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Interdisciplinaridade, Direito e Estado:

memórias da Faculdade de Direito da UFMG1

José Luiz Borges Horta2

Para Alberto Deodato e Orlando Carvalho, pioneiros desbra-


vadores do solo jurídico-crítico.

“A formação jurídica para os novos tempos [...] deve colocar


sua ênfase decididamente na criatividade”.
J. B. Villela3

1. Faculdade de Direito:
origens e fins, em perspectiva
histórica

N
o tempo e no espaço, a clássico de Terêncio, “Homo sum; huma-
fundação de faculdades de ni nil a me alienum puto”, nada que é
Direito sempre teve um único humano causa espanto a uma Faculdade
objetivo, ora mais, ora menos explícito: de Direito.
compreender o humano em suas mais Esse ideal humanista gera para
amplas pluralidades, como no brocardo os educandários jurídicos uma tarefa ci-
vilizatória 4 de significativas proporções.
1 O presente ensaio foi especialmente redigi-
do por ocasião dos 120 anos da Faculdade 2 Doutor em Filosofia do Direito (UFMG,
de Direito da Universidade Federal de Minas 2002), com pós-doutorado em Filosofia pela
Gerais. Sua redação – que contou com o ge- Universitat de Barcelona (2010-2011). Pro-
neroso estímulo e a dedicada colaboração fessor de Filosofia do Estado na Faculdade
dos jovens pesquisadores Vinicius de Siqueira de Direito da Universidade Federal de Minas
e Thales Monteiro Freire, da Universidade Gerais. Coordenador desde 2005 do Gru-
Federal de Minas Gerais, aos quais agrade- po de Pesquisa dos Seminários Hegelianos e
cemos imensamente – insere-se nos proje- desde 2011 do Grupo Internacional de Pes-
tos Estado, Razão e História e Macrofilosofia, quisa em Cultura, História e Estado. E-mail:
Direito e Estado, este último contando zeluiz@ufmg.br.
com incentivo, entre outros, do Conselho
3 VILLELA, 1967, p. 101.
Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico - CNPq. 4 HORTA, 2009.
Revista Brasileira de Estudos Políticos | Série “Estudos Sociais e Políticos” 193
Edição Comemorativa dos 120 anos da Faculdade de Direito da UFMG (1892 - 2012) | n. 40 | p. 59 a p. 77 | 2012
Interdisciplinaridade, Direito e Estado: memórias da Faculdade de Direito da UFMG

Transmutar a pólis em civitas e elevá-la cas brasileiras, pela via da concentração


– e ao seu povo – ao plano da civilitas de poder nas lideranças provincianas
é a tarefa fundadora de toda e qualquer dos Estados-membro da federação então
faculdade de Direito. forjada –, as elites políticas mineiras se
Assim, no Medievo, no fabuloso uniam no ousado projeto de formarem-
projeto de criação das universidades, se a si mesmas.
quase sempre ancoradas nos saberes Mais que simplesmente formar
dotados de alta respeitabilidade: as belas quadros para a burocracia do Estado de
letras clássicas, a medicina greco-roma- Minas Gerais, tratava-se de emancipar
na, a filosofia grega e o direito romano. nossas elites do magnetismo intelectual
N o B r a s i l , ap e n a s c i n c o até então exercido pelas Faculdades
anos após a proclamação da nossa de Direito de Olinda e do Largo de
Independência, o Estado nascente já São Francisco, hoje respectivamente
criava os dois primeiros estabelecimentos vinculadas à Universidade Federal de
de ensino do país: as duas faculdades de Pernambuco e à Universidade de São
Direito fundadas para dar unidade cultu- Paulo.
ral às elites dirigentes do novo Império.5 Para que Minas tivesse identi-
O gesto de quase dois séculos dade própria, era preciso mimetizar a
não difere dos atos de criação de nenhu- estratégia imperial de construção da uni-
ma outra faculdade de Direito, especial- dade nacional no eixo São Paulo-Olinda;
mente no caso da Faculdade Livre de era preciso atrair os futuros quadros das
Direito, fundada em 1892 na Ouro Preto elites dirigentes (os filhos das famílias
capital das Minas Gerais. governamentais de Minas6) para um
Apenas três anos após o golpe espaço especialmente criado para prover
republicano, no ano seguinte ao da pro- estrategicamente Minas Gerais de líderes
mulgação da Constituição republicana forjados na própria cultura mineira.
de 1891 – Constituição que, entre outras Foi assim que Afonso Augusto
virtudes e vícios, abrira caminho para a Moreira Pena (1847-1909),7 Conselheiro
forte oligarquização das relações políti-
6 HORTA, 1956.
5 Para uma história do ensino jurídico no 7 Affonso Augusto Moreira Penna, mineiro
Brasil, desde seus primórdios, cf. VENÂNCIO de Santa Bárbara, formou-se em Direito
FILHO, 1982 e WANDER BASTOS, 2000. na Faculdade de Direito do Largo de São
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José Luiz Borges Horta

do Império, Presidente de Minas Gerais farçada nas entrelinhas do convívio in-


e depois da própria República, fundou, tergeracional no âmbito da comunidade
junto aos demais oligarcas mineiros acadêmica e notória no exame do perfil
de seu tempo, nossa Vetusta Casa de dos docentes e dos egressos dos bancos
Afonso Pena. escolares, desde sempre estadistas, políti-
Desde o início, no entanto e cos, literatos, poetas, artistas e, às vezes,
como em qualquer faculdade de Direito até mesmo profissionais forenses.
que se preze, uma tensão lhe é consti- Ora, se as salas de aula eram
tutiva, genética, inata: a tensão entre pensadas a partir de grades curriculares
formação profissional e formação hu- formalistas e forenses, mas os objetivos
manística. maiores e verdadeiros da Instituição
Esta tensão se manifesta nestes nada tinham que ver com isso, parece
120 anos de muitas formas; a mais elo- inferir-se naturalmente a desimportância
quente delas é a evidente contradição sistêmica das salas de aula, em detrimen-
entre uma faculdade formalmente de- to do fundamental relevo do convívio
votada à profissionalização forense, até extraclasse dos discentes, entre si e com
mesmo em suas grades curriculares, sem- as gerações de docentes.
pre repletas de disciplinas voltadas ao Em alguns momentos, como,
preparo para o exercício das atividades por exemplo, ao tempo da separação
forenses, e uma faculdade materialmente entre um bacharelado em Ciências
voltada à formação de uma genuína elite Jurídicas e outro em Ciências Sociais,8
intelectual e política mineira, tarefa dis- ficou claro o esforço da parcela formalis-
ta e dogmática da Faculdade para forjar
Francisco, em São Paulo, foi Ministro várias uma formação jurídica rigorosamente
vezes nos gabinetes imperiais (da Guerra, da
Agricultura, da Justiça), e depois, pelo Partido profissionalizante e forense, perspectiva
Republicano Mineiro (PRM), Presidente de
quase sempre repudiada pela história e
Minas Gerais (1892-1894), Vice-Presidente
da República (1902-1906) e Presidente da
República de 1906 à sua morte, em 1909.
Fundador da Faculdade Livre de Direito, 8 A Faculdade de Direito abrigara, desde a sua
foi seu primeiro Diretor (1892-1909) e fundação, três cursos – Ciências Jurídicas,
catedrático de Economia Política, Ciência Ciências Sociais e Notariado –, no entanto
das Finanças e Contabilidade do Estado [Por fundidos em um único Bacharelado em
questão de método, optamos por oferecer Ciências Jurídicas e Sociais em 1896. E mais
uma pequena biografia dos ilustres docentes tarde passando a se chamar tão somente
já falecidos que mencionarmos no texto]. Bacharelado em Direito.
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pelo devir das gerações em nossa amada tensamente vividas ou curiosamente


