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ENTRE O FEMINISMO E O EXISTENCIALISMO: A

IDENTIDADE EM ‘PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM’, DE


CLARICE LISPECTOR

Diego Luiz Miiller Fascina*


**
Rosi Maria Basseto Sena

RESUMO

Com o advento da pós-modernidade e com a gama de modificações


sofridas pela sociedade, a questão identitária até então concebida como
estável e centralizada, passa por uma crise, fragmentando o indivíduo
moderno e o direcionando para toda a sorte de transformações, tornando-
o, por conseguinte, descentralizado e deslocado. Levando-se em conta
esse sujeito composto não de uma única, mas de várias identidades, nem
sempre harmônicas, o objetivo do presente artigo é promover um olhar
acerca da dupla identidade de Joana, protagonista do romance Perto do
Coração Selvagem, de Clarice Lispector. Para isso, utilizaremos as
contribuições de teóricosque discutem a respeito de identidade e sua
condição liquefeita. Alguns conceitos do Existencialismo possibilitarão
a leitura da primeira identidade de nosso corpus. Para a construção da
segunda identidade, nos apoiaremos na perspectiva da Crítica Feminista,
que no romance em questão, subverte a identidade feminina e reflete as
relações sociais e culturais aplicadas à questão de gênero.

Palavras-chave: Clarice Lispector. Crítica Feminista. Filosofia


Existencialista. Construção de Identidades.

A IDENTIDADE NA PÓS-MODERNIDADE

Lançando mão de uma definição bastante concisa, identidade é


um conjunto de características pessoais ou comportamentais pelas quais
o indivíduo é reconhecido como membro de um grupo (classe,
* Doutorando em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Estadual de Maringá (UEM/PR).
** Doutora em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL/PR). Docente da Fundação Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Mandaguari (FAFIMAN/PR) e Faculdade de Jandaia do Sul (FAFIJAN/PR).

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sexualidade, etnia, raça, nacionalidade etc.). Trata-se, segundo Stuart
Hall (2006), de um fator coletivo partilhado por pessoas da mesma
história e ascendência. No entanto, esta concepção totalmente centrada e
unificada, na qual o indivíduo se encaixava socialmente, está em
declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando esse sujeito
moderno.
A chamada crise de identidade, que, nas palavras de
ZygmuntBauman (2005) é o ‘papo’ do momento, é a perda desse ‘sentido
de si’, isto é, o sujeito sente-se deslocado, fora de um centro seguro que o
ancora, tornando-se consciente de que o pertencimento e a identidade
homogênea não são garantias perenes, pelo contrário,

são bastante negociáveis e revogáveis, e que as


decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos
que percorre, a maneira como age - e a determinação
de se manter firme a tudo isso - são fatores cruciais
tanto para o pertencimento quanto para a identidade
(BAUMAN, 2005, p.17).

Sendo assim, Hall (2006, p.13) afirma que a identidade torna-se


uma “celebração móvel, pois é formada e transformada continuamente
em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados
nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Bauman (2005) diz que é uma
característica de nossa época, cunhada por ele como líquido-moderna,
essa repartição em fragmentos mal coordenados, pois as sociedades
modernas não são caracterizadas apenas por romperem com toda e
qualquer condição precedente, passam também, por um processo sem-
fim de rupturas e fragmentações internas no seu próprio interior.
Bauman (2005) aponta que a princípio, flutuar sem apoio num
espaço pouco definido, pode ser estimulante, pois se caracteriza por uma
experiência cheia de promessas, ainda não vivenciadas, mas em longo
prazo, torna-se uma condição capaz de produzir ansiedade e tensão.
Todavia, se tomarmos uma posição fixa dentro de uma infinidade de
possibilidades, também não se torna uma perspectiva atraente,
especialmente em uma época em que o indivíduo livremente flutuante,
desimpedido, é o herói popular, e estar preso e ser identificado de modo
inflexível e sem alternativa é algo cada vez mais malvisto.

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Assim, talvez seja mais prudente portar identidades, como um
manto leve, pronto a ser despido a qualquer momento, identidades que
não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente, pois como afirma Hall
(2006, p. 13), a sensação de uma identidade homogênea é uma cômoda e
confortável ‘narrativa do eu’, e uma identidade plenamente unificada,
completa e segura é uma fantasia.
Partindo deste início de discussão e levando-se em conta a
multiplicidade desconcertante de identidades possíveis, com cada uma
das quais poderíamos nos identificar, ao menos temporariamente,
nosso trabalho terá a intenção de construir uma dupla identidade à
Joana, protagonista de Perto do Coração Selvagem, romance de
estreia de Clarice Lispector. Para comprovarmos a possibilidade
dessas leituras, utilizaremos duas ferramentas teóricas, que se ajustam
lucidamente na ficção clariceana: a filosofia da existência, sobretudo
as contribuições de Jean-Paul Sartre, e os conceitos operatórios da
Crítica Feminista, especialmente os que discutem as questões de
gênero.

