o senhor porque acha que tem de continuar
casando os outros?
— Você resumiu a história toda, Johnnie.
A fisionomia do administrador se transformou, à medida que o ar de riso
desaparecia de seu rosto castigado pelo sol e pelas intempéries. Parecia distante,
mergulhado em pensamentos. Depois de algum tempo falou:
— O senhor gosta mesmo dela?
— Gosto, Johnnie, gosto muito. Sou louco por ela.
— E por que não fala com a mãe da moça?
— Você acha que adianta?
— Se a mãe não souber o que fazer, quem vai saber...
— Eu não tinha pensado nisso.
— Vá falar com ela. Explique direitinho suas intenções, diga que gosta da
filha e coisa e tal... Vai ver como tudo se arranja.
— Quem sabe... — Um brilho de esperança iluminou os olhos de Christopher.
— Eu acho que não custa nada. Pior do que está, não pode ficar — filosofou o
capataz, com sua sabedoria mundana. — Como se costuma dizer, perdido por um ou
perdido por mil, dá no mesmo!

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Christopher riu e deu um tapinha afetuoso no ombro do homem.
— Acho que você tem razão, Johnnie. Talvez possa dar certo. Agora vamos,
que Murgatroyd já deve estar com o almoço pronto há muito tempo.
Com agilidade, os dois homens montaram nos respectivos cavalos, que
trotaram de volta para casa.

CAPÍTULO XI

Christopher Conversa com Verônica

Marjorie sabe que você está aqui? .— Não. Vim por minha conta e risco.
O diálogo transcorria na varanda da casa dos pais de Marjorie em Valentine,
entre Verónica Jones Swettenham e Christopher Easterbrook.
— Não me parece muito ético — disse a mãe de Marjorie em dúvida.
— Eu sei. Mas a situação é de emergência. A senhora é minha única
esperança.
— Deixe de formalismos, Christopher. Sou Verónica, para todos que me
conhecem.
— Certo, Verónica. Só você pode me ajudar a encontrar uma solução para o
meu problema.
Por de trás dos óculos de grau, os olhos verdes da mulher examinavam o
visitante inesperado, com tranquilo interesse.
— E como chegou à conclusão de que eu poderia ajudá-lo?
— Conversando com o administrador da minha fazenda. Foi ele quem
sugeriu que eu viesse vê-la.
— Sei...
O silêncio que se fez depois daquela troca inicial de palavras era enervante e
Christopher chegou a considerar a opção de desistir e ir embora. Mas então
Verônica pediu em tom neutro:
— Deixe-me ver suas mãos.
Sem titubear, ele as estendeu sobre a mesa.
— As palmas para cima — ela ordenou. Ele obedeceu.
Curvando-se um pouco, a mãe de Marjorie examinou longamente as mãos de
Christopher, dando-lhe a estranha sensação de que elas estavam ali como que
independentes do resto do corpo.
— Em que ano, mês, dia e hora, você nasceu, Christopher?
Ele deu as informações e Verônica as anotou, calmamente, numa folha de
papel vegetal. Depois a estranha mulher fez uma série de perguntas que pareciam
não ter ligação entre si, anotando cuidadosamente as respostas.
Christopher tinha a impressão de que se encontrava num consultório
médico, com um clínico geral, sendo examinado por algum problema de saúde.
Sem nenhuma pressa, como se o tempo não tivesse a menor importância,
Verônica afastou-se da mesa, recostou-se na cadeira e então pediu:
— Fale-me sobre o que está acontecendo.
— Por onde devo começar?
— Não se preocupe com isso. Tudo está num círculo. Se você pular alguma