Faculdade. assuntadas – pelo autor nas últimas
Em termos de hoje, podemos tal- décadas, uma leitura da história recente
vez dizer que a Escola – assim gostamos da Faculdade de Direito da UFMG.
de acreditar na consistência do pensar Propõe-se, assim, a analisar as
jurídico-político em nossa Faculdade –, etapas de evolução de uma certa cons-
a nossa Escola sempre viveu em perma- ciência da interdisciplinaridade em
nente cisão entre o paradigma disciplinar nosso universo acadêmico, oferecendo
e o paradigma interdisciplinar. Trocando ainda uma proposta de interpretação dos
em miúdos, às vezes de modo estridente, desafios que se colocam a todos nós, no
às vezes de forma surda, dogmática e limiar dos 120 anos de nossa Faculdade.
crítica sempre se enfrentaram na cons-
2. Etapas históricas da in-
trução e reconstrução da Faculdade de
terdisciplinaridade na Facul-
Direito da UFMG.
dade de Direito da UFMG
Somos todos frutos desta dialé-
tica, até os que fingem não participar O passado da consciência inter-
dela. disciplinar permite recuperar três etapas
Este ensaio tenta biografar as históricas, que chamaremos respectiva-
últimas e mais recentes batalhas para-
digmáticas no âmbito da Faculdade,
1977), que cuidou do período 1892-1949,
oferecendo, à luz das memórias9 – in- somente temos a excepcional aula magna
do Centenário da Casa, proferida pelo então
decano Raul Machado Horta. Cf. HORTA,
9 Em muitos sentidos, no presente ensaio 1994. Esses trabalhos foram consultados
encontra-se o que ouvi, o que vi e o que permanentemente, na construção do
vivi. É que são relativamente poucas as fontes presente ensaio, para equacionar detalhes
bibliográficas acerca da história da Faculdade e inspirar reflexões, bem como para
de Direito da UFMG, o que nos leva ao doce alimentarem nosso Ensaios de Educação
exercício de nossa própria memória, a partir Jurídica, de resto também aqui utilizado
de depoimentos que ouvi dos docentes com como fonte de informações. Já para a
quem tive e tenho a honra de conviver e de história da Universidade Federal de Minas
fatos que testemunhei, desde 1989, quando Gerais, fundada por Antônio Carlos em 1927
ingressei na Faculdade como bacharelando ainda como Universidade de Minas Gerais,
em Direito. Após a seminal tarefa das então constituem obras de consulta necessária:
jovens professoras Misabel de Abreu Machado RESENDE; ALMEIDA NEVES, 1998, em que
Derzi e Elza Maria Miranda Afonso, publicada as autoras se valeram dos depoimentos dos
como Dados Para Uma História da Faculdade magníficos reitores do período pesquisado, e
de Direito da Universidade Federal de Minas DIAS, 1997, com uma primorosa recuperação
Gerais (DERZI; MIRANDA AFONSO, 1976- do sentido originário de nossa Universidade.
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mente de etapa clássica, moderna e pós- a lecionarem os princípios e normas da


moderna, cobrindo, de modo amplo, o Constituição ditada em 1937.
período de tempo que vai dos anos 1940 Alvissareiramente, em 1941 as-
ao inicio dos anos 2000, considerados sumiria o primeiro catedrático de Teoria
os últimos recentes dez anos como etapa Geral do Estado de nossa Faculdade – o
histórica presente e, portanto, tratada em venerável Orlando Magalhães Carvalho
item autônomo. (1910-1998).10 Homem de cultura am-
Evidentemente, desde sempre a pla, formação intelectual sólida, pro-
Casa de Afonso Pena foi um celeiro de fundas ligações com as elites políticas
formação de humanistas – formação po- mineiras e impressionante pioneirismo,
lítica, ideológica, jusfilosófica e até mes- Orlando Carvalho exerceu a mais pro-
mo jurídico-forense. Porém, é somente a funda influência sobre a Faculdade de
partir dos anos 1940 que conseguimos Direito, mantendo nela uma benéfica
identificar com clareza a presença de hegemonia de décadas, raras vezes con-
uma consciência interdisciplinar potente. frontada, e abrindo para a Faculdade
Eram os tempos da Ditadura e a Universidade – de que foi Reitor –
Vargas e de seu Estado Novo, uma e horizontes profundamente inovadores.
outro amplamente repudiados pelas fa-
10 Orlando Magalhães Carvalho, mineiro
culdades de Direito país afora, habitadas
de Pouso Alegre, formou-se em Direito
que sempre foram por espíritos sofistica- na Faculdade de Direito da Universidade
de Minas Gerais, onde seria o primeiro
dos e infensos a ditaduras e ao desres- catedrático de Teoria Geral do Estado (1941-
1980), Diretor-fundador da Revista Brasileira
peito às liberdades clássicas. A Ditadura de Estudos Políticos (1956-1998), Vice-Reitor
Vargas se viu obrigada a operar uma sin- da UFMG (1953-1958) e Reitor da UFMG
(1961-1964), tendo apostado decisivamente
gela reforma curricular, que dividiria em no campus universitário da Pampulha, onde
inaugurou o edifício da Reitoria. Foi Reitor
duas a antiga cadeira de Direito Público pro tempore da Universidade Federal de
Constitucional: para a cadeira então Ouro Preto em 1974. Fundador da União
Democrática Nacional, foi Secretário de
criada de Teoria Geral do Estado seriam Estado da Educação no Governo Milton
Campos. Integrou a Comissão de Notáveis,
deslocados os pensadores e intelectuais nomeada em 1985 para elaboração do
de matriz humanista e liberal, restando Anteprojeto de Constituição. Estudou em
Paris, lecionou na Universidade Vanderbilt,
à cátedra de Direito Constitucional nos Estados Unidos, e integrou as direções
da CAPES e da UNESCO. Sobre o Reitorado
pensadores afetos ao regime e dispostos Orlando Carvalho, cf. RESENDE; ALMEIDA
NEVES, 1998, pp. 23-38.
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A partir de sua cátedra, de damente seus colegas e alunos, gerando