JOANA: O SER E SUA RELAÇÃO COM O OUTRO

Perto do Coração Selvagem compõe-se de duas partes: na


primeira, dividida em nove capítulos, temos dois planos narrativos que
se alternam: o da infância e o da vida adulta de Joana, a protagonista do
romance. A história de Joana é montada por flashes. A estruturação dos
capítulos, construída em ziguezague, não atende a nenhuma ordem
cronológica, saltando da infância, onde aparecem suas fantasias de
criança ao lado do pai, a visita de um amigo do pai que fala a respeito de
sua mãe já falecida, a má relação com a tia e a puberdade de Joana, para a
vida adulta, já casada com Otávio: sua rotina, o passeio com o marido,
seus momentos de alegria e um diálogo com a ‘mulher da voz’ que a
impressionara, seguido de reflexões sobre a inconsciência dessa
personagem.
A segunda parte desenvolve-se em torno de um triângulo
amoroso. Otávio tinha uma amante: Lídia, sua ex-noiva, que estava
grávida. Suas fantasias são projetadas em um amante, do ponto de vista
físico, após conhecer o relacionamento extraconjugal do marido. Joana

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briga, logo depois, com o marido, o amante se afasta e a narrativa se
encerra com a personagem feliz com a ‘partida dos homens’ (marido e
amante), pois se considera liberta e capaz de sentir o mundo em sua
plenitude.
Consciente de sua fragmentação e de suas inúmeras facetas,
muitas vezes não enquadradas nos padrões estereotipados ditados pela
sociedade vigente, a protagonista vive numa busca constante por seu
autoconhecimento e, em muitos momentos, sente-se limitada em ter de
pertencer a um grupo homogêneo e absoluto, pois “sua vida era formada
de pequenas vidas completas, de círculos inteiros, fechados, que se
isolavam uns dos outros” (LISPECTOR, 1980, p. 89).
A confusão interior da personagem e seu antagonismo com o
mundo - abandono, solidão, coragem, audácia, felicidade na oposição à
vida domesticada - é o que Hall (2006) chama de crise da identidade. O
trecho a seguir, ilustra a descentralização de Joana, portadora de uma
identidade aberta e contraditória, característica basilar de um sujeito pós-
moderno:

Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me.


Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e
definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando, dentro das
criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma.
Sinceramente, eu vivo. Quem sou? Bem, isso já é demais
(LISPECTOR, 1980, p. 20).

Nessa incessante busca de um mistério intocável: o ser e a


existência, a construção da identidade da heroína, encontramos em Jean-
Paul Sartre, um maciço suporte teórico para lermos o romance à luz do
Existencialismo.
Logo na primeira página, do primeiro capítulo, podemos utilizar
a filosofia da existência na formação de uma possível identidade da
protagonista, ao nos depararmos com a seguinte cena: Joana
“encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do
vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-
morrer” (LISPECTOR, 1980, p. 11).
As galinhas, assim como todos os animais não humanos e coisas,
distinguem-se dos outros seres, pois não são conscientes de si, “ao

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contrário do homem que possui uma consciência auto reflexiva,
questionando-se a todo o momento sua condição de ser e sua relação com
os outros” (SARTRE, 1987). Joana, ainda menina, percebe essa
distinção e consciente de sua existência, observando o mundo, as pessoas
e as coisas que a rodeiam, “continuava lentamente a viver o fio da
infância” (LISPECTOR, 1980, p. 14).
Na sala de aula, a protagonista quebra o automatismo rotineiro,
pela pergunta atrevida à professora:

- O que é que se consegue quando se fica feliz? - sua


voz era uma seta clara e fina. - Queria saber: depois
que se é feliz o que acontece? O que vem depois? -
repetiu a menina com obstinação. A mulher encarava
a surpresa.
- Que idéia! Acho que não sei o que você quer dizer,
que idéia! Faça a mesma pergunta com outras
palavras...
- Ser feliz é para conseguir o que? (LISPECTOR,
1980, p. 25).

