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T E O R IA E C L Í N IC A P SIC A NA L Í TFigueiredo

Luís Claudio IC A
Ser psicanalista:
um ofício meio doido
Being a psychoanalyst:
Kind of a crazy job
Luís Claudio Figueiredo

Resumo
Esta reflexão sobre o oficio de psicanalista foi inspirada no romance O apanhador no campo
de centeio, de J. D. Salinger, que narra a irreverência, a instabilidade e a crítica ao mundo
adulto feita por um adolescente americano da década de 1940. O texto busca a relação de
certas fantasias deste adolescente com as ideias que Christopher Bollas desenvolveu no livro
Apanhe-os antes que caiam (2013) sobre o atendimento de pacientes em sofrimentos extremos;
a partir daí, tece considerações a respeito do lugar da ambição e da onipotência, mas também
da necessária modéstia dos psicanalistas em suas práticas. O trabalho faz referências à matriz
freudo-kleiniana e a Wilfred Bion para falar da atividade analítica, e também ao que o analista
precisa ter de infantil, imaturo e inconsciente.

Palavras-chave: Analista implicado, Analista reservado, Adoecimentos psíquicos, Práticas clí-


nicas.

Sabe o que eu queria ser?


Quer dizer, se eu pudesse escolher qualquer merda? [...]
Enfim, eu fico imaginando um monte de criancinhas brincando
de alguma coisa num campo imenso de centeio e tal.
Milhares de criancinhas, e ninguém está por ali
– ninguém adulto, assim – fora eu.
E eu estou parado na borda de um penhasco maluco.
O que eu tenho que fazer é que eu tenho de pegar todo mundo
se eles forem cair no penhasco
– quer dizer, se eles estiverem correndo
e não olharem para onde vão,
eu tenho de aparecer de algum lugar e apanhar eles.
Era a única coisa que eu ia fazer o dia todo.
Eu ia ser o apanhador no campo de centeio e tal.
Eu sei que é doido, mas é a única coisa
que eu queria ser de verdade.
Eu sei que é doido.
(Salinger, [1951] 2019, p. 208-209).

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Ser psicanalista: um ofício meio doido

