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Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes,


pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera
coincidência.

Esta é uma publicação independente, com devido registro na


Biblioteca Nacional (BN).

Todos os direitos são reservados. Proibida a reprodução,


armazenamento ou transmissão das partes desse livro através de
quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

1º impressão - 2020.

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Para meu amado esposo e filhos, pais e
irmãos os quais amo e jamais quero
esquecer.

3
4
Eu e ele. Ela e nós. Família. “Deus, não me deixe
esquecê-los” - orei em silêncio.

ONDE ESTÃO
MINHAS MEMÓRIAS?

“Lembra-te da minha
aflição e do meu pranto, do
absinto e do veneno. Minha
alma, continuamente, os
recorda e se abate dentro de
mim”. (Lamentações 3.19-
20)

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Elean Mara Brandão

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Prólogo

Ele estava lá, me olhando. Não consigo retornar o olhar.


Não com a mesma intensidade que ele me olha. Eu não digo que
o amo, mas acho que ele sabe. Ele acena para mim, está me
chamando. Vou até ele.
- Ela está muito feliz.
Ele estava falando da nossa filha, Yasmim. Linda. Era o
retrato dele, em tudo. Na paciência, no olhar, a cor do cabelo. Ela
era meu mundo. Com ela eu não me sentia vazia, sozinha.
- Precisamos fazer isso mais vezes.
Ele sempre tentava me agradar. Eu não conseguia devolver
a ele tudo o que ele me proporcionava. Eu era a ruim da nossa
história. Ele não diria isso jamais, mas é assim que me sinto. Ele
faz tudo por mim, mas não consigo amá-lo como eu realmente
deveria ou como ele merecia.
- Mamãe, veja, é gigante.
Estávamos no aquário. Yasmim era apaixonada por
animais. Meu marido, Victor gostava, ou, como minha filha, era
encantado por eles. Eu não via graça em ter algum bichinho de
estimação. No momento eu estava vencendo, não tínhamos
animais, se tivéssemos, eu teria que cuidar, dar banho, limpar a
sujeira e eu não tinha paciência para isso.
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- Mas meu amor, a Yasmim gosta tanto – Meu esposo
tentando me convencer a comprar um cachorrinho.
- Victor, eu não quero. Logo ela cresce, vai para a escola e
ter vários amigos e vai esquecer essa ideia.
E assim íamos levando, sem animais em casa. Para
compensar, íamos aos zoológicos, parques, aquários. Os dois
voltavam animados toda vez que voltávamos desses passeios,
falavam durante dias sobre o que tinham visto e aprendido e com
isso, minha pequena esquecia o cachorrinho que tanto pedia para
ter.
- A tartaruga é a minha preferida papai.
- Mas é muito grande.
- Por isso papai.
Yasmin estava colocando a mão no vidro tentando chamar
a atenção do bicho. Eu começava a ficar impaciente, acho que por
não gostar de lugares fechados, me entediava rápido demais,
parecia me sufocar.
- Filha, podemos ver outro bicho?
Meu esposo sempre paciente, sabia dominar a situação,
cuidava de mim o tempo todo.
- Yasmim, venha, vamos almoçar e depois podemos ver os
pinguins.
O dia seria longo.
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- Mamãe, podemos ter uma tartaruga gigante?
- Não minha filha. Nossa casa é muito pequena para ela.
Ela fez um biquinho e falou:
- Quando eu crescer, serei veterinária, poderei ter todos os
bichos do mundo.
Nós rimos. Fiz carinho nos cabelos dela. Tinha certeza de
que ela seria mesmo, ela era determinada. Será que em algum
momento eu fui assim? Tão falante, confiante? Sim. Eu era.
- Amor, ela está esperando sua resposta.
- Desculpe filha, não ouvi, pode repetir?
- Se podemos comer no Mc Donald.
- Hoje podemos, estamos passeando.
Ela batia palmas. Era tão feliz. Meu esposo pegou minha
mão e nos levou até a lanchonete preferida da minha filha.
- Eu quero ficar nos brinquedos papai. Promete que me
chama quando chegarem as batatinhas?
- Batatinhas? Eu não pedi batatinhas – Ele sempre brincava
com ela. Não sei como ela não se cansava.
- Pai, eu sei que pediu minhas batatinhas.
Ela disse revirando os olhos, sabendo que ele estava
brincando. Estava indo para o brinquedo e voltou, olhou para o
meu esposo e falou:

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- Não come tudo. – Olhou para mim e pediu: - Mamãe, pode
me chamar quando a batatinha chegar?
- Vai brincar filha, o papai não vai comer tudo, prometo.
Ela correu para os brinquedos. Ele pegou minha mão.
- Você está quieta.
Sorri para ele. Como se eu nunca fosse assim. Mas sabia
que ele só queria me fazer relaxar, aproveitar mais ainda aquele
dia tão gostoso.
- Só estou aproveitando o momento, guardando na
memória.
Eu registrava tudo, escrevia, tirava fotos. Não queria
esquecer os detalhes com minha filha e meu marido.
- Ela vai para a escola ano que vem. Parece que foi esses
dias que ela ainda estava na sua barriga.
Minha barriga. Senti um calafrio. Eu não queria me lembrar
do passado. Meu prazer era o presente, sempre o presente.

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Capítulo 1

Eu tinha quase quatorze anos quando acordei no escuro.


Não recordo de nada referente ao meu passado. Não sei por que
acordei ali, não lembro dos meus pais. Sei o que dizem. Sou filha
da Ana e Pedro. Não tenho irmãos, não tenho ninguém.
Naquela noite, na mata, quando acordei, lembro que não
entendi o porquê de estar ali, olhava ao meu redor e estava muito
escuro, havia muitas arvores. Eu gritei. Mas lembro que eu não
sabia a quem chamar, fiquei confusa, então chorei. Caminhei por
horas procurando uma luz ou alguém. Eu sentia muito medo.
Recordo dos barulhos dos pássaros até hoje, pareciam que iam me
devorar, correr atrás de mim, eu corria deles e eles faziam mais
barulho ainda. E foi correndo deles que eu achei a rua e a luz. A
luz vinha vindo, ficando forte, eu corri para ela. Depois disso, só
lembro de estar no hospital.
A família que me levou ao hospital aquela noite hoje é a
minha família. São os pais do meu esposo. Eles me contam que
eu não saía do meio da estrada, eles eram a luz que eu via vindo
ao meu encontro. Pararam o carro e dizem que eu desmaiei no
asfalto. Me levaram ao hospital. Fui o centro das atenções naquela

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pequena cidade por vários dias, semanas, talvez meses. Ninguém
sabia nada sobre mim.
Policiais e bombeiros foram na mata atrás de respostas e
encontraram o carro dos meus pais. Disseram que meu pai deve
ter perdido o controle do carro, talvez devido a algum animal que
estivesse atravessando a estrada ou pela forte chuva que castigava
a região por semanas. Meus pais morreram. Não sabem como saí
do carro, se após o carro ter parado ou se caí quando o carro descia
o barranco. Eu não conseguia recordar o local onde tinha
acordado. Essa falha em minha memória não ajudava o policial
que cuidava do caso. Me levaram lá por algumas vezes, após sair
do hospital, mas eu não conseguia lembrar e ainda chorava muito,
até que desistiram.
Pelos documentos no carro, fiquei sabendo os nomes dos
meus pais, Ana Paula Gomes e Pedro Gomes. Não acharam meus
documentos. Fiquei com as malas que estavam no carro, mas o
que mais intrigava é que não tinha uma mala para mim. Por quê?
Para onde eu estava indo sem roupa extra ou algum pertence? Por
que meus pais tinham malas?
Pela placa do carro, os policiais fizeram algumas buscas.
Fiquei sabendo que eles tinham um sítio no interior do Paraná,
que sempre moraram ali, mas que haviam vendido no mês do
nosso acidente, que só tinham uma filha, no caso, eu, e que meu
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nome era Maria. Simplesmente isso. Disseram também que meus
pais não tinham irmãos ou algum parente pelas redondezas. Se
havia parentes em outro estado, não sabiam dizer. E assim, acaba
o meu passado.
No hospital, eu escutava o delegado e o médico
conversarem sobre mim. Eu não tinha para onde ir. Uma igreja
me levou para um abrigo e ali fiquei por uns dias. Minha primeira
visita foi da senhora que me achou naquela noite, o nome dela era
Maria, como o meu. Eu não gostava do meu nome, me olhava no
espelho e não me via com esse nome, mas eu gostava do segundo
nome, Paula. Maria Paula Gomes.
Sempre que ela vinha me visitar, trazia doces. Um dia, ela
simplesmente me levou para a casa dela. Lá conheci seus dois
filhos, Victor e Alexandre. Seu esposo, Antônio, era muito
calado, mas eu gostava dele, talvez por que ele não cobrava que
eu lembrasse das coisas como os demais. Em muitos momentos
ficávamos na sala, lendo ou assistindo televisão, sem conversas.
Maria, já gostava de falar, acho que ela pensava que quanto mais
eu conversasse, mais eu lembraria.
Os meninos não aceitaram muito bem minha chegada.
Ouvi, várias vezes, eles discutindo com a mãe a respeito dos
quartos. Eu tinha meu quarto, que antes era do Victor. Alexandre
teve que dividir o quarto dele com o irmão e isso irritava os dois.
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Alexandre era o mais velho, tinha dezoito anos. Victor dezesseis.
Não falavam comigo. Nunca. Até o dia da minha formatura.

Capítulo 2

Era final de novembro, quase três anos morando com minha


nova família. Dona Maria entrou na casa, após algumas compras,
ofegante, eu estava lavando louça.
- Paula – ela sempre me chamava assim, acho que sabia que
eu não gostava do primeiro nome – veja o que comprei.
Me mostrou um vestido lindo, lilás.
- Não gostou?
- Sim, é lindo. – Eu sempre era curta nas respostas.
- É para você.
Olhei para o vestido, depois para ela, mas não perguntei,
mas ela respondeu.
- Sua formatura.
Eu iria terminar o ensino médio naquele ano, teria que
pensar na faculdade. Os meninos estavam cursando em outra
cidade. Eu raramente os via.
- Não vou.

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- Paula, você precisa ir à formatura. Você já não tem muito
registro da sua história. É bom ter fotos para lembrar o presente e
seguir com o futuro, um dia vai querer mostrar para seus filhos.
Continuei lavando a louça, quando ela falava assim eu tinha
vontade de chorar, não ter meu passado era tão triste. Sei que ela
não fazia por mal e ela estava certa, eu tinha que viver o meu
presente. Mas formatura era sinal de muita gente perto.
- Eu estarei lá com você o tempo todo. – Como ela sabia ler
meus pensamentos?
Balancei minha cabeça, confirmando, dando a ela o gosto
da vitória. Eu queria ser mais carinhosa, dar um abraço nela, por
que ela era muito boa para mim, mas eu não conseguia.
- Então deixa eu terminar essa louça, vai banhar e provar o
vestido, quero ver se precisa de algum ajuste.
Sequei as mãos, peguei o vestido, olhei para ela,
agradecendo, mas sem tocar ou falar, somente com um gesto de
cabeça.
- Mas eu não participei do grupo da classe para ir à
formatura. Eles estão pagando desde o início do ano.
- Eu participei. - Ela sorriu - A diretora e eu conversamos
no meio do ano, eu uma reunião de pais. Desde então venho
pagando e participando.
- Eles nunca me falaram nada.
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Eu era quieta na sala de aula, não tinha amigos, somente o
contato do dia a dia de estudante. Às vezes eu até ouvia um
comentário ou outro dos participantes da formatura, mas nunca
prestava atenção, pois na minha cabeça, estava certo de que não
iria.
- Obrigada.
- Vá logo, quero ver se acertei o tamanho.

Capítulo 3

Era sábado. Minha formatura. Dona Maria estava mais


ansiosa que eu. Acordamos cedo, fizemos o serviço de casa e após
o almoço ela começou a me produzir. Cabelos enrolados,
maquiagem e o vestido. Me olhei no espelho, eu estava tão bonita.
Parecia mais velha. Olhei meus pés. Eu não tinha um sapato que
combinasse com aquela moça do espelho, como não pensei nisso?
Eu vivia de tênis ou chinelos.
- Antônio? – Ela gritou para o marido e olhando para mim:
- Pensou que eu ia esquecer?
Seu Antônio entrou no quarto com uma caixa e me
entregou.

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- Você está muito bonita. Este é meu presente para você.
Ele era como eu, quieto, não esperou meu abraço ou
agradecimento, mas meu olhar ao pegar a caixa já dizia que eu
estava emocionada. Ele não ficou para ver, saiu do quarto e eu
abri a caixa. Era os sapatos mais lindo que eu já tinha visto, se
bem que eu não tinha memoria, então acho que não tinha visto
nenhum.
- Não chore. Não gostou?
- É lindo. Gostei muito.
- Então coloca no pé para que possamos ir.
Quando estávamos quase prontas, ouvi alguns barulhos.
- Eles chegaram.
Era os meninos. Eu sabia que eles vinham, mas não
esperava que eles fossem com a gente. Mas era melhor assim,
com eles na mesma mesa, não teria como algum estranho sentar-
se com a gente. Eu não os via há quase um ano, a faculdade onde
eles estudavam ficava na cidade vizinha, quase não vinham para
a casa.
- Estou pronta.
- Então vamos.
Quando eu cheguei na sala, ninguém falou nada. Ficaram
me olhando. Tinha alguma coisa errada comigo?

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- Você está muito bonita, não é a Paulinha que deixamos
aqui. – Era Victor, ele que não conversava comigo, me chamou
de Paulinha.
Apenas sorri, nervosa. Eu precisava crescer, aceitar
opiniões e elogios.
- Você cresceu.
Esse era Alexandre, sempre sério. Olhando para Victor, ele
falou:
- Ela é nossa irmã, lembre-se disso.
Ficaram um olhando para o outro por fração de segundos,
até que dona Maria pediu que fossemos logo para não atrasarmos.
No carro, fiquei sentada no meio dos dois “irmãos”. Eu estava
dura, igual uma pedra, era um misto de vergonha, ansiedade e
medo de amassar o vestido.
- Chegamos. – Anunciou o seu Antônio.
O salão estava cheio. Fiquei perto da Maria, com medo.
- Maria Paula, venha, vamos tirar uma foto para recordação.
– Era Suzi, estudávamos juntas e todos os professores e alunos
me chamavam de Maria Paula.
Suzi era uma das poucas que tentava conversar comigo, ela
era um pouco como eu, tímida e não se enquadrava na turma dos
populares da classe.

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E foi assim que passou a noite, quando dona Maria falou
que gostaria que eu tivesse minha formatura, eu não tinha
gostado, mas ela tinha razão. Estava muito gostoso. Dancei, comi,
tirei fotos e dei meu primeiro beijo.

Capítulo 4

Na volta, no meio dos dois novamente, eu estava suada e já


não tinha o cabelo arrumado. Meus pais adotivos foram dormir
assim que chegamos, estavam felizes, mas cansados.
- Já não temos idade para estar acordados até essa hora.
Não era tão tarde, mas passava de uma da manhã e eu ainda
estava elétrica. Eu que vivia sempre tão num ponto de
interrogação, pois não lembrava do meu passado, essa noite
estava feliz.
- Você quer tomar banho primeiro Paula?
Era o Alexandre, sempre cavalheiro, perguntando.
- Eu vou tomar água e depois tirar o que restou da
maquiagem, pode ir primeiro, obrigada.
Fui para a cozinha e o Alexandre foi tomar banho, ele
também tinha dançado muito, as meninas ficavam encantadas

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com ele. Ele dançou comigo uma vez e foi como um irmão, eu
não tinha irmão na memória para lembrar ou amar, mas se tivesse,
queria que fosse como ele. Victor entrou comigo na cozinha,
bebeu um copo de água e chegou bem perto de mim, ficou me
olhando.
- Quero te beijar.
Eu que estava começando a descobrir aqueles sentimentos
de adolescente, fiquei congelada. As meninas da escola já tinham
passado dessa fase eu não tinham sequer experimentado. Eu
queria muito e ele me beijou. Suave, gostoso.
Quando escutamos a voz do Alexandre avisando que já
tinha saído do banho e que o banheiro estava liberado para o
próximo, nos afastamos.
- Boa noite.
Eu não conseguia sair do lugar ou responder. Seria uma
noite longa.
- Vou tomar banho ou quer ir?
Ele perguntou quando estava saindo da cozinha.
- Pode ir. – Consegui dizer.
Passei a noite toda sonhando, eram sonhos bons, outra hora,
uma mistura de realidade com a noite que acordei na mata escura.
Mas imagino que tenha sido uma noite longa e boa, pois acordei
e todos já tinham tomado café e eu estava sozinha na casa. Fiquei
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feliz por não encontrar ninguém, não saberia como encarar Victor
após o beijo. Fiz o serviço de casa e quando estava iniciando o
almoço, eles chegaram. Eu fiquei treinando o tempo todo sobre o
que falar ou o que fazer quando eles chegassem, não funcionou
muito bem, por que sentia meu rosto ferver quando entraram
todos na cozinha. Eu não olhava para ninguém, mas como eu já
era assim, acho que ninguém notou, talvez só ele.
- Bom dia Paula, não te acordamos por que imaginamos que
devia estar cansada, fomos no mercado e aproveitamos para
comprar a passagem dos meninos, para hoje à noite.
Olhei para o Victor. Como assim, ir embora, eu queria
mais, não queria? Calma Paula, não estão namorando, é melhor
assim, ficar sozinha na casa.
- Deixa eu terminar o almoço, você já limpou a casa, vá ler
ou ver TV - Falou dona Maria carinhosamente para mim.
Eu não pensei duas vezes, fui para o meu quarto. Algum
tempo depois, levei um susto com o Victor me chamando e o livro
caindo, o livro que eu sequer tinha aberto.
- A mãe mandou te chamar para almoçar.
Ele também não conseguia me olhar. Deu o recado e saiu
apressado.

