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This is the final thing I have done in psychology1—and I will die at the summit like Moses,
having glimpsed the prom[ised] land but without setting foot on it. Farewell, dear creations.
Estas foram, provavelmente, as últimas palavras escritas por Lev Vigotski (1896-1934). Elas
são dramáticas se considerarmos que expressam a consciência do seu fim. Além disso, podem ser
lidas de duas maneiras. Vocalizam certa frustração por ter apenas vislumbrado a “terra prometida”,
indicando que seu trabalho foi incompleto e limitado. Mas, por outro lado, também demonstram sua
convicção de aquilo que fez foi grandioso, pois se compara com um simbólico personagem bíblico.
Foram justamente os métodos desenvolvidos por Vigotski que o levaram a vislumbrar essa
“terra prometida”. Iarochecvski e Gurguenidze (1984/2004) afirmam que “a força das concepções
desenvolvidas por Vigotski procede de sua base e orientação metodológica” (p. 471). Vigotski teve
concretas. Elkonin (2006) reconhece esse mesmo aspecto da produção do autor ao dizer que ele foi
um “metodólogo” da psicologia.
Apesar da importância do método da psicologia para Vigotski, Veresov (2010) afirma que
afirmar que o legado deixado por Vigotski na tentativa de formular uma psicologia a partir das
bases marxistas ainda constituem uma terra incognita, isto é, um campo inexplorado pela ciência
psicológica.
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Essas palavras estão em anotações referentes a casos clínicos que provavelmente serviriam como material para alguma
conferência. Foram escritas pouco antes de sua morte.
Para tentarmos entender a grandiosidade desse empreendimento é fundamental recorremos
ao caminho traçado por Vigotski desde suas formulações iniciais. A origem do seu projeto
científico está ligada ao diagnóstico da crise da psicologia, a qual está presente ainda hoje. Portanto,
a reconstrução do surgimento de sua teoria psicológica, ou pelo menos seu projeto, não satisfaz o
mero interesse histórico restrito à sua obra ou a de seus continuadores. É algo que vai além, pois
pode ser fonte de reflexão para se pensar o estado atual dessa ciência. Esse é justamente o objetivo
do presente texto.
O acesso a manuscritos, anotações pessoais e cartas são extremamente úteis como fonte
histórica para podermos reconstruir um determinado contexto, uma figura histórica ou uma teoria
científica. Em 2006 teve início o estudo dos arquivos de Vigotski como parte do projeto de
preparação das suas obras completas (Zavershneva, 2010). Como resultado se teve acesso a
materiais inédito dos seus arquivos pessoais que foram publicados recentemente (Vygotsky, 2018d).
Essa publicação abriu um rico campo de pesquisa para podermos entender seu processo criativo.
Por meio desses documentos é possível ter acesso a sua “fala interna”, que muitas vezes é de difícil
compreensão2.
período que vai da sua juventude até sua morte, optamos por fazer um recorte e investigarmos os
“método instrumental”.
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Mas isso é explicado pelo próprio autor quando ele discorre sobre esse conceito (Vigotski, 1935/2009). A fala interna
é predicada, pois comunicador e interlocutor estão presentes, sendo assim condensada e possuindo sentido apenas na
ligação com determinadas “zonas de significado”. Portanto, em muitos momentos existem apenas pequenas notas que
serviriam como “instrumentos psicológicos”, as quais provavelmente fariam sentido apenas para ele. No entanto,
também existem reflexões relativamente desenvolvidas, as quais expressam de forma embrionária concepções e
métodos que somente iriam ser aplicados e figurariam em textos publicados posteriormente.
Analisaremos dois conjuntos de anotações que foram concebidos entre 1925 e 1928
(Vygotsky, 2018a, 2018c). Eles foram escritos pouco tempo depois do retorno de Vigotski a
Moscou e vão até o início da sua teoria histórico-cultural. Com relativa semelhança, alguns autores
datam essa fase como sendo o primeiro período de sua produção em psicologia (González Rey,
2013; Veer & Valsiner, 2009; Veresov, 1999; Yasnitsky, in press; Zavershneva, 2014). Os textos
têm como título Do Hospital de Zakharino e anotações intituladas Em direção a Teoria Histórico-
Cultural. Ambos são inéditos aos leitores ocidentais. Eles serão tratados conjuntamente, pois
possuem temáticas comuns. Não seguiremos a ordem dos temas que aparecem nos manuscritos,
dado que não existe uma sequência lógica, pois cada fragmento trata de um assunto ou diferentes
assuntos. Nesse sentido, agrupamos as discussões a partir de núcleos temáticos e de relevância para
a obra do autor.
