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- E não deu para ver pelo menos a cor da camisa da pessoa, professor Fausto?
- Não, nem isso. Eu vinha pelo estradão de Pomerode cansado e com fome,
nem enxergava direito. Deixei os alunos no meio da aula de história. Precisava
dar um telefonema urgente na sala do diretor. Me lembro bem desse momento.
Falava sobre os conflitos do século XIX que contribuíram para a formação da
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Árvore símbolo de Florianópolis, colore de amarelo as montanhas da Ilha.
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A quaresmeira (Tibouchina granulosa) é uma árvore brasileira pioneira, da Mata Atlântica,
principalmente da floresta ombrófila densa da encosta atlântica. O nome popular Quaresmeira
vem do florescimento no período da quaresma. Os frutos são secos em forma de taça, marrom,
deiscente, com aproximadamente 1 cm de diâmetro, que ocorrem de abril a maio e de outubro
a novembro
nacionalidade e da identidade brasileiras, os alunos estavam interessados, são
do último ano do Ensino Médio. É claro, não podia deixar de falar no
Contestado. Eles não conheciam nada sobre o tema. No entanto, ali mesmo
pertinho passaram no início do século divisões do exército brasileiro e tropas
dos revoltosos liderados pelos monges. Um até me perguntou sobre as razões
por que o conflito não entrou para os compêndios oficiais. Comecei a explicar o
momento histórico, as dissensões do governo da época, a transição da
Monarquia para a República ainda fresca, o conflito religioso, a primeira guerra
mundial, o partido russo no exílio, a problemática fronteira com a Argentina, o
papel dos sindicatos ingleses, o embate entre socialismo e capitalismo se
insinuando no mundo e por aí afora. No final de uma dessas explicações, bem
na horinha do ponto final na frase, passou na estrada uma carroça puxada por
dois vistosos cavalos com antolhos. Iam céleres. Reconheci, era a carroça do
fabricante de queijos, ele ainda faz a entrega dos laticínios da sua fabriqueta
com a carroça do pai. Notei, com grande inquietação, um detalhe: o seu Walter
não estava na boléia. Como é que os dois cavalos podiam andar sozinhos, sem
cocheiro? Conheço bem o seu Walter e a sua família. Por isso pensei em
telefonar para a sua casa. Receei o mais grave. Seu Walter fulminado no
interior da carroça, ou caído num desses valões da beira da estrada. Ou talvez,
já mais otimista, imaginei os dois tordilhos arrancando de repente num
descuido do dono. E a partir desse momento não me lembro de mais nada,
nem como vim parar aqui na Federal em Florianópolis. Quando vi já estava no
campus da UFSC onde me graduei em História. Aliás minto, me lembro quando
estava atravessando a ponte Hercílio Luz, só não lembro se estava num carro
particular ou num ônibus.
- Você não andava pensando em tentar uma Pós? Foi o que me informaram. E
a ponte Hercílio Luz está fechada ao tráfego há tempos.
- Penso sim, mas de Pomerode até aqui alguém me trouxe. E quem foi ?
O Walter é que não, né professor Ademar ? E a ponte era aquela de concreto,
me enganei .Não, claro. O senhor chegou aqui na universidade a pé, entrou e
conversou comigo pedindo informações sobre as provas e falando de um
projeto sobre nacionalidade brasileira e identidade fragmentada. Foi embora de
repente e agora voltou.
- É, sempre pensei nisso , está na moda. Pois é, louco então o senhor não é!
-Por quê?
-Pode, claro.
Quando eu estava ali perto do mourão, acho que era na estrada que liga
Timbó a Pomerode, imaginei estar num barco a seco andando por terras nunca
navegadas. Vi o barco sem comandante voando por sobre cidades e vales, por
sobre rios e plantações, por sobre montanhas com bananais viçosos, por sobre
várzeas povoadas de frangos-d’água3 fugidios driblando hastes verdejantes de
arrozais ventosos, por sobre pastos mugidos por holandesas passivas, por
sobre milharais sobrevoados por tirivas4 ruidosas, por sobre chaminés
soberbas abrindo portas para operários gargalhantes saindo de teares
disciplinados. O mar de Florianópolis acolheu dali de cima da ponte o barco
alado tal a carroça sem cocheiro, deu-lhe direção com perfume de tainha
escalada . Imaginei que você poderiam me receber e entender.
- Polícia não, eu sei muito bem. Mas se eu encontrar o seu Walter talvez eu me
encontre.
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O frango-d'água-comum é uma ave gruiforme da família Rallidae. Ave aquática das mais
comuns em várias partes do Brasil, escasseia na floresta Amazônica e, surpreendentemente,
não é muito frequente no Pantanal. Conhecido também como galinhola (Rio Grande do Sul),
jaçanã-galo (Nordeste), peituda (Rio de Janeiro) e galinha-d'água. Antigamente denominado
Gallinula chloropus.
