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Os cadernos de Vigotski e a origem da teoria histórico-cultural

Eduardo Moura da Costa

This is the final thing I have done in psychology1—and I will die at the summit like Moses,

having glimpsed the prom[ised] land but without setting foot on it. Farewell, dear creations.

The rest is silence.

(Vygotsky, 2018b, p.497)

Estas foram, provavelmente, as últimas palavras escritas por Lev Vigotski (1896-1934). Elas

são dramáticas se considerarmos que expressam a consciência do seu fim. Além disso, podem ser

lidas de duas maneiras. Vocalizam certa frustração por ter apenas vislumbrado a “terra prometida”,

indicando que seu trabalho foi incompleto e limitado. Mas, por outro lado, também demonstram sua

convicção de aquilo que fez foi grandioso, pois se compara com um simbólico personagem bíblico.

Foram justamente os métodos desenvolvidos por Vigotski que o levaram a vislumbrar essa

“terra prometida”. Iarochecvski e Gurguenidze (1984/2004) afirmam que “a força das concepções

desenvolvidas por Vigotski procede de sua base e orientação metodológica” (p. 471). Vigotski teve

grande mérito de partir dos princípios metodológicos do marxismo e aplica-los as ciências

concretas. Elkonin (2006) reconhece esse mesmo aspecto da produção do autor ao dizer que ele foi

um “metodólogo” da psicologia.

Apesar da importância do método da psicologia para Vigotski, Veresov (2010) afirma que

suas criações metodológicas ou permanecem desconhecidas na psicologia hegemônica

contemporânea ou foram mal compreendidas. Elhammoumi (2009) argumenta na mesma direção ao

afirmar que o legado deixado por Vigotski na tentativa de formular uma psicologia a partir das

bases marxistas ainda constituem uma terra incognita, isto é, um campo inexplorado pela ciência

psicológica.

1
Essas palavras estão em anotações referentes a casos clínicos que provavelmente serviriam como material para alguma
conferência. Foram escritas pouco antes de sua morte.
Para tentarmos entender a grandiosidade desse empreendimento é fundamental recorremos

ao caminho traçado por Vigotski desde suas formulações iniciais. A origem do seu projeto

científico está ligada ao diagnóstico da crise da psicologia, a qual está presente ainda hoje. Portanto,

a reconstrução do surgimento de sua teoria psicológica, ou pelo menos seu projeto, não satisfaz o

mero interesse histórico restrito à sua obra ou a de seus continuadores. É algo que vai além, pois

pode ser fonte de reflexão para se pensar o estado atual dessa ciência. Esse é justamente o objetivo

do presente texto.

O acesso a manuscritos, anotações pessoais e cartas são extremamente úteis como fonte

histórica para podermos reconstruir um determinado contexto, uma figura histórica ou uma teoria

científica. Em 2006 teve início o estudo dos arquivos de Vigotski como parte do projeto de

preparação das suas obras completas (Zavershneva, 2010). Como resultado se teve acesso a

materiais inédito dos seus arquivos pessoais que foram publicados recentemente (Vygotsky, 2018d).

Essa publicação abriu um rico campo de pesquisa para podermos entender seu processo criativo.

Por meio desses documentos é possível ter acesso a sua “fala interna”, que muitas vezes é de difícil

compreensão2.

Em razão da quantidade de material contido nos seus cadernos, os quais compreendem um

período que vai da sua juventude até sua morte, optamos por fazer um recorte e investigarmos os

problemas metodológicos da psicologia presentes na gênese de sua concepção. Isto é, anteriores ao

desenvolvimento da teoria histórico-cultural, que se caracteriza pelas pesquisas utilizando o

“método instrumental”.


2
Mas isso é explicado pelo próprio autor quando ele discorre sobre esse conceito (Vigotski, 1935/2009). A fala interna
é predicada, pois comunicador e interlocutor estão presentes, sendo assim condensada e possuindo sentido apenas na
ligação com determinadas “zonas de significado”. Portanto, em muitos momentos existem apenas pequenas notas que
serviriam como “instrumentos psicológicos”, as quais provavelmente fariam sentido apenas para ele. No entanto,
também existem reflexões relativamente desenvolvidas, as quais expressam de forma embrionária concepções e
métodos que somente iriam ser aplicados e figurariam em textos publicados posteriormente.
Analisaremos dois conjuntos de anotações que foram concebidos entre 1925 e 1928

(Vygotsky, 2018a, 2018c). Eles foram escritos pouco tempo depois do retorno de Vigotski a

Moscou e vão até o início da sua teoria histórico-cultural. Com relativa semelhança, alguns autores

datam essa fase como sendo o primeiro período de sua produção em psicologia (González Rey,

2013; Veer & Valsiner, 2009; Veresov, 1999; Yasnitsky, in press; Zavershneva, 2014). Os textos

têm como título Do Hospital de Zakharino e anotações intituladas Em direção a Teoria Histórico-

Cultural. Ambos são inéditos aos leitores ocidentais. Eles serão tratados conjuntamente, pois

possuem temáticas comuns. Não seguiremos a ordem dos temas que aparecem nos manuscritos,

dado que não existe uma sequência lógica, pois cada fragmento trata de um assunto ou diferentes

assuntos. Nesse sentido, agrupamos as discussões a partir de núcleos temáticos e de relevância para

a obra do autor.

Breve contextualização dos cadernos

Em uma anotação realizada provavelmente em 1927, conforme os editores supõem, Vigotski

diz que o debate sobre o que a psicologia deveria ser, seja introspectiva subjetiva ou materialista

objetiva, passa inevitavelmente pelo debate sobre o método3. Na sequência ele afirma o seguinte:

“The first thing we must avoid is to consider methods in a purely abstract way, outside time and

space. The role of methods in this or that particular science is always subservient, subordinated to

the goal” (Vygotsky, 2018c, p. 110). Nesse sentido, o debate metodológico travado por ele também

deve ser enxergado dessa maneira, isto é, devemos ter em mente os condicionantes científicos,

filosófico, e sociais envolvidos nos seus objetivos.