diz que o debate sobre o que a psicologia deveria ser, seja introspectiva subjetiva ou materialista
objetiva, passa inevitavelmente pelo debate sobre o método3. Na sequência ele afirma o seguinte:
“The first thing we must avoid is to consider methods in a purely abstract way, outside time and
space. The role of methods in this or that particular science is always subservient, subordinated to
the goal” (Vygotsky, 2018c, p. 110). Nesse sentido, o debate metodológico travado por ele também
deve ser enxergado dessa maneira, isto é, devemos ter em mente os condicionantes científicos,
Do ponto de vista social, Vigotski estava inserido em uma sociedade pós-revolucionária que
tinha como projeto a emancipação humana. Nesse sentido, diferente das orientações “idealistas”, as
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Outra prova de que a questão do método da psicologia ocupava um lugar central nas reflexões de Vigotski nesse
período pode ser encontrara em uma carta endereçada a Luria em março de 1926, quando estava internado no hospital
de Zakharino. Ele disse para seu companheiro: “For me, the first question is the question of method; this, for me, is the
question of truth, and hence of scientific discovery and invention” (Vygotsky, 2007, p. 18).
quais não tinham nenhum compromisso com a realidade, com Vigotski ocorreu o contrário. Ele
estava totalmente engajado na constituição de uma psicologia que contribuísse com esse movimento
transformador (González Rey, 2013; Yasnitsky, in press). Portanto, isso quer dizer que os aspectos
científicos e filosóficos estavam entrelaçados com essa exigência de ordem prática. Além disso,
filosoficamente ele fez parte de um movimento que estava comprometido com a criação de uma
“psicologia marxista”. Os caminhos e problemas enfrentados, por outro lado, também se relacionam
com os métodos que a ciência dispunha naquele momento. Lembremos que existiam poucos
métodos de estudo dos fenômenos psicológicos naquele período, dentre os quais havia método
outros.
localizados na primeira fase de sua obra. Essa fase seria a pré-história da teoria histórico-cultural
buscar alternativas para a psicologia, a partir dos limites constatados tanto na reflexologia
Após sua chegada a Moscou, em 1924, Vigotski foi contratado pelo Instituto de Psicologia
Experimental, chefiado por Kornilov. O emprego não pagava muito bem e ele precisou de fontes
adicionais de renda. Em razão de sua posição no instituto ele passou a lecionar em instituições
educacionais. Além disso, ocupou cargos burocráticos no Narkompros6. Seu foco de trabalho foram
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Vale mencionar que essa opção estava descartada por Vigotski, pois desde 1925 ele já apontava os limites desse
método (Vigotski, 2004a). A impossibilidade do uso desse método estava ligada ao seu caráter subjetivista e não
materialista objetivo.
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Atualmente dispomos de mapeamento de neuroimagem, criação de modelos computacionais, análise de big data,
inteligência artificial e diversas formas de análise dos fenômenos psicológicos.
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Narkompros era a sigla para Comissariado do Povo para Educação. Era um departamento soviético responsável pela
administração da educação pública e pela maior parte das matérias relativas à cultura. Esse órgão tinha status de
ministério e Vigotski era o quarto nome na hierarquia da instituição (Yasnitsky, in press).
press). Em razão dessa posição, foi escolhido como representante da União Soviética em uma
conferência sobre crianças surdas, que foi realizada em Londres. Após a chegada de sua única
Fazem parte desse caderno fragmentos de anotações escritas enquanto Vigotski estava
internado para o tratamento de sua tuberculose. Desde o final da década de 1910 Vigotski já
convivia com essa doença, sendo que sua primeira crise ocorreu em 19207. Nessa segunda crise,
Vigotski ficou internado aproximadamente por seis meses, tendo entrado em novembro de 1925 e
saído em maio de 1926. Após a alta ele voltou para a casa e ficou sem trabalhar formalmente
durante o resto do ano de 1926 (Yasnitsky, in press). Uma anotação do próprio caderno nos dá uma
clara dimensão da gravidade de sua saúde durante aquele período. Antes de sua saída ele escreveu:
In the half year spent in this home, where death was as ordinary and common as the
morning breakfast and the doctor’s round, I absorbed so many impressions of death that I
am inclined to death just like a tired person is inclined to sleep (Vygotsky, 2018a, p. 85).
