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Mídia e Cultura Juvenil: das comunidades de sentido e

dos grupamentos urbanos


Jeder Silveira Janotti Junior1

Resumo:

O presente trabalho parte da proposição dos termos Comunidades de Sentido e Grupamentos


Urbanos para o exame dos processos comunicativos específicos de detrminadas manifestações
juvenis. Assim, procura-se abordar os aspectos tensivos que envolvem a cultura juvenil em
seus aspectos globais e locais; acreditando que cadeias midiáticas especificas servem de base
a partilha de valores, gostos e afetos dessas comunidades e grupamentos.

1.1 CULTURA JUVENIL


Grande parte dos estudos sobre mídia e/ou grupamentos juvenis realça os aspectos
piscológicos ou análises de conteúdo dos processos midiáticos, e em pouquíssimoscasos é
dado ênfase ao modo como os jovens se valem desses meios para expressar seus anseios,
angústias e afetos a partir de utilizações específicas desses processos. Nesse sentido, acredita-
se ser relevante, a proposição de trabalhos que levem em consideração as características
midiáticas desses processos para a compreensão do modo como esses fenômenos estruturam
o universo juvenil, conferindo aos jovens meios de negociação e estruturação de suas
angústias.

Uma proposta metodológica nessa direção propõe-se a examinar certas especificidades


referentes às práticas juvenis, localizadas na sua tensão com os processos midiáticos de
caráter global que identificam a cultura contemporânea. Assim, a abordagem da cultura
midiática pode ser efetuada a partir dos fenômenos da globalização, dos desenvolvimentos
tecnológicos que permeiam as experiências culturais e de traços característicos que articulam
tanto a produção como o reconhecimento de produtos que circulam em nível global e local.
Esse percurso coloca em relevo as relações entre o sentimento de pertença que conforma os
grupamentos juvenis e as identidades forjadas na tensão entre características mundializadas e
suas apropriações midiáticas nos cenários urbanos.

1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA). Doutor em
Ciências da Comunicação (UNISINOS).

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Diante disso, os jovens, pela familiaridade e domínio das novas tecnologias, talvez
sejam o segmento que mais vivencie essas transformações diante das grandes coorporações
multi e transnacionais. Hoje, um pequeno número de empresas de entretenimento controla
uma parte substancial do mercado de bens culturais e, além disso, monopoliza praticamente
todas as instâncias de produção, já que esse domínio envolve o percurso que vai desde a
feitura dos produtos até os aparelhos que permitem a sua reprodução e consumo. Nesse
cenário, noções como espaço nacional, cultura popular e/ou local parecem deslocadas. Não
que elas não façam mais sentido e, sim, porque elas precisam de ser repensadas diante de um
cenário que envolve outras formas de produção e consumo das mídias. Por outro lado,
configurações midiáticas cracterísticas, que incluem consumo segmentado e formas
diferenciadas de apreensão desses fenômenos na urbe, permitem que uma parcela significativa
da juventude valorize determinados processos midiáticos em detrimento de consumos não-
especializados.

Assim, manifestações como o rock, os esportes radicais, o consumo especializado de


determinadas séries televisivas, os graphic novels e o hip hop são , antes de mais nada,
produçoes de sentido que se materializam em textos: o consumo de determinados objetos
culturais, nesse caso, antes de ser um modo de escapar das amarras do mercado, são formas
de negociação com as possibilidades oferecidas pela cultura contemporânea, o que permite o
reconhecimento de práticas culturais midiática que se manifestam através de investimentos
valores, gostos e afetos presentes na idéia de juventude. Assim:

“ Se considerarmos cada objeto da cultura como qualquer coisa


de comunicável, verremos imediatamente que ele se integra numa
caddeia de comunicação. É criado por um sujeito inddividual ou
coletivo, é produzido segundo cerrtos mecanismos de produção,
manifesta-se segundo certas formas e conteúdos, passa através de
certos canais, é recebido por um destinatário, individual ou
coletivo, e deterrmina certos comportamentos” (CALABRESE,
1988, p.20).

