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Algumas notas
Amor de Perdição tem como tema predominante o amor. Não o amor feliz, de
salvação, mas antes, como o título indica, um amor que leva à desgraça, à perdição. Com
efeito, o amor narrado nesta obra de Camilo é o amor-paixão, ou seja, é um amor vivido
intensamente, até às últimas consequências; é um amor que se alimenta do sofrimento,
da expiação e da morte. Aliás, os três amantes, figuras centrais da intriga amorosa -
Simão, Teresa e Mariana - serão vítima desse sentimento exacerbado.
1
Progressão da intriga amorosa
2
Simão: a construção do herói romântico
virilidade - “Os quinze anos de Simão têm aparências de vinte. É forte de compleição”
[Cap. I]
nobreza de carácter - depois de matar o seu rival, Simão recusa fugir, entrega-se à
justiça e assume o seu ato; mesmo depois de condenado, inicialmente à forca e depois
ao degredo, aceita a pena de não tenta nunca obter benevolência devido às ligações
familiares;
valorização do amor e da verdade - Simão vive o amor como um absoluto, como uma
religião; é algo de sagrado e por isso está disposto a sacrificar-se por esse sentimento; o
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amor representa a verdade, a verdade do coração e dos sentimentos, que se opõe à
razão e à honra, tal como as concebiam o seu pai e o pai de Teresa.
CAPÍTULO I
D. Rita Teresa Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco: mãe de Simão
e Manuel Botelho, casada com Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses;
formosa.
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É mencionado um tio paterno de Simão Botelho, Luís Botelho, que cometera
homicídio. Em nota de rodapé, o autor coloca o seguinte: “Há vinte anos que eu ouvi de
um coevo do facto a história do assassínio, assim contada: Era em Quinta-Feira Santa.
Marcos Botelho, irmão de Domingos, estava na festa de Endoenças, em S. Francisco,
defrontando com uma dama, namorada sua, e desleal dama que ela era. Noutro ponto
da igreja estava, apontado em olhos e coração à mesma mulher, um alferes de
infantaria. Marcos enfreou o seu ciúme até ao final do ofício da Paixão. À saída do
templo encarou no militar e provocou-o. O alferes tirou da espada, e o fidalgo do
espadim. Terçaram as armas longo tempo sem desaire, nem sangue. Amigos de ambos
tinham conseguido aplacá-los, quando Luís Botelho, outro irmão de Marcos, desfechou
uma clavina no peito do alferes, e ali, à entrada da «rua do Jogo da Bola», o derribou
morto. O homicida foi livre por graça régia.”
Neste capítulo, ficamos ainda a saber que “Formara-se Domingos Botelho em 1767,
e fora a Lisboa ler no Desembargo do Paço, iniciação banal dos que aspiravam à carreira
da magistratura. Já Fernão Botelho, pai do bacharel, fora bem aceite em Lisboa, e
mormente ao duque de Aveiro, cuja estima lhe teve a cabeça em risco, na tentativa
regicida de 1758. O provinciano saiu das masmorras da Junqueira ilibado da infamante
nódoa[...]”.1 A menção de factos históricos, neste caso a tentativa de regicídio de 1758,
1
No dia 3 de setembro de 1758, D. José I seguia incógnito numa carruagem que percorria uma rua
secundária nos arredores de Lisboa. O rei regressava para as tendas da Ajuda de uma noite com a amante
a “marquesinha” Távora, D. Teresa Leonor. Pelo caminho, a carruagem foi intercetada por três homens,
que dispararam sobre os ocupantes. D. José I foi ferido num braço, o seu condutor também ficou ferido
gravemente, mas ambos sobreviveram e regressaram à Ajuda. Sebastião José de Melo (Marquês de
Pombal) tomou o controle imediato da situação, que aproveitou para retirar poder à família nobre dos
Távoras, acusando-os de regicídio e traição. Poucos dias depois do atentado, dois homens foram presos
e torturados. Os homens confessaram a culpa e que tinham tido ordens da família dos Távoras, que
estavam a conspirar pôr o duque de Aveiro, José Mascarenhas, no trono. Ambos foram enforcados no dia
seguinte, mesmo antes da tentativa de regicídio ter sido tornada pública. Nas semanas que se seguem, a
marquesa Leonor de Távora, o seu marido, o conde de Alvor, todos os seus filhos, filhas e netos foram
encarcerados. Os conspiradores, o duque de Aveiro e os genros dos Távoras, o marquês de Alorna e o
conde de Atouguia foram presos com as suas famílias. Gabriel Malagrida, o jesuíta confessor de Leonor
de Távora foi igualmente preso.