Esse foi o primeiro conjunto de anotações que discute de forma clara os problemas
enfrentados por Vigotski na sua entrada na psicologia. Antes desse caderno, temos conhecimento de
anotações sobre a questão judaica, referentes à escrita do livro Psicologia da arte e um diário da sua
a crise da psicologia não foi escrito nessa ocasião, mas depois de sua alta do hospital (Zavershneva,
2012). É possível notar, de modo geral, que o caderno de Zakharino trata das seguintes temáticas:
anotações referentes ao texto “Psicologia da Arte”, planos para a monografia intitulada Zoon
Politikon, reflexões importantes sobre a natureza da palavra e do signo, questões sobre o problema
Em razão do tema central das anotações serem questões metodológicas, o foco da análise
será o problema do objeto da psicologia, que condensa discussões de caráter ontológico, e sobre o
Como veremos, Vigotski compreende que não existe objeto antes da produção científica, mas que
este surge dos dados obtidos através do método de pesquisa e que, por sua vez, passam pelo crivo
da intepretação (Vigotski, 1982/2004c). Porém, podemos ver que existem claras indicações sobre
qual deveria ser o objeto da psicologia, bem como quais deveriam ser os fundamentos que iriam
o qual expressa muitas das questões tratadas nos cadernos, ele faz a distinção entre duas dimensões
existentes no método científico. Uma dimensão seria o método de pesquisa, o qual, para ele, seriam
conhecimento e metodologia de pesquisa deve ser entendida separadamente para fins didáticos.
Deve-se levar em consideração a dialética entre esses processos, pois se trata de uma relação
qual acaba impactando o método de pesquisa. Por outro lado, o método de pesquisa gera dados
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A partir de agora utilizaremos o título abreviado (SHCP).
factuais que, por sua vez, fazem com que a definição ontológica seja alterada. Com isso pode
ocorrer à constatação de que os métodos são insuficientes e se retorne ao processo de revisão dos
mesmos. Partimos da hipótese de que é possível ver claramente esse movimento na obra de
do “ser”, isto é, que reflete sobre o fundamento daquilo que existe. No caso de Vigotski, diz
respeito a como ele enxergava seu objeto de estudo. Apesar das considerações que se seguem,
devemos alertar o leitor que ele próprio, como demonstraremos, acreditava que não poderia haver
uma compressão do objeto de pesquisa antes da pesquisa em si. O objeto seria justamente o
entre a origem animal e cultural (política) do comportamento do homem, questão central para sua
concepção histórico-cultural do início da década de 1930 (Vygotski, 2000b; Vygotsky & Luria,
1996), foi o cerne dessa nova definição ontológica. Os planos para escrever uma monografia que
teria o título de Zoon Politikon são a expressão dessas reflexões. Essa concepção já vinha sendo
desenvolvida desde o seu livro Psicologia da Arte. Neste estudo Vigotski critica as psicologias
Sua nova definição ontológica vinha se delineando por intermédio de Marx e Engels. Nessa mesma
publicação ele afirma que, segundo Marx, o “homem, no mais lato sentido, é um zoon politikon, não
só um animal a qual é intrínseca a comunicação mas um animal que só em sociedade pode isolar-
consciência. No primeiro fragmento do caderno ele anota os seguintes tópicos referentes a essa
questão:
Individual and social psychology. Thinking and speech. The analysis of acts of empathy
forms the development of one theme: 1. The methodology of bio and socio; 2. The
to the type of the social structure; 3. Its mechanism is empathy for objects, the
natureza da constituição da pessoa que foi sintetizada pelo autor na “lei genética geral do
desenvolvimento cultural”9. Com isso, quando Vigotski diz que o “indivíduo é organizado de
acordo com o tipo de estrutura social”, temos indícios para supor que não houve modificação
substancial da sua concepção ontológica. O que se operou foi uma melhor compreensão das
interações entre processos intersubjetivos e intrasubjetivos. No seguinte excerto poderemos ver uma
semelhança maior ainda em relação à referida lei desenvolvida por ele na virada da década de 1920
para 1930:
Already the fact that the child first listens and understands and then acquires verbal
consciousness points out that: (1) Consciousness develops from experience; (2) Speaking
with himself = consciously acting, the child takes the position of the other, relates to
himself as to another person, imitates another person speaking to him, replaces the other
person in relation to himself, learns to be another person in relation to his proper body.
Consciousness is a double. Thence the child does not know “I”: “Bobby” fell, instead of
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No texto intitulado Gênese das funções psíquicas superiores, que faz parte do estudo sobre a História do
desenvolvimento das funções psicológicas superiores, Vigotski define a “lei genética geral do desenvolvimento cultural”
da seguinte maneira: “(...) toda função no desenvolvimento cultural da criança aparece em cena duas vezes, em dois
planos; primeiro no plano social e depois no plano psicológico, ao princípio entre os homens como categoria
interpsíquica e logo no interior da criança como categoria intrapsíquica”(Vygotski, 2000c, p. 150).