seu magistério e de sua dedicação à na Faculdade de Direito uma atmosfera
Universidade – sequer atenuada por sua genuinamente universitária e abrindo
aposentadoria compulsória em 1980 espaço político e acadêmico para o
e apenas abalada por seu falecimento desenvolvimento de iniciativas já hoje
em 1998 – Orlando reconstruiu nossa clássicas.
Faculdade, marcando profundamente a Pouco nos damos conta, hoje,
etapa do que chamamos interdisciplina- por exemplo, do impacto real do envio
ridade clássica. postal da Revista Brasileira de Estudos
Interessante anotar que o pe- Políticos a centenas de instituições mun-
ríodo que aqui chamamos de interdisci- do afora; em permuta, nossa biblioteca
plinaridade clássica coincide em grande recebia revistas e periódicos do mundo
parte com o exercício da cátedra por todo, tornando-se a melhor biblioteca de
Orlando, entre 1941 e 1980. Não que o periódicos do país por várias décadas e,
mestre estivesse sozinho: sua força polí- a partir de tanta vitalidade e diversida-
tica e a força de seu exemplo acadêmico de, gerando condições propícias para a
tornavam-no o timoneiro da mudança, pesquisa e a produção do conhecimento
permitindo-lhe reordenar o ethos ins- em nossa Faculdade.
titucional em termos de uma notável A Faculdade, nas décadas de
interdisciplinaridade. 1950 e 1960, em paralelo ao rico período
Não se trata somente de seu da experiência democrática brasileira,

grande legado, a Revista Brasileira respirava ares autenticamente interdis-

de Estudos Políticos, por ele fundada ciplinares.

em 1956 e por várias décadas o mais Lydio Machado Bandeira de

reconhecido periódico brasileiro de Mello (1901-1984)12 recolhia da tradição

Humanidades, lido e respeitado em mais


importância da Revista Brasileira de Estudos
de 80 países em todos os continentes; é Políticos e de Orlando Carvalho: CARVALHO,
2006 e BERTI, 2010.
mais sutil e penetrante a capilaridade
12 Lydio Machado Bandeira de Mello, mineiro de
da presença de Orlando Carvalho em
Abaeté, formou-se em Direito na Faculdade
nossa Faculdade.11 Estimulou profun- de Direito da Universidade do Rio de Janeiro
(hoje UFRJ) e foi catedrático de Direito Penal
na UFMG de 1951 a 1971, onde teria grande
11 Recomendamos, para compreender a impacto nos estudos jusfilosóficos.
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cristã – e da Matemática! – elementos ternacionais; Washington Peluso Albino


de renovação da Filosofia do Direito em de Souza (1917-2011)15 inovava a relação
obras mimeografadas a partir de sua entre Direito, Economia e sociedade, na
própria caligrafia; Edgar de Godoy da firme defesa do Estado social de Direito16
Matta-Machado (1913-1995)13 vazava – todos, de uma forma ou de outra,
seu humanismo cristão recordando aos animados pela ideia de fazer avançar a
jovens o compromisso do jurídico para justiça em suas múltiplas dimensões e
com o justo; Gérson de Britto Mello para isso em compreender o homem na
Boson (1914-2001)14 renovava a relação sua teia viva de relações (econômicas, so-
entre o homem, a cultura e as relações in- ciais, religiosas, culturais, humanísticas).
É o tempo da criação, pelo
13 Edgard de Godoy da Matta-Machado, mineiro também venerável Alberto Deodato
de Diamantina, formou-se em Direito na
Faculdade de Direito da Universidade de Maia Barreto (1896-1978),17 da primei-
Minas Gerais, onde seria catedrático de ra iniciativa formal de articulação da
Introdução à Ciência do Direito de 1956
a 1968, cassado em decorrência do AI-5. Faculdade para a pesquisa (e não mais
Fundador da União Democrática Nacional,
foi Deputado Estadual e Federal e, já para o ensino): os institutos de pesquisa,
pelo Partido do Movimento Democrático por ele estimulados já nos anos 1960
Brasileiro, Senador da República. Integrou
a Comissão de Notáveis, nomeada em e reveladores de jovens vocações para
1985 para elaboração do Anteprojeto de
Constituição. o magistério. Entre os jovens docentes

14 Gérson de Brito Mello Boson, piauiense


de Pirarucuca, formou-se em Direito na 15 Washington Peluso Albino de Souza, mineiro
Faculdade de Direito da Universidade de de Ubá, formou-se em Direito na Faculdade
Minas Gerais, onde seria catedrático de de Direito da Universidade de Minas Gerais,
Direito Internacional Público de 1952 a onde foi o primeiro Professor Titular de
1969, Vice-Reitor de 1964 a 1967 e o Direito Econômico, disciplina que implantou
mais recente Reitor da UFMG egresso da no Brasil, tendo sido também Diretor da
Faculdade de Direito, de 1967 a 1969, Faculdade de 1986 a 1990.
tendo sido cassado no exercício do
cargo. No Governo Israel Pinheiro, foi 16 Sobre o Estado social, no devir do Estado de
Secretário de Estado da Educação. Após Direito, cf. HORTA, 2011a.
a redemocratização, vinculado ao Partido
do Movimento Democrático Brasileiro, 17 Alberto Deodato Maia Barreto, sergipano de
foi Secretário de Estado da Casa Civil no Maroim, formou-se em Direito na Faculdade
Governo Newton Cardoso e Reitor-fundador de Direito da Universidade de Minas
da Universidade do Estado de Minas Gerais Gerais, onde seria catedrático de Ciência
(em dois momentos: em 1991, no Governo das Finanças de 1951 a 1966 e Diretor da
Newton Cardoso e, mais tarde, durante o Faculdade na década de 1960. Signatário
Governo Itamar Franco). Sobre o Reitorado do Manifesto dos Mineiros de 1943 e
Gérson Boson, cf. RESENDE; ALMEIDA fundador da União Democrática Nacional,
NEVES, 1998, pp. 79-100. foi Vereador, Deputado Estadual e Federal.
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que ingressaram na Faculdade como 1966, o abominável Ato Institucional


