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(Viola Spolin)
Todas as pessoas são capazes de atuar no palco. Todas as pessoas são capazes de
improvisar. As pessoas que desejarem são capazes de jogar e aprender a ter valor no
palco.
A intuição é sempre tida como sendo uma dotação ou uma força mística possuída
pelos privilegiados somente. No entanto, todos nós tivemos momentos em que a
resposta certa “simplesmente surgiu do nada” ou “fizemos a coisa certa sem pensar”. Às
vezes em momentos como este, precipitados por uma crise, perigo ou choque, a pessoa
“normal” transcende os limites daquilo que é familiar, corajosamente entra na área do
desconhecido e libera por alguns minutos o gênio que tem dentro de si. Quando a
resposta a uma experiência se realiza no nível do intuitivo, quando a pessoa trabalha
além de um plano intelectual constrito, ela está realmente aberta para aprender.
O intuitivo só pode responder no imediato — no aqui e agora. Ele gera suas dádivas
no momento de espontaneidade, no momento quando estamos livres para atuar e inter-
relacionar, envolvendo-nos com o mundo à nossa volta que está em constante
transformação.
Tanto a “pessoa média” quanto a “talentosa” podem ser ensinadas a atuar no palco
quando o processo de ensino é orientado no sentido de tornar as técnicas teatrais tão
intuitivas que sejam apropriadas pelo aluno. É necessário um caminho para adquirir o
conhecimento intuitivo. Ele requer um ambiente no qual a experiência se realize, uma
pessoa livre para experienciar e uma atividade que faça a espontaneidade acontecer.
Este texto é um curso planejado para tais atividades. O presente capítulo tenta auxiliar
tanto o professor como o aluno a encontrar a liberdade pessoal no que concerne ao
teatro.
JOGOS
Isto torna a forma útil não só para o teatro formal, como especialmente para os atores
interessados em aprender improvisação, e é igualmente útil para expor o iniciante à
experiência teatral, seja ele adulto ou criança. Todas as técnicas, convenções etc., que os
alunos-atores vieram descobrir lhes são dadas através de sua participação nos jogos
teatrais (exercícios de atuação):
A energia liberada para resolver o problema, sendo restringida pelas regras do jogo e
estabelecida pela decisão grupal, cria uma explosão — ou espontaneidade — e, como é
comum nas explosões, tudo é destruído, rearranjado, desbloqueado. O ouvido alerta os
pés, e o olho atira a bola.
Todas as partes do indivíduo funcionam juntas como uma unidade de trabalho, como
um pequeno todo orgânico dentro de um todo orgânico maior que é a estrutura do jogo.
Dessa experiência integrada, surge o indivíduo total dentro do ambiente total, e aparece
o apoio e a confiança que permite ao indivíduo abrir-se e desenvolver qualquer
habilidade necessária para a comunicação dentro do jogo. Além disso, a aceitação de
todas as limitações impostas possibilita o aparecimento do jogo ou da cena, no caso do
teatro.
Sem uma autoridade de fora se impondo aos jogadores, dizendo-lhes o que fazer,
quando e como, cada um livremente escolhe a autodisciplina ao aceitar as regras do
jogo (“desse jeito é mais gostoso”) e acata as decisões de grupo com entusiasmo e
confiança. Sem alguém para agradar ou dar concessões, o jogador pode, então,
concentrar toda sua energia no problema e aprender aquilo que veio aprender.
APROVAÇÃO/DESAPROVAÇÃO
O primeiro passo para jogar é sentir liberdade pessoal. Antes de jogar, devemos estar
livres. É necessário ser parte do mundo que nos circunda e torná-lo real tocando, vendo,
sentindo o seu sabor, e o seu aroma — o que procuramos é o contato direto com o
ambiente. Ele deve ser investigado, questionado, aceito ou rejeitado. A liberdade
pessoal para fazer isso leva-nos a experimentar e adquirir autoconsciência (auto-
identidade) e auto-expressão. A sede de auto-identidade e auto-expressão, enquanto
básica para todos nós, é também necessária para a expressão teatral.
Muito poucos de nós são capazes de estabelecer esse contato direto com a realidade.
Nosso mais simples movimento em relação ao ambiente é interrompido pela
necessidade de comentário ou interpretação favorável por uma autoridade estabelecida.
Tememos não ser aprovados, ou então aceitamos comentário e interpretação de fora
inquestionavelmente. Numa cultura onde a aprovação/desaprovação tornou-se o
regulador predominante dos esforços e da posição, e freqüentemente o substituto do
amor, nossas liberdades pessoais são dissipadas.
