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CONTOS

Godofredo de Oliveira Neto


BARCO ALADO

Godofredo de Oliveira Neto

Foi exatamente ao me encostar no mourão da cerca, o celular sem


bateria. Veio aquela luta interna, eu contra mim. E qual deles sou eu? Ou se
trata apenas de uma representação de si construída a partir de exigências
externas? Em volta do mourão não eram garapuvus 1, mas quaresmeiras2
confeitando as montanhas de cima até embaixo veladas pelo prateado das
folhas das imbaúbas molhadas.

- E não deu para ver pelo menos a cor da camisa da pessoa, professor Fausto?

- Não, nem isso. Eu vinha pelo estradão de Pomerode cansado e com fome,
nem enxergava direito. Deixei os alunos no meio da aula de história. Precisava
dar um telefonema urgente na sala do diretor. Me lembro bem desse momento.
Falava sobre os conflitos do século XIX que contribuíram para a formação da

1
Árvore símbolo de Florianópolis, colore de amarelo as montanhas da Ilha.
2
A quaresmeira (Tibouchina granulosa) é uma árvore brasileira pioneira, da Mata Atlântica,
principalmente da floresta ombrófila densa da encosta atlântica. O nome popular Quaresmeira
vem do florescimento no período da quaresma. Os frutos são secos em forma de taça, marrom,
deiscente, com aproximadamente 1 cm de diâmetro, que ocorrem de abril a maio e de outubro
a novembro
nacionalidade e da identidade brasileiras, os alunos estavam interessados, são
do último ano do Ensino Médio. É claro, não podia deixar de falar no
Contestado. Eles não conheciam nada sobre o tema. No entanto, ali mesmo
pertinho passaram no início do século divisões do exército brasileiro e tropas
dos revoltosos liderados pelos monges. Um até me perguntou sobre as razões
por que o conflito não entrou para os compêndios oficiais. Comecei a explicar o
momento histórico, as dissensões do governo da época, a transição da
Monarquia para a República ainda fresca, o conflito religioso, a primeira guerra
mundial, o partido russo no exílio, a problemática fronteira com a Argentina, o
papel dos sindicatos ingleses, o embate entre socialismo e capitalismo se
insinuando no mundo e por aí afora. No final de uma dessas explicações, bem
na horinha do ponto final na frase, passou na estrada uma carroça puxada por
dois vistosos cavalos com antolhos. Iam céleres. Reconheci, era a carroça do
fabricante de queijos, ele ainda faz a entrega dos laticínios da sua fabriqueta
com a carroça do pai. Notei, com grande inquietação, um detalhe: o seu Walter
não estava na boléia. Como é que os dois cavalos podiam andar sozinhos, sem
cocheiro? Conheço bem o seu Walter e a sua família. Por isso pensei em
telefonar para a sua casa. Receei o mais grave. Seu Walter fulminado no
interior da carroça, ou caído num desses valões da beira da estrada. Ou talvez,
já mais otimista, imaginei os dois tordilhos arrancando de repente num
descuido do dono. E a partir desse momento não me lembro de mais nada,
nem como vim parar aqui na Federal em Florianópolis. Quando vi já estava no
campus da UFSC onde me graduei em História. Aliás minto, me lembro quando
estava atravessando a ponte Hercílio Luz, só não lembro se estava num carro
particular ou num ônibus.

- Você não andava pensando em tentar uma Pós? Foi o que me informaram. E
a ponte Hercílio Luz está fechada ao tráfego há tempos.

- Penso sim, mas de Pomerode até aqui alguém me trouxe. E quem foi ?
O Walter é que não, né professor Ademar ? E a ponte era aquela de concreto,
me enganei .Não, claro. O senhor chegou aqui na universidade a pé, entrou e
conversou comigo pedindo informações sobre as provas e falando de um
projeto sobre nacionalidade brasileira e identidade fragmentada. Foi embora de
repente e agora voltou.

- É, sempre pensei nisso , está na moda. Pois é, louco então o senhor não é!

- Também acho. Me lembro do trajeto ali do pátio central onde tomei um


cafezinho até aqui. Olhei em volta e admirei os garapuvus floridos. A paisagem
comove. Sempre fico extasiado diante dos garapuvus em flor. Parecem uma
moldura descontínua a reforçar a natureza e a identidade do quadro. E o corpo
do quadro era eu envolto por aquelas árvores. E também aquela jovem
descontraída com uma mochila, os cabelos finos e oleosos roçando os ombros;
aquela varredora do meio-fio, negra, concentrada no vaivém do cipó
purificador; aquele senhor de olhar vago que na última hora me fixou como se
me conhecesse de algum lugar; era o rapaz absorto no seu objetivo e na sua
marcha esbarrando em mim. Aquelas pessoas estavam no quadro emoldurado
pelos garapuvus. Elas sabiam disso? Sabiam ser aquilo tudo uma construção?
Que outra moldura talvez lhes desse outra cara e outros propósitos? Que
versão diferente das suas palavras e do seu jeito de pensar poderia advir de
outra pintura? Então pensei: trabalhemos o cenário, talvez a gente construa
outro real.

-Vai falando , vamos gravando aqui, professor Fausto.

-Por quê?

-Porque a história em si já é matéria .

-Tá bem, Ademar. Posso chamar de Ademar?

-Pode, claro.

Um pouco antes de me recostar no mourão de cerca, como comecei a falar


no início, pensei em muita coisa, assim, como a gente pensa de forma
estilhaçada e fragmentada nos sonhos, sem tempo e sem espaço lógicos e
definidos. Somos personagens variados, uns se superpondo aos outros.
Quando se acorda, volta um personagem unificado, quer dizer, não unificado,
mas buscando uma unificação. E vem a luta interna, eu contra eu....rsrsrs... E
qual deles sou eu? Ou se trata apenas de uma representação de si construída
a partir de exigências externas, como já falei no início da nossa conversa? O
mar - por isso me lembro estar lúcido quando atravessei a ponte - o mar me
trouxe essa sensação. Lá em Pomerode parecia mais difícil, aqui não, o fluxo
das ondas constrói e desconstrói num continuum. Esse movimento auxiliou no
raciocínio. O seu Walter era quem? Era o queijeiro da carroça com os
tordilhos? Ou o seu Walter do queijo colonial acomodado zelosamente em
tábuas, as mesmas tábuas e o mesmo processo de fabricação herdado dos
seus avós, era o seu Walter do consumidor amante dos seus queijos vendidos
também em grandes redes de supermercados? Em volta do mourão não eram
garapuvus, mas quaresmeira confeitando as montanhas de cima até embaixo
veladas pelo prateado das folhas das embaúbas molhadas.

Você já fez essa descrição no início, professor Fausto.

Era o murmulhar do córrego envolto no cacarejo das galinhas e no piar das


angolistas garridas; era o canto da sabiá vermelha confundindo o cocoricó do
galo garnisé petulante. Memórias involuntárias?

Me vieram lembranças súbitas da agressão verbal do prefeito da cidade


vizinha à família afrodescendente moradora do faxinal dos Guedes; da
admoestação de autoridades retrógradas às danças no baile da festa
pomerana; da avaliação ligeira sobre a farra do boi, descaracterizada a sua
revelia pela violência generalizada que desacata em todo o país os princípios
elementares do humanismo. Mas como estar em sintonia com os outros sem
renunciar a si próprio? Como erigir a minha identidade?

Quando eu estava ali perto do mourão, acho que era na estrada que liga
Timbó a Pomerode, imaginei estar num barco a seco andando por terras nunca
navegadas. Vi o barco sem comandante voando por sobre cidades e vales, por
sobre rios e plantações, por sobre montanhas com bananais viçosos, por sobre
várzeas povoadas de frangos-d’água3 fugidios driblando hastes verdejantes de
arrozais ventosos, por sobre pastos mugidos por holandesas passivas, por
sobre milharais sobrevoados por tirivas4 ruidosas, por sobre chaminés
soberbas abrindo portas para operários gargalhantes saindo de teares
disciplinados. O mar de Florianópolis acolheu dali de cima da ponte o barco
alado tal a carroça sem cocheiro, deu-lhe direção com perfume de tainha
escalada . Imaginei que você poderiam me receber e entender.

- Mas de onde veio o golpe que você diz ter recebido?

- Isso talvez vocês pudessem me ajudar a descobrir, Ademar.

- Aqui a gente não é polícia, professor Fausto.

- Polícia não, eu sei muito bem. Mas se eu encontrar o seu Walter talvez eu me
encontre.

3
O frango-d'água-comum é uma ave gruiforme da família Rallidae. Ave aquática das mais
comuns em várias partes do Brasil, escasseia na floresta Amazônica e, surpreendentemente,
não é muito frequente no Pantanal. Conhecido também como galinhola (Rio Grande do Sul),
jaçanã-galo (Nordeste), peituda (Rio de Janeiro) e galinha-d'água. Antigamente denominado
Gallinula chloropus.
4 é um género de aves da Ordem Psittaciformes e da Família Psittacidae, classificadas em 23
espécies de tiriba ou tiriva. São exclusivas da América do Sul, onde habitam zonas florestais.
Na cidade, vive apenas em áreas verdes grandes e com mata atlântica, mesmo que alterada.
DISFORMES

Godofredo de Oliveira Neto

Começou com a teoria da identificação, de Lacan, depois mais uma dezena de


outras teorias também na área da psiquiatria e da psicanálise, das correntes as mais
diversas e contraditórias, para eu simplesmente acabar diante de um analista heavy
metal. Agora estava na sala de espera do analista e pronto. Não adiantava lhe dizer que
era feliz com os meus vinte e oito anos, com a profissão de juíza do trabalho e o
interesse por artes plásticas e música clássica, orgulhosa da minha negritude, do meu
corpo, da minha estatura, dos meus olhos e por aí afora. Nem explicar que só tinha ido
ao consultório para agradar e sossegar pessoas em volta preocupadas com as minhas
recentes manias.
O analista-psiquiatra perguntou, discreto, se podia filmar as sessões, algo inédito,
com a garantia de sigilo total. A filmagem seria feita com o meu próprio I-phone,
privacidade garantida. Já existia uma pequena armação de madeira para acomodar o
celular direcionado ao sofá. A depressão será curada , disse ele com voz de radialista
dos anos 40 do século passado. Depressão? Eu? Às vezes fico triste, outras com um
apertozinho no peito, mas deprimida? OK, pode ser. Não custa nada - maneira de dizer,
cada sessão é carésima!