Assistentes de pesquisa nos IP’s, encon- nº 2 feriria de morte a cultura política
trou-se o privatista de maior influên- brasileira, extinguindo os genuínos par-
cia na história recente da Casa, João tidos com que até então contávamos. No
Baptista Villela. ano seguinte, a própria Constituição se
É curioso pensar que essa é faz substituir pelo texto da Lei Maior de
uma era toda ela especial na história da 1967. Em 1968, enveredamos pelo cami-
Faculdade: pontificavam homens que nho de nova ditadura, com o nefando
haviam se oposto à ditadura, muitos Ato Institucional nº 5.18
deles antigos signatários do Manifesto Ao tempo em que catedráticos
dos Mineiros de 1943 – mais importante da Faculdade de Direito eram cassados
documento da história política de Minas pelo regime militar,19 o regime cuida-
e texto-chave no processo de derrubada ria de desestruturar profundamente as
da Ditadura Vargas – e que possuíam universidades públicas, por meio da
ligações profundas com o texto e o Reforma Universitária levada a cabo na
contexto da mais importante de nossas virada dos anos 1960 para 1970; para
constituições republicanas: a consistente enfraquecer as universidades, extinguia-
Constituição de 1946. se o regime de cátedras; para dissipar po-
Nesse período clássico, cuja deres, impunha-se a departamentaliza-
lembrança permite que nos ufanemos de ção; para esvaziar ainda mais as grandes
nossas genuínas tradições, a interdiscipli- lideranças, reestruturava-se a carreira
naridade se fazia de modo quase natural, universitária, com duas medidas de triste
não institucionalizado e marcado por um sentido: uma, a ascensão de catedráticos
notável pioneirismo daqueles homens biônicos, já que não somente os então
de Estado e intelectuais de grande porte
que levavam a Faculdade aos seus áureos 18 Sobre os meandros da história constitucional
brasileira, recentemente escrevemos HORTA,
tempos. 2006. Cf. também CATTONI, 2011.
O ocaso dessa era clássica 19 Gérson Boson, nosso Magnífico Reitor e
catedrático de Direito Internacional Público,
confunde-se de muitas maneiras com
Lourival Vilela Viana, nosso Diretor e
o ocaso da experiência democrática e catedrático de Direito Processual Penal, Ruy
de Souza, catedrático de Direito Comercial,
do regime constitucional de 1946. Em e Edgard da Matta-Machado, catedrático de
Introdução à Ciência do Direito.
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catedráticos foram transformados em chamado baixo clero) e até mesmo che-


professores titulares no novo modelo; garam a professores docentes que sequer
muitos livre-docentes foram elevados a haviam prestado concursos públicos
titulares somente por estarem interina- para a docência ou a pesquisa.
mente no exercício de cátedras que não Em plena instabilidade, veio
lhes pertenciam e a que não haviam sido ainda de Orlando Carvalho e dos intelec-
selecionados por concurso; outra, uma tuais por ele estimulados o esforço para
avalanche de concursos para professores impedir a decadência da Faculdade, bus-
auxiliares que, se por um lado permitiu o cando salvar o legado glorioso e usando
ingresso nas universidades de uma nova as próprias iniciativas do regime militar
geração de pesquisadores, por outro para novamente expandir a consciência
ocasionou também o ingresso de uma interdisciplinar.
massa de profissionais – liberais, no caso Não há a menor dúvida de que,
das faculdades de Direito – muitas vezes em termos de ensino jurídico, a ditadura
sem qualquer vocação para o magistério militar pretendia um ensino dogmatiza-
e que levariam décadas dentro das uni- do e não crítico, profissionalizante e não
versidades. Em suma, a ditadura militar humanista, forense e não político, técni-
mirou e vitimou o alto clero acadêmico co e não genuinamente universitário: um
forjado no protagonismo intelectual que ensino evidentemente pensado para ser
exerciam na era clássica, incubando toda ministrado por docentes do baixo clero.
uma horda de docentes sem vocação Nesse cenário, é mais que natu-
para tanto, e desde então considerados ral que o alto clero, e especialmente os
o baixo clero das universidades públicas docentes de formação e natureza inter-
brasileiras. disciplinar, caminhassem para alicerçar
Na Faculdade de Direito, o regi- um forte projeto de modernização da
me militar representaria uma desestabi- Faculdade a partir da reconstrução da
lização muito forte. Catedráticos foram Pós-Graduação em Direito. Fundada
cassados, subiram às cátedras titulares nos anos 1930, tendo demorado mais
biônicos, criou-se uma departamentali- de vinte anos para produzir um primei-
zação insana e irresponsável, ampliou-se ro Doutor e mantida até os anos 1960
a base de docentes não pesquisadores (o como menos relevante até mesmo para

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o processo de formação das novas elites Eram jovens, forjados no espíri-


intelectuais da Casa, a Pós-Graduação to democrático da Constituição de 1946,
– reorganizada no país a partir do haviam aprendido com a geração clássica
Parecer Sucupira, 20 que reforçou o ca- a venerar as melhores tradições – sobre-
ráter acadêmico do Doutorado e criou tudo interdisciplinares – da Faculdade de
no Brasil o Mestrado – se transformaria Direito e agora poderiam destacar-se no
no coração dos esforços de uma nova corpo docente.
etapa histórica, para nós intitulada de Em 1980, Orlando Carvalho
interdisciplinaridade moderna. aposenta-se compulsoriamente, ime-
Eram modernos os jovens diatamente assumindo a honrosa fun-
Doutores que, no entorno da liderança ção de Professor Emérito. Pouco de-
de Washington Albino, assumiram a pois, Washington Albino assume a
tarefa de refundação da Pós-Graduação. Coordenação da Pós-Graduação, onde
Entre os finais dos anos de iniciou uma reforma profunda e de
1970 e o final dos anos 1980, um grupo onde somente sairia para ser o primeiro
significativo de jovens professores, que Diretor da Faculdade eleito após a rede-
haviam ingressado como auxiliares de mocratização do Brasil.
ensino nos anos 1970 e ambicionavam Com Washington, na Pós-
ocupar posição de destaque nos desti- Graduação, colaborariam diretamente
nos da Faculdade – e muitos deles, de dois jovens professores que lhe se-
fato, chegariam a professores titulares cundaram no esforço de tornar mais
nos anos 1990 –, defenderam brilhan- acadêmica e forte a experiência da
tes e pioneiras Teses de Doutorado, pesquisa em sede de Pós-Graduação:
capacitando-se a irem lecionar na Pós- Aroldo Plínio Gonçalves, ainda hoje
Graduação. 21
reputado como um dos maiores gênios
da história da Faculdade, e Elza Maria
20 Trata-se do celebre Parecer CES nº 977, de
1965, do Conselho Federal de Educação, Miranda Afonso, diligente colaboradora
que teve como Relator o educador Newton
de ambos e que sucederia ao Mestre na
Sucupira.
21 A rapidez da mudança atinge várias áreas da
Faculdade: em 1975, doutora-se Arthur José Sacha Calmon Navarro Coelho; em 1982, Elza
Almeida Diniz; em 1976, Antônio Álvares Maria Miranda Afonso; em 1983, Joaquim
da Silva; em 1979, Aroldo Plínio Gonçalves; Carlos Salgado e José Cirilo de Vargas; em
em 1981, José Alfredo de Oliveira Baracho e 1986, Misabel de Abreu Machado Derzi.
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José Luiz Borges Horta