“I” fell. This is possible thanks to the reversibility of the word: The reaction is a stimulus.
But this is called imitation. All speech is imitation. (?)(Vygotsky, 2018a) (p. 74).
Sua busca por uma nova definição ontológica implicou na crítica das orientações dos autores
da sua época. No SHCP ele critica a psicanálise, o behaviorismo, personalismo e a Gestalt. Mas
essa crítica também incluiu seus compatriotas, Pavlov e Kornilov, representantes das principais
Zakharino, Vigotski crítica especificamente Kornilov. Yasnitsky (in press) afirma que Vigotski foi
um seguidor de Kornilov até o rompimento entre os dois em 1928. Porém, diferentemente dessa
concepção, é possível ver críticas claras à Kornilov no SHCP e nos cadernos de Zakharino.
de reações envolve um mal-entendido crucial. Ele afirma que é errada a proposição de que o
homem é passivo ao meio ambiente. “My action changes the situation and is not just determined by
the previous situation, but by the process of change as a whole—both externally and internally”
(Vygotsky, 2018a, p.75). A questão para ele seria que, diferentemente da reactologia de Kornilov, o
comportamento humano não é passivo ao ambiente, mas que interfere nesse ambiente e muda sua
situação. Isso evidencia que nesse período Vigotski estava consciente da relação global entre
indivíduo em ambiente, fato que seria reelaborado na produção da década de 1930 através dos
2006c). Portanto, essa noção do indivíduo como um ser ativo é uma concepção ontológica
adaptação é um bom termo “para a adaptação morfológica (uma resposta às condições ambientais)”
(p. 75). Para os homens, comportamento é atividade, e não uma resposta. Segundo o autor o
comportamento humano difere do animal nos seguintes aspectos: “1) Estímulos artificiais; 2) O
aparato trazido de fora (empatia); 3) Reações artificiais (fala, etc.)” (Vygotsky, 2018a, p. 76).
palavra enquanto um “estímulo criado artificialmente” com a “ferramenta” de trabalho. Nessa época
já estava presente em sua reflexão a concepção sobre o papel do estímulo artificial como elemento
fundamental para a diferenciação entre o homem e o animal. “Verbal behavior differs from
nonverbal behavior like labor does from the adaptation of animals (the tool is also outside the
organism, i.e., it is an organ of society)” (Vygotsky, 2018a, p. 75). A palavra seria um estímulo para
comportamento.
entender que o crescimento infantil não pode ser explicado pela adaptação. Se isso fosse verdadeiro
a ontogênese deveria repetir a filogênese. Apesar de concordar nesse aspecto, o autor parece
discordar de Stern na medida em que ele subestimaria o homem e superestimaria as coisas. Apesar
disso, outra concepção de Stern teria valor: “The family, the people are for him a Person; let us say,
the other way around, that the Person is formed as a family = a community within oneself” (p. 80).
Aqui também é possível ver claramente a concepção ontológica sobre o papel da coletividade na
origem da pessoa.
“psicofísico”, o qual passa pela discussão sobre a relação entre subjetividade e objetividade. Para
ele, a subjetividade se relaciona com a objetividade e não em relação a uma essência. A questão é a
natureza social da mente. O fenômeno mental é constituído das relações entre “dois indivíduos
fetishism of commodities. The mental phenomenon is, just like a commodity, a sensory-
supersensory thing; the super-sensory part is the social, reified, social relationship
projected onto a thing (onto the word). Just like the commodity is a commodity not
because of its physical properties but because of the societal relationships behind it, the
physiological process in the nerves in itself is no behavioral act but the social
relationships behind it, which give it that meaning (Vygotsky, 2018a) (p. 79).
Vigotski está querendo dizer que o fenômeno mental não é uma “coisa em si” que tem
existência independente do seu substrato objetivo, que são as relações sociais. Assim como Marx
precisou ir além da aparência da mercadoria para desvendar sua natureza, por meio das relações
sociais de produção e consumo, Vigotski indica que é preciso realizar a mesma operação para se
estudar os fenômenos psicológicos. É interessante notar que o paralelo feito entre o fenômeno
Vigotski continua a discussão sobre o problema psicofísico e podemos dizer que chega a três
conclusões nesse momento de sua reflexão: 1) A mente não é um processo nervoso; não é uma
coisa ou um processo, mas uma relação entre processos; 2) O processo mental não é a expressão de
psicofísico, pois “a mente não consome energia porque não é um processo físico mas a qualificação
societal dos processos nervosos” (p. 79). Nesse sentido, mais adiante ele afirma que a “psicologia
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Essa concepção do objeto da Psicologia está muito próxima da noção de Gorges Politzer (1903-1942). Este filósofo
também criticava as correntes que analisavam processos isoladamente das pessoas e dos seus “dramas” cotidianos.