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Capítulo 5

- Paula – Era Alexandre – O que pretende fazer agora que


terminou os estudos?
Estava aí uma pergunta que muitos faziam e eu não sabia
responder.
- Eu ainda não pensei. Não gostaria de sair daqui, da cidade,
não saberia ficar sozinha, não ainda.
Todos sabiam que eu estava falando dos meus pais.
- Você poderia fazer um curso técnico já que não há
faculdade aqui, não pensou em alguma coisa assim?
- Sim, gostaria de ser enfermeira.
Todos sorriram, acho que sabiam antes de mim.
- Que ótimo, faz isso, você é a pessoa certa para essa função
– Falou minha mãe.
E foi assim, matriculei e no início do novo ano já estava
cursando meu primeiro ano de enfermagem. Os meninos
estudavam longe e vinham somente a cada seis meses, as vezes
só no final do ano. Era assim que eu ficava pensando em Victor,
no retorno dele. No dia que eles partiram, ele deixou uma carta
debaixo do meu travesseiro:

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“Minha pequena Paula, te vi chegando em nossas vidas,
tão assustada, machucada. Fui estudar fora e ainda não gostava
de você roubando a atenção dos meus pais. Eu estava indo para
faculdade, mas ainda era um filho ciumento. Voltar para casa e
te ver naquele vestido, mexeu comigo. Você ficou uma menina
linda. Quero continuar o que paramos, se tiver paciência, volto a
cada seis meses.
Com um início de amor, Victor.”

Fiquei esperando todos os dias ele voltar, passaram os seis


meses e ele não veio. Fiquei pensando no que havia feito de
errado. Eu não podia escrever para ele, não sabia endereço, aliás,
eu não sabia nada dele, somente que tinha saudade e que queria
beijá-lo novamente.
Um dia, abro a porta e vejo Alexandre sentado no sofá,
conversando com nossa mãe – “sim, eu agora a considerava
como minha mãe”. Procurei por ele, mas não estava ali, imaginei
que estivesse no quarto ou na cozinha.
- Oi Alexandre.
Ele me abraçou, mas senti um clima pesado.
- Oi Paula, como está?
- Estou bem e você?
- Bem também.
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Fiquei com eles na sala, ansiosa para que Victor aparecesse.
- E o curso, está fazendo? – Alexandre perguntou.
- Sim, estou fazendo.
- É o que esperava?
- Sim, estou gostando muito.
Não aguentei e perguntei:
- Onde está o Victor.
Alexandre olhou para nossa mãe e respondeu:
- Ele não veio. Eu precisava vir e volto ainda hoje, tenho
prova amanhã.
Confirmei com a cabeça e devo ter feito um olhar triste pois
ele continuou:
- Ele não sabe que vim, se soubesse, sei que teria vindo, mas
agora estamos na época de provas, não quis tirar ele dos estudos.
- Está certo.
Não perguntei por que ele tinha vindo e nem o porquê da
visita rápida. Nossa mãe se levantou e estava indo para a cozinha
e perguntou:
- Ficará para o jantar meu filho?
Ele correu para ela, deu um abraço e respondeu:
- Mamãe, a senhora acha que eu iria embora sem comer a
sua comida?
Todos rimos e fomos ajuda-la na cozinha.
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Capítulo 6

No outro dia, minha mãe veio conversar comigo assim que


cheguei da escola. Eu saía cedo de casa, fazia estágio e voltava
tarde da noite após a escola.
- Paula, podemos conversar?
As vezes ela me chamava de Maria, outra hora Paula. Ela
estava com o olhar sério. Fomos para a cozinha, pois eu sempre
comia alguma coisa quando chegava.
- Está tudo bem? Fiz alguma coisa errada?
Com o passar dos anos aprendi a amá-los e a respeitá-los
como minha família, não gostaria de desapontá-los.
- Me conte sobre o Victor.
Ela foi direta. Eu devo ter ficado vermelha pois ela se
aproximou com o olhar mais carinhoso.
- Alexandre me contou que vocês se beijaram.
Afirmei com a cabeça.
- Me desculpe – E comecei a chorar.
- Não estou brigando minha filha, eu só quero entender, eu
amo você e amo ele. Eu ficaria feliz se fosse verdade.
Olhei sem entender, um pouco espantada, mas antes que eu
perguntasse ou comentasse algo, ela continuou:

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- Mas você precisa entender, que namorar também significa
se machucar, sofrer, chorar e essas coisas que acontecem quando
começamos a gostar de alguém.
Não estava entendendo muito, mas afirmei com a cabeça.
- Moramos todos na mesma casa, somos família. Você
entende o que quero dizer?
Eu devo ter feito algum gesto com o rosto, por que ela
explicou:
- Digamos que vocês namorem e por algum momento
briguem ou terminem, como ficarão vocês dois aqui em casa?
Serão amigos, irmãos? Vocês terão maturidade suficiente para
entender esse namoro ou um término ou qualquer sofrimento que
um possa fazer ao outro? Eu gostaria muito que desse certo, mas
também me preocupa.
- Acho que estou entendendo e a senhora está correta, eu
não havia pensado nisso.
- Essa é a função das mães.
Fiquei vermelha, pois eu a amava, mas nunca havia
chamado ela de mãe ou sequer dito o quanto ela era importante
para mim. Ela era a única família que eu tinha. Mas eu não
conseguia dizer.
- O Victor e eu não conversamos após o – gaguejei – após
minha formatura.
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- Eu pedi para o Alexandre conversar com ele. Imagino que
no final de semana ele venha nos visitar.
Eu fiquei toda feliz. Mas como o Alexandre ficou sabendo?
Victor deve ter falado sobre o beijo. Mas por que ele veio aqui
conversar com a dona Maria? Será que era tão maduro que
também teve as mesmas preocupações dela?
- Neste tempo – Continuou dona Maria – quero que reflita,
você é muito jovem, imagino que não tenha namorado outra
pessoa – Fiz que não com a cabeça – Eu sinto que você está
encontrando um caminho, está feliz com o curso de enfermagem,
feliz com sua descoberta no amor, mas pense se é isso que quer
realmente neste momento.
Escutar as preocupações dela agora parecia tão sensato,
madura. Admirei ela ainda mais. Sempre achamos que as mães
são velhas e antiquadas ou que não veem o mundo lá fora, mas
essa conversa mostrava o quanto ela estava a minha frente.
- A senhora tem razão. Eu gosto dele e gostaria de namorá-
lo, mas agora, após essa conversa, realmente é uma
responsabilidade com toda a família. É no futuro que tenho que
pensar.
- Sim. Talvez esperar, não significa que não irão namorar,
mas talvez mais tarde. Concluir os estudos, seu e dele, é o que eu

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aprovaria. Mas não desaprovo o namoro, só quero que pense se
estão preparados para este passo.
Ela segurou minhas mãos com carinho.
- Vou pensar e conversarei com ele também.
Victor e o irmão chegaram na sexta feira a noite. Ele estava
na frente do portão, acho que me esperando chegar da escola. Eu
ia correr, abraça-lo, mas talvez isso não fosse um gesto correto
para uma moça. Será que era certo? Eu precisava conversar com
alguém sobre essas posturas. Minhas amigas do curso eram
experientes, a maioria já tinham tido namorado ou estavam
namorando, elas saberão me aconselhar. Eu não corri para abraça-
lo e nem poderia, o olhar dele estava duro, fui me aproximando.
- Oi.
Ele cumprimentou com a cabeça.
- Podemos caminhar um pouco?
Estava bravo ou era impressão minha?
- Vou guardar minhas coisas do curso e já volto.
Ele ficou no portão. Dentro de casa, só havia a luz da sala
acesa, já era tarde, imagino que todos deviam estar dormindo, mas
conhecendo dona Maria, ela estaria de olho aberto, nos
observando, cuidando. Eu faria o mesmo se fosse mãe. Depois da
conversa que tivemos, pude ver muita coisa, como uma família
cuida uns dos outros.
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- Pronto, voltei. Vamos?
Fomos andando, sem rumo.
- Seu irmão também veio? – Perguntei ao Victor para
quebrar o silêncio.
- Sim.
- Sua mãe conversou comigo depois que seu irmão foi
embora.
- Meu irmão também conversou comigo. Não sabia que ele
viria fofocar para minha mãe. Eles foram rudes com você?
- Não. Sua mãe conversou comigo e foi muito querida.
Expôs as preocupações dela e eu entendi.
- Você entendeu? Como assim?
Ele estava bravo ou ansioso?
- Entendi a preocupação da sua mãe em relação a nós dois.
- O que ela falou para você?
- Que ela gostaria muito que a gente namorasse, mas ela
explicou também no que isso implicaria.
- Como assim?
Parei de caminhar e olhei para ele.
- Por exemplo, se um dia a gente brigasse? Como ficaria o
clima aqui em casa? Somos irmãos.
- Não somos irmãos.
- Meio que somos.
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Ele mexeu os ombros, querendo dizer que nem ligava. Mas
estava pensativo.
- Sua mãe tem razão. Basta ver agora, nós dois nem
conversamos após o beijo e já estamos brigando.
- Não estamos brigando – Ele segurou minha mão.
Após alguns minutos de silêncio, comentei:
- Eu gosto de você, gostei do beijo, mas é o que queremos?
Ele não gostou. Soltou minha mão e fez menção de voltar
para casa.
- Não fique bravo, não estou dizendo que não quero
continuar, mas precisamos conversar e pensar muito no que sua
mãe falou. – Olhei para ele, segurei sua mão novamente – Veja,
se acontece uma briga, como essa agora, seu irmão, seus pais,
ficarão do meu lado ou do seu? Ficaremos na mesma mesa da
cozinha sem olhar um para outro? Já imaginou o clima?
Ele respirou, fez menção de falar alguma coisa, mas
desistiu.
- Victor, namorando ou não, teremos sabedoria para seguir
em frente, morando na mesma casa?
Fiz um carinho no rosto dele e continuei:
- Quero que pense nas consequências que expus e responda
sinceramente se vale a pena correr o risco?
- Vale. Eu gosto muito de você.
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Ele me deu um beijo, amoleceu meu coração.
- Eu também gosto muito de você. Mas promete que irá
pensar, vai pelo menos tentar entender.
Ficamos caminhando, de mãos dadas. Eu me sentia tão
feliz. Então me lembrei. Meu pai e eu, de mãos dadas,
caminhando, minha mãe vinha vindo, eu corri para abraça-la. E a
imagem se foi.
- Por que está chorando?
- Meus pais, eu lembrei dos meus pais.

Capítulo 7

Eu estava muito feliz. Não era nítido o rosto que eu via na


memória, mas sabia que era dos meus pais. Todos percebiam
minha mudança, eu sorria e falava pelos cotovelos. Melhorei na
escola, no trabalho, com meus amigos.
Quem não gostou foi Victor, eu pedi que esperássemos
terminar a faculdade para iniciarmos um namoro, eu estava tão
feliz de lembrar do rosto dos meus pais que não achei tempo
demais esperar dois ou três anos, mas ele não gostou e foi embora
sem falar comigo.

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Mas, como dizem por aí, que toda alegria dura pouco, é
verdade, eu achei que minha memória estava voltando, que cada
dia eu lembraria de alguma coisa e não foi isso que aconteceu.
Quando passou os três meses seguintes e não lembrei de mais
nada, voltei novamente ao meu mundo de incertezas e solidão.
Não a solidão de pessoas, solidão interna, do meu mundo
imaginário.
- Não sou um fantasma, um buraco negro. - Era assim que
eu me sentia. Eu tinha um vazio, um passado igual um pano preto.
- Claro que não é um fantasma. – Dona Maria ria das minhas
falas.
- Eu fico me perguntando Maria, será que eu era feliz? Será
que eu tinha uma boneca?
Ela veio e me abraçou.
- Toda criança tem ou teve uma boneca, com certeza você
teve a sua. Você vai ficar doente de tanto que põe essa cabeça
para pensar menina.
Mas eu não parava de pensar. Todo dia eu tinha um
questionamento sobre meu passado. Será que meu pai me
abraçava, era carinhoso? E minha mãe, tinha me beijado? Eles
liam alguma história para eu dormir, brincavam comigo, me
deixavam de castigo? Será que tínhamos ido à praia alguma vez?
Será que eu já havia levado alguma surra?
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- Uma hora você vai se lembrar de tudo e vai responder
todas essas perguntas. Sabe o que você podia fazer?
Olhei para ela curiosa.
- Compre um caderno e coloca essas perguntas nele, depois,
quando você for lembrando, vai respondendo. Eu vou querer ler
um dia ou quando você tiver seus filhos, poderá contar essa
experiencia para eles.
Fiquei pensativa, filhos? Não quero filhos. É muito dolorido
ter um filho e depois ele ficar sozinho no mundo, “não, não vou
querer ter filhos”. Estava assim, pensativa quando falei:
- Acho sua família linda dona Maria.
- Essa família também é sua família menina.
Olhei com muito carinho para ela. Eles eram unidos, felizes,
dona Maria estava sempre preparando o prato preferido de um
deles ou o meu, tudo era motivo para ela preparar um bolo no final
da tarde e comemorar ou agradecer. Eles eram pais maravilhosos.
- Coloque os pratos e os talheres que vamos comer. Vá
chamar seu pai.
Ela falou como se fosse natural falar que ele era meu pai e
eu saí em direção onde meu pai estava e o chamei para almoçar,
mas não o chamei de pai. Não estava pronta ainda. Não fiquei
chateada dela dizer que ele era meu pai, fiquei feliz. Mas ao
mesmo tempo incomodada. Não queria substituir meu pai. Mas
33
agora eles eram minha família. Eu precisava aceitar que eram
meus pais adotivos.
- O Victor não vem esse final de semana de novo? –
Perguntei, fingindo não estar interessada.
- Não. Ele está fazendo estágio e segundo ele é cansativo
demais essa rotina de estudar e fazer o estágio.
Fiz que sim com a cabeça. Não deve mesmo ser uma rotina
fácil, mas vir uma vez por mês não era um sacrifício tão enorme,
era?
- Você vai sair amanhã?
Olhei assustada para meu pai. Ele raramente falava.
- Não. Por quê?
Ele olhou para Maria e respondeu:
- Podíamos ir até a praia. Nunca fomos com a Paula.
Eu fiquei encantada. Feliz. Praia. Lá talvez eu lembrasse de
alguma coisa.
- Querido, que ideia maravilhosa. Não vai ser a mesma
coisa sem os meninos, mas será uma aventura diferente com a
Paula.
Naquela noite fomos dormir cedo, mas não antes de arrumar
a mala.
- Mas eu não tenho roupa de praia.
- Lá tem lojas. Podemos comprar lá.
34
Eu estava que não cabia em mim de felicidade e ansiedade.
Peguei meu dinheiro, o salário de estágio não era muito, mas
ajudava. Dona Maria não aceitava minha ajuda financeira, mas
me deixava comprar um pão ou algum lanche no final de semana.
- É muito caro as coisas lá na praia?
- Não é barato – Ela riu - mas não vamos comprar a loja
toda não é mesmo?
Foi minha vez de rir. Ela também estava feliz e ansiosa.
- Será só o final de semana, mas será nossa primeira viagem.
Ela passou a mão nos meus cabelos.
- Vamos dormir?
- Vou tentar.
Ela ficava feliz por me fazer feliz. Eu estava muito ansiosa.
Será que eu já havia viajado alguma vez com meus pais? Isso me
fez lembrar que foi viajando que aconteceu o acidente. “Senhor
meu Deus, abençoe nossa viagem amanhã. Nos leve em paz e
segurança”.

35
Capítulo 8

Não consegui lembrar de nada. Ir à praia não ajudou como


achei que ia ajudar, mas foi um final de semana maravilhoso.
Ficamos em um hotel simples, mas para mim era tudo novo,
talvez eu nunca tivesse ficado em um hotel, talvez eu jamais
tivesse viajado. Havia muitas pessoas caminhando no calçadão, o
sol brilhava forte, achei tudo maravilhoso, mas nada se
comparava ao mar, a areia da praia, como era linda. Tenho a
sensação de que era minha primeira vez naquele lugar tão lindo,
o mar em sua imensidão trazia uma paz no final da tarde. Sentei
junto as pedras, senti o vento no rosto, meus cabelos não paravam
no lugar, olhei ao longe e pedi a Deus que me ajudasse. Eu
precisava seguir em frente, mas precisava saber do porquê
estarmos no carro e por que houve o acidente. São tantas
perguntas. Por que minha mala não estava no carro, será que
estávamos fugindo ou somente nos mudando? Senhor, eu preciso
entender o meu passado.
- Olá, posso me sentar aqui também?
Levei um susto.
- Claro.

