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PAUPERTAS: UMA REFLEXÃO SOBRE A ICONOGRAFIA E IDENTIDADE DA

ORDEM FRANCISCANA NO MEDIEVO

Matheus Alexssander Dias Vicente 1

Resumo:
A cultura da pobreza na Ordem Franciscana pode ser enxergada ao longo da
construção histórica do cristianismo. Ao analisar cultura, é possível entendê-la através de
Hilário Franco Júnior2, sendo a cultura intermediária uma área em comum existente entre as
culturas erudita e popular. Tal área abarca temas como o mito, os ritos demoníacos, modos de
vida, entre outros. À vista disso, me proponho a refletir o éthos franciscano e a pobreza
através das representações iconográficas de Francisco e de sua vida, entre o século XIII e XV.

Palavras-chave: Iconografia. Pobreza. Ordem Franciscana. Ecclesia.

Introdução:
A pobreza é um dos três pilares do movimento franciscano, junto à castidade e
obediência, mas certamente é aquele que melhor o define. As dificuldades para a manutenção
dessa cultura, principalmente após a morte de seu fundador, quando a ordem passou por
rápido processo de clericalização, são perceptíveis também na iconografia medieval. O ideal
de Francisco e a proposta franciscana estavam inscritos em um universo social e ideológico
que articulava-se ao cristianismo primitivo não somente sob o aspecto de uma experiência
espiritual, mas também sob a perspectiva de suas relações com o espaço.
A compreensão dessa conjuntura e seu significado trás a necessidade do entendimento
das variadas particularidades que formam o medievo, sendo dois conceitos fundamentais: o
dominium e a ecclesia. Ao citar Alain Guerreau3, é possível compreender a perceção entre as
relações correntes no período em questão, sendo estas influenciadas pelos pensamentos
iluministas no século XVIII. Estas partiram o entendimento do mundo em divisões dotadas de
proporções claras - seja religião, política e etc - e, com isso, incomuns ao sistema do medievo.
Entre os conceitos estruturais supracitados, irei abordar primeiramente o dominium a
partir de uma ótima eclesial, onde o mesmo pode ser entendido a relação social de poder entre

1
Graduando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail:
matheus.a.vicente@ufrj.br
2
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Meu, Teu, Nosso: reflexões sobre o conceito de cultura intermediária.
In:______. A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Edusp, 2010. pp. 27-40.
3
GUERREAU, Alain. Nacimiento de la historia: la doble fractura. In: ______. El futuro de un pasado:
la Edad Media en el siglo XXI. Barcelona: Crítica, 2001. p. 19-30.
Paupertas: Uma reflexão sobre a Iconografia e Identidade da Ordem Franciscana no Medievo

homens e terras, base objetiva de uma aristocracia guerreira que articula-se entre si e com a
totalidade social a partir de parentescos artificiais.4 Por conseguinte, proponho prender minha
atenção especialmente ao de ecclesia. É possível compreender esse conceito como uma
espécie de “espinha dorsal” do universo medieval, pois o mesmo embarca e toca em todos os
âmbitos da sociedade, lhes conferindo significado conforme à incorporação em conjunto.
Portanto, segundo Miatello5, é possível entender ecclesia como:
[...] uma organização social que abarcava todos os âmbitos da vida pública
e privada, um modo de ser totalizante e englobante e, ao mesmo tempo, uma
instituição simultaneamente política e religiosa, que não se restringia aos seus
aspectos devocionais, doutrinários e litúrgicos, porque incluía as relações de poder
entre os homens, as relações econômicas entre os homens e seus bens, as
manifestações da cultura, as formas de saber e conhecimento (MIATELLO, 2014, p.
38).
Dessa maneira, pode-se enxergar a pobreza transpassando o conceito de ecclesia
através de uma ótica onde ela se estrutura como um ponto essencial para formação de uma
“cultura cristã”, no qual se entende como uma agregação de aspectos predominantes na
relação entre a fé cristã com as sociedades no decorrer da história com a igreja. Quando
falamos de cultura, é importante a compreensão da mesma através do que Geertz refere-se
como sendo pública, pois o seu significado é público. Ou seja, cultura é uma manifestação
que ultrapassa grupos sociais. De acordo com Geertz, o comportamento humano seria visto
como uma ação simbólica, ação essa que seria representada por pinturas, escrita, imagens,
gestos.6 Assim sendo, a pobreza carrega vastas facetas, como a representação iconográfica da
pobreza material, ou até a ideia simbólica da pobreza de espírito, atravessando uma série de
nuances.