Estaria Joana consciente de sua condição humana? Comungando


com a postura de Sartre (1987), Robert Olson afirma em sua obra
Introdução ao Existencialismo (1970), que os existencialistas não
acreditam em uma noção de vida plenamente satisfatória, pois a
insegurança e a luta são questões iniludíveis da humanidade, e a única
vida digna de ser vivida é a que encara esse fato, caso contrário, o ser
humano seria convertido ao status de inconsciente.
Sartre (1987) diz que é no sofrimento que o indivíduo pode se
sentir livre, pois é o único sentimento que pode vir dele próprio. Não
podemos nos tornar felizes sem o concurso do universo e para tornarmo-
nos infelizes, não precisamos de nada mais que nós mesmos. Assim, o
existencialista prega que o principal valor da vida é a intensidade,
expressa em atos livres de escolha.
Voltemos ao diálogo, a fim de percebermos a maneira intensa
com a qual Joana se relaciona com a professora (e posteriormente com a
tia, com Otávio, com Lídia etc.) e a certeza da protagonista de que esse
estado pleno de segurança - a felicidade - no qual não haja angústia e
sofrimento é inconcebível a uma existência humana.

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- Sente-se... Brincou muito?
- Um pouco...
- Que é que você vai ser quando for grande?
- Não sei.
- Bem. Olhe eu tive uma idéia - corou.
- Pegue um pedaço de papel, escreva essa pergunta
que você me fez hoje e guarde-a durante muito
tempo. Quando você for grande leia-a de novo. -
Olhou-a. Quem sabe? Talvez um dia você mesma
possa respondê-la de algum modo... - Perdeu o ar
sério, corou. - Ou talvez isso não tenha importância e
pelo menos você se divertirá com...
- Não.
- Não o que? - perguntou surpresa a professora.
- Não gosto de me divertir - disse Joana com orgulho
(LISPECTOR, 1980, p. 26).

Órfã, entra em atrito com a tia burguesa, após ser flagrada


roubando um livro. A liberdade de escolha da protagonista é a mesma
apontada por Sartre (1987), pois ela afirma tranquilamente que roubará
quando tiver vontade, pois é livre, pode fazer suas escolhas, e se sente
responsável por tudo o que faz, enquanto a tia, suando frio, chora e fica
paralisada diante da frieza da sobrinha:

- Joana... Joana, eu vi...


Joana lançou-lhe um olhar rápido. Continuou
silenciosa.
- Mas você não diz nada? - não se conteve a tia, a voz
chorosa. - Meu Deus, mas o que vai ser de você? [...]
- Sim, roubei porque quis. Só roubarei quando quiser.
Não faz mal nenhum.
- Deus me ajude, quando faz mal, Joana?
- Quando a gente rouba e tem medo. Eu não estou
contente nem triste (LISPECTOR, 1980, p. 44).

O contato com o professor, que colabora para essa visão


existencialista da identidade de Joana, merece ser explorado. A menina,
apaixonada por ele, procura seus conselhos após ser chamada de víbora
pela tia que a viu roubando o livro. A relação da protagonista com o
professor remete a uma passagem de O existencialismo é um

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humanismo, onde Sartre (1987) discute o valor de um sentimento.
O filósofo afirma que um sentimento só se constitui pelos atos
que se praticam. Joana se sentia abandonada e desamparada pela família
e encontra nas conversas com o professor, o que ela queria ouvir, todavia,
por se identificar com sua postura, Joana adivinhara todas suas palavras e
mesmo assim “continuava a ouvi-lo e era como se os seus tios jamais
tivessem existido, como se o professor e ela mesma estivessem isolados
dentro da tarde, dentro da compreensão” (LISPECTOR, 1980, p. 55).
O professor, valendo-se de alguns valores existencialistas,
discute com a menina, questões como a vida animal, a busca desenfreada
e inalcançável pelo prazer mundano, a consciência da morte, e afirma
que não tem nenhum conselho para dar, não há orientações a serem
feitas. É o mesmo que Sartre (1987, p. 10) diz, ao afirmar que o homem,
“sem qualquer apoio ou auxílio, está condenado a inventar o homem”.
Sobre Joana pesa, portanto, a inteira responsabilidade de suas decisões.
Seu desamparo implica ser o indivíduo que ela escolheu ser.
De acordo com o existencialismo, o tempo para o homem tem um
significado peculiar, porque a vida humana é vivida à sombra do tempo.
A temporalidade humana não é uma soma de momentos, mas uma
extensão compreensiva do passado, presente e futuro. A pergunta ‘o que
sou?’ faz sentido em termos do que ‘em que me tenha tornado’, ou seja,
em termos de fatos históricos objetivos juntamente com o modelo de
associações significativas, constituindo a biografia ou a identidade do
eu. Sendo o ser um movimento temporal, existir é o mesmo que
temporalizar-se. O tempo une os sentidos do existir de Joana e, por isso, a
temporalidade é o sentido da existência.
A construção da identidade da protagonista, como já foi dito, não se
faz linearmente. A estruturação do romance desnorteia as expectativas do
leitor. Através de suas memórias, somos simultaneamente levados a conhecer
os acontecimentos da infância e da vida adulta da protagonista. Passado
remoto, passado próximo, presente e aspirações futuras se misturam.
Olga de Sá (1979, p. 80) afirma que esses “fatos filtrados pela
memória e, às vezes, inventados, atravessa toda a narrativa, como uma
espécie de memória involuntária”, ao sabor das associações que o
presente propicia. É através desses recortes que a identidade existencial
de Joana é delineada.

