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LUGAR COMUM Nº41, pp.

71- 88

Biopolíticas espaciais gentrificadoras e


as resistências estéticas biopotentes

Natacha Rena
Paula Berquó
Fernanda Chagas

Império e biopolítica: a lógica cultural do capitalismo cognitivo


Observa-se que, na ponta dos processos de segregação social em áreas
urbanas de interesse do mercado, vem sendo utilizado o discurso da revitalização
ou requalificação espacial, que, na prática, representa uma política que visa à
substituição do público que frequenta, habita e utiliza determinadas regiões por
outros públicos, de classes mais abastadas.
Nos grandes centros urbanos, a construção de equipamentos culturais
como Museus, Bibliotecas, Óperas e Teatros tem sido determinante para o início
desse processo de enobrecimento ou, também denominado, gentrificação. Neste
artigo, busca-se mostrar como estas relações biopolíticas vêm sendo
estabelecidas em algumas cidades.
Atualmente, o capitalismo apresenta-se como capitalismo global (orga-
nizado em redes), cognitivo (o conhecimento se destina à produção de mais co-
nhecimento) e financeiro (as finanças constituem a base de governança). Nesse
capitalismo contemporâneo, são as cidades, e não mais as fábricas, os espaços
da produção. Estabelece-se também uma nova relação de produção, na qual o
trabalho imaterial é ligado à produção de subjetividade e de novas formas de
vida. Na economia contemporânea, a dimensão cultural e cognitiva da produção
ganha maior importância e o valor de um produto passa a ser determinado não só
pelos custos de produção, mas também por uma série de valores subjetivos
agregados a ele. Nessa nova relação entre capital e subjetividade, é o consumo
das formas de vida, mais do que de bens materiais, que sustenta a promessa de
uma vida feliz. Para Pelbart (2011), essa captura do desejo coletivo contribui
para a manutenção das relações de poder na contemporaneidade.
Ao capitalismo global, cognitivo e financeiro corresponde uma estrutu-
ra de poder pós-moderna, desterritorializada e descentralizada denominada por
Hardt e Negri (2001) de Império. O Império, segundo os autores, não estabelece
Biopolíticas espaciais gentrificadoras...
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um centro territorial de poder, nem se baseia em fronteiras ou barreiras fixas. Ele


é um aparelho de descentralização e desterritorialização que incorpora gradual-
mente o mundo inteiro dentro de suas fronteiras abertas e em expansão,
incluindo as nossas vidas e os nossos desejos. Dessa forma, o capital Imperial
administra entidades híbridas, hierarquias flexíveis e permutas plurais por meio
de estruturas de comando bipolíticas e reguladoras.
A partir da leitura da obra de Hardt e Negri, Pelbart (ibidem) afirma que
o Império, ao contrário do imperialismo, não obedece a fronteiras em vários sen-
tidos. Ele engloba o espaço, domina o tempo ao se apresentar como eterno e
defi- nitivo, e penetra na subjetividade das populações. Se os Estados-Nação
visavam ao domínio sobre um território e à reprodução de riquezas, essa nova
ordem é uni- versal e visa à produção e reprodução da própria vida. Se antes o
poder soberano era mantido sobre uma sociedade disciplinar, o novo sistema
exerce o biopoder sobre uma sociedade de controle.
Segundo Pelbart (ibidem), o biopoder está ligado com a mudança funda-
mental na relação entre poder e vida 34. Na concepção de Foucault, o biopoder se
interessa pela vida, pela produção, reprodução, controle e ordenamento de
forças. A ele competem duas estratégias principais: a disciplina (que adestra o
corpo e dociliza o indivíduo para otimizar suas forças) e a biopolítica35 (que
entende o homem enquanto espécie e tenta gerir sua vida coletivamente). Nesse
sentido, a vida passa a ser controlada de maneira integral, a partir da captura
pelo poder, do próprio desejo do que dela se quer e se espera, e assim o conceito
de biopoder se expande para o conceito de biopolítica. A ampliação desta
acepção de biopolítica por Hardt e Negri situa o conceito como algo que
acontece plenamente na socie- dade de controle, na qual o poder subsume toda a
sociedade, suas relações sociais e penetra nas consciências e corpos. Sendo
assim, as subjetividades da sociedade civil são absorvidas no Estado.
Mas a consequência disso é a explosão dos elementos previamente
coor- denados e mediados na sociedade civil. As resistências deixam de ser
marginais e tornam-se ativas no centro de uma sociedade que se abre em redes;
os pontos indi- viduais são singularizados em mil platôs (HARDT; NEGRI,
2001). Isso significa que o poder desterritorializante que subsume toda
sociedade ao capital, ao invés