4 é um género de aves da Ordem Psittaciformes e da Família Psittacidae, classificadas em 23
espécies de tiriba ou tiriva. São exclusivas da América do Sul, onde habitam zonas florestais.
Na cidade, vive apenas em áreas verdes grandes e com mata atlântica, mesmo que alterada.
DISFORMES
Por nada. Queria apenas saber onde posso me procurar um saquinho de milho
para dar aos pombos.
Se escrever recupera.
A sensação de liberdade?
Dar conta do real não dá, mas vai desbravando, tentando, tateando,
força bruta, lapidação indagada, queda, depressão, volta, retrabalho, assim,
quente, como o sangue estuante bombado sem parar. Escrever só a partir de
leituras, escrituras de autores, a biblioteca universal.
Escreve então.
Voa.
FILA SEM-BAGAGEM
Godofredo de Oliveira Neto
Que ela não gostava de café pela manhã eu sabia, de manhã só gosto de
chocolate frio, o café me dá gastrite, ela resmungava. O que eu não sabia é
que durante o dia se entupia de cafezinho no escritório de arquitetura, não
que eu goste, é que o cafezinho me ajuda a passar o tempo entre
pranchetas, réguas e lápis. Descobri, ainda, que ela não gostava de nada
sobre o corpo na hora de dormir, curto dormir nua, até no inverno de Nova
York ou de Paris durmo pelada embaixo dos cobertores. E, finalmente, eu
conhecia de cor e salteado um grande número de palavras e expressões que
saíam daqueles lábios carnudos de atriz de cinema italiano, provavelmente
úmidos nos momentos de prazer, os pés batendo na parede, a cama
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retive a porta do elevador para a minha vizinha. O meu “Até logo" e “Até
amanhã" ecoou no corredor e em parte, mas em ínfima parte, na boca de
Roberta. Ouvi só um amanhã, bem baixinho. Naquela noite a agitação
costumeira voltou. Lá pelas onze tocou a campainha, os três outros homens
acho que bateram na porta, eu não tinha ouvido. O sujeito agora falava de
gado, de defensivos agrícolas, peões, venda de plantel de nelore, especificou
que ia ficar dois dias no Rio, voltava em seguida para Barretos. A cena deve
ter sido de rodeio mesmo, tipo fala peão. Acho que Roberta foi literalmente
montada, ela parecia mugir, um dos dois dava coices na parede, alguém
estava de botas com salto, "Vem meu peão boiadeiro, toca essa viola,
corcoveia seu danado, passa o chicote nesse teu animal, passa, galopa, isso,
galopa, sopra esse berrante, eu sou do estilo de mulher que só gosta desse
tipo de homens, quero viver sempre com alguém do mundo rural". Eu, ali no
meu quarto, ao lado da cama de Roberta, senti cheiro de terra e de vaca.
Acho que o cheiro vinha, na verdade, da terra do vaso da palmeirinha da
sala. Também como das outras vezes, a doma durou até alta madrugada. Tive
a impressão que dessa vez Roberta gostou ainda mais. Então caprichei pra
valer. Comprei, na rua Uruguaiana, um traje country. No início o vendedor,
seguindo as minhas explicações, queria me vender um traje de gaúcho, dizia
não conhecer bem as roupas dos peões de Barretos. Roupa de gaúcho
também não dava! Bombacha etc., não, tenha dó! Acabou sendo um jeans
bem apertado, botas de couro, uma camisa com botões de madrepérola e um
cinto com enorme fivela. Segui a mesma liturgia. Volta para casa, troca de
roupa, olhar malicioso e galhofeiro do porteiro, pizzaria, olhos indagativos
do garçom. Roberta se atrasou. Chegou eram quase dez horas. Estava
vestida com roupas chiquíssimas, um tailleur cinza com blusa de seda
branca, sapato alto, colar de pérolas, brincos combinando com o colar, os
cabelos pareciam mais curtos. Olhou para mim e cumprimentou, com
educação, "Boa-noite, senhor, como tem passado?" Respondi apenas "Bem".
A fivela me apertava a barriga, as calças enfiadas dentro das botas
esquentavam as pernas, só faltava mesmo o chapéu que, por sorte, não
vendiam na loja da rua Uruguaiana. Pensei em voltar para a rua, fugir.