Vigotski escreveu isso alguns anos antes de Politzer publicar sobre essa questão. Vigotski tomou contato com os
escritos seus escritos somente no final da década de 1920, como podermos ver em outro manuscrito a 1929 (Vigotski,
1986/2000). Isso aponta para o fato de que esse aspecto da crise da psicologia era sentido por diferentes autores.
Vigotski relaciona o aspecto consciente da pessoa com as relações sociais. Já o aspecto
cooperação desses dois princípios é a pessoa” (p. 80). É interessante notar que a concepção de
“mente” como uma relação entre processos vai se concretizar na ideia de “sistemas psicológicos”,
desenvolvidos depois de 1930 (Vigotski, 2004d). Além disso, nos questionamos se a noção de que o
inconsciente se relaciona com a origem biológica do homem irá permanecer nas reflexões futuras
Tanto nas anotações de Zakharino como em notas escritas entre 1927 e 1928, Vigotski
discute sobre o objeto da psicologia e chega à conclusão que este deveria ser a pessoa. No hospital
vivida desses dois princípios é a pessoa” (Vygotsky, 2018a, p. 79). Já em anotação posterior a sua
saída, de forma mais condensada ele escreve: “A pessoa para a psicologia = o organismo para a
biologia” (Vygotsky, 2018c) (p.107). Calcado no princípio do “método reverso” de Marx, o qual
discutiremos mais adiante, Vigotski afirma: “We must ask (1) about its specific functions and not
about general ones, (2) about the psychological function” (Vygotsky, 2018c, p. 107). Ele está
colocando como desafio para a psicologia o estudo que é específico ao homem, isto é, o
“psicológico como dado real” (p. 108). O fato de o “método reverso” ser uma atitude metodológica
que redunda em uma concepção ontológica demonstra a relação dialética entre método do
ideia de estudo das funções psicológicas como objeto da psicologia. Ele diz que as funções são
insuficientes porque nós devemos saber o que está funcionando, isto é, a estrutura. Tal fato é
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Isso porque a dialética entre significado e sentido, dada sua complexidade em se tratando de relações que se dão entre
diferentes pessoas, também poderia compor uma determinação que seria inconsciente. Quando nos comunicamos
existem determinadas zonas de sentido que são individuais. Podemos ter certo controle consciente quando
comunicamos algo, mas a intepretação pelo interlocutor está fora do nosso alcance sendo, para nós, inconsciente.
curioso, pois é possível ver na citação anterior e em outra passagem da mesma nota que ele propõe
que “nós devemos buscar as funções psicológicas” (Vygotsky, 2018c, p.108). Além disso, esta
concepção se tornou central em sua “fase instrumental”, sobretudo a noção de “funções psicológicas
superiores”, a qual foi utilizada até o início da década de 1930 (Vygotski, 2000d; Vygotski & Luria,
2007). Vigotski pode ter retornado a ideia de funções porque depois ele desenvolveu uma forma de
Além disso, apresenta uma nova formulação sobre qual deveria ser o objeto da psicologia,
no lugar da noção de “pessoa”, tal como aparece nas anotações de Zakharino e mesmo em nota
anterior a 1927. Vigotski sugere o conceito de “vida altamente organizada” deveria ser o objeto da
psicologia. Ele diz que a mente altamente organizada é a manifestação de formas de vida altamente
organizadas. Os editores dos cadernos de Vigotski afirmam, em nota explicativa, que esta nova
concepção dificilmente poderia ser vista como um avanço. Acreditamos que antes de fazer tal
afirmação devemos pensar a teoria em movimento. Pois, se pensarmos do ponto de vista do método
de pesquisa talvez tenha sido um avanço que possibilitou o passo inicial em direção à teoria
histórico-cultural.
Essa questão mostra que sua visão estava em franca modificação por meio da sua mudança
da sua concepção sobre qual deveria ser o objeto da psicologia. Mas essa alteração deve ser vista
mais como formas de abordagem do fenômeno do que como sendo o objeto de fato da psicologia.
Vigotski diz que o objeto não deve surgir antes da psicologia, mas depois.