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Embora narrado em terceira pessoa, utilizando o monólogo interior
em combinação com o estilo indireto livre, o mundo interno da personagem
é trazido para o leitor como se fosse revelado pela própria protagonista.
Benedito Nunes (1995) afirma que as vivências da protagonista absorvem
os acontecimentos exteriores, escassos e sem uma significância real, e
exprimem o conflito dramático que cinde a personagem, interiormente
dividida e em oposição aos outros, confirmando que os problemas de
Joana se equacionam no nível do ser e não do fazer.
Retomando os conceitos de tempo na narrativa, utilizados por
Benedito Nunes (2002) e também por Umberto Eco (1994), podemos
perceber que no corpus, o tempo da história e o tempo do discurso se
fundem e se não fosse difícil quantificar, o tempo da leitura também se
fundiria com ambos. Eco (1994) afirma que esse tipo de texto cria um
artifício para que o leitor entre no ritmo que o autor julga necessário para
a fruição do texto. As divagações, sensações e lembranças de Joana,
talvez levem o mesmo tempo para serem lidas e ‘sofridas’ pela
protagonista. Nunes (2002, p. 66) afirma que:

É um caso extremo da experiência temporal na arte


de narrar - que indica, também, o limite do ‘feitiço
hermético’ do texto romanesco quando tematiza o
tempo, com a intenção de retê-lo no presente imóvel
de uma súbita iluminação ou epifania para a
consciência individual.

A temporalidade não linear, que cria uma espécie de vai e vem de


acontecimentos fora da ordem cronológica e que acompanha a errância
interior da personagem, passando de um a outro dos pequenos círculos de
sua vida dispersa, serve para lembrar o leitor a todo o momento do
itinerário existencial de Joana na busca do sentido da vida, na penetração
do mistério que cerca o ser humano.
Nessa peregrinação em busca da captura de si, afastada do
mundo, já na idade adulta, Joana sofre a angústia da escolha e age de má-
fé ao se casar com Otávio. A liberdade, como afirmou Sartre (1987),
característica inerente à natureza humana, tão presente na infância de
Joana, é deixada de lado para a protagonista viver o conformismo de uma
prática cotidiana habitual respeitada e estabelecida pela tradição, mesmo

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tendo este ato, a intenção de aproximá-la de alguma maneira de seu
processo de autoconhecimento. Com o peso de sua escolha, se dá conta
“dessa estranha liberdade que foi a sua maldição e que nunca a ligara nem
a si própria” (LISPECTOR, 1980, p. 177) “e vê no marido um estranho,
que ela ama hostilizando, um inimigo potencial que ela odeia amando”
(NUNES, 1995, p. 20).
A vida de mulher casada, com a rotina doméstica, não dá conta de
tranquilizar sua inquietação interior. Sem filhos, pois não tinha vocação
maternal e sem habilidade para cuidar dos afazeres domésticos, a
protagonista se enclausura mais fortemente em suas preocupações
existenciais.
Joana não fora uma criança parecida com as outras, não sentia
prazer em brincar e deixava os professores desconcertados com suas
perguntas, não fora a sobrinha domesticada, como sonhara sua tia, e nem
a esposa tradicionalmente criada numa sociedade patriarcal, que Otávio,
seu esposo, esperou encontrar. Não quis ter filhos e o próprio casamento
era visto como uma prisão, um passo errado que ela havia trilhado na
desenfreada busca pelo seu autoconhecimento. O que Joana realmente
deseja é questionar a sua existência, sua grande preocupação

é analisar instante por instante, perceber o núcleo de


cada coisa feita de tempo ou de espaço. Possuir cada
momento, ligar a consciência deles, como pequenos
filamentos quase imperceptíveis, mas fortes. É a
vida? Mesmo assim ela lhe escaparia (LISPECTOR,
1980, p. 66).

Depois de descobrir que Otávio possuía uma amante, Joana o


deixa totalmente livre para viver com Lídia e com o filho. Otávio,
tranquilo, afirma como seria bom livrar-se dela, pois “já se via
caminhando entre suas coisas com intimidade” (LISPECTOR, 1980, p.
195). Nesse ínterim, a protagonista arruma um amante. Um homem
desconhecido passou a segui-la e certo dia, ela se viu na casa desse
estranho e, sem querer saber-lhe o nome, desejando conhecê-lo por
outras fontes e por outros caminhos, manteve alguns encontros com ele.
O desconhecido que, para ela, era mais um salto para sua
autoinvestigação, um dia, acabou partindo.