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parte eu o lembrarei.
— Duvidando bastante daquele método exótico, Christopher pigarreou antes
de dizer:
— Conheci sua filha no correio de Valentine, onde tinha um encontro
marcado com a mulher que, eu acreditava, viria a ser minha esposa.
— Por que ainda está solteiro aos trinta e cinco anos de idade, Christopher
Easterbrook? — ela interrompeu mansamente.
— Bem... é uma longa história. — Ele suspirou.
— É a mesma história, em outro ponto do círculo, não concorda?
Ele sorriu, entendendo o método que Verónica propunha.
— Então, creio que devo começar um pouco antes.
— Certo — ela aprovou, satisfeita.
— Nasci na fazenda de meu pai, a trinta quilómetros daqui...
A manhã passava vagarosamente, como gotas pingando das folhas de uma
árvore depois da chuva. Christopher, que começara o relato de sua vida de maneira
nervosa e um tanto confusa, encontrara um ritmo adequado, quase melodioso, para
relembrar o passado. Verónica tinha uma maneira calma e atenta de ouvir, que o
deixava relaxado, à vontade. Suas perguntas e sugestões sempre se encaixavam no
momento certo, sem jamais deter o fluxo das palavras de Christopher. Às vezes ela
pedia que ele repetisse algum trecho, que ele nem mesmo se lembrava de ter citado.
Em outros momentos, perguntava alguma coisa que aparentemente não tinha nada
a ver com o assunto, desviando com habilidade o curso do relato para outra direção.
Parecia uma costureira, incrivelmente talentosa, juntando retalhos para formar uma
colcha.
Então chegou o momento em que o silêncio de uma pausa se estendeu para
além do círculo que Christopher percebera, claramente, estar percorrendo, com
palavras, previsões, imagens e recordações.
O sol estava a pino, ele constatou, pela sombra vertical de uma árvore no
jardim. A manhã se esgotara e Christopher não estava cansado. Ao contrário,
sentia-se leve e calmo.
Verónica deixou a varanda por uns instantes e depois voltou trazendo uma
bandeja com um bule de café e xícaras. Eles beberam em silêncio e depois ela disse:
— Foi um prazer conhecer você, Christopher... — Estendeu a mão por sobre a
mesa, enquanto se erguia da cadeira.
Desapontado, ele fez o mesmo.
— O prazer foi recíproco. O que pretende fazer?
— Conversar com minha filha. Volte amanhã. Estarei esperando por você.
Quando Christopher alcançou a rua tranquila, seu coração pulsava forte e
cheio de esperanças. E foi nesse estado de ânimo que voltou para a fazenda.
O telefone no correio de Valentine não parara de tocar a tarde inteira,
atrapalhando o trabalho de Marjorie. Por isso, quando atendeu ao chamado de
Verónica, estava impaciente:
— Mamãe... Que novidade você ligar para cá. Aconteceu alguma coisa?
— Que pergunta boba. Sempre está acontecendo alguma coisa.
— Eu sei... Desculpe... É que o telefone não parou de tocar e estou atrasada
com os despachos.
— O que tenho para dizer é rápido. Você pode vir aqui depois do trabalho?
— Posso, sim...

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— Então estou esperando você. Um beijo, filhinha.
— Outro para você, mamãe.
Às cinco e quinze da tarde, Marjorie estacionou em frente à casa dos pais e,
para sua surpresa, Verónica a aguardava no portão, vestida para sair, com a bolsa na
mão.
— Não sabia que íamos sair — disse depois de beijar a mãe em ambas as
faces. — Aonde quer ir?
— Pegue a via expressa — ordenou Verônica. — Precisamos conversar.
Sem mais explicações, ela sentou-se no banco do passageiro.
Atravessaram a cidade no carrinho velho de Marjorie, acenando para um e
outro conhecido, e em poucos minutos encontravam-se na via expressa.
— Estou morrendo de curiosidade — disse Marjorie. — Por que fez questão
que nossa conversa acontecesse fora de casa?
— Não quero que seu pai ouça o que temos a dizer. É um assunto de
mulheres...
— Então fale logo, mamãe. O que está acontecendo?
— Christopher Easterbrook esteve em casa hoje de manhã. Ficamos
conversando, ele e eu, até depois do meio-dia.
— E como ele está?
— Triste, confuso... perdido.
— E você pode ajudá-lo?
— Um pouco. Mas é como curar o efeito sem remover a causa do mal. Você
sabe...
— Já não sei mais o que eu sei, mamãe. Também estou sofrendo — ela
confessou, baixinho.
— E por quê, minha filha?
— Porque amo esse homem e não posso fazê-lo feliz.
— Por causa do dever para com o seu dom, não é verdade?
— Sim. Ele quer o impossível. Que eu me case com ele.
— E você... o que acha disso?
— Ora, que pergunta, mamãe...
— Você não entendeu. O que quero saber é o que pensa em relação ao
casamento. Se pudesse, você se casaria com ele?
— Claro que sim. Mas você sabe melhor do que ninguém que minha missão
no mundo é unir as pessoas separadas pela falta de visão. Se eu traísse o dom que
me foi concedido, me sentiria inútil e vazia.
— Eu sei do que você está falando, minha filha. As pessoas comuns, que se
sentem como você, costumam praticar obras beneméritas ou até mesmo filiar-se a
uma ordem religiosa.
— O que me revolta, mamãe, é que todos aceitam a ideia de uma mulher ser
freira, missionária, ou enfermeira na África. Mas dão risada e me olham como se eu
fosse uma débil mental quando percebem que eu levo a sério o meu dom e a minha
missão de unir as pessoas.
— Você já devia ter se acostumado com isso. Faz parte do conhecimento.
— E como fazer Christopher entender o que às vezes nem eu mesma
entendo? — Lágrimas corriam pelo rosto de Marjorie enquanto ela dirigia pela
deserta.
— Mas há uma contradição nisso tudo, minha filha. Você está sofrendo.