The subject matter of science is a part of reality, represented in concepts, and this comes
in the end. That is why it is worthwhile to give the definition not at the beginning but at
the end of the course: Then it will be rich in content. The first definition provides a
viewpoint that must be accepted at face value: You must believe me that there is
something vital, psychological, etc. Soon we will see what it is. From this first definition
through the whole course (each new piece of knowledge stands for a definition of the
subject matter) to the final complete definition, which must end psychology (Vygotsky,
2018c, p.109).
durante o curso do processo científico. “Psychology is the science of mental life. But what is mental
life? The answer is psychology as a whole” (Vygotsky, 2018c, p.109). Portanto, devemos ver essas
Reconhecer que o homem é mais do que sua origem biológica implica necessariamente a
elaboração de novos métodos para se investigar justamente sua origem social. A nova definição
ontológica, que foi objeto de reflexão nesse período, fez, ao mesmo tempo, com que a sua
fenômeno que ele se propunha a pesquisar, se colocou a exigência de uma nova metodologia do
sobre a crise da psicologia e para a elaboração dos métodos de pesquisa que originaram a teoria
histórico-cultural.
Desde a sua entrada na psicologia, Vigotski já tinha claro que o método da psicologia não
poderia se restringir aos aspectos observáveis. Ainda munido do referencial da reflexologia, ele
reflete sobre a necessidade de se elaborar uma nova metodologia para “investigar os reflexos
inibidos” (Vigotski, 2004a, p. 77) que seriam inacessíveis à observação. Ainda nessa publicação,
Vigotski criticou as concepções que se limitavam ao estudo das “reações visíveis”. Essas
concepções negariam a consciência e seus métodos privariam “os meios mais fundamentais para
investigar as reações não manifestas nem aparentes à primeira vista, tais como os movimentos
A primeira aparição desse problema no manuscrito é quando Vygotsky (2018a) reflete sobre
a relação entre pensamento e fala. Ele discorda de autores como Hunter e Watson, para os quais a
palavra é apenas um estímulo que substitui um objeto ou reação. Vygotsky (2018a) diz que a
palavra não é a relação entre som e a palavra que ela denota, mas sim “uma relação entre um falante
e um ouvinte. É uma relação interpsicológica, que estabelece a unidade dos organismos em direção
a um objeto” (p. 74). Na sequência o autor argumenta: “Linguistics makes the word into a fetish;
the psychologist reveals that behind the visible relationships between things are relationships
between people (cf. Marx, commodity fetishism)” (p. 74). Vemos claramente a referência marxiana
no método indireto de estudo dos fenômenos psicológicos. Isto é, desde esse momento Vigotski
expressava a noção de que seria necessário compreender o fenômeno de forma indireta, ou seja,
para além da sua manifestação imediata. Essa atitude metodológica será fundamental para suas
pesquisas futuras. Em outro momento (Costa, in press) nos centramos sobre como essa questão
Em outro fragmento, agora dedicado totalmente ao método de Marx, existem questões que
são centrais para a reflexão que Vigotski emprega no SHCP. A ferramenta para se acessar
coloca em evidência, pela primeira vez que se tem conhecimento, a questão do método de análise
dos fenômenos. A abstração é o “microscópio” que deve ser utilizado para ir além das aparências12.
12
Na parte final das anotações ele se refere a mesma questão da seguinte maneira: “In the first volume of the Capital,
Marx says that in the social sciences the force of abstraction plays the role of the microscope”(Vygotsky, 2018a, p. 84).
Isso fica claro quando ele diz: “Marx sobre aparência e essência- a epigrafe para Empatia”13. Na
sequência há o seguinte tópico: “Marx sobre a análise microscópica- prefácio do Vol. 1 do Capital.
Ver sobre a abstração”. Na sequência há a anotação indicando que o método empregado no livro
visíveis do fenômeno psicológico e de ter se utilizado muito da pesquisa experimental para estudar
anotação do conjunto analisado, a qual esta provavelmente ligada à sua apresentação no Primeiro
Finally, I can neither agree with the opinion that observation is a relict of the past.
Nothing is more incorrect, anti-historic than the following historical reasoning: Because
these methods originated earlier than others in the history of science, they have become
more obsolete than the others; the very best is the very youngest. Historical age is not the
most important criterion to judge a method. (…) Not a hierarchy of methods, but the
cooperation of all those methods, the foundations of matter and dialectics in principle
alcançar a sua essência, está o “método reverso” de análise. Vigotski cita uma passagem de Marx da
The anatomy of man is a key to the anatomy of the ape. Allusions to more advanced
forms in lower species of animals can only be understood when the more advanced forms
are already known. Bourgeois economy provides a key to the economy of antiquity, etc
13
Essa epigrafe provavelmente diz respeito ao plano do livro sobre o Zoon politikon, pois em anotação anterior há um
esquema do livro e também a menção a “forma e essência de acordo com Marx” na epigrafe.