Roberta segurava uma pequena bolsa de couro, reparei nos anéis. O elevador
chegou. Não dava mais para ir embora. Ela abriu a porta. Passe, senhor, por
favor. Entrei. O salto das botas fez tremer a porta pantográfica. Roberta
me seguiu e apertou o nº 6. Éramos só nós naquele cubículo. Não tive
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um conto de
Godofredo de Oliveira Neto
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É claro que se deslocar assim para uma grande capital européia em busca
de um fetiche não era coisa trivial. Mas o cheiro do seu suor valia o esforço (
sem falar daqueles olhos!).Ela traga a gente, desfibra nossos sentimentos, dela
poreja sempre uma lascívia desvairada.
os olhos azulados saindo das órbitas, a camiseta com dizeres pedindo paz e
arte no mundo, os gritos de bravo, a letra de cada música sabida de cor e
salteado, me contava Giuseppe, relembrando da juventude. Teria sido John
Lennon o primeiro a tomar a iniciativa, continuava narrando Cristiane, os olhos
verdes arregalados. Ele escreveu no centro do LP do fã pacifista com a
camiseta vermelha uma dedicatória com frases derramadas e românticas
endereçadas ao jovem. Ringo Starr, Paul McCartney e George Harrison
também assinaram embaixo. Giuseppe endoidou naquele dia, e acho que não
parou mais, avaliou Cristiane, apertando o meu antebraço na tarde em que
narrou a sua aventura. O cara ouvia a faixa Help umas trinta vezes por dia,
anos a fio. O disco original autografado ele deixou bem guardadinho no
armário. Help, I need somebody,Help. Not just anybody,Help, you know I need
someone, help! A música mexe comigo lá dentro até hoje, entende Alexandre?,
é maravilhosa, não me sai da cabeça desde o primeiro encontro com o
Giuseppe, quando ele me contou a sua história. Giuseppe comprou um CD dos
Beatles em Copacabana com as mesmas músicas do seu disco e deixava tocar o
dia inteiro.Como você e eu também ouvimos no computador, Alexandre. E agora
que você me arrancou dessa vida, tenho certeza de que a gente tem que
comprar o álbum do Giuseppe, e não é porque estou grávida, não. Não se trata
desses desejinhos idiotas não. Era como um presságio, Alexandre. Foi a música
que mudou a minha vida. Agora a gente vai casar, vou terminar a faculdade de
Nova Iguaçu, pedir transferência aqui mais para perto, e a Mariana vem por aí.
Na quarta viagem ao Rio o Giuseppe trouxe o LP de vinil autografado pelos
quatro Beatles para vender no Brasil. Fui com ele a um antiquário na rua do
Lavradio. O que eles ofereceram dava para pagar dez viagens Roma-Rio-Roma
com hotel em Ipanema . Mas convenci ele a não vender. Já era o destino! Ele
acabou voltando com o disco para a Itália. Os euros que tinha davam para
pagar o hotelzinho de quinta na Lapa, onde se hospedou. O problema é que o
turismo sexual do Giuseppe se transformou em amor verdadeiro logo no
primeiro encontro. E por quem? Por mim, óbvio!!!
Sentir-se culpado? Claro, ele comentava a situação sem parar, ainda mais
por conta da minha idade. Ciúmes? Loucos!!! Vontade de me levar para a Itália?
Falava disso todos os dias! Quando me conheceu pela primeira vez, em 2009,
eu tinha dezenove anos, nos encontramos mais três anos seguidos, ele vinha só
para me ver. Eu já era maior de idade mas mentia dizendo ser menor. Isso
atiçava o desejo dos turistas; ele também embarcou nessa canoa, mas não
esperava o véu do sentimento escorrer peito adentro ( Cristiane não raro
deixava escapar imagens melosas quando me contava histórias, como essa do
véu). Festejamos a minha “ maioridade” no segundo ano, num restaurante do
Leblon. Ainda agora tem muito marmanjo por aí que acha que eu sou menor,
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Alexandre, você sabe muito bem disso. E acabo curtindo a coisa. Tua irmã diz
para todo mundo que eu tenho complexo de Peter Pan, quando a Mariana nascer
vou me encarar. Mas foram os acordes do “ socorro! Eu preciso de alguém” do
Help que me tiraram da depressão, me fizeram te encontrar , Alexandre,
descobrir o que é o sentimento amoroso. Os e-mails do Giuseppe são diários,
“Help” também fez ele conhecer o amor na velhice – ele nunca casou -, diz
guardar o álbum como se fosse um objeto santificado, que vai me esperar para
sempre, que no ano que vem vai voltar. Já enviei mil mensagens comunicando
ter mudado de vida, ter um noivo, dei até o teu nome: Alexandre. Troquei o
número dos telefones por causa disso, ele passou a me ligar diariamente após a
instalação de um sistema para telefonemas a custo zero.