36
O rapaz sentou e tirou um livro da mochila. Acho que quero
isso para mim, morar nessa cidade. Todo final da tarde viria
nessas pedras e faria como ele, leria. Era a paz que eu precisava.
Mas eu sabia que minha paz só seria completa quando minha
memória voltasse. Fiquei ali, mais um tempo, contemplando a
natureza.
- Paula, venha, vamos embora.
Era Maria me chamando. Não percebi que já estava
anoitecendo, acho até que cochilei deitada naquelas pedras.
- Quero morar aqui, amei este lugar.
Eles riram.
A noite estava linda. Caminhamos no calçadão, entramos
em todas as lojas possíveis que tinha. Eu estava muito feliz. Mas
ao perceber que a noite estava acabando, pensei em Victor. Deu
saudade. Se ele estivesse ali, andaríamos de mãos dadas,
beijaríamos muito, correríamos pela areia.
- Vamos tomar um sorvete antes de voltarmos ao hotel?
- Não quero voltar para o hotel.
Eu queria aproveitar cada segundo daquele lugar tão
gostoso.
- Seu pai está com os pés doendo.
- Vamos menina, amanhã você acorda cedo e vem caminhar
antes do café da manhã.
37
- Gostei muito da ideia.
Já no hotel, enquanto eles dormiam, eu anotei tudo no meu
caderno, não queria esquecer desse dia. Mas eu também estava
cansada. Logo senti meus olhos pesados. Guardei o caderno e
fiquei pensando como seria estar com o Victor na praia. E
adormeci.
- Moça, acorde. Vamos, já está na hora de acordar.
- Quero dormir, é domingo.
- Domingo sim e estamos na praia, venha, você não queria
caminhar antes do café?
Praia? Caminhar? Sim, acordei tão rápido que esqueci que
estávamos no hotel e era tudo pequeno, quase derrubei o que
estava no armário do lado da cama.
- Não precisa quebrar e acordar seu pai.
- Tarde demais, ela me acordou.
- Desculpe.
Ele riu.
- Vá caminhar que volto a dormir.
E fiz isso. Fui caminhar na areia, observei a praia limpinha,
como era muito cedo, não tinha gente na praia. As vezes
encontrava um ou outro caminhando ou fazendo exercícios.
- Duas vezes é algo a se levar em conta não? Será o destino?
Olhei para a pessoa que falava comigo.
38
- Olá. – Foi só o que consegui dizer ao reconhece-lo.
- Parece que gostamos de estar nos mesmos lugares.
Eu nem tinha percebido que estava de novo nas pedras.
- Eu acho aqui, nessas pedras, o lugar mais lindo da praia.
- Concordo com você. Eu gosto de vir aqui para ler.
Ele apontou o livro na mão para mostrar que falava a
verdade.
- Eu gosto de apreciar a natureza, o vento, a paz.
- Eu aprecio lendo.
Olhei para o livro e ele me mostrou a capa.
- Você lê?
- Muito pouco.
Não quis falar para ele que a leitura me deixava frustrada
pois todos pareciam ter família ou um passado e os livros não
traziam meus pais ou minha memória.
- Na realidade, pela manhã, só gosto de caminhar. Trouxe o
livro para ler depois.
Silêncio. Eu não sabia se ia embora ou se ficava ali até ele
ir embora.
- Venha, vou mostrar outro lugar que você gostará.
Ele ofereceu a mão para me ajudar com as pedras e me
levou para um outro lado da praia que eu não conhecia.
- Eu não sabia que tinha mais praia deste lado.
39
- Os prédios altos fazem parecer ser o final da Orla, mas não
é.
- E tem muitas pedras aqui também.
- Sim. Mas não é tão calmo e tranquilo como lá onde
estávamos.
Ele explicou mais alguma coisa da região enquanto
voltávamos.
- Você é de Curitiba.
- Não. Sou de Ponta Grossa. E você?
- Sou de Curitiba. Gosto de vir para cá sozinho e ler.
- Você sai de Curitiba só para vir ler aqui?
Ele riu.
- Não. Minha família é muito grande e a gente vem em
vários carros e ficamos na mesma casa.
Fiquei imaginando a alegria daquela família.
- Gosto muito dessa época do ano e a família junta, mas não
consigo ler com as crianças e adultos falando ao mesmo tempo.
Então venho para a praia, escolho um canto que não tenha muita
gente e fico horas sentindo essa paz e sossego.
- Minha família é pequena então procuro lugares onde eu
possa ver muita gente.
Caminhamos mais alguns metros juntos.

40
- Eu preciso voltar, meus pais estão me esperando para o
café.
Ele pegou minha mão.
- Podemos nos ver mais tarde.
Me senti mal, como se estivesse traindo o Victor. Puxei a
mão.
- Não. Desculpe.
Ele ficou olhando, fixo em meus olhos.
- Está bem. Nos vemos por aí então.
Eu fiz que sim com a cabeça e voltei para o Hotel. À tarde,
com medo de encontrar o rapaz, preferi ficar na areia junto com
meus pais. Aproveitei a água e a companhia deles.
- Não acredito que já estamos indo embora.
Estávamos saindo do hotel.
- Foi muito gostoso. Eu estou muito feliz, obrigada aos dois
por esta oportunidade.
Dona Maria que raramente via uma atitude minha de
carinho, aproveitou para me dar um abraço.
- Sua felicidade é a nossa felicidade.
- Temos que fazer isso mais vezes. – Comentou seu
Antônio.

41
- Mas seria bom se os meninos viessem também. Eles
fariam companhia para a Paula, por que nós dois estamos muito
velhos.
Enquanto seguíamos viagem de retorno para a casa, peguei
meu caderno e escrevi para o Victor. Eu precisava de uma
resposta, não poderíamos continuar assim.
“Victor, sei que está chateado comigo, mas precisamos
conversar, precisamos ser irmãos ou amigos. Sua mãe tinha
razão, você se afastou e devido a isso ficou esse clima ruim em
nossa família. Tudo o que ela temia, acabou acontecendo. Parece
que a culpa é minha.
Estamos voltando da praia, que lugar maravilhoso. Faltou
você. Fiquei imaginando caminhar de mãos dada contigo pela
areia. Sei que te pedi um tempo longo e acho que podemos
diminuí-lo, estou com saudades.
O pouco que lembrei dos meus pais me deixou muito feliz.
Você e muitos, não entendem como é ter memória apagada, viver
em um túnel escuro. Eu queria lembrar, eu queria ter um passado.
Às vezes acho que nem são minhas memorias voltando e
sim, um desejo meu de tê-las e são imaginações da minha cabeça.
Mas quando essas lembranças aparecem eu não tenho com quem
compartilhar, pois as pessoas em minha volta se cansam de ouvir
(talvez por eu ser repetitiva) e não sentem o mesmo entusiasmo
42
que eu. Por isso, eu gostaria de escrever para você e se puder,
responda... corresponda comigo!
Semana passada, tive uma dessas lembranças que não sei
se são reais, eu acho que vi minha mãe na cozinha, ela olha para
trás quando eu entro e sorri (não consigo visualizar com nitidez
o rosto dela, mas sei que é ela). Será que estou chegando da
escola? Outro dia, eu estava ajudando sua mãe no jardim e veio
uns flashs do meu pai, foi muito rápido, ele estava no meu quarto,
conversando comigo, eu estou chorando e ele me abraça. Não sei
por que eu choro, mas é um choro sentido, sofrido. E a imagem
foi embora e não voltou mais.
Desculpe escrever e te incomodar. Espero que me entenda
e se no futuro, não ficarmos juntos, que possamos ser uma família
novamente ou amigos.
Venha nos visitar, aproveite o amor de sua mãe e o meu
carinho. Eu gosto muito de você.
Me escreva, estarei esperando.
Paula.”

43
Capítulo 9

A carta que escrevi quando estávamos retornando da praia,


entreguei para o Alexandre em uma das visitas dele.
- Pode entregar para ele?
- Claro que posso.
Ele estava indo para a cozinha e voltou:
- Desculpe eu ter contado para nossa mãe, mas...
- Está tudo bem. Você e sua mãe estavam certos. Se
continuarmos, precisamos pesar o que afeta.
Ele fez que sim com a cabeça e eu continuei:
- Ele não veio mais aqui só por que pedi um tempo para
pensar.
- E era esse o medo da mamãe.
- Sim, agora entendo. Por isso quero que ele leia a carta e
decida.
- Vou tentar conversar com ele de novo sobre isso.
- Sim, agora que o tempo passou talvez ele veja com outros
olhos.
Ele riu.
- Espero que sim. Ele achou que eu estava com ciúmes do
relacionamento de vocês e por isso contei para a mamãe.

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- Ele estava bem chateado em nossa última conversa.
- Mas você entendeu e não ficou chateada.
- Nós mulheres somos muito maduras em relação a vocês
homens.
- Há há há.
Rimos
- Estou feliz que você está crescendo e não está deixando
seu passado te afetar.
- Mas afeta em tudo.
Ele me olhou com carinho.
- Eu imagino que para você seja difícil. Mas estou vendo
que está vivendo sua vida com mais leveza, com mais
tranquilidade.
- Sim. Isso é verdade. Hoje não me cobro para lembrar das
coisas como fazia antes, pois sei que uma hora eu vou lembrar.
- Você achava que era nossa culpa quando veio morar
conosco.
- Eu precisava culpar alguém. Eu pensava naquela época
que se os seus pais não tivessem me resgatado naquela noite, eu
teria morrido com meus pais. Sei que é errado, mas é muito ruim
ficar sozinha neste mundo e ainda mais assim, sem memória.
Ele me abraçou.
- Você é mais forte do que pensa.
45
- Obrigada.
Ele levantou.
- Preciso ir. Se eu conseguir alguma coisa com o Victor te
ligo avisando.
- Obrigada.
Uma semana depois recebi uma carta dele. Lembro que era
sábado e eu estava no jardim com dona Maria, eu amava cuidar
do jardim.
- Você precisa de água minha pequena?
Dona Maria ria quando me via conversando com as plantas.
- Paula, carta para você.
Era seu Antônio. Me entregou o envelope e ficou olhando
para a esposa, ele tinha visto que era do filho.
- Espero que seja boas notícias. - Ele completou.
Sorri para ele e fui até o balanço. Eles fingiram não estar
curiosos, mas sentia o olha dos dois em minha direção.

“Paula,
começo essa carta com um pedido de desculpas. Eu estava bravo,
mas tive tempo para pensar e rever nossa conversa. Eu liguei para casa
nos horários que sabia que você não estava, mas acho que nossa mãe
te falava. Ela me cobrava uma posição.

46
Não, ela nunca havia mencionado as ligações. Quando eu
perguntava, ela só dizia que ele tinha ligado para dar oi e dizer
que estava tudo bem. Nunca falou que cobrava dele uma atitude.
Amei ela por isso.

Nossa mãe ajudou a achar um pouco de paz para esse pequeno


impasse que tivemos, só não sabia como pedir desculpas e receber sua
carta foi o passo que eu precisava.
Se aceitar minhas desculpas, adoraria receber suas cartas,
contando das suas memórias, do que deseja, das frustações. Quero ser
seu amigo, irmão e namorado.
Victor”

Maria e seu Antônio estavam me olhando, esperando. Eu


tinha esquecido deles. Li e reli a carta umas vinte vezes e sorria.
- Acho que a notícia foi boa Maria.
Ele entrou e nos deixou sozinhas novamente.
- Ele quer que eu escreva para ele Maria.
- Fico feliz que ele tenha respondido.
- Mas sei que também lhe deixa preocupada.
Ela se aproximou.
- Mas ver esse rostinho triste me deixa pior.

47
- Prometo que se algo acontecer, não deixarei ficar como
ficou esses meses.
- Não tem como prometer isso menina.
Ela me abraçou e continuou:
- Namorados ou não, quero que sejam meus filhos.
Senti que ela falava com sinceridade, mas um pouco
temerosa. Eu deveria levar essa relação com muito cuidado, pois
não queria perder a família que havia me acolhido.
- Eu vou tentar não decepcionar a senhora.
- Eu sei que vai. Se ele respondeu sua carta é por que ele
teve todo esse tempo para refletir e perceber que estávamos
certas.
Minha felicidade não tinha tamanho.
- Estou sentindo que o carteiro virá todos os dias agora.
Rimos. Que assim seja. – Desejei.

Capítulo 10

Era final do ano. Eu estava feliz. Estava namorando, tinha


terminado o primeiro ano de enfermagem e estava certa que
minhas memórias voltariam, era só questão de dias.

48
- Parece que virá um batalhão passar o natal com a gente de
tanta comida. – Comentei, ajudando dona Maria com algumas das
deliciosas comidas que ela estava preparando e congelando para
o natal.
- Mas este ano virá minha família e ela é grande.
Senti um calafrio. Eu não gostava de ambientes com muita
gente.
- Eles são simples minha menina. Não precisa ficar
apreensiva.
Ela realmente lia meus pensamentos.
- A única parte ruim da história é dividir seu quarto com
mais umas cinco ou seis primas.
- Minha paz estará acabada.
Rimos.
- Será só por dois dias. Nem sentirá sua paz abalada.
Fiz uma cara de desconfiança.
- Depois você sentirá um vazio nessa casa que pedirá para
eles voltarem.
- Duvido. Gosto do silêncio dessa casa.
- Você não gosta, você tem é medo de que as pessoas te
amem.
Abracei ela. O natal para a família do Victor era uma
mistura de alegria, presentes, música e muita comida. Ano
49
passado, meu natal havia sido triste e vazio. Eu não tinha paz
interior, algo me faltava. Mas esse natal seria diferente, eu iria
conhecer quase todos os parentes da dona Maria e eu já me sentida
parte deles.
- Terminamos.
- Que bom. Eu preciso ir até a escola fazer minha matricula.
- Por que não disse antes? Não precisava ficar me ajudando.
- Ajudei com prazer.
Dei um abraço nela.
- Isso é raro, um abraço seu.
Corei.
- Vá. – Ela empurrou me tirando da cozinha.
- Quer alguma coisa do centro?
- Não querida.
Quando eu estava saindo ela gritou:
- Está com todos os papeis e documentos?
- Estou sim.
Meus documentos, lembro que alguém comentou no
hospital que precisavam deles para que eu conseguisse a vaga na
casa ou lar de órfãos e nunca perguntei como tinham feito para
consegui-los. Voltei e perguntei:
- Maria, quem conseguiu meus documentos?
- Um rapaz de uma empresa lá no centro.
50
Olhei sem entender, curiosa.
- Quando você foi para aquele lar provisório, eles não
tinham nada que comprovasse seu nome ou origem. Eu estava
como contato nos seus registros e perguntaram se eu podia
conseguir.
- Deve ser muito difícil provar que é uma pessoa.
- Não foi fácil mesmo. Fomos na delegacia, no juiz da
cidade, e onde íamos era tudo muito burocrático. Ficamos
sabendo dessa empresa e depois de idas e vindas, eles
conseguiram.
- Tiveram que ir até onde eu morava?
- Sim. Não havia cartório onde você morava.
- Eu não tinha registro?
Ela riu.
-Seu registro e de todos que nasciam ou precisavam de algo
que fosse em cartório, eram feitos na cidade vizinha.
- Nossa. Pelo jeito eu dei trabalho para voltar a existir.
Ela riu e confirmou:
- Foram meses até as liberações finais do seu processo.
- Espero que não tenham gastado muito.
Eu sempre me sentia culpada.
- Valeu a pena cada centavo.

51
Ela sempre falava carinhosamente. Era melhor eu ir logo
antes que eu desse mais um abraço nela. Acho que o natal mexia
com as pessoas.
- Vou indo. Até mais tarde.
- Vai com Deus.
Não morávamos longe do centro, fui caminhando para
pensar no que ela havia me falado, sobre ser pequeno demais onde
eu morava.
“Por que meus pais saíram de lá? Queriam me dar um
futuro melhor?”
Era sempre assim, eu caminhava e forçava a mente. Eu
queria muito entender a viagem que meus pais fizeram.
“Será que minhas roupas eram velhas demais e iam
comprar tudo novo na cidade grande?”
- Boa tarde.
Meus pensamentos estavam tão longe que nem reparei que
já havia chegado na escola.
- Boa tarde.
Preenchi toda a papelada, paguei o que devia pagar e fui em
direção a porta de saída quando o vi na porta da sala dos
professores. Fiquei parada, eu já havia visto ele em algum lugar,
mas quem era? Escutei ele responder para alguém que estava
dentro da sala.
52
- Obrigada. Semana que vem voltarei com toda essa
papelada, prometo.
Ele estava vindo em minha direção, mas não tinha me visto.
De onde eu o conhecia? Era algum vizinho? Era da igreja? Eu
costumava ficar chateada quando não conseguia lembrar certas
coisas, dessa vez não foi diferente, senti raiva por não lembrar.
De onde o conheço? Era melhor ir embora. Segurei firme o
envelope com os documentos da rematrícula e virei em direção
ao portão. Quando me virei, escutei meu nome, mas meu nome
dito de uma maneira diferente, era um nome de brincadeira de
criança, fiquei parada, a cabeça girando, até que alguém segurou
minha mão.
- Goiabinha?
Era ele e eu respondi automaticamente.
- Bolinha?
Então comecei a chorar e o abracei muito forte.
- Não sabia que sentia a minha falta dessa maneira, pensei
até que não gostava de mim.
Do choro, veio o riso. Eu fiquei olhando para ele, feliz, mas
quieta, por que queria lembrar mais, eu sabia quem ele era, mas
ao mesmo tempo não sabia. Eu conseguia vê-lo ali e ao mesmo
tempo ver o rosto de uma criança.
- O que foi Goiabinha, parece assustada.
53
- Eu te conheço, só não lembro de onde.
Ele riu. Era bonito.
- Eu cresci. Achou que ia me ver sempre como o menino
Bolinha?
Fiquei quieta, por que eu sabia quem era ele, mas ao mesmo
tempo não lembrava de mais nada. Minha vontade era de fazer
muitas perguntas, mas ele estava tão bonito, que senti vergonha.
Mas se eu não perguntasse, nunca ia saber.
- O que faz aqui?
- Vim trazer umas papeladas para minha transferência.
- Vai estudar aqui?
- Sim, você estuda aqui?
Fiz que sim com a cabeça, minha mente girava com as
perguntas que vinham.
- O que está estudando?
- Enfermagem.
- Legal, nunca ia imaginar você como enfermeira.
Devo ter feito uma cara de quem pergunta: e o que eu seria?
- Sempre achei que seria professora como sua mãe.
Olhei para ele, muito exaltada.
- Minha mãe, ela era professora?
Foi a vez dele me olhar com a cara de interrogação.