34 Enquanto o poder soberano detinha o direito sobre a morte de seus súditos, o biopoder
interessa-se justamente pela vida, sendo a morte o escape a qualquer poder. Enquanto o poder
soberano faz morrer e deixa viver, o biopoder faz viver e deixa morrer (PELBART, 2011).
35 Termo lançado por Foucault, em meados dos anos 1970, se referindo ao momento em que
a vida das populações e a gestão desses processos são tomadas pelo poder como objeto
político.
de unificar tudo, cria paradoxalmente um meio de pluralidade e singularização
não domesticáveis. Na inversão de sentido do termo biopolítica, esta deixa de ser
o poder sobre a vida, e passa a ser o poder da vida (PELBART, 2011), ou o que
poderíamos chamar também de biopotência.
É essa perspectiva mais otimista sobre a biopolítica que abre espaço
para a discussão da potência biopolítica da multidão, ou a biopotência da
multidão, pois, acredita-se que paralelamente ou mesmo dentro deste sistema
flexível do capitalismo contemporâneo, é possível resistir positivamente,
ativando processos que fogem à lógica da captura das máquinas biopolíticas de
subjetivação. Enxer- ga-se no poder político da multidão (corpo biopolítico
coletivo, heterogêneo, mul- tidirecional) uma biopotência que produz e é
produzida pelas fontes de energia e valor capitalizadas pelo Império. E é
justamente por meio da multidão, com a for- ça virtual de seus corpos, mentes e
desejos coletivos, que acredita-se ser possível resistir e escapar a essa nova
ordem Imperial. Diante do poder virtual inerente à multidão, vislumbram-se
novas possibilidades de subverter o Império e superá-lo, tirando partido do caldo
biopolítico e das subjetividades coletivas. A multidão, enquanto organização
biopolítica, é o que pode construir uma resistência positiva, criativa e inovadora,
produzindo e sendo gerada pelo desejo do comum.
Retomaremos mais adiante, na terceira parte deste artigo, essas táticas
de resistências multitudinárias aos processos gentrificadores de expropriação do
co- mum, agenciados pelo urbanismo neoliberal contemporâneo, quando
trataremos de eventos que ocupam criativamente as ruas de Belo Horizonte
desde 2011. Faz-se a seguir um parêntese para detalhar melhor os processos
gentrificadores que utilizam a cultura como vetor do discurso em defesa da
melhoria do espaço público.

Gentrificação: quando a cultura é a principal força biopolítica da


construção de territórios elitizados
A produção do espaço urbano, que incorpora estratégias de um urbanis-
mo majoritário, tem grande impacto na configuração da paisagem urbana, na
dis- tribuição socioespacial da população e dos serviços e pode desencadear
processos de gentrificação.
O termo gentrificação provém da palavra inglesa gentry, originalmente
usada para designar a pequena nobreza ou os proprietários de terra, e refere-se
ao fenômeno de deslocamento da população original de uma área urbana em prol
da posterior ocupação desta por outro setor populacional, de classe econômica
geralmente mais alta, com apreensão e vivência da cidade, normalmente diversas
daquelas dos habitantes originários.
Na sociedade capitalista, a acumulação de capital é a força que motiva
todas as ações. Assim, o desenvolvimento urbano e a urbanização, inseridos
nessa sociedade, estão intimamente ligados à economia capitalista e são
manifestação espacial direta do processo de acumulação de capital. Nesse
contexto, a cidade deixa de ser apenas uma das partes no processo de
acumulação e torna-se um espaço organizado para o investimento capitalista
(MENDES, 2010).
Na sociedade capitalista, o desenvolvimento urbano acontece de forma
desigual. A desigualdade cria as condições para que futuros investimento sejam
feitos nas áreas subdesenvolvidas, dando origem a ciclos de investimento-desin-
vestimento (SMITH, 1982). Os investimentos favoráveis à reprodução do capital
implicam no abandono das classes mais pobres, especialmente nas áreas mais
carentes. A necessidade de melhorar a imagem da cidade e torná-la mais atrati-
va para o mercado internacional causa frequentemente a expulsão de habitantes
de renda baixa das áreas centrais. Esses ficam condenados a uma marginalidade
sócio-espacial, que tem relação direta com a manutenção da reprodução social
das classes dominantes (MENDES, 2010).
A partir dos anos 1990 percebe-se que, em geral, os processos de
gentrifi- cação evoluíram de renovações arquitetônicas e urbanísticas pontuais e
esporádi- cas para uma estratégia urbana municipal aliada ao setor privado. A
partir dessa fase, a gentrificação passaria a integrar políticas urbanas que visam a
colocar anti- gos centros em evidência no competitivo mercado global. Na
contemporaneidade, a gentrificação não acontece apenas como um fenômeno
local e promovido por agentes isolados, mas também como um processo global,
sistematizado, ligado ao Estado e com a intenção explícita de gentrificar a
cidade por meio de uma renova- ção urbana de dimensão classista (SMITH,
2006).
Neste contexto de urbanismo majoritário neoliberal não é difícil
perceber como a cultura, transformada em produto e apropriada pelo mercado,
tem sido usada como uma arma política capaz de produzir consensos em torno
do espetácu- lo urbano. Harvey (1993) já lembrava-nos deste papel fundamental
da cultura ci- tando o exemplo da cidade de Baltimore, nos Estados Unidos, para
mostrar como a partir da década de 1970 o espetáculo urbano foi apropriado por
forças distintas daquelas da década anterior. Segundo o autor, nos anos 1960 o
espetáculo urbano norte-americano constituía-se de movimentos de oposição de
massa, com mani- festações pelos direitos civis, eventos contraculturais, levantes
nas cidades etc., refletindo o descontentamento com os planos modernistas de
renovação urbana. Mas, para um grupo de políticos e líderes de negócios, essas
manifestações amea- çavam o centro da cidade, que contava com muitos prédios
de escritórios e praças.
Esse grupo procurou então reunir a cidade por meio da construção de um
símbolo que pudesse trazer a ideia de comunidade e diminuir a insatisfação dos
cidadãos. Foi assim que surgiu a Baltimore City Fair, uma grande feira que
pretendia cele- brar a identidade étnica da cidade. Em pouco tempo, a feira
tornou-se cada vez mais comercial, sendo responsável pela atração regular de
milhares de visitantes ao centro da cidade. Logo, novos empreendimentos
surgiram ao redor, como cen- tro de convenções e hotéis, concretizando a
“comercialização institucionalizada de um espetáculo” (HARVEY, 1993).
Observa-se nesse exemplo a captura, pelo poder, dos movimentos cul-
turais de questionamento e a sua transformação, através de uma estratégia niti-
damente biopolítica, em espetáculo acrítico, cujo objetivo seria o de camuflar o
dissenso e os conflitos presentes na cidade. No entanto este espetáculo urbano,
bem como muitos outros, produzidos e aplaudidos até hoje, não solucionam pro-
blemas básicos do meio urbano, como a desigualdade social, a falta de habitação
e a especulação imobiliária.
A estratégia de estímulo à economia por meio da construção de equipa-
mentos culturais e atividades puramente turísticas faz parte do processo de mu-
seificação das cidades. Em detrimento do papel educativo e social que podem
ter, museus e centros culturais passam a configurar um verdadeiro cenário
urbano. A recuperação do patrimônio histórico-arquitetônico também faz parte
dessa estra- tégia, que visa à construção de uma imagem da cidade. A nova
imagem urbana tem função tripla: serve aos interesses publicitários da cidade
espetáculo, esconde a pobreza que existe fora dela e desperta o orgulho dos
cidadãos, facilitando a criação de um consenso em torno dessas obras. Na cidade
produzida como ce- nário, o patrimônio é transformado em produto de consumo
e seu valor de uso é transformado exclusivamente em valor econômico. O
impacto para os cidadãos também é grande, uma vez que a implantação desses
equipamentos frequente- mente provoca gentrificação. Para os que podem
desfrutar desses cenários, des- vinculados dos residentes e usuários, resta apenas
a teatralização da vida pública (LIMA, 2004).
Conforme visto anteriormente, no contexto capitalista atual, a cultura
adquire grande importância em termos políticos e mercadológicos, relacionando-
-se intimamente com a construção das cidades espetaculares. Por representarem
verdadeiras âncoras desse processo, projetos ditos “culturais” são cada vez mais
valorizados no mercado urbano. Nesses projetos, guiados por medidas pacifica-
doras de transformação urbana em cenário “higiênico” e consensual, o fomento
ao turismo global conforma-se enquanto prioridade, em detrimento do atendi-
mento às reais necessidades das comunidades locais. Isso aponta para mais um
movimento de captura cognitiva por parte do sistema neoliberal, no qual a lógica
cultural é expropriada e transformada, nesse caso, em recurso para o aumento do
valor da terra nas cidades.
Assim, agentes públicos e privados, aproveitando-se biopoliticamente
da conotação, geralmente positiva, que os projetos culturais possuem, bem como
dos incentivos fiscais relacionados a tais iniciativas, promovem verdadeiras
transfor- mações do cenário urbano, justificadas com base em um intuito
“cultural”.Tais transformações abarcam principalmente áreas centrais das
cidades, de forma a expulsar a população de baixa renda e implantar, em seu
lugar, equipamentos que funcionem como motores da nova indústria cultural.