Coordenação da Pós-Graduação, em com o magistério de Albertino Daniel


1986. Washington, Aroldo e Elza estabe- de Melo e Raul Machado Horta (1923-
leceram inúmeras inovações, garantindo 2005), 22 respectivamente respeitados
à Pós-Graduação a excelência a que a civilista e constitucionalista da Casa. Em
Faculdade sempre se vocacionou. todas as áreas, unia-se a experiência de
Dois eixos representavam o co- professores titulares à energia dos jovens
ração da estrutura da Pós-Graduação, Doutores a isso vocacionados.
ambos de caráter marcadamente interdis- O mais significativo exem-
ciplinar. O primeiro deles radica-se nos plo dessa etapa de modernização da
estudos jusfilosóficos, tornados comuns Faculdade é a brilhante carreira de José
a todos os Mestrandos e Doutorandos, Alfredo de Oliveira Baracho (1928-
estimulando as interfaces do Direito 2007), 23 muito provavelmente o maior
com as Humanidades e do jurídico com orientador da história da nossa Pós-
o justo. O segundo, rompendo as fron- Graduação, onde produziu dezenas de
teiras do Direito nacional e elevando Mestres e Doutores, e detentor de uma
a qualidade dos trabalhos e pesquisas, produção intelectual vasta, com universo
se dava com a introdução do Direito temático amplo e total abertura interdis-
Comparado como núcleo da pesquisa ciplinar. Baracho foi o maior discípulo
em todas as áreas. Para além desses dois de Orlando Carvalho, a quem sucedeu
eixos, o legado daqueles tempos trazia na cátedra e de quem foi, sempre, o
um esforço pelo aumento da produção
22 Raul Machado Horta, mineiro de Paracatu,
intelectual de docentes e discentes e um
formou-se em Direito na Faculdade de Direito
uso racional e consequente das bolsas da Universidade de Minas Gerais, onde seria
catedrático de Direito Constitucional de
de estudo disponibilizadas aos então 1964 a 1993, Vice-Diretor da Faculdade de
1969 a 1974 e Diretor da Revista Brasileira
chamados cursos de Pós-Graduação em
de Estudos Políticos de 1965 a 2004.
Direito. Integrou a Comissão de Notáveis, nomeada
em 1985 para elaboração do Anteprojeto de
No plano jusfilosófico, eles con- Constituição.
tariam com o suporte e a dedicação dos 23 José Alfredo de Oliveira Baracho, mineiro
de Teófilo Otoni, formou-se em Direito
então jovens Arthur José Almeida Diniz
na Faculdade de Direito da Universidade
e Joaquim Carlos Salgado. No plano de Minas Gerais, onde seria catedrático de
Teoria Geral do Estado de 1982 a 1998 e
do Direito Comparado como método, Diretor da Faculdade em dois mandatos, de
1978 a 1982 e de 1990 a 1994.
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Interdisciplinaridade, Direito e Estado: memórias da Faculdade de Direito da UFMG

mais intenso colaborador, especialmente O segundo, de natureza ad-


como gestor universitário. ministrativa: a modernização da Pós-
Não era uma geração qualquer, Graduação havia sido apenas o labo-
nem muito menos um simples grupo ratório de um processo ainda maior de
político que se formava no entorno da li- modernização, da Faculdade como um
derança de Washington e Baracho, sob a todo. Já na primeira gestão menciona-
presença sempre inspiradora de Orlando da, Washington e Salgado conseguiram
Carvalho. Em 1986, Washington Albino concluir a construção do Edifício Valle
disputa as primeiras eleições acadêmicas Ferreira, que se arrastara da derruba-
da história da Faculdade, tendo como da do antigo casarão da Praça Afonso
seu candidato a Vice-Diretor Joaquim Arinos em 1958 até à inauguração do
Carlos Salgado. Aqui, valem dois peque- prédio em 1990.
nos comentários. Nas décadas seguintes, outras
O primeiro, de natureza po- mudanças vieram – acadêmicas, curri-
lítica: a força da proposta acadêmica culares, infraestruturais, na biblioteca
representada por aquele grupo foi tama-
(Titular de Teoria Geral do Estado) e Aloizio
nha que, desde a eleição de Washington
Gonzaga de Andrade Araújo (professor de
em 1986 até à eleição de Salgado para Teoria Geral do Estado) venceriam Misabel
Derzi (posteriormente Titular de Direito
Diretor, vinte anos depois, todos os Financeiro e Tributário) e João Bosco
Leopoldino da Fonseca (posteriormente
Diretores e Vice-Diretores foram eleitos
Titular de Direito Econômico); em 1994,
pelo mesmo projeto, representando, Aloizio Andrade e Menelick de Carvalho
Netto (professor de Teoria da Constituição)
entre administrações de estilos diferen- venceriam Arthur Mafra e Jair Leonardo
Lopes (Titular de Direito Penal); em 1998, se
tes, nada menos que vinte e cinco anos
elegeria a candidatura única de Ariosvaldo
ininterruptos de poder nas mãos de um de Campos Pires (Titular de Direito Penal) e
Misabel Derzi, que em 1999 seria substituída
mesmo grupo.24 na Vice-Direção por Osmar Brina Corrêa Lima
(Titular de Direito Empresarial); em 2002,
Aloizio Andrade e Manoel Galdino da Paixão
24 Em 1986, Washington Albino (Titular de Júnior (professor de Direito Processual Civil)
Direito Econômico) e Joaquim Carlos venceriam a Sacha Calmon (Titular de Direito
Salgado (posteriormente Titular de Filosofia Financeiro e Tributário) e Miracy Barbosa
do Direito) venceriam a chapa composta por de Sousa Gustin (professora de Filosofia do
Marcos Afonso de Souza (Titular de Direito Direito); em 2006, Joaquim Carlos Salgado
Processual Penal) e Arthur Alexandre Mafra e Silma Mendes Berti (professora de Direito
(professor de Direito Civil) e a candidatura Civil) venceriam a João Bosco Leopoldino e
avulsa de Osiris Rocha (Titular de Direito Antônio Duarte Guedes Neto (professor de
Internacional Privado); em 1990, Baracho Direito do Trabalho).
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José Luiz Borges Horta