Do ponto de vista social, Vigotski estava inserido em uma sociedade pós-revolucionária que

tinha como projeto a emancipação humana. Nesse sentido, diferente das orientações “idealistas”, as

3
Outra prova de que a questão do método da psicologia ocupava um lugar central nas reflexões de Vigotski nesse
período pode ser encontrara em uma carta endereçada a Luria em março de 1926, quando estava internado no hospital
de Zakharino. Ele disse para seu companheiro: “For me, the first question is the question of method; this, for me, is the
question of truth, and hence of scientific discovery and invention” (Vygotsky, 2007, p. 18).

quais não tinham nenhum compromisso com a realidade, com Vigotski ocorreu o contrário. Ele

estava totalmente engajado na constituição de uma psicologia que contribuísse com esse movimento

transformador (González Rey, 2013; Yasnitsky, in press). Portanto, isso quer dizer que os aspectos

científicos e filosóficos estavam entrelaçados com essa exigência de ordem prática. Além disso,

filosoficamente ele fez parte de um movimento que estava comprometido com a criação de uma

“psicologia marxista”. Os caminhos e problemas enfrentados, por outro lado, também se relacionam

com os métodos que a ciência dispunha naquele momento. Lembremos que existiam poucos

métodos de estudo dos fenômenos psicológicos naquele período, dentre os quais havia método

introspeccionista4, a observação, criação de situações experimentais, uso de questionários5, dentre

outros.

Do ponto de vista da produção de Vigoski, os manuscritos ora objeto de análise estão

localizados na primeira fase de sua obra. Essa fase seria a pré-história da teoria histórico-cultural

(Veresov, 1999). Esses cadernos representam um primeiro movimento de Vigotski no intuito de

buscar alternativas para a psicologia, a partir dos limites constatados tanto na reflexologia

(Vigotski, 1924/2004b) quanto na reactologia (Vigotski, 1925/2004a).

Após sua chegada a Moscou, em 1924, Vigotski foi contratado pelo Instituto de Psicologia

Experimental, chefiado por Kornilov. O emprego não pagava muito bem e ele precisou de fontes

adicionais de renda. Em razão de sua posição no instituto ele passou a lecionar em instituições

educacionais. Além disso, ocupou cargos burocráticos no Narkompros6. Seu foco de trabalho foram

atividades políticas ligadas a questões educacionais relativas às crianças deficientes (Yasnitsky, in


4
Vale mencionar que essa opção estava descartada por Vigotski, pois desde 1925 ele já apontava os limites desse
método (Vigotski, 2004a). A impossibilidade do uso desse método estava ligada ao seu caráter subjetivista e não
materialista objetivo.
5
Atualmente dispomos de mapeamento de neuroimagem, criação de modelos computacionais, análise de big data,
inteligência artificial e diversas formas de análise dos fenômenos psicológicos.
6
Narkompros era a sigla para Comissariado do Povo para Educação. Era um departamento soviético responsável pela
administração da educação pública e pela maior parte das matérias relativas à cultura. Esse órgão tinha status de
ministério e Vigotski era o quarto nome na hierarquia da instituição (Yasnitsky, in press).
press). Em razão dessa posição, foi escolhido como representante da União Soviética em uma

conferência sobre crianças surdas, que foi realizada em Londres. Após a chegada de sua única

viagem ao exterior, ele logo foi internado no hospital de Zakharino.

Fazem parte desse caderno fragmentos de anotações escritas enquanto Vigotski estava

internado para o tratamento de sua tuberculose. Desde o final da década de 1910 Vigotski já

convivia com essa doença, sendo que sua primeira crise ocorreu em 19207. Nessa segunda crise,

Vigotski ficou internado aproximadamente por seis meses, tendo entrado em novembro de 1925 e

saído em maio de 1926. Após a alta ele voltou para a casa e ficou sem trabalhar formalmente

durante o resto do ano de 1926 (Yasnitsky, in press). Uma anotação do próprio caderno nos dá uma

clara dimensão da gravidade de sua saúde durante aquele período. Antes de sua saída ele escreveu:

In the half year spent in this home, where death was as ordinary and common as the

morning breakfast and the doctor’s round, I absorbed so many impressions of death that I

am inclined to death just like a tired person is inclined to sleep (Vygotsky, 2018a, p. 85).

Esse foi o primeiro conjunto de anotações que discute de forma clara os problemas

enfrentados por Vigotski na sua entrada na psicologia. Antes desse caderno, temos conhecimento de

anotações sobre a questão judaica, referentes à escrita do livro Psicologia da arte e um diário da sua

viagem a Londres (Vygotsky, 2018d).

Ao contrário do que se acreditava, baseado em relato de Luria, o revolucionário texto sobre

a crise da psicologia não foi escrito nessa ocasião, mas depois de sua alta do hospital (Zavershneva,

2012). É possível notar, de modo geral, que o caderno de Zakharino trata das seguintes temáticas:

anotações referentes ao texto “Psicologia da Arte”, planos para a monografia intitulada Zoon

Politikon, reflexões importantes sobre a natureza da palavra e do signo, questões sobre o problema

psicofísico e anotações dedicadas a temas tratados no manuscrito O significado histórico da crise



7
Nesta primeira crise Vigotski já estava antevendo sua morte e incumbiu seu amigo de Gomel, Semen Dobkin, a enviar
seu manuscrito sobre o Hamlet para seu professor de Moscou, Yulii Aikhenval’d, para que ele fosse publicado depois
de sua morte (Yasnitsky, in press).
da psicologia8. Já as anotações Em Direção à Teoria Histórico-Cultural tratam do objeto da

psicologia e sobre a “questão da metodologia da pedologia”, no qual defende a importância da

observação e recomenda o uso de abordagem “multi-métodos”.