O hotel reservado pela Cristiane via internet, perto da tal Via dei
Giubbonari, era caidinho, com uma escada interna de madeira toda torta, a
ranger a cada pisada da gente nos degraus carcomidos. Eu estava ali só por
poucos dias, mas veio de novo a pergunta: Pô! Não é um puro capricho dela?
Para que toda essa trabalheira e toda essa grana jogada fora? Superstições da
Cristiane? Crendices? Não é muita encenação e investimento para pouco
retorno? O que que eu estava fazendo ali, Dio Santo?
tinha me dado todos os detalhes. Vestia camiseta branca sem mangas, os pêlos
das costa, já brancos, rendilhando a costura da malha, um jeans surrado, com a
marca Lee à vista. Calçava tênis com cores verde e amarelo berrantes. Levava
o Brasil nos pés.
Ele deu uns passos para trás, voltou, chegou mais perto de onde eu estava
plantado, examinou a minha roupa ( é a impressão que tive), recuou de novo,
mexeu em alguns livros, falou no celular. Será que o celular pegava mesmo ali
dentro? Pensei no meu no bolso do paletó, mas, pô!, outra encenação, fingir que
o aparelho estava vibrando? Giuseppe desligou, voltou a examinar uns papeis.
Esquecera da minha presença? Olhei os detalhes da loja. Parecia uma enorme
cave para vinhos, de teto baixo, as pedras cobertas por cartazes dos anos 60.
À direita de quem entrava na loja sobressaía uma foto enorme do Lennon
tocando guitarra. Um cartaz , à esquerda, exibia a praia de Copacabana
ensolarada, as vagas pétreas do calçadão provocando uma ondulação que te
carregava junto. Focos cintilantes recamavam o verdeio das ondas. Vontade de
mergulhar no Rio de Janeiro e sair daquela situação bizarra. O que eu devia
fazer? Repetir a frase inicial? Ir embora? Será que esse Giuseppe não é meio
pirado? Há quanto tempo eu estava ali , imagem congelada de medo e de
estupefação? Em alguma daquelas pilhas de discos estaria o LP autografado?
Não. Claro que não. A Cristiane disse que o álbum original está bem
guardadinho num armário de casa!
- A Cristiane será minha esposa em breve, e está grávida, teremos uma filha
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ainda neste ano, insisti. Quer falar com ela no celular? Perguntei exibindo o
aparelho prateado.
Ele chegou ainda mais perto de mim, senti no pescoço o ventinho saindo de
suas narinas . Um hálito de álcool me lambuzou a cara. Procurei os olhos
azulados do jovem fan por trás das grossas lentes dos óculos. Pensamentos
lúgubres. De morte? De destruição? Ou simples dor saída do recôndito do
peito estorvado? Da inveja estúpida? O que estaria sentindo aquele senhor?
- Quer mesmo o Help? Então troco o bolachão pela Cristiane, ele gritou, me
encarando, o sotaque ainda mais acentuado.
Voltei sem o disco. Mas com a grana. Restituí o dinheiro devido, rompi
definitivamente com a “ velha gata”( sei que já devia ter rompido antes, não
sou santo, como disse há pouco), e a Cristiane sossegou.Considerou ter feito o
possível. Pagou assim a sua penitência, como gosta de repetir. Sempre achei
que, para ela, a minha ida à Roma foi uma maneira de devolver dinheiro ao
italiano . Para Cristiane, Giuseppe entendeu. Pelo menos o teor do último e-mail
era de despedida, segundo ela.
Era dali um pulo. Mais de oitocentos metros subindo num nada de tempo
pra quem consegue. Da velha estação de trem de Subida até o pé da serra de
Ibirama não conta, ali é um retão no plano. O negócio difícil é trepar no perau e
chegar até lá em cima, em linha reta, pro alto, no carreiro do veado campeiro. Só
consegue subir num dia claro inteiro cachorro paqueiro ou veadeiro dos bons. Gente
tem que fazer em duas vezes. Dormir de noite na metade do caminho, aninhado
embaixo da maçaranduba. E dizer que olhando assim, daqui de baixo, é um pulo! A
vista é uma belezura. Mato fechado, montanhão dos grandes, borras amarelas do
garapuvu espalhadas sobre o verde escuro, já os últimos a respirar, que dali pra
cima não tem mais; do montão lá das praias de Florianópolis , vai diminuindo,
diminuindo, diminuindo até se acabar de vez vale do Itajaí adentro. De manhãzinha
o paredão de verdura é navalhado pelo prateado do avesso das folhas da embaúba.