Um grunhido aterrorizante. O rosto todo enviesado, deitada no sofá, as mãos


segurando os pés. Lembrava um feto no ventre materno. E por que a língua de fora
assim, horrível? Parecia a imagem no frontispício da Igreja Maria Formosa em Veneza,
que tinha analisado a partir do livro do psiquiatra francês Pierre Daviot. O diabo era
eu? Era eu ali naquele consultório, as mãos de súbito espalmadas coladas nas
sobrancelhas, como se a luz de potente holofote me furasse os olhos?
A pressão arterial estava no mínimo possível, ouvi o psi dizer em voz baixa. Ele tentava
me acalmar, eu com os olhos fixos no teto, esbugalhados, o verde realçado, a cor deles
de que antes tanto me orgulhava me dava, agora, na telinha do I-phone, arrepios. Será
que se eu tivesse nascido com os olhos negros, como quase todo mundo da minha etnia,
seria mais feliz? Será que estou sendo punida pela vaidade e soberba nesses anos
todos? Eu era uma excrescência? Do jaleco branco saía um braço peludo finalizado por
mãos grossas com o desenho de um guitarrista gordo e de cabelo espetado, os caninos
sobressaindo das bochechas, a tatuagem enorme cobrindo toda as costas da mão
direita do meu salvador. O guitarrista beliscava, apertava, furava o meu braço. E eu
nada de acordar. Tinha morrido e voltara depois à vida? E então a frase, de novo com a
voz grave: se você não acordar vou chamar uma ambulância!! Quase pulei fora da telinha
do celular gritando não, não, doutor, ambulância não, eu não sou louca nem morri!
Desisti das sessões - aquilo me aterrorizou e deixou pior - e mergulhei, agora sim, em
profunda depressão. Nunca mais ia sair dessa, estava claríssimo. Ia enlouquecendo pra
valer. Andava desgrenhada pelas ruas. Obrigada pelo Tribunal, tirei licença “por
motivos médicos”, os amigos se afastaram , até o dono da delicatessen , que sempre
lançava olhares desejosos, evitava o olhar. Mas me sentia em plena posse das
faculdades mentais -frase que a gente usa no tribunal - , tinha certeza disso. Só que às
vezes eu não me sentia eu. O que teria levado àquelas cenas dramáticas no consultório?
Nunca vou saber. Segundo alguns amigos próximos foi a acusação de “ depressiva” feita
por uma autoridade, no caso o analista-psiquiatra de braço peludo e mãos grossas
tatuadas com o guitarrista gordo. Pode ser. Consultei espíritas, frequentei o Santo
Daime, sortistas, cultos evangélicos, candomblé, missa carismática católica, tentei o
budismo.
Foi, afinal, um jovem médico-residente de hospital público orientado por um
grande professor de Universidade que mudou tudo, após um monte de exames de
laboratório e scanners. Convivi com esses sintomas por dez meses. Emagreci dezoito
quilos, perdi parte dos cabelos, a pele ressecou. Mas resisti. Firme e forte. Enfrentei,
engoli em seco, fiz como se nada fosse, clamei por Deus, rezei, briguei algumas vezes
tipo chilique, chorei muito, tive ódio, medo, raiva do mundo e da felicidade dos outros.
Mas tentava logo me recompor. Não, não pode ser, vou vencer! Foi esse sentimento que
me salvou.
Manter a esperança, acreditar em mim, juntar forças, tocar pra frente. Você
fica bem com o cabelo curtinho de rapaz, alguns me disseram. Eu sentia a indulgência e
a compaixão nas palavras bem intencionadas. Acabei arrumando um namoradinho nove
anos mais novo do que eu. Na verdade eu o sustentava. Esse era o único interesse dele.
Comer, beber, morar bem, comprar roupas em lojas caras. Tudo às minhas custas. E
daí? Quem ia me querer daquele jeito? Uma doida? Até que um dia vi o sujeitinho numa
esquina ao beijos e abraços com uma garota novinha. Botei ele pra correr de casa. O
meu precipício aumentou ainda mais. E lá embaixo, no fundo do abismo, só via lama
apodrecida e fétida. Uma melancolia e uma tristeza de arrebentar.
Dois dias depois me aproximei, na pracinha aqui perto de casa, de um pregador aos
berros com uma bíblia na mão. Ele me fixou os olhos, severo, e passou a gritar “ O
diabo está nas pessoas. Está dentro de vocês. Vade retro! Vamos expulsá-lo daí de
dentro”. Será que ele estava vendo o demo dentro de mim? Tremi. Cheguei pertinho e o
cara se pôs a gritar ainda mais alto “ Sai desse corpo, Satanás. Sai.” O homem estava
pálido, o livro que segurava caiu no chão, os outros espectadores exclamavam :
“Aleluia”. O que eles estavam enxergando em mim? Fugi dali correndo. Literalmente. Já
em casa comecei a escrever, alucinada, uma história, eu a protagonista, parecia escrita
automática dos surrealistas, as palavras saíam aos borbotões, era uma peça de teatro,
os diálogos meio doidos. A tela do computador refletia a minha imagem de cabelo
curtinho de rapaz, meu rosto ia sendo transformado aos poucos em palavras que
devoravam sobrancelhas, lábios, orelhas, cabelos, nariz e olhos. Uma narrativa
autofágica, um espelho diabólico. Mas dali soprava uma brisa fresca, afetuosa e cordial.
Trazia paz. A raiva e o medo vinham substituídos por serenidade e harmonia. Imagens
dos meus livros de artes visuais preenchiam o espaço entre as palavras desenhadas no
micro, ares de Chopin me embalavam. Eu levitava, me sentia leve. Feliz também não
diria, mas desafogada.

O rosto ressecado e franzido voltou ao normal, o bonitão da delicatessem tem me


olhado indagativo, mas concupiscente. Estou a mil. Tomo um remedinho para a hipófise
e um calmante receitados pelo jovem Residente, que insiste em dizer ter sido também
graças ao psicanalista que o diagnóstico pôde ser feito, e estou escrevendo a segunda
peça de teatro . Recuperei o peso normal, sou a mais “interessante” da academia de
ginástica( o professor me disse baixinho no ouvido!!! rsrsrsr), voltei ao Tribunal e a
dissecar livros de artes plásticas, a freqüentar cinema e teatro. Numa manhã de
domingo de chuva entrei em pânico ao olhar no espelho. Estava horrível, o rosto
inchado, a pele macilenta. As cenas horripilantes do filminho do celular iam se repetir?
Chorei copiosamente, vomitei de medo, senti dor no estômago. Me senti esquisita,
parecia desmaiar.Liguei, apavorada, para o médico, que me tranqüilizou e recomendou
vivamente deletar de uma vez por todas as cenas de terror do I-phone. Eu não era
artista de cinema. Hoje um pôster com a imagem da Igreja de Veneza decora a sala do
apartamento. O sentimento amoroso por alguém ainda não se deu, mas sinto que está
prestes a acontecer. E a história de uma louca varrida , de uma juíza deprimida e
bizarra, transformei nessa peça de teatro. “Disforme” está há dez meses em cartaz
com casa cheia.
1

É DURO COMO QUEBRAR ROCHAS.


(conto no livro Escrever Clarice, editora Oficina Raquel)
Godofredo de Oliveira Neto

O voo era meu? Escrever. Ou era a sombra do pombo em busca do milho


espalhado pelo padre franciscano no dia da bênção dos animais? Ou os dois?
Meus braços abertos lembram asas lambendo as pedras portuguesas do
Largo do Machado. Escrever. Lá de cima via com nitidez a arquitetura da
praça, o retângulo imperial das palmeiras, a igreja imponente louvando
garbosa a natureza e o caminho dos céus. Mas já não estava justamente no
céu? Não era dessa perspectiva que o largo invadia a minha tela?
Escrever. Os pombos se reproduzem insanamente, acabam transmitindo
doença aos humanos. Advertência? Ponderação anódina? Por que me dava
conselho? Eu tinha os pés no chão, eram desenhos escuros no granito ou eu
voava? A sombra nas pedras portuguesas a refletir um pássaro batendo asas
grita apenas uma metáfora, dessas que desertaram da ficção. Mas, na
dúvida, melhor não se misturar às aves do logradouro. Passam doenças!

O senhor está com o Frei Leandro?

Estou sozinho, por que pergunta?

Por nada. Queria apenas saber onde posso me procurar um saquinho de milho
para dar aos pombos.

Sedução tipo diálogo de cinema ?


2

Voar e experimentar essa sensação de liberdade falta à gente.

Se escrever recupera.

A sensação de liberdade?

Pelo menos em parte.

Mas escrevendo o quê?

Mitos, histórias milenares, amores tântalos, ódios calados, culpas.

A escritura dá conta do que a gente quer passar?

Dar conta do real não dá, mas vai desbravando, tentando, tateando,
força bruta, lapidação indagada, queda, depressão, volta, retrabalho, assim,
quente, como o sangue estuante bombado sem parar. Escrever só a partir de
leituras, escrituras de autores, a biblioteca universal.

Onde fica o eu?

Leituras, leituras, leituras, mitos , mitos, mitos, substrato do eu. Eu só


apenas eu.

Como lembrar dos textos alheios? A memória deformada reforça a


impossibilidade de escrever. Se as palavras já não logram apreender o
pensamento, com a memória deformada dos outros textos então o que
sobra? Escrever o quê?

Voando talvez você veja melhor, lá no alto ninguém te incomoda, pombo


libertino, voluptuoso. Escreve nas pedras portuguesas o teu desconsolo,o
teu desgosto, a tua mágoa, geometria libertadora, alforria do eu, vôo cego.

Mas escrevo. Como conseguir um teatro com dimensões fora do vivido?


Sentimentos inquietantes do passado presentes nas trevas embaçadas,
monstro irredutível rompendo grades, esforço inútil de barragem, litígio
perdido, infausto. O reino do imaginário não dispensa a acareação com a
3

realidade? Vaivem de um reino a outro, dissimulação, leitor e narrador na


escuridão, desintegração e reunificação, jogo constante, avassalador,
esquizofrênico. Poeta e verdade, censura, o conhecimento de si, um passo
atrás apavorado, a mão na boca, o medo, a vergonha, a palavra aprisionada a
voar como os pombos do Largo do Machado, a transgressão recalcada. É
duro como quebrar rochas.

Buzinas, milho, pedras portuguesas, pombos.

Mas esses são uma parte apenas, as asas abertas me enlevam, me


sublimam, me retiram do Largo do Machado, me sonham, me riem. E me
estraçalham na volta. Sombras, apenas sombras.

Escreve então.

Escrevo. Mas é duro como quebrar rochas.