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A subjetividade do mundo interior, descrita no corpus através da
epifania, do monólogo interior e do fluxo de consciência aponta para o
estilo lírico e introspectivo de Clarice Lispector. Sua literatura, como se
observa em Perto do Coração Selvagem, é um ambíguo espelho da
mente, que indefine as fronteiras entre a voz do narrador e das
personagens. A potência de sua linguagem faz com que ela se comprometa
mais com a realidade empírica que quer denunciar do que com o mundo da
invenção linguística, proposto por Guimarães Rosa. O universo semântico
de seus textos extrapola os limites dicionarizados e é assim que se pode
entender o novo campo vocabular de Lispector, quando, por exemplo,
descreve o estado de Joana, após a partida dos homens:

Mergulhada numa alegria tão fina e intensa quase


como o frio do gelo, quase como a percepção da
música. Ficou de lábios trêmulos, sérios. Eterna,
eterna. Brilhantes e confusos sucediam-se largas
terras castanhas, rios verdes e faiscantes, correndo
com fúria e melodia. Líquidos resplandecentes como
fogos derramando-se por dentro de seu corpo
transparente de jarros imensos... Ela própria
crescendo sobre a terra asfixiada, dividindo-se em
milhares de partículas vivas, plenas de seu
pensamento, de sua força, de sua inconsciência...
Atravessando a limpidez sem névoas levemente,
andando, voando[...] (LISPECTOR, 1980, p. 206).

A autora é audaciosa na concepção das imagens, nas metáforas,


nas comparações, no jogo das palavras. Yudith Rosenbaum (2002, p. 21)
afirma que as definições são viradas pelo avesso para revelar por dentro a
realidade dos seres, suas sensações, gerando ainda novas faces do real a
partir de experimentos com a linguagem.
Finalmente, com a partida dos homens, Joana volta para seu
estado primitivo, e todas as experiências vividas serviram como
fragmentos para compor sua identidade, pois sua preocupação maior,
como já foi dito, está centrada no processo de se descobrir, encontrar a
razão de ser de sua existência, contudo, mais importante que as respostas,
éo processo da busca de si. Para isso, ela embarca sozinha para uma
viagem não muito bem definida, dando a entender que, naquele

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momento, teria condições de se resgatar, pois estaria mais perto do
selvagem coração da vida.
Como afirma Sartre (1987), o homem, antes de qualquer coisa, é
o que se lança para um futuro, e o que é consciente de se projetar no
futuro, sendo assim, Joana só se realizará como Ser e só existirá na
medida em que executar seu projeto de autoconhecimento, pois seu
destino está em suas mãos e só cabe a ela fazê-lo. Tais imagens se fundem
num monólogo interior no último capítulo do romance. O ‘de profundis’,
construído através de um melódico monólogo, é descrito no futuro do
presente, sem que o passado de Joana a corroa, encaminhando-a, de fato,
para uma existência compreendida:

Deus por que não existe dentro de mim? Por que me


fizestes separada de ti? Deus vinde a mim, eu não sou
nada, eu sou menos que o pó e te espero todos os dias
e todas as noites, ajudai-me, eu só tenho uma vida e
essa vida escorre pelos meus dedos [...] Só então
viverei maior do que na infância, serei brutal e
malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que
se sente e não se entende [...] e nada impedirá meu
caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou
descanso me levantarei forte e bela como um cavalo
novo (LISPECTOR, 1980, p. 212).

O cavalo, segundo Olga de Sá (1979) é a liberdade tão indomável


que se torna inútil aprisioná-lo para que sirva ao homem: deixa-se
domesticar, mas com um simples movimento, sacudindo a crina como a
uma solta cabeleira, mostra que sua íntima natureza é sempre bravia,
límpida e livre. Assim como o cavalo novo, Joana vai para essa viagem,
que deixa a narrativa suspensa à possibilidade de uma busca que
recomeça a errância da personagem. O inacabamento da narrativa
reduplica a existência inacabada de Joana, que leva junto consigo algo
mais que a liberdade, pois nas palavras da protagonista: “o que desejo
ainda não tem nome” (LISPECTOR, 1980. p. 64).

