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Resumo:
A cultura da pobreza na Ordem Franciscana pode ser enxergada ao longo da
construção histórica do cristianismo. Ao analisar cultura, é possível entendê-la através de
Hilário Franco Júnior2, sendo a cultura intermediária uma área em comum existente entre as
culturas erudita e popular. Tal área abarca temas como o mito, os ritos demoníacos, modos de
vida, entre outros. À vista disso, me proponho a refletir o éthos franciscano e a pobreza
através das representações iconográficas de Francisco e de sua vida, entre o século XIII e XV.
Introdução:
A pobreza é um dos três pilares do movimento franciscano, junto à castidade e
obediência, mas certamente é aquele que melhor o define. As dificuldades para a manutenção
dessa cultura, principalmente após a morte de seu fundador, quando a ordem passou por
rápido processo de clericalização, são perceptíveis também na iconografia medieval. O ideal
de Francisco e a proposta franciscana estavam inscritos em um universo social e ideológico
que articulava-se ao cristianismo primitivo não somente sob o aspecto de uma experiência
espiritual, mas também sob a perspectiva de suas relações com o espaço.
A compreensão dessa conjuntura e seu significado trás a necessidade do entendimento
das variadas particularidades que formam o medievo, sendo dois conceitos fundamentais: o
dominium e a ecclesia. Ao citar Alain Guerreau3, é possível compreender a perceção entre as
relações correntes no período em questão, sendo estas influenciadas pelos pensamentos
iluministas no século XVIII. Estas partiram o entendimento do mundo em divisões dotadas de
proporções claras - seja religião, política e etc - e, com isso, incomuns ao sistema do medievo.
Entre os conceitos estruturais supracitados, irei abordar primeiramente o dominium a
partir de uma ótima eclesial, onde o mesmo pode ser entendido a relação social de poder entre
1
Graduando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail:
matheus.a.vicente@ufrj.br
2
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Meu, Teu, Nosso: reflexões sobre o conceito de cultura intermediária.
In:______. A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Edusp, 2010. pp. 27-40.
3
GUERREAU, Alain. Nacimiento de la historia: la doble fractura. In: ______. El futuro de un pasado:
la Edad Media en el siglo XXI. Barcelona: Crítica, 2001. p. 19-30.
Paupertas: Uma reflexão sobre a Iconografia e Identidade da Ordem Franciscana no Medievo
homens e terras, base objetiva de uma aristocracia guerreira que articula-se entre si e com a
totalidade social a partir de parentescos artificiais.4 Por conseguinte, proponho prender minha
atenção especialmente ao de ecclesia. É possível compreender esse conceito como uma
espécie de “espinha dorsal” do universo medieval, pois o mesmo embarca e toca em todos os
âmbitos da sociedade, lhes conferindo significado conforme à incorporação em conjunto.
Portanto, segundo Miatello5, é possível entender ecclesia como:
[...] uma organização social que abarcava todos os âmbitos da vida pública
e privada, um modo de ser totalizante e englobante e, ao mesmo tempo, uma
instituição simultaneamente política e religiosa, que não se restringia aos seus
aspectos devocionais, doutrinários e litúrgicos, porque incluía as relações de poder
entre os homens, as relações econômicas entre os homens e seus bens, as
manifestações da cultura, as formas de saber e conhecimento (MIATELLO, 2014, p.
38).
Dessa maneira, pode-se enxergar a pobreza transpassando o conceito de ecclesia
através de uma ótica onde ela se estrutura como um ponto essencial para formação de uma
“cultura cristã”, no qual se entende como uma agregação de aspectos predominantes na
relação entre a fé cristã com as sociedades no decorrer da história com a igreja. Quando
falamos de cultura, é importante a compreensão da mesma através do que Geertz refere-se
como sendo pública, pois o seu significado é público. Ou seja, cultura é uma manifestação
que ultrapassa grupos sociais. De acordo com Geertz, o comportamento humano seria visto
como uma ação simbólica, ação essa que seria representada por pinturas, escrita, imagens,
gestos.6 Assim sendo, a pobreza carrega vastas facetas, como a representação iconográfica da
pobreza material, ou até a ideia simbólica da pobreza de espírito, atravessando uma série de
nuances.
4
JUNIOR, Edilson Alves de Menezes. O Estado feudal e as relações de poder senhorio-campesinato
no reino da França (1180-1226). Orientador: Prof. Dr. Mário Jorge da Motta Bastos. 2019. Dissertação
(Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2019.