4
JUNIOR, Edilson Alves de Menezes. O Estado feudal e as relações de poder senhorio-campesinato
no reino da França (1180-1226). Orientador: Prof. Dr. Mário Jorge da Motta Bastos. 2019. Dissertação
(Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2019.
5
MIATELLO, André Luis Pereira. Considerações sobre os conceitos de ecclesia e dominium à luz da
canonização de Homobono de Cremona (1198) por Inocêncio III. História Revista, Goiânia, v. 19, n. 1,
p. 37-65, 2014.
6
GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In:______. A
interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. pp. 3-21.
Paupertas: Uma reflexão sobre a Iconografia e Identidade da Ordem Franciscana no Medievo

Iconografia e Pobreza

Figura 1: Mestre de São Gregório, São Francisco, aprox. 1228.


Afresco. Subiaco, Capela de São Gregório.

As imagens de culto de Francisco nos séculos seguintes tendem a apresentar o livro


bíblico em suas mãos, até que no ambiente da Contra Reforma se dissemine a cruz ou a
caveira. Além de sua vestimenta com cor cinza, mangas largas e curtas, são seus pés
descalços a característica que fundamenta seu modo de vida na pobreza absoluta e no
evangelismo. Em tese, os franciscanos enxergavam Francisco de Assis, como um homem que
olhava a pobreza como a maior de todas as virtudes. Consequentemente, o mesmo
influenciava um modo de vida pacato, simples, desvalido e, por esse motivo, cada frade
necessitava viver com nada além do necessário para a subsistência humana.
Nessa perspectiva, os primeiros fratres de Francisco, reunidos conforme uma prática
devocional específica, retomaram o princípio da fé interior e espiritual, que ocupava os
espaços periféricos em relação aos grandes centros da cristandade.7 A cultura Franciscana se
fundamentou através da relação entre trabalho e a pobreza. Nesse contexto, a cultura da
pobreza franciscana - a recusa de quaisquer direitos de propriedade - suscitou debates na
Idade Média sobre o direito à propriedade:

7
MAGALHÃES, Ana Paula Tavare. Pobreza, periferia e exclusão: as relações entre lugar geográfico
e lugar social na Ordem Franciscana. Poder e Religiosidades no Ocidente Medieval, [s. l.], ed. Editora
Milfontes, 2019.
Paupertas: Uma reflexão sobre a Iconografia e Identidade da Ordem Franciscana no Medievo

Inicialmente, por intermédio de uma discussão intrínseco envolvendo


dominicanos e franciscanos no que tange a ligação sobre posse (dominium) e
manuseio da mesms, jurisdição e as suas particulares óticas sobre a autenticidade da
fortuna eclesiástica, bem como seus vínculos com a pobreza apostólica que emergiu
algumas das teses políticas mais poderosas e abrangentes ao influenciar o Medievo e
sua continuidade. Os franciscanos argumentam pela linha teocrática em que o Papa
tinha jurisdição suprema e dominium, enquanto que os eclesiásticos e os reis
exerciam apenas uma jurisdição delegada. Os dominicanos, ao contrário,
argumentavam que o uso dos bens materiais não poderia ser separado de sua posse,
mas esse direito de propriedade e posse sobre a propriedade não era o mesmo que
ter jurisdição sobre ela, de modo que nem os príncipes nem os papas eram donos da
propriedade sobre a qual eles exerciam jurisdição (COLEMAN, 2000, p. 79). 8
Durante todo o medievo, o ideal franciscano de pobreza e a cultura imaterial
fomentada pela ordem emergiu debates intrínsecos sobre propriedade e subsistência. O modo
de vida destes religiosos se constituiu com base em imagens mentais que se constroem a
partir das narrativas e das imagens que ilustram as experiências dos modelos.
Nenhum outro santo tem tamanha diversidade quanto à sua figuração. A arte
contemporânea nos apresenta variação não conhecida para nenhum outro. Esta
multiplicidade, no entanto, não é nova. As imagens de Francisco são particularmente ricas nas
suas diferenças desde seu primeiro século, sendo a questão da pobreza um tema central nas
diferentes imagens. Com isso, relacionar os elementos simbólicos que possam indicá-la é
bastante possível. Como aponta Jérôme Baschet, as imagens não são somente portadoras de
discursos definidos anteriormente, não se limitam a veículos de conteúdos elaborados, mas
são matérias com a qual o sentido se elabora.9 Portanto, não proponho isolar as imagens do
pensamento verbalizado, mas sim chamar a atenção para a especificidade do pensamento
figurativo.