Introdução: a longa tica muitas vezes foi obrigada a ‘estender as


crise depressiva de Holden Caulfield mãos’ para pacientes muito adoecidos que
O relato de Holden Caulfield, 17, desde suas correm, desarvoradamente, para a borda do
últimas horas na escola de que acabava de abismo e precisam ser, sim, apanhados antes
ser novamente expulso, atravessando alguns que caiam.
dias de liberdade, desorientação, encontros e Foi assim com os casos relatados por
encrencas em Nova York, antes de retornar à Bollas (2013), e tinha sido assim quando a
casa dos pais, até sua última comunicação, já analista inglesa Anne Alvarez (1992) cunhou
internado em uma clínica psiquiátrica, cobre a noção de ‘reclamação’ diante de um pa-
exatas duzentas e cinquenta e três páginas, na ciente autista, quando intuiu que, se não o
edição da Todavia (Salinger, 2019). É uma apanhasse, ele cairia para sempre e definiti-
narrativa cheia do humor, da irreverência, da vamente. Antes deles, essa fora a índole de
instabilidade, do tédio, da depressão e da crí- uma parte muito significativa das inovações
tica ao mundo adulto desse adolescente ame- que Sándor Ferenczi introduziu na psica-
ricano da década de 1940, no pós-guerra. nálise em seus derradeiros trabalhos. Mas
Vamos lendo fascinados esse relato, mas é antes de avançar, seria conveniente retomar
apenas nas páginas 208 e 209 que encontra- em que medida a prática psicanalítica não se
mos um esclarecimento do título do roman- assemelha à fantasia do personagem de J. D.
ce: O apanhador no campo de centeio. Quan- Salinger.
do li esse trecho, que aqui foi colocado como Não apenas o salvar a todo custo não fa-
epígrafe, imediatamente me lembrei do livro zia parte da clínica freudiana nem da kleino-
do psicanalista Christopher Bollas (2013) -bioniana, dado o reconhecimento de forças
Apanhe-os antes que caiam. contrárias ao tratamento operando o tempo
Podia jurar que Bollas se inspirara nes- todo – as resistências combinadas do isso,
se trecho do livro de Salinger. Nunca obtive do eu e do supereu e, em particular, as cha-
alguma confirmação dessa suspeita, mas ela madas pulsões de morte – como a suposição
me abriu o horizonte para as considerações de onipotência de Holden Caulfield não nos
que se seguem em torno de nossas práticas ajuda em nossa labuta.
clínicas. Em especial, do que nelas pode ha- Nos imaginarmos como ‘o único adulto
ver de ‘doido’, como na fantasia amalucada na borda do penhasco’ é um péssimo come-
e hiper-reparadora do garoto Holden Caul- ço para virmos a ocupar o lugar do analista
field, no final das contas, um garoto inteli- a quem cabe escutar, exercer a complexa ta-
gente, muito bom e generoso. refa de uma escuta polifônica (Figueiredo,
No mesmo momento me veio o desejo de 2018), que nos dê acesso às diversas dimen-
dedicar este pequeno texto aos amigos do sões inconscientes do paciente, de nós mes-
Terceira Margem do Rio, que há vinte cinco mos, do campo analisante e dessa entidade
anos se reúnem – sob o signo de uma cer- que se forma pelo entrecruzamento dos in-
ta loucura mansa (o nome diz tudo) – para conscientes que nesse campo habitam. Uma
conversarmos sobre nossas experiências, entidade tão estranha que já foi denomina-
nossas inquietações, nossas ideias. da de ‘quimera’ e de ‘monstro’, pelo que tem
de enigmático, confuso e monstruoso (De
A psicanálise, evidentemente, não é só isso M’Uzan, [1978] 1987; Reis, 2016).
Não fazia parte do empreendimento de As operações da escuta polifônica, por
Freud uma pretensão salvífica dessa monta. mais complexas e desafiadoras que sejam,
Ao contrário, o furor curandis é por ele con- nem de longe se parecem com o que se es-
denado e dessa condenação não se tornou pera do apanhador no campo de centeio,
obsoleta. Não obstante, a clínica psicanalí- salvando milhares de criancinhas na borda

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do abismo. O fundamental, ao contrário, é Desses trabalhos psíquicos esperamos a