Foram todos acusados de alta traição e de regicídio. A sentença ordenou a execução de todos, incluindo
mulheres e crianças. Apenas as intervenções da Rainha Mariana e de Maria Francisca, a herdeira do trono,
salvaram a maioria deles. A marquesa, porém, não seria poupada. Ela e outros acusados que tinham sido
sentenciados à morte foram torturados e executados publicamente em 13 de janeiro de 1759 num
descampado, perto de Lisboa, próximo à Torre de Belém.
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é uma estratégia seguida pelo autor-narrador para conferir veracidade àquilo que
narra.2
“Os quinze anos de Simão têm aparências de vinte. É forte de compleição; belo
homem com as feições de sua mãe, e a corpulência dela; mas de todo avesso em génio.
Na plebe de Viseu é que ele escolhe amigos e companheiros. Se D. Rita lhe censura a
indigna eleição que faz, Simão zomba das genealogias, e mormente do General
Caldeirão que morreu frito. Isto bastou para ele granjear a malquerença de sua mãe. O
2
O mesmo verificamos no início da obra, quando o autor, Camilo Castelo Branco, afirma ter encontrado
a informação sobre Simão Botelho nos registos da Cadeia da Relação do Porto, enquanto esteve preso
devido à sua relação adúltera com Ana Plácido.
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corregedor via as coisas pelos olhos de sua mulher, e tomou parte no desgosto dela, e
na aversão ao filho. As irmãs temiam-no, tirante Rita, a mais nova, com quem ele
brincava puerilmente, e a quem obedecia, se lhe ela pedia, com meiguices de criança,
que não andasse com pessoas mecânicas.”
Deste excerto, ressalta a relação entre Simão e os pais e entre o jovem e a irmã. É
neste contexto familiar que nascerá o amor de Simão por Teresa e esse contexto acabará
por influenciar o desenlace desse mesmo amor.
CAPÍTULO IV
Caracterização de Teresa: a heroína romântica
O capítulo IV inicia-se com considerações do narrador que revelam a sua
omnisciência:3
“O coração de Teresa estava mentindo. Vão lá pedir sinceridade ao coração!
Para finos entendedores, o diálogo do anterior capítulo definiu a filha de Tadeu de
Albuquerque. É mulher varonil, tem força de carácter, orgulho fortalecido pelo amo,
despego das vulgares apreensões, se são apreensões a renúncia que uma filha faz do
alvedrio às imprevidentes e caprichosas vontades de seu pai. Diz boa gente que não, e
eu abundo sempre no voto da gente boa. Não será aleive atribuir-lhe uma pouca de
astúcia, ou hipocrisia, se quiserem; perspicácia seria mais correto dizer. Teresa adivinha
que a lealdade tropeça a cada passo na estrada real da vida, e que os melhores fins se
atingem por atalhos onde não cabem a franqueza e a sinceridade. Estes ardis são raros
na idade inexperta de Teresa; mas a mulher do romance quase nunca é trivial, e esta,
3
Narrador omnisciente é aquele que conhece toda a história e detalhes da trama, sabendo até o que
cada uma das personagens pensa ou sente.
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de que rezam os meus apontamentos, era distintíssima. A mim me basta, para crer em
sua distinção, a celebridade que ela veio a ganhar à conta da desgraça.”
No capítulo anterior (Cap. III), depois de revelar a seu primo Baltasar Coutinho que
não o ama e que por isso não pode casar com ele, Teresa é ameaçada pelo pai de ir para
um convento. Porém, acaba por prometer “julgar-se morta para todos os homens,
menos para seu pai”. É precisamente a essa promessa que o narrador alude quando
menciona que “O coração de Teresa estava mentindo. Vão lá pedir sinceridade ao
coração!”. Isto revela a perspicácia de Teresa ao mentir ao pai para evitar consequências
menos agradáveis. Devido a esta atitude, ...
“Parecia bonançoso o céu de Teresa. Seu pai não falava em claustro nem em
casamento. Baltasar Coutinho voltara ao seu solar de Castro Daire. A tranquila menina
dava semanalmente estas boas-novas a Simão, que, aliando às venturas do coração as
riquezas do espírito, estudava incessantemente, e desvelava as noites arquitetando o
seu edifício de futura glória.”
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me de te julgar desassombrada do diabólico prestígio que acordou o teu inocente
coração.”