Os objetos culturais pressupõem as condições materiais e simbólicas necessárias à


confecção e partilha dos valores por parte dos atores envolvidos nos processos de produção e
consumo desses objetos. Tais condições dão conta, inclusive, da permanência ou das
variações estilísticas dos objetos culturais em suas manifestações específicas. Assim, “A
análise do discurso não é outra coisa que a descrição dos vestígios das condições produtivas

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nos discursos, sejam as de sua geração ou as que dão conta de seus efeitos” (VERÓN, 1996,
p.127.).

O processo de produção de sentido da cultura juvenil e, conseqüentemente, suas


produções discursivas sofrem a interferência da comunicação midiática na cultura
contemporânea. De acordo com Duarte:

“Acredita-se ainda que, apesar de tantas transformações, num


nível profundo fundamental, a organização dos conteúdos dos
textos obedece a regularidades. O que diferencia os textos
contemporâneos de outros e entre si é seu processo de
discursivização, lugar da opção e emprego de novas estratégias
discursivas e mecanismos expressivos, pois o que interessa
realmente não são os universais semióticos, mas como os textos
midiáticos fazem para ‘dizer’ o que dizem. É esse como que os
distingue” (DUARTE, 2000, p. 28).

Nessa perspectiva, o consumo desses objetos confere sentidos, manifesta inclinações


que permitem, aos indivíduos, uma orientação valorativa do mundo, ao mesmo tempo em que
efetiva relações de diferença e de oposição em relação a outros grupos e práticas.

1.2 GRUPOS JUVENIS E MÍDIA


Embora os dicionários reduzam juventude à: “idade moça; à mocidade, à
adolescência...”, o conceito de juventude deve ser tensionado até permitir a compreensão de
suas implicações dentro dos fenômenos midiáticos juvenis aqui abordados. Os cortes
apresentados pela cultura dos jovens não obedecem somente a recortes geracionais ou
lineares. A idéia de juventude não está limitada a certos estágios entre a infância e o mundo
adulto. Essa idéia, presente no primeiro grande movimento juvenil do pós-guerrra: o rock,
abarca conformações que surgem com a explosão midiática após a Segunda Guerra e a
valorização mercadológica do segmento juvenil a partir da música. Desde a década de
cinqüenta é possível visualizar os movimentos juvenis através de cortes operados no
posicionamento corporal e social em relação aos espaços normativos. Logo, esses
posicionamentos foram incorporados como formas de distinção do mundo juvenil pelo
mercado cultural, o que acabou gerando nichos mercadológicos realçados por práticas
midiáticas especificas.

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Abordar os movimentos juvenis contemporãneos a partir de seus dispositivos
midiáticos permite entender esses fenômenos como processos partilhados de maneira global
através de lançamentos mundiais de discos, vídeos, sites, enfim, através das atividades
midiáticas de caráter global. Esses aspectos são filtrados pelas revistas, distribuidoras,
apropriações das entrevistas e críticas presentes nos veículos nacionais. Nas apropriações
locais estão envolvidos os locais de show, a tensão com as realidades regionais, a
diferenciação entre grandes cadeias de distribuição e lojas especializadas, enfim, as
especificidades produzidas nos encontros dos aspectos globais com os modos de consumo e
produção regionais.

Diante desse cenário, parece adequado pensar a configuração midiática dos grupos
juvenis a partir de uma proposição metodológica que permita reconhecer as diferenças e as
similaridades que envolvem os aspectos globais e locais desses grupos. Assim, os conceitos
de comunidade de sentido e grupamento urbano, são aqui apresentados como hipóteses de
trabalho que possibilitam a análise das condições de produção e reconhecimento desses
fenômenos da cultura juvenil.

1.3 COMUNIDADES DE SENTIDO


O que, neste trabalho, denominam-se comunidades de sentido são determinadas
agregações de indivíduos que partilham interesses comuns, vivenciam determinados valores,
gostos e afetos, privilegiam determinadas práticas de consumo, enfim, manifestam-se
obedecendo a determinadas produçoes de sentido em espaços desterritorializados, através de
processos midiáticos que se utilizam de referências globais da cultura atual. É a vivência
desses sentidos que permite aos jovens reconhecer seus pares, seja um skatetista, um punk,
um headbanger, um cluber; independemente do território em que esses sentidos se
manifestam.

