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Psicologia, ética e bioética

PSICOLOGIA, ÉTICA E BIOÉTICA

Psychology, Ethics and Bioethics

Kleber Prado Filho1


Sabrina Trisotto2

Resumo
Este texto reproduz uma comunicação realizada em uma mesa-redonda intitulada “Psicologia e ética: qual
a relação entre a psicologia e o problema da bioética?”, que teve lugar na “Semana de Psicologia” promovida
pela Universidade Federal de Santa Catarina em Novembro de 2003, e apresenta uma reflexão a respeito das
relações entre a prática psicológica, as questões de ordem ética e a problemática contemporânea da bioética.
Aponta as estreitas relações entre a ética médica e a da psicologia, destacando a centralidade de valores
humanitários comuns à ética dos psicólogos e à bioética – normatividade oriunda dos domínios da medicina
e da biologia – que estende aos animais e à própria natureza procedimentos e cuidados anteriormente
aplicados exclusivamente aos humanos.
Palavras-chave: Psicologia; Ética; Bioética.

Abstract
The present text reproduces a communication carried through on a debate entitled “Psychology and ethics:
what is the relation between psychology and the bioethics issue?” – which took place in the “Psychology
Week”, promoted by Universidade Federal de Santa Catarina, in November, 2003 – and presents a reflection
regarding the relations between psychological practice, ethical issues and contemporary problems involving
bioethics. It points to the close relation between medical and psychological ethics, stressing the centrality of
common humanitarian values shared by the psychologist’s ethics and bioethics – normativity originated in
the domains of medicine and biology – which extends to animals and nature itself some procedures and
concerns that used to be directed exclusively at humans.
Keywords: Psychology; Ethics; Bioethics.

1
Psicólogo pela PUC/MG, Doutor em Sociologia pela USP, Pós-Doutor em História, Professor do Dept. de Psicologia da UFSC.
2
Psicóloga e Mestre em Educação pela UFSC, responsável pela transcrição, digitação e edição do material.
Endereço para contato: Caixa Postal 5068 – Trindade – CEP: 88040-970 – Florianópolis/SC.
E-mail: kprado@brturbo.com.br

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Kleber Prado Filho; Sabrina Trisotto

As ligações entre a Psicologia e a proble- herdeiros da tradição ética grega da estética da


mática da Ética são bem anteriores à questão da existência, que coloca uma necessidade que é
ética profissional no campo de exercício das práti- quase uma obrigação, de realizar um trabalho de
cas psicológicas e passam, antes de tudo, pelo pro- estetização da conduta individual, como condição
blema da conduta. de exercício da cidadania. Somos, também, her-
Como ciência que se dedica, entre outras deiros da tradição romana do governo e cuidado
coisas, ao estudo dos comportamentos, a Psicolo- por nós mesmos, além de debitários da ética raci-
gia deve ocupar-se também deste tipo especial de onalista kantiana, historicamente mais próxima de
comportamento que é a conduta, porque, do pon- nós.
to de vista conceitual – apesar das semelhanças e E tudo isso tem muito a ver com a Psi-
confusões – comportamento é diferente de con- cologia: a questão da conduta, este governo de si
duta. Enquanto o comportamento como problema por si mesmo, este trabalho sobre si, esta produ-
psicológico é considerado algo relativamente livre ção de si mesmo, esta estética da existência, este
e individualmente motivado, a conduta encontra- cuidado de si3 .
se referida a valores e normas, colocando-se na Passando agora à questão profissional
condição de comportamento pautado por princí- – quais as ligações entre Psicologia e Ética?
pios, onde a moralidade e normatividade sociais – Penso, inicialmente, serem relações da
as instâncias dos códigos – fazem seu trabalho e maior importância, uma vez que a Psicologia é a
mostram sua força. disciplina científica que se ocupa do homem con-
A conduta ética é um tipo particular de creto – o sujeito constituído nas suas relações com
comportamento orientado por preceitos, que apre- a natureza, com as coisas, com os signos, símbo-
senta dimensões individuais e coletivas, implican- los, regras, normas, com os outros homens, e con-
do questões políticas, uma vez que coloca em jogo sigo mesmos – dedica-se a ele e, talvez, por isso
um sujeito que toma decisões dentro de uma es- mesmo, deva ser a mais humana de todas as Ciên-
treita faixa definida por limites e padrões social- cias Humanas.
mente estabelecidos. Isto pressupõe um sujeito Atendendo a este compromisso fun-
racional, consciente e reflexivo – sujeito kantiano, damental, a ética da Psicologia é centralmente
moderno – que exerce sua liberdade e autonomia humanista, apoiada em valores de respeito, digni-
para decidir, tendo em conta seus limites e res- ficação e defesa do ser humano. Mas ela é tam-
ponsabilidades sociais, avaliando as conseqüênci- bém – imediatamente – uma ética política que
as dos seus atos. implica compromissos e posturas. Porque a Psico-
Equivale a dizer que não somos totalmen- logia, ao mesmo tempo em que se dedica ao ho-
te livres em termos do exercício da nossa indivi- mem, acaba tomando-o por objeto do seu olhar e
dualidade, da nossa subjetividade, dos nossos de- das suas práticas, exercendo quotidianamente po-
sejos e singularidades, fazendo-se necessário – vo- deres efetivos sobre ele. E é justamente porque a
luntariamente – reconhecer limites e avaliar con- Psicologia é um conjunto – mesmo que não unitá-
seqüências. Isto aponta para a necessidade de um rio – de saberes e práticas políticas sobre os sujei-
governo do sujeito por si mesmo, de um exercício tos, que ela precisa de uma ética pautada em prin-
de autonomia, que implica trabalhar-se. cípios humanistas para colocar limites ao seu exer-
Então, além de um problema de poder, cício de poder. Ela não pode ser apenas técnica –
temos aí também uma questão estética: uma ne- aplicação de uma tecnologia humana – tampouco
cessidade de estetizar nossa conduta realizando pode ser mero exercício de saber/poder sobre os
um trabalho sobre nós mesmos no sentido de tor- sujeitos: ela precisa de um conjunto de valores e
nar possível a convivência social, ao mesmo tem- preceitos – de uma ética – para limitar seus pode-
po em que nos produzimos mais “agradáveis” aos res e nortear suas variadas práticas exercidas pe-
olhos dos outros. Nós ocidentais modernos somos los psicólogos em diversos campos profissionais.