Cultura e expropriação do comum pela lógica desenvolvimentista da


indústria cultural
A cultura e o surgimento exponencial dos equipamentos culturais em re-
giões “degradadas” das cidades revelam um modo de agir do estado-capital, que
propositalmente deixa áreas urbanas centrais estratégicas se deteriorarem, para
depois lançarem projetos que, segundo campanhas publicitárias, vão promover
a “revitalização” daquele território, tornando-o nobre, limpo e vivo. Por meio de
legislações, projetos integrados e parcerias público-privadas, esta requalificação
urbana atinge o ciclo da gentrificação que engloba desde o processo de degrada-
ção até a valorização máxima da área.
Para Suely Rolnik e Felix Guatarri, o conceito de cultura é um conceito
reacionário e serve para padronizar atividades de forma a torná-las autônomas
dentro da lógica dos mercados de poder e econômico. Estes modos de produção
criativos denominados cultura na sociedade contemporânea caracterizam modos
de produção capitalistas através de modos de subjetivação formando um sistema
de equivalência. Para os autores, o capital se ocupa da sujeição econômica e a
cultura, da sujeição subjetiva (GUATTARI; ROLNIK, 2011). Neste sentido, a
cultura de massa produz indivíduos normalizados segundo sistemas de valores e
de submissão, ou seja, produz uma máquina de produção da subjetividade e faz
com que a cultura exerça um papel fundamental neste processo biopolítico, que
tenta controlar desejos e imaginários sociais.
Neste sentido bipolítico de controle majoritário do território urbano, a
questão da cultura se expande e invade as políticas urbanas de “revitalização”
urbana. Essa importância crescente faz com que as questões culturais adquiram
grande valor no mercado. Enquanto reflexo desse processo, pode-se citar a cres-
cente relevância com que vem sendo tratado o termo indústria criativa, princi-
palmente a partir da década de 1990. Indústria criativa define-se enquanto um
conjunto de atividades econômicas relacionadas à produção de informação e de
conhecimento – tais como publicidade, arquitetura, artes, design, moda, cinema,
música, rádio e televisão. Esse conjunto de atividades estabelece fortes relações
econômicas com os setores de turismo, esportes, museus, galerias e patrimônio e
adquire, assim, grande relevância no planejamento urbano enquanto suposto mo-
tor de desenvolvimento e de inserção das “cidades criativas” no cenário geopo-
lítico global. Isso exemplifica a nova lógica produtiva contemporânea, na qual a
cultura tem seus laços cada vez mais estreitados com o mercado e constitui-se en-
quanto ponto central em torno do qual o sistema capitalista cognitivo parece girar.
Segundo Szaniecki e Silva (2010), o termo indústrias criativas esconde-
ria, por meio de uma pretensa ideia de inovação, o objetivo latente de expansão
da linha de montagem industrial para além da fábrica, abarcando toda a extensão
da cidade. Segundo a autora, os museus representariam para o capitalismo
cognitivo o que a locomotiva representou para capitalismo industrial, ou seja,
constituiriam
o seu motor de funcionamento. Assim, tais equipamentos seriam responsáveis
por difundir ideias, comportamentos, símbolos e linguagens que fomentariam o
sistema, em um movimento que alia produção cultural e consumo. A
conformação das cidades criativas a partir desse novo modelo industrial
exemplifica a crescente incursão da economia no âmbito cultural, quase a ponto
de causar diluição de ambas as esferas em algo único.
Nas indústrias criativas destaca-se a frequente presença de parcerias pú-
blico-privadas, o que aponta para a inclusão de tais atividades no circuito merca-
dológico do sistema dominado pelo estado-empresa neoliberal. A crítica,
cunhada por Szaniecki a esse respeito, provém do fato de que muitas vezes, no
âmbito das indústrias culturais financiadas por entes privados, a questão
econômica passa a ser primordial, a cidade transformando-se em verdadeiro
campo empresarial e tendo as suas questões sociais relegadas para segundo
plano. Assim, esse modelo de produção e circulação criativo-cultural
desenvolvimentista poderia desenca- dear pelo menos dois reflexos principais na
conformação urbana: por um lado, a concentração de equipamentos em áreas
nobres da cidade – direcionados à popu- lação apta a consumir os seus produtos,
e por outro, um processo de gentrificação de áreas populares nos quais estes se
inserem.
Não pretendemos, aqui, esgotar o discurso a respeito dos equipamentos
culturais a partir de um parâmetro dualista no qual tais instituições apareçam de
maneira totalmente e irreversivelmente negativa, mas sim promover um ques-
tionamento crítico – que não se restrinja apenas aos aspectos turísticos, como
normalmente é feito – a respeito da sua real eficácia no contexto social
brasileiro. Uma das questões que pretendemos levantar é, até que ponto a
política cultural brasileira poderia se dar de maneira mais conectada com o
contexto social das co- munidades locais e menos a partir de uma lógica
mercadológica externa, que res- ponda a termos estritamente econômicos? Se no
caso europeu a situação de maior igualdade social permite que as iniciativas de
grandes equipamentos culturais não gerem resultados tão catastróficos de
gentrificação e consequente “apagamento” de práticas culturais locais, a forte
disparidade econômica brasileira faz com que seja necessário pensarmos em
outras e mais eficientes políticas de fomento à cul- tura, mais adaptadas ao
contexto socioeconômico específico do Brasil.