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— Cupidos não se casam, mamãe.
— E nem choram, filha. São traquinas e alegres... maliciosos e brincalhões
como você é, querida.
— Como eu fui — Marjorie corrigiu. — Não sei se ainda sou assim.
Ela começou a soluçar.
— Encoste o carro, Marjorie, pelo menos até você se acalmar.
Ela obedeceu, diminuindo a velocidade e parando no acostamento.
— Não posso negar o quanto fui feliz até aqui. Mas alguma coisa mudou,
mamãe. Não sei mais se considero o meu dom uma bênção ou um fardo a ser
carregado.
Sorrindo com ternura, Verónica acariciou os cabelos de Marjorie por um
longo tempo.
— Filhinha... Nessa vida tudo se transforma. A evolução é uma realidade que
nos acontece.
— O que você está tentando me dizer?
— Que talvez seja hora de mudar. O sofrimento é como a febre. Serve apenas
para indicar que existe algo errado no modo como estamos conduzindo nossa vida.
— Mas não sinto que posso viver sem ajudar o próximo e não tenho a menor
vocação para ser freira ou missionária na África.
— Existem muitas maneiras de ser útil no mundo, Marjorie. E não somos
nós que determinamos como fazê-lo. É preciso ter serenidade e bom senso para dar
cada passo no momento certo.
— Eu não me sinto serena nem sensata. Estou triste, quase em pânico.
— Toda mudança traz desconforto. E uma lei. Verónica ajeitou-se no banco,
virando-se para a filha.
— Você sabia que Christopher tem um problema sério quanto a ter filhos? —
perguntou, mudando de assunto e conduzindo a conversa para outro rumo.
— Não... Só sei que ele ia se casar com uma mulher que não podia ter filhos.
— E não se perguntou o por quê?
— Para ser sincera, não.
— Sabia que o pai de Christopher era alcoólatra e que ele teve uma infância
terrível?
— Mais ou menos... Ele mencionou por alto. Marjorie lembrou-se de quando
ele lhe pedira que não o
chamasse de Chris. Provavelmente o pai o chamava assim, e ele associava o
apelido às agruras por que passara quando criança. Um suspiro entrecortado
escapou de seus lábios.
— Mas aonde você pretende chegar, mamãe? — indagou.
— Bem... talvez... eu disse talvez... se você não se casar com Christopher,
nunca haverá uma menininha de cabelos avermelhados e olhos cor de mel, risonha e
traquinas, com o coração tão grande que não suporta ver as pessoas sozinhas e
tristes, por falta de visão de alguém...
— Um cupido...
— Você entendeu. Talvez tenha chegado a sua hora de ser feliz, Marjorie.
Talvez você já tenha cumprido tão bem a sua missão e ajudado tantas pessoas a
encontrar a felicidade, que tenha merecido saltar para outra fase, digamos assim.
Pense nisso, querida.
— Vou pensar, mamãe... Eu prometo.

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Em silêncio, Marjorie pôs o carro em marcha. E em silêncio voltaram para
Valentine.