Os territórios das Comunidades de Sentido seriam, antes de tudo, territórios


simbólicos que possibilitam a manifestação de sentidos, presentes na produção discursiva das
culturas midiáticas. Dessa forma, se não se partilha o território físico, continua-se a partilhar
imagens, vestuários, posicionamentos corporais, valorações presentes nos objetos culturais
que fundam esses territórios simbólicos, possibilitando, aos membros das comunidades,
reconhecerem-se dentro desse território, independente das fronteiras geográficas tradicionais.

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Isso não significa que os membros dessas comunidades perderam seus traços locais e, sim,
que os patamares, em que as comunicações entre seus membros se estabelecem, são aquelas
que resumem os traços comuns a toda comunidades em nível globais. Por isso, é possível
falar em comunidades de roqueiros, grafiteiros, skatistas, etc, situadas para além de suas
localizações geográficas específicas. Ao falar particularmente das comunidades de roqueiros,
Grossberg afirma que:

“ A noção de comunidade (e conseqüentemente de ‘arte popular’) é


problemática quando aplicada à cultura juvenil, e o que é
chamado comunidade rock and roll não pode ser definido
geograficamente. Mas a noção de comunidade é uma noção
espacial; a interação face-a-face do cotidiano tem sido colocada
como a determinação dominante da partilha de experiências e de
critério para a comunidade. Mas se a temporalidade for realocada
espacialmente para definir a audiência rock and roll, então a
música necessita de uma disseminação generalizada para ser
partilhada entre os membros de suas audiências especializadas. O
produto musical pode ser reproduzido como um objeto (por
exemplo, um disco) precisamente se ele está disponível para
aqueles a quem é endereçado, para aqueles que existem dentro de
suas fronteiras. A música deve voluntariamente adentrar em
vários sistemas de práticas econômicas e conseqüentemente
aceitar sua existência claramente como arte de massa” (1997, p.
59).

Os objetos culturais consumidos em nível mundial são pontos cruciais na introdução e


reconhecimento das CS, permitindo cartografar as formas de manifestação da especificidade
dessas comunidades. Para compreender a exata dimensão dos fenômenos aqui apresentados,
vale destacar a afirmação do semioticista Louis Hjelmslev: “O sentido é antes de tudo
informe, isto é, não está submetido, em si mesmo a uma formação qualquer. Se há limites
aqui, eles estão na formação e não no sentido” (1975, p.79).

Dessa forma, o termo Comunidade de Sentido remete a práticas discursivas que se


submetem não só a uma configuração mundializada dos sentidos, mas também aos aspectos
globais investidos em certos produtos da cultura midiática. Assim o que caracterizaria uma
Comunidade de Sentido é a opção por realizações idênticas ou semelhantes de um mesmo

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princípio de formação dos sentidos e/ou a escolha de diferentes objetos culturais em relação a
um sentido idêntico, mas amorfo.

Isso porque, apesar das especificidades das apreensões locais: (1) há configurações de
sentidos e objetos culturais que são reconhecidos de maneira desterritorializada e que
caracterizam, de maneira diferencial, as comunidades de sentido. (2) esses objetos ligam-se a
redes midiáticas específicas, fundadas em processos de circulação característicos, forjando
projeções e partilhas de sentidos diferenciados.

Mas algumas ressalvas devem ser feitas para evitar qualquer acusação de romantismo
ou ingenuidade no trato com esses fenômenos. Nessa direção, acredita-se que: (1) a
especificidade dessas comunidades está marcada pela sua própria normatização, que
estabelece regras de práticas sociais e discursivas nos entrecruzamentos entre produtores e
receptores; (2) os espaços das comunidades, dessa forma, também operam cerceamentos,
opressões simbólicas e codificações. São eles que permitem o reconhecimento entre os pares,
mas que indicam o outro, o ‘estranho’ como ‘indesejado’, (3) os aspectos locais continuam
sendo importantes quando da apropriação dos objetos culturais pelos membros das
comunidades; daí a valorização do território urbano, local de manifestação última das
produções de sentido.