Táticas de resistência criativa biopotentes da multidão como alternativa ao


planejamento urbano gentrificador majoritário
Retomemos aqui a análise do pensamento de Pelbart levantada no início
deste artigo a respeito da biopotência. Segundo ele, tal processo poderia ser en-
tendido através do seguinte raciocínio, “ao poder sobre a vida responde a
potência da vida.” A biopotência representaria, assim, um contraponto radical a
esse po- der de captura capitalista, uma verdadeira reviravolta que se insinua no
extremo oposto da linha, no qual a vida “revela, no processo mesmo de
expropriação, sua potência indomável.” Um dos motivos pelos quais isso se
torna possível, segundo Pelbart (2011), é o fato que a força-inventiva da qual o
capitalismo se apropria, não emana do capital, mas prescinde dele. O núcleo
central em torno do qual gira todo o sistema representa, assim, justamente o que
se tem de humanamente mais próprio, a força do pensamento e da criação. E
essa força não só não deriva do capital, como existe antes e independentemente
dele. Sendo assim, a resistência encontra-se na própria vida, e ao mesmo tempo
no núcleo exato de dominação da mesma. Segundo Pelbart “a vida aparece agora
como um reservatório inesgotável de sentido, (...) como um germe de direções
que extrapolam, e muito, as estruturas de comando e os cálculos dos poderes
constituídos” (PELBART, 2007).
Assim, surgem novas possibilidades de resistência, que devem ser pen-
sadas, segundo o autor, a partir do reconhecimento de toda essa potência de vida,
disseminada por toda parte. Cada indivíduo representaria um grau de potência
es- pecífico, relacionado a sua capacidade de afetar-se e de ser afetado. A
constituição de uma grupalidade abarcaria, portanto, todas essas singularidades,
a partir de uma “variação contínua entre seus elementos heterogêneos, como
afetação recíproca entre potências singulares, numa certa composição de
velocidade e lentidão.”
(PELBART, 2008). A potência de tal plano de composição, se pensada a partir
das ideias de Deleuze, residiria justamente na sua capacidade de reunir com
consistên- cia elementos díspares, em um movimento nômade, de variação
contínua.
Estas ideias cunhadas por Pelbart aproximam-se do conceito de Negri
e Hardt de multidão o qual, contrariamente à noção de “povo”, homogênea e
transcendental, baseia-se na reunião de múltiplas singularidades e caracteriza-se
por seu caráter imanente. Se vista na perspectiva do corpo, a multidão não só
conforma-se enquanto reunião de corpos, mas, segundo Negri, todo corpo se-
ria uma multidão. Nela os corpos se entrecruzam, se mestiçam, hibridizam-se e
transformam-se, “cruzando multidão com multidão”.
Acreditamos que a biopotência, realizada a partir do princípio da multi-
dão, possa dar-nos valiosas pistas a respeito das possibilidades de resistência aos
processos biopolíticos do mundo globalizado. Na busca por alternativas ao pla-
nejamento urbano que possam gerar processos de resistência positiva às pressões
do Estado neoliberal e do mercado imobiliário, entendemos que um caminho
pos- sível é o da experimentação. Não pretendemos, portanto, apresentar uma
solução única, fechada e completa. Pelo contrário, serão defendidas aqui táticas
enquanto possibilidade de ação em diversas escalas e meios.
A partir do reconhecimento de múltiplos grupos, agentes e forças, inte-
ressados em construir a resistência criativa biopotente, apontamos a criação de
redes de movimentos e ações como um princípio-guia para a elaboração de
táticas de resistência. A multiplicidade desierarquizada (da multidão e das redes)
corres- ponde a uma forma de organização rizomática36. A potência de tal
sistema não reside em seus pontos, mas em suas linhas, ou seja, em seu
movimento constante e superficial, e nas múltiplas conexões que dele resultam.
Faz-se multidão não necessariamente a partir de muitos corpos, mas a partir de
corpos múltiplos, que se interconectam em um movimento horizontal e contínuo
de resistência. Movimen-