Em razão do tema central das anotações serem questões metodológicas, o foco da análise

será o problema do objeto da psicologia, que condensa discussões de caráter ontológico, e sobre o

problema da metodologia do conhecimento, que em filosofia recebe o nome de epistemologia.

Como veremos, Vigotski compreende que não existe objeto antes da produção científica, mas que

este surge dos dados obtidos através do método de pesquisa e que, por sua vez, passam pelo crivo

da intepretação (Vigotski, 1982/2004c). Porém, podemos ver que existem claras indicações sobre

qual deveria ser o objeto da psicologia, bem como quais deveriam ser os fundamentos que iriam

orientar o método do conhecimento.

É importante pontarmos o que Vigotski compreendia por método. No manuscrito do SHCP,

o qual expressa muitas das questões tratadas nos cadernos, ele faz a distinção entre duas dimensões

existentes no método científico. Uma dimensão seria o método de pesquisa, o qual, para ele, seriam

os procedimentos técnicos. De forma complementar ao método de pesquisa deveria haver a

metodologia do conhecimento, a qual determina o objetivo da pesquisa, o caráter e a natureza de

uma ciência (Vigotski, 1982/2004c).

Em razão do limite envolvido neste tipo de exposição, trataremos apenas de questões

referentes à metodologia do conhecimento. Cabe pontuar que a distinção entre metodologia do

conhecimento e metodologia de pesquisa deve ser entendida separadamente para fins didáticos.

Deve-se levar em consideração a dialética entre esses processos, pois se trata de uma relação

integrada. Isto porque o fundamento ontológico coloca exigências ao método do conhecimento, o

qual acaba impactando o método de pesquisa. Por outro lado, o método de pesquisa gera dados


8
A partir de agora utilizaremos o título abreviado (SHCP).
factuais que, por sua vez, fazem com que a definição ontológica seja alterada. Com isso pode

ocorrer à constatação de que os métodos são insuficientes e se retorne ao processo de revisão dos

mesmos. Partimos da hipótese de que é possível ver claramente esse movimento na obra de

Vigotski. Esperamos poder apresentar o início desse processo.

Em busca de uma nova definição ontológica

Ao falarmos de definição ontológica partimos do ramo da filosofia que se ocupa do estatuto

do “ser”, isto é, que reflete sobre o fundamento daquilo que existe. No caso de Vigotski, diz

respeito a como ele enxergava seu objeto de estudo. Apesar das considerações que se seguem,

devemos alertar o leitor que ele próprio, como demonstraremos, acreditava que não poderia haver

uma compressão do objeto de pesquisa antes da pesquisa em si. O objeto seria justamente o

resultado do processo de conhecimento dos fatos empíricos mediados pela abstração.

Durante o período em que passou no hospital, Vigotski estava em pleno processo de

mudança de sua concepção ontológica em relação ao objeto da psicologia. O problema da relação

entre a origem animal e cultural (política) do comportamento do homem, questão central para sua

concepção histórico-cultural do início da década de 1930 (Vygotski, 2000b; Vygotsky & Luria,

1996), foi o cerne dessa nova definição ontológica. Os planos para escrever uma monografia que

teria o título de Zoon Politikon são a expressão dessas reflexões. Essa concepção já vinha sendo

desenvolvida desde o seu livro Psicologia da Arte. Neste estudo Vigotski critica as psicologias

individualistas e aponta para a necessidade de estudar o “psiquismo social” (Vigotski, 1965/1999).

Sua nova definição ontológica vinha se delineando por intermédio de Marx e Engels. Nessa mesma

publicação ele afirma que, segundo Marx, o “homem, no mais lato sentido, é um zoon politikon, não

só um animal a qual é intrínseca a comunicação mas um animal que só em sociedade pode isolar-

se” (Marx, como citado em Vigotski, 1999, p. 14).


Vigotski enfatiza em várias passagens do caderno de Zakharino a origem social da

consciência. No primeiro fragmento do caderno ele anota os seguintes tópicos referentes a essa

questão:

Individual and social psychology. Thinking and speech. The analysis of acts of empathy

forms the development of one theme: 1. The methodology of bio and socio; 2. The

concrete, central problem, speech is consciousness, the individual is organized according

to the type of the social structure; 3. Its mechanism is empathy for objects, the

objectification of internal conditions (Vygotsky, 2018a) (p. 73).

Acreditamos que tais anotações denotam, de forma embrionária, a concepção sobre a

natureza da constituição da pessoa que foi sintetizada pelo autor na “lei genética geral do

desenvolvimento cultural”9. Com isso, quando Vigotski diz que o “indivíduo é organizado de

acordo com o tipo de estrutura social”, temos indícios para supor que não houve modificação

substancial da sua concepção ontológica. O que se operou foi uma melhor compreensão das

interações entre processos intersubjetivos e intrasubjetivos. No seguinte excerto poderemos ver uma

semelhança maior ainda em relação à referida lei desenvolvida por ele na virada da década de 1920

para 1930:

Already the fact that the child first listens and understands and then acquires verbal

consciousness points out that: (1) Consciousness develops from experience; (2) Speaking

with himself = consciously acting, the child takes the position of the other, relates to

himself as to another person, imitates another person speaking to him, replaces the other

person in relation to himself, learns to be another person in relation to his proper body.

Consciousness is a double. Thence the child does not know “I”: “Bobby” fell, instead of

9
No texto intitulado Gênese das funções psíquicas superiores, que faz parte do estudo sobre a História do
desenvolvimento das funções psicológicas superiores, Vigotski define a “lei genética geral do desenvolvimento cultural”
da seguinte maneira: “(...) toda função no desenvolvimento cultural da criança aparece em cena duas vezes, em dois
planos; primeiro no plano social e depois no plano psicológico, ao princípio entre os homens como categoria
interpsíquica e logo no interior da criança como categoria intrapsíquica”(Vygotski, 2000c, p. 150).
“I” fell. This is possible thanks to the reversibility of the word: The reaction is a stimulus.