JOANA: A SUBVERSÃO DO GÊNERO

Lúcia Osana Zolin (2009) afirma que a obra de Clarice Lispector

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significa na trajetória da literatura de autoria feminina no Brasil, um
momento de ruptura com a reduplicação dos valores patriarcais. Com
Perto do Coração Selvagem, publicado originalmente em 1944,
Lispector inaugura outra forma de narrar dentro de um espaço
tradicionalmente fechado à mulher. Lispector não é panfletária, no
entanto, suas obras abordam questões que dizem respeito ao movimento
feminista e suas conquistas: a) discussões a respeito dos valores
patriarcais; b) textos que tornam visível a repressão feminina nas práticas
sociais; c) tentativa de libertar a mulher da opressão que tem tolhido seus
movimentos e d) desmontagem dos alicerces das narrativas centradas na
visão patriarcal do feminino.
Em Perto do coração selvagem, sem saber quem é e se
questionando a todo o momento a respeito das escolhas que deve fazer, a
identidade feminina do romance luta para apropriar-se de si mesma,
longe do espelho masculino.
Joana foge à regra, ou seja, possui uma identidade totalmente
contrária daquela imposta para designar o grupo das mulheres,
ignorando a existência de uma identidade feminina, um denominador
comum à categoria das mulheres, representadas a partir das funções de
dona-de-casa, boa esposa e mãe de família. Utilizando-se da
personagem, Clarice Lispector traz à tona as particularidades e a hibridez
da identidade de mulheres, não mais concebidas em termos estáveis ou
permanentes (visão essencialista sobre Mulher), pois é impossível
incluir todas as mulheres e suas inúmeras distinções (sociais, culturais,
pessoais etc.) em um mesmo grupo. Bonnici (2007 apud PAJOLLA,
2011) afirma que é vã a procura da essência feminina, a qual definiria
todas as mulheres enquanto mulheres. Ademais, não se pode presumir
que aquilo que se aplica a uma mulher se aplicará a outras mulheres.
Levando-se em consideração suas experiências na infância, na
adolescência e finalmente na vida adulta, Joana vive despreocupadamente,
sem seguir métodos ou regras (impostos por este grupo identitário ao
qual ela não pertence), na tentativa de entender sua posição no mundo.

A liberdade que às vezes sentia não vinha de


reflexões nítidas, mas de um estado como feito de
percepções por demais orgânicas para serem

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formuladas em pensamentos. Às vezes no fundo da
sensação tremulava uma idéia que lhe dava leve
consciência de sua espécie e de sua cor. O estado para
onde deslizava quando murmurava: eternidade
(LISPECTOR, 1980, p. 44).

Há em Perto do Coração Selvagem, uma ruptura com as


definições preconcebidas sobre as adequações de gênero e o que
prevalece é a desmontagem de estereótipos e máscaras de ambos os
sexos. Bonnici (2007) afirma que gênero é a maneira como a cultura vê a
mulher (e o homem) e como esta é construída culturalmente.

O estudo de gênero não analisa biologicamente a


mulher. Ou seja, o fato da mulher ter seios e útero não
faz parte do objeto dos estudos de gênero. Referindo-
se à mulher como naturalmente passiva tímida,
intuitiva, chorona, dependente, sem iniciativa, a
reduz automaticamente a uma série de papéis. São os
tradicionais papéis femininos, os quais, construídos
culturalmente, foram atribuídos a muitas gerações de
mulher (BONNICI, 2007, p. 126).

Simone de Beauvoir, ao afirmar que a mulher não nasce mulher,


torna-se mulher, propõe a diferenciação básica entre sexo e gênero,
abrindo as portas para inúmeras e frutíferas discussões. O feminismo
tem-se focalizado sobre o gênero porque acredita que “uma reviravolta
nesses papéis será a maneira mais eficaz para inverter as relações de
poder entre homens e mulheres” (BONNICI, 2007, p. 126).
Esta inversão é claramente percebida no corpus. A protagonista
do romance foge dos moldes estereotipados. Subversiva e transgressora,
Joana vai à contramão de toda uma tradição de personagens dóceis,
fragilizadas, dependentes do pai e do marido, confinadas dentro de casa,
preocupadas com questões domésticas. Joana torna-se assim o discurso
do Outro (neste sentido, o discurso dominador) por excelência,
tornando-se totalmente insubordinada ao discurso masculino,
desconstruindo a dicotomia de mulher vítima/boa índole e homem
algoz/má índole.
No romance há três figuras masculinas de destaque: o pai de
Joana, o professor e o esposo. Todos os personagens são aniquilados

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mediante a força da protagonista, constituindo-se perfis diferentes dos
que normalmente apareciam na literatura até então. O pai não dá conta de
acompanhar a inteligência da filha, o professor se surpreende com as
opiniões da garota a respeito da vida e o marido torna-se oprimido pela
figura da esposa decidida, como se ela fosse uma vigia, sempre a espera
de um passo errado. Assim, como Joana é subversiva no papel de mulher,
automaticamente, os homens que convivem com ela, possuem um papel
secundário e oprimido, funcionando com papel de outro do Ser (no caso,
Joana). O fragmento a seguir, exemplifica o mal-estar do marido.