36 O conceito de rizoma será apresentado brevemente, de acordo com Deleuze e Guattari


(2001). Segundo os autores, o rizoma é um sistema que nega o individual, a unidade, o dualis-
mo. O rizoma se opõe à árvore-raiz por rejeitar uma estrutura principal. No rizoma “o
múltiplo é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais
nenhuma rela- ção com o uno como sujeito ou como objeto” (DELEUZE; GUATTARI, 2011,
p. 23). O rizoma não é feito de pontos e localizações, mas sim de linhas que ligam pontos
quaisquer; linhas que são dimensões construídas, desmontáveis, modificáveis, reversíveis. Um
rizoma não começa e nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser,
intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe
o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e…e…e…”. Há nesta conjunção
força suficiente para desenraizar o verbo ser (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 48).
tos multitudinários consistem, assim, em singularidades ativas e interligadas que,
a partir de sua capacidade criativa, fazem frente ao domínio do Império global a
par- tir dos próprios sistemas – também rizomáticos – por ele utilizados para
sujeitá-las.
O conceito de multiplicidades desierarquizadas amplia a compreensão
sobre a resistência em redes. As redes sociais (virtuais ou presenciais) são, do
ponto de vista das ciências humanas, uma “comunidade de sentido, na qual os
indivíduos, sujeitos/atores ou agentes sociais são considerados como os nós da
rede, ligados entre si pelos seus laços de afinidade” (SCHERER-WARREN,
2012, p. 128). Na contemporaneidade, as redes transformam as regras do jogo
político-social bem como a atuação de movimentos e atores, uma vez que per-
mitem formas de articulação e comunicação alternativas aos meios tradicionais.
As redes sociais acontecem de forma complementar nas esferas virtual e
presencial. Enquanto as redes virtuais são mais abrangentes e ágeis, as
presenciais possibilitam trocas mais intensas e discussões mais profundas
(SCHERER-WAR- REN, 2012). A dimensão presencial leva a uma prática
política que necessita de lugares da cidade para acontecer (reuniões,
assembleias, eventos etc.), mas que muitas vezes são controlados ou negados à
população.
Como os canais institucionalizados de participação são controlados e
do- minados pelo Estado neoliberal, há que se buscar e ativar novos caminhos
para uma produção mais autônoma e biopotente do espaço. Torna-se necessário
criar um movimento de resistência que esteja ao mesmo tempo dentro e contra o
sis- tema que produz (e que controla) o espaço urbano, por meio de ações
táticas37.
Exemplos de tais movimentos são as ações de resistência que eclodem
de maneira exponencial em Belo Horizonte nos últimos anos. Em 2009 surge
na cidade, em resposta ao decreto número 13.863/2010 sancionado pelo prefeito
Márcio Lacerda, o movimento “Praia da Estação”. O decreto limitava a
realização de eventos na Praça da Estação, área na região central da cidade que
apresenta qualidades cívicas para receber eventos de grande porte: é plana e
permite aglo- meração de um grande número de pessoas. Esta medida polêmica
deu continui- dade às políticas urbanas de cunho nitidamente mercadológico,
emplacadas pelo prefeito desde o início de seu primeiro mandato.

37 Com base na distinção que Certeau (2012) faz entre estratégia e tática, entende-se que a
postura tática, determinada pela astúcia de utilizar as falhas na vigilância do poder e por seu
caráter criativo e plural, constitui um meio de fortalecer os mais fracos, ou seja, a vida como
re- sistência pode ser ativada a partir de táticas de microurbanismo político. Acredita-se que
ações artísticas e culturais podem, a partir de agenciamentos táticos, criar potencializar
movimentos multitudinários ativando processos de apropriação crítica e efetiva dos territórios.
O decreto referente à Praça da Estação foi o estopim de um processo
de resistência ao mandato, que tornava cada vez mais explícito o monopólio de
questões privadas nas decisões políticas concernantes ao planejamento da
cidade. Tal medida foi motivada pelo suposto distúrbio ao Museu de Artes e
Ofícios, localizado na Praça, por encontros religiosos. O Museu, que apresenta
uma ar- quitetura de restauro impecável, é parte de uma entidade sem fins
lucrativos, com título de utilidade pública federal, vinculada a uma das maiores
empreiteiras do país. Frente ao decreto surgiu na Praça um movimento periódico
de ocupação que questiona, de forma inusitada, as restrições de utilização
daquela. A “Praia da Estação” vem reunindo, desde então, banhistas
manifestantes que, carregando suas toalhas, cadeiras de praia, barracas, bicicletas
e cachorros, ocupam a praça nas manhãs de sábado sob as águas de um
caminhão pipa. Acontecimento espon- tâneo, a Praia tornou-se o principal foco
de resistência à Prefeitura e também uma fonte inesgotável de ataque contra as
suas políticas higienistas (RENA, 2013). A Praia provou possível experimentar o
asfalto enquanto mar e o espaço público, controlado por interesses privados, não
como lugar instituído, mas enquanto palco de afetos e trocas instituintes. A partir
disso foi possível vislumbrar, por meio da experiência, o devir comum dos
territórios públicos e, se não plantou-se semente, desencadeou-se rizoma, que
como erva-daninha fez surgir inúmeras multidões criativas na cidade a partir de
então.