– no curso dos mandatos diretoriais que sombra de dúvidas, a profunda reforma


se seguiram, todos eles umbilicalmente curricular gestada no primeiro man-
vinculados a Washington e Orlando, a dato diretorial de Aloizio Gonzaga de
Baracho e Salgado. Andrade Araújo, uma reforma recebida
Em sucessivas eleições, os proje- com grande entusiasmo na comunidade
tos apresentados pelo grupo hegemônico acadêmica e fora dela, já que dotou o
foram reiteradamente apoiados pela Bacharelado em Direito de um equilíbrio
comunidade, que percebia ali se encon- mais razoável entre disciplinas críticas
trar o futuro da Escola, reconciliando e disciplinas dogmáticas – ainda que,
tradição e modernização. como sempre, amplamente favorável à
No Centenário da Faculdade, dogmática jurídica –, reduzindo o peso
em 1992, docentes, discentes e servidores historicamente superdimensionado de
técnico-administrativos transbordavam certas disciplinas dogmáticas tradicio-
orgulho, um orgulho institucional fruto nais, abrindo campos disciplinares até
da certeza de que a Faculdade de Direito então inexplorados, com a criação de
da UFMG ombreava com as melhores diversas cadeiras tanto nas disciplinas
faculdades de Direito do mundo, encon- jusfilosóficas quanto em outras áreas,
trando-se na vanguarda de seu tempo e criando na Graduação, por exemplo,
debatendo, em todas as áreas, nas fron- a Teoria Geral do Direito Privado e a
teiras do conhecimento jurídico, político, Teoria Geral do Processo. Foram tam-
social, econômico e cultural. No início bém criadas ênfases curriculares ao

da década de 1990, uma nova geração final do curso, de modo a que os alunos

de catedráticos irrompia, honrando a fossem partícipes corresponsáveis pela

Faculdade e renovando nossa autocon- construção de seus percursos curricula-

fiança.25 res. A figura-chave naquela reforma foi

Um dos marcos desse tempo de o Presidente da Comissão que elaborou o

interdisciplinaridade moderna é, sem novo currículo e chefe do Departamento


de Direito do Trabalho e Introdução ao
Estudo do Direito, 26 Joaquim Carlos
25 Veja-se o Zeitgeist no discurso proferido
por Joaquim Carlos Salgado em nome dos
novos Titulares, na memorável sessão solene 26 O Departamento de Direito do Trabalho e
da Egrégia Congregação de 30.11.1992. Cf. Introdução ao Estudo do Direito (DIT) mere-
SALGADO, 1995. ce uma especial palavra, já que, entre outras
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Interdisciplinaridade, Direito e Estado: memórias da Faculdade de Direito da UFMG

Salgado, que desde sua ascensão à cá- da Universidade passaria a exigir, no


tedra em 1991 havia posto em marcha ingresso de novos docentes, o Mestrado
o projeto de transformar nossa Casa no e a dedicação exclusiva. O que parecia
mais importante centro de excelência em um grande avanço pegou desprevenidos
Filosofia do Direito do Brasil. quase todos os catedráticos, que ainda
A refor m a c u r r i c u l a r d a não haviam produzido quadros de exce-
Graduação em Direito, ainda que mati- lência, e acabou por permitir o ingresso
zada e alterada nos anos subsequentes, no magistério, por sorte, de jovens pro-
representou o mais alto momento em fessores que, embora Mestres, talvez
toda a história do ensino de Graduação não possuíssem a vocação acadêmica
em Direito da nossa Faculdade. Atendia realmente assentada em seus espíritos.
não somente à preocupação tradicional Muitos se mostraram dedicados e com-
dos docentes como aos alunos de Direito, petentes, mas muitos interpretavam de
que lutaram muito por um curso mais modo bastante diferente – ou inusual
humanista, menos dogmático, mais – o papel e a missão de uma Faculdade
político, mais filosófico, menos técnico de Direito.
ou, como então se dizia, um curso para Era a hora do ingresso no ma-
formar verdadeiros juristas e não apenas gistério de uma geração que não havia
operadores do direito. experienciado a democracia respectiva à
Naquela década, no entanto, a ordem constitucional de 1946. Haviam
mudança da política de pessoal docente estudado em tempos paradoxais, em
que uns eram radicalizados (e mesmo
características, é tradicionalmente nosso de- sectários) na oposição ao regime militar,
partamento mais aberto aos olhares interdis-
ciplinares. Hoje, contribui significativamente enquanto outros se supunham cientistas
para as atividades acadêmicas da Faculdade, neutros e francamente despolitizados.
em múltiplos aspectos; sob a atual chefia de
Daniela Muradas Reis, o DIT atingiu dois es- Não é que lhes faltassem méri-
cores de grande relevo: é o primeiro depar-
tamento da Faculdade a contar com a totali- tos, tanto que honraram as funções que
dade de seu corpo docente possuindo grau assumiram; o que lhes faltava era um
doutoral e, em 2012, passa a ser o primeiro
departamento da Unidade a contar com mais norte acadêmico sólido e capaz de per-
da metade de seus docentes em regime de
tempo integral com dedicação exclusiva (DE) mitir-lhes a troca de guarda necessária
à Universidade, revelando uma combinação à sucessão de gerações à frente da hege-
única de massa crítica de excelência e inten-
sa dedicação à Casa. monia acadêmica em nossa Faculdade.
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Veja-se que, no decorrer da dé- tradição da Faculdade em ao menos três


cada de 1990, aposentam-se Washington aspectos, o que se revelaria a médio pra-
e Baracho e falece Orlando Carvalho, zo muito nocivo: a perda do status axial
contribuindo para uma desconcentra- da Filosofia do Direito, a perda do status
ção de poder na Faculdade. Era como metodológico do Direito Comparado e a
se a modernização da Faculdade já se jamais recuperada cultura da produção
houvesse concluído e, assim, como se de monografias como atividades avalia-
a Centenária Casa houvesse atingido a tivas em todas as disciplinas.
hora final de sua própria modernidade. Não eram, os pós-modernos,
Não se poderá conceder expres- menos interdisciplinares que os homens