8
COLEMAN, Janet. A History of Political Thought. From the Middle Ages to the Renaissance. Oxford:
Blackwell Publishers, 2000.
9
BASCHET, Jèrôme. L’Iconographie médiévale. Paris: Gallimard, 2008, 161
Paupertas: Uma reflexão sobre a Iconografia e Identidade da Ordem Franciscana no Medievo

Figura 2: Cimabue, Madona entronizada com Jesus, anjos e São Francisco, aprox. 1280.
Afresco. Assis, Basílica Inferior de São Francisco de Assis. Detalhe.

A ausência de nobreza, os traços marcados de um homem simples apontam para a


sensação de “retrato” menos poluído pela idealização. A rusticidade da vestimenta e o rosto
sulcado são completados por gestos tímidos e pés descalços. Este último detalhe, como já
apontado, marca a profundidade da experiência franciscana no que tange a pobreza. A
narrativa cristã identificaria na pobreza, não somente uma condição material de existência –
em relação à qual impunha-se uma ação – mas também uma representação – acessível a
todos, em concordância com o propósito universalista a partir do qual sua ecclesia se
constituíram.10
Segundo Jean-Claude Schmitt11, toda imagem possui uma razão de ser, de estar, uma
natureza, funções religiosas, uma cultura, um mito por trás de suas representações. Depois
dessa análise, compreende-se, de acordo com Hilário Franco Júnior12, que representações
míticas estão presentes na cultura franciscana e, através do manuscrito, observa-se como
essas manifestações fazem com que determinados grupos sociais através de suas crenças e
costumes funcionam como um modelo de comportamento, uma forma de conhecimento pela
intuição sobre as esferas divina, natural e humana.
O emprego da pobreza no Novo Testamento, como no capítulo de Mateus (5:3), onde
o discípulo descreve “bem-aventurados os pobres”, aponta para pobreza material. Há um
significativo aspecto moral do termo nos evangelhos, ao mesmo tempo que este deve ser
traduzido por pobreza material e não necessariamente por pobre em espírito. Na tradução
10
MAGALHÃES, ANA PAULA TAVARES . Franciscanismo, trabalho e mendicância: o léxico
franciscano do século XIII. Revista Antíteses , v. 12, p. 70-94, 2019.
11
SCHMITT, Jean-Claude. O historiador e as imagens. In:______. O corpo das imagens: ensaios
sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru: Edusc, 2007. pp. 25-54.
12
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Meu, Teu, Nosso: reflexões sobre o conceito de cultura intermediária.
In:______. A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Edusp, 2010. pp. 27-40.
Paupertas: Uma reflexão sobre a Iconografia e Identidade da Ordem Franciscana no Medievo

latina, fixou-se a forma pauper (e seu plural pauperes) como correspondente à pobreza
metafórica preconizada pelo texto bíblico. De maneira relativamente coesa, a exegese dos
textos hebraico, grego e latino convergiram para a doutrina da pobreza associada à moral.13
Seu emprego passou a traduzir a percepção de um sentimento de piedade, ou seja, a palavra
“pobre” passou a identificar uma classe social determinada, numericamente grande durante
aquele período. Assim, os franciscanos, transformaram a pobreza em virtude, sendo então um
estado digno de ser partilhado. Com isso, a manifestação da misericórdia divina proporcionou
a inclusão social no seio cristão de muitos pobres “marginalizados”.
Contudo, essa visão se chocou com discursos da Igreja e formou-se uma dialética da
pobreza. No dizer de São Boaventura, em meados do século XIII, “A pobreza é a mãe de
todos os vícios porque ela agride a ordem social, ela é um escândalo” (turpitudo). E, nos
sermões dominicais de finais do século XIII, a avareza deixa de ser apontada como um
pecado grave. O infortúnio do pobre não é senão fruto de seu mau ânimo e de sua preguiça, e
a pobreza passa mesmo a ser vista como um castigo divino. A pobreza torna-se uma
indignidade, um fracasso, aos olhos de quem ocupa uma função (officium).14 Logo, a cultura
da pobreza na Ordem Franciscana não se tornou uma ideia hegemônica no medievo, mas sim
fez parte de um cenário plural e heterogêneo.