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- Meus pais morreram. – Comentei, tentando explicar e
entrar no assunto da memória perdida.
Ficamos quietos, ele não sabia o que fazer e eu queria
chorar.
- Eu sinto muito.
- Você sabia?
Ele fez que sim com a cabeça e explicou:
- Apareceram algumas pessoas querendo saber dos seus
pais lá na vila. Logo, todos ficaram sabendo do acidente.
Lembrei da história que dona Maria contou, sobre meus
documentos.
- Desculpe – Ele me abraçou - Queria ter dado esse abraço
no dia que soube.
Eu fiquei quieta. Não sabia como contar que eu não
lembrava de nada.
- Como aconteceu? Se puder contar é claro.
Eu queria, mas o que iria contar? Queria mesmo era fazer
perguntas.
- Não me lembro Bolinha – Falei, desabafei.
- Deve ser difícil para você. – Ele segurou minha mão –
Tudo bem, não precisa relembrar.
- Relembrar e lembrar era o que eu mais queria.
Ele olhou solidário e ao mesmo tempo confuso.
55
- Ah meu Deus, seu nome, como é o seu nome de verdade?
Ele ficou me olhando, mas depois de um tempo respondeu.
- Pablo. Não faz tanto tempo assim que saiu da vila para não
lembrar meu nome.
Nem escutei direito o que ele falava, eu estava forçando a
mente para lembrar.
- Pablo... não lembro desse nome. Lembro de você criança,
correndo comigo em um campo, acho que de futebol - Algumas
cenas apareciam na minha mente e iam embora rapidamente –
mas não consigo lembrar de mais nada.
- Como assim não se lembra de mais nada?
Ele me olhava desconfiado. Era melhor eu me explicar.
- Não lembro de nada da minha vida antes do acidente.
Respondi com vergonha e um pouco tímida, não queria que
ele tivesse pena de mim. Continuei:
- Estou surpresa de lembrar seu nome, quer dizer, do nome
Bolinha. Eu te vi na escola e sabia que te conhecia, mas não sabia
de onde. Não consigo deixar claro em minha mente, eu vejo você
criança e logo a imagem some.
Eu fazia gestos e falava apressada, ele viu meu desespero e
falou:
- Calma, respira. Me conte, do início.

56
Respirei aliviada. Eu ia contar e ia poder fazer perguntas.
Ele podia ser a solução para os meus problemas.
- Acordei em um hospital e disseram que meus pais haviam
morrido.
Ele apertou minha mão novamente.
- Não consigo lembrar do acidente ou de qualquer dia da
minha vida.
- O acidente, foi no mesmo dia que foram embora?
- Não sei se foi no mesmo dia. Eu não sei quando saímos ou
por que saímos. Você sabe?
Ele olhou para os lados e falou:
- Você já estava indo embora?
Confirmei com a cabeça, eu queria saber mais, por que ele
simplesmente não continuava o resto da história? Não queria ir
embora.
- Vamos conversar lá fora? Deve ter um lugar onde
possamos sentar.
“Não”, eu queria responder. Mas era bom ir para um lugar
diferente do corredor da escola

57
Capítulo 11

Fomos caminhando até chegar no parque. Com medo que


ele fosse embora, perguntei:
- O que vai estudar?
Ele olhou para mim e sorriu.
- Você está mesmo sem memória.
Novamente confusão, mas ele me fazia sorrir.
- Educação física. Você vivia me dizendo que eu deveria ser
professor de educação Física. Vou para o terceiro ano.
- Terceiro?
Lembrei que fiquei quase um ano sem ir à escola devido ao
acidente e todo o ocorrido com meus documentos.
- Era para eu estar no terceiro período também, mas devido
ao acidente, perdi um tempo.
Ele concordou com a cabeça, acho que estava sem graça
pela situação.
- Vamos sentar ali?
Apontou para um banco, debaixo das arvores. Nem
sentamos direito e já fui fazendo perguntas.
- Você disse que fomos embora. Por que meus pais queriam
sair de lá?

58
Ele me olhava sorrindo, acho que eu estava parecendo uma
criança. Corei, mas continuei:
- Por favor, me conte, não lembro dos meus pais, não sei
como reconheci você.
Ele assentiu e respondeu.
- Não sei se lembrarei de tudo como você deseja, mas vou
contar o que lembro.
- Obrigada.
Fiquei olhando ansiosa.
- Sei que iam embora para procurar tratamento para sua
mãe.
- Minha mãe estava doente?
- Sim.
Ele ficou quieto. Eu queria sacudir ele e gritar para que
continuasse.
- Como eu disse, sua mãe era professora na vila. Todos
gostavam muito dela, fazia anos que lecionava.
- Ela era minha professora também?
Ele me olhou, um pouco triste e com pena.
- Sim.
Acho que viu minha tristeza e mudou de assunto.
- A escola era muito longe do sitio.
- Sítio?
59
- Sim, morávamos no sítio e a escola era na vila. Íamos e
voltávamos a pé. Nossas mães brigavam muito por que a gente
chegava sujo quase todos os dias.
Eu sorri e fechei os olhos, imaginando ou eu estava
lembrando? Ele continuou:
- Mas como não sujar? A gente vinha correndo pela estrada,
sempre disputando quem corria mais. Isso quando não ficávamos
chutando a bola fazendo com que corrêssemos ainda mais naquela
estrada empoeirada.
Rimos.
- A gente morava no mesmo sítio?
- Não. O sítio era vizinho do outro, mas o meu ficava logo
depois do seu, você entrava para a sua casa e eu andava um pouco
mais. No outro dia eu ficava esperando você para irmos para a
escola juntos, mas você ficava escondida até eu me cansar de
esperar e ia depois, só para implicar ou ia atrás de mim, cantando
alto, por que sabia que eu não gostava da sua voz.
Não tinha como não rir e eu não conseguia lembrar disso.
- Sempre foi assim? Essa implicância?
- Não. Você não lembra mesmo?
Fiz que não com a cabeça.
- Conte mais.
Eu e meu olhar suplicante.
60
- Depois que ficamos um pouco maior, você ia sozinha e eu
fingia que não te via. Entramos naquela fase de adolescente, com
vergonha um do outro ou sei lá, querendo ser mais adulto que o
outro.
- Paramos de ser amigos?
- Não. Só não fazíamos mais brincadeiras de criança, como
vir correndo ou gritando.
Ele fez uma pausa e continuou.
- Quando a gente ia ou voltava junto, o assunto era mais
adulto, era um tema do trabalho da escola ou de alguma gatinha.
Ele me cutucou com o ombro, como se eu lembrasse do
assunto. Como ele viu que não fiz menção de falar, ele continuou.
- Mas o que você gostava era de ler e eu de bola.
Eu gostava de ler?
- Você gostava de assistir os jogos e sempre dizia que eu
seria um ótimo professor por que sabia falar com a equipe,
principalmente quando tinha alguma briga. E sempre tinha.
Sorri para ele.
- Não me lembro dos jogos.
- Você costumava ir com a Célia. Lembra dela?
Ela veio em minha mente rapidamente e apagou.
- Lembrei e não lembrei. Lembrei por que falou o nome,
parece que vi ela na mente e sumiu. Loira, com trança no cabelo.
61
- Sim. Eu gostava dela e você vivia tirando sarro de mim.
Rimos de novo. Eu estava gostando da conversa, mas queria
mesmo era saber dos meus pais.
- Mas se minha mãe era professora, por que eu não ia com
ela para a escola ou voltava com ela?
Ele me olhou, parecendo não querer contar.
- Sempre estávamos com ela, mas depois que ela ficou
doente, ela não dava mais aulas.
- Ela teve que parar de dar aulas? O que ela tinha?
Ele estava muito sem graça, senti que ele não queria contar.
Devia ser grave.
- Sua mãe era conhecida por todos na vila ou pela região
dos sitiantes. Lugar pequeno, todo mundo conhece todo mundo e
sua mãe era professora, o que a tornava mais conhecida ainda.
Você realmente não se lembra?
Fiz que não, eu estava ansiosa, queria saber mais.
- Não lembro nada. Continue por favor.
Ele me olhou e mexeu a cabeça, como se não tivesse
alternativa a não ser continuar.
- Teve uma vez que ficamos esperando por ela para irmos
embora. Nesta época íamos você, eu, ela e mais umas duas
crianças, que moravam no mesmo caminho nosso.
- Devia ser uma bagunça.
62
- Sim, era. Mas não neste dia.
Ele me olhou, segurou minha mão um pouco e logo soltou.
- Nesta época, íamos sempre com ela, ela ainda não estava
doente.
Olhei para ele, esperando.
- Mas, criança, você sabe. Ficamos brincando no pátio e não
percebemos que era tarde, na nossa cabeça ela iria procurar a
gente quando fosse a hora de ir embora.
Senti um ar de preocupação nessa história, ele ficava me
olhando de soslaio, não queria contar.
- Por favor, continue.
Fiquei de olho fechado, esperando, tentando lembrar.
- Meu pai chegou correndo, desesperado, achou que eu
tinha ficado na casa de algum amigo e como não me achou, foi
até a escola. Estávamos lá, brincando. Ele perguntou onde estava
sua mãe e você só respondeu: “ué, dando aula” e continuamos
correndo. Bem típico de criança.
- E onde estava minha mãe?
Ele segurou minhas mãos novamente.
- Ela já tinha ido embora.

63
Capítulo 12

Olhei confusa para ele, não estava entendendo o que ele


queria me dizer. Como ele viu que não entendi, perguntou:
- Está me entendendo?
Pensei um pouco na história que ele estava contando e
respondi:
- Ela nos esqueceu?
Ele ficou quieto. Fiquei remoendo a história, parecia que eu
não tinha entendido. Ele continuou a narrativa sem me criticar ou
dizer que eu estava errada.
- Meu pai entrou na escola, não sei se ele encontrou ou falou
com alguém. Ele nos chamou e fomos embora.
- Só estava você e eu na escola?
- Não, tinha as duas crianças que falei, que ia embora com
a gente todo dia. Meu pai que levou todos embora neste dia.
Eu ouvia silenciosamente, com vontade de perguntar onde
estava os pais dessas outras crianças que não viram que não
chegaram em casa, como o pai dele viu. E os meus pais? Quando
eu ia perguntar, ele continuou:

64
- Meu pai estava muito quieto. Quando chegou na porteira
do sitio que você morava ele falou que ia entrar para saber se sua
mãe estava lá.
Ele fez uma pausa, me olhou e falou:
- Goiabinha, meu pai não era um homem muito simpático
ou carinhoso.
Falou como se pedisse desculpas.
- Quando ele viu sua mãe ele foi gritando e acusando.
Olhei para ele com uma mistura de ansiedade e raiva. Como
assim alguém gritava com a minha mãe? Mas só respondi:
- Queria me lembrar.
- Não sei se vale a pena, foi muito triste esse dia.
- Eles brigaram muito?
- Antes fosse só a briga. Meu pai viu sua mãe limpando o
jardim e foi logo perguntando por que ela não tinha trazido as
crianças.
Fiquei curiosa, olhei com aquele olhar infantil, pedindo,
implorando, continue, não pare.
- Sua mãe nos olhou, deu boa tarde e só respondeu: “que
crianças”?
Já fiquei imaginando o pai do Bolinha indo para cima da
minha mãe. Espera, eu vi o pai dele na cabeça ou só imaginei?

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- Ele perguntou novamente para sua mãe, na realidade ele
gritava “Por que as crianças ainda estavam na escola?” – Ele
imitou a voz brava do pai.
- E minha mãe, o que ela respondeu?
- Sua mãe olhou para nós, sorriu e respondeu: “acho que
porque elas estudam”.
Eu dei risada, achei minha mãe uma pessoa gozada, mas ele
me olhou e fez que não com a cabeça.
- Sua mãe não era assim Goiabinha, só depois que todos na
cidade foram compreender, mas neste dia não foi divertido.
- Não estou conseguindo entender Bolinha.
- Vou continuar e você vai entender.
- Obrigada e desculpe.
Ele sorriu, generoso.
- Imagino sua dor e ansiedade.
Confirmei com a cabeça. Ele continuou.
- Sua mãe continuou mexendo no jardim, parecia que ela
nem via a gente ali. Meu pai pegou minha mão e quando
estávamos no portão, ela perguntou se não íamos levar a menina.
Silêncio. Depois de segundos sentindo o olhar forte em
mim, entendi a frase dele. A menina era eu, minha mãe não
lembrava da filha, de mim. Tinha me esquecido na escola,

66
esquecido que era mãe. Senti meus olhos embaçarem, mas não
chorei, eu estava muito ansiosa para ter tempo de chorar.
- O que seu pai fez? – Consegui perguntar, a voz
embargada.
- Meu pai ficou confuso no início, lembro que ele olhou
para mim, como se perguntasse se eu tinha entendido, fiz que não
e fomos embora.
- E eu?
- Eu acho que você nem entendeu o que estava acontecendo.
Acho que naquele momento eu também não tinha ideia do que
estava acontecendo. Éramos crianças.
- Quando eu soube da doença da minha mãe?
- Calma, tem um pouco mais ainda da história que estou
contando, quero contar assim, para que entenda, como nós,
ficamos sabendo da doença da sua mãe.
- Está bem.
- Estávamos indo embora, percebi que meu pai, que antes
estava bravo, agora estava preocupado. Ele voltou até o portão e
perguntou para sua mãe onde estava o Pedro.
Ele falou “Pedro” num tom mais forte, acho que para
lembrar que estavam perguntando do meu pai. Os nomes dos
meus pais eu sabia, não lembrava, claro, alguém havia dito e era
o que estava em meus documentos.
67
- Ela respondeu? Meu pai estava em casa?
Eu já estava ficando preocupada com a minha personagem
nessa história.
- Ela respondeu sim. Disse que deveria estar na escola igual
“essas crianças”, ela respondeu e apontou para nós.
Nós rimos um pouco, eu imaginando a cena e ele rindo
comigo, talvez para me consolar um pouco. Aos poucos fui
entendendo por que ele falou num tom mais alto o nome do meu
pai. Mas nem processei direito e ele continuou a história.
- Mas você Goiabinha – ele virou para mim e falou em um
tom sério - você falou para sua mãe: “Mãe, o pai não estuda, ele
já é adulto”.
Eu era esperta.
- E ela?
- Foi como se ela te visse pela primeira vez. Te olhou, olhou
para o meu pai e do nada, disse: “Seu Valdir, obrigada, o senhor
trouxe minha filha. Ela já almoçou?
Agora eu estava preocupada.
- O que será que minha mãe tinha? – Eu pensei em voz alta.
- Não sei, mas meu pai foi para casa e comentou com a
minha mãe. Eu não lembro muito bem, por que não me deixaram
escutar, mas lembro que fiquei debaixo da janela da cozinha, para
ouvir.
68
- Você é danado Bolinha. Me conte, o que ouviu.

Capítulo 13

Ele parecia longe, lembrando do passado.


- Lembro que ele disse para minha mãe: “ela pediu para
trazer a Paulinha, não lembrava que era filha dela e do nada,
lembrou, mas achou que ela estava aqui em casa, não fazia ideia
que os deixou na escola, tem algo errado com ela Lena”. – Ele
imitava a voz do pai dele.
Ficamos ali, quietos, ele relembrando e eu tentando lembrar
e ao mesmo tempo entender.
- Na minha cabeça de criança, sua mãe logo ia sarar, não
dei muita importância para o que meu pai falou para minha mãe.
- Mas não foi isso que aconteceu.
Percebi o rosto preocupado dele.
- Não. Sua mãe começou a esquecer as aulas, os amigos,
onde era sua casa, emagreceu muito.
- E meu pai?
- Só lembro de ouvir o que meus pais comentavam. Que sua
mãe precisava de um médico e estavam vendendo o sítio. E só
lembro que um dia, minha amiga foi embora.

69
Olhei para ele, queria me lembrar desse dia.
- A gente se despediu? Eu estava bem? Eu sabia da doença
da minha mãe, como eu reagia?
- A gente não se despediu, mas você e eu já não éramos tão
amigos depois da doença da sua mãe.
- Por que?
- Você mudou. Não sorria, não brincava. Você não queria a
companhia de mais ninguém, os professores viviam te chamando
para conversar, mas não sei o que era, você não falava mais
comigo. Hoje, consigo ver a situação. Acho que você ficou
envergonhada pela sua mãe, por que alguns na escola tiravam
sarro.
- Tiravam sarro?
Ele ficou encabulado.
- Você sabe como são crianças. Eles diziam que sua mãe
estava caduca e você começou a ficar agressiva, sempre estava
brigando com alguém, hoje eu entendo, mas na época, acabei me
afastando de você.
- Entendo.
Mas não entendia. Como assim tiravam sarro de uma pessoa
doente, da minha mãe? Eu sentia uma dor que não conhecia por
alguém que eu nem lembrava, mas sentia que amava.