Crédito da imagem: Priscila Musa / Praia da Estação em BH, 2013.


Exemplo disso é o “Fora Lacerda”, movimento independente e
suprapar- tidário que surgiu, dentro da Praia, com o intuito de reunir pessoas
insatisfeitas com a atuação elitista do prefeito Márcio Lacerda em Belo
Horizonte. O movi- mento foi responsável por gerar um verdadeiro ambiente
estético de resistência na cidade, em torno do qual criou-se uma nova multidão.
A cor laranja, símbolo do movimento, invadiu as redes sociais, presenciais e
virtuais, impregnando as camisetas e as fotos de crítica e indignação. Esses
procedimentos simbólicos fa- zem surgir na cidade uma nova potência que, por
ser afetiva, escapa à mídia e às agências de publicidade, tornando-se a forma
comunicativa da multidão. As pessoas aderem a ela com prazer. E foi assim que,
desde então, o movimento gay, representantes de partidos políticos, de sindicatos
e outros agentes culturais da cidade coloriram-se, de laranja, em torno de um
comum.
O caráter essencialmente estético dos movimentos passa a ser uma das
principais características da resistência que vêm se formando na cidade desde
a Praia. O próprio carnaval belo-horizontino, que adquire grande força a partir
de 2010, torna-se reconhecido nacionalmente por seu caráter estético-político. A
desobediência é característica fundamental desse movimento, por meio do qual a
multidão ocupa, ao som de marchinhas carnavalescas com alto teor crítico, ruas
e praças, experienciando de outra maneira a cidade, inventando novos modos de
percorrê-la e, por que não, de reconstruí-la.
Em junho de 2013, quando as manifestações eclodiam em todo o Brasil,
a estética revolucionária já pairava no imaginário dos habitantes da cidade, que
ocuparam o espaço público com seus corpos e reinvindicações, hibridizando-se
momentaneamente em um corpo múltiplo e desorganizado, não abarcável por
qualquer sistema organizacional que tentasse se impôr. Um corpo também sim-
bólico e imaterial, que se manifestava por meio de cartazes e bandeiras, cantos
e cores. O amarelo das camisas dos membros do COPAC (Comitê Popular dos
Atingidos pela Copa) e o laranja antineoliberalista dos indignados com a gestão
pública municipal dissolveram-se em meio às inúmeras outras cores que consti-
tuíam, de forma dinâmica, a diversidade inquieta da cidade.
Logo após a primeira grande manifestação, criou-se, a partir deste corpo
polifônico, uma Assembleia Popular Horizontal e, por meio desta, decidiu-se ocu-
par a Câmara Municipal de Belo Horizonte. A ocupação, motivada pela exigência
popular de abertura das planilhas orçamentárias que controlam o financiamento do
transporte público, teve início de maneira inusitada. Como resposta à tentativa de
repressão policial os manifestantes desenharam, com tinta vermelha, corações nas
paredes, nos rostos e nos fardos policiais, dotando os mesmos de novas significa-
ções. Táticas de desconstrução poética ganham aos poucos potência e apontam
para novas formas de resistir, impulsionando guerrilhas estéticas que culminam na
rea- lização daquilo que se chamou “A Ocupação” cultural, em sete de julho deste
ano.
A Ocupação surge inicialmente enquanto trabalho conclusivo da disciplina
Cartografias Críticas, coordenada pela professora Natacha Rena na Escola de
Arqui- tetura da Universidade Federal de Minas Gerais. O objeto de estudo dessa
disciplina era, na ocasião, o território subjacente ao Viaduto Santa Teresa, situado
na região central da cidade de Belo Horizonte. A área foi escolhida como objeto
pelo fato de estar em meio a um processo de “revitalização” forçado, conduzido
pela Fundação Municipal de Cultura e supostamente financiado por recursos do
Programa de Ace- leração do Desenvolvimento (PAC). O projeto consistia na
requalificação da área e na sua transformação no “Corredor Cultural da Praça da
Estação”, por meio de um projeto arquitetônico e urbanístico que previa, dentre
outras ações, a incorporação de diversos equipamentos de cunho turístico à área.
Pretendia-se, em linhas gerais, transformar a região, de caráter popular, em atração
turística.
O baixio do Viaduto Santa Teresa apresenta-se, no entanto, enquanto
ponto extremamente relevante para a articulação dos movimentos culturais belo-
-horizontinos. A área reúne, em seu entorno, mais de 20 equipamentos ligados à
cultura, além de abrigar manifestações políticas e diversas ocupações urbanas de
caráter efêmero e periódico. O Duelo de Mc’s, que ocorre há cinco anos debaixo
do viaduto, aglomera integrantes de diversos grupos minoritários da cidade. As
dis- putas musicais carregam mensagens altamente críticas, muitas vezes de
denúncia, que revelam as dificuldades cotidianas sofridas pelos grupos
marginalizados que frequentam e habitam a área. Nestas ocasiões, a Prefeitura
não fornece qualquer tipo de suporte (como limpeza no local e banheiros
químicos), o que contribui para o fortalecimento da imagem pretensamente
degradada área, usada posteriormente pelo poder público para legitimar, frente à
população, a sua intervenção “revita- lizadora”, exatamente dentro da lógica
gentrificadora apontada por Neil Smith no início deste artigo. Porém, mesmo
diante de tantas dificuldades, o duelo resiste. Espaço da diversidade, ele talvez
represente, hoje, o exemplo mais radical de re- sistência da cidade. Ao reforçar
seu caráter democrático, em muito contribuiu para que a área do baixio Santa
Tereza passasse a ser reconhecida pelos belo-horizon- tinos enquanto local de
grande importância política. Não por acaso a Assembleia Horizontal Popular,
bem como os Grupos Temáticos (GTs) que surgiram a partir da mesma,