???Pensa-se, dessa forma, que é, através de formas particulares de seleção,


combinação e articulação dos sentidos, do emprego de determinadas estratégias de
configuração discursivas pautadas por valores, gostos e afetos que as comunidades afirmam
sua existência, o que, por sua vez, permite o reconhecimento de seus pares e a demarcação de
suas fronteiras. Esses elementos só são passíveis de identificação mediante o processo
analítico, já que se manifestam de modo interdependente, como uma espiral que vai das
produções aos consumos, e vice-versa.

1.4 GRUPAMENTOS URBANOS


As Comunidades de Sentido manifestam-se localmente através da reunião de
indivíduos em Grupamentos Urbanos que operam a apropriação local dos objetos culturais

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veiculados mundialmente. Esse não é um caminho linear; ao fazer circular os sentidos, os
indivíduos operam uma retroalimentação dos estilos que fundam a comunidade. Isso se dá não
só através das desigualdades entre as condições de produção e de reconhecimento dos
produtos veiculados pelas Comunidades dee Sentido, como também através das respostas
locais que envolvem a produção de objetos culturais específicos, a partir de valores que
permitem negociações localizadas entre sentidos mundializados e questões paroquiais.

Diferentemente das CS, os GU funcionam no espaço material da urbe, envolvendo o


local em um complexo de configurações de sentido que constituem as cenas. As cenas são
espaços de manifestação local dos investimentos de toda ordem, constituintes dos percursos
característicos dos GU na urbe. Desse modo, a cartografia operada pelas diversas cenas
presentes na tessitura urbana permite o reconhecimento de investimentos de valor em
determinadas regiões da cidade, os quais envolvem desde pontos de encontros, casas de
espetáculo, até os locais onde são comercializados os objetos culturais que caracterizam as
Comunidades de Sentido e seus desdobramentos em Grupamentos Urbanos.

A aplicação do conceito de cena, trabalhado por Straw (1997), permite visualizar o


modo como se dá a construção do espaço urbano na produção de sentido dos Grupamentos
Urbanos. Assim, a cena é o espaço cultural onde uma gama de práticas de sentido coexistem,
interagindo umas com as outras dentro de uma variedade de processos de diferenciação,
obedecendo a certas trajetórias que envolvem o hibridismo cultural da urbe. As cenas são
parte constituinte da paisagem urbana contemporânea, exigindo de seus participantes,
determinadas ritualizações para a ocupação do espaço urbano. A análise das cenas deve levar
em consideração a produção de sentido dos Grupamentos Urbanos no processo de
constituição dessas próprias cenas. Para melhor compreendê-las, propõe-se o exame de
algumas características essenciais à constituição de cenas, tais como:

1) Práticas culturais como princípios de validação do espaço:

As práticas culturais funcionam como princípios de validação e produção de sentido,


operando sobre espaços culturais específicos tanto para acomodar as mudanças, como para
fixar as fronteiras. É importante notar que, apesar do peso que ultimamente tem sido
conferido à instabilidade dos processos comunicacionais, a análise de suas regularidades e
padrões continua sendo um ponto básico na abordagem dos processos de produção dos
sentidos.

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2) Espaço mercadológico e tempo dos objetos culturais:

Os traços configuradores das práticas culturais são moldados tanto pelo modo como os
lugares são transformados em espaços mercadológicos quanto pela lógica social dos objetos
culturais. Na análise desses objetos, é crucial perceber os percursos organizadores dessa
circulação enquanto práticas culturais. De acordo com as negociações locais, as cenas podem
experimentar, de maneiras diferenciadas, certas temporalidades que envolvem canonizações
específicas de alguns objetos e valores diversos, no que concerne ao que é novidade, ao que é
considerado ‘moeda corrente’ e ao que é proposto como ‘eterno’. É preciso, pois, considerar
uma ‘lógica da passagem do tempo’. As mercadorias culturais podem passar por um número
de mercados distintos e populações ao longo de seu ciclo de vida. Através dessa passagem, as
marcas dessas distinções e as bases de seu valor podem sofrer mudanças significativas.