70
- Me desculpe Goiabinha. Eu jamais faria isso se tivesse a
cabeça que tenho hoje.
- Como você mesmo disse, éramos crianças, não tínhamos
entendimento da situação.
- Somente depois, quando soube do acidente, que percebi
que talvez tenha ido embora chateada comigo.
- Sorte sua que não lembro.
Rimos.
- E meu pai, como ele lidava com a situação?
Ele ficou pensando um pouco e falou:
- Seu pai cuidava da sua mãe. Lembro que meus pais
comentavam que ele teve que parar com as plantações no sitio.
- Era tão grave assim?
- Goiabinha, acho que teria que conversar com alguém de
lá, da vila, ou com minha mãe. Ela lembrará melhor. Para mim,
sua mãe adoeceu, ouvia os comentários em casa e de repente,
foram embora. Talvez meus pais tenham mais detalhes para te
falar.
- Sim, acho que farei isso.
Ele ficou me olhando. Acho que ele sabia de mais coisas,
mas queria me proteger.
- Mas será que isso é bom para você?
- Como assim? Eu preciso saber do meu passado.
71
- Mas alguém te contando? Não vai ser pior, não teria que
lembrar sozinha?
- Quando sofri o acidente, ouvi os médicos falando que meu
trauma havia sido tão grande que isso atrasaria minha memória.
Agora, acho que o trauma, já vinha antes do acidente.
- Talvez não seja bom reviver.
- Mas ouvir o que me contou, ajudou muito. Eu queria saber
por que estávamos na estrada quando sofremos o acidente e pelo
que falou, estávamos indo embora, para um lugar onde minha mãe
pudesse ser tratada.
- Sim, isso tenho certeza. Ouvia meus pais falando que
vocês iam para a cidade grande, pois lá teriam médicos para
ajudar.
Fiquei pensativa e perguntei:
- Me falaram que tinha malas no carro, mas nenhuma
minha. Acho que...
Não consegui completar a frase. Mesmo sem lembrar era
doído imaginar que minha mãe não lembrava da própria filha.
- Você acha que sua mãe não lembrou que você ia junto?
- Sim. Mas meu pai, por que ele não fez as minhas malas?
Olhei para ele confusa.
- Talvez estivesse sendo uma tarefa sofrida para ele, cuidar
de você, da venda do sítio, da sua mãe. Talvez sua mãe tenha
72
arrumado as malas e seu pai não percebeu que ela não tinha feito
a sua, você sabe como são os homens.
- Sim, pode ser.
- Meus pais falavam que seu pai estava muito cansado.
- Eu estudei um pouco desse tema no curso. Eles viram
criança, mas não aprendem como uma criança, definham.
Ficamos algum tempo em silêncio. Ele olhou para o relógio
e falou:
- Eu preciso ir embora Goiabinha. Você ficará bem?
Eu não queria deixá-lo ir, ele fazia parte do meu passado.
- Ficarei. Eu também preciso ir.
- Com quem está agora, como ficou após o acidente?
Contei para ele sobre minha família adotiva. Não contei que
estava namorando um dos irmãos.
- Fique bem. No futuro, se precisar, vá até a vila. Talvez
estando lá, consiga lembrar de algo.
Nos despedimos e quando ele já estava longe, lembrei que
não perguntei onde ele morava, se os pais estavam na cidade, se
tinha telefone. Teria que esperar até o ano letivo para tentar
encontra-lo na escola novamente.

73
Capítulo 14

Meus pais adotivos não gostaram quando avisei que iria até
a vila onde meus pais moravam. Aproveitaria as férias da escola
e iria descobrir meu passado, eu precisava.
- Por que não podem ficar feliz por mim?
- Minha menina, nosso medo é que isso te traga mais
incertezas.
Meu pai adotivo que raramente falava:
- Queríamos que você se lembrasse sozinha.
Eu ia mencionar alguma coisa, mas ele continuou:
- Ano passado, quando lembrou do rosto dos seus pais,
nunca tinha visto um sorriso tão lindo em seu rosto.
- Verdade. Sua alegria invadia todo mundo. Temos medo
de que indo até lá, descubra algo que tire esse sorriso.
- Mas eu preciso ir. Gostaria que apoiassem.
Olharam um para o outro, dona Maria me abraçou e falou:
- Haja o que houver, estaremos aqui, ansiosos pelo seu
retorno.
Dei um abraço apertado nos dois. Eu era amada. Estava
deixando esse carinho chegar até a mim.

74
- Aqui é o seu lar, se o que descobrir te fará bem ou mal,
saiba que estaremos aqui, esperando por você. – Meu pai falou.
Eu estava ansiosa. Liguei para o Victor naquela noite. Eu
precisava contar para ele.
- Acho que está certa, saber o que aconteceu, com pessoas
que conheceram você e seu pai, ajudará a responder as perguntas
que ficam na sua cabeça.
Fiquei feliz com o apoio dele.
- Queria que fosse comigo.
- Queria estar lá contigo, mas acho que é um passo que só
você pode dar.
- Tem razão.
- Quando estiver pronta para voltar, estarei em casa, te
esperando.
Fiquei mais feliz ainda.
- Então virá para o natal?
- Com certeza. Estou fazendo algumas provas, mas na
semana do natal estarei em casa.
Eu não sabia quanto tempo levaria essa minha pesquisa pelo
meu passado, mas esperava que até o natal, eu também já tivesse
com todas as respostas.
- Boa viagem. Se cuide.
- Obrigada. Amo você.
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- Também te amo.
Desligamos e fui até a cozinha ajudar com a louça do jantar.
- Me conte mais sobre sua conversa com esse menino que
encontrou hoje.
Contei para ela o que o Pablo tinha me falado.
- Antes dos problemas com sua mãe, você parecia ter uma
infância feliz.
- Sim. Isso já responde algumas perguntas que ficam na
minha cabeça.
- Você se perguntava se era feliz?
- Eu ficava me perguntando se meus pais me amavam, se
brincavam comigo.
- Deve ser muito difícil não lembrar.
Ela fez um carinho na minha cabeça.
- Sim, é muito estranho, eu tento e não consigo. Eu queria
saber e hoje, pelo pouco que ouvi, soube que minha mãe era
professora, feliz e me amava. Depois ela esqueceu, mas até ter a
doença, ela me amou.
- E se ela soubesse que ia ter essa doença, garanto a você
minha menina, que ela teria feito alguma coisa, para te deixar de
lembrança.
- Verdade. Parece que foi rápido o avanço da doença dela.
- Esse menino, o Pablo, ele mora aqui, na cidade?
76
- Acredita que perguntei só sobre mim? Esqueci de
perguntar onde ele mora.
Rimos.
- Imagino quantas perguntas fez na ansiedade de querer
saber tudo.
- Acho que assustei ele.
- Vamos fazer sua mala. Se te conheço, essa noite será
longa.
- Acho que não vou conseguir dormir.
- Vai arrumando o que irá levar, quando terminar, farei um
chá, para tirar essa adrenalina que está no seu corpo todo.
- Será que tem chá para isso? – Era meu pai.
- A noite será longa. – Respondi rindo.
Posso não lembrar do amor dos meus pais biológicos,
mesmo sabendo que um dia me amaram, mas ali, naquela casa,
eu sabia que era amada.

77
Capítulo 15

Estava na rodoviária. Despedi dos meus pais e após ouvir


muitos conselhos e receber vários abraços, entrei no ônibus. Eu
tinha um caminho longo pela frente, seriam horas dentro daquele
veículo. Estava nervosa, ansiosa e com medo. Medo do que me
contariam, medo do que iria descobrir. O que levaria meus pais a
saírem de um lugar onde moraram a vida toda, seria realmente a
doença da minha mãe? Pelo que o Bolinha falou, ela precisava de
um médico específico, talvez de remédios que não tinham no
sítio. Mas precisava vender tudo? Qual a doença da minha mãe?
Foi com esses pensamentos que cochilei. Acordei com alguém
gritando, mas era só o motorista do ônibus avisando que
estávamos próximo de uma parada e que iríamos almoçar.
Almoço? Quanto tempo dormi? Motorista, não podemos ir logo,
quero muito chegar ao meu destino. Mas já era adulta, sabia que
não era assim que as coisas funcionavam. E eu precisa esticar as
pernas, estavam dormentes, era melhor descer e comer alguma
coisa.
- Posso me sentar ao seu lado?
Queria dizer não, que não queria companhia ou conversar,
mas uma pessoa educada e normal não diria isso. Mas também

78
não fui simpática, apenas afirmei com a cabeça que sim, não
deixei sinal que estava gostando.
- Vai até a última parada?
E eu sabia qual era a última parada?
- Vou até Maringá, depois irei pegar outro ônibus.
Ela sorriu, parecia que ia perguntar mais alguma coisa, mas
só disse:
- Vai longe ainda.
Fiquei olhando, mas não respondi. Sim, eu ainda tinha mais
um dia inteiro de viagem. Como eu não fiz nenhum comentário,
acho que ela desistiu. Comeu quieta e voltamos aos nossos
assentos no ônibus. Finalmente, seguimos viagem. Meus olhos
não desgrudavam do relógio, se algum imprevisto acontecesse até
a cidade de Maringá, eu perderia o único ônibus que levava até a
vila e teria que pernoitar por perto da rodoviária e sair somente
no outro dia. Como só havia um ônibus por dia, devia ser um lugar
muito pequeno para onde eu estava indo, por que eu não
conseguia lembrar? Se morei tantos anos, se fui feliz, estudei,
brinquei, por que eu não conseguia lembrar? Será que eu tinha a
mesma doença de minha mãe? E novamente acordei com alguém
me cutucando. Era a mesma mulher que sentou comigo no
almoço. Olhei assustada.
- Chegamos.
79
Me senti mal. Tratei ela tão mal e ela estava ali, sendo
gentil.
- Obrigada.
Ela só fez que sim com a cabeça e foi em direção a porta.
Como eu era quase a última, deduzi que ela relutou em me
chamar. Não foi assim tão gentil, mas pelo menos a consciência
dela pesou e fez com que me acordasse, agora a minha
consciência que pesava. Eu tinha que ser mais amável. Iria anotar
isso em algum lugar da minha memória, para trabalhar em cima
disso quando retornasse.
- Achei que não ia descer.
Ela estava esperando por mim? Por quê? Queria que eu
pedisse desculpas? Algo na minha memória cutucou, para praticar
“ser mais amável” desde já.
- Obrigada mesmo por me acordar.
- O motorista ia te acordar, afinal, é a última parada dele.
- Hum.
Então o que ela queria? Por que estava me esperando?
- Vai ficar mesmo me ignorando? Paula, já faz anos, não
pode me culpar pelo que aconteceu. Eu já me culpo o bastante por
nós duas.

80
Olhei muito, mas muito espantada para ela. Do que essa
doida estava falando. Por que ela sabia meu nome? Culpá-la de
que?
- Não podemos conversar? Somos adultas agora.
Ela me conhecia. Meu Deus, como é ruim, quantas pessoas
eu devo ter visto e não ter reconhecido? Quantas pessoas talvez
iriam sorrir para mim, por me conhecer, mas eu não olhava? Será
que pensavam que eu era chata?
- Vem, me dá um abraço.
Ela me abraçou, me envolveu e eu me deixei abraça-la.
Como contar para ela que eu não fazia ideia de quem era ela? Ela
me puxou e falou:
- Venha, vamos perder o único ônibus que vai nos levar para
aquele fim de mundo.
Eu a segui e ela tinha razão, me conhecia, pois me levou
exatamente para o ônibus com a placa Terra Rica.
- Tem alguém te esperando em Terra Rica ou vai para a
Vila?
Ela sabia muito sobre mim.
- Vou para a Vila.
Ela olhou muito rápido para mim, como se não acreditasse.
- O que vai fazer lá?
Tentei responder com outra pergunta.
81
- Você não vai pra Vila?
- Não, vou visitar minha mãe que agora mora em Terra
Rica, nunca mais fui para a Vila depois que nos mudamos.
- Quando se mudou?
Ela me olhou, demorou um tempo para responder. Eu
aguardei.
- Faz dois anos. Meu pai está lá ainda, não consegue sair do
sítio. Mas minha mãe - Senti que ela não queria contar – Minha
mãe ficou doente e agora mora com a minha irmã em Terra Rica.
- E você, mora onde?
- Eu estou fazendo faculdade em Londrina. As vezes venho
ver minha mãe.
- O que sua mãe tem?
- Está com câncer e mais alguns problemas.
- Sinto muito.
- Ela descobriu tarde, sabe como é, morar naquele fim de
mundo e nunca ir a um médico. Ela não tem muito tempo de vida.
- Que bom que sua irmã está ajudando.
Eu não sabia o que falar. Será que eu conhecia a mãe e a
irmã dela? Estávamos entrando no ônibus quando ela virou e
falou:
- Paula, eu sinto muito. Eu era criança, jamais deveria ter
dado aquela ideia maluca se eu soubesse o que aconteceria.
82
Capítulo 16

Olhei confusa para ela, do que ela estava falando? Ela


continuou tagarelando e não entrava no ônibus. Eu estava com
medo do motorista partir sem a gente.
- Eu estava com ciúmes do Pablo, se você fosse embora, ele
seria só meu.
Pablo, o Bolinha. Então ela também o conhecia.
- Eu vi o Pablo esses dias.
Ela parou novamente e me olhou, acho que ainda tinha
ciúmes dele.
- É por causa dele que estou hoje aqui, indo para a Vila.
Ela tentou se controlar, mas não aguentou.
- Como assim, por causa dele. Ele não mora mais lá.
- Vamos entrar e escolher nosso lugar? Aí te conto.
Ela escolheu as últimas poltronas, passei olhando um a
uma, será que teria mais gente no ônibus que me conhece e não
reconheci? Por que eu lembrei do Pablo e não lembro dessa
moça? Ela guardou a mala em cima dos nossos assentos, guardei
a minha e peguei minha manta, estava com frio.
- Onde você está morando depois que seus pais...

83
Ela não terminou a frase, mas sabia que meus pais haviam
morrido.
- Estou morando em Ponta Grossa.
Ficamos em silêncio. Eu tinha que fazer mais perguntas
para ela.
- Olha, vou ser sincera com você. Na noite do acidente, dos
meus pais, eu também estava junto.
- Eu sei, vocês estavam indo embora.
- Sim. Me machuquei bastante e...
- Ficamos sabendo somente do acidente, ninguém nunca
soube do que tinha acontecido com você.
Ela não me deixava falar. Tive que ser rápida.
- Eu não me lembro de você.
Silêncio. Ela ficou me encarando. Quieta. Continuei:
- Não lembro de nada do meu passado. Desculpe. Não sei o
seu nome e comecei a chorar.
Ela me abraçou.
- Por isso me ignorou esse tempo todo.
- Sim.
- Eu vi você indo para a lanchonete, no almoço, ia te
cumprimentar, mas você virou o rosto.
- Não te vi, se te olhei e virei o rosto é por que não
reconheci, não consigo lembrar de nada.
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- Achei que ainda estava brava. Tentei novamente na
lanchonete ao sentar do seu lado, mas você nem olhou para mim.
- Desculpe. Na lanchonete, eu não queria conversar, estava
ansiosa para chegar na Vila, conhecer o meu passado.
Ela ficou me olhando, depois de um tempo comentou:
- Mesmo que ele seja um pouco, como posso dizer, ruim?
- Por favor, me conte tudo o que sabe, desde o início.
Talvez eu lembrasse e não precisasse ir até lá.
- Oi Paula, me chamo Célia.
- Célia. A menina que o Pablo gostava.
- Você lembrou?
-Não, ele contou quando o vi.
Ela ficou um pouco triste, mas logo disparou a falar.
- E ele, como está?
Contei para ela como foi nosso encontro e as coisas que ele
contou.
- Isso mesmo, sua mãe ficou doente, foi muito de repente,
ou nós notamos assim. Ela lecionava e era uma das professoras
mais carismática. A gente a amava. Ela só tinha você de filha e já
era de idade, talvez por isso estava sempre contente.
Eu sorri, imaginando a cena.
- Ela levava sempre alguma coisa para nós três.
- Nós três?
85
- Sim, você, eu e o Pablo. Nós íamos embora juntos até uma
parte, pois eu morava na vila e vocês no sítio, mas estávamos
sempre juntos. Sua mãe geralmente nos levava depois que
acabava a aula, somente quando havia reunião que outro pai ou
mãe nos buscava.
- E ela nunca demonstrou estar doente?
- Não sei dizer Paula, pois éramos criança, vivíamos
correndo, então, se havia algum problema, a gente não via.
- O Pablo falou que foi rápido o avanço da doença dela.
- Sim, foi rápido. Foi como se de um dia para o outro, ela
acordasse outra pessoa. Ela era sua mãe e sempre levava a gente
embora e então um dia, ela esqueceu a gente, depois esqueceu que
era sua mãe.
Exatamente como contou o Bolinha.
- Lembro que alguns começaram a comentar que tinham dó
de você e aí comecei a escutar, pois falavam seu nome e tentavam
esconder de mim.
- Por que dó de mim, era tão grave assim?
- Olha, hoje eu sei um pouco melhor por que conversamos
quando – Ela gaguejou - bem, quando soubemos da morte dos
seus pais.
Mexi com a cabeça afirmando.