CAPITULO XII

A Façanha Final

A presença do comprador de cavalos na fa-. zenda de Christopher


Easterbrook era sempre uma ocasião de singular emoção para ele. Saber que aqueles
animais, selecionados geneticamente, iriam seguir seu destino longe dos cuidados
dele, lhe causava uma inevitável sensação de perda. Tinha uma admiração profunda
por aqueles belos e orgulhosos animais que compreendia profundamente. Sabia que
cada um possuía uma personalidade distinta e que alguns sentiriam a mudança
mais do que outros. Por isso, como de costume, tivera o cuidado de anotar na ficha
de cada um, além do pedigree, suas características individuais, suas preferências
alimentares e climáticas, bem como as instabilidades ocasionais em situações
imprevistas.
Essa conduta angariara a Christopher um respeito maior como criador de
equinos e já era imitado em todo o país por aqueles que compreenderam que seu
método era um avanço na comercialização da espécie.
Depois de concluir as negociações, Christopher convidou o comprador para
o almoço que Murgatroyd preparara com o capricho de sempre, e permaneceram na
mesa até bem tarde, conversando sobre os movimentos comerciais previstos para a
primavera que se aproximava.
Quando o visitante deixou a fazenda levando no trailer os animais
adquiridos, Christopher deixou-se ficar por um longo tempo na varanda. O cheque
no bolso de sua jaqueta era uma prova concreta do sucesso que mais uma vez obti-
vera naquele ramo de negócios no qual se especializara com o passar dos anos. O
sentimento de tristeza que o invadia ao ver partir aqueles animais já lhe era familiar,
e sabia como lidar com ele. Uma pequena viagem de fim de semana para uma das
cidadezinhas mais próximas costumava ser um antídoto poderoso ao sentimento
inquietante de perda que acompanhava aquelas vendas necessárias à continuidade
dos negócios.
Mas algo havia mudado no íntimo do solitário fazendeiro. O simples
pensamento de uma noite perdida num ambiente esfumaçado e barulhento o
irritava, agora. Podia ver, sem esforço, os rostos congestionados pela falsa euforia
causada pelo álcool, o teatro absurdo dos fatos corriqueiros transformados em
assuntos interessantes e até mesmo vitais, por pobres solitários que, como ele,
simulavam uma satisfação que estavam longe de sentir. Muitos deles eram homens
cujos lares haviam perdido o encanto com o passar do tempo. Homens cujas esposas
envelhecidas e cansadas já não lhes ofereciam os mesmos sonhos e atrativos. Havia
os aventureiros que, sempre em movimento, pareciam buscar algo que jamais
encontrariam, contentando-se em reunir a cada noite de devassidão pedaços de um
todo que lhes escapavam entre os dedos. Outros sofriam o mal do amor não
correspondido, ou de uma ambição não alcançada.
Com um sorriso irónico e melancólico, Christopher decidiu que daquela vez
seria diferente, não engrossaria o rol dos desesperados em um daqueles bares que

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tanto conhecia. . Ficaria em casa, em frente à lareira acesa, ouvindo música. Talvez
convidasse Johnnie Rydesdale para umas rodadas de pôquer ou mesmo
Murgatroyd, para uma partida de gamão, que ela tanto gostava de jogar.
Armado daquelas intenções, Christopher entrou em casa e foi para seu
quarto tomar um longo banho e colocar roupas velhas e confortáveis para uma noite
de recolhimento. Mas
ao sair do banho, a lembrança de Marjorie o assaltou com uma intensidade
assustadora. Queria vê-la, mesmo que fosse só por um instante, para comprovar que
ela existia, que ainda sabia sorrir daquele modo delicioso que ele aprendera a amar.
Sacudindo a cabeça, tentou afastar aqueles pensamentos, mas a imagem de Marjorie
se tornava cada vez mais vívida em sua mente, transformando o desejo de vê-la em
uma necessidade urgente como a sede.
Até as sete horas da noite, Christopher tentou resistir e depois, irritado
consigo mesmo, livrou-se de suas roupas velhas e confortáveis, vestiu uma calça
jeans limpa e uma de suas camisas mais novas, e saiu de casa em direção ao carro,
sem dizer uma só palavra a Murgatroyd que, na cozinha, preparava o jantar.
A noite estava fria e o céu encoberto. Os faróis do carro iluminavam a pista
deserta. Pássaros noturnos levantavam vôo do asfalto que ainda conservava um
resto de calor do sol efémero do dia que findara. Christopher não pensava enquanto
dirigia. Como que atraído por uma força magnética e irresistível, pisava fundo no
acelerador, guiando na direção de Valentine, aquela pequena cidade sem graça,
onde seu coração estava preso a uma jovem que parecia não fazer a menor questão
de lembrar que ele existia.
Era irracional... ridículo... absurdo... sem sentido, ele dizia a si mesmo
enquanto seu carro devorava velozmente o asfalto, ávido, sedento.
Quando as luzes de Valentine despontaram a distância, Christopher
diminuiu a marcha e procurou controlar a impaciência que parecia impulsioná-lo a
atravessar a cidade em menos de um minuto. O chalé de Marjorie era seu obje-tivo,
mas havia a possibilidade de ela estar num dos bares ou restaurantes do centro, em
companhia de amigos.
Assim, ele vasculhou atentamente as ruas principais, procurando localizar o
carro dela estacionado nos pontos de maior frequência, em vão. Não havia sinal de
Marjorie, nem de seu velho carrinho.
Impaciente, Christopher percorreu as poucas ruas da cidade e dirigiu-se pela
estrada em direção ao chalé. Uma exclamação de alívio e alegria escapou de seus
lábios ao avistar, à distância, as luzes acesas.
Chegando mais perto, viu o carro de Marjorie estacionado em frente ao
portão. Com o coração aos saltos ele se aproximou lentamente e, apagando os faróis,
parou a uma distância razoável, de onde podia enxergar o chalé sem se expor em
demasia. Parecia tudo muito calmo no interior da casa e ele aguardou sem pressa
algum sinal da presença dela.
Christopher não precisou esperar muito tempo. Poucos minutos haviam se
passado quando a porta dos fundos se abriu, lançando um facho de luz no quintal, e
por uma fração de segundo, a silhueta de Marjorie se delineou, antes de desaparecer
na escuridão.
Com os ouvidos atentos ele percebeu um assobio fino e a voz de Marjorie
chamando a pastora belga num tom doce e persuasivo.
Cautelosamente, ele saiu do carro e caminhou até a cerca, sem perceber o