são mais apropriada para caracterizar de Estado que os antecediam; seus mar-

aqueles tempos, nos quais se questiona- cos eram, sim, interdisciplinares, no

vam abertamente a autoridade, a tradi- que aqui chamamos de terceira etapa


histórica da consciência interdisciplinar
ção, o poder dos titulares, a consistência
em nossa Faculdade de Direito: o breve
do projeto acadêmico institucional, que
tempo da interdisciplinaridade pós-
chamá-los pós-modernos, aliás, bem ao
moderna.
gosto da crise de paradigmas filosóficos
Talvez o que melhor caracterize
que então abraçava a cultura ocidental,
a Pós-Modernidade é exatamente a per-
supostamente em sua Pós-Modernidade.
da de uma unidade teleológica, na qual
Na Pós-Graduação, por exem-
meta-relatos cedem espaços a iniciativas
plo, a passagem dos pós-modernos teve
e narrativas fragmentárias, quase sempre
aspectos positivos, na medida em que
fruto de uma exacerbação do sujeito –
estimularam amplamente a flexibilidade
um sujeito insurreto, rebelde, subversivo,
curricular e temática, construindo um
desencantado.27
modelo de ensino baseado em ementas
Deserdados da Modernidade,
variadas e, portanto, muito mais afeto
muitos importantes pensadores do últi-
à natureza da Pós-Graduação como la-
mo quartel do século XX vazavam seu
boratório de pesquisas avançadas, mas
também negativos, não somente em 27 Gonçal Mayos vem estudando a chamada
Pós-Modernidade de múltiplas formas, em
virtude dos muitos conflitos vividos no
textos recolhidos em seu sítio http://www.
período, como em uma certa perda da ub.edu/histofilosofia/gmayos/4presentacio.
htm, consultado em 31.07.2012.
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Interdisciplinaridade, Direito e Estado: memórias da Faculdade de Direito da UFMG

desconforto e recebiam inusitada vene- com o nome de Programa Pólos de


ração na periferia do capitalismo global. Cidadania.
Não seria diferente em nossa Faculdade Do ponto de vista da Graduação
de Direito, onde muitos iludidos acre- em Direito, no entanto, o período é
ditavam haver descoberto, nos recentes marcado por uma transformação radical
lançamentos de obras dos autores daque- e perniciosa. Se até meados dos anos
le tempo, respostas que ingenuamente 1990 os alunos lutavam por um ensino
julgavam já não poderem encontrar nas de excelência, humanista e aberto cada
bibliotecas e textos clássicos do pensa- vez mais a um temário de horizontes
mento ocidental. dilargados, em algum momento daquela
Ainda que jamais tenham pre- década a interdisciplinaridade começou a
tendido envolver a Faculdade como ser um problema para os alunos. Talvez
um todo em suas iniciativas e projetos, isso se tenha dado em virtude do gradual
a seu modo os jovens professores dos aumento de vagas e, portanto, da mas-
anos 1990 prestaram sua contribuição à sificação do ensino jurídico; talvez seja
Faculdade, renovando práticas e criando reflexo da ordem constitucional de 1988
perspectivas diferentes. que, uma vez consolidada, reforçou um
A mais importante iniciativa poder mítico das castas forenses,28 levan-
desta interdisciplinaridade pós-moderna do os alunos a, diante da dúvida entre
foi a institucionalização, por Menelick serem juristas e serem aprovados em cer-
de Carvalho Neto e Miracy Barbosa tames públicos, gradualmente passarem
de Souza Gustin, do Projeto Pólos a optar por uma concepção fortemente
Reprodutores de Cidadania, fundado profissionalizante do ensino, quase que
em 1995. Com grande habilidade, gran- a exigir da Faculdade de Direito que se
jearam importantes recursos públicos transformasse em um curso gratuito de
e construíram um universo interdisci- preparação para concursos públicos. De
plinar um tanto isolado no âmbito da repente, os professores se davam conta
Faculdade, mas reconhecido como um de que cada vez mais alunos preferiam
dos mais importantes programas de
extensão da história da UFMG, respei- 28 O tema da judicialização da vida no Brasil,
com os riscos de uma ditadura judicial,
tado hoje nacional e internacionalmente o temos trabalhado em textos tais como
HORTA, 2011b.
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o caminho fácil da burguesia ao outrora dos últimos dez anos. Logicamente, de


ansiado caminho da cidadania. Uma um tempo muito breve, mas repleto de
minoria dos alunos passou a se interes- transformações.
sar pela crítica jurídica, e desta apenas Os últimos dez anos constituem
uma pequena fração dispunha-se a atuar um tempo de transição particularmen-
seriamente nos grupos de pesquisa li- te intensa na história da Faculdade de
derados pelos docentes e pesquisadores Direito. Em primeiro lugar, assistimos
aqui chamados pós-modernos. ao ocaso dos últimos remanescentes da
Visto o período com relativa era da interdisciplinaridade clássica,
distância, é preciso matizar a firme já que os professores que se formaram
oposição que sofreram nossos colegas no mágico tempo da Constituição de
pós-modernos e reconhecer que, a seu 1946 foram gradualmente se afastando
modo – fragmentário, pós-moderno, da Instituição em decorrência de suas
subjetivista –, prestaram uma inestimá- aposentadorias. Por outro lado, diversas
vel contribuição à Faculdade, no mínimo iniciativas ampliaram o corpo docente
por manterem viva a consciência da in- da Faculdade de Direito de forma quase
terdisciplinaridade e fazerem avançar o espantosa: ao concluir seus 120 anos, a
sonho de uma instituição melhor e mais maior parte do nosso corpo docente terá
afinada com os anseios reais do Estado sido formada já na ordem constitucional
que nos financia e da sociedade que tanto de 1988, representando uma novíssima
espera de nós. geração de juristas em grande parte
comprometida com a construção da ex-
3. Um futuro neoclássico
celência no âmbito de uma universidade
para a Faculdade de Direito
pública e gratuita.
da UFMG?
O início dos anos 2000 seria
Que dizer do nosso tempo e dos marcado por dois fatos dignos de des-
atuais desafios colocados à Faculdade de taque, ambos trazendo consequências
Direito da UFMG? positivas e negativas.
Antes de mais nada, precise- O primeiro deles foi a institucio-
mos o que queremos dizer com nosso nalização do curso noturno de Direito,
tempo. Cronologicamente, tratam-se medida que, se nos gerou novas vagas

Revista Brasileira de Estudos Políticos | Série “Estudos Sociais e Políticos” 209


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Interdisciplinaridade, Direito e Estado: memórias da Faculdade de Direito da UFMG