3) Disputas de prestígio:

Tudo leva a pressupor que as configurações de sentido de caráter local, envolvem


disputas por prestígio e reconhecimento em nível local, que implicam
produção/circulação/consumo em âmbitos regionais. Isso confere a alguns indivíduos o status
de ‘conhecedores’ de práticas sociais específicas das cenas; conhecimento esse que envolve
tanto os aspectos globais quanto percursos paroquiais.

Parte-se então do pressuposto de que as negociações locais dos valores difundidos


globalmente são os traços característicos dos grupamentos que surgem a partir do que foi
esboçado acima. Existem graus variados na intensidade dessas apropriações, que levam em
conta desde a dificuldade de acesso a determinados produtos, até os comprometimentos
ideológicos. As gradações nas relações entre a Comunidade de Sentido (global) e os
Grupamentos Urbanos (local) variam de acordo com os diferentes grupos e baseiam-se em
modos de circulação específicos.

Nessa linha de reflexão, acredita-se que os traços que caracterizam os grupamentos


são: (1) a apropriação dos objetos culturais veiculados globalmente em determinados
contextos urbanos; (2) as negociações culturais específicas com as realidades locais; e (3) a
alocação de um processo comunicacional característico que envolva também a apropriação de
objetos culturais. Aqui se verifica a vivência de sentidos diante das tensões que envolvem as
realidades globais e regionais.

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Assim, a interdefinição entre Comunidades e Grupamentos perpassa essas
apropriações culturais através dos processos de territorialização e desterritorialização. A
tensão entre a perda das referências em relação aos aspectos tradicionais e a configuração de
novas teias culturais gera uma gama de possibilidades na articulação entre a urbe e o processo
de globalização. Apesar de, aparentemente efêmeras, as teias atuais possuem uma abrangência
infinitamente maior do que as antigas configurações culturais.

Esse percurso acabou mostrando a necessidade de questionar o modo como os valores,


gostos e os afetos são enformados e dão forma às Comunidades de Sentido e aos
Grupamentos Urbanos, uma vez que esses elementos são fundamentais no estabelecimento
das fronteiras que permitem o reconhecimento dos pares e do ‘outro’ para esses grupos.
Assim, faz-se necessário abordar a especificidade dos processos comunicacionais
responsáveis por esses fenômenos: a análise tanto de suas condições de produção e
reconhecimento, como dos sentidos que circulam na tensão entre suas manifestações globais e
locais. Essas são as categorias definidoras, a nosso ver, desse tipo de fenômeno cultural.

1.5 VALORES, GOSTOS E AFETOS


As Comunidades de Sentido e os Grupamentos Urbanos configuram-se pela
preferência por determinados valores em relação a outros. Esses valores poderão ser
apreendidos em diferentes cenários urbanos, uma vez que se articulam nos entrecruzamentos
entre os procedimentos midiáticos globais e suas apropriações locais, seja através das mídias
especializadas, dos aspectos regionais ou de consumos específicos.

Nessa perspectiva, o sentido é, a cada vez, produto da projeção de uma forma


qualquer, devendo ser analisado de maneira particular, de acordo com a diversidade das
apropriações que o enformam. Só se podem compreender as Comunidades de Sentido no
interior de diferentes formações, linguagens e culturas. Assim, a construção do sentido é
perpassada pelas inter-relações forjadas nos encontros entre as estratégias discursivas e suas
configurações localizadas.

Como já se referiu, as Comunidades de Sentido tendem ao investimento em


determinados valores. Mas cada escolha, cada diferenciação e cada oposição contemplam
também um aspecto de demarcação territorial e uma referência à atribuição de valores
diferenciados, fundados na negação ou desqualificação de outros grupos. Segundo Calabrese:

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“ Cada juízo de valor, enquanto consiste num gesto de atribuição,
contempla também um aspecto ‘polêmico’, ou seja, a rejeição da
ou das atribuições concorrentes. Que se trata de atribuição de
valores é testemunhado pelo próprio termo ‘valor’ que é
necessariamente categorial, isto é, manifestação de uma
polaridade, de uma diferença” (CALABRESE, 1988, p.35).