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quanto a temperatura caíra com o anoitecer. Com as mãos apoiadas na cerca ele
olhava para os fundos da casa, procurando enxergar a responsável por sua inquie-
tude, sua insónia, sua falta de apetite e todos os seus problemas, em meio à
escuridão.
Foi então que alguma coisa roçou no tecido de sua calça e um rosnado
ameaçador fez com que ele congelasse em súbita imobilidade. Olhando para baixo,
Christopher deparou com o brilho dos olhos de Bella, a pastora belga de Marjorie, e
seus dentes brancos expostos em franca preparação para o ataque. Nada havia a
fazer a não ser permanecer completamente imóvel. Qualquer movimento poderia
desencadear a fúria do animal em defesa de seu espaço e de sua dona.
Acostumado a situações semelhantes na lida com animais, Christopher sabia
que a cadela farejaria a sensação de medo, o que seria o suficiente para que
avançasse nele e o mordesse. Por isso forçou-se a relaxar os músculos tensos e a
respirar compassadamente. Os segundos tornaram-se uma eternidade, congelando
os dois seres naquela posição insustentável. Aos poucos, entretanto, Bella foi se
acalmando e o fulgor das presas brancas desapareceu, embora ela continuasse
emitindo um rosnado constante.
— Bella... Bella... onde está você? Venha, Bella... venha comer — a voz de
Marjorie soou clara e a uma curta distância.
A resposta da cadela foi dois latidos curtos e muito agudos, que fizeram
Christopher estremecer.
— Onde você está, Bella...
Uma vez mais o vulto de Marjorie atravessou o facho de luz que vazava pela
porta aberta da cozinha. Só que agora ela caminhava em direção à parte da frente da
casa.
Dois outros latidos estridentes soaram bem perto dos ouvidos de
Christopher, que não se atrevia a dar um passo nem mesmo a respirar.
— Ah... você está aí! — Marjorie exclamou, se aproximando. — Acuando
alguma pobre lebrezinha, outra vez?
Foi então que Marjorie percebeu a presença de um homem parado do outro
lado da cerca.
— Quem está aí? Quem é você? — perguntou um tanto alarmada.
Christopher permaneceu calado e imóvel enquanto Bella disparava uma
sequência de latidos furiosos, empreendendo uma veloz corrida em círculos ao redor
do intruso. Era só o que ele esperava para agir. Com as mãos apoiadas no gradil da
cerca, Christopher tomou impulso e saltou por sobre a cerca, aterrissando a poucos
passos de Marjorie, que, espantada, recuou com um sobressalto.
— Sou eu, Marjorie! Christopher — ele apressou-se a tranquilizá-la. —
Segure essa fera antes que ela me morda.
Marjorie gritou no momento exato em que a pastora belga transpunha a
cerca num salto ágil e espetacular. Com mais duas ordens ríspidas, ela conseguiu
que o animal se sentasse nas patas traseiras, embora ainda rosnando e com as
presas à mostra.
— Meu Deus, Christopher! O que você estava fazendo aí, parado no escuro?
— Vim ver você. — ele conseguiu responder.
— E por que não me chamou? Bella poderia tê-lo machucado seriamente.
— E pelo visto, ainda não estou livre disso. Será que não dá para prendê-la
até que se acalme?