elegeram-no enquanto espaço para a realização de suas reuniões.
O iminente risco de que essa região passasse pela revitalização tão so-
nhada pelo mercado imobiliário e hoteleiro, que resultaria na expulsão de seus
moradores e na desarticulação dos movimentos multitudinários que ali se encon-
tram, motivou os alunos da disciplina a constuirem uma cartografia que
mapeasse potencialidades e formas de usos criativos que ocorrem no local.
Cartografou-se, assim, o trajeto e as estórias dos vendedores ambulantes, os
percursos dos mo- radores de rua, os pixos e os grafites e os movimentos
culturais locais. Por meio desse trabalho ativo com a comunidade, chegou-se à
conclusão coletiva de que a instauração forçosa de um novo caráter ao lugar não
só o destituiria de suas qua- lidades específicas como o tornaria altamente vazio,
de vida e de sentido. Surgiu a ideia, então, de envolver a comunidade, os artistas,
os arquitetos e todos os interessados na realização de um evento cultural debaixo
do viaduto, que não só evidenciasse o corredor cultural que já existia ali, mas
demonstrasse que este, se destituído de suas características, perderia em muito a
sua potência. O plano era promover formas criativas e inusitadas de vivenciar a
área, ampliando a apropria- ção espontânea cotidiana para um ato simbólico
periódico de ocupação cultural mensal. Pretendia-se com isso apontar para
outras possibilidades de experiência do espaço, que evidenciassem suas
potências latentes, estimulando formas de co- esão horizontal-territorial baseadas
nos princípios do comum.
A partir de conversas com os realizadores do Duelo de Mcs e com in-
tegrantes do GT de Arte e Cultura, a ideia gerada na disciplina ganhou força. A
Ocupação passou a envolver outros atores e pautas e foi adiada para o dia em
que se planejava desocupar a Câmara. Foi assim que, no primeiro domingo de
julho, fez-se a primeira Ocupação artística e cultural do baixio do Viaduto Santa
Teresa, reunindo diversos atores culturais e políticos em torno do objetivo
comum de questionar a forma de construção e apropriação do espaço público na
cidade.
Pneus velhos foram pendurados na estrutura do viaduto gerando “balan-
ços”, nos quais as pessoas podiam experimentar, de forma lúdica, outra forma de
conviver no local. Produziu-se e distribuiu-se fanzines que, ao ilustrar o
cotidiano dos moradores de rua da área, tornaram visíves estórias muitas vezes
ocultas da cidade que aqueles corpos nômades carregam. Fez-se, também, um
“banquete comunitário”, por meio do qual foi possível compartilhar, em uma
grande mesa montada sob o viaduto, fazeres e prazeres relacionados ao ato de
comer. Domes- ticidades desdobrando-se no espaço público, e a cidade passa a
ser, mesmo que momentaneamente, atravessada pela ideia do comum. Era esse o
sentido que pa- recia nortear os acontecimentos que desenrolavam-se ali. As
superfícies também foram ocupadas. Oficinas de grafite promovidas por artistas
locais envolviam in- teressados em táticas de estampar-se nos muros da cidade.
Projeções imprimiam
na fachada da sede do teatro Espanca vídeos e imagens enquanto, no mesmo
local, acontecia uma aula pública com o tema “Criar é resistir”.
O palco utilizado pelos Mc’s para o duelo semanal foi ocupado por ban-
das independentes da cidade que, sem cachê nem produção, construíram colabo-
rativamente a trilha sonora do evento. E é em meio à confluência de sons assim
gerada que manifestantes vindos em cortejo desde a Câmara – então desocupada
– chegam para misturar-se ao coro heterogêneo e festivo que ocupava o Viaduto.
A ação performática do corpo no espaço apontava para formas ativas e intensas
de ocupação espacial, fazendo frente ao caráter cenográfico e contemplativo que
o projeto do Corredor Cultural poderia implantar ali.
Se a ação do corpo foi importante por possibilitar trocas presenciais e
uma relação espacial intensa entre os ocupantes e o Viaduto, a divulgação em
redes sociais como o facebook foi importante por aumentar exponencialmente
a abrangência do evento, com chamadas à população de forte apelo imagético.
Enquanto plataforma de troca, o território digital passou a fazer parte do movi-
mento como possibilitador e potencializador de ação, conectando múltiplas redes
em torno da causa e reunindo, em tempo real, fotos e vídeos do que acontecia no
local: redes e ruas conectadas em uma potência ubíqua.
A Ocupação teve o grande êxito de juntar forças e mostrar que é
possível resistir com criatividade a políticas urbanas de cunho puramente
mercadológio. Sob o slogan “o corredor cultural ja existe”, pairava a ideia de
uma nova cidade, mais habitável e democrática, construída a partir das
necessidades e desejos da população e não somente das dinâmicas segregatórias
do mercado imobiliário.
Após essa primeira experiência, “A ocupação” tornou-se um ato artístico-
po- lítico de ocorrência mensal. Em sua segunda edição, que aconteceu também no
via- duto, o evento repetiu, de maneira diversa, atos simbólicos e políticos que
suscitavam a emergência de um sentimento crítico a respeito da ocupação dos
espaços da cidade. O ato direcionou-se, novamente, ao questionamento do projeto
Corredor Cultural da Praça a Estação. Após todo esse movimento, o projeto
arquitetônico encomendado pela Fundação Municipal de Cultura para a área foi
descartado e os rumos da mesma encontram-se, atualmente, em processo de
reformulação por parte do governo, que renomeou o local como Zona Cultural,
abandonando o termo “corredor”.
A terceira Ocupação aconteceu no mesmo local, mas teve como tema o
movimento Tarifa Zero, que surgiu a partir das discussões do GT de Mobilidade,