Um dos elementos distintivos que caracterizam tanto as Comunidades de Sentido


como os Grupamentos Urbanos é a manifetação dos valores através do estabelecimento de
gostos especificos. Assim:

“ Aquilo que com freqüência chamamos ‘gosto’ é precisamente


isto: a correspondência mais ou menos conflitual de valores
presentes nos textos e metatextos; a sua homologação segundo
‘percursos’ específicos no seio do sistema de categorias; o
eventual isomorfismo entre formas textuais e formas dos
supracitados percursos” (CALABRESE, 1988, p.37).

O gosto é a sintonia com determinados valores, a qual confere positividade a algumas


expressões em detrimento de outras. O gosto é da ordem da seleção, manifestando-se como
estilo, condicionando um modo de portar-se diante do mundo e de produzir sentido diante de
determinados produtos culturais.

O estilo pode ser reconhecido pela rede de conexões que se estabelece entre diversos
objetos culturais; tem um caráter sintático, é da ordem da combinação. O tempo e o espaço
dos estilos não se referem a uma cronologia ou cartografia tradicionais e, sim, a uma
cronologia e a uma cartografia do gosto e, conseqüentemente, a valores subjacentes aos
processos de produção de sentido.

O gosto das Comunidades de Sentido manifesta-se pela apropriação de objetos


culturais ofertados pelas cadeias de comunicação que atuam de maneira desterritorializada.
Assim, esses fenômenos comunicacionais fundam-se num mecanismo de apropriação de
formas, manifestando-se através da aquisição e consumo de determinados objetos. Os
Grupamentos Urbanos se manifestam através de certas formas expressas nos objetos culturais
e em determinados percursos e práticas rituais presentes nas interconexões entre o tecido
urbano e o consumo desses objetos. Dessa forma, o estilo que caracteriza esses grupos é o
modo específico de operacionalizar escolhas e combiná-las, produzindo sentidos que
manifestam seus posicionamentos coletivos e individuais.

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No âmbito da semiótica da comunicação, o que interessa são as configurações dos
sentidos no tempo e no espaço de suas manifestações materiais, isto é, as formas como os
valores e gostos são conformados pelas Comunidades de Sentido e pelos Grupamentos
Urbanos.

É importante reafirmar que os aspectos tímicos, o desdobramento da foria nas diversas


camadas que compõem uma semiótica dos afetos, desempenham um papel importante na
configuração dos valores, provocando um posicionamento positivo e/ou negativo frente aos
processos de produção de sentido e às opções por um gosto. Logo, o percurso do investimento
afetivo pode ser entrevisto em traços repetitivos presentes nos juízos de valor e na
manifestação dos gostos. Isso está atrelado às operações culturais que envolvem a mediação
do sentir e as configurações dos sentidos presentes nos processos culturais.

A mediação do sensível permite que algumas práticas discursivas sejam investidas de


modo passional. São as explosões coléricas ou as práticas dionisíacas caracterizadas pela
redundância, pela repetição e pelo excesso que possibilitam que o corpo se torne referência
dos investimentos afetivos. É através dos vestígios desses processos que se pode visualizar
uma espécie de nebulosa afetiva. Localizar os afetos, através dessas nebulosas, presentes no
discurso, é perceber que as paixões são expressas nas práticas discursivas através de um
‘gosto’ que perpassa todo discurso.

Assim, os trajetos comunicacionais que permitem a expressão de valores, gostos e


afetos seguem não só os percursos de reconhecimento de determinadas características
socioculturais, mas também os de afirmação ou negação de sentidos pelas Comunidades de
Sentido e pelos Grupamentos Urbanos. No processo de análise, é preciso localizar as
reiterações, que permitem o reconhecimento do estilo desses grupos e a compreensão dos
sistemas de seleção, inflexão ou junção, identificadores dos investimentos que diferenciam e
inscrevem as Comunidades de Sentido e os Grupamentos Urbanos como partes integrantes da
cultura e comunicação contemporâneas.

Um dos aspectos da socialização grupal é o modo como os investimentos afetivos


proporcionam meios de sobrevivência e prazer para os seus membros em meio a
heterogeneidade dos valores da cultura atual. A visibilidade das Comunidades de Sentido e
dos Grupamentos Urbanos pode ser reconhecida pelas ‘alianças afetivas’: “uma organização
de práticas materiais concretas, formas culturais e experiências sociais que abrem e

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estruturam o espaço de nossos investimentos afetivos no mundo” (GROSSBERG, 1997,
p.31).