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— Vou dar um jeito nisso. Não se mova — avisou.
— Nem é preciso pedir — respondeu ele, aliviado. Segurando a cadela pela
coleira, Marjorie conduziu-a para o fundo do quintal e logo depois voltava em
passos rápidos.
— Pronto. Ela está comendo agora.
— Que susto! — ele comentou com um pequeno sorriso.
— Você se arriscou muito. E que salto você deu por cima da cerca! —
Marjorie levou as duas mãos à boca para conter o riso.
— Nem percebi. E pare de rir de mim.
— Desculpe... Acho que é uma reação nervosa. Mas não vamos ficar parados
aqui no jardim como dois tolos... Venha... Acabei de fazer um chá e tem biscoitos
assando no forno.
— Prefiro esperar que abra a porta da frente. Não quero tornar a ver Bella
hoje.
— Está bem. Espere na varanda da frente.
Marjorie caminhou para os fundos da casa e, pouco depois, a luz da varanda
acendeu-se e ela abriu a porta.
— Nossa... como você está pálido. Venha...
Com um gesto natural, ela segurou a mão de Christopher e conduziu-o para
dentro de casa. Ele se acomodou no sofá, ainda abalado pelo susto, enquanto
Marjorie dispunha na mesa de centro delicadas xícaras de porcelana antiga que
formavam um belo conjunto com o bule pintado a mão. Depois foi até a cozinha de
onde voltou com os biscoitos de polvilho, ainda quentes, numa bandeja de vime
trançado, que depositou sobre a mesa.
Ajoelhando-se no tapete, ela serviu o chá para ambos e depois sentou-se com
naturalidade sobre os calcanhares e levou a xícara fumegante aos lábios.
— Está uma delícia. Prove... — ela o incentivou.
Obediente, Christopher sorveu o líquido quente e aromático, quase sem
açúcar, e provou um dos biscoitos, leve e delicado ao paladar.
— Está muito bom — concordou por fim.
— Receita de família. Mas diga-me, Christopher... o que o trouxe aqui?
Os olhos dele percorreram a figura de Marjorie detalha-damente, e um
sorriso quase tímido brilhou em seu rosto másculo.
— Saudade de você. Eu precisava vê-la. Ela sorriu feliz e depois perguntou:
— Mas por que o mistério... quero dizer...
— Eu não pretendia falar com você. Queria apenas vê-la e então ir embora.
Seria o suficiente.
— Mas por quê? — ela indagou perplexa.
— Ora, Marjorie... o modo com que você partiu de Las Vegas... seu bilhete de
despedida... Concluí que você não queria mais me ver... ou que precisava de um
tempo sem que nos encontrássemos... Estava enganado?
— Não — ela confessou. — Mas eu também estava com saudade — disse
mansamente.
— Marjorie...
— Por favor, Christopher, não...
— Marjorie, eu preciso falar! — ele interrompeu com firmeza na voz. — A
verdade é que, quando conheci você, fui flechado pelo cupido, entende?
— A... Amor à primeira vista? — ela gaguejou, o coração acelerado dentro do

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peito, e então viu-o acenar a cabeça afirmativamente.
— Não acredita em amor à primeira vista? Ah, Marjorie, acontece! Nem todo
mundo precisa de um cupido para se apaixonar! Ou melhor, da intervenção de
cupido. Eu, por exemplo, me apaixonei por uma. -^ Christopher sorriu, mas
os olhos verdes estavam sombreados de amargura. — Poucos minutos depois
de ter conhecido você, eu já estava deslumbrado. Acho que, no fundo, eu sabia que
tinha encontrado a mulher da minha vida. Você era tudo o que eu procurava... seus
olhos, seu sorriso, seus cabelos, seu modo de andar, de falar...
— Mas você não sabia que eu não poderia me casar, não é, Christopher? Não
sabia da minha missão.
— Não... — A voz de Christopher não passou de um suspiro, enquanto ele
largava a xícara sobre a mesa e se afastava de Marjorie em direção à janela, as mãos
enfiadas nos bolsos da calça jeans. — Quando... Quando voltei para o hotel aquele
dia, em Las Vegas, e encontrei o seu bilhete... foi como se, o mundo tivesse acabado
para mim. Era como se eu estivesse sendo castigado, entende? Por tudo o que fiz de
errado nesta vida...
— Oh, Christopher! Eu lamento tanto...
Um nó dolorido apertou a garganta de Marjorie, e ela engoliu com
dificuldade.
— A culpa não foi sua, agora eu percebo isso. Fui eu que me iludi e meti em
minha cabeça que você sentia o mesmo por mim. Confundi... pena, consideração, ou
mesmo simpatia, não sei... com um sentimento mais forte, mais profundo. Mas não
pude deixar de sentir que você tinha me usado! Céus, Marjorie, como doeu!
— Christopher, eu...
Marjorie mordeu o lábio, sem saber o que dizer. Se ao menos tivesse
imaginado como ele se sentia em relação a ela! Na ocasião, estava certa de que ele
estava interessado na bela dentista venezuelana. Deitara-se ao lado de Christopher e
entregara-se a ele num impulso de momento, incapaz de resistir a um desejo que
nunca sentira antes, uma sensação que nem sequer imaginava que pudesse existir.
Jamais tivera intenção de magoá-lo.
— Christopher — ela repetiu, com um tom de convicção que destoava em sua
voz trémula. — Eu... existe um tempo
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para tudo... eu quebrei a sequência natural das coisas, com minha atitude
intempestiva em Las Vegas... por favor... não me interrompa... agi seguindo meus
instintos e agora é tempo de reflexão. Sinto que esteja sofrendo, mas não podemos
fazer nada a não ser dar tempo ao tempo.
— Do que você tem medo? — ele perguntou bruscamente. — Duvida dos
meus sentimentos?
— Não... não é isso.
— Então duvida dos seus...
— Não se trata disso, Christopher...
— Então o que está acontecendo? — ele explodiu.
— Mesmo que eu dissesse você não entenderia.
— Por que não tenta? — ele desafiou.
— Está bem... você vai me detestar por isso...
— Vamos, fale de uma vez!
— Vai me achar ridícula.

