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GERSON MO IN

MRMORIAM
1939-1992 .

Celso Lafer

análise das relações internacionais do Brasil no período que se estende dos


a história diplomática são duas anos 30 até o início da década de 50_
áreas complementares de pesquisa, nas Conheci Gerson Moura mais de perto
quais a produção acadêmica brasileira é em 1979, participando, no IUPERJ, de sua
reconhecidamente modesta. Gerson Mou­ banca de mestrado e apreciando a qualida­
ra, que acaba de falecer, tão moço e em de de seu belo trabalho, Autooomia na
plena atividade, integrava com destaque o dependência: a polftica extenlll brasileira
pequeno grupo de "scholars" que atuava de 1935 a 1942, publicado no ano seguinte
nas duas áreas, pois no seu itinerário inte­
pela Nova Fronteira. Na condição de ami­
go, li a sua excelente tese de doutorado,
lectual, história e ciência política combina­
Brazilian foreign relalio,1S 1939-1950,
ram-se de maneira hannoniosa. Tinha,
The changing nature of Brazü-Uniled Sta­
com efeito, a sensibilidade para faur as
tes retalions during and afler lhe Second
perguntas relevantes para a análise da po­
World War, apresentada e defendida em
lítica extema como uma política pública
1982 no University CoUege de Londres.
voltada para a compatibilização das ne­
Vi, com grande interesse, os seus livros da
cessidades internas com as possibilidades
década de 80, TIo Sam chega ao Brasil
externas. Dava às perguntas que nortea­
(1984) e A Campanha doPetr6leo (1986),
vam suas investigações as respostas do ambos publicados pela Brasiliense. Teste­
historiador solidamente embasado numa munhei o meu apreço pelo seu trabalho
competente utiliz..ção de fontes primárias resenhando recentemente para a FoU,a de
dOaJmentais. Dessa maneira, enriqueceu e S. Paulo (01/02/92), em texto posterior­
inovou a compreensão crítica dos assuntos mente reproduzido em Política Exlema
que estudou, concentrados preponderante­ (vol.1, nO I, junho de 1992), o seu último
mente em tomo da inserção intemacional livro: Sucessos e ilusões - relações inter-

Esludos Hist6ricru, Rio de Janeiro, vol. 5, n. lO, 1992, p. 131-133.


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TUlcioTUlis do Brasil durante e após a Se­ por Angela de Castro Gomes, publicado
gunda Guerra Mundial (Rio de Janeiro, em 1991 pela Fundação Getulio Vargas­
Ed. da Fundação Getulio Vargas, 1991). CPDOC.
Gerson, que teve no meritório CPDOC Neste estudo Gerson mostrou, com mui­
da Fundação Getulio Vargas a base de seu ta sutileza, as mudanças ocorridas no plano
trabalho de investigador, dedicou-se, na internacional, na década de 50, que corroe­
sua obra, a uma indagação crítica sobre as ram a rigidez da bipolaridade EUA-URSS,
reais possibilidades e as efetivas limitações típica do imediato pós-guerra. Entre elas a
da capacidade de atuação do Brasil no crise do Suez, a insurreição húngara e a
mundo, tendo como horizonte as relações Conferência de Bandung, matco simbólico
com os Estados Unidos. do process o de descolonização e do início
Duas foram as suas conclusões básicas. do não-aIinharnento. Daí as possibilidades
A primeira foi a de, levando em conta os de um novo relacionamento com OS EUA,
antecedentes da década de 30, mostrar e que o governo Dutra não podia e sobrelUdo
documentar como, durante a Segunda não queria intentar, e o segundo governo de
Guerra, o alinhamento brasileiro aos Esta­ Getúlio, como mostrou Mônica Hirst, bus­
dos Unidos foi ditado pelas condições do cou empreender sem muito sucesso por
sistema inten13cional, realçando, no entan­ força da rigidez do sistema internacional
to, que o processo foi conduzido pelo pre­ (cf. MÔ1Úca Hirst, O pragmatismo únpos­
sidente Getúlio Vargas com compreensão sível-a polúica exterTUl do segundo gover­
dos nichos de oportunidades. Daí a capa­ fUJ Vargas (1951-1954), (Rio de Janeiro,
cidade que teve a política externa brasileira FGV/CPDOC, \ 990).
de gerar ganhos econômicos, políticos e É neste contexto, de um sistema inter­
militares para o país. Este é o significado nacional bipolar com algumas fISSUras, e
da aUlOfUJmia TUl dependência. de um sistema regional interamericano
A segunda foi a de dar evidências que, ainda muito rígido, que vai mover-se a
no pós-guerra, no tempo da presidência política externa de JK. Esta é, como mos­
Dutra, o alinhamento foi igualmente im­ trou Gerson, uma combinação do "novo"
posto pelas circunstâncias da rígida bipo­ e do "velho". Reproduz, no plano externo,
laridade da vida internacional, mas, ao como disse a ele numa boa conversa, a
contrário do que ocorreu durante a guerra, fónnula deJKno plano interno que estudei
deixou de ser utilizado como instrumento nos meus trabalhos sobre o Progralria de
de ação diplomática brasileira. Daí a sua Metas. Há, em síntese, avanços e recuos
avaliação, para valer-me do título de um nos esforços da política externa do Brasil
trabalho seu publicado em 1990 pelo de JK de ampliar o controle do país sobre
CPDOC, de que a politica externa do go­ o seu próprio destino. Foi isto que Gerson
verno Dutra caracterizou-se por um ali­ examinou e documentou, tendo como ob­
nhamento sem rec ompensa. jeto de anãlise o desenvolvimentismo, a
Na obra de Gerson, a dicotOInia Getú­ Operação Pan-Americana, a descoloniza-
,

lio/Dutra, nos moldes em que ele a fornlU­ ção da Africa e o reatamento das relações
lou conccitualmente, ou seja, autonomia econômicas com a URSS.
na dependência/alinhamento sem recom­ Creio, em outras palavras, que o ensaio
pellsa, estava sendo ampliada por novas de Gerson sobre a politica externa de JK
,

investigações. E o que se pode vernum dos estava assinalando uma nova etapa de sua
seus últimos trabalhos: o modelar "Avan­ trajetória, na qual ampliaria, com base nos
ços e recuos: a politica exterior de JK" que documentos, o alcance e a abrangência dos
integra O Brasil deJK, volume organizado conceitos analiticos de avaliação da politi-
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ca externa brasileira que tinha elaborado.


Celso Lafer é doutor em ciência política pela
Por isso o seu desaparecimenlo tem a pe­ Universidade de Corooll (USA) e livre-docente
sarosa carga de uma dupla perda: a do de direito internadonal público pela Faculdade
amigo e a do intelectual que eslava inician­ de Direito da Universidade de São Paulo onde
lenaona direito internacional público e filosofia
do uma nova elapa, que ficou inconclusa,
do direito. É autor de vários livros, dos quais
de uma bela, séria e conscienciosa carreira destacamos Hannah Arendl: pensamento, per·
dedicada ao estudo do Brasil no mundo. suasão e poder (Rio de Janeiro, paz e Terra,
1979); Comércio e relações ;nternaciofUJis (São
Paulo. Perspectiva, 1977) e O sistema político
brasileiro: estrutura e processo (São Paulo,
30/12/92 Pen;pectiva, 1975).

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