Antes de representar estados de mundo, os investimentos afetivos transformam esses


estados ao relacioná-los com as suas condições de produção e de reconhecimento. Segundo
Fabbri, vale a pena ressaltar que: “ A relação narrativa entre ação e paixão pode servir-nos,
de alguma maneira, para introduzir a dimensão da afetividade, ausente por completo das
análises semióticas anteriores.” (FABBRI, 2000, p.48. Tradução nossa).

A manipulação de substâncias diferenciadas (como a sonoridade, a verbalização, a


corporalidade, etc) opera não somente sobre as formas de expressão: as formas do conteúdo
também se alteram nessas transposições, uma vez que, expressão e conteúdo são
interdependentes.

As ações configuradas pelas estruturas discursivas interferem em certos estados de


mundo, reafirmando os valores ou transformando-os, uma vez que estão baseadas em
produções de sentido particulares, relacionadas a investimentos afetivos que envolvem tais
práticas discursivas. “Diremos também que a passionalidade é uma forma imediata de
conteúdo cuja forma de expressão é o ritmo da música. Com efeito, as paixões, ao terem um
tempo, têm um ritmo, cada paixão possui o seu” (FABBRI, 2000, p. 66. Tradução nossa).

Esta correlação entre as paixões e o ritmo musical feita por Fabbri possibilita
pressupor que as produções de sentido das Comunidades de Sentido e dos Grupamentos
Urbanos estão envoltas por investimentos afetivos que as perpassam: assim é o próprio ritmo
que acaba conferindo a tonalidade de tais investimentos que estão diretamente relacionados
aos ritmos corporais: “A paixão origina, por exemplo, trocas de estados físicos do corpo. A
vaidade tem uma certa cor, existe uma amargura, paixões doces, e assim sucessivamente”
(FABBRI, 2000, p.68.). Os investimentos afetivos manifestam-se assim, em certas
configurações corporais e concatenações temporais, ou seja, por meio de certos ritmos.

“Na apropriação e reconstrução dos espaços urbanos dessa forma,


os jovens constroem novas narrativas urbanas – narrativas que
permitem a eles ver o local de modo específico e aplicar suas
próprias soluções para os problemas particulares ou para as
dificuldades que eles possam identificar em suas proximidades, e
as políticas e as práticas que moldam essas proximidades”
(BENNET, 2000, p. 67).

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Uma vez que os tipos de agrupamentos a serem analisados se caracterizam pela
interdefinição entre mundialização e suas apreensões locais, é possível pensar em uma gama
de relações que envolvem desde a cidade em seu sentido literal, físico, até a cidade imaginária
ou virtual, agregadora de indivíduos situados em diferentes pontos do globo, mas que
partilham um mesmo espaço, ainda que, até mesmo os processos culturais globais precisem
da referência última do concreto urbano.

O desafio que se faz então, é o da proposição de uma metodologia de análise e


interpretação que respeite os aspectos heterogêneos das sociedades que convivem em meio as
contradições e desigualdades presentes nos encontros entre a globalização e suas
manifestações locais, sem perder de vista a importância das condições de produção e
reconhecimento dos objetos culturais na paisagem urbana contemporânea.

Assim, as produç_ões de sentido dos grupamentos são configuradas a partir da


reiteração de determinados valores, gostos e afetos; presentes no consumo de determinados
objetos culturais, o que possibilita que cadeias midiáticas especificas sirvam como mediação à
partilha de sentimentos que, se não resolvem as tensões presentes nos encontros entre
espaços tradicionais e a mídia atual, pelo menos, funccionam momentaneamente como portos
seguros diante das pressões cotidianas. Não que as produções de sentido das Comunidades de
Sentido e dos Grupamentos Urbanos resolvam as ansiedades juvenis, mas, pelo menos, tal
como os antigos ritos de passagem, possibilitam a vivência de uma parcela das contradições
que parecem marcar os grupamentos juvenis e sua conformação midiática.

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