Projeto Revisoras - 63
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— Fale, Marjorie...
— Eu... Eu estou esperando um sinal.
— Sinal? — ele repetiu perplexo. — Que sinal? Do que você está falando?
— Um sinal da natureza — ela disse muito séria.
— Assim como um terremoto ou uma estrela cadente? —. ele perguntou
confuso.
— Não. — Ela sacudiu a cabeça com um leve sorriso. — Algo muito mais
profundo... Algo que me mostre sem nenhuma sombra de dúvida que agi certo ao
precipitar os fatos e me entregar a você.
— Eu não consigo perceber aonde você quer chegar — ele confessou
desalentado. — Por mais que me esforce, não consigo penetrar em seu mundo cheio
de símbolos e crenças.
Ele se pôs em pé.
— Sabe, Marjorie... eu acho que você duvida do amor que sente e tem medo.
— Medo... eu? — Agora era ela quem parecia perplexa.
— Sim. Esse mundo enigmático onde você se esconde serve apenas como
escudo para protegê-la do seu medo de amar e ser amada.
Ele caminhou até a porta.
— Christopher...
— Sim?
— Você tem certeza de que somos feitos um para o outro e que me ama?
— Tenho — ele afirmou convicto.
— Então vá em paz, querido. Saberemos muito em breve se você está certo
ou não — disse enigmática.
— Você talvez venha a saber. Mas eu não sei ler os seus preciosos símbolos...
— disse com amarga ironia.
— Ora... não se preocupe quanto a isso. Quando eu souber, eu o avisarei —
prometeu.
— Como?
— Pelo telefone — concluiu com simplicidade.
Muito pálido, ele a fitou quase com indignação e depois girou sobre os
calcanhares, abriu a porta e disse:
— Boa noite, Marjorie.
— Boa noite, Christopher.
Duas semanas depois, Christopher Easterbrook estava mergulhado na
papelada de contabilidade da fazenda quando o telefone tocou.
— Alô!
— Christopher... É Marjorie.
Um silêncio longo e doloroso se passou até que ele conseguisse dizer:
— Olá, Marjorie... o que você quer?
— Dizer para você que sim.
— Sim, o quê? — perguntou ele quase ríspido.
— Que está tudo bem... que podemos nos ver... se você ainda me quiser, é
claro.
— É... É claro que sim — ele gaguejou, pasmo. Fez-se um longo silêncio.
— Christopher... você ainda está aí?
— Sim, estou.
— Entendeu o que eu falei?

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— Você quer dizer que recebeu o tal sinal das estrelas e que podemos ter um
relacionamento normal como duas pessoas que se amam?
— Quase isso.
— Quase... Por quê, quase? — ele elevou a voz numa súbita irritação.
— Porque não tem nada a ver com as estrelas, seu bobo.
— Ela riu baixinho.
— Você não existe, Marjorie Cupido Jones Swettenham
— Christopher resmungou por entre os dentes.
— Existo, sim. E estou esperando você esta noite aqui em minha casa.
— É mesmo?
— Sim... Você vem?
— Vou. Devo estar louco, mas vou.
— Que bom... pensei que estivesse magoado comigo.
— E estou... mas amo você e nada posso fazer a respeito disso.
— Eu também amo você, querido. Até a noite.
— Até...
— Um beijo.
— Outro...