86
- Sua mãe simplesmente não te levava para a escola, você
acordava e ela já tinha saído, seu pai não notou no início, foi
necessário o diretor da escola conversar com ele, pois ele não
aceitava, achava que era uma fase, que ela estava cansada.
- Eu acordava sozinha em casa? Como você sabe?
- Conversamos sobre isso um dia. Você chorou muito e
disse que sua mãe não se lembrava de você em vários momentos,
que achava que ela estava ficando velha e não queria que ela
morresse, mas jamais pensamos ser uma doença, simplesmente
que ela era idosa.
- Não era próxima do meu pai, eu não podia conversar com
ele?
- Seu pai era mais velho ainda que sua mãe, era muito
carrancudo, tínhamos medo dele, não você, nós, o Pablo e eu, ele
raramente sorria. Mas você amava ele e ele te amava, mas não era
um pai jovem entende? Ele não queria conversar, queria saber se
você ia bem na escola, se tinha roupa, comida, essas coisas.
- Mas ele não via que eu ficava em casa sozinha?
- Seu pai acordava cedo, como todos os que cuidam de
campo, você já tinha uns 12 anos, se virava sozinha, do nada, você
aparecia na escola.
- E minha mãe não estranhava quando eu chegava.
Ela ficou quieta, mas vendo que eu esperava, continuou.
87
- Então, na primeira vez que você não apareceu na aula, eu
encontrei ela no corredor e perguntei de você, ela simplesmente
disse que devia estar em alguma classe, hoje eu sei, que ela achou
que você era uma aluna, que eu não perguntava da filha dela.
- E você não disse que eu não estava?
- Não, fiquei com medo de você estar aprontando e fui te
procurar, claro, não achei, começou a aula e um tempo depois
você entrou. Eu não achei estranho quando me contou que sua
mãe não te levantou, achei que ela tinha te chamado e você não
tinha levantado e ela simplesmente foi para o trabalho. Sei lá,
talvez te dar responsabilidade, pois ela vivia falando que você
deveria tomar as rédeas da casa.
- Ela queria que eu tomasse as rédeas?
Ela riu.
- Sim, quando íamos embora ela vivia falando que
devíamos nos portar como moças, pois já tínhamos tamanho e
corpo de moça. Nós duas ficávamos vermelhas de vergonha do
Pablo. Então, quando você comentou comigo que ela não tinha te
acordado, lembro que comentei isso, que talvez ela quisesse que
você acordasse sozinha.
Fazia sentindo.
- Mas aí ela entrava na sala de aula, na matéria dela e tinha
dias que ela agia como sua mãe, mas tinha dias que ela nem te
88
olhava. E começou a ficar mais estranho por que ela entrava na
sala, deixava os livros e ia para algum lugar e não tínhamos aula.
- Não tínhamos aula, como assim? Para onde ela ia?
Ela riu um pouco, relembrando.
- Um dia ela foi no mercado, no outro ela simplesmente
voltou para o sítio, claro, isso só ficamos sabendo depois, quando
todos foram montando a história para entender.
- Todos?
- Sim, neste dia que ela foi embora para o sítio, nós não
vimos, ficamos lá no pátio correndo e gritando e não fomos
embora, para nós, crianças, o tempo não tinha passado e só
brincamos. Foi então que o pai do Pablo apareceu.
A história que o Pablo havia contado.
- Ele ficou muito bravo. Ele me levou e depois foi para a
sua casa. Depois disso a vila toda comentava, que sua mãe não
estava ....
Ela não completou a frase, mas lembrei da fala do Pablo.
- Bem da cuca?
- Desculpe, eu ia dizer que ela não estava saudável, mas
sim, usávamos essa frase e muitos usavam outras piores. Muitos
riam da sua mãe Paula, por isso digo que ir lá, pode te fazer sofrer.
- Riam dela? Mas ela estava doente, não percebiam?
Que vontade de chorar.
89
- Sim, e foi por isso que brigamos e nos afastamos um pouco
nessa época.
Eu já tinha raiva dela ali, só de imaginar que ela ria da
minha mãe.
- Eu sei como isso machuca, por que hoje sou crescida
Paula, mas na época, a gente achava que era sei lá, passageiro,
não sabia que isso te chateava ou machucava por dentro.
- Eu não lembro se me machucava, mas hoje sinto raiva só
de imaginar vocês rindo da minha mãe.
- Você não lembra mesmo da nossa briga?
Fiz que não com a cabeça, ainda com raiva dela.
- Sua mãe, tinha dias que agia como se você fosse uma aluna
e não filha dela. Ela ia embora e você ficava lá no pátio, triste, e
o Pablo, sempre atencioso, ele falava: “vamos meninas, vamos
acompanhando, não precisamos lembrar da Paula para ela, uma
hora ela enxerga”, mas íamos até o fim e você nos olhava triste,
seguindo sua mãe, até o sitio.
- Mas ela nunca perguntava de mim, nunca se lembrava?
- Como eu disse, tinha dias que ela era sua mãe, chamava
de filha, fazia algum comentário na sala de aula sobre você, mas
tinha dias que ela simplesmente agia como se fosse só a
professora. Minha mãe dizia que na mente dela, ela havia voltado

90
para os anos de recém casada, conhecia seu pai, mas não se
lembrava da filha.
- Mas e na minha casa?
Ela pegou uma mantinha da mochila que levava, colocou
nas pernas e ficou olhando para a janela.
- Como era na sua casa, você e ela, não sei dizer.
Eu queria lembrar. Mas algo nela me incomodou, ela sabia
de alguma coisa e não queria falar.
- Célia, o que foi, me conte, minha mãe me machucou?

Capítulo 17

Ela não virou, continuou olhando para fora, através da


janela do ônibus.
- Ela não te batia, nada disso, mas pedia para você ir para
sua casa, tipo, ir embora, como se você não morasse lá.
- Como sabe disso?
- Como eu disse, brigamos por causa da sua mãe, mas não
por que eu tirei sarro dela, mas porque você afastou o Pablo e eu.
Você escutava alguns fazendo piada da sua mãe e ia pra cima,
batia, brigava. E não queria mais falar comigo, não sei se você
tinha vergonha ou se achava que eu também tirava sarro. Em um
91
desses dias que sua mãe foi embora sem te levar, fomos
caminhando, atrás dela, naquele dia você estava triste, por que sua
mãe esquecia você poucas vezes, mas naquela semana, já era a
terceira vez. Caminhávamos em silêncio nesse dia, já tínhamos
tentado de tudo para te fazer sorrir. Você não falava nada, não
andava perto da gente. Então eu esperei você e falei um monte de
coisas.
- Não consigo me lembrar.
- Falei que eu era sua amiga, que você podia morar comigo.
E foi aí que brigamos mais ainda.
- Como assim, mais ainda?
- Ah, você achou que eu queria tirar você da sua mãe, que
eu não te entendia, que sua mãe precisava de ajuda e que era sua
função como filha.
- Minha mãe não ouvia essa briga?
- Não. Ela já estava longe. O Pablo deixou a gente e ficou
só você e eu. Então você chorou e me contou um monte de coisas
sobre sua mãe. Ficamos mais unidas e eu adorei, por que o Pablo
se afastou e eu pensava que assim, ele esqueceria você.
- Mas ele gostava de você, ele me falou isso.
- Era o que ele falava pra você, mas quando estava comigo,
só falava de você.
- Desculpe.
92
- Ora, não é sua culpa, éramos crianças, foram tempos
maravilhosos.
- Queria me lembrar. Queria lembrar da nossa amizade. Mas
me conte mais da minha mãe.
- Quando você me contou coisas da sua mãe que ninguém
sabia, eu comecei a fazer perguntas para minha mãe, sobre sua
mãe, para entender melhor da doença. Eu queria te ajudar e você
e eu não sabíamos o que sua mãe tinha. Eu contei algumas coisas
para minha mãe e ela ficou muito preocupada.
Eu ia perguntar das coisas que eu tinha contado da minha
mãe para ela, mas achei melhor deixar ela contar mais sobre esse
dia. Eu ficava imaginando a estrada, as arvores, mas só
imaginação, nada vinha à memória.
- Teve um dia, que você chegou na escola sozinha de novo,
mas no horário certo, você falou que não dormia direito com
medo de perder a hora de acordar, você estava mais magra que o
normal, eu não reparei, minha mãe que comentou com a mãe do
Pablo. Eu ouvi. Ouvi a diretora falando com minha mãe sobre seu
desanimo na hora de brincar, sobre suas notas que tinham piorado
e que iriam conversar com seu pai.
- Elas ficavam me vigiando?
- Não precisava. Você ficava onde sua mãe estava. No
intervalo, você ficava perto da porta da sala dos professores,
93
ficava olhando para sua mãe, não sei qual o seu medo, mas em
vez de brincar, você ficava cuidando dela. No horário das aulas,
direto você pedia para ir ao banheiro, mas eu sabia que era para
ver onde sua mãe estava e acho que a diretora também sabia.
Quando ela vinha dar aula para nossa sala, você ficava tentando
chamar a atenção dela e as vezes...
- Ela não me via.
Eu chorei, chorei por que eu realmente estava triste.
- No início ela não te via, ou se via, era um sorriso normal,
como para qualquer estudante. Mas depois, quando ela via que
você estava perto, ela começou a te tratar mal.
- Me tratar mal?
- Não sei se os outros alunos viram, mas ela foi falar mal de
você para a diretora.
- Meu Deus, que situação.
- Sim. Eu soube por que a diretora contou isso para minha
mãe. E foi após esse dia, que decidiram conversar com seu pai
para tomarem uma decisão.
- Mas o que ela falou de mim para a diretora?
- Paula, você realmente quer saber? É tão triste.
- Eu preciso entender meu passado Célia. Por mais triste
que seja, eu preciso saber.
Ela deu um suspiro fundo e continuou.
94
- A diretora contou que sua mãe falava de você como aluna.
Que a aluna Paula estava doente, que tinham que chamar os pais
dessa aluna, por que muitas vezes, até durante o jantar, você
aparecia na casa dela e ficava chamando de mãe.
Era pra chorar ou rir?
- Meu Deus. Que horror, eu devo ter sofrido demais.
- Sim minha amiga. Você sofreu. Mas no dia que sua mãe
lembrava de você, nossa, você era uma menina alegre, pulava,
brincava.
- Me conte, elas conversaram com meu pai?
Novamente ela parecia não querer contar.
- Me conte Celia.
- Sim, pediram para o seu pai ir na escola, um pouco antes
da aula acabar para que sua mãe não soubesse. Seu pai não gostou
da reunião e disse que era só uma fase, que elas precisavam
entender. Pediu um pouco mais de tempo.
- E aceitaram?
- Sim, desde que seu pai ficasse mais de olho em você em
casa. Contaram para ele como sua mãe estava agindo e ele não
aceitou muito bem.
- É difícil mesmo de acreditar.
- Sim, mas ele teve a prova no mesmo dia da reunião.
- Prova? Como assim?
95
- Quando acabou a reunião, ele ficou esperando por você e
sua mãe. Estávamos indo para o pátio quando você o viu, você
correu e o abraçou e sua mãe estava vindo ao encontro dele
também e ela olhou encabulada para vocês dois, por que você o
chamou de pai.
- Estou imaginando a cena. Ela não gostou?
- Ela olhou para vocês dois e falou para você, que não podia
chamar o marido da professora de pai, que não estava mais sendo
legal essa história de você também chamar ela de mãe. Disse que
iria chamar seus pais para uma reunião. A diretora que estava
próxima, olhou para o seu pai, para que ele visse o quanto isso te
machucava.
- E o que aconteceu?
- Você ficou muito triste. Seu pai olhou para a diretora,
pegou o braço de sua mãe e foram caminhando, ele sabia que você
iria embora independente do que sua mãe havia dito.
- Ele não me defendeu ou tentou explicar para minha mãe?
Ela fez que não com a cabeça.
- Ele também me deixou na escola, igual ela fazia comigo?
- Ele sabia que você iria embora, você ia todo dia.
Ela tentou falar mansamente para me agradar. Mas
continuou:

96
- Neste dia, você chorou muito. Você me perguntava:
“Célia, por que meu pai não fala pra ela que ela é minha mãe?”
– Eu não sabia o que responder para você.
- Imagino para uma criança como deve ter sido duro.
- Sim, mas depois desse episódio, seu pai voltou a conversar
com a diretora e decidiram que sua mãe deveria tirar uma licença
médica.
- Que bom.
- Sim e não.
Olhei para ela interrogando.
- Você ia para a aula, triste, mas ia. Então, do nada, não foi
mais.
- Não fui mais?
- Sim, você estava cada dia mais triste, mas agora por que
sua mãe já não lembrava mais de quase nada, seu pai cuidava do
sítio e você não podia sair de perto da sua mãe.
- Virei mãe dela.

97
Capítulo 18

- Um dia fomos visita-los e seu pai estava muito esgotado,


magro e você não quis brincar. Ficou do lado de sua mãe mesmo
ela achando que você também era visita.
- Mas ela reconheceu vocês?
- Só minha mãe. Mas ela agia como se fossem jovens, recém
casadas. Minha mãe ficou muito abalada e lembro que na volta
ela comentou com meu pai de pedir para você ficar com a gente
enquanto seu pai ia no médico.
- No médico? Ele não tinha ido ainda?
- Não. Seu pai, por ser mais velho, acreditava que remédio
caseiro curava, que o tempo curava e o tempo foi passando. Mas
depois dessa visita, meus pais convenceram seu pai e ele
finalmente aceitou levar sua mãe em um médico especialista, na
capital.
- E ele foi mesmo?
- Sim. Você não se lembra do período que ficou em casa?
Não tinha ideia do que ela estava falando.
- Não, não me lembro nada mesmo.
- No início você só chorava, não comia. Tinha medo do seu
pai também te esquecer.

98
Ela deu uma risada e falou:
- E eu morria de ciúmes do modo como minha mãe cuidava
de você.
Fiquei imaginando a cena. Criança não gosta de dividir o
amor de mãe.
- Devo ter sido um estorvo para sua mãe.
- Minha mãe te amava, te tratava como filha e ela conseguiu
te conquistar, ela falava que sua mãe voltaria com um diagnóstico
e assim, saberiam o que fazer e te convencia a ir brincar.
- Ele voltou com o diagnóstico?
De novo ela ficou olhando para fora, pela janela. Mexeu na
cortina e fez que não com a cabeça.
- Não tinha cura.
Fiquei sem reação. Claro que eu sabia que não tinha cura,
mas podia ter um remédio que ajudasse, mesmo eu sabendo que
não há, ainda mais para estágio avançado.
- O médico queria sua mãe mais perto e foi por isso que seu
pai vendeu o sítio, para irem embora.
- Demorou muito para isso acontecer?
Por que ela estava sem graça?
- Não, logo seu pai vendeu e decidiram ir.
- Eu estava feliz?

99
- Olha, eu gostaria de dormir um pouco, estou muito
cansada. Lá na Vila você fica sabendo melhor disso tudo e com
mais detalhes.
Por que ela estava arisca, falando grosso?
- Celia. O que aconteceu?
- Seu pai não quis te levar Paula.
Nossa, aquilo doeu. Por isso ela não queria contar. Ela
estava chorando.
- Mas pelo meu bem, por que eu não teria com quem ficar,
não é?
- Ele simplesmente não te visitou, não te buscou, não...
Eu chorava, meu pai não me amava?
- Toda vez que seu pai levava sua mãe ao médico, você
ficava em casa. Mas quando ele voltava, ele te buscava. Sua mãe
ficava nervosa quando te via, então ele simplesmente, te deixou
na minha casa.
- Mas para o bem da minha mãe. Para não ver minha mãe
pior. Não porque não me amava.
Ela só balançou a cabeça, não queria expressar a verdade
em palavras.
- Talvez realmente fosse isso Paula, mas pensa você, uma
criança, filha dele, foi dolorido. Você chorava de saudade. Eu
tinha raiva dele, me desculpe.
100
Que amiga legal. Comecei a gostar dela.
- Eu que peço desculpas por fazer você contar tudo isso e
não posso sequer lembrar da nossa amizade.
Ela me abraçou e choramos um tempo.
- Mas eu fui embora com eles, eu estava no carro, ele voltou
pra me buscar?
Ela suspirou.
- Queria que você lembrasse, para eu não precisar te contar.
Tinha coisa pior por vir?
- Eu te imploro, termine por favor.
Ela segurou minha mão e continuou:
- Sei que ele vendeu o sítio e foi em casa, contar aos meus
pais. Você estava tão feliz, ficou no colo dele, fazia dias que você
não o via. Ele te deu um beijo e falou que queria conversar com
os meus pais sozinhos, minha mãe pediu pra eu te levar ao meu
quarto e que ele me daria um beijo antes dele ir embora. Lembro
que você fez bico e tentou ficar, mas minha mãe, como sempre,
te convenceu. Mas não fomos para o quarto, ficamos escondidas
debaixo da janela da sala, para escutar.
Rimos um pouco.
- Que crianças danadas.

101
- Sim, mas se soubesse que íamos ouvir aquilo, acho que
nós duas preferíamos ter ficado mesmo no quarto, como minha
mãe pediu.
Minha história triste não tinha fim.
- Por Deus, o que escutamos?
- Seus pais iam embora. Iam partir no dia seguinte, pela
manhã.
- E por que eu não podia ouvir?
Novamente ela olhou para janela, percebi que ela sempre
fazia isso quando ia ou precisava contar algo que me machucava.
Não conseguia me olhar.
- Seja o que for Célia, me conte.
Ela apertou minha mão.
- Eles iam embora sem você. Ele estava dizendo que não ia
te levar, que era para minha mãe cuidar de você e que se um dia
sua mãe lembrasse e pedisse, ele voltaria te buscar. Minha mãe
tentou de todas as maneiras mostrar a ele como isso ia te fazer
sofrer, mas ele simplesmente virou e foi embora.
- Nem deu o beijo que ele falou que ia dar. – Falei alto meu
pensamento.
- Não, ele não se despediu, não te beijou e você chorou
muito naquela noite.
- Sua mãe veio me contar?
102
- Não, ela foi até o quarto e viu a porta fechada, escutou seu
choro, mas achou você estava chorando por que tinha visto seu
pai ir embora sem dar tchau.
- Meu pai foi embora mesmo sem me levar?
- Deixa eu te contar sobre essa noite Paula, antes que eu
perca a coragem de continuar.
- Está bem, continue por favor.
- Lembro que minha irmã e eu ficamos tentando te consolar.
Minha irmã falava que no hospital não aceitavam crianças, que
era por isso que seu pai não ia poder te levar, mas nós duas
escutamos seu pai falar para minha mãe, que ele não ia te levar,
que você...
Ela parou.
- Que eu? Fale logo Célia, não me deixe mais na escuridão.
- Ele culpava você.
- Me culpava? Mas porquê?
- Segundo ele, sua mãe esqueceu você primeiro. Então, ele
decidiu te culpar. Ele achava que sua mãe estava cansada e doente
por ter sido mãe numa idade avançada.
Eu nem sabia o que falar. A culpa era minha? Eu pedi para
nascer na idade que eles tinham? Eu que fiz minha mãe ficar
doente?