Voa.

Escrevendo não fujo da realidade, antes me aproximo dela pelo


fantasmático. Fecundo a liberdade. Pelo menos tento. Mas não há escolha,
não há essa liberdade, nem de tema, nem de ser eu mesmo, nem de ser o
sujeito. Mito do herói, o criador de palavras alinhadas, providas de sentido,
sensoriais, padrasto impiedoso, assassino do real, demoníaco, esperança do
leitor cúmplice, amantes incestuosos. O aliciamento da magia, do fascínio, do
estilo insidioso , a perfídia estupradora, capricho, a paralisia do senso
crítico do leitor, o pensamento conturbado, aparente presa fácil do cruel
herói, cândido, angelical. Logo a reação, a inevitabilidade da resposta, leitor
agigantado, a busca da motivação, a destruição da escritura, palavras
desalinhadas, o herói cambaleante, ferido de morte, frágil agora, muito
frágil, o silêncio, a folha virginal, o desalento, a dor, o espasmo, o perdão
que não logra se verbalizar. É duro como quebrar rochas.
1

FILA SEM-BAGAGEM
Godofredo de Oliveira Neto

Que ela não gostava de café pela manhã eu sabia, de manhã só gosto de
chocolate frio, o café me dá gastrite, ela resmungava. O que eu não sabia é
que durante o dia se entupia de cafezinho no escritório de arquitetura, não
que eu goste, é que o cafezinho me ajuda a passar o tempo entre
pranchetas, réguas e lápis. Descobri, ainda, que ela não gostava de nada
sobre o corpo na hora de dormir, curto dormir nua, até no inverno de Nova
York ou de Paris durmo pelada embaixo dos cobertores. E, finalmente, eu
conhecia de cor e salteado um grande número de palavras e expressões que
saíam daqueles lábios carnudos de atriz de cinema italiano, provavelmente
úmidos nos momentos de prazer, os pés batendo na parede, a cama
2

rangendo, o abajur, ou coisa parecida, derrubado, os suspiros longos, os


gemidos mistura de dor e júbilo sempre diferentes. Do trabalho de
arquitetura regado a café ouvi da amiga no elevador: você, Roberta, vai
ganhar o prêmio de maior tomadora de cafezinho de todos os escritórios de
arquitetura do Rio de Janeiro, depois não reclama de dor de estômago, é,
Sandra, sabe o que é, não que eu goste, é que o cafezinho me ajuda a passar
o tempo entre pranchetas, réguas e lápis. As outras manias de Roberta eu
ouvi do meu quarto, contadas por ela própria. Ainda agora tenho a impressão
de conhecer Roberta intimamente, os seus reais cansaços, os seus desejos,
entender as suas insônias, destrinchar os seus sonhos quando fala dormindo.
Sei mais sobre ela que sobre mim. Logo de cara pensei ter encontrado a
pessoa de que eu precisava, embora tenha descoberto, pelos ruídos e pelas
juras, que podia não ser necessariamente como eu achava e queria.

A cama em que ela dormia ficava a alguns centímetros da minha, só a


parede separando. Quarto com quarto. Se não fosse o número 602 e 601 na
porta de entrada, dava pra dizer que era o mesmo apartamento. Aquela
proximidade se transformava, porém, numa monumental distância dentro do
elevador. O meu bom-dia apenas ressoava baixinho num tímido eco, bom-dia,
nada mais, só o bom-dia como inaudível saindo dos lábios italianos. Quando a
porta se abria, ela escapava quase correndo em direção à rua ou ao 602.
Aqueles olhos castanhos, ligeiramente estrábicos, não me viam no elevador,
para Roberta eu não existia, essa era a impressão que dava. Mal imaginava
ela, no entanto, que eu entendi, desde a primeira noite, o quanto podia ser
carinhosa. Meu bem, meu amor, meu garoto, meu homem, meu macho, o
melhor de todos, o que me faz voar como uma ave, como uma borboleta,
como uma fêmea de verdade. E no elevador, só comigo, aquela carranca! Eu
nem sabia quem era realmente Roberta. O porteiro deu algumas
informações. Mudou pra cá dois dias antes do senhor, veio só com duas
malas, o apartamento dela também é de temporada. Eu estava alojado ali
profissionalmente, corria o Brasil inteiro analisando relatórios de colegas da
Sons and Sons Consultoria e fazendo relatórios de relatórios. Dessa vez era
no Rio. Você vai para o apartamento que a gente tem lá no Leblon, explicitou
a chefe de pessoal da Sons and Sons. Talvez Roberta também estivesse no
602 por conta da firma de arquitetura.
3

No meu quinto dia carioca as palavras que ouvi já na primeira noite


voltaram. Foi quando, justamente, ela disse que gostava de dormir sem
roupa. Seu companheiro devia ser corretor da Bolsa de Valores, ou pelo
menos um investidor profissional. Falaram da queda de ações, de
investimentos, das desvantagens da aplicação em dólar, da cotação do ouro.
A cama, de repente, passou a ranger ao sabor do mercado financeiro, as
ações subiam num ritmo alucinante, lembravam os gritos dos corretores na
Bolsa, Roberta é quem mais aplicava nas ações preferenciais, vem meu
homem, esse perfume caro, cheiro de dinheiro novo, não deixa baixar, você
sabe como investir, aplica mais, investe, isso, investe meu príncipe lindo,
musculoso, perfumado, de pele lisinha, eu sou e sempre serei mulher de rico,
esse é o meu mundo, essa é a minha vida. Entre beijos e pecúnias, amaram-
se até às três da madrugada como só dois amantes perdidamente
apaixonados e em pleno cio são capazes de amar. Imaginei o corpo esbelto
de Roberta convulso, o rosto crispado de prazer, a falta de ar, os cabelos
esvoaçando, os braços enlaçando com força o seu homem preferido. Na
tarde da sexta-feira, após aquela noitada com cheiro de mercado de
capitais, passei numa loja da Buenos Aires, perto da sede da Sons and Sons.
Terno cinza, gravata vermelha com desenhos, camisa azul-claro, sapatos
sociais. Saí da loja com o traje novo, carregando na sacola a roupa esporte
com que fui trabalhar. O táxi me deixou no cruzamento da Ataulfo de Paiva
com Aristides Espínola. Sentei numa mesa da pizzaria da esquina, à espera
de Roberta. Entre oito e meia e nove horas ela chegava num rádio-táxi
vinho, eu já tinha visto duas vezes, e o porteiro confirmado que ela voltava
sempre na mesma hora. Da pizzaria dava para ver o nosso prédio, na outra
esquina, com entrada pela Aristides Espínola. Eu ia pagando os chopes um
por um, quando a visse zarparia. Uma hora de espera e o táxi vinho
estacionou na frente do prédio. Atravessei a rua correndo. Ela já estava na
portaria e me viu chegar meio esbaforido. Boa-noite, que dia estafante,
"Boa-noite", ela respondeu num sussurro. Usava saia preta, muito curta, uma
camiseta azul enfiada displicentemente no corpo, sapatos baixos, também
pretos. Os cabelos negros impecavelmente penteados e brilhantes roçavam
os ombros. A situação da economia mundial vai influir diretamente no
mercado de capitais do Brasil, ainda assim acho melhor aplicar em ações do
que em ouro ou dólar. Eu disse a frase olhando para o chão e para as
luzinhas do elevador, num tom alternando certeza e dúvida. Ela nada
4

respondeu, mantinha os olhos colados num canto da parede. Aproximou-se,


logo em seguida, uma mulher com sotaque português se queixando do calor.
O T se acendeu, entramos os três. A hóspede do elevador apertou no 7,
Roberta no 6, eu pressionei de novo o 6. Mas, apesar de tudo, é possível
fazer bons negócios na Bolsa do Rio, hoje consegui ganhar um bom dinheiro
com a subida inesperada de certas ações, suspirei. A mulher não entendeu,
Roberta olhava para a porta pantográfica, ansiosa para chegar a algum lugar.
O número 6 apareceu com a parada súbita do elevador, Roberta deu "Boa-
noite", acho que serviu para os dois pois eu, já no corredor, repeti "Boa
noite", ela não respondeu. Fez, é verdade, uma ligeira menção com a cabeça,
meio indecifrável. Na segunda-feira repeti a operação. Ela estava vestida
quase como na sexta, só a camiseta era vermelho-sangue. Não sei se as
ações vão se manter nesse patamar até o final do ano, alguns clientes têm
me perguntado, hoje um investidor aplicou comigo mais de oitenta mil
dólares. Ela mal olhou para a frase. Subíamos os dois sozinhos no elevador.
Julguei ouvir um "É verdade", baixinho. Na despedida, nada. O "É verdade"
valia como cumprimento e despedida. E naquela mesma noite foi um
escândalo. A voz masculina era outra. Falavam dos índices sociais
catastróficos do Brasil, de luta armada, de eleições presidenciais, até de
revolução permanente. Quer dizer, mais ele é que falava. Sem greve e sem
porrada a gente não consegue nada. O escândalo veio depois, na cama. Foi
um deus-nos-acuda. Meu revolucionário, gosto de homens de ideias, adoro
essa barba, isso é que é homem, vem meu guerrilheiro, vem, desfralda essa
bandeira, punhos fechados, o cabo da foice e do martelo pra cima, isso, só
consigo viver com homens politizados, que lutam contra as injustiças sociais,
esse é o meu mundo. O combate deve ter durado a noite inteira, parecia
guerra mesmo. Acabei adormecendo lá pras duas da manhã, talvez estivesse
entrincheirado, lutando, a baioneta calada. Naquela terça aposentei o terno.
Na hora do almoço, comprei, na mesma loja da rua Buenos Aires, uma
camiseta preta com a cara do Che Guevara na frente, um jeans desbotado e
sandálias de couro. Não tinha me barbeado de manhã. A colega de trabalho
notou: Você está com cara de cansado hoje, Amâncio, dormiu mal? Daqui a
alguns dias você vai voltar pra Belo Horizonte, não pode ir com essa cara, e
o relatório, vai conseguir acabar? É, Jaciara, dormi muito mal, quanto ao
relatório não se preocupe, até sexta está pronto.
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Na volta ao apartamento do Leblon vesti a camiseta, o charutão do Che