sustentar essa disposição peculiar de mente expansão da nossa capacidade de lidar com
de ‘esperar o inesperado’, deixar vir o novo, os afetos, as ideias e a ampliação de nossa
deixar-se afetar pelas comunicações incons- competência para tolerar adversidades e in-
cientes do paciente, deixar-se submeter ao certezas. Vale dizer, concebemos a ‘cura’ na
adoecimento da quimera (de que somos par- forma de nos tornarmos mais humanos e
te) nas transferências e contratransferência mais reconciliados com nossa humana con-
neuróticas, narcísicas e psicóticas. Em todas, dição, finita e imperfeita.
aliás, podemos experimentar alguma dose Como se vê, estamos muito longe das
de loucura, e “madness”, efetivamente, cons- fantasias de Holden Caulfield, embora haja
ta do título do artigo de Bruce Reis (2016) também aqui uma certa proximidade com
acima mencionado, dedicado às obras de a loucura e com os adoecimentos psicosso-
Michel De M’Uzan, Thomas Ogden e Chris- máticos, como disse acima. Querer ser psi-
topher Bollas. canalista assim e só fazer isso o tempo todo,
É claro, enfim, que há riscos aí sempre nós também sabemos que é perigoso e doi-
presentes, seja o risco de loucura, seja o de do, embora não tão doido quanto pensava e
adoecimentos psicossomáticos, ambos asso- sabia ser o personagem de Salinger.
ciados a momentos de perda de ‘identidade’,
estados passageiros de alguma despersonali- Mas a psicanálise também é isso;
zação, muito bem descritos por De M’Uzan. de vez em quando, muito isso... e,
Mas não é ainda o risco da loucura onipoten- no fundo, um pouco disso, o tempo todo
te e persistente de se julgar o único adulto na
borda do penhasco, responsável por centenas Preliminares: o analista implicado
de criancinhas descontroladas e em perigo. e superimplicado
Ao contrário, sabemos perfeitamente que Estamos falando de presença implicada e em
de um perfeito adulto – vigilante e consciente graus de implicação. Embora sempre neces-
– não temos muito e que, na verdade, só po- sária na formação das “quimeras”, monstru-
demos exercer nossa atividade analítica dan- osas e muito loucas, da situação analisante, e
do uma função importante ao que também na sua transformação, na psicanálise, a maior
temos de infantil, imaturo e inconsciente. parte do tempo, e na maioria dos casos, a im-
É da combinação paradoxal de nossa con- plicação pode e precisa ser conservada den-
dição híbrida – infantil e adulto; consciência tro de limites. Eles se expandem, quando não
e inconsciente – que precisamos para instalar se rompem, quando se impõe a tarefa de apa-
e sustentar a situação analisante, deixando a nhar as crianças na borda do penhasco.
ela a responsabilidade de propiciar e poten- É disso que se trata no livro de Bollas
cializar nossas capacidades de trabalho psí- (2013) e me surpreendeu não haver nele ne-
quico: trabalhos do sonho, trabalhos do luto, nhuma alusão ao romance de Salinger, que
trabalhos do humor e da criação, trabalhos Bollas seguramente conhece e aprecia. Nesse
do morrer. pequeno volume Catch them before they fall
A ‘cura’, e não a salvação, será o produto verificamos a necessidade de os psicanalistas
dessas operações de trabalho psíquico cons- reconhecerem que, mesmo que a psicanálise
ciente e inconsciente e poderia ser concebida não seja fundamental, isso também deva ser
muito singelamente como a elaboração per- isso em certas situações.
manente e continuada – ainda que sujeita a Mais claramente, precisa ser isso de vez
algumas interrupções – de nossas experiên- em quando, como nos casos relatados pelo
cias emocionais, em particular, as mais per- analista em que se avolumam os sinais de
turbadoras, na forma de agonias e angústias. um colapso se aproximando. Era, aliás, o

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caso do próprio Holden Caulfield, mais do Klein e Wilfred Bion encontramos elemen-
que o das criancinhas que ele queria salvar tos da teoria e da clínica que nos impõem
e que estavam, afinal de contas, brincando modéstia em nossas ambições terapêuticas.
e correndo no campo de centeio, enquanto Já os riscos do excesso na matriz ferencziana
ele errava de encontro em encontro, de en- parecem muito maiores, justamente porque
crenca em encrenca, desorientado e às voltas nela são minimizados os obstáculos, as re-
com o tédio e a depressão. Tudo sugere que sistências, as ‘reações terapêuticas negativas’
a fantasia onipotente e hiper-reparadora do e outras decorrências das pulsões de morte,
garoto era uma projeção sobre as crianças do de destruição e de regressão ao inanimado.
perigo que ele corria e do colapso que dele A implicação excessiva pode levar o analista
se aproximava, reservando-se o papel seguro para o fundo do penhasco, onde ele manterá
do grande salvador. o paciente encarcerado.
Não obstante, há efetivamente indivídu-
os que se aproximam sem saber do abismo O analista em reserva
– mas não correndo e brincando, é claro Mas eis que podemos aprender também a
– e que precisam ser apanhados antes que reserva com o mesmo Holden Caulfield:
caiam. A tradição ferencziana na psicanálise, poucas páginas depois de contar sua fantasia
que comparece no livro de Bollas, por inter- à irmã querida, ele já não se imagina mais
médio de Balint e Winnicott, inaugurou essa como o único adulto na borda do penhas-
corrente que tanto se abre para pacientes co- co; agora é um adolescente que, sentado em
lapsados ou em marcha para o colapso, como um banco, vê efetivamente a irmã brincar no
se dispõe a grandes alterações de enquadre carrossel do Central Park.
para responder às suas necessidades de sus- É quando diz:
tentação.
Embora Bollas enfatize a raridade dessas As crianças todas ficavam tentando agarrar
condições que o levam a fazer profundas al- a argola dourada, e a nossa amiga Phoebe
terações no enquadre, penso que no fundo, o também, e eu estava meio com medo que ela
tempo todo nosso ofício na psicanálise está caísse da desgraça do cavalo, mas não abri a
atravessado por uma fantasia desse tipo, ain- boca e não mexi um dedo. O negócio com
da que ela precise ser parcialmente reprimi- as crianças é que elas querem agarrar a argo-
da e elaborada – e não apenas disciplinada la dourada, você tem de deixar e não abrir a
por um ‘superego técnico’. boca. Se elas caírem, caíram, mas é ruim se
São evidentes os riscos de quando a você disser alguma coisa (Salinger, [1951]
psicanálise é excessivamente ou exclusi- 2019, p. 251).
vamente isso. Tanto há os riscos para o
paciente que, supostamente, ‘precisan- Que transformação! Numa avaliação jus-
do ser salvo’, é infantilizado e alienado ta, cair do cavalinho pode arranhar o joelho
na fantasia do analista salvador, tiranica- ou mesmo quebrar um braço, mas nada de
mente salvador. Como há os riscos para o espetacular. É possível ficar quieto e, se cair...
analista em sua onipotência reparatória caiu. Comparando com a fantasia claramen-
à la Holden Caulfield, uma forma man- te defensiva em que Holden transfere para as
sa, mas nem tão mansa assim, de doideira. criancinhas sua própria impotência e falta
Os riscos do excesso de implicação po- de sustentação, reservando-se o lugar idea-
dem ocorrer também na matriz freudo-klei- lizado do salvador – o apanhador no campo
niana, em que a onipotência do analista tam- de centeio – o que se apresenta agora é um
bém pode operar para o bem e para o mal. sujeito preocupado e atento, mas sem velei-
Contudo, tanto em Freud como em Melanie dades salvadoras.