5
MIATELLO, André Luis Pereira. Considerações sobre os conceitos de ecclesia e dominium à luz da
canonização de Homobono de Cremona (1198) por Inocêncio III. História Revista, Goiânia, v. 19, n. 1,
p. 37-65, 2014.
6
GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In:______. A
interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. pp. 3-21.
Paupertas: Uma reflexão sobre a Iconografia e Identidade da Ordem Franciscana no Medievo
Iconografia e Pobreza
7
MAGALHÃES, Ana Paula Tavare. Pobreza, periferia e exclusão: as relações entre lugar geográfico
e lugar social na Ordem Franciscana. Poder e Religiosidades no Ocidente Medieval, [s. l.], ed. Editora
Milfontes, 2019.
Paupertas: Uma reflexão sobre a Iconografia e Identidade da Ordem Franciscana no Medievo
8
COLEMAN, Janet. A History of Political Thought. From the Middle Ages to the Renaissance. Oxford:
Blackwell Publishers, 2000.
9
BASCHET, Jèrôme. L’Iconographie médiévale. Paris: Gallimard, 2008, 161
Paupertas: Uma reflexão sobre a Iconografia e Identidade da Ordem Franciscana no Medievo
Figura 2: Cimabue, Madona entronizada com Jesus, anjos e São Francisco, aprox. 1280.
Afresco. Assis, Basílica Inferior de São Francisco de Assis. Detalhe.
latina, fixou-se a forma pauper (e seu plural pauperes) como correspondente à pobreza
metafórica preconizada pelo texto bíblico. De maneira relativamente coesa, a exegese dos
textos hebraico, grego e latino convergiram para a doutrina da pobreza associada à moral.13
Seu emprego passou a traduzir a percepção de um sentimento de piedade, ou seja, a palavra
“pobre” passou a identificar uma classe social determinada, numericamente grande durante
aquele período. Assim, os franciscanos, transformaram a pobreza em virtude, sendo então um
estado digno de ser partilhado. Com isso, a manifestação da misericórdia divina proporcionou
a inclusão social no seio cristão de muitos pobres “marginalizados”.
Contudo, essa visão se chocou com discursos da Igreja e formou-se uma dialética da
pobreza. No dizer de São Boaventura, em meados do século XIII, “A pobreza é a mãe de
todos os vícios porque ela agride a ordem social, ela é um escândalo” (turpitudo). E, nos
sermões dominicais de finais do século XIII, a avareza deixa de ser apontada como um
pecado grave. O infortúnio do pobre não é senão fruto de seu mau ânimo e de sua preguiça, e
a pobreza passa mesmo a ser vista como um castigo divino. A pobreza torna-se uma
indignidade, um fracasso, aos olhos de quem ocupa uma função (officium).14 Logo, a cultura
da pobreza na Ordem Franciscana não se tornou uma ideia hegemônica no medievo, mas sim
fez parte de um cenário plural e heterogêneo.
Considerações Finais
13
MAGALHÃES, ANA PAULA TAVARES. Franciscanismo, trabalho e mendicância: o léxico
franciscano do século XIII. Revista Antíteses , v. 12, p. 70-94, 2019.
14
REZENDE FILHO, Cyro de Barros . Os pobres na Idade Média: de minoria funcional a excluídos do
Paraíso. Revista de Ciências Humanas (Taubaté) , v. 1, p. 1-9, 2009.
Paupertas: Uma reflexão sobre a Iconografia e Identidade da Ordem Franciscana no Medievo
Referências:
COLEMAN, Janet. A History of Political Thought. From the Middle Ages to the
Renaissance. Oxford: Blackwell Publishers, 2000.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Meu, Teu, Nosso: reflexões sobre o conceito de cultura
intermediária. In:______. A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo:
Edusp, 2010. pp. 27-40.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Meu, Teu, Nosso: reflexões sobre o conceito de cultura
intermediária. In:______. A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo:
Edusp, 2010. pp. 27-40.
GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura.
In:______. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. pp. 3-21.
Figura 1:
https://i.pinimg.com/originals/97/6b/7e/976b7e17a7c6ae6b6deba556582a5f51.jpg
Figura 2:
https://pt.artsdot.com/ADC/Art-ImgScreen-3.nsf/O/A-8Y3W2F/$FILE/Cimabue-madonna_e
nthroned_with_the_child_st_francis_and_four_angels.Jpg