103
- Ele só queria culpar alguém, por que ele amava demais
sua mãe, ele voltaria para você, depois, mas ....
- Teve o acidente.
- Sim.
- Mas como eu fui parar no carro.
Ela sorriu. Um sorriso travesso.
- Meu Deus, que fizemos?
E sorri também.
- Te colocamos no carro.
Olhei espantada para ela.
- Como assim?
Ela começou a rir e me contagiou. Comecei a rir também.
- Você tinha que lembrar, poxa, foi tão arriscado.
Como se fosse opção minha não querer lembrar.
- O que fizemos, como fui parar no carro?
Rindo ela continuou:
- Você não parava de chorar naquela noite, minha irmã não
aguentou e falou: “entra naquele carro e vai com eles”, mas era
só uma piada, por que ela já era adolescente e estava de saco cheio
de nós duas no mesmo quarto com ela. Mas quando ela viu que
íamos mesmo tentar entrar no carro, ela ouviu nossa ideia e
ajudou.
- Meu Deus, até sua irmã nós conseguimos convencer.
104
Eu ri, mas vi que a Célia não gostou.
- Paula, ela ajudou naquela noite e se culpa pelo que
aconteceu.
Eu não entendi muito, mas não queria adiantar a história,
queria que ela contasse logo como fui parar lá.
- Fale Célia, como foi esse plano?
Ela relutou, mas contou.
- Depois que seu pai foi embora, teve o choro e teve o plano.
Ficamos uma boa parte da noite desenhando e estudando, para
não ter erros. Quando decidimos te levar até o sítio do seu pai, já
era muito tarde, o sol estava quase nascendo. Saímos escondidas
pela janela do quarto, só nós três.
Ela contava e ria de algumas partes.
- Parecia que éramos experientes, fomos pelo matagal, para
que ninguém nos visse na estrada, por que neste horário, já tinha
alguns produtores de pé, entregando o leite, pão, ovos. E nosso
medo era dos seus pais saírem mais cedo do que falaram. Se isso
acontecesse, nosso plano iria por água abaixo.
- Mas não saíram.
Perguntei meio que duvidando da resposta.
- Não. Chegamos no sítio e seu cachorro latia muito.
- Meu cachorro? Eu tinha um?
- Sim, o Peludo.
105
Como eu queria lembrar.
- Quase que o Peludo estraga tudo, pois começou a latir,
mas quando te viu, pulou e fez festa, mas seus pais podiam
acordar com o barulho.
Eu estava uma pilha de nervos, queria saber o final logo,
mas também queria os detalhes.
- Nós deixamos você ali, no quintal e você entrou no carro,
muito devagar, só encostamos a porta do carro, para não fazer
barulho. Você se deitou no chão, na parte traseira do carro e a
mala tampava você, ninguém veria.
Ela parou, relembrando e sorrindo.
- Nosso medo era que as malas não estivessem no carro. Se
eles colocassem a mala ao partir, como esconderíamos você?
Olhou para mim e sorriu.
- Mas deu tudo certo, seus pais eram organizados. Já estava
tudo arrumado no carro.
Mas faltava a filha, estavam abandonando. Pensei, mas não
falei.
- E o cachorro, ficou sozinho?
- Não, o vizinho do lado ficou com ele, ele tinha comprado
o sítio.
- Tomara que tenha ficado bem.

106
- Ele ficou, era um vira lata e se dava com todo mundo. As
vezes o víamos na vila com o novo dono, meu coração ficava
apertado, pois lembrava você.
- E o que aconteceu? Alguém me viu no carro? O Peludo
não ficou latindo?
Ela puxou a mantinha para perto do queixo, olhou para
mim, por segundos eternos e falou:
- O Peludo latiu só quando chegamos, depois que você
entrou no carro, ele deitou na porta e ficou ali. Nós deixamos você
lá, tínhamos que voltar para casa antes que nossa mãe acordasse
e descobrisse. O resto, só você sabe, mas...
- Mas?
- Descobrimos depois que houve o acidente, você sabe o
que causou?
- Não consigo lembrar, acordei na estrada, sozinha. Depois
acharam o carro e meus pais. Não sei o que aconteceu.
Ela mexeu a cabeça, confirmando, quieta, ela suspeitava de
alguma coisa.
- O que foi Celia? O que acha que aconteceu?
Ela me olhou triste, com os olhos cheio de lagrimas.
- Você não acha que seus pais te descobriram?
Foi um choque, um aperto. Só então eu lembrei. Eu vi. Fui
eu. Eu causei a morte dos meus pais.
107
Capítulo 19

Os médicos disseram que minha memória não voltava


devido a culpa que meu cérebro tomou para si. A Célia me ajudou
muito, naquele dia consegui saber de tudo, minha memória voltou
e lembrei da noite do acidente. Reviver meu passado doía mais
que não lembrar dele. Minha mãe adotiva avisou que talvez saber
o que tinha acontecido poderia me fazer voltar pior para casa e foi
o que aconteceu. Eu não fui até a vila, não havia necessidade.
Decidi ir até a casa da irmã da Célia, para dizer para elas que não
era culpa de ninguém, meu Deus, como poderia culpar alguém?
A ideia era boa, queriam me fazer feliz e eu achei que meus pais
ficariam felizes de me ver no carro.
- Conseguiu dormir?
Estávamos deitadas, no quarto na casa da irmã da Célia. Ao
lembrar de tudo, lembrei do amor que eu sentia pela dona Alba, a
mãe da Célia. Ela cuidou de mim em momentos que meu pai e
minha mãe deveriam tê-lo feito. Eu tento entender meu pai, mas
não é fácil. Eu era só uma menina que não entendia o porquê de
uma mãe não lembrar da filha. Eu queria ter ajudado meu pai no
hospital, por que ele não podia me levar? E foi a dona Alba que
mais uma vez me acalentou. Quando chegamos na casa da

108
Débora, irmã da Célia, já era tarde. Elas me olharam surpresas,
mas me receberam com abraços e uma sopa maravilhosa.
- Não. Minha cabeça girou a noite toda, consegui lembrar
de tudo e fui montando o que faltava.
- Vamos tomar café e depois podemos nadar no rio, assim,
você limpa sua cabeça.
Rimos e fomos tomar café. Dona Alba já estava acordada.
- Bom dia.
- Bom dia. Está melhor? – Perguntei para ela.
- Estou. Te ver aqui, poder dizer que sentimos muito, me
deu um grande alivio.
- Vocês jamais deveriam se responsabilizar pelo que
aconteceu. Foi uma fatalidade.
- Eu sinto muito mesmo Paula. Se soubéssemos o que ia
acontecer, jamais teríamos colocado você naquele carro. – Falou
Débora, a irmã da Celia.
- Éramos crianças. Ninguém tem culpa. Eu que tenho que
agradecer pelo carinho, pelo amor, vocês sempre cuidaram de
mim.
Naquele mesmo dia liguei para o Victor. Contei algumas
coisas, mas não contei como a culpa me corroía. Disse que falaria
com todos quando voltasse e contaria os detalhes. Pedi que

109
avisasse nossa mãe que eu ficaria mais uns dias com a Célia e
assim que me sentisse pronta, eu voltaria.
- Não quer mesmo ir até o sítio?
- Não. Não há nada mais lá. O que eu vim buscar, já
encontrei. E fico muito feliz de estar com você.
Ela me abraçou.
- Quando pretende voltar?
- Está me expulsando?
Rimos
- Não, eu queria era que morasse comigo em Londrina.
- Seria maravilhoso morar com você. Mas agora tenho tudo
o que eu desejava.
- Fico feliz por você. Deve ter sido difícil esses anos sem
memória.
- Sim. Eu não me encontrava. Não tinha direção. Hoje tenho
novos pais, irmãos, amigos, namorado...
- Tem uma foto dele?
- Claro. Veja.
Mostrei a foto dele, da minha mãe, meu pai, meu irmão.
- Sua família é curta.
- Curta?
- Sim, sua mãe é sua sogra, seu pai, seu sogro e seu único
irmão, também é seu cunhado.
110
Ela sabia me fazer rir.
- Eles são o que mais amo na vida.
- E eu?
- Você é a irmã que eu não tenho e não é minha cunhada.
Foi a vez dela rir.
- E agora, que lembro dos meus pais, sinto que gosto mais
dos meus pais adotivos, pois me amam independente do meu
passado.
- Seus pais também te amaram Paula.
- Sim, eu sei. Do jeito deles me amaram.
Fiquei dois dias naquela cidadezinha encantadora. Dona
Alba me ajudou com algumas lembranças que eu não sabia.
- Estudei na mesma escola que sua mãe, ela era quase quatro
anos mais velha que eu, quando ela terminou os estudos eu ainda
estava estudando. Fui eu quem apresentou o seu pai para ela.
- Mesmo? Me conte.
- Eu e sua mãe, não tínhamos irmãos, éramos melhores
amigas. Éramos vizinhas de sítio e quando ela terminou de
estudar eu continuei mais um tempo e foi na escola que conheci
meu marido. Ele não estudava lá, só fazia entregas para a cozinha
da escola. Casei cedo e fui embora do lugar que morávamos. Sua
mãe, queria ser professora. Não queria casar. Os pais dela, seus

111
avós, eram muito severos. Arrumaram um marido para ela, antes
do seu pai.
- Não sabia. Minha mãe tinha sido casada antes do meu pai?
- Sim. Eu me casei e fui morar na vila, lá, onde você morou
comigo. Sua mãe, continuava no sítio dos seus avós e com o novo
marido. Ela era muito triste. Vi sua mãe poucas vezes, aqui nesta
cidade, onde moro hoje. Ela vinha fazer compras ou o marido
vender alguma coisa que o sítio produzia.
- Não era o sítio onde eu morava?
- Não. Era perto daqui, mas não o mesmo sítio.
Por que minha mãe nunca contou essa história?
- Eu não conheci meus avós.
- Não. Seus avós eram de idade quando sua mãe nasceu,
eles queriam muito um menino. E não ficaram felizes quando veio
menina.
- Minha mãe sofreu também, desde bebê.
- Sim. Mas eles amavam sua mãe. Deram tudo para ela. Era
a aluna mais bem vestida, o melhor caderno. Mas ela nunca estava
satisfeita.
- Como assim?
- Sua mãe não queria morar no sítio. Queria morar na
cidade, queria ser professora.
- Meus avós não aprovavam.
112
- Jamais. Naquela época uma boa família não tinha
mulheres que trabalhavam fora, mulheres era para casar e ter
filhos.
- Ela obedeceu?
- Ela não tinha o que fazer. Quando seus avós viram que ela
não aceitava a proposta de nenhum dos namorados, eles
decidiram por ela.
- E ela gostou?
- Não. Ele era bem mais velho e foi muito ruim para ela.
- Coitada.
- E para ficar pior, sua mãe não conseguia engravidar. Esse
homem batia nela e falava palavras que a feriam ainda mais.
- Ele deixava vocês serem amigas?
- Não. Vi sua mãe apenas duas vezes. E ela sempre triste.
- Por que ela nunca contou isso para mim?
- Você era muito menina, não podia saber do passado dela.
Não entendi, mas aceitei. Talvez ela tivesse vergonha.
- E o que aconteceu?
- Seus avós morreram, não lembro a doença, mas morreram
e o marido de sua mãe ficou doente também. Sua mãe cuidou dele
por uns dois anos e ele faleceu também.
- Nossa.

113
- Ela foi me visitar e decidimos que ela venderia e
compraria algo perto de mim. Meu esposo e eu, éramos o que ela
tinha de mais próximo. Logo ela veio morar comigo e eu estava
maravilhada com a presença dela. Eu engravidei da minha filha
mais velha e ela fez o parto. Ela lecionava na escola e morava
comigo.
- E não estava com meu pai ainda?
- Não. Seu pai foi anos depois. Minha filha mais velha
adoeceu e faleceu.
- Sinto muito, não sabia que tinha tido outra filha.
- Ela tinha quase 5 anos. Foi um choque para sua mãe, ela
era nossa. Minha e dela. Como sua mãe não tinha tido filhos, ela
tratava a Clara como filha. Demorei um ano e engravidei da
Débora.
- Essa eu conheço.
- Sim. Sua mãe ajudou também no parto. Mas ela já não era
mais a mesma. A morte da Clara a abalou. Ela não dava amor para
a Débora, acho que com medo de perde-la com o tempo.
- Que horror.
- Sim, sua mãe era muito arredia, insegura. Amava os
alunos por que sabia que não eram dela. Que todo ano eles iam e
vinham.
- E meu pai?
114
- Vou chegar nesta história agora.

Capítulo 20

- Seu pai era novo na vila, tinha comprado um sítio e era


muito carrancudo, velho. Nada agradava aquele homem.
Esse era meu pai.
- Ele foi no mercado do meu marido e ali, fizeram uma bela
amizade. E dessa amizade, veio um jantar. Logo seu pai estava
namorando sua mãe. Casaram. Ele amava sua mãe. Ela o amava.
Se completavam. No início achei ele velho para ela, até tentei não
deixar o namoro acontecer.
- E ela aceitava seus conselhos?
- Sua mãe? Nunca. Ela ouvia. Mas rebatia. Ela mostrou no
dia a dia que seu pai era um homem muito bom. Sua mãe tinha o
dinheiro da venda do sítio, dos seus avós e do falecido marido.
Eles investiram no sítio que seu pai tinha comprado e logo eles
construíram aquela casa que você morava e eles produziam e
colhiam todo ano. Tinham uma vida boa.
- Minha mãe finalmente foi feliz?

115
- Sim, mas não conseguia engravidar e isso foi deixando sua
mãe depressiva.
- Sim meu pai me contou.
- Ela ficou um tempo afastada da escola, não vinha em casa,
não fazia serviços domésticos, não cuidava do seu pai.
- E como ela sarou?
- Um dia fui lá e conversamos muito. Falei para ela que se
não tivesse filhos, eu teria um e daria para ela.
Foi a vez da Célia e eu olharmos assustada para ela.
- Eu amava sua mãe. Quando vi que a tristeza dela era por
um filho, eu decidi lutar por ela. Fizemos um trato. Eu
engravidaria e daria meu filho para ela. Nossos maridos jamais
saberiam.
- Agora sei de quem puxei quando o assunto se trata de fazer
planos nessa família. – Célia falou, lembrando do plano que
fizemos para entrar no carro.
- E o que aconteceu?
- O obvio. Engravidei, mas ela também.
- Não precisou me dar para ela. – Falou Célia, um pouco
chateada.
- Não precisei dar e ficamos em festa. Vocês nasceriam
quase no mesmo dia e faríamos de vocês amigas, como nós
éramos. Sua mãe estava muito feliz.
116
- Por que sinto um sentimento nessa sua última frase?
- Sua mãe se completou com você. Foi tão grande o amor
dela por você que ela se afastou de mim.
- Mas porquê?
- Não sei te dizer. Eu acho que ela sentia vergonha da oferta
que fiz.
- Mas era uma oferta de amor. De amizade verdadeira.
- Sim. Mas ela não via assim. Quando a Célia nasceu, ela
raramente vinha me ver. Depois você nasceu, ela não aceitava
visitas.
- Minha mãe era complicada.
- Sua mãe tinha obsessão. Quando você foi ficando maior,
ela voltou a dar aulas e sinceramente, eu acho que fez isso para
que pudesse te acompanhar na escola, para não perder você.
Talvez por termos perdido a Clara, ela queria ter certeza que você
estaria bem.
- E vocês nunca resgataram a amizade?
- Não. Às vezes íamos visita-los, mas não tínhamos mais
uma energia em nossa volta. Era uma visita social.
- Mas lembro que ela gostava de recebe-los.
- Sim. A gente se gostava, mas já não tínhamos mais
segredos, era somente um jantar de conhecidos. Meu marido
gostava muito do seu pai. Essa amizade deles, fez com que nossas
117
visitas continuassem. Mas seu pai era tão desligado que não
percebeu que nossa amizade estava acabando. Ele ficava feliz só
de ver sua mãe feliz.
- Meu pai, ele não queria filhos?
- Seu pai te amava Paula, mas se sua mãe não pudesse ter
filhos, ele não ficaria chateado como o primeiro marido ficou.
Mas ter você, completou aquele casamento. Sua mãe se realizou
em você. Ela te amou. Seu pai te amou.
- Mas a doença a tirou de mim. Duas vezes.
- Sim. Eu jamais imaginei que sua mãe tivesse essa doença.
Esquecer o que ela tanto desejou é triste demais. Isso feriu seu
pai. Ele achava que sua mãe forçou tanto o desejo de ter você que
ficou doente. Mas sua mãe já era doente, antes de ter você. Era
depressiva e essa depressão voltava quando não alcançava o
objetivo.
- Eu entendo, eu acho.
- Talvez se fosse uma época diferente. Se os seus avós a
deixassem seguir o caminho que ela queria.
- Mas de que adianta os “se”, eles não trazem ninguém de
volta.
- Exatamente, minha querida. Neste ponto que quero
chegar. Você teve uma mãe que te quis e te amou muito. Teu pai

118
te amou. Hoje você tem uma nova família que pelo que me
contou, te amam.
- Sim. Me amam.
- Então aproveite. Viva a sua vida, não se culpe pelo que
aconteceu. Os mistérios dessa vida deixamos para Deus.
- Mas eu fico me perguntando, me culpando. Se eu não
tivesse no carro, eles estariam vivos.
- Repito o que você mesmo disse: de que adianta os “se”.
Vai para casa, curta sua nova família. Não esqueça dos seus pais,
mas ame o que Deus te presentou agora.
- Termine seu curso de enfermagem. Case. Tenha filhos. –
Completou Célia.
- E venha sempre que puder. Não deixe essa amizade que
temos se perder pelo caminho.
- Obrigada, obrigada por tudo. Obrigada por ter cuidado da
minha mãe antes mesmo do meu nascimento.
- Sua mãe era uma irmã para mim. Mesmo depois, quando
sua mãe estava doente, eu via que ela ficava feliz de me ver. Eu
sabia que ela me amava. Do jeito dela, mas me amava.
Agora sei de tudo. Do passado da minha mãe, do meu
passado. Preciso saber lidar com isso agora e conseguir viver meu
presente para que o meu futuro seja abençoado.