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Cabe, assim, ressignificar toda a fanta- Na última página do livro, internado em


sia do apanhador no campo de centeio. As uma clínica psiquiátrica, ainda narra:
crianças estão felizes e brincando. Quem es-
tava na borda do penhasco era Holden: era Um monte de gente, principalmente um tal
ele que corria o risco de despencar; aliás, já psicanalista daqui fica me perguntando se eu
estava despencando (ao menos, até sentar- vou me esforçar quando voltar para a escola
-se no banco do parque para acompanhar em setembro. É uma pergunta tão idiota, na
Phoebe no carrossel). Mas aquela fantasia minha opinião. Quer dizer, e tem como você
hiper-reparadora e onipotente reaparece saber o que vai fazer até chegar a hora de você
agora elaborada nessa nova posição do ado- fazer? A resposta é, não tem como. Eu acho
lescente, preocupado, mas contido. É preciso que vou, mas como é que eu posso saber. Juro
confiar nas habilidades de Phoebe (e ela não que é uma pergunta idiota (Salinger, [1951]
caiu) e lhe dar o direito de fazer suas próprias 2019, p. 253).
experiências.
Podemos imaginar que se trate da psi-
Virando analista canálise novaiorquina da Ego Psycholo-
Acredito que uma fantasia onipotente como gy, hegemônica na época e na região, mais
a que transcrevi como epígrafe dificilmente que tudo interessada na reconstituição das
esteve ausente na escolha do ofício de psica- competências egoicas desse adolescente in-
nalista. No melhor dos casos, pode ir sendo teligente, informado, perdido e destrambe-
em parte reprimida e em grande parte elabo- lhado. A hipótese não é descabida; Salinger
rada para dar lugar à sua presença reservada acreditava que quase todos os psicanalistas
em nossa mente, mas sem deixar de existir da cidade se dedicavam a adaptar para a nor-
em nossa reserva psíquica. Aliás, nossa re- malidade.
serva no plano intersubjetivo depende de No livro Franny & Zooey (1955), encon-
conservarmos essa fantasia em reserva no tramos o diálogo:
plano intrapsíquico.
Algo da nossa condição de apanhadores Se você não consegue, ou não quer pensar no
no campo de centeio se preserva, posto que Seymour, então vai lá de uma vez e chama al-
profundamente transformada, mas a postos gum psicanalista ignorante. Pode ir mesmo.
para voltar à atividade em muitas situações Você vai lá e chama algum analista com expe-
clínicas em que é preciso reclamar nossos riência em ajustar as pessoas aos prazeres da
pacientes amortecidos e mortificados, apa- televisão e da revista Life toda quarta-feira, e
nhá-los antes que caiam ou que se reestru- viagens pela Europa, e a bomba H, e as eleições
turem como broken selves (Bollas, 2013, pra presidente, e a primeira página do Times...
p. 13-19), pacientes da falha básica, como e sabe mais o que de gloriosamente normal
dizia Balint. Mas a maior parte do tempo, [...] Eu acho que deve ter um psicanalista em
podemos nos manter à escuta, sentados em algum canto da cidade que ia ser bom pra
nossas poltronas, como Holden no banco Franny [...] Mas acontece que eu não conheço
do Central Park. nenhum (Salinger, [1955] 2019, p. 95-96).