O método de análise e o estudo do fenômeno “mais desenvolvido” também teria sido
sintetizado no Psicologia da Arte, como o próprio Vigotski menciona no SHCP. Isso ocorreu na
medida em que ele elegeu como objeto da psicologia a análise de uma fábula, um romance e uma
tragédia. No SHCP, Vigotski (2004c) diz que O Capital está escrito seguindo esse método. Marx
analisou a “célula” da sociedade (a forma do valor da mercadoria) e mostra que é mais fácil estudar
“supercompensação” de Adler, que foi utilizado por Vygotski (1997) nas suas pesquisas sobre o
desenvolvimento de crianças deficientes. González Rey (2013) atesta que Adler influenciou
Vigotski no que diz respeito ao papel do social na formação da personalidade e por meio do seu
da compreensão de que são as consequências sociais e não o defeito que afetam a personalidade.
Como resultado dessa concepção, Vigotski se afastou do determinismo objetivo sobre a psique
presente na obra de Adler. Esse determinismo compreende uma relação direta entre a doença ou a
coloca dentro da matriz marxiana. Ele diz que para Marx e Engels o socialismo seria o capitalismo
que foi superado. O mesmo poderia ser dito em relação à arte e a saúde. Ele completa dizendo que
entre as funções psicológicas inferiores e superiores. Ele salienta o movimento dialético dessa
(2000a), essa palavra teria um duplo significado ao denotar tanto destruir como conservar. Em outra
ocasião, discutindo sobre o Desenvolvimento das funções psíquicas na idade de transição ele diz
que “cada estágio superior nega o inferior, mas nega sem destruí-lo, mas incluindo-o como
categoria superada, como momento integrante” (Vygotski, 2006a, p. 119). Em suma, a concepção
dialética de superação foi fundamental para as pesquisas futuras de Vigotski. Ela esta na base da
constituição de sua visão de homem, pois como vimos ele entendia o homem como superação da
sua raiz biológica. De forma mais clara essa noção aparece nas pesquisas com crianças deficientes e
em casos clínicos, mas também nas investigações sobre o “ato instrumental”, pois o foco sempre foi
descobrir como a criança supera uma situação problema utilizando-se de instrumentos psicológicos.
diferente em um fragmento com o título de Para o artigo sobre o método. Nessa reflexão Vigotski
trata do problema da aplicação do materialismo dialético as ciências naturais. Ele aponta para a
necessidade de criação de uma ciência intermediária que “explica a aplicação concreta dos
princípios abstratos do materialismo dialético ao domínio dado dos fenômenos” (p. 87). Ele
complementa dizendo:
Para conseguir isso, nós devemos revelar sua essência, a leis das suas mudanças, a
qualidade e a quantidade das suas características, sua causalidade, em uma palavra, nós
Para ele, a aplicação do materialismo dialético nas ciências biológicas e na psicologia, como
foi feito naquela época, não foi mais do que a aplicação a um fenômeno particular. As relações
entre os fenômenos são desconhecidas e seguem as categorias da lógica formal. O materialismo
dialético sozinho não pode ser aplicado ao estudo do fenômeno, pois é preciso de uma teoria
Por outro lado, Vigotski também critica a negação do materialismo histórico pelos
propriedades que são sobrepostas. Como exemplo, ele cita a passagem o desenvolvimento das
capitalismo). Segundo o autor, do ponto de vista materialista dialético não haveria mudança nesse
fenômeno, mas do ponto de vista materialista histórico haveria uma mudança qualitativa entre eles.
Ele menciona que Kornilov e outros pretendem pular o materialismo histórico contido na obra
máxima de Marx, O Capital. Segundo ele, um manual de psicologia que parte somente do ponto de
vista do materialismo dialético seria o mesmo que dizer que parte do ponto de vista lógico formal.
pertencer às ciências que não permitem o estudo direto do seu fenômeno, isto é, que requerem sua
desenvolvidos nessa fase dizem respeito ao problema dos meios de estudo daquilo que não é
necessários para conhecer aquilo que nos diferencia dos animais e constituíram o caminho dos anos
Considerações finais
pouco mais sobre o seu processo de reflexão que redundou em um projeto de pesquisa que durou
quase dez anos. É possível constatar a construção de sua visão sobre o objeto da psicologia e os
Foi possível constatar da análise dos seus cadernos que Vigotski estava formulando várias
concepções que dariam origem a teoria histórico-cultural antes do que se imaginava. Zavershneva
(2014) data o aparecimento de fato da teoria histórico-cultural em 1927, já outros datam como tendo
surgido em 1928 (González Rey, 2013; Veer & Valsiner, 2009; Veresov, 1999) . Acreditamos que a
data proposta por Zavershneva (2014) seja a mais precisa, pois foi no final de 1927 que Vigotski e
Luria apresentaram pela primeira vez os resultados do novo método de pesquisa adotado por eles14.