Neste diálogo entre Teresa e o pai, Tadeu de Albuquerque, é visível o indício de que
o amor entre Simão e Teresa está condenado, que é um amor de perdição, pois Teresa
fala em “sacrifício”, ódio e “morte”, palavras com uma forte conotação ominosa.4
4
Ominoso: que anuncia ou traz mau agouro, desventura, infelicidade; agourento, funesto, nefasto.
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Feliz! - repetiu ele, erguendo-se de golpe. - Quem pode ser feliz com a desonra duma
ameaça impune?!... Mas eu perco-a! Nunca mais eu hei de vê-la... Fugirei como um
assassino, e meu pai será meu primeiro inimigo, e ela mesma há de horrorizar-se da
minha vingança... A ameaça só ela a ouviu; e, se eu tivesse sido aviltado no conceito de
Teresa pelos insultos do miserável, talvez que ela os não repetisse...»
Simão Botelho releu a carta duas vezes, e à terceira leitura achou menos
afrontosas as bravatas do fidalgo cioso. As linhas finais desmentiam formalmente a
suspeita do aviltamento com que o seu orgulho o atormentava [...].
Quando o arrieiro bateu à porta, Simão Botelho já não pensava em matar o
homem de Castro Daire; mas resolvera ir a Viseu, entrar de noite, esconder-se e ver
Teresa.”
Neste ponto da narrativa são introduzidas duas novas personagens: o ferrador João
da Cruz, em casa de quem Simão se instala nos arredores de Viseu; e a mendiga, elo de
ligação entre Simão e Teresa, visto que será esta que entrega as cartas de ambos daí em
diante.
Simão é visto, neste capítulo, sob um outro ângulo, também ele característico do
herói romântico - o de jovem apaixonado, puro, tímido, ansioso. Teresa, ao saber que
Simão estava em Viseu, marca um encontro com ele5, à noite, no quintal. Simão “não
esperava tanto” e o seu coração fica “sobressaltado”:
“Não esperava tanto o académico. O que ele pedir era falar-lhe da rua para a janela do
seu quarto, e receava impossível este prazer, que ele avaliava o máximo. Apertar-lhe a
mão, sentir-lhe o hálito, abraçá-la talvez, cometer a ousadia de um beijo, estas
5
Este encontro é narrado no Capítulo V.
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esperanças, tão além de suas modestas e honestas ambições, igualmente o enleavam e
assustavam.”
CAPÍTULO X
Neste capítulo, é narrado o assassinato de Baltasar Coutinho, o qual conduzirá,
inevitavelmente, o protagonista ao seu destino fatal.
O diálogo entre Teresa e Mariana evidencia a nobreza dos sentimentos desta última:
o seu amor por Simão (“Se eu fosse amada como ela...”) e a sua dignidade ao recusar a
oferta de Teresa de um anel de ouro (“A receber alguma paga há de ser de quem me cá
mandou. Fique com Deus, minha senhora, e oxalá que seja feliz.”).
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Simão: a perdição por amor
Se anteriormente Simão conseguira dominar a sua raiva em relação ao seu rival, ela
renasce impelida pela honra e pelo coração (“eu hei de fazer o que a honra e o coração
me aconselharem”). Por isso, embora João da Cruz tente, com a sua simples filosofia de
vida, persuadir Simão de que não vale a pena perder-se por amor (“Paixões... que as
leve o diabo, e mais quem com elas engorda. Por causa de uma mulher, ainda que ela
seja filha do rei, não se há de um homem botar a perder.”), o jovem académico não se
demove da sua posição e a carta que escreve a Teresa, nessa noite, confirma-o:
“«Considero-te perdida, Teresa. O sol de amanhã pode ser que eu o não veja.
Tudo, em volta de mim, tem uma cor de morte. Parece que o frio da minha sepultura
me está passando o sangue e os ossos.
Não posso ser o que tu querias que eu fosse. A minha paixão não se conforma com
a desgraça. Eras a minha vida: tinha a certeza de que as contrariedades me não privavam
de ti. Só o receio de perder-te me mata. O que me resta do passado é a coragem de ir
buscar uma morte digna de mim e de ti. Se tens força para uma agonia lenta, eu não
posso com ela.
Poderia viver com a paixão infeliz; mas este rancor sem vingança é um inferno.
Não hei de dar barata a vida, não. Ficarás sem mim, Teresa; mas não haverá um infame
que te persiga depois da minha morte. Tenho ciúmes de todas as tuas horas. [...]