Parecem lágrimas de colombina. Mas esse quadro se enformosa mesmo é com as
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quaresmeiras, o roxo ganhando tudo, santos e mais santos velando pela gente
abrigados sob as pétalas sagradas. O colorido todo da serra da Subida parece que
ganha ainda mais contorno com o canto da sabiá- laranjeira e do trinca-ferro
ecoando no tronco da sassafrás e da canela-preta. O palmiteiro bota cabelo na
paisagem e enche o bucho dos tucaniços e das tirivas, a revoada buliçosa quase leva
a gente pros céus. E essa beleza toda trouxe o mal!
Não demorou muito começou a aparecer no corpo dos dois um tipo de mancha
escura. Ênio e Enzo tinham então vinte e poucos anos, moravam sozinhos, órfãos,
exímios trabalhadores de lenho. Um resto da família morava em São Paulo. Eles se
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trancaram nos seus quartos a partir daquele dia. Escuridão danada, mas parceira,
proteção contra escárnio zombado e olhados olhos curiosos. A casa era toda de
madeira, ficava mais para o pé da serra. O vilarejo foi crescendo em volta da
moradia abandonada dos Konvascatto, pintada de branco, portas e venezianas
verdes. Uma pequena fábrica de tecidos se instalou perto, um boteco, uma
mercearia. Só a casa dos irmãos marceneiros foi ficando para trás, nem luz
elétrica tinha. Casa do lar adocidado pela promessa mentira do Decho atiçador; do
pão de milho e da polenta abundante escasseada na migalha de uma alma caridosa.
Todos os dias, uma alma bondosa trazia comida para os dois irmãos. Afagava antes
a cabeça do Pirata, mestiço de setter irlandês com pastor alemão, cachorro
passarinheiro, lambedor, afetuoso, focinheiro, mexe-rabo, daqueles que parece que
sorriem pra gente. Cachorro do céu sempre a dizer tudo vai melhorar, tudo vai
melhorar, tudo vai melhorar com latidos ganidos lá do fundo da alma, guardião dos
anjos. Às vezes Pirata voltava com ela. A alma caridosa trazia junto um rádio
grande, a bateria, e, alguns dias da semana, uma televisão portátil, com a marca
Sony escrito em letras enormes. Ligava o rádio e sentava na sala com as venezianas
permanentemente fechadas. Sintonizava no programa “ Itália brasileira, brasileira
Itália”.
- Olha aí galera, aqui fala do morro da Caixa de Rio do Sul, é funk, brodi, pra baixo,
pra cima, pra baixo, pra cima, mexe, mexe, mexe, prá cima, prá baixo.
O programa começava às nove, a alma bondosa às vezes chegava mais cedo, dez
quinze para as nove, por isso pegava um pedacinho da emissão de funk da rádio de
Rio do Sul. Quando vinha a televisão, o programa era sempre policial, com cenas ao
vivo.
- Negão já tá na caçapa da viatura da Rota. E aí, delegado, o que que ele fez?
- O meliante é assassino. Mas matou por paixão, o que dá pena na gente é que crime
passional é moleza pra advogado tirar da cadeia.
Os olhos dos dois leprosos brilhavam com o reflexo da imagem televisiva. O médico
tinha garantido, na única visita que alguém fez aos Konvascatto, que a lepra não ia
evoluir. Só que, quando Ênio e Enzo receberam a visita do doutor, já tinha parte do
corpo deles que deixava ver os ossos. Dos grandes, dos pequenos, de todo tipo,
dependendo da parte da carcaça. Ossada valente e pura carregando, silente, o
manto a se esgarçar, deixando o vento a entrar, o pó a provocar juntas e rótulas,
tendões e nervos, a pele a queimar. Todos da cidadezinha se pelavam de medo
daquela casa sombria. Ninguém ia lá. Sempre se dizia que os irmãos marceneiros
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iam morrer logo, mas muito nego já se foi e eles continuavam ali, vivinhos, na casa
branca de venezianas verdes. Foi numa das emissões sobre crime passional que a
conversa veio de novo, depois de anos adormecida.
- Não tive culpa, Ênio, só aconteceu uma vez, e só em pensamento, juro mano, juro.
Das outras vezes era só paixão, sem encontro de corpo. É que naquele dia ela deu
uma olhada diferente pra mim antes de entrar no quarto com você.
- Mas você sempre gostou dela!
- Anita era mulher faceira e dissimulada, Ênio, só isso, e bonita que só, com aqueles
olhos esverdeados de gato-do-mato tragando a gente de viés. E tinha como um
feitiço. Eu via ela com você, você sempre teve as mulheres que quis, eu não, mano,
eu não.
- Mas quando ela me deixou pra pegar aquele riquinho de carro bonito você ficou
triste por ela ou por mim? Fala logo, mano, fala.