EPÍLOGO

A Surpresa Final

Na fazenda de Christopher Easterbrook tinha início uma festa para a qual


haviam sido convidados todos os fazendeiros vizinhos, com suas numerosas
famílias, bem como os administradores, peões e pessoas amigas e conhecidas. Da
cidade de Valentine, os carros chegavam sem cessar. O ambiente era alegre e o
aroma de churrasco era levado pela brisa, aguçando os apetites. Cerveja e
refrigerantes eram servidos em abundância, aliviando a sede dos convidados. As
mesas haviam sido arrumadas sob as árvores, agora com folhagens novas, de um
verde claro que fazia sobressair o colorido das flores. Afinal a primavera chegara. E
o dono da fazenda se casava naquele dia.
Marjorie se encontrava no interior da casa, já vestida e quase pronta para a
cerimónia. Murgatroyd a ajudava a fixar o véu.
— Eu estou bem? — ela perguntou, nervosa, olhando-se no espelho.
-— Parece um anjo, querida — disse Murgatroyd comovida.
— Não me fale em anjo — ela pediu misteriosamente. Na varanda,
Christopher conversava com o pastor e o juiz
de paz. Estava muito elegante em seu terno preto e gravata borboleta. Havia
cortado os cabelos e se barbeado cuidadosamente. Parecia jovem e feliz.
— A noiva! — gritaram algumas vozes.
Todos correram para ver Marjorie chegando à varanda. Exclamações de
admiração e alguns fogos de artifício encheram o ar, numa alegria contagiante.
De braço dado, o casal desceu as escadas e caminhou, em meio ao povo, até o
altar montado ao ar livre para a cerimónia. O momento era solene e o pastor
começou o ofício dizendo:
— Estamos aqui reunidos para a cerimónia do matrimónio de Christopher

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Easterbrook e Marjorie Jones Swettenham.
Era impossível dizer se alguém prestava atenção ao que o pastor dizia.
Christopher, certamente não. Seu coração de homem solitário estava em êxtase e
seus olhos não se desviavam nem por um instante de Marjorie, que, num dado
momento, perguntou a ele:
— Você ainda quer se casar comigo?
— Claro! — ele exclamou atónito.
— Então diga "sim" ao pastor.
— Como?
Risos e assobios romperam em meio aos convidados.
— Ei, Christopher... não deixe a noiva esperando! — gritou alguém dentre a
multidão.
— Ande logo, rapaz! — gritou outro. — Não faça suspense, ou então desça
logo daí que eu me caso com ela!
Corado e confuso, ele proclamou:
— Sim!
Os aplausos e fogos formaram um alarido intenso.
— E você, Marjorie Jones Swettenham, aceita este homem como seu
legítimo esposo...
Sem esperar que o pastor concluísse a frase ritual, ela sorriu e disse com voz
firme:
— Sim, eu aceito!
— Então, eu os declaro marido e mulher.
A festa atingiu o auge quando a banda contratada para animar a recepção
começou a tocar. Vários casais se espalharam sobre o tablado de madeira, dançando
ao som da música country.
Dentro de casa, na sala, diante das testemunhas, Christopher e Marjorie
assinaram o livro de registro, e o casamento civil estava consumado.
— Preciso me livrar deste vestido — ela confessou a Christopher. — Quero
dançar com você e participar da festa.
— Eu também me sentiria melhor sem esta roupa.
— Vamos? — ela convidou.
— Não precisa dizer duas vezes!
No quarto de Christopher eles se despiram, estranhamente emocionados.
Era a primeira vez que se viam assim, com intimidade, desde a viagem a Las Vegas.
Marjorie fizera questão que fosse assim.
Mas agora estavam casados e as roupas espalhadas pelo chão.
Christopher se aproximou de Marjorie e disse baixinho:
— Não sei o que fez você mudar de ideia, mas obrigado por casar-se comigo.
Ela riu, travessa como uma menina e, segurando a mão direita de
Christopher, colocou-a sobre o ventre nu.
— Não sabe o que me fez mudar de ideia? Não adivinha? — Seus olhos cor de
mel brilhavam de emoção.
— Você não está dizendo que... — Christopher arregalou os olhos e fitou-a,
boquiaberto.
— Sim, estou! — ela exclamou sorrindo.
— Marjorie, meu amor...
— Christopher, querido! — Os olhos dela brilhavam de felicidade. — Vou

Projeto Revisoras - 66
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passar a tocha... não é assim que se diz? Ou é o bastão? Desconfio que vou ser
substituída por uma rui vinha bem traquinas!
— Você vai passar o arco e a flecha de cupido, Marjorie! Ela riu, e lágrimas
de emoção inundaram-lhe os olhos.
Christopher fitou-a demoradamente, expressando com o olhar toda a sua
paixão.
Então, um longo beijo teve início na penumbra do quarto. Lá fora, a festa
prosseguia a todo vapor, e ninguém notava a ausência dos noivos.

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