But this is called imitation. All speech is imitation. (?)(Vygotsky, 2018a) (p. 74).

Sua busca por uma nova definição ontológica implicou na crítica das orientações dos autores

da sua época. No SHCP ele critica a psicanálise, o behaviorismo, personalismo e a Gestalt. Mas

essa crítica também incluiu seus compatriotas, Pavlov e Kornilov, representantes das principais

orientações da época, a reflexologia e a reactologia, respectivamente. Nas anotações do hospital de

Zakharino, Vigotski crítica especificamente Kornilov. Yasnitsky (in press) afirma que Vigotski foi

um seguidor de Kornilov até o rompimento entre os dois em 1928. Porém, diferentemente dessa

concepção, é possível ver críticas claras à Kornilov no SHCP e nos cadernos de Zakharino.

Em anotação do hospital, Vigotski diz que a definição do comportamento como um sistema

de reações envolve um mal-entendido crucial. Ele afirma que é errada a proposição de que o

homem é passivo ao meio ambiente. “My action changes the situation and is not just determined by

the previous situation, but by the process of change as a whole—both externally and internally”

(Vygotsky, 2018a, p.75). A questão para ele seria que, diferentemente da reactologia de Kornilov, o

comportamento humano não é passivo ao ambiente, mas que interfere nesse ambiente e muda sua

situação. Isso evidencia que nesse período Vigotski estava consciente da relação global entre

indivíduo em ambiente, fato que seria reelaborado na produção da década de 1930 através dos

conceitos de “situação social de desenvolvimento” (Vygotski, 2006b) e de perezhivanie (Vygotski,

2006c). Portanto, essa noção do indivíduo como um ser ativo é uma concepção ontológica

fundamental que já estava tomando forma nesse momento da sua reflexão.

A discussão sobre o aspecto ativo do comportamento do homem se relaciona com a

diferenciação do comportamento humano e animal. Na sequência Vygotsky (2018a) afirma que

adaptação é um bom termo “para a adaptação morfológica (uma resposta às condições ambientais)”

(p. 75). Para os homens, comportamento é atividade, e não uma resposta. Segundo o autor o
comportamento humano difere do animal nos seguintes aspectos: “1) Estímulos artificiais; 2) O

aparato trazido de fora (empatia); 3) Reações artificiais (fala, etc.)” (Vygotsky, 2018a, p. 76).

Nesta diferenciação está a pré-história da Teoria Histórico-Cultural. Vigotski compara a

palavra enquanto um “estímulo criado artificialmente” com a “ferramenta” de trabalho. Nessa época

já estava presente em sua reflexão a concepção sobre o papel do estímulo artificial como elemento

fundamental para a diferenciação entre o homem e o animal. “Verbal behavior differs from

nonverbal behavior like labor does from the adaptation of animals (the tool is also outside the

organism, i.e., it is an organ of society)” (Vygotsky, 2018a, p. 75). A palavra seria um estímulo para

“regulação” e organização do comportamento, seja dos outros quanto do nosso próprio

comportamento.

Relativo a essa discussão sobre a correlação ente o biológico e o cultural, há a menção a

noção de “autodesenvolvimento”, inspirado em de Wilhelm Stern. Vigotski concorda com ele ao

entender que o crescimento infantil não pode ser explicado pela adaptação. Se isso fosse verdadeiro

a ontogênese deveria repetir a filogênese. Apesar de concordar nesse aspecto, o autor parece

discordar de Stern na medida em que ele subestimaria o homem e superestimaria as coisas. Apesar

disso, outra concepção de Stern teria valor: “The family, the people are for him a Person; let us say,

the other way around, that the Person is formed as a family = a community within oneself” (p. 80).

Aqui também é possível ver claramente a concepção ontológica sobre o papel da coletividade na

origem da pessoa.

Juntamente com o problema da origem do fenômeno psicológico, há também o problema

“psicofísico”, o qual passa pela discussão sobre a relação entre subjetividade e objetividade. Para

ele, a subjetividade se relaciona com a objetividade e não em relação a uma essência. A questão é a

natureza social da mente. O fenômeno mental é constituído das relações entre “dois indivíduos

sociais (interpsicológico) ou entre o corpo e o ‘ego’” (Vygotsky, 2018a, p. 78).


We must uncover consciousness, the fetishism of mental phenomena just like the

fetishism of commodities. The mental phenomenon is, just like a commodity, a sensory-

supersensory thing; the super-sensory part is the social, reified, social relationship

projected onto a thing (onto the word). Just like the commodity is a commodity not

because of its physical properties but because of the societal relationships behind it, the

physiological process in the nerves in itself is no behavioral act but the social

relationships behind it, which give it that meaning (Vygotsky, 2018a) (p. 79).

Vigotski está querendo dizer que o fenômeno mental não é uma “coisa em si” que tem

existência independente do seu substrato objetivo, que são as relações sociais. Assim como Marx

precisou ir além da aparência da mercadoria para desvendar sua natureza, por meio das relações

sociais de produção e consumo, Vigotski indica que é preciso realizar a mesma operação para se

estudar os fenômenos psicológicos. É interessante notar que o paralelo feito entre o fenômeno

mental e a mercadoria não aparece de forma explicita no SHCP ou em outros textos.

Vigotski continua a discussão sobre o problema psicofísico e podemos dizer que chega a três

conclusões nesse momento de sua reflexão: 1) A mente não é um processo nervoso; não é uma

coisa ou um processo, mas uma relação entre processos; 2) O processo mental não é a expressão de

processos psicofisiológicos, mas relação societal de processos nervosos; 3) Psicologia é a ciência da

pessoa (não do comportamento ou do fenômeno mental)10. Vygotsky (2018a) critica o paralelismo

psicofísico, pois “a mente não consome energia porque não é um processo físico mas a qualificação

societal dos processos nervosos” (p. 79). Nesse sentido, mais adiante ele afirma que a “psicologia

não estuda realidades físicas, mas sociais” (p. 80).