- Por ela.
- Pra que voltar tudo isso de novo, Ênio? Pra quê? A gente já não tá acabado? Já
não fizemos o pacto de morte? A gente já não se puniu que chega?
- Eu devia ter te matado naquele dia que você me contou que teve com ela na cama
em pensamento, Enzo, te matado.
- Prá que a gente se machucar tanto, mano, pra quê? Já não basta? Nós aqui tudo
estuporado, a Anita aí tratando da gente, meio manca, o derrame já não puniu ela
também?
Um dia Anita não veio. No dia seguinte também não. Nem no outro, e no outro, e
no outro.
- Lugar meu dos dois, lindo pra descansar pra sempre esse meu joelho com dor,
lugar do garapuvu, da embaúba, do manacá, do canto do trinca-ferro, da sabiá, do
curió, do azulão, do coleiro, do bico-de-pimenta. Vai embora, Pirata! Vai! Volta pra
tua casa, volta! Subida pesada, não vou muito longe, mas que as minhas pernas vão
ter que me levar até onde der vão. Coração grande, o médico disse, dobrou de
tamanho, quase nem cabe no peito. O derrame o culpado. Pior os dois lá no quarto
escuro, carne faltada. Sentar no chão, ouvir os passarinhos, me esconder debaixo
das pétalas ro xas. Vai, Pirata, vai neguinho, vai, volta pra tua casa.
Marcel Proust
Figura 2 - Foto do original de No caminho de Swann, que completou no ano passado 104 anos, o
manuscrito de 1910 está custodiado pela Biblioteca Nacional da França:
Não é tarefa fácil resumir sobre o que o livro trata. Grosso modo, “Em busca
do tempo perdido” narra a vida de Marcel — o protagonista, cujo nome só é
citado duas vezes no romance — em seu percurso para se tornar escritor. Ao
longo da história, Proust apresenta reflexões sobre o amor, a arte, a passagem
do tempo, a homossexualidade. Uma de suas ideias mais originais, porém, é a
distinção entre memória voluntária e involuntária. Para Proust, não é possível
acessar o próprio passado por meio da inteligência. Só a memória involuntária,
disparada por algum elemento, é capaz de recuperá-lo. Daí a cena clássica da
madeleine. Ao mergulhar o doce numa xícara de chá e prová-lo, o protagonista
relembra toda a sua infância na cidade fictícia de Combray.
de Édipo tem, de fato, força excepcional no texto. Ouvir essa ordem paterna à
mãe maravilha o menino. O pai oferece o seu lugar à criança. Essa hora nunca
mais voltaria, mas a força da escritura a chama de volta encharcada pelo choro
e ninada pelos soluços. É no ângulo cego da nossa consciência onde desejo e
interdito digladiam que viceja a literatura. Dali o escritor francês dá início à sua
narrativa. A habilidade e constância em trabalhar as sinestesias, como reflexos
da vela, som dos soluços, o badalo do sino, ou o paladar aproxima a obra de
outras artes. A crítica compara o estilo de Proust ao Impressionismo nas artes
plásticas e na música. Proust nunca saiu, digamos, de moda. Nem poderia,
dada a sua excepcional qualidade artística. Mas retornou à cena na estética
pós-moderna com particular energia. Os nossos escritores contemporâneos
bem o sabem.
Referências Bibliográficas
PROUST, Marcel. O tempo redescoberto. Trad. Lúcia Miguel Pereira. São Paulo: Globo, 2004
Não que eu queira mudar de cara, isso não. Mas quero viver numa boa, sair em revistas,
essas coisas. O meu casamento com a Ditinha não apareceu em lugar nenhum, nem em jornal,
nem em revista, nem na televisão, nada. Por quê? Neguinho não gosta de carninha na grelha,
pagode, cerveja em copo de plástico? Nem do calor pendurado lá em cima na laje do barraco,
o sambinha comendo solto? Quem decide o que é feio e bonito, bom ou ruim, justo ou injusto,
ético ou imoral? A natureza ou os homens mesmos? Quem decide quem sai ou não na
televisão? Não pode bermuda, camiseta sem manga, chinelão, topezinho apertado, shortinho
rosa-choque marcadinho, é isso? Tá bem, não pode não pode. Desisto. Deve ter Deus andado
por aí. E ele já decidiu aquilo que eu disse há pouco. Tô com ele e não abro, ele deve saber
decidir o que é feio e o que é bonito. Mas ele tem que me mostrar, e é nessas bandas da
cidade que ele aparece mais, pelo menos parece.
- Mas aqui não dá, bicho, galerinha daqui não vai comprar a tua música nem comer o teu
churrasquinho na beira do calçadão olhando o mar de Ipanema, não vai, cara. Os moradores
iam chiar, e a polícia baixar o pau. E o teu passado é barra, cara, cai na real.