Abandonados aos julgamentos arbitrários dos outros, oscilamos diariamente entre o
desejo de ser amado e o medo da rejeição para produzir. Qualificados como “bons” ou
“maus” desde o nascimento (um bebê “bom” não chora) nos tornamos tão dependentes
da tênue base de julgamento de aprovação/desaprovação que ficamos criativamente
paralisados. Vemos com os olhos dos outros e sentimos o cheiro com o nariz dos outros.
Assim, o fato de depender de outros que digam onde estamos, quem somos e o que
está acontecendo resulta numa séria (quase total) perda de experiência pessoal.
Perdemos a capacidade de estar organicamente envolvidos num problema, e de uma
maneira desconectada funcionamos somente com partes do nosso todo. Não
conhecemos nossa própria substância, e na tentativa de viver (ou de evitar viver) pelos
olhos de outros, a auto-identidade é obscurecida, nosso corpo e a graça natural
desaparece, e a aprendizagem é afetada. Tanto o indivíduo como a forma de arte são
distorcidos e depravados, e a compreensão se perde para nós.
EXPRESSÃO DE GRUPO
O teatro é uma atividade artística que exige o talento e a energia de muitas pessoas —
desde a primeira idéia de uma peça ou cena até o último eco de aplauso. Sem esta
interação não há lugar para o ator individualmente, pois sem o funcionamento do grupo,
para quem iria ele representar, que materiais usaria e que efeitos poderia produzir? O
aluno-ator deve aprender que “como atuar”, assim como no jogo, está intrinsecamente
ligado a todas as outras pessoas na complexidade da forma de arte. O teatro
improvisacional requer relacionamento de grupo muito intenso, pois é a partir do acordo
e da atuação em grupo que emerge o material para as cenas e peças.
Para o aluno que está iniciando a experiência teatral, trabalhar com um grupo dá
segurança, por um lado e, por outro lado, representa uma ameaça. Uma vez que a
participação numa atividade teatral é confundida por muitos com exibicionismo (e
portanto com o medo de se expor), o indivíduo se julga isolado contra muitos. Ele luta
contra um grande número de “pessoas de olhos malevolentes”, sentadas, julgando seu
trabalho. O aluno se sente constantemente observado, julgando a si mesmo e não
progride.
Com a dominação de cada problema caminhamos para uma compreensão mais ampla,
pois uma vez solucionado o problema, ele se dissolve como algodão doce. Quando já
dominamos o engatinhar, nos pomos em pé, e quando nos levantamos começamos a
andar. Esse aparecimento e dissolvição infinitos de fenômenos desenvolve uma visão
(percepção) cada vez maior com cada novo conjunto de circunstâncias. (Veja todos os
exercícios de transformação.)
Se quisermos continuar o jogo, a competição natural deve existir onde cada indivíduo
tiver que empregar maior energia para solucionar consecutivamente problemas cada vez
mais complicados. Estes podem ser solucionados, então, não às custas de uma outra
pessoa, com a terrível perda emocional pessoal que o comportamento compulsivo
ocasiona, mas trabalhando harmoniosamente com outros para aumentar o esforço ou
trabalho de grupo. É só quando a escala de valores toma a competição como grito de
guerra que decorre o perigo: o resultado final — sucesso — torna-se mais importante do
que o processo.
A frase “esqueça a platéia” é um mecanismo usado por muitos diretores como meio de
ajudar o aluno-ator a relaxar no palco. Mas essa atitude provavelmente criou a quarta
parede. O ator não deve esquecer sua platéia, da mesma forma como não esquece suas
linhas, seus adereços de cena ou seus colegas atores!
A platéia é o membro mais reverenciado do teatro. Sem platéia não há teatro. Cada
técnica aprendida pelo ator, cada cortina e plataforma no palco, cada análise feita
cuidadosamente pelo diretor, cada cena coordenada é para o deleite da platéia. Eles são
nossos convidados, nossos avaliadores e o último elemento na roda que pode então
começar a girar. Ela dá significado ao espetáculo.