Outra evidência que corrobora essa versão é uma carta endereçada por Vigotski a Luria em julho de
1927 na qual diz que “the only serious comment is that everyone should work in his field according
to the instrumental method” (Vygotsky, 2007) (p. 19). Portanto, isso significa que antes do final
daquele ano eles já estavam redirecionando a projeto de pesquisa o estudo do papel dos
concluir que, pelo menos entre o final de 1925 e início de 1926, Vigotski já estava formulando sua
uma formulação prévia é fundamental para compreendermos o desenvolvimento de sua teoria. Isso
mostra que devemos ser cuidadosos em nossas interpretações sobre as concepções desse período,
pois expressam reflexões do autor em busca de organizar a pesquisa e não resultados de pesquisa de
fato. Nesse sentido, é problemático julgarmos se dadas concepções a respeito do método podem ser
consideradas como avanço ou retrocesso em razão justamente desse movimento do autor em busca
14
Segundo (Yasnitsky, In press), Vigotski preparou duas apresentações para o Primeiro Congresso Pedológico de Toda
Rússia. Uma das apresentações de Vigotski teve como título Método instrumental em pedologia. Essa apresentação teve
como complemento a apresentação de Luria intitulada Sobre o método instrumental – pesquisa psicológica.
Não acreditamos que a busca pelas formas de “vida altamente organizada” ou outras
concepções sobre o objeto possam ser considerada um retrocesso. Se pensarmos nos seus estudos
antropológicos e nas pesquisas sobre o “ato instrumental”, fica clara essa sua intenção de procurar
aquilo que se constituem os aspectos mais elevados da organização mental do homem, bem como a
fonte da sua vida mental “altamente organizada”. Podemos entender como um passo atrás
simplesmente porque a pesquisa exigia que se começasse por um elemento mais simples, mas isso
não significa que isso represente um retrocesso do ponto de vista da sua concepção sobre o objeto.
Podemos pensar ainda que na aparência pode não ter sido um avanço em relação à noção de
“pessoa” como objeto, em razão da necessidade de propor um objeto que fosse acessível, pois
estudar a “pessoa” é algo muito complexo de se operacionalizar do ponto de vista do método. Nesse
sentido, acreditamos que na essência se fez necessário buscar elementos mais tangíveis e claros por
onde ser poderia começar a estudar a “pessoa”. Isso pode ser observado também em outras
ciências. Na biologia, por exemplo, primeiro se descobriu a célula e depois o dna e não o contrário.
Mesmo que os cientistas já tivessem a hipótese do dna quando estudavam a célula, não podemos
Vimos que princípios centrais que aparecem no SHCP, tais como o “método reverso” e o
papel da abstração na pesquisa científica, ambos inspirados em Marx, já figuram em sua reflexão
pelo menos um ano antes da escrita do texto da Crise. Nos cadernos de Zakharino já temos
reflexões acerca da linguagem que se concretizariam apenas alguns anos depois (Vygotski & Luria,
2007). Além disso, podemos dizer que temos de forma embrionária a gênese da “lei genética geral
do desenvolvimento cultural”, a qual foi desenvolvida a partir das pesquisas com o “método
Algumas questões se abrem para pesquisas futuras. Um exemplo é a divisão que ele faz
entre aspecto consciente do homem ligado a sua origem social e inconsciente ligado ao substrato
biológico. Santos (2015), por exemplo, ao analisar a noção de inconsciente na obra de Vigotski,
chega à conclusão de que essa noção tomou uma conotação relacionada às relações culturais e
sociais. Portanto, teria havido uma mudança clara da noção de inconsciente ligado ao aparato
Outra questão diz respeito ao seu entendimento sobre o papel da linguagem nas relações
sociais. Nos cadernos de Zakharino ele reconhece que a linguagem não é um substituto do objeto,
mas uma relação entre pessoas e objetos. Essa noção aparentemente não se altera (Vigotski, 2009).
No entanto, nesse momento ele ainda não tinha se dado conta do papel dos conceitos no
desenvolvimento da linguagem. Além dessas relações, a fase final de Vigotski entende que a
linguagem estaria ligada a cadeia de significação e as zonas de sentido de cada contexto e pessoa.
Nossa hipótese é que foi somente quando Vigotski e seus colaboradores se detiveram ao estudo
vemos seu método em ação, pois diante dos fatos concretos que surgiram na pesquisa experimental,
ocorreram mudanças tanto no método quando no objeto de investigação, fator que impulsionou a
transição de orientação na década de 1930. Essas questões podem ser aclaradas com a investigação
dos cadernos do período subsequentes ao aqui objeto de análise e promover uma compreensão mais
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