10
Essa concepção do objeto da Psicologia está muito próxima da noção de Gorges Politzer (1903-1942). Este filósofo
também criticava as correntes que analisavam processos isoladamente das pessoas e dos seus “dramas” cotidianos.
Vigotski escreveu isso alguns anos antes de Politzer publicar sobre essa questão. Vigotski tomou contato com os
escritos seus escritos somente no final da década de 1920, como podermos ver em outro manuscrito a 1929 (Vigotski,
1986/2000). Isso aponta para o fato de que esse aspecto da crise da psicologia era sentido por diferentes autores.
Vigotski relaciona o aspecto consciente da pessoa com as relações sociais. Já o aspecto

biológico representaria o “inconsciente”. A junção da origem biológico e social ou “a vivida

cooperação desses dois princípios é a pessoa” (p. 80). É interessante notar que a concepção de

“mente” como uma relação entre processos vai se concretizar na ideia de “sistemas psicológicos”,

desenvolvidos depois de 1930 (Vigotski, 2004d). Além disso, nos questionamos se a noção de que o

inconsciente se relaciona com a origem biológica do homem irá permanecer nas reflexões futuras

do autor, sobretudo referentes ao sentido e ao significado11.

Tanto nas anotações de Zakharino como em notas escritas entre 1927 e 1928, Vigotski

discute sobre o objeto da psicologia e chega à conclusão que este deveria ser a pessoa. No hospital

de Zakharino Vigotski escreve: “O inconsciente é biológico; o consciente é social; a cooperação

vivida desses dois princípios é a pessoa” (Vygotsky, 2018a, p. 79). Já em anotação posterior a sua

saída, de forma mais condensada ele escreve: “A pessoa para a psicologia = o organismo para a

biologia” (Vygotsky, 2018c) (p.107). Calcado no princípio do “método reverso” de Marx, o qual

discutiremos mais adiante, Vigotski afirma: “We must ask (1) about its specific functions and not

about general ones, (2) about the psychological function” (Vygotsky, 2018c, p. 107). Ele está

colocando como desafio para a psicologia o estudo que é específico ao homem, isto é, o

“psicológico como dado real” (p. 108). O fato de o “método reverso” ser uma atitude metodológica

que redunda em uma concepção ontológica demonstra a relação dialética entre método do

conhecimento e definição ontológica do fenômeno a ser estudado.

Em uma anotação provavelmente da primeira metade de 1927, Vigotski aponta o limite da

ideia de estudo das funções psicológicas como objeto da psicologia. Ele diz que as funções são

insuficientes porque nós devemos saber o que está funcionando, isto é, a estrutura. Tal fato é

11
Isso porque a dialética entre significado e sentido, dada sua complexidade em se tratando de relações que se dão entre
diferentes pessoas, também poderia compor uma determinação que seria inconsciente. Quando nos comunicamos
existem determinadas zonas de sentido que são individuais. Podemos ter certo controle consciente quando
comunicamos algo, mas a intepretação pelo interlocutor está fora do nosso alcance sendo, para nós, inconsciente.

curioso, pois é possível ver na citação anterior e em outra passagem da mesma nota que ele propõe

que “nós devemos buscar as funções psicológicas” (Vygotsky, 2018c, p.108). Além disso, esta

concepção se tornou central em sua “fase instrumental”, sobretudo a noção de “funções psicológicas

superiores”, a qual foi utilizada até o início da década de 1930 (Vygotski, 2000d; Vygotski & Luria,

2007). Vigotski pode ter retornado a ideia de funções porque depois ele desenvolveu uma forma de

analisa-las em funcionamento, com base em suas estruturas, através da reconstrução do fenômeno.

Além disso, apresenta uma nova formulação sobre qual deveria ser o objeto da psicologia,

no lugar da noção de “pessoa”, tal como aparece nas anotações de Zakharino e mesmo em nota

anterior a 1927. Vigotski sugere o conceito de “vida altamente organizada” deveria ser o objeto da

psicologia. Ele diz que a mente altamente organizada é a manifestação de formas de vida altamente

organizadas. Os editores dos cadernos de Vigotski afirmam, em nota explicativa, que esta nova

concepção dificilmente poderia ser vista como um avanço. Acreditamos que antes de fazer tal

afirmação devemos pensar a teoria em movimento. Pois, se pensarmos do ponto de vista do método

de pesquisa talvez tenha sido um avanço que possibilitou o passo inicial em direção à teoria

histórico-cultural.

Essa questão mostra que sua visão estava em franca modificação por meio da sua mudança

da sua concepção sobre qual deveria ser o objeto da psicologia. Mas essa alteração deve ser vista

mais como formas de abordagem do fenômeno do que como sendo o objeto de fato da psicologia.

Vigotski diz que o objeto não deve surgir antes da psicologia, mas depois.

The subject matter of science is a part of reality, represented in concepts, and this comes

in the end. That is why it is worthwhile to give the definition not at the beginning but at

the end of the course: Then it will be rich in content. The first definition provides a

viewpoint that must be accepted at face value: You must believe me that there is

something vital, psychological, etc. Soon we will see what it is. From this first definition
through the whole course (each new piece of knowledge stands for a definition of the

subject matter) to the final complete definition, which must end psychology (Vygotsky,

2018c, p.109).

Na sequência Vigotski afirma que o objeto surge a partir de aproximações sucessivas

durante o curso do processo científico. “Psychology is the science of mental life. But what is mental

life? The answer is psychology as a whole” (Vygotsky, 2018c, p.109). Portanto, devemos ver essas

concepções de Vigotski apenas como um ponto de partida, já que o problema do objeto da

psicologia somente confirmará ou refutará essas definições (“pessoa”, “funções psicológicas” e

“vida altamente organizada”) no processo de aproximação durante a representação conceitual do

material de pesquisa que surgiu dos dados empíricos.