3
Nos volumes II e III da sua “História da Sexualidade”, Michel Foucault apresenta as experiências éticas grega e romana da
cultura Antiga, caracterizadas respectivamente como “estética da existência” e “cuidado de si”, das quais nós ocidentais contem-
porâneos somos debitários, além, evidentemente, das influências da ética medieval cristã – reativa – e do racionalismo,
utilitarismo e individualismo característicos da ética moderna.

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Psicologia, ética e bioética

A ética da Psicologia apresenta, ainda, No que diz respeito às relações com a


grande proximidade e afinidade com uma ética Bioética gostaríamos de pontuar algumas questões.
biologicista, médica, do campo da saúde. Trata- Apesar desta forma de normatividade ganhar visi-
se – como neste campo – de uma ética de cuida- bilidade no Brasil apenas na última década do Sé-
do pelo outro, correlativa das “profissões de cui- culo XX, ela surge nos Estados Unidos e Europa
dado”, ligada ao modelo confessional do consul- nos anos 1960 no bojo de uma acentuação em
tório médico – que é totalmente atravessado pelo termos da exigência de maior nível de eticidade
problema do sigilo – posta em estreita relação no campo dos negócios e das relações com a na-
com a problemática da norma: definição de fai- tureza, no entanto, o termo ganha reconhecimen-
xas de normalidade, suas fronteiras e limites; po- to internacional somente em 1971, numa publica-
der discursivo-institucional de enunciar a norma- ção do cancerologista Van Rensselaer Potter.
lidade dos sujeitos; poder de reconduzir os sujei- O neologismo “bioética” sugere uma nor-
tos à faixa de normalidade, de reeducá-los. Deve- matividade centrada no valor fundamental da vida
se lembrar que a Psicologia, ao lado da Psicanáli- que, a exemplo da ética no campo das práticas
se e da Psiquiatria, compõe um conjunto de ciên- psicológicas, encontra-se imediatamente ligada à
cias socialmente reconhecidas e autorizadas a ética médica – porém não se restringindo a esta –
enunciar a normalidade dos sujeitos, bem como com fortes e visíveis componentes de ordem hu-
intervir sobre estes sujeitos a partir do conheci- manitária. Caracteriza-se por princípios da tolerân-
mento que se tem a respeito da sua posição em cia e pluralismo de valores, estendendo aos ani-
relação à norma. mais e à própria natureza preceitos e procedimen-
Tudo isso que foi dito coloca uma ne- tos anteriormente aplicados no trato exclusivo com
cessidade de estetização da conduta técnico/éti- os humanos – ela representa, assim, uma humani-
co/política do psicólogo – um trabalho do profis- zação ética em sentido bem amplo.
sional sobre si mesmo no sentido de dosar o exer- De forma mais específica, orienta-se con-
cício de poder decorrente da aplicação dos seus forme enunciados de autonomia, beneficência, não-
conceitos e instrumental técnico, e de buscar mo- maleficência e justiça. O atendimento ao primeiro
dos de relação ética e respeitosa com o sujeito de preceito aponta para a necessidade de respeito à
suas intervenções e procedimentos. Não é sufici- autonomia e liberdade dos seres vivos – não ape-
ente conhecer conceitos, como não é suficiente nas humanos – envolvidos em procedimentos pro-
saber aplicar instrumentos e técnicas psicológi- fissionais. Esta obrigatoriedade contemporânea de
cas, é necessário ser um profissional mais amplo, apresentação do diagnóstico médico ao paciente
capaz de transitar de forma crítica por meio des- e sua família decorre da aplicação deste enuncia-
tas embricadas dimensões técnico-ético-políticas do. Os princípios de beneficência e não-malefi-