Otávio estendeu a mão e tomou-o. Uma folha de


caderno intercalava suas páginas. Olhou-a e
descobriu a letra incerta de Joana. Inclinou-se com
avidez. A beleza das palavras: natureza abstrata de
Deus. É como ouvir Bach. Por que preferia que ela
não tivesse escrito essa frase? Joana sempre o
encontrava desprevenido. Ele se envergonhava
como se ela estivesse claramente mentindo e ele
fosse obrigado a enganá-la, dizendo-lhe que
acreditava nela[...] (LISPECTOR, 1980, p. 132).

A vida de mulher casada, com a rotina doméstica, não dá conta de


tranquilizar sua inquietação interior. A casa, “representação do espaço
privado, frequentemente ligado à prisão pela perspectiva feminista”
(XAVIER, 2011, p. 22), não funciona como um obstáculo na vida de
Joana. Apesar de não ter tido filhos, pois não tinha vocação para a
maternidade e sem habilidade para cuidar dos afazeres domésticos, a
protagonista se fecha ainda mais no seu mundo interior, como mostra o
trecho a seguir:

A manhã seguinte era de novo como um primeiro dia,


sentiu Joana. Otávio saíra cedo e ela o abençoava por
isso como se ele lhe tivesse concedido
intencionalmente tempo para pensar, para observar-
se (LISPECTOR, 1980, p. 148).

Um dos pontos de maior transgressão e subversão de valores (de


uma sociedade patriarcal, ao menos) é o momento em que a protagonista
descobre que o esposo havia retomado uma relação anterior a ela, com sua

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ex-noiva Lídia. A amante estava grávida, e Joana resolve então, marcar um
encontro com a possível rival. Esta atitude nos faz pensar que a figura de
Joana dissipa (e dilui definitivamente aquela identidade de mulheres
iguais) a visão de mulher reclusa, sofredora, que não tem voz para gritar
suas indignações, mulheres submetidas a todos os tipos de humilhação
concedidos principalmente pelo marido. Esta mulher existia ainda na
época da publicação do romance, isto mostra que à frente de seu tempo,
Lispector fazia denúncias ao modelo de sociedade patriarcal que regulava
os passos da mulher, “construindo personagens que criticariam e se
tornariam totalmente desajustadas a este padrão oprimente, transpondo as
limitações impostas pela ideologia vigente” (ZOLIN, 2009, p. 231).
O trecho a seguir, narra a conversa das mulheres e aponta a visão
de Joana a respeito de uma das práticas sociais mais comuns da sociedade
patriarcal, destino de todas as mulheres dignas, religiosas e valorizadoras
dos bons costumes: o casamento.

- Você gostaria de estar casada - casada de verdade -


com ele? - indagou Joana.
Lídia olhara-a rapidamente, procurava saber se havia
sarcasmo na pergunta:
- Gostaria.
- Por quê? - surpreendeu-se Joana. Não vê que nada
se ganha com isso? Tudo o que há no casamento você
já tem - Lídia corou, mas eu não tinha malícia,
mulher feia e limpa. - Aposto como você passou toda
a vida querendo se casar.
Lídia teve um movimento de revolta: era tocada bem
na ferida, friamente.
- Sim. Toda mulher... - assentiu.
- Isso vem contra mim. Pois eu não pensava em me
casar. O mais engraçado é que ainda não tenho a
certeza de que não casei... Julgava mais ou menos
isso: o casamento é o fim, depois de me casar nada
mais poderá me acontecer. Imagine: ter sempre uma
pessoa ao lado, não conhecer a solidão. - Meu Deus! -
não estar consigo mesma nunca, nunca. E ser uma
mulher casada, quer dizer, uma pessoa com destino
traçado. Daí em diante é só esperar pela morte
(LISPECTOR, 1980, p. 159, grifos nossos).