119
Capítulo 21

Quando retornei para a casa, a casa dos meus pais adotivos,


tudo havia mudado. Até meu amor e respeito por eles, por
aceitarem a mim com meus problemas, com minhas dores, com
meu passado. Eles estavam na rodoviária. A família toda. Eu os
abracei e chorei muito.
- Está tudo bem, minha querida?
- Sim. Eu lembro de tudo.
Meu pai me abraçou e falou:
- Sei que não gostou do que descobriu, mas também não
gostava de ter uma nuvem negra na memória. Na vida sempre
haverá dois caminhos. Você pode escolher ser feliz e ter um
passado, uma história. Ou deixar isso te afetar e não ter um futuro
tão feliz assim.
- Sei que precisa de um tempo para processar tudo isso
minha filha. Nós te amamos, queremos ser o teu suporte, sua nova
família se você deixar, é claro.
Claro que eu deixei. Eu era muito carente. Eu precisava de
amor, de alguém que não me esquecesse, que não me deixasse.
- Oi.

120
Era o Victor. Ele me abraçou. Eu tinha vergonha de beijá-
lo na frente dos nossos pais. Só deixei que ele me abraçasse e
segurei sua mão.
- Oi Alexandre. – Cumprimentei meu irmão e cunhado,
como disse a Célia.
Ele me abraçou, falou algumas palavras de conforto e
fomos para casa.
- Chegamos. - Avisou meu pai.
Casa. Eu via tudo agora com novos olhos. Com mais amor,
respeito.
- Paula, quer descansar da viagem? – Minha mãe perguntou.
- Vou tomar um banho e volto para conversamos, quero
muito contar para vocês a minha vida, se quiserem ouvir, claro!
- Queremos. – Falaram os quatro ao mesmo tempo.
- Vou fazer um café então.
Na cozinha, sentados à mesa, narrei a minha história, a
história que eu lembrava, que eu conhecia. Eu não era mais um
buraco negro.
“Minha mãe perdeu a memória, quando eu tinha doze anos.
Vou contar o que lembro dessa época. Eu chorava toda noite,
minha mãe não me conhecia mais. Eu ficava com medo e com
vergonha, por que meus amigos ficavam olhando com dó, com
pena de mim. Eu escutava “coitada, a própria mãe esquecer da
121
filha” ou “não deve ser um amor tão grande, pois filho a gente
nunca esquece” e isso foi me deixando com vontade de não sair
mais, não estudar. Mas o que me motivou ainda mais a sair da
escola, foi ver meu pai me esconder no quarto, pedir para eu não
sair, para não chatear a minha mãe. Ele amava muito a minha mãe
e me culpava pela doença dela. Eu tento entender isso, juro que
tento, mas eu era apenas uma criança. Ele ia trabalhar todos os
dias e voltava para o almoço, minha mãe agia normal, uma mulher
casada, mas na cabeça dela, ainda em lua de mel. Ela limpava,
cozinhava e amava meu pai, mas quando me via, ficava louca,
achava que eu era a menina que estava tentando perturbar a vida
de casada. A memória dela estava no tempo que queria engravidar
e não conseguia e me ver ali, todo dia, chamando de pai e mãe
não ajudou muito. Talvez tenha até piorado a situação. Mas como
saber? Como agir? Meu pai me proibiu de sair do quarto, eu só
saía quando ele via que ela estava nos dias atuais, como minha
mãe, e não no passado. Como era bom os dias que ela me abraçava
e me beijava. Mas eles foram ficando cada vez mais raro. Quando
ela me via e lembrava de mim, sempre falava:
- Paulinha, você está muito magra, pálida. O que está
acontecendo?

122
Meu pai olhava para ela e para mim, com uma tristeza tão
grande que hoje fico pensando, que se não houvesse o acidente,
meu pai morreria de desgosto, de dor.
Nos dias que eu ficava no quarto, o medo me perseguia. Me
perguntava se chegaria o dia em que minha mãe não me
reconheceria nunca mais, será que meu pai não iria gostar de mim
se isso viesse a acontecer? Eu ficaria no quarto para sempre? Meu
pai fez uma porta no meu quarto, que entrava e saía pelo lado de
fora da casa. Eu poderia ir para a escola e voltar sem que minha
mãe me visse, isso se ela não estivesse no jardim, eu teria sempre
que vigiar antes de sair ou entrar. Nos primeiros dias, meu pai
falou com carinho sobre isso, que seria para o bem da mamãe,
para ela sarar logo.
- Filha, ela acha que você é alguém querendo mostrar o
sofrimento dela, por que na mente dela, ela não tem filhos, não
consegue engravidar.
Ela não me via como uma pessoa real, ela achava que eu era
algum fantasma assombrando os medos dela. Ela queria muito
engravidar.
- Mas papai, eu preciso tomar banho e comer. Como farei
isso?
Ficou combinado que ele ajudaria a mamãe no almoço e
levaria meu prato até meu quarto.
123
- Será só por alguns dias, ela vai sarar logo.
A tarde meu pai passeava no jardim com minha mãe e eu
tomava banho, pegava algum lanche e água, afinal, eu queria que
ela se curasse rápido e ajudei muito nas duas primeiras semanas.
Mas um dia minha mãe começou a quebrar os pratos e eu, não
pensei duas vezes, saí correndo do quarto para ver o que estava
acontecendo.
- Vai embora, vai embora - Minha mãe gritava para o
espaço, para alguém que ela estava vendo e quebrava os pratos e
copos.
- Mamãe, o que está acontecendo.
Eu não deveria ter saído. Ela me olhou, com raiva e jogou
o copo em minha direção. Eu chorei.
- Você não é real, vai embora.
Eu fui até a casa da Celia e contei para ela. Foi meu primeiro
desabafo.
- Celia, ela acha que sou alguém ruim, minha própria mãe.
A Celia não sabia o que dizer. Somente ficava ali, comigo.
Quando voltei para casa, de noite, meu pai estava no meu quarto.
- Estava preocupado.
Mas não foi me procurar, pensei comigo.
- Eu tinha que sair, ela estava gritando muito.

124
- Ela estava lavando a louça e tinha seu prato e seu copo,
ela me contou que se só havia nós dois na casa, como que tinha
três pratos sujos e três copos, sendo um sujo de leite.
Minha mãe não bebe leite.
- Podia ter dito que era seu papai.
- Eu não consegui dizer nada minha filha. Estou tão
assustando quanto você. Achei que ia ser uma crise como foi
antes de você nascer. Que passaria logo.
- Minha mãe já teve essa crise?
- Não de esquecer, mas de depressão. Ela queria muito
engravidar, ela dizia: “como posso ter tanta criança na minha
vida, como professora e eu não ser mãe de nenhuma?” – Mas
isso já faz muitos anos, mas na época também acabou com ela,
ela ficou muito depressiva. Mas um dia, passou.
- Mas eu nasci papai, por que ela ia esquecer de alguém
que ela quis tanto?
Meu pai não era de demonstrar carinho, mas me abraçou.
- Ela quis muito e você é alegria dela. Essa doença está
tirando a maior alegria da vida dela.
- Mas por que o senhor não a faz acreditar que sou filha de
vocês? Por que me esconde?
- Porque ela fica nervosa quando te vê e achei que ela ia se
curar logo.
125
- O que faremos?
- Você terá que lavar o que sujar.
E foi assim mais umas semanas. Meu pai conversou com a
mãe da Celia e eu comecei a ficar muito tempo lá, almoçava
depois da escola, muitas vezes dormia. Quando eu ia para casa,
eu fazia minhas coisas sem que minha mãe notasse. Lavava meu
prato e meu copo, tudo o que sujasse. Minhas roupas eu levava
para a mãe da Celia e cada dia menos minha mãe se lembrava de
mim. Ela já não estava dando aulas. Por semanas fizemos esse
passo-a-passo, até o dia que não fui mais na Célia e não fui mais
para escola. Eu ficava vigiando minha mãe com um buraco que
fiz na parede de tábua do meu quarto e foi olhando nessa fresta
que vi meu pai sair chorando. Minha mãe agora, não lembrava
dele.
Confesso que fiquei feliz quando isso aconteceu. Agora ele
sabia como eu me sentia. Hoje, quando lembro disso, sinto
remorso, tristeza. Meu pai amava minha mãe tanto quanto eu, mas
naquele dia, eu fiquei feliz. Mas minha felicidade logo virou
choro. Ela raramente se lembrava de alguma coisa. Eu já podia
andar pela casa livremente que ela achava que eu era só uma
pessoa andando ali. Eu a ajudava a tomar banho, por ela, ela nem
banharia, não se lembrava que precisava banhar ou escovar os

126
dentes. Eu penteava o cabelo dela, dava comida e perdi meu ano
escolar.
- Precisamos levar a Ana até a cidade grande Pedro.
Era o pai da Celia. Estavam preocupados. Eu já não
brincava, não ia à escola e minha mãe cada dia definhava. Meu
pai, parecia ter mais de 90 anos.
- Já está assim há um ano. A Paula perdeu os últimos meses
de aula. Precisamos achar um remédio, uma solução para sua
esposa Pedro. Sua filha está cada dia mais triste, quando
perceber, ela estará doente também.
A mãe da Célia sempre me tratou como filha. Estava
preocupada comigo. Sempre vinha em nossa casa, cozinhava,
lavava nossas roupas e me ensinava lavar algumas peças, trazia
um doce para mim e me ensinava cozinhar, foi de grande ajuda
naqueles tempos tão difíceis. Meu pai concordou em levar minha
mãe para uma consulta médica na cidade grande. Foi nesse tempo
que fiquei novamente na casa da Celia, até meu pai voltar.
Eles voltaram e fiquei muito feliz, minha mãe tomaria um
remédio e estaria curada. Mas não foi isso que ouvi. Meu pai iria
novamente para a cidade e o pior, não me levaria.
- Vou colocar o sitio à venda para conseguir uma casa em
Curitiba e continuar o tratamento da Ana.

127
Eu fiquei muito feliz, então minha mãe teria tratamento.
Remédio. Cura. Iriamos morar em Curitiba. Meu pai estava muito
calado. Ele não queria ir para Curitiba, o sitio era a vida dele. Mas
minha mãe era muito mais importante. Uma noite, após chegar de
Curitiba, ele foi na casa da dona Alba, jantou com a gente, fiquei
no colo dele, ele me deu um beijo e pediu que eu fosse para o
quarto com a Célia, pois precisava conversar com os pais da
Célia. Claro, eu sabia que tinha algo errado. A Celia e eu nos
escondemos para poder escutar a conversa deles.
- Não posso leva-la. Quem irá cuidar dela lá? Eu não
conheço a cidade, não conheço ninguém para deixa-la. Minha
vida será hospital e hospital.
Como assim ele não ia me levar? Ele iria embora, morar em
outra cidade. Longe. Não ia me levar?
- Ela não vai aceitar isso bem Pedro. Você quer que eu
chame para falar com ela?
- Não. Não terei coragem de dizer que não vou leva-la.
Tudo isso é culpa dela. O desejo da Ana de querer muito um filho,
fez com que ela adoecesse.
E ele foi embora. Chorei muito aquela noite, exatamente
como a Celia tinha dito. Esquecida pela mãe e abandonada pelo
pai. E aconteceu como ela disse, fomos antes de amanhecer e eu
entrei no carro. Fiquei no chão do carro, eu era muito magra e
128
pequena. Não foi difícil. Havia duas malas no banco e alguns
cobertores. A mudança dos meus pais. Sem minhas coisas e sem
minhas roupas. Lembro que no carro eu me perguntava como
ficaria em Curitiba sem roupas? Mas criança, sempre tem a
resposta e eu tinha certeza que meu pai compraria e ficaria muito
feliz de me ter como companhia. E dormi.
Acordei quando o carro estava na estrada. Como eu não
acordei quando eles entraram no carro? Será que tinham me visto
e sorriram quando me viram?
Eu ficava me perguntando como teria sido se eu não tivesse
entrado no carro, se eu não tivesse levantado quando o carro
estava em movimento. A culpa que eu carregava, era minha.
Ninguém jamais ia entender. Afinal, quem estava no carro e fez
com que eles perdessem o controle na estrada, era eu.
Eu estava com muita dor no corpo, por ficar deitada ali no
chão e com as pernas em uma posição só. Câimbra, eu precisava
sair daquela posição. Achei que meus pais iam ficar felizes. Será
que meu pai ficaria bravo? Levantei.
O meu movimento fez minha mãe olhar para trás, ela me
viu e gritou. Gritou muito e meu pai levou um susto, não sei e
nunca saberei dizer se ele me viu pelo retrovisor ou se fez o carro
sair da estrada com o grito da minha mãe, mas independentemente
do que foi, a culpa foi minha. Meus pais estariam vivos, talvez
129
minha mãe curada, por mais que eu saiba que não há cura para a
doença dela, mas ela estaria ali, eu poderia visita-la. Poderia.
Eu matei meus pais. Assim que me sinto. Assim que sofro.
Em silêncio.

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Epílogo

- Você a mima demais.


- Você também.
Rimos.
- Eu não dei o cachorrinho que ela tanto pede, estou
aprendendo a não mimar tanto assim.
- Isso não é deixar de mimar, é não querer ter mais alguém
para você dar o seu amor e achar que vai faltar para ela.
- Só quero aproveitar cada segundo, antes que eu esqueça.
Ele ia falar alguma coisa, me consolar ou tirar essa ideia da
cabeça quando chegou as batatinhas. Ele me beijou e procurou
com o olhar nossa filha, mas ela já vinha correndo, me abraçou.
Sentir o cheiro dela era maravilhoso. Uma mistura de suor com
criança, com cabelo lavado. Amor.
Talvez por isso eu não consigo dizer que o amo, por que
quero dar o meu amor completo para minha filha. Não esquecer
dela, jamais. Talvez eu terei a memória perdida no futuro, igual
minha mãe, isso me destrói. Quero amar e lembrar dela para
sempre, todos os dias. Será que tenho o amor doentio como minha
mãe tinha?

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Dez anos que eu havia recuperado a memória. Lembrar me
fez viver, mas também chorar. Não foi fácil aceitar minha culpa
ou eu mesma me perdoar.
No início foi como sofrer duas vezes. Lembrar e sentir
saudades dos meus pais, amar e ao mesmo tempo questionar se
eles me perdoavam. Mas eu só me perdoei quando Yasmim
nasceu. Não foi culpa da minha mãe, não foi culpa do meu pai.
Não foi minha culpa. Enquanto havia saúde em minha casa, meus
pais me amavam e éramos felizes.
Lembrar da doença da minha mãe e saber como afetou a
minha infância, me fez estudar. Eu queria ajudar pessoas como
eu. Mas percebi que quanto mais eu dedicava aos estudos, mais
distante ficava do meu esposo e da minha família. Eu precisava
aprender a ter espaço para o amor.
Seis anos depois, eu engravidei e descobri o verdadeiro
amor. Descobri o tempo. Descobri o sentido da vida. Sim, minha
mãe me perdoaria. Ser mãe é ser algo que Deus colocou neste
mundo para não ter explicação.
- Mãe, depois posso voltar para os brinquedos?
Meu marido respondeu:
- Só mais um pouquinho.

132
Ela olhou para mim, implorando. Sabia que meu coração
era mole, mas o Victor estava certo. A casa dos meus pais, ou
sogros, era longe.
- A vovó está nos esperando.
Era falar da avó que o rosto dela iluminava. Morávamos em
Curitiba e todo natal íamos para casa da dona Maria. Yasmim
adorava os primos, filhos do Alexandre. Ele tinha dois filhos e a
esposa dele era como uma irmã para mim.
- Mãe posso dormir até chegar lá?
Fiz que sim com a cabeça.
- Mas me acorda quando chegarmos lá.
- Prometo. – Sorri para ela.
Já estávamos no carro. Eu nunca dormia nas viagens. Tinha
medo. “Deus, não me deixe esquecê-los” - orei em silêncio.

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