Implicações epistemológicas da nova definição ontológica

Reconhecer que o homem é mais do que sua origem biológica implica necessariamente a

elaboração de novos métodos para se investigar justamente sua origem social. A nova definição

ontológica, que foi objeto de reflexão nesse período, fez, ao mesmo tempo, com que a sua

metodologia do conhecimento fosse modificada. Diante da nova concepção sobre a natureza do

fenômeno que ele se propunha a pesquisar, se colocou a exigência de uma nova metodologia do

conhecimento que servisse para “desvendar” o fenômeno em questão. A metodologia do

conhecimento adotada já nesses manuscritos foi fundamental para a composição do manuscrito

sobre a crise da psicologia e para a elaboração dos métodos de pesquisa que originaram a teoria

histórico-cultural.

Desde a sua entrada na psicologia, Vigotski já tinha claro que o método da psicologia não

poderia se restringir aos aspectos observáveis. Ainda munido do referencial da reflexologia, ele

reflete sobre a necessidade de se elaborar uma nova metodologia para “investigar os reflexos

inibidos” (Vigotski, 2004a, p. 77) que seriam inacessíveis à observação. Ainda nessa publicação,
Vigotski criticou as concepções que se limitavam ao estudo das “reações visíveis”. Essas

concepções negariam a consciência e seus métodos privariam “os meios mais fundamentais para

investigar as reações não manifestas nem aparentes à primeira vista, tais como os movimentos

internos, a fala interna, as reações somáticas, etc.” (Vigotski, 1925/2004a, p. 57).

A primeira aparição desse problema no manuscrito é quando Vygotsky (2018a) reflete sobre

a relação entre pensamento e fala. Ele discorda de autores como Hunter e Watson, para os quais a

palavra é apenas um estímulo que substitui um objeto ou reação. Vygotsky (2018a) diz que a

palavra não é a relação entre som e a palavra que ela denota, mas sim “uma relação entre um falante

e um ouvinte. É uma relação interpsicológica, que estabelece a unidade dos organismos em direção

a um objeto” (p. 74). Na sequência o autor argumenta: “Linguistics makes the word into a fetish;

the psychologist reveals that behind the visible relationships between things are relationships

between people (cf. Marx, commodity fetishism)” (p. 74). Vemos claramente a referência marxiana

no método indireto de estudo dos fenômenos psicológicos. Isto é, desde esse momento Vigotski

expressava a noção de que seria necessário compreender o fenômeno de forma indireta, ou seja,

para além da sua manifestação imediata. Essa atitude metodológica será fundamental para suas

pesquisas futuras. Em outro momento (Costa, in press) nos centramos sobre como essa questão

aparece de forma marcante no SHCP.

Em outro fragmento, agora dedicado totalmente ao método de Marx, existem questões que

são centrais para a reflexão que Vigotski emprega no SHCP. A ferramenta para se acessar

indiretamente o fenômeno e penetrar na sua essência é a abstração. Nessas anotações, Vigotski

coloca em evidência, pela primeira vez que se tem conhecimento, a questão do método de análise

dos fenômenos. A abstração é o “microscópio” que deve ser utilizado para ir além das aparências12.


12
Na parte final das anotações ele se refere a mesma questão da seguinte maneira: “In the first volume of the Capital,
Marx says that in the social sciences the force of abstraction plays the role of the microscope”(Vygotsky, 2018a, p. 84).
Isso fica claro quando ele diz: “Marx sobre aparência e essência- a epigrafe para Empatia”13. Na

sequência há o seguinte tópico: “Marx sobre a análise microscópica- prefácio do Vol. 1 do Capital.

Ver sobre a abstração”. Na sequência há a anotação indicando que o método empregado no livro

“Psicologia da Arte” já seguiu a análise (abstração).

Apesar da crítica das concepções que se limitavam a investigar apenas as manifestações

visíveis do fenômeno psicológico e de ter se utilizado muito da pesquisa experimental para estudar

indiretamente o fenômeno, Vigotski não desprezou o método de observação. Em sua última

anotação do conjunto analisado, a qual esta provavelmente ligada à sua apresentação no Primeiro

Congresso Pedológico de Toda Rússia, ele defendeu a utilização desse método.

Finally, I can neither agree with the opinion that observation is a relict of the past.

Nothing is more incorrect, anti-historic than the following historical reasoning: Because

these methods originated earlier than others in the history of science, they have become

more obsolete than the others; the very best is the very youngest. Historical age is not the

most important criterion to judge a method. (…) Not a hierarchy of methods, but the

cooperation of all those methods, the foundations of matter and dialectics in principle

(Vygotsky, 2018c) (p. 110).

Somado ao princípio da abstração para se estudar indiretamente o fenômeno e assim

alcançar a sua essência, está o “método reverso” de análise. Vigotski cita uma passagem de Marx da

introdução do texto Para uma crítica da economia política que diz:

The anatomy of man is a key to the anatomy of the ape. Allusions to more advanced

forms in lower species of animals can only be understood when the more advanced forms

are already known. Bourgeois economy provides a key to the economy of antiquity, etc

(Marx como citado por (Vygotsky, 2018a) (p. 76).


13
Essa epigrafe provavelmente diz respeito ao plano do livro sobre o Zoon politikon, pois em anotação anterior há um
esquema do livro e também a menção a “forma e essência de acordo com Marx” na epigrafe.
O método de análise e o estudo do fenômeno “mais desenvolvido” também teria sido

sintetizado no Psicologia da Arte, como o próprio Vigotski menciona no SHCP. Isso ocorreu na

medida em que ele elegeu como objeto da psicologia a análise de uma fábula, um romance e uma

tragédia. No SHCP, Vigotski (2004c) diz que O Capital está escrito seguindo esse método. Marx

analisou a “célula” da sociedade (a forma do valor da mercadoria) e mostra que é mais fácil estudar

o organismo mais desenvolvido do que a célula. O princípio do estudo do “mais desenvolvido”

junta-se a abstração na medida em que na hora de escolher um representante de um fenômeno se

está operando uma generalização.