Oi, brodi! O que passou passou, tá? Eu sei que você sabe parte do meu passado, porque
eu mesmo te contei. Agora sou cantor. Acompanho a política. Tenho o 2º grau completo. A
coisa agora é da periferia pro centro, não do centro pra periferia. Aquela vez do
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acontecimento foi mal, tá certo, foi mal. Mas não morreu ninguém. O carro era pra mostrar
pra Ditinha, impressionar ela. Ela andava de olho grande pro Kenedi, lá do morro. O cara tinha
grana, ganhava fácil, vendia ilusão em saquinho, morou? Ele viveu pouco, o bando rival matou
ele como um cachorro.
Carro preto, vidro escurão, buzina estridente. A Ditinha quase caiu pra trás quando me
viu.
- Tô economizando o dinheiro da lavação de vidro, Ditinha, pô, só isso. Hoje uma coroa no sinal
lá da Lagoa me deu 10 contos.
- E como é que tu ia conseguir tanto 10 contos assim pra comprar um carro desse, Oldinei! Tá
achando que eu sou otária?
Foi essa mais ou menos a resposta dela. Não funcionou. A Ditinha é mulher direita, a mãe é
religiosa. Me disseram que o que ela tinha com o Kenedi é só como ir no cinema ou ver a
novela. Olha o cara, acha bonito, mas é na tela. É só boniteza, mais nada. Não sei não. Mas
prefiro acreditar. No dia seguinte, de madrugada, devolvi o carro. Fiz do mesmo jeito que
peguei ele, só que agora ao contrário. Em vez de bater no vidro com arma de brinquedo e
dizer: "Perdeu, perdeu, passa o carro daí, tio, passa aí, perdeu" (o coroa saiu do carro naquela
vez todo perfumado, a mulher dele, parecia filha, li depois que era a mulher, toda cocotinha,
loura tipo Xuxa, saiu maneirinha pela outra porta. Entrei no carro, botei a primeira e saí
cantando pneus), imaginei, dessa vez, um cara tipo o Kenedi batendo com o revólver no vidro
e dizendo: "Sai daí rápido, xará, senão te apago". Abri a porta, saí mansinho, todo perfumado,
como o coroa. Usei o perfume que a Ditinha me deu pelo meu aniversário. Foi bem na porta
do prédio, o carro ficou estacionado bem de frente pra portaria onde o cara morava, na Delfim
Moreira, bem direitinho onde eu tinha roubado ele, eu era molecão ainda, como já te disse. E
ele, o dono do carro! De onde ele tirou o dinheiro pra comprar a Mercedes?
- Ele é um notório contrabandista, está preso em Miami, nos Estados Unidos. Pelo menos é o
que se comenta. Mas outros que têm dinheiro enriqueceram honestamente, aliás, como você
agora. Nem todo mundo é como o sujeito aí da Mercedes.
- Não sei. Só sei que era conhecido por só usar roupas de grife, tinha 300 pares de sapatos
importados, era maníaco por roupas de marca, adorava sair nas colunas sociais. Li uma
matéria no jornal sobre ele.
- Então, é muito pior que eu. E por que as coisas que ele gostava eram as mesmas que saíam
nas revistas de moda?
Por que ele saía em tudo que é programa de TV? O que que ele tem de melhor que eu? Eu
roubei quando era adolescente, mas pelo menos me arrependi logo, 24 horas depois. A Ditinha
é fogo, mandona que só ela. Mudei de vida desde aquele dia, mudei para sempre. Mas o que
as minhas coisas têm que as revistas e os programas da televisão não gostam? Tem uma coisa:
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eu não sou bobo não, não mesmo! Não quero aparecer na televisão de esmola não. Não quero
sucesso postiço. Essa onda aí, de dizer que o que tá na moda é o que vem da periferia pra
dentro, tem que ser de verdade, e não só pra esvaziar a nossa cultura, se for de verdade,
beleza. Porque o pensamento já está viciado. Se alguém diz "aceito", é porque quem decide é
essa pessoa. É como o papo de descobrimento que a gente aprendeu na Escola Luiz Delfino, lá
embaixo do morro. Se os índios já estavam aqui, por que que fala descoberta? Quem
descobriu quem? Com a idéia de ser negro mesma coisa. Os negros, como eu, tinham uma
civilização toda prontinha e certinha lá na África. Pobre, mas certinha. O pessoal do
movimento já me explicou isso.Vieram pra cá na marra, obrigados. Não querem presente do
tipo: vou eleger vocês como os verdadeiros brasileiros. Isso a gente decide junto com os
brancos, que também vieram de fora, e com os índios, que já estavam aqui. Isso a gente decide
com todo mundo na paz e na fraternidade. O que eles falam de identidade cultural brasileira a
gente resolve o que é entre os que estão no jogo. Já aconteceu coisa com o meu primo que me
deixou prevenido. Ele tinha uns 18 anos, eu mais ou menos 15. Foi num bar lá no pé da Serra
de Petrópolis, a gente tomando vodca e cerveja.