sempre ereto, me despenteei com as mãos, calcei as sandálias, o jeans, algo
folgado. Peguei um punhado de terra do vaso da palmeirinha da sala,
esfreguei no bolso de trás do jeans para que parecesse usado. Desci, o
porteiro foi um pouco impertinente: Fala, seu Amâncio, vai ao show nos
arcos da Lapa ou a uma passeata na Rio Branco? Não respondi, mas fiz um
aceno amigo, o traje exigia o diálogo, o porteiro sabia, por isso aquela
intimidade impensável no dia anterior. O garçom da pizzaria é que pareceu
surpreso. Pedi chope em cima de chope, cuidando sempre de pagar um por
um. Às dez para às nove o táxi vinho estacionou. Atravessei a Ataulfo de
Paiva e entrei no prédio quase colado à Roberta. O elevador estava no 9°
andar. Roberta vestia uma malha de ginástica preta, justíssima, que realçava
generosamente a forma do seu corpo. Eta paizinho injusto esse, não é?
Roberta deve ter imaginado que a frase fosse para o porteiro, pois ele, de
fato, respondeu "Bota injusto nisso, seu Amâncio". Do elevador saiu,
subitamente, um rapaz de bermuda, que gentilmente manteve a porta aberta
devorando Roberta com os olhos. Subimos. Esse país vai de mal a pior, só
mesmo uma revolução, com sangue de preferência, para dar um jeito nisso.
Roberta não relevou a avaliação sobre o Brasil. Olhei no espelho. Meu cabelo
estava todo espetado, o Che acabava de dar uma gostosa baforada no
charuto. Roberta não falava, só se ouvia o ruído das correias do elevador.
Mas ela deu uma ligeira olhadela no espelho, como se me examinasse.
Aproveitei a deixa. Uma revolta popular das grandes. Ela resmungou "Uhn,
uhn", concordando. Aquela mulher de tão poucas palavras e emoções tão
discretas não podia ser a mesma prolixa e exuberante da cama. Eram tão
diferentes. Quem era Roberta realmente? Ao chegarmos ao 6° andar,
brinquei, certo de que ia agradar: "Viva la revolución!" Ela, se não me engano,
esboçou um discreto sorriso. Repeti a cena no dia seguinte. "Que engraçado,
chegamos sempre juntos, na mesma hora", eu disse. Nem sei se Roberta
ouviu. Mas nessa vez subiram conosco um casal e um senhor idoso. Ficamos,
os cinco, meio apertados. O corpo de Roberta, com uma malha de ginástica
rosa, tocava no meu. Seus cabelos estavam molhados. Reagi com a frase
"Esse país tá indo pro buraco". O senhor idoso concordou, "E como! Tá
demais!" O meu cúmplice desceu no 3° andar, o casal ia para o 8°. "Só mesmo
uma revolução", falei quando ele saía. Dessa vez ele não foi tão cúmplice
assim, talvez não concordasse com a proposta. No 6° andar me antecipei e
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retive a porta do elevador para a minha vizinha. O meu “Até logo" e “Até
amanhã" ecoou no corredor e em parte, mas em ínfima parte, na boca de
Roberta. Ouvi só um amanhã, bem baixinho. Naquela noite a agitação
costumeira voltou. Lá pelas onze tocou a campainha, os três outros homens
acho que bateram na porta, eu não tinha ouvido. O sujeito agora falava de
gado, de defensivos agrícolas, peões, venda de plantel de nelore, especificou
que ia ficar dois dias no Rio, voltava em seguida para Barretos. A cena deve
ter sido de rodeio mesmo, tipo fala peão. Acho que Roberta foi literalmente
montada, ela parecia mugir, um dos dois dava coices na parede, alguém
estava de botas com salto, "Vem meu peão boiadeiro, toca essa viola,
corcoveia seu danado, passa o chicote nesse teu animal, passa, galopa, isso,
galopa, sopra esse berrante, eu sou do estilo de mulher que só gosta desse
tipo de homens, quero viver sempre com alguém do mundo rural". Eu, ali no
meu quarto, ao lado da cama de Roberta, senti cheiro de terra e de vaca.
Acho que o cheiro vinha, na verdade, da terra do vaso da palmeirinha da
sala. Também como das outras vezes, a doma durou até alta madrugada. Tive
a impressão que dessa vez Roberta gostou ainda mais. Então caprichei pra
valer. Comprei, na rua Uruguaiana, um traje country. No início o vendedor,
seguindo as minhas explicações, queria me vender um traje de gaúcho, dizia
não conhecer bem as roupas dos peões de Barretos. Roupa de gaúcho
também não dava! Bombacha etc., não, tenha dó! Acabou sendo um jeans
bem apertado, botas de couro, uma camisa com botões de madrepérola e um
cinto com enorme fivela. Segui a mesma liturgia. Volta para casa, troca de
roupa, olhar malicioso e galhofeiro do porteiro, pizzaria, olhos indagativos
do garçom. Roberta se atrasou. Chegou eram quase dez horas. Estava
vestida com roupas chiquíssimas, um tailleur cinza com blusa de seda
branca, sapato alto, colar de pérolas, brincos combinando com o colar, os
cabelos pareciam mais curtos. Olhou para mim e cumprimentou, com
educação, "Boa-noite, senhor, como tem passado?" Respondi apenas "Bem".
A fivela me apertava a barriga, as calças enfiadas dentro das botas
esquentavam as pernas, só faltava mesmo o chapéu que, por sorte, não
vendiam na loja da rua Uruguaiana. Pensei em voltar para a rua, fugir.
Roberta segurava uma pequena bolsa de couro, reparei nos anéis. O elevador
chegou. Não dava mais para ir embora. Ela abriu a porta. Passe, senhor, por
favor. Entrei. O salto das botas fez tremer a porta pantográfica. Roberta
me seguiu e apertou o nº 6. Éramos só nós naquele cubículo. Não tive
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coragem de olhar no espelho. Ela, ao contrário, retocou com os dedos parte


da maquiagem do rosto. O elevador parecia mais lento. Aliás, foi o que
Roberta também notou. "Esse elevador está precisando de reparos",
comentou. Concordei com a cabeça. O elevador parou no 3° andar. Ninguém
entrou. "Ou está quebrado ou alguém deve ter chamado mas voltou para o
apartamento, a mim também acontece de lembrar alguma coisa na última
hora", disse ela. Concordei com a frase, mais uma vez, com um gesto de
cabeça. A camisa country estava ensopada, o suor deixava manchas enormes.
Roberta deve ter notado. Na chegada ela mais uma vez tomou a iniciativa.
"O senhor na frente, por favor, os mais velhos têm preferência". Concordei.
Mudo. Mas achei um jeito de balbuciar um "Obrigado", que saiu fraquinho.
Ela respondeu em alto e bom som "De nada", seguido de um "Passar bem".
Entrei no apartamento exausto, e desabei na cama. Levantei logo em
seguida, me despi daquela identidade, tentei voltar a ser eu, descobri que já
nem cabia direito dentro de mim. Colei o ouvido na parede, ouvi a água do
chuveiro, depois um suave empurrão na cama, Roberta tinha deitado. Ela
existia mesmo, não havia dúvidas. E eu? Pensei na vida, no mundo que, desde
a infância, foi me invadindo, ano após ano, minha margem de manobra
sempre diminuta. Perguntei, em voz baixa, como pude entrar naquela
bobagem, fazer tudo aquilo, nem parecia o Amâncio que todos conheciam,
que papelão nesses dez dias cariocas, como se eu estivesse em estado
permanente de embriaguez. Botei a culpa na distância, longe dos conhecidos,
da família, eu sempre viajando, fora de Belo Horizonte. Senti vergonha.
Vontade de fugir, como na portaria há pouco. Não ouvi mais nada naquela
noite. No dia seguinte, sexta, fiquei com um mal-estar o dia inteiro, parece
que doía ser eu mesmo, uma coisa assim, meio difusa. Jaciara notou. "Você
está estranho, nem lembra o Amâncio, até a cara tá diferente." Dessa vez
não respondi. Terminei o relatório, escrevi que o trabalho analisado estava
perfeito, e expliquei para a chefe de pessoal que pensava retornar para Belo
Horizonte no fim de semana. Ao voltar para o apartamento do Leblon o
porteiro foi logo anunciando: “Aquela moça sua vizinha, a dona Roberta,
viajou de volta hoje para São Paulo, no lugar está uma amiga dela, dona
Sandra, acho que trabalham na mesma firma, uma companhia de seguros”.
Subi meio tonto. No apartamento senti o cheiro de terra do vaso com a
palmeira. Ouvi barulho no apartamento ao lado. Sandra mexia na pia da
cozinha. O porteiro garantiu que Roberta tinha ido embora. Tentei arrumar
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a mala, hesitei. Roberta talvez tenha deixado seus personagens no


apartamento do Rio, eu, em compensação, não conseguia me livrar dos que
ela própria tinha criado em mim. Finalmente misturei às minhas roupas o
terno, a camiseta do Che, o traje de peão e os jeans, a mala parecia inchada.
Dei tudo de presente ao porteiro. Não esperei o fim de semana. O peito
doía, até agora parece que dói ser eu mesmo. Disparei para o Santos
Dumont, perguntei pela fila dos sem bagagem, e ainda consegui pegar a
ponte aérea das onze para Belo Horizonte.

Godofredo de Oliveira Neto nasceu em Blumenau (SC) em 1951. Na


cidade do Rio de Janeiro, aos 17 anos, iniciou seus estudos de letras e
direito. Em 1973, foi morar em Paris, onde graduou-se em letras e relações
internacionais pela Sorbone, alcançando os títulos de mestre e doutor.
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um conto de
Godofredo de Oliveira Neto
2

Conto no "Livro Branco". Cancioneiro dos Beatles. (Record)

É claro que se deslocar assim para uma grande capital européia em busca
de um fetiche não era coisa trivial. Mas o cheiro do seu suor valia o esforço (
sem falar daqueles olhos!).Ela traga a gente, desfibra nossos sentimentos, dela
poreja sempre uma lascívia desvairada.

Grana para a passagem arrumada numa jogada ilegal na Bolsa ( me dou o


direito de não dizer que tipo de operação foi, mas, fiquem tranqüilos, ninguém
morreu ... rsrsrsrsr), um empréstimo a fundo perdido da velha gata há anos
caidinha pelo macho “ vigoroso e suave como nunca tinha visto” ( palavras dela
mesmo, mas no fundo o que ela pagava era a minha juventude), uma outra soma
conseguida com uma tia para o hotel na capital italiana e, principalmente, o
dinheiro levantado com a venda do carro quase zero com um objetivo mais do
que específico. Rio-Roma-Rio, voo direto. Exatamente da Tijuca, rua Conde de
Bonfim, a uma esquina da Via dei Giubbonari, na região central de Roma. No
subsolo de uma boite latino-americana de salsa, merengue e samba para
nostálgicos do sol, de mulatas e de turismo sexual, funcionava um antiquário
especializado em livros e discos, com entrada separada da casa de shows. Lá
estava o Giuseppe, e com ele o disco.