Quando existe um consenso de que todos aqueles que estão envolvidos no teatro
devem ter liberdade pessoal para experienciar, isto inclui a platéia — cada membro da
platéia deve ter uma experiência pessoal, não uma estimulação artificial, enquanto
assiste à peça. Quando a platéia toma parte neste acordo de grupo, ela não pode ser
pensada como uma massa uniforme a ser empurrada ou atrelada pelo nariz, nem deve
viver a vida de outros (mesmo que seja por uma hora), nem se identificar com os atores
e representar através deles emoções cansadas e gratuitas. A platéia é composta de
indivíduos diferenciados que estão assistindo à arte dos atores (e dramaturgos), e é para
todos eles que os atores (e dramaturgos) devem utilizar suas habilidades para criar o
mundo mágico da realidade teatral. Este deveria ser um mundo onde todo problema
humano, enigma ou visão, possa ser explorado, um mundo mágico onde os coelhos
possam ser tirados da cartola, e o próprio diabo possa ser invocado.
TÉCNICAS TEATRAIS
Quando uma técnica teatral ou convenção de palco é vista como um ritual e a razão
para sua inclusão na lista das habilidades do ator é perdida, então ela se torna inútil.
Uma barreira artificial é estabelecida quando as técnicas estão separadas da experiência
direta. Ninguém separa o arremesso de uma bola do jogo em si.
As técnicas não são artifícios mecânicos — um saco de truques bem rotulados para
serem retirados pelo ator quando necessário. Quando a forma de uma arte se torna
estática, essas “técnicas” isoladas, que se presume constituam a forma, estão sendo
ensinadas e incorporadas rigidamente. O crescimento tanto do indivíduo como da forma
sofre, conseqüentemente, pois a menos que o aluno seja extraordinariamente intuitivo,
tal rigidez no ensino, pelo fato de negligenciar o desenvolvimento interior, é
invariavelmente refletida em seu desempenho.
Quando o ator realmente sabe que há muitas maneiras de fazer e dizer uma coisa, as
técnicas aparecerão (como deve ser) a partir do seu total. Pois é através da consciência
direta e dinâmica de uma experiência de atuação que a experimentação e as técnicas são
espontaneamente unidas, libertando o aluno para o padrão de comportamento fluente no
palco. Os jogos teatrais fazem isto.
Quando o artista cria a realidade no palco, sabe onde está, percebe e abre-se para
receber o mundo fenomenal. O treinamento teatral não se pratica em casa (é fortemente
recomendado que nenhum texto seja levado para casa para ser decorado mesmo quando
se ensaia uma peça formal). As propostas devem ser colocadas para o aluno-ator dentro
das próprias sessões de trabalho. Isto deve ser feito de maneira que ele as absorva e
carregue dentro de si para sua vida diária.
FISICALIZAÇÃO
O termo “fisicalização” usado neste livro descreve a maneira pela qual o material é
apresentado ao aluno num nível físico e não-verbal, em oposição a uma abordagem
intelectual e psicológica. A “fisicalização” propicia ao aluno uma experiência pessoal
concreta, da qual seu desenvolvimento posterior depende, e dá ao professor e ao aluno
um vocabulário de trabalho necessário para um relacionamento objetivo.
A realidade só pode ser física. Nesse meio físico ela é concebida e comunicada através
do equipamento sensorial. A vida nasce de relacionamentos físicos. A faísca de fogo
numa pedra, o barulho das ondas ao quebrarem na praia. A criança gerada pelo homem
e pela mulher. O físico é o conhecido, e através dele encontramos o caminho para o
desconhecido, o intuitivo. Talvez para além do próprio espírito do homem.
O ator pode dissecar, analisar e desenvolver até mesmo um caso em torno de seu
papel se ele for incapaz de assimilar e comunicá-lo fisicamente, terá sido inútil para a
forma teatral. Não liberta seus pés nem traz o fogo da inspiração aos olhos da platéia. O
teatro não é uma clínica. Não deveria ser um lugar para se juntar estatísticas.
O artista capta e expressa um mundo que é físico. Transcende o objeto — mais do que
informação e observação acuradas, mais do que o objeto físico em si. Mais do que seus
olhos podem ver. A “fisicalização” é um desses instrumentos.
Quando o ator aprende a comunicar-se diretamente com a platéia através da
linguagem física do palco, seu organismo como um todo é alertado. Empresta-se ao
trabalho e deixa sua expressão física levá-lo para onde quiser. No teatro de
improvisação, por exemplo, onde pouco ou quase nenhum material de cena, figurino ou
cenário são usados, o ator aprende que a realidade do palco deve ter espaço, textura,
profundidade e substância — isto é, realidade física. É a criação dessa realidade a partir
do nada, por assim dizer, que torna possível dar o primeiro passo, em direção àquilo que
está mais além.
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“Comunicação direta” da maneira como é usada neste texto refere-se a um momento
de percepção mútua.
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