- A gente queria ver se discutia com você sobre a tua música, Kiko. Ela é a melhor que a gente
tem visto nesses últimos tempos. Nós somos de uma gravadora, e a gente trabalha com a
cultura negra, a nossa paixão e a nossa vida.
Os caras eram negros como nós. Mas com roupa da zona sul do Rio, tipo artista de novela
das 8. O Kiko ficou ainda mais negro de alegria, deu uma talagada só no copo de vodca, tomou
o restinho de uma cerveja direto no gargalo, e deixou sair um grito de alegria. Já levantou
abraçado com os caras. Hoje ele tá cada vez mais pobre, parou de compor, enganaram ele
bonitinho. E fizeram isso com mais uns dez caras lá da comunidade.
- Mas a tua música e os teus churrasquinhos o pessoal daqui do prédio não quer, Oldinei.
A minha música eu pego ela de tudo que é lugar, como quando a gente colava do caderno e
do livro no colégio no dia da prova. Boto letra que me trazem de revistas antigas, misturo
tudo, faço igual com a melodia. Copio sem parar, e sai essa aí que você ouviu ontem e que os
moradores reclamaram. Se fosse pintor de quadros imitava igualzinho e botava o meu nome
em baixo. Quem quiser que vá reclamar pra Deus. Ainda bem que, a meu ver, Deus não se
mete nessas coisas, tem mais o que fazer. Tenho certeza que a mãe da Ditinha concorda. E
churrasquinho, chinelão, camiseta cavada, copo de papel e cerveja gelada, topezinho e
shortinho eu gosto e pronto.
- Concordo com você, mas sabe como é. O condomínio tem regras, a cidade tem leis contra o
barulho e por aí vai.
As leis eu conheço também. Tem uma família que morava lá no lote, do lado da gente,
eram todos branquinhos que nem aquelas galinhas de granja que a gente vê na televisão. Eram
do interior aí de um estado. A família toda era artista. Um fazia bonequinhos de gesso, outro
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estátuas de madeira, outra desenhava, o pai tocava sanfona, a mãe acordeom, o mais novo era
poeta de cordel.
Um dia vieram uns caras parecidos com aqueles do Kiko. Só que eram brancos, terno
branco, sapato marrom brilhando, corrente de ouro. Enganaram a família prometendo
maravilhas para a filha mais nova, salário alto, roupas para todo mundo, cesta básica toda
semana e por aí afora. Mas na verdade a menina foi é trabalhar na noite em Copacabana. O
irmão mais velho descobriu. Ela fugiu. Voltou pra casa.
Uma tarde os sujeitos apareceram de novo. O irmão e mais dois primos deram uma surra
nos três caras, que não esperavam a reação. Eles ficaram, os três, de costela quebrada, um
perdeu todos os dentes da frente. O chefão da comunidade veio rapidinho dizer que a família
tinha que se mandar dali logo, porque um daqueles homens era autoridade e vinham matar
todos. E vieram mesmo, em carro oficial e tudo. Eu vi da minha janela. De noitinha, no dia
seguinte, chegaram sete homens armados que já entraram atirando no barraco. Viram que
tava vazio, e mesmo assim, não entendi bem por que, acho que era raiva, dispararam toda a
munição que tinham no chão e nas paredes da casinha. Móvel não tinha mais nenhum mesmo.
Até o vaso sanitário foi metralhado.
- Pois é, Oldinei! E nós, como é que ficamos quanto às reclamações dos moradores?
Reconheço que me chamar aqui pra sala de visita, me oferecer esse uisquinho, e me ouvir
todo esse tempo já faz de você um síndico diferente de tudo o que está aí. Eu é que pergunto
como é que a gente faz!
- Por ora acho que a gente pode e deve misturar tudo aqui, Oldinei, concorda? Música, bebida,
comida, chama o teu povo lá do teu apartamento pra descer, traz a grelha, vamos todos juntos
aproveitar essa vista da praia de Ipanema, e imaginar todo mundo lá nas Ilhas Cagarras num
grande pagode, o Pagode das Cagarras. Amanhã a gente vê o que faz.
Godofredo de Oliveira Neto é autor, entre outros livros, de Menino Oculto (Editora
Record, 2005)