O princípio do “método reverso” se liga também ao princípio filosófico marxiano de

superação. A perspectiva da superação surgiu a partir da influência do conceito

“supercompensação” de Adler, que foi utilizado por Vygotski (1997) nas suas pesquisas sobre o

desenvolvimento de crianças deficientes. González Rey (2013) atesta que Adler influenciou

Vigotski no que diz respeito ao papel do social na formação da personalidade e por meio do seu

conceito de "supercompensação”. Contudo, futuramente Vigotski se distanciou desse autor a partir

da compreensão de que são as consequências sociais e não o defeito que afetam a personalidade.

Como resultado dessa concepção, Vigotski se afastou do determinismo objetivo sobre a psique

presente na obra de Adler. Esse determinismo compreende uma relação direta entre a doença ou a

deficiência e a configuração psíquica.

Nos cadernos de Zakharino, Vigotski refletiu sobre o conceito de “supercompensação” e o

coloca dentro da matriz marxiana. Ele diz que para Marx e Engels o socialismo seria o capitalismo

que foi superado. O mesmo poderia ser dito em relação à arte e a saúde. Ele completa dizendo que

“no fundo, isso [a ideia de supercompensação] é um princípio dialético de natureza filosófica e

epistemológica” (p. 81).


Vygotski (2000a) voltou a discutir esse conceito alguns anos depois ao tratar da relação

entre as funções psicológicas inferiores e superiores. Ele salienta o movimento dialético dessa

relação ao explicar o significado da palavra “superar” em alemão e em russo. Segundo Vygotski

(2000a), essa palavra teria um duplo significado ao denotar tanto destruir como conservar. Em outra

ocasião, discutindo sobre o Desenvolvimento das funções psíquicas na idade de transição ele diz

que “cada estágio superior nega o inferior, mas nega sem destruí-lo, mas incluindo-o como

categoria superada, como momento integrante” (Vygotski, 2006a, p. 119). Em suma, a concepção

dialética de superação foi fundamental para as pesquisas futuras de Vigotski. Ela esta na base da

constituição de sua visão de homem, pois como vimos ele entendia o homem como superação da

sua raiz biológica. De forma mais clara essa noção aparece nas pesquisas com crianças deficientes e

em casos clínicos, mas também nas investigações sobre o “ato instrumental”, pois o foco sempre foi

descobrir como a criança supera uma situação problema utilizando-se de instrumentos psicológicos.

O problema metodológico em relação ao método de análise do fenômeno toma uma forma

diferente em um fragmento com o título de Para o artigo sobre o método. Nessa reflexão Vigotski

trata do problema da aplicação do materialismo dialético as ciências naturais. Ele aponta para a

necessidade de criação de uma ciência intermediária que “explica a aplicação concreta dos

princípios abstratos do materialismo dialético ao domínio dado dos fenômenos” (p. 87). Ele

complementa dizendo:

Para conseguir isso, nós devemos revelar sua essência, a leis das suas mudanças, a

qualidade e a quantidade das suas características, sua causalidade, em uma palavra, nós

devemos criar o nosso próprio “Capital”. Materialismo dialético não é o materialismo

histórico. O primeiro é universal e abstrato, o segundo histórico e concreto (p. 87).

Para ele, a aplicação do materialismo dialético nas ciências biológicas e na psicologia, como

foi feito naquela época, não foi mais do que a aplicação a um fenômeno particular. As relações
entre os fenômenos são desconhecidas e seguem as categorias da lógica formal. O materialismo

dialético sozinho não pode ser aplicado ao estudo do fenômeno, pois é preciso de uma teoria

intermediária para que seja possível revelar a essência dos fenômenos.

Por outro lado, Vigotski também critica a negação do materialismo histórico pelos

psicólogos da época e a tentativa de conciliar o marxismo a outras teorias somente através de

propriedades que são sobrepostas. Como exemplo, ele cita a passagem o desenvolvimento das

relações de produção (passagem da economia de subsistência, depois feudalismo e por fim

capitalismo). Segundo o autor, do ponto de vista materialista dialético não haveria mudança nesse

fenômeno, mas do ponto de vista materialista histórico haveria uma mudança qualitativa entre eles.

Ele menciona que Kornilov e outros pretendem pular o materialismo histórico contido na obra

máxima de Marx, O Capital. Segundo ele, um manual de psicologia que parte somente do ponto de

vista do materialismo dialético seria o mesmo que dizer que parte do ponto de vista lógico formal.

Em folhas inseridas ao bloco de notas, Vygotsky (2018a) cita o fato de a psicologia

pertencer às ciências que não permitem o estudo direto do seu fenômeno, isto é, que requerem sua

reconstrução. O princípio de reconstrução do fenômeno foi basilar no processo de criação da Teoria

histórico-cultural (Vygotski, 2000d; Vygotsky, 1994). Em suma, os principais princípios

desenvolvidos nessa fase dizem respeito ao problema dos meios de estudo daquilo que não é

observado diretamente. Para se chegar a isso, Vigotski entendeu a necessidade de se utilizar o

“método reverso”, a abstração e a reconstrução do fenômeno. Estes seriam os “instrumentos”

necessários para conhecer aquilo que nos diferencia dos animais e constituíram o caminho dos anos

seguintes de sua investigação e de seus colaboradores.

Considerações finais

Com a publicação dos cadernos de Vigotski, tivemos a oportunidade de vislumbrar um

pouco mais sobre o seu processo de reflexão que redundou em um projeto de pesquisa que durou
quase dez anos. É possível constatar a construção de sua visão sobre o objeto da psicologia e os

métodos necessários para estudá-lo.