já apontando que a partir daí haveria um movimento orgânico de atuação entre
os GTs da APH e a Ocupação. Também com forte caráter estético, a terceira
Ocupa- ção agrega símbolos surgidos na Praia tais como as cadeiras de praia e a
própria
piscina, usada enquanto anteparo para os que pulavam sobre uma catraca colo-
cada no local. O valor simbólico deste ato fazia com que a ocupação, de caráter
fortemente lúdico e performático, adquirisse grande potência política. Da mesma
forma, grupos ligados ao movimento e ao GT de Comunicação se envolveram
numa empreitada estética, iniciada anteriormente no GT de Mobilidade, e
criaram uma grande campanha rosa e amarela. Agora, adesivos, camisetas e
diversos íco- nes de comunicação surgem por toda parte, e assim como o laranja
da praia, agora o amarelo-rosa é a cor Tarifa Zero da cidade. Mais uma vez este
ambiente estético biopotente gerado nitidamente se utiliza das campanhas
publicitárias instituídas pelo capital como captura do desejo. Assim, num
movimento multitudinário, co- laborativo e em rede, estratégias de comunicação
altamente estéticas se difundem pela cidade, redes sociais, audiências públicas e
festas culturais.
A quarta Ocupação ocorreu na Vila Dias, localizada no bairro Santa
Tere- za, alvo iminente de um grande processo de reconfiguração urbana em
trâmite na Prefeitura, a Operação Urbana Consorciada Nova BH. Em meio às
atividades ar- tísticas realizadas durante o ato, foi promovida uma aula pública,
na qual especia- listas falaram sobre os riscos que a Operação Urbana trará para
população. Tal pro- jeto ocasionará, além da desapropriação dos moradores da
Vila, a transformação do bairro, de forte caráter boêmio e tradicionalmente
ocupado por casas, em uma densa aglomeração de grandes construções. A
Ocupação, realizada em colaboração com o movimento Salve Santê, procurou
apontar possíveis caminhos de resistência da população frente a tal medida. Mais
uma vez, a disciplina Cartografias Críticas que já vinha desenvolvendo um
trabalho em conjunto com a comunidade da Vila Dias, realizou atividades
colaborativas com moradores e artistas locais. Além de cartografias, foi feito um
plantio de mudas frutíferas junto ao muro que vem sendo erguido pela
construtora PHV para fechar o terreno de 85mil m2 que supostamente abrigaria o
megaempreendimento “Complexo Andradas”. O desenho inicial deste
empreendimento previa, além da construção da maior torre da América Latina, a
transformação de grande parte da Vila Dias em um grande gramado, o que
causou enorme descontentamento na comunidade. O plantio de árvores envolveu
crianças da Vila e grafiteiros, que pixaram os nomes destas crianças junto às
mudas, como ato simbólico de pertencimento. Além destas atividades, inúmeros
shows, espetá- culos teatrais e manifestações políticas e culturais aconteceram
na Rua Conselhei- ro Rocha, ameaçada por um projeto gentrificador de
alargamento.
Para fechar a cartografia dos movimentos multitudinários estéticopolí-
ticos – iniciados principalmente durante as manifestações de junho –, surgiu em
Belo Horizonte, no fim do mês de outubro, uma nova ocupação. Um grupo for-
mado em grande parte por artistas e produtores culturais ocupou, em um ato per-
formático, um casarão tombado pelo patrimônio histórico e cultural, abandonado
desde a década de 1980. O edifício de propriedade do Estado, localizado na
região leste da cidade, foi nomeado pelos seus novos ocupantes Espaço Comum
Luiz Estrela e tornou-se, desde então, um espaço cultural auto-gestionado e
aberto, no qual acontecem oficinas, shows, performances, debates e muitas
outras ativi- dades oferecidas gratuitamente à comunidade local. É importante
ressaltar que Luiz Estrela era um morador de rua ligado à causa gay, que foi
morto em 2013 de forma brutal numa ação da polícia. Sob o seu nome, que
carrega forte valor simbólico, a ocupação desse espaço traz à luz importantes
pautas de discussão, tais como a questão do patrimônio e do instrumento de
tombamento, da privati- zação dos imóveis públicos, da luta antimanicomial, da
democratização da arte e do território e do descaso do governo frente aos
edifícios abandonados. O Espaço Comum tornou-se, assim, em seu ainda curto
tempo de vida, um espaço político de confluência e esperança. O ato é mais uma
linha de fuga, que juntamente com a “Praia” e “A ocupação” atravessam o
imaginário da população trazendo à tona ou- tras possibilidades de vida na
cidade. É a multidão em rede que, através de táticas estéticas, atua na essência
política e, interferindo na própria máquina reguladora do capitalismo cognitivo,
ataca-o de maneira profunda e, dificilmente reversível.

Referências

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Textos da net
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net/2010/09/28/rio-dois-projetos-para-uma-metropole-conhecimento/>. Acesso em:
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Natacha Rena é professora do curso de arquitetura da UFMG e do NPGAU – Nú-


cleo de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo. Lidera o Grupo de Pesquisa
INDISCIPLI- NAR (www.indisciplinar.com).

Paula Berquó é mestranda em Arquitetura pela Universidade Federal de Minas


Ge- rais. Integrante do Grupo de Pesquisa INDISCIPLINAR da Escola de Arquitetura da
UFMG, cujas ações são focadas na produção contemporânea do espaço urbano,
principalmente no eixo de pesquisa que se refere a novas práticas culturais e biopolítica da
multidão.
Fernanda Chagas é Arquiteta graduada pela Escola de Arquitetura da UFMG.

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