da atuação profissional dos psicólogos. cência encontram-se intimamente relacionados,
E isto coloca de forma imediata o proble- implicando cuidados no sentido de garantir con-
ma da formação profissional do psicólogo, que se forto e evitar prejuízos desnecessários aos sujeitos
encontra na base de tudo isso. Os cursos de psico- atingidos por práticas profissionais. Já o último
logia não podem limitar-se a ensinar conceitos e preceito coloca a obrigatoriedade de um tratamento
reproduzir teorias, como não é suficiente instru- profissional justo em relação aos sujeitos envolvi-
mentalizar pragmaticamente o futuro psicólogo dos.
para aplicação da tecnologia psicológica – é ne- Vale lembrar que as preocupações bioé-
cessário ultrapassar a dicotomia teórico-prática, mas ticas não se encontram inscritas no registro moral
não podemos nos contentar com esta tão propala- e maniqueísta de uma luta entre “bem x mal” –
da e nunca alcançada integração teoria x prática – elas voltam-se para a formação de um comporta-
é preciso ir mais longe: faz-se necessário trabalhar mento socialmente responsável por parte daque-
a conduta ética e no mesmo movimento desenvol- les que têm o poder profissional de decidir e agir
ver posturas políticas adequadas a um exercício sobre a vida de outros seres vivos, deslocando o
profissional consciente e conseqüente por parte centro destas decisões e ações do domínio de uma
da categoria. Este é, portanto, um compromisso racionalidade instrumental objetivante, para levar
social da Psicologia como profissão que deve co- em conta aspectos de subjetividade e singularida-
meçar a ser alinhavado nas salas de aula! de. Portanto, tais preocupações se inscrevem num

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Kleber Prado Filho; Sabrina Trisotto

horizonte profissional multidisciplinar, não se res- Os recentes desenvolvimentos tecnológi-


tringindo aos campos das ciências médicas, bioló- cos no campo da biologia molecular, inadequada-
gicas e psicológicas, mas estendendo-se aos domí- mente denominada “engenharia genética” – proje-
nios da Filosofia, da Antropologia, da Sociologia, to genoma, clonagem, alimentos transgênicos –
do Direito, da Economia e das Ciências Políticas, mostram, neste século que apenas se anuncia, os
entre outras. riscos de uma manipulação irresponsável da vida,
Particularmente no Brasil esta normativi- justificando a necessidade de uma ética regulado-
dade emergente tem produzido sensíveis efeitos ra de tais procedimentos em escala planetária e
no âmbito da pesquisa científica – que equivoca- multiprofissional.
damente entre nós confina-se nos espaços univer-
sitários – colocando limites mais estreitos à expe-
rimentação com sujeitos humanos e à utilização Referências
de animais ou mesmo recursos naturais a título de
produção de conhecimento. Ela joga por terra esta Foucault, M. (1989). História da sexualidade III:
perigosa crença – hoje ultrapassada – de que “tudo O cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal.
se justifica em nome da ciência”. Assim, ao sub-
meter um protocolo de pesquisa à aprovação de
uma comissão que o analisa, a Bioética retira a Foucault, M. (1989). História da sexualidade II:
investigação científica do ambiente isolado e pro- O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal,
tegido dos laboratórios expondo esta prática à va-
lidação social, porque a ciência não pode ser ao
mesmo tempo a única barreira posta por e para si
mesma. Recebido em/Received in: 18/05/2006
Aprovado em/Approved in: 28/05/2006

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