Para alguém de vinte um anos mas com experiência de vida no estrangeiro


como eu – um ano garçon em Miami e um recepcionista de hotel em Amsterdan
– a viagem não era problema . Cristiane foi me dando os detalhes aos poucos.
Sei que era um capricho dela, mas acabei por mergulhar de corpo inteiro no
seus desejos, agora também meus. Cristiane, quando quer, convulsiona a
natureza, seu olhar miscigena a doçura do quindim e a peçonha da jararaca.
Impossível ficar indiferente a ela.

O italiano gordo, velho e pau d’água , empregado aposentado de uma


companhia de seguros, tinha vindo ao Brasil pela quarta vez sempre com o
mesmo propósito: prazeres do corpo, detalhava Cristiane . Mas essas viagens
com uma turma de aficcionados custava caro. O real é forte, gringo gatão, cai
na real.... rsrsrsr. Ele balançava a cabeça concordando comigo, continuava ela
as suas explicações pormenorizadas. Eu a ouvia, compenetrado. Cristiane
franzia a testa quando me descrevia o cenário. Em outubro de 1965 os Beatles
tinham feito um show em Roma e o jovenzinho Giuseppe da primeira fila
chamou a atenção do conjunto ( parece que, na época, se usava esse termo
para dizer banda ). O álbum Help na mão, o rapazote se arrancando os cabelos,
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os olhos azulados saindo das órbitas, a camiseta com dizeres pedindo paz e
arte no mundo, os gritos de bravo, a letra de cada música sabida de cor e
salteado, me contava Giuseppe, relembrando da juventude. Teria sido John
Lennon o primeiro a tomar a iniciativa, continuava narrando Cristiane, os olhos
verdes arregalados. Ele escreveu no centro do LP do fã pacifista com a
camiseta vermelha uma dedicatória com frases derramadas e românticas
endereçadas ao jovem. Ringo Starr, Paul McCartney e George Harrison
também assinaram embaixo. Giuseppe endoidou naquele dia, e acho que não
parou mais, avaliou Cristiane, apertando o meu antebraço na tarde em que
narrou a sua aventura. O cara ouvia a faixa Help umas trinta vezes por dia,
anos a fio. O disco original autografado ele deixou bem guardadinho no
armário. Help, I need somebody,Help. Not just anybody,Help, you know I need
someone, help! A música mexe comigo lá dentro até hoje, entende Alexandre?,
é maravilhosa, não me sai da cabeça desde o primeiro encontro com o
Giuseppe, quando ele me contou a sua história. Giuseppe comprou um CD dos
Beatles em Copacabana com as mesmas músicas do seu disco e deixava tocar o
dia inteiro.Como você e eu também ouvimos no computador, Alexandre. E agora
que você me arrancou dessa vida, tenho certeza de que a gente tem que
comprar o álbum do Giuseppe, e não é porque estou grávida, não. Não se trata
desses desejinhos idiotas não. Era como um presságio, Alexandre. Foi a música
que mudou a minha vida. Agora a gente vai casar, vou terminar a faculdade de
Nova Iguaçu, pedir transferência aqui mais para perto, e a Mariana vem por aí.
Na quarta viagem ao Rio o Giuseppe trouxe o LP de vinil autografado pelos
quatro Beatles para vender no Brasil. Fui com ele a um antiquário na rua do
Lavradio. O que eles ofereceram dava para pagar dez viagens Roma-Rio-Roma
com hotel em Ipanema . Mas convenci ele a não vender. Já era o destino! Ele
acabou voltando com o disco para a Itália. Os euros que tinha davam para
pagar o hotelzinho de quinta na Lapa, onde se hospedou. O problema é que o
turismo sexual do Giuseppe se transformou em amor verdadeiro logo no
primeiro encontro. E por quem? Por mim, óbvio!!!

Sentir-se culpado? Claro, ele comentava a situação sem parar, ainda mais
por conta da minha idade. Ciúmes? Loucos!!! Vontade de me levar para a Itália?
Falava disso todos os dias! Quando me conheceu pela primeira vez, em 2009,
eu tinha dezenove anos, nos encontramos mais três anos seguidos, ele vinha só
para me ver. Eu já era maior de idade mas mentia dizendo ser menor. Isso
atiçava o desejo dos turistas; ele também embarcou nessa canoa, mas não
esperava o véu do sentimento escorrer peito adentro ( Cristiane não raro
deixava escapar imagens melosas quando me contava histórias, como essa do
véu). Festejamos a minha “ maioridade” no segundo ano, num restaurante do
Leblon. Ainda agora tem muito marmanjo por aí que acha que eu sou menor,
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Alexandre, você sabe muito bem disso. E acabo curtindo a coisa. Tua irmã diz
para todo mundo que eu tenho complexo de Peter Pan, quando a Mariana nascer
vou me encarar. Mas foram os acordes do “ socorro! Eu preciso de alguém” do
Help que me tiraram da depressão, me fizeram te encontrar , Alexandre,
descobrir o que é o sentimento amoroso. Os e-mails do Giuseppe são diários,
“Help” também fez ele conhecer o amor na velhice – ele nunca casou -, diz
guardar o álbum como se fosse um objeto santificado, que vai me esperar para
sempre, que no ano que vem vai voltar. Já enviei mil mensagens comunicando
ter mudado de vida, ter um noivo, dei até o teu nome: Alexandre. Troquei o
número dos telefones por causa disso, ele passou a me ligar diariamente após a
instalação de um sistema para telefonemas a custo zero.

O hotel reservado pela Cristiane via internet, perto da tal Via dei
Giubbonari, era caidinho, com uma escada interna de madeira toda torta, a
ranger a cada pisada da gente nos degraus carcomidos. Eu estava ali só por
poucos dias, mas veio de novo a pergunta: Pô! Não é um puro capricho dela?
Para que toda essa trabalheira e toda essa grana jogada fora? Superstições da
Cristiane? Crendices? Não é muita encenação e investimento para pouco
retorno? O que que eu estava fazendo ali, Dio Santo?

No quarto ao lado vivia uma brasileira de Goiânia, diarista na casa de uma


rica família romana, como logo soube. Morena alta, traços delicados, olhos
amendoados, mistura de negro com índio, tipo manequim. Pensei na Cristiane,
do mesmo biotipo da vizinha , só que baixinha, o cabelo esticado, pele mais
negra, olhos verdes como a copa das palmeiras do Jardim Botânico do Rio . A
goiana - Ana Cláudia, se chamava -acabou no meu quarto na primeira noite ( não
sou santo!). Arfou, gemeu, suou, suspirou, me chamou de príncipe veneziano.
Como vocês, também não entendi porque esse alcunha, já tinha com certeza a
ver com as suas referências culturais européias. Gostei dela e do seu cheiro.
Mas o tempo todo pensei na Cristiane, senti saudades daquele suor afrodisíaco.
Entendi que estava em Roma por ela e para ela. Ana Cláudia apareceu apenas
para confirmar o meu amor. Minha paixão infrene por aquele suor e por aqueles
olhos cariocas. Valia a pena. Bola prá frente!

Foi moleza encontrar a loja no subsolo e o Giuseppe. Mas principalmente


ouvir a música altíssima dos Beatles que tanto mexia com a Cristiane e comigo (
e com o Giuseppe, claro !).

- Eu sou o Alexandre, da Cristiane. Ela manda um abraço.


Giuseppe abaixou um pouco o volume, tinha as mãos meio tortas, Cristiane não
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tinha me dado todos os detalhes. Vestia camiseta branca sem mangas, os pêlos
das costa, já brancos, rendilhando a costura da malha, um jeans surrado, com a
marca Lee à vista. Calçava tênis com cores verde e amarelo berrantes. Levava
o Brasil nos pés.

- Você é quem? Ele perguntou num português com pouco sotaque.


- O Alexandre da Cristiane, do Rio de Janeiro, repeti. A gente quer comprar o
disco autografado pelos Beatles. Trouxe o dinheiro, calculamos o valor que eles
tinham oferecido no antiquário lá no Rio. Está no quarto do hotel. Vinte mil
euros ( quase o dobro do que lhe propusera o lojista da Lavradio).

Ele deu uns passos para trás, voltou, chegou mais perto de onde eu estava
plantado, examinou a minha roupa ( é a impressão que tive), recuou de novo,
mexeu em alguns livros, falou no celular. Será que o celular pegava mesmo ali
dentro? Pensei no meu no bolso do paletó, mas, pô!, outra encenação, fingir que
o aparelho estava vibrando? Giuseppe desligou, voltou a examinar uns papeis.
Esquecera da minha presença? Olhei os detalhes da loja. Parecia uma enorme
cave para vinhos, de teto baixo, as pedras cobertas por cartazes dos anos 60.
À direita de quem entrava na loja sobressaía uma foto enorme do Lennon
tocando guitarra. Um cartaz , à esquerda, exibia a praia de Copacabana
ensolarada, as vagas pétreas do calçadão provocando uma ondulação que te
carregava junto. Focos cintilantes recamavam o verdeio das ondas. Vontade de
mergulhar no Rio de Janeiro e sair daquela situação bizarra. O que eu devia
fazer? Repetir a frase inicial? Ir embora? Será que esse Giuseppe não é meio
pirado? Há quanto tempo eu estava ali , imagem congelada de medo e de
estupefação? Em alguma daquelas pilhas de discos estaria o LP autografado?
Não. Claro que não. A Cristiane disse que o álbum original está bem
guardadinho num armário de casa!

- O disco. A gente quer comprar, consegui reagir e resumir, pausadamente.


Entende, Giuseppe?

A pronúncia do seu nome o despertou do insólito encontro.

- Esse disco, o bolachão - ( alguém no Brasil provavelmente tinha se referido


nesses termos ao LP ) - está esperando a Cristiane na Itália. E daqui a pouco
fecho a loja, não disponho de muito tempo para conversar, resmungou, dessa
vez com sotaque super carregado.

- A Cristiane será minha esposa em breve, e está grávida, teremos uma filha
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ainda neste ano, insisti. Quer falar com ela no celular? Perguntei exibindo o
aparelho prateado.
Ele chegou ainda mais perto de mim, senti no pescoço o ventinho saindo de
suas narinas . Um hálito de álcool me lambuzou a cara. Procurei os olhos
azulados do jovem fan por trás das grossas lentes dos óculos. Pensamentos
lúgubres. De morte? De destruição? Ou simples dor saída do recôndito do
peito estorvado? Da inveja estúpida? O que estaria sentindo aquele senhor?