Tu verás esta carta quando eu estiver num outro mundo, esperando as orações
das tuas lágrimas. As orações! Admiro-me desta faísca de fé que me alumia nas minhas
trevas!... Tu deras-me com o amor a religião, Teresa. Ainda creio; não se apaga a luz que
é tua; mas a providência divina desamparou-me. [...]»”
Simão deixa-se dominar pelo rancor, pelos ciúmes. O tom da carta é de desespero,
angústia e amargura. O amor-paixão de Simão e Teresa é, pois, um amor associado ao
sofrimento, à desgraça, ao sacrifício e à morte. É uma espécie de religião - a religião do
amor - como o próprio protagonista afirma (“Tu deras-me com o amor a religião.”).
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apresentam, por vezes, factos já conhecidos do leitor, mas sob uma nova
perspetiva;
conferem variedade e riqueza ao discurso, alternando com o diálogo, a
narração e os poucos momentos de descrição.
Tudo se encaminha para o momento decisivo - o confronto entre os dois rivais (Simão
Botelho e Baltasar Coutinho. Num diálogo vivo e de poucas linhas, o narrador relata os
insultos e ofensas trocadas entre Simão e Baltasar que culminaram no assassinato deste
último.
“Baltasar, espavorido do encontro, fitando os olhos nele, duvidava ainda.
- É incrível que este infame aqui viesse! - exclamou o de Castro Daire.
Simão deu alguns passos, e disse placidamente:
- Infame... eu! e porquê?
- Infame, e infame assassino! - replicou baltasar. - Já fora da minha presença!
- É parvo este homem! - disse o académico. [...]
- Que diz este patife?! - exclamou Tadeu.
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- Vem aqui insultá-lo, meu tio! - respondeu Baltasar. - Tem a petulância de se
apresentar a sua filha a confortá-la na sua malvadez! Isto é de mais! Olhe que eu
esmago-o aqui, seu vilão!
- Vilão é o desgraçado que me ameaça, sem ousar avançar para mim um passo -
redarguiu o filho do corregedor.
- Eu não o tenho feito - exclamou enfurecidamente Baltasar - por entender que
me avilto, castigando-o na presença de criados de meu tio, que tu podes supor meus
defensores, canalha!
- Se assim é - tornou Simão, sorrindo -, espero nunca me encontrar de rosto com
sua senhoria. Reputo-o tão covarde, tão sem dignidade, que o hei de mandar azorragar
pelo primeiro mariola das esquinas.
Baltasar Coutinho lançou-se de ímpeto a Simão. Chegou a apertar-lhe a garganta
nas mãos, mas depressa perdeu o vigor dos dedos. Quando as damas chegaram a
interpor-se entre os dois, Baltasar tinha o alto do crânio aberto por uma bala que lhe
entrara na fronte. Vacilou um segundo e caiu desamparado aos pés de Teresa.
Tadeu de Albuquerque gritava a altos brados. Os liteireiros e criados rodearam
Simão, que conservava o dedo no gatilho da outra pistola.”
Deste modo, está, portanto, desfeito o triângulo amoroso. Na sequência deste ato, e
à boa maneira romântica, Simão assume corajosamente o seu crime, confirmando a sua
perdição e entregando-se ao meirinho6:
“- Fuja que a égua está ao cabo da rua - disse o ferrador ao seu hóspede.
- Não fujo... Salve-se, e depressa - respondeu Simão. [...]
- Está perdido! - tornou João da Cruz.
- Já o estava. [...]
- Prendam-no, prendam-no, que é um matador - exclamava Tadeu de
Albuquerque.
- Qual? - perguntou o meirinho-geral.
- Sou eu - respondeu o filho do corregedor.
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Meirinho - antiga designação de um empregado judicial, correspondente ao que é hoje um oficial de
justiça.
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- Vossa senhoria! - disse o meirinho, espantado; e, aproximando-se, acrescentou
a meia voz: - Venha, que eu deixo-o fugir.
- Eu não fujo - tornou Simão. - Estou preso. Aqui tem as minhas armas.”
CAPÍTULO XIX
Com a prisão de Simão e a clausura de Teresa num convento, aproxima-se o fatal
desenlace final. A desgraça parece ter-se abatido sobre ambos, o que leva o narrador a
questionar-se: “A desgraça afervora ou quebranta o amor?”.
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Não me peças que aceite dez anos de prisão. Tu não sabes o que é a liberdade
cativa dez anos! Não compreendes a tortura dos meus vinte meses. [...]
Salva-te, se podes, Teresa. Renuncia ao prestígio dum grande desgraçado. [...] E,
senão, morre, Teresa, que a felicidade é a morte[...]».”
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