Um tal psicanalista de lá O que Zooey imagina para sua irmã à


e sua indisponibilidade beira do colapso (Seymour, o irmão mais ve-
para a loucura terapêutica lho, já havia sucumbido e se suicidado) não
Mas o adolescente rico de Nova York não poderia dar certo se o analista fosse ‘terrivel-
teve a sorte do encontro com essa psicanáli- mente freudiano ou terrivelmente eclético,
se, nem antes do colapso, nem depois. ou só terrivelmente normal’; aí ela ia sair pior

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do que Seymour saiu. Faltaria a esse analista condição de ‘self quebrado’, e não se aprovei-
um grãozinho de doidice... Uma doidice pela taria o colapso para um trabalho analítico de
qual o analista seria grato: integração da personalidade.

Ele ia ter que acreditar que foi pela graça de Um ofício meio doido
Deus que ele foi inspirado a estudar psicaná- Mas isso não nos autoriza a conceber toda a
lise, pra começo de conversa... Ia ter que acre- psicanálise à luz dessa fantasia infantil. Nem,
ditar que é pela graça de Deus que ele tem a ao reverso, rir dela e dela nos desfazer de for-
inteligência nata até pra conseguir ajudar seus ma definitiva. O que sugiro, é que viemos a
pacientes. Eu não conheço nenhum analista ser o que somos parcialmente reprimindo e
bom que pense desse jeito. Não dava para ser parcialmente elaborando uma fantasia lou-
alguém que nem tivesse uma gratidão louca e ca e onipotente de reparação, e mantendo-
misteriosa por sua inteligência e perspicácia -a como uma reserva psíquica, não apenas
(Salinger, [1955] 2019, p. 97). porque a ela precisamos recorrer em deter-
minadas circunstâncias clínicas, mas porque
Aquela psicanálise dominante na cidade dela continuamos a extrair uma porção de
de New York era indisponível para o mer- esperança todos os dias de nossa existência,
gulho na loucura – algo de fato muito doido principalmente os chuvosos.
– que nos leva, agradecidos, para territórios O quanto devemos a essa doidice reprimi-
sombrios, convulsionados ou inertes, que da e bem guardada é algo difícil de avaliar.
têm o poder de nos deprimir e de nos trans- Sabemos que em alguns de nós ela retorna
tornar, de nos adoecer, mas de onde pode- com maior facilidade, o que torna, aliás, es-
mos sair renovados e mais integrados, nós e ses psicanalistas mais afeitos e aptos para
nossos pacientes. Faltava a ao psicanalista de tratar casos muito cabeludos. Um exemplo
lá, quem sabe, a fantasia louca em reserva, eloquente, para não falar novamente em Fe-
e a Holden, com o perdão pelo trocadilho, renczi, era o grande analista americano (da
ficou faltando holding no sentido preciso de região de Washington) Harold Searles, com
sustentar o ser e o durar ao longo do tempo. seu apreço pelos pacientes psicóticos e bor-
derline. O risco é ser doido demais.
Catch them before they fall! Em outros analistas, a fantasia desmiolada
uma outra psicanálise está mais bem reprimida. Receio pertencer a
Em um dos capítulos de seu livro de 2013, essa turma. O risco é ser doido de menos.
Bollas (2013, p. 75) nos diz: “Mais que tudo, Em todos os agrupamentos de analistas
o paciente que está entrando em colapso pre- encontramos essas diferenças quanto à evi-
cisa de tempo”. Tempo para o colapso e mais dência da fantasia infantil onipotente. É di-
tempo ainda para uma lenta recomposição fícil, contudo, imaginar algum analista em
integradora. atividade – inclusive os mais sóbrios – que
Tempo era justamente o que o analis- não conserve uma boa dose dela. (Ao menos,
ta de Holden Caulfield não queria lhe dar falo por mim e, acredito, pelos meus amigos
e lhe fazia a pergunta idiota: vai se esforçar mais próximos e queridos).
na escola quando voltar em setembro? Não Nesse caso, isso deve significar que todos
sabemos exatamente, mas o relato deve es- levamos pela vida afora, dentro de nós, al-
tar sendo feito pouco depois do Natal, pois gum traço do adolescente Holden Caulfield
os dias cruciais do colapso de Holden ante- e, se nossa interpretação tiver sido justa, al-
cedem o 25 de dezembro. O tal psicanalista guma coisa das criancinhas que ele imagina-
de lá tem pressa na recuperação do garoto, o va em grande perigo e queria apanhar antes
que, se acontecesse, deixaria cronificada uma de caírem. Pelo que agradecemos.