- Quer mesmo o Help? Então troco o bolachão pela Cristiane, ele gritou, me
encarando, o sotaque ainda mais acentuado.

A frase soou tal um insulto. Agressiva, insolente e desaforada. E pôs à


prova, ao som do Help, o meu carinho por Cristiane. Prefiro não comentar o que
fiz ao velho ( desculpem, ele não é tão velho assim, mas na hora do tapa me
pareceu).

Voltei sem o disco. Mas com a grana. Restituí o dinheiro devido, rompi
definitivamente com a “ velha gata”( sei que já devia ter rompido antes, não
sou santo, como disse há pouco), e a Cristiane sossegou.Considerou ter feito o
possível. Pagou assim a sua penitência, como gosta de repetir. Sempre achei
que, para ela, a minha ida à Roma foi uma maneira de devolver dinheiro ao
italiano . Para Cristiane, Giuseppe entendeu. Pelo menos o teor do último e-mail
era de despedida, segundo ela.

O Vecchio que arrume outra por lá...rsrsrsrs! Não é um pensamento


muito nobre da minha parte, concordo. Mas é o que penso. O amor me acalma e
endouda ( já li esses versos em algum lugar) .

Mariana vai nascer ouvindo Help no enleio sinestésico do quarto róseo já


decorado com imenso poster dos Beatles vestidos com capote azul, os braços
erguidos, três deles com chapéus da mesma cor do traje ( só McCartney está
sem nada na cabeça). Now I find I’ve changed my mind and opened up the
doors.
GODOFREDO DE OLIVEIRA NETO
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Era dali um pulo. Mais de oitocentos metros subindo num nada de tempo
pra quem consegue. Da velha estação de trem de Subida até o pé da serra de
Ibirama não conta, ali é um retão no plano. O negócio difícil é trepar no perau e
chegar até lá em cima, em linha reta, pro alto, no carreiro do veado campeiro. Só
consegue subir num dia claro inteiro cachorro paqueiro ou veadeiro dos bons. Gente
tem que fazer em duas vezes. Dormir de noite na metade do caminho, aninhado
embaixo da maçaranduba. E dizer que olhando assim, daqui de baixo, é um pulo! A
vista é uma belezura. Mato fechado, montanhão dos grandes, borras amarelas do
garapuvu espalhadas sobre o verde escuro, já os últimos a respirar, que dali pra
cima não tem mais; do montão lá das praias de Florianópolis , vai diminuindo,
diminuindo, diminuindo até se acabar de vez vale do Itajaí adentro. De manhãzinha
o paredão de verdura é navalhado pelo prateado do avesso das folhas da embaúba.
Parecem lágrimas de colombina. Mas esse quadro se enformosa mesmo é com as
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quaresmeiras, o roxo ganhando tudo, santos e mais santos velando pela gente
abrigados sob as pétalas sagradas. O colorido todo da serra da Subida parece que
ganha ainda mais contorno com o canto da sabiá- laranjeira e do trinca-ferro
ecoando no tronco da sassafrás e da canela-preta. O palmiteiro bota cabelo na
paisagem e enche o bucho dos tucaniços e das tirivas, a revoada buliçosa quase leva
a gente pros céus. E essa beleza toda trouxe o mal!

Os dois italianos desceram pela carreiro da caça caindo, se estrebuchando, se


quebrando, gritando, urrando, a cachaça borbotando palavrão e cuspe grosso
amarelado da boca desbocada. Já vai pra mais de vinte anos o acontecido, quase
trinta até. Era na época que a televisão chamava de Abertura, os militares tavam
pulando fora. Os dois vieram lá de cima bem dizer escorregando de uma só vez. Se
esparramaram embaixo, no capim-gordura da beira do Itajaí-Açu, dividindo terra
com preás e saracuras. Foram achar eles desfalecidos, o corpo arranhado, lanhado,
cortado. Colado coladinho naqueles ferimentos veio outra coisa. Lá do alto, veio
descendo, agarrado no corpo dos irmãos marceneiros Enzo e Ênio Konvascatto,
coisa ruim. Quem conhece, sabe. Era questão de paciência. Na várzea do planalto,
quase na beira do precipício, na vertente de cá da serra, num lugar onde ninguém
nunca ia, vivia, num rancho velho de xaxim, a índia Altina, fugida da reserva dos
Xokleng, do município de José Boiteux, ali pertinho. Altina tinha lepra. Carne feia,
esburacada, brinquedo do diabo, gente devorada pelo demo aos pouquinhos, capetão
dos ruins passou por ali! Todo mundo tinha conhecimento do estado da índia, pelo
jeito só as autoridades não. O que que os desgraçados do Ênio e do Enzo foram
fazer lá naquele rancho amaldiçoado, meu Deus? Alguns amigos disseram que eles
tinham falado em ir pegar ovo nos ninhos de perdigão, estava cheio nessa época do
ano na macega faceira. Acabaram se entupindo de cachaça e emborcaram bem
pertinho do rancho da índia. Mas alguém adivinhava muito bem o que eles tinham
ido fazer lá encima. Olhar esverdeado de gato-do-mato matreiro, furtivo,
dissimulado, de abocanhar de um pulo o inhambuxororó distraído, olhos gulosos de
anseios e lascívia. Dessas gentes que carregam por dentro o ferro do Diabo e a
pluma dos anjos, gente que mete medo na gente, que – Salve Nosso Senhor -
servem de rinha pro combate arrepiante entre Deus e o Demônio, luta doída,
machucante, renhida, com final incerto,disputa da chuva apagando o incêndio no
pampa do verão ressecado, fogo que renasce, labareda dourada, atraente,
sedutora, lá na frente, vingativo, estalando promessa de mais calor do Arrenegado
endemoniado caçoando da chuva, chovida por nada, logo engolida, inútil, pela terra
estorricada do capim retorcido. Mas gente por dentro sem peçonha, só escolhida
pelo fado para servir de exemplo a esse mundão perdido.

Não demorou muito começou a aparecer no corpo dos dois um tipo de mancha
escura. Ênio e Enzo tinham então vinte e poucos anos, moravam sozinhos, órfãos,
exímios trabalhadores de lenho. Um resto da família morava em São Paulo. Eles se
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trancaram nos seus quartos a partir daquele dia. Escuridão danada, mas parceira,
proteção contra escárnio zombado e olhados olhos curiosos. A casa era toda de
madeira, ficava mais para o pé da serra. O vilarejo foi crescendo em volta da
moradia abandonada dos Konvascatto, pintada de branco, portas e venezianas
verdes. Uma pequena fábrica de tecidos se instalou perto, um boteco, uma
mercearia. Só a casa dos irmãos marceneiros foi ficando para trás, nem luz
elétrica tinha. Casa do lar adocidado pela promessa mentira do Decho atiçador; do
pão de milho e da polenta abundante escasseada na migalha de uma alma caridosa.
Todos os dias, uma alma bondosa trazia comida para os dois irmãos. Afagava antes
a cabeça do Pirata, mestiço de setter irlandês com pastor alemão, cachorro
passarinheiro, lambedor, afetuoso, focinheiro, mexe-rabo, daqueles que parece que
sorriem pra gente. Cachorro do céu sempre a dizer tudo vai melhorar, tudo vai
melhorar, tudo vai melhorar com latidos ganidos lá do fundo da alma, guardião dos
anjos. Às vezes Pirata voltava com ela. A alma caridosa trazia junto um rádio
grande, a bateria, e, alguns dias da semana, uma televisão portátil, com a marca
Sony escrito em letras enormes. Ligava o rádio e sentava na sala com as venezianas
permanentemente fechadas. Sintonizava no programa “ Itália brasileira, brasileira
Itália”.

- Olha aí galera, aqui fala do morro da Caixa de Rio do Sul, é funk, brodi, pra baixo,
pra cima, pra baixo, pra cima, mexe, mexe, mexe, prá cima, prá baixo.

O programa começava às nove, a alma bondosa às vezes chegava mais cedo, dez
quinze para as nove, por isso pegava um pedacinho da emissão de funk da rádio de
Rio do Sul. Quando vinha a televisão, o programa era sempre policial, com cenas ao
vivo.

- Negão já tá na caçapa da viatura da Rota. E aí, delegado, o que que ele fez?

- O meliante é assassino. Mas matou por paixão, o que dá pena na gente é que crime
passional é moleza pra advogado tirar da cadeia.

Os olhos dos dois leprosos brilhavam com o reflexo da imagem televisiva. O médico
tinha garantido, na única visita que alguém fez aos Konvascatto, que a lepra não ia
evoluir. Só que, quando Ênio e Enzo receberam a visita do doutor, já tinha parte do
corpo deles que deixava ver os ossos. Dos grandes, dos pequenos, de todo tipo,
dependendo da parte da carcaça. Ossada valente e pura carregando, silente, o
manto a se esgarçar, deixando o vento a entrar, o pó a provocar juntas e rótulas,
tendões e nervos, a pele a queimar. Todos da cidadezinha se pelavam de medo
daquela casa sombria. Ninguém ia lá. Sempre se dizia que os irmãos marceneiros
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iam morrer logo, mas muito nego já se foi e eles continuavam ali, vivinhos, na casa
branca de venezianas verdes. Foi numa das emissões sobre crime passional que a
conversa veio de novo, depois de anos adormecida.

- Não tive culpa, Ênio, só aconteceu uma vez, e só em pensamento, juro mano, juro.
Das outras vezes era só paixão, sem encontro de corpo. É que naquele dia ela deu
uma olhada diferente pra mim antes de entrar no quarto com você.
- Mas você sempre gostou dela!

- Anita era mulher faceira e dissimulada, Ênio, só isso, e bonita que só, com aqueles
olhos esverdeados de gato-do-mato tragando a gente de viés. E tinha como um
feitiço. Eu via ela com você, você sempre teve as mulheres que quis, eu não, mano,
eu não.

- Mas quando ela me deixou pra pegar aquele riquinho de carro bonito você ficou
triste por ela ou por mim? Fala logo, mano, fala.

- Por ela.

- Então vai embora, Enzo cachorro, vai embora.

- Pra que voltar tudo isso de novo, Ênio? Pra quê? A gente já não tá acabado? Já
não fizemos o pacto de morte? A gente já não se puniu que chega?
- Eu devia ter te matado naquele dia que você me contou que teve com ela na cama
em pensamento, Enzo, te matado.