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Fica evidente nesta passagem, a maneira irônica que Clarice
Lispector, dando voz à protagonista, questiona o modelo patriarcal, no
qual a mulher condenada à imanência (o casamento) fica reduzida ao
espaço privado, a um destino traçado. Notamos a tranquilidade com que
Joana assume o papel de mulher-sujeito, ou seja, possui um
comportamento de insubordinação perante a sociedade preconceituosa,
por seu poder de decisão, dominação e imposição, enquanto Lídia, apesar
de ter sido corajosa e subversiva ao se encontrar com a esposa de seu
amante, podendo ser até considerada uma adúltera inconsequente, ocupa
o papel de mulher-objeto, submissa, resignada, com o sonho de casar e
por isso frustrada (tocada na ferida) pela impossibilidade de realização
do mesmo. Otávio não é o provedor, com posição social e econômica
estável, com atributos que o engrandece e nem é disputado pelas duas
mulheres, mas sim um objeto que não faz diferença para a esposa e
encontra nos braços da ex-noiva, a possibilidade de fuga do incômodo
que sente a respeito de sua relação com Joana.
Encaminhando-nos para o final desta análise, apontemos uma
nova visão para o aparecimento do homem desconhecido, que passou a
seguir a protagonista. Depois de alguns encontros, acaba partindo,
todavia, além de contribuir para os questionamentos de Joana, colabora
para desmontar a visão angelical das mulheres que preservam seu corpoe
que se mantêm fiéis ao marido, independente dos problemas que o
casamento proporcionar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao término deste estudo, evidenciamos a grande importância da


Filosofia Existencialista e de seus conceitos para a análise do corpus em
questão. Nossa intenção foi salientar o modo pelo qual o texto permitiu,
através da teoria utilizada, construir a identidade da protagonista, mesmo
sabendo de sua condição heterogênea e mutável.
Antes de viver, a vida não é nada. Joana é uma peregrina
incansável, que tenta dar um sentido a sua vida, e o valor não é outra coisa
senão esse sentido que ela escolheu. Joana se questiona: O que importa
afinal: viver ou saber que se está vivendo?
Tal preocupação existencial da protagonista fica evidenciada através da

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presentificação, distorção de acontecimentos e memórias, referentes à
configuração cronológica do romance, e ao embarcar para a viagem
final, onde a morte é o horizonte e limite do futuro, Joana volta a si, pois
ela é a única que pode realizar a união consciente entre o que é e o que já
foi. Quando se faz presente, no sentido de viver autenticamente sua
situação, ela retrocede para si, o que faz do presente um misto do passado
e de antecipação do futuro.
Evidenciamos também, simultaneamente, a importância da
Crítica Feminista para a análise do corpus em questão. Nossa intenção
foi salientar o modo pelo qual o texto está marcado pela fragmentação
identitária e pela diferença de gênero, visando despertar o senso crítico e
promover mudanças de mentalidades. Clarice Lispector, logo em sua
primeira publicação rompeu com os discursos consagrados pela
tradição, nos quais a mulher ocupa um lugar secundário em relação ao
lugar ocupado pelo homem, marcado pela marginalidade, pela
submissão, pelo medo.
Alessandra Pajolla (2011, p. 159) afirma que “o sistema
patriarcal criou a mulher prefeita. Passiva, obediente, recatada. Altruísta,
está sempre disposta a colocar os interesses da família em primeiro lugar”,
mas eis que a rainha do lar já não se contenta em viver nos limites de
seu castelo, a desordem se instala e ela não se sente confortável nos
papéis que lhe foram reservados há séculos. Esta reviravolta é a
situação que vemos claramente em nosso corpus. Podemos comprovar
com a análise de Perto do Coração Selvagem, que a protagonista do
romance ocupa um lugar de destaque, de sujeito, que rege sua vida,
como realmente tem de ser, fugindo de todo tipo de dominação e
repressão, não pertencendo a uma identidade estereotipada e não
cumprindo os mandos e desmandos de uma sociedade patriarcal que
dita regras culturalmente preconceituosas e incutidas em nossa
história. No romance, coube ao homem o papel subjugado, inferior,
anulado e sem destaque.
De uma maneira geral, Perto do Coração Selvagem aponta para
uma nova concepção de sujeito, não mais identificado com uma
racionalidade que se acredita soberana, mas sim descentrado da
consciência e aberto ao mundo imprevisível e ilimitado do inconsciente.
É a aceitação do indivíduo como um ser em processo, nunca pronto e

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definido, constituindo-se um sujeito múltiplo, em vez de único, e
contraditório, em vez de simplesmente dividido.
No entanto, sabemos que um texto rico como este não se encerra
apenas levando-se em conta as contribuições do Existencialismo e da
crítica de matriz feminista, podendo ser analisado e revisitado com base em
outras teorias e leitores com os mais variados repertórios. Assim, notamos
que a vida é composta de referências e releituras de determinadas situações.
Desta forma, quem possui mais conhecimento, leituras, experiências, um
universo mais amplo e um maior contato com as variadas áreas do
conhecimento, têm muito mais chances para percebê-las.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: J. Zahar Editor, 2004. Entrevista concedida a Bennedeto
Vecchi.

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