Foi possível constatar da análise dos seus cadernos que Vigotski estava formulando várias

concepções que dariam origem a teoria histórico-cultural antes do que se imaginava. Zavershneva

(2014) data o aparecimento de fato da teoria histórico-cultural em 1927, já outros datam como tendo

surgido em 1928 (González Rey, 2013; Veer & Valsiner, 2009; Veresov, 1999) . Acreditamos que a

data proposta por Zavershneva (2014) seja a mais precisa, pois foi no final de 1927 que Vigotski e

Luria apresentaram pela primeira vez os resultados do novo método de pesquisa adotado por eles14.

Outra evidência que corrobora essa versão é uma carta endereçada por Vigotski a Luria em julho de

1927 na qual diz que “the only serious comment is that everyone should work in his field according

to the instrumental method” (Vygotsky, 2007) (p. 19). Portanto, isso significa que antes do final

daquele ano eles já estavam redirecionando a projeto de pesquisa o estudo do papel dos

instrumentos psicológicos no desenvolvimento infantil. Os cadernos de Zakharino nos permitem

concluir que, pelo menos entre o final de 1925 e início de 1926, Vigotski já estava formulando sua

concepção sobre o papel mediador do signo, como foi possível analisar.

A sua concepção de que o objeto da psicologia é o resultado da pesquisa científica e não

uma formulação prévia é fundamental para compreendermos o desenvolvimento de sua teoria. Isso

mostra que devemos ser cuidadosos em nossas interpretações sobre as concepções desse período,

pois expressam reflexões do autor em busca de organizar a pesquisa e não resultados de pesquisa de

fato. Nesse sentido, é problemático julgarmos se dadas concepções a respeito do método podem ser

consideradas como avanço ou retrocesso em razão justamente desse movimento do autor em busca

da organização do seu projeto científico.


14
Segundo (Yasnitsky, In press), Vigotski preparou duas apresentações para o Primeiro Congresso Pedológico de Toda
Rússia. Uma das apresentações de Vigotski teve como título Método instrumental em pedologia. Essa apresentação teve
como complemento a apresentação de Luria intitulada Sobre o método instrumental – pesquisa psicológica.
Não acreditamos que a busca pelas formas de “vida altamente organizada” ou outras

concepções sobre o objeto possam ser considerada um retrocesso. Se pensarmos nos seus estudos

antropológicos e nas pesquisas sobre o “ato instrumental”, fica clara essa sua intenção de procurar

aquilo que se constituem os aspectos mais elevados da organização mental do homem, bem como a

fonte da sua vida mental “altamente organizada”. Podemos entender como um passo atrás

simplesmente porque a pesquisa exigia que se começasse por um elemento mais simples, mas isso

não significa que isso represente um retrocesso do ponto de vista da sua concepção sobre o objeto.

Podemos pensar ainda que na aparência pode não ter sido um avanço em relação à noção de

“pessoa” como objeto, em razão da necessidade de propor um objeto que fosse acessível, pois

estudar a “pessoa” é algo muito complexo de se operacionalizar do ponto de vista do método. Nesse

sentido, acreditamos que na essência se fez necessário buscar elementos mais tangíveis e claros por

onde ser poderia começar a estudar a “pessoa”. Isso pode ser observado também em outras

ciências. Na biologia, por exemplo, primeiro se descobriu a célula e depois o dna e não o contrário.

Mesmo que os cientistas já tivessem a hipótese do dna quando estudavam a célula, não podemos

dizer que o estudo da célula foi um “retrocesso”.

Vimos que princípios centrais que aparecem no SHCP, tais como o “método reverso” e o

papel da abstração na pesquisa científica, ambos inspirados em Marx, já figuram em sua reflexão

pelo menos um ano antes da escrita do texto da Crise. Nos cadernos de Zakharino já temos

reflexões acerca da linguagem que se concretizariam apenas alguns anos depois (Vygotski & Luria,

2007). Além disso, podemos dizer que temos de forma embrionária a gênese da “lei genética geral

do desenvolvimento cultural”, a qual foi desenvolvida a partir das pesquisas com o “método

instrumental” e que aparecem somente na virada da década de 1920 para 1930.

Algumas questões se abrem para pesquisas futuras. Um exemplo é a divisão que ele faz

entre aspecto consciente do homem ligado a sua origem social e inconsciente ligado ao substrato
biológico. Santos (2015), por exemplo, ao analisar a noção de inconsciente na obra de Vigotski,

chega à conclusão de que essa noção tomou uma conotação relacionada às relações culturais e

sociais. Portanto, teria havido uma mudança clara da noção de inconsciente ligado ao aparato

biológico para o histórico-cultural.

Outra questão diz respeito ao seu entendimento sobre o papel da linguagem nas relações

sociais. Nos cadernos de Zakharino ele reconhece que a linguagem não é um substituto do objeto,

mas uma relação entre pessoas e objetos. Essa noção aparentemente não se altera (Vigotski, 2009).

No entanto, nesse momento ele ainda não tinha se dado conta do papel dos conceitos no

desenvolvimento da linguagem. Além dessas relações, a fase final de Vigotski entende que a

linguagem estaria ligada a cadeia de significação e as zonas de sentido de cada contexto e pessoa.

Nossa hipótese é que foi somente quando Vigotski e seus colaboradores se detiveram ao estudo

experimental do desenvolvimento dos conceitos que essa compreensão se complexificou. Portanto,

vemos seu método em ação, pois diante dos fatos concretos que surgiram na pesquisa experimental,

ocorreram mudanças tanto no método quando no objeto de investigação, fator que impulsionou a

transição de orientação na década de 1930. Essas questões podem ser aclaradas com a investigação

dos cadernos do período subsequentes ao aqui objeto de análise e promover uma compreensão mais

acurada do desenvolvimento do projeto científico de Vigotski.

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