- Prá que a gente se machucar tanto, mano, pra quê? Já não basta? Nós aqui tudo
estuporado, a Anita aí tratando da gente, meio manca, o derrame já não puniu ela
também?

- Será que ela tem nojo da gente, Enzo?

Um dia Anita não veio. No dia seguinte também não. Nem no outro, e no outro, e
no outro.

Era um dia de chuva forte, o aguaceiro que despencava lá do rancho da índia


Altina formava cachoeiras e riachos endoidecidos que se enrolavam nas raízes dos
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cedros e perobas, os troncos rangiam, se davam as mãos, iam ser arrancados da


terra, ah iam, a água tinha que levar tudo. Tropas de bugios urravam, aterradores,
no paredão verde-escuro embaçado e encharcado, o macuco piava, hordas de urus
gululavam, o jacu chorava, a araponga ferrava. O manto dos santos se despetalava,
aspergia de roxo o carreirão do veado campeiro. Os pingos afogavam a dor, as
lembranças, alcantis que machucavam, mais forte que a dor no joelho, derrame do
diabo! Paixão dobrada, um era loiro, olhos azuis, delicado, o outro forte, moreno,
decidido, macho, puxara o pai. Chove, água, chove, lava a minha dor desgraçada,
limpa a minha alma gangrenada. Desejo esbraseado, como controlar? A juventude
no meio das pernas, o diabo no corpo, calafrio de prazer, como controlar, meu
Deus? Bandos de tucanos se abrigavam debaixo das folhas de caviúna, o temporal
desabrido continuava. Como controlar, meu Deus? Por que não me ajudou na hora?
Esse mesmo Deus do temporal redentor, do cardume de tangarás se agitando,
dançando, voando nos galhos do pé-de-vaca, do cheiro da tangerina se açucarando
no chão chupado pelas cutias e quatis, por que não me ajudou naqueles dias de
desejo ensandecido?

- Lugar meu dos dois, lindo pra descansar pra sempre esse meu joelho com dor,
lugar do garapuvu, da embaúba, do manacá, do canto do trinca-ferro, da sabiá, do
curió, do azulão, do coleiro, do bico-de-pimenta. Vai embora, Pirata! Vai! Volta pra
tua casa, volta! Subida pesada, não vou muito longe, mas que as minhas pernas vão
ter que me levar até onde der vão. Coração grande, o médico disse, dobrou de
tamanho, quase nem cabe no peito. O derrame o culpado. Pior os dois lá no quarto
escuro, carne faltada. Sentar no chão, ouvir os passarinhos, me esconder debaixo
das pétalas ro xas. Vai, Pirata, vai neguinho, vai, volta pra tua casa.

Nota : João Guimarães Rosa nasceu para aprender em 1908 e


ficou encantado em 1967.
MARCEL PROUST ...SEMPRE !

Figura 1- Retrato de Marcel Proust tendo ao fundo


as páginas do manuscrito original da obra À La Recherche Du Temps Perdu escrita entre 1908-1909 e 1922,
publicada entre 1913 e 1927 em sete volumes, os três últimos postumamente.
As páginas originais da obra estão custodiadas pela Biblioteca Nacional da França.

Godofredo de Oliveira Neto

Vera Lúcia Lopes Dias


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MARCEL PROUST... SEMPRE !

Godofredo de Oliveira Neto

Vera Lúcia Lopes Dias

Le véritable voyage de découverte


ne consiste pas à chercher
de nouveaux paysages,
mais à avoir de nouveaux yeux.
(A verdadeira viagem da descoberta consiste
Não em achar novas paisagens,
Mas em ver com novos olhos.)

Marcel Proust

(Auteuil, 10/07/1871 – Paris, 18/09/1922)


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Figura 2 - Foto do original de No caminho de Swann, que completou no ano passado 104 anos, o
manuscrito de 1910 está custodiado pela Biblioteca Nacional da França:

Os 104 anos da publicação do primeiro volume do clássico “Em busca do


tempo perdido” (coleção de sete volumes), de Marcel Proust, vem sendo
festejado no mundo inteiro, no momento em que a autoficção é aplaudida no
meio artístico. “No caminho de Swann”, escrito em 1913, foi o livro que
inaugurou uma das obras mais importantes da literatura mundial. Nesse livro
há uma das mais famosas passagens da literatura, quando o narrador come
uma "madeleine" (tipo de bolinho) molhada no chá e vê sua consciência
mergulhar involuntariamente no passado. O escritor, nascido em Auteuil, nas
portas de Paris, em 1871, passou a sua infância na cidade de Illiers, lembrada
como Combray no texto ficcional, e morreu em Paris em 1922. O romance não
é uma autobiografia no sentido estrito. É um outro Marcel-narrador, ele próprio
personagem do livro. Parece que a presentificação trabalhada pelos autores
da literatura brasileira contemporânea - ignora-se o passado paradigmático e
a preocupação com o futuro é mínima - encontra abrigo na noção de tempo
proustiana. Aliás, diga-se, essa presentificação caracteriza toda a literatura
contemporânea ocidental. O jogo do romancista francês, com a narrativa
retrocedendo à infância e antecipando o futuro narrativo – denominado
tecnicamente analepse e prolepse, respectivamente -, acaba por criar um efeito
3

de onitemporalidade que agrada à filosofia artística destas décadas do século


XXI. Daí a volta com força de Marcel Proust ao cenário cultural.

A genialidade do escritor pode ser demonstrada apenas com essas duas


frases : "Cessara de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria
vindo aquela poderosa alegria?" . Foi dessa forma que Proust registrou o
momento de epifania que o faria reconstituir toda sua vida, desde a remota
infância até a maturidade.

Não é tarefa fácil resumir sobre o que o livro trata. Grosso modo, “Em busca
do tempo perdido” narra a vida de Marcel — o protagonista, cujo nome só é
citado duas vezes no romance — em seu percurso para se tornar escritor. Ao
longo da história, Proust apresenta reflexões sobre o amor, a arte, a passagem
do tempo, a homossexualidade. Uma de suas ideias mais originais, porém, é a
distinção entre memória voluntária e involuntária. Para Proust, não é possível
acessar o próprio passado por meio da inteligência. Só a memória involuntária,
disparada por algum elemento, é capaz de recuperá-lo. Daí a cena clássica da
madeleine. Ao mergulhar o doce numa xícara de chá e prová-lo, o protagonista
relembra toda a sua infância na cidade fictícia de Combray.

Passado tanto tempo de sua publicação, é incrível como o romance ainda


possua uma energia rejuvenescedora. Proust nos revela muito sobre a
experiência humana. Não há dúvida que ela continua sendo uma obra muito
moderna. Quem lê sempre reconhece, nos personagens, pessoas do seu
convívio ou a si mesmo .

Acresça-se, por óbvio, a genialidade do livro e a modernidade do texto, um


dos primeiros romances a praticamente prescindir de enredo. As emoções,
acompanhadas pela terrível sensação do tempo que se esvai mesclada à
nostalgia da infância e à inexorável chegada da velhice e da morte, estão
presentificadas no momento da enunciação. O narrador ouve os soluços que
segurava diante do pai e que se abriam diante da figura materna. Concomitante
ao desvanecer da vida, a infância volta ao presente com o badalar do sino do
convento, que abafa o ruído das ruas de dia num uníssono imobilizado, e
renasce no silêncio da noite. Nesse silêncio da vida que foge presentificam-se
as lembranças. O clima de certos trechos do “Em busca do tempo perdido”
lembram muito passagens do S. Bernardo, de Graciliano Ramos, que deve ter
lido Proust com paixão. Refiro-me no particular às lembranças do narrador
Paulo Honório , compelido a escrever ao ouvir o pio da coruja e os sinos. A
escuridão trazia-lhe imagens da esposa morta na fazenda São Bernardo. O pio
da coruja presentificava a imagem de Madalena. O tempo é reencontrado no
tempo da escritura. Tal em Proust.

Os analistas sublinham a passagem do romance do escritor francês em que


o pai ordena à esposa que “vá dormir com o pequeno”. Esta referência ao mito
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de Édipo tem, de fato, força excepcional no texto. Ouvir essa ordem paterna à
mãe maravilha o menino. O pai oferece o seu lugar à criança. Essa hora nunca
mais voltaria, mas a força da escritura a chama de volta encharcada pelo choro
e ninada pelos soluços. É no ângulo cego da nossa consciência onde desejo e
interdito digladiam que viceja a literatura. Dali o escritor francês dá início à sua
narrativa. A habilidade e constância em trabalhar as sinestesias, como reflexos
da vela, som dos soluços, o badalo do sino, ou o paladar aproxima a obra de
outras artes. A crítica compara o estilo de Proust ao Impressionismo nas artes
plásticas e na música. Proust nunca saiu, digamos, de moda. Nem poderia,
dada a sua excepcional qualidade artística. Mas retornou à cena na estética
pós-moderna com particular energia. Os nossos escritores contemporâneos
bem o sabem.

E concluindo esse artigo, vale a pena mencionar como Proust finaliza o


livro, comprovando a potência devoradora do Tempo, que põe a nu a
fragilidade da existência humana, no ponto justamente onde começa o do
narrador de Em Busca do Tempo Perdido:
Se ao menos me fosse concedido um prazo para terminar minha
obra eu não deixaria de lhe imprimir o cunho desse Tempo cuja
noção se me impunha hoje com tamanho vigor, e, ao risco de
fazê-los parecer monstruosos, mostraria os homens ocupando
no Tempo um lugar muito mais considerável do que o restrito a
eles no espaço, um lugar, ao contrário, desmesurado, pois, à
semelhança de gigantes, tocam simultaneamente, imersos nos
anos, todas as épocas de suas vidas, tão distantes - entre as
quais tantos dias cabem - no Tempo (PROUST, 2004, p. 292).