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Luís Claudio Figueiredo

Abstract Referências
This reflection on the job of psychoanalyst was
inspired by J. D. Salinger’s novel The Catcher
in the Rye, which recounts the irreverence, ALVAREZ, A. Live company. New York: Routledge,
1992.
instability and critique of the adult world
by an American teenager in the 1940s. The BOLLAS, Chr. Catch them before they fall. New York:
text relates certain fantasies of this teenager Routledge, 2013.
to the ideas Christopher Bollas developed in
his book Catch them before they fall (2013) DE M’UZAN, M. La bouche de l’inconscient (1978).
La bouche de l’inconscient. Paris: Gallimard, 1994.
about the care of patients in extreme suffering;
from then on, it makes considerations about DE M’UZAN, M. Pendant la séance (1987). La bouche
the place of ambition and omnipotence, but de l’inconscient. Paris: Gallimard, 1994.
also the necessary modesty of psychoanalysts
in their practices. The work makes references FIGUEIREDO, L. C. Escutas em análise. Escutas
poéticas. Psicanálise: caminhos em um mundo em
to the Freudo-Kleinian matrix and to Wilfred
transformação. São Paulo: Escuta, 2018.
Bion to talk about the analytical activity,
and also to what extent the analyst needs to REIS, B. Monsters, dreams and madness: Explorations
have infantile, immature and unconscious in the Freudian Intersubjective. The International
characteristics. journal of psycho-analysis, 97(2), p. 479-488, 2016
(DOI 10.1111/1745-8315.12416).
Keywords: Analyst involved, Reserved SALINGER, J. D. O apanhador no campo de centeio
analyst, Psychic illness, Clinical practices. (1951). Tradução de Caetano W. Galindo. São Paulo:
Todavia, 2019.

SALINGER, J. D. Franny & Zooey (1955). Tradução


de Caetano W. Galindo. São Paulo: Todavia, 2019.

Recebido em: 12/11/2019


Aprovado em: 08/12/2019

Sobre o autor

Luís Claudio Figueiredo


Psicanalista.
Membro Efetivo do Círculo Psicanalítico
do Rio de Janeiro.
Doutor em Psicologia pela Universidade
de São Paulo (USP) e e Livre Docência
em Psicologia pela USP.
Professor doutor da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo e professor Associado
da Universidade de São Paulo (PUC-SP).

Endereço para correspondência


E-mail: <lclaudio.tablet@gmail.com>

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