Considerações Finais

Portanto, a apresentação da pobreza em representações iconográficas implica na


atribuição de valor que ultrapassa a identificação individual de Francisco ou outros
franciscanos. A heterogeneidade dos significados da pobreza foi um elemento definidor de
um modo de vida dialético à uma mentalidade medieval intrínseca às concepções de
dominium e ecclesia. A insistência nessa prática formou uma cultura alegórica que se tornou
um traço vinculante às interpretações do texto bíblico às experiências vividas por Francisco.

13
MAGALHÃES, ANA PAULA TAVARES. Franciscanismo, trabalho e mendicância: o léxico
franciscano do século XIII. Revista Antíteses , v. 12, p. 70-94, 2019.
14
REZENDE FILHO, Cyro de Barros . Os pobres na Idade Média: de minoria funcional a excluídos do
Paraíso. Revista de Ciências Humanas (Taubaté) , v. 1, p. 1-9, 2009.
Paupertas: Uma reflexão sobre a Iconografia e Identidade da Ordem Franciscana no Medievo

Referências:

BASCHET, Jèrôme. L’Iconographie médiévale. Paris: Gallimard, 2008.

COLEMAN, Janet. A History of Political Thought. From the Middle Ages to the
Renaissance. Oxford: Blackwell Publishers, 2000.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. Meu, Teu, Nosso: reflexões sobre o conceito de cultura
intermediária. In:______. A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo:
Edusp, 2010. pp. 27-40.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. Meu, Teu, Nosso: reflexões sobre o conceito de cultura
intermediária. In:______. A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo:
Edusp, 2010. pp. 27-40.

GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura.
In:______. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. pp. 3-21.

GUERREAU, Alain. Nacimiento de la historia: la doble fractura. In: ______. El futuro de un


pasado: la Edad Media en el siglo XXI. Barcelona: Crítica, 2001. p. 19-30.

JUNIOR, Edilson Alves de Menezes. O Estado feudal e as relações de poder


senhorio-campesinato no reino da França (1180-1226). Orientador: Prof. Dr. Mário Jorge
da Motta Bastos. 2019. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal
Fluminense, Rio de Janeiro, 2019.

MAGALHÃES, ANA PAULA TAVARES. Franciscanismo, trabalho e mendicância: o


léxico franciscano do século XIII. Revista Antíteses , v. 12, p. 70-94, 2019.

MAGALHÃES, ANA PAULA TAVARES. Pobreza, periferia e exclusão: as relações entre


lugar geográfico e lugar social na Ordem Franciscana. Poder e Religiosidades no Ocidente
Medieval, [s. l.], ed. Editora Milfontes, 2019.
Paupertas: Uma reflexão sobre a Iconografia e Identidade da Ordem Franciscana no Medievo

MIATELLO, André Luis Pereira. Considerações sobre os conceitos de ecclesia e dominium


à luz da canonização de Homobono de Cremona (1198) por Inocêncio III. História
Revista, Goiânia, v. 19, n. 1, p. 37-65, 2014.

REZENDE FILHO, Cyro de Barros . Os pobres na Idade Média: de minoria funcional a


excluidos do Paraíso. Revista de Ciências Humanas (Taubaté) , v. 1, p. 1-9, 2009.

SCHMITT, Jean-Claude. O historiador e as imagens. In:______. O corpo das imagens:


ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru: Edusc, 2007. pp. 25-54.

Site de origem das imagens:

Figura 1:
https://i.pinimg.com/originals/97/6b/7e/976b7e17a7c6ae6b6deba556582a5f51.jpg

Figura 2:
https://pt.artsdot.com/ADC/Art-ImgScreen-3.nsf/O/A-8Y3W2F/$FILE/Cimabue-madonna_e
nthroned_with_the_child_st_francis_and_four_angels.Jpg

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