Proust viveu em um mundo acabado, no inicio do século 20, quando ainda


havia a extraordinária importância da arte, da pintura, música, literatura. Talvez
o maior êxtase de lermos Proust resida em nos lembrarmos de como era a
beleza, como era a esperança na arte. Decididamente é isso é o que no nosso
mundo atual conturbado, precisamos resgatar.
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Referências Bibliográficas

PROUST, Marcel. O tempo redescoberto. Trad. Lúcia Miguel Pereira. São Paulo: Globo, 2004

Figura 4 - Jacques-Emile Blanche:


Marcel Proust, 1892. Pintura a óleo exposta no Musee D'Orsay.
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PAGODE DAS CAGARRAS


por Godofredo de Oliveira Neto

Não que eu queira mudar de cara, isso não. Mas quero viver numa boa, sair em revistas,
essas coisas. O meu casamento com a Ditinha não apareceu em lugar nenhum, nem em jornal,
nem em revista, nem na televisão, nada. Por quê? Neguinho não gosta de carninha na grelha,
pagode, cerveja em copo de plástico? Nem do calor pendurado lá em cima na laje do barraco,
o sambinha comendo solto? Quem decide o que é feio e bonito, bom ou ruim, justo ou injusto,
ético ou imoral? A natureza ou os homens mesmos? Quem decide quem sai ou não na
televisão? Não pode bermuda, camiseta sem manga, chinelão, topezinho apertado, shortinho
rosa-choque marcadinho, é isso? Tá bem, não pode não pode. Desisto. Deve ter Deus andado
por aí. E ele já decidiu aquilo que eu disse há pouco. Tô com ele e não abro, ele deve saber
decidir o que é feio e o que é bonito. Mas ele tem que me mostrar, e é nessas bandas da
cidade que ele aparece mais, pelo menos parece.

- Mas aqui não dá, bicho, galerinha daqui não vai comprar a tua música nem comer o teu
churrasquinho na beira do calçadão olhando o mar de Ipanema, não vai, cara. Os moradores
iam chiar, e a polícia baixar o pau. E o teu passado é barra, cara, cai na real.

Oi, brodi! O que passou passou, tá? Eu sei que você sabe parte do meu passado, porque
eu mesmo te contei. Agora sou cantor. Acompanho a política. Tenho o 2º grau completo. A
coisa agora é da periferia pro centro, não do centro pra periferia. Aquela vez do
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acontecimento foi mal, tá certo, foi mal. Mas não morreu ninguém. O carro era pra mostrar
pra Ditinha, impressionar ela. Ela andava de olho grande pro Kenedi, lá do morro. O cara tinha
grana, ganhava fácil, vendia ilusão em saquinho, morou? Ele viveu pouco, o bando rival matou
ele como um cachorro.

Carro preto, vidro escurão, buzina estridente. A Ditinha quase caiu pra trás quando me
viu.

- De onde veio a grana, Oldinei? De onde?

- Tô economizando o dinheiro da lavação de vidro, Ditinha, pô, só isso. Hoje uma coroa no sinal
lá da Lagoa me deu 10 contos.

- E como é que tu ia conseguir tanto 10 contos assim pra comprar um carro desse, Oldinei! Tá
achando que eu sou otária?

Foi essa mais ou menos a resposta dela. Não funcionou. A Ditinha é mulher direita, a mãe é
religiosa. Me disseram que o que ela tinha com o Kenedi é só como ir no cinema ou ver a
novela. Olha o cara, acha bonito, mas é na tela. É só boniteza, mais nada. Não sei não. Mas
prefiro acreditar. No dia seguinte, de madrugada, devolvi o carro. Fiz do mesmo jeito que
peguei ele, só que agora ao contrário. Em vez de bater no vidro com arma de brinquedo e
dizer: "Perdeu, perdeu, passa o carro daí, tio, passa aí, perdeu" (o coroa saiu do carro naquela
vez todo perfumado, a mulher dele, parecia filha, li depois que era a mulher, toda cocotinha,
loura tipo Xuxa, saiu maneirinha pela outra porta. Entrei no carro, botei a primeira e saí
cantando pneus), imaginei, dessa vez, um cara tipo o Kenedi batendo com o revólver no vidro
e dizendo: "Sai daí rápido, xará, senão te apago". Abri a porta, saí mansinho, todo perfumado,
como o coroa. Usei o perfume que a Ditinha me deu pelo meu aniversário. Foi bem na porta
do prédio, o carro ficou estacionado bem de frente pra portaria onde o cara morava, na Delfim
Moreira, bem direitinho onde eu tinha roubado ele, eu era molecão ainda, como já te disse. E
ele, o dono do carro! De onde ele tirou o dinheiro pra comprar a Mercedes?

- Ele é um notório contrabandista, está preso em Miami, nos Estados Unidos. Pelo menos é o
que se comenta. Mas outros que têm dinheiro enriqueceram honestamente, aliás, como você
agora. Nem todo mundo é como o sujeito aí da Mercedes.

- Pois é! E ele fazia pagode na laje dele olhando pro mar?

- Não sei. Só sei que era conhecido por só usar roupas de grife, tinha 300 pares de sapatos
importados, era maníaco por roupas de marca, adorava sair nas colunas sociais. Li uma
matéria no jornal sobre ele.

- Então, é muito pior que eu. E por que as coisas que ele gostava eram as mesmas que saíam
nas revistas de moda?

Por que ele saía em tudo que é programa de TV? O que que ele tem de melhor que eu? Eu
roubei quando era adolescente, mas pelo menos me arrependi logo, 24 horas depois. A Ditinha
é fogo, mandona que só ela. Mudei de vida desde aquele dia, mudei para sempre. Mas o que
as minhas coisas têm que as revistas e os programas da televisão não gostam? Tem uma coisa:
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eu não sou bobo não, não mesmo! Não quero aparecer na televisão de esmola não. Não quero
sucesso postiço. Essa onda aí, de dizer que o que tá na moda é o que vem da periferia pra
dentro, tem que ser de verdade, e não só pra esvaziar a nossa cultura, se for de verdade,
beleza. Porque o pensamento já está viciado. Se alguém diz "aceito", é porque quem decide é
essa pessoa. É como o papo de descobrimento que a gente aprendeu na Escola Luiz Delfino, lá
embaixo do morro. Se os índios já estavam aqui, por que que fala descoberta? Quem
descobriu quem? Com a idéia de ser negro mesma coisa. Os negros, como eu, tinham uma
civilização toda prontinha e certinha lá na África. Pobre, mas certinha. O pessoal do
movimento já me explicou isso.Vieram pra cá na marra, obrigados. Não querem presente do
tipo: vou eleger vocês como os verdadeiros brasileiros. Isso a gente decide junto com os
brancos, que também vieram de fora, e com os índios, que já estavam aqui. Isso a gente decide
com todo mundo na paz e na fraternidade. O que eles falam de identidade cultural brasileira a
gente resolve o que é entre os que estão no jogo. Já aconteceu coisa com o meu primo que me
deixou prevenido. Ele tinha uns 18 anos, eu mais ou menos 15. Foi num bar lá no pé da Serra
de Petrópolis, a gente tomando vodca e cerveja.

- Boa-tarde - um deles disse. E logo perguntou: - Quem é o Kiko, aqui?

- Sou eu - respondeu o meu primo.

- A gente queria ver se discutia com você sobre a tua música, Kiko. Ela é a melhor que a gente
tem visto nesses últimos tempos. Nós somos de uma gravadora, e a gente trabalha com a
cultura negra, a nossa paixão e a nossa vida.

Os caras eram negros como nós. Mas com roupa da zona sul do Rio, tipo artista de novela
das 8. O Kiko ficou ainda mais negro de alegria, deu uma talagada só no copo de vodca, tomou
o restinho de uma cerveja direto no gargalo, e deixou sair um grito de alegria. Já levantou
abraçado com os caras. Hoje ele tá cada vez mais pobre, parou de compor, enganaram ele
bonitinho. E fizeram isso com mais uns dez caras lá da comunidade.

- Mas a tua música e os teus churrasquinhos o pessoal daqui do prédio não quer, Oldinei.

A minha música eu pego ela de tudo que é lugar, como quando a gente colava do caderno e
do livro no colégio no dia da prova. Boto letra que me trazem de revistas antigas, misturo
tudo, faço igual com a melodia. Copio sem parar, e sai essa aí que você ouviu ontem e que os
moradores reclamaram. Se fosse pintor de quadros imitava igualzinho e botava o meu nome
em baixo. Quem quiser que vá reclamar pra Deus. Ainda bem que, a meu ver, Deus não se
mete nessas coisas, tem mais o que fazer. Tenho certeza que a mãe da Ditinha concorda. E
churrasquinho, chinelão, camiseta cavada, copo de papel e cerveja gelada, topezinho e
shortinho eu gosto e pronto.

- Concordo com você, mas sabe como é. O condomínio tem regras, a cidade tem leis contra o
barulho e por aí vai.

As leis eu conheço também. Tem uma família que morava lá no lote, do lado da gente,
eram todos branquinhos que nem aquelas galinhas de granja que a gente vê na televisão. Eram
do interior aí de um estado. A família toda era artista. Um fazia bonequinhos de gesso, outro
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estátuas de madeira, outra desenhava, o pai tocava sanfona, a mãe acordeom, o mais novo era
poeta de cordel.

Um dia vieram uns caras parecidos com aqueles do Kiko. Só que eram brancos, terno
branco, sapato marrom brilhando, corrente de ouro. Enganaram a família prometendo
maravilhas para a filha mais nova, salário alto, roupas para todo mundo, cesta básica toda
semana e por aí afora. Mas na verdade a menina foi é trabalhar na noite em Copacabana. O
irmão mais velho descobriu. Ela fugiu. Voltou pra casa.

Uma tarde os sujeitos apareceram de novo. O irmão e mais dois primos deram uma surra
nos três caras, que não esperavam a reação. Eles ficaram, os três, de costela quebrada, um
perdeu todos os dentes da frente. O chefão da comunidade veio rapidinho dizer que a família
tinha que se mandar dali logo, porque um daqueles homens era autoridade e vinham matar
todos. E vieram mesmo, em carro oficial e tudo. Eu vi da minha janela. De noitinha, no dia
seguinte, chegaram sete homens armados que já entraram atirando no barraco. Viram que
tava vazio, e mesmo assim, não entendi bem por que, acho que era raiva, dispararam toda a
munição que tinham no chão e nas paredes da casinha. Móvel não tinha mais nenhum mesmo.
Até o vaso sanitário foi metralhado.

- Pois é, Oldinei! E nós, como é que ficamos quanto às reclamações dos moradores?

Reconheço que me chamar aqui pra sala de visita, me oferecer esse uisquinho, e me ouvir
todo esse tempo já faz de você um síndico diferente de tudo o que está aí. Eu é que pergunto
como é que a gente faz!

- Por ora acho que a gente pode e deve misturar tudo aqui, Oldinei, concorda? Música, bebida,
comida, chama o teu povo lá do teu apartamento pra descer, traz a grelha, vamos todos juntos
aproveitar essa vista da praia de Ipanema, e imaginar todo mundo lá nas Ilhas Cagarras num
grande pagode, o Pagode das Cagarras. Amanhã a gente vê o que faz.

Godofredo de Oliveira Neto é autor, entre outros livros, de Menino Oculto (Editora
Record, 2005)

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