docentes, nos levou à exagerada oferta judicialização da política e da vida, tão


de quatrocentas vagas anuais nos cursos característico da ordem constitucional
de Bacharelado em Direito. vigente, 29 traria para o cotidiano da ges-
O segundo fato sobreveio em tão acadêmica a insuportável ingerência
2004, na avaliação trienal da Pós- dos órgãos forenses, ações populares
Graduação brasileira pela CAPES, movidas por puro ressentimento, inter-
ocasião em que nosso Programa de Pós- venções desmedidas contra a autonomia
Graduação perdeu o status de melhor universitária e uma atmosfera asfixiante
programa de Pós-Graduação da área de de desrespeito às mais sagradas tradições
Direito, que ostentara desde sempre – e acadêmicas – por certo, a maior delas
que, em que pesem todos os esforços será sempre a soberania das bancas
mais recentes, ainda estamos longe de examinadoras.
recuperar. Internamente, os conflitos po-
Assombravam-nos, naquele ini- líticos tão naturais a uma instituição
cio de década, três fantasmas: o afasta- pública se transformavam em desculpa
mento da geração que havia sido respon- para novas judicializações, com a perda
sável pela modernização da Faculdade, a do senso público que deveria guiar a
decadência da Pós-Graduação – em parte convivência generosa e respeitosa entre
decorrente dos equívocos já menciona- todos, em uma escalada que acabaria
dos – e a decadência da Graduação em atingindo o corpo discente de uma forma
Direito, fruto da massificação do ensino nunca antes experienciada. Os relatos de
e da mudança cada vez mais opressiva docentes perseguidos e oprimidos por
do perfil do alunado. um alunado desrespeitoso e ofensivo se
Se em 1992 os ares da Faculdade repetiam nos anos, assim como se radica-
eram de orgulho e vitória, uma década lizavam lutas internas a pontos extremos
depois já nos encontrávamos, em muitos e francamente contrários aos superiores
aspectos, francamente perdidos.
interesses institucionais.
É o tempo em que a Faculdade
começa a sofrer pressões internas e
externas, das mais variadas e preju-
diciais. Externamente, o processo de
29 HORTA, 2011b.
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Havíamos lutado duramente à decadência infelizmente visível da


para garantir uma significativa am- Faculdade de Direito da UFMG e,
pliação na titulação do nosso corpo como outrora haviam feito Orlando
docente, para que a maioria esmagadora Carvalho, Washington Albino e José
da Faculdade fosse portadora do grau Alfredo Baracho, novamente o celeiro
doutoral; nada obstante, houve recém- da reconquista acadêmica se daria na
Doutores que demoraram vinte ou trinta Pós-Graduação, desde fins de 2003
anos para se titularem e, portanto, que coordenada por Joaquim Carlos Salgado.
haviam priorizado outros aspectos de Salgado soube sensibilizar a
suas vidas, mas imaginaram ombrear-
Faculdade para a importância da refor-
se automaticamente com aqueles que
ma da Pós-Graduação e corajosamente
haviam desde sempre priorizado sua
atacou todos os pontos frágeis que foram
dedicação à pesquisa e à produção
apontados pela CAPES. Rearticulou-
intelectual, estabelecendo um confl ito
se a composição do corpo de docen-
notório entre recém-Doutores: uns,
tes permanentes, reconstruíram-se as
jovens e amplamente vocacionados à
linhas de pesquisa – reforçando seu
pesquisa, com perfi l para lecionarem
papel preponderante mesmo frente às
na Pós-Graduação; outros, recém-Dou-
matrizes curriculares do Mestrado e do
tores igualmente, porém com décadas
Doutorado –, estabeleceram-se critérios
de magistério. Estes, experientes, mas
sólidos para garantir que os docentes da
improdutivos, opuseram-se fortemente à
ascensão da ala mais jovem, pleiteando Pós-Graduação estivessem genuinamente

espaços outrora exclusivos para o alto empenhados em produzirem intelectual-

clero e, nessa ambição desenfreada, não mente.30

somente fugiram ao dever de gratidão O sucesso acadêmico da reforma


para com aqueles que haviam lutado foi tão reconhecido que levou Salgado a
por suas titulações tardias como obvia- eleger-se Diretor da Faculdade em 2006,
mente prejudicam a avaliação da nossa com ampla maioria de votos docentes e
Pós-Graduação (no máximo até suas
30 Suspensa em 2006, a Reforma vem sendo
aposentadorias). vigorosamente retomada desde 2011,
Mais uma vez, era a verten- quando assumiram a Pós-Graduação os
jovens Giordano Bruno Soares Roberto e
te interdisciplinar que deveria reagir Maria Fernanda Salcedo Repolês.
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Interdisciplinaridade, Direito e Estado: memórias da Faculdade de Direito da UFMG

acintosa minoria de votos discentes. É Direito Econômico (o pioneiro mandato


de se pensar se o mandato diretorial de de Washington Albino).
Salgado fecha ou não o ciclo virtuoso Nada obstante, a trajetória de
iniciado com seu mandato ao lado de reconhecimento intelectual, para além
Washington Albino, duas décadas antes. do Direito, de Salgado permitiu uma
De toda forma, a ascensão de Salgado forte renovação da consciência interdis-
à Direção da Escola não representava ciplinar da Faculdade, tendo sido seu

uma alteração nos rumos da Faculdade, mandato marcado por duas decisões de

se não uma confirmação do destino profunda importância.


A primeira delas, simbólica
francamente crítico, interdisciplinar
e quase inacreditável para muitos de
e comprometido com uma concepção
nós, foi a decisão tomada pela egrégia
do Direito que transcende em muito os
Congregação, ao início de seu mandato,
áridos domínios da dogmática jurídica.
no sentido da transferência da Faculdade
Veja-se que, desde 1986, se Salgado foi
de Direito do espaço que ocupa há mais
o único Diretor da Faculdade oriundo
de um século na Praça Afonso Arinos
da área de Filosofia do Direito, apenas
para o campus Pampulha. Jamais se
o mítico Ariosvaldo de Campos Pires
esperaria, de uma Faculdade tomada –
(1934-2003)31 havia dirigido a Faculdade
não sem razão – como isolacionista, que
sem ser oriundo de áreas marcadas pela
desse o passo decisivo na direção de sua
interdisciplinaridade. To d o s o s
integração aos demais campos de saber
Diretores da Faculdade foram homens cultivados em nossa Universidade. Ali,
de cultura marcadamente interdiscipli- naquela singela decisão, a consciência da
nar; quase todos, a exemplo de Salgado, interdisciplinaridade transmutou-se em
oriundos de áreas críticas como a Teoria sua verdadeira face, em genial epifania: a
Geral do Estado (três mandatos) e o consciência interdisciplinar apresentou-
se como consciência universitária.32
31 Ariosvaldo de Campos Pires, mineiro de
Abaeté, formou-se em Direito na Faculdade
de Direito da Universidade de Minas Gerais, 32 Pouco importa que toda sorte de
onde seria Titular de Direito Penal desde os obstáculos se coloquem à tão significativa
anos 1970 e Diretor da Faculdade de 1998 transferência da Faculdade de Direito para
a 2002. Emblemático exemplo de advogado, o campus Pampulha: pode-se até retardar
presidiu a seccional mineira da Ordem dos a transferência para o campus, mas não se
Advogados do Brasil de 1971 a 1975. poderá mais impedi-la. Estaremos no campus
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José Luiz Borges Horta

A segunda decisão foi ainda sições mais ou menos veladas provindas


mais inesperada e por certo mais com- de setores dogmáticos da velha Casa.
batida: a criação do Bacharelado em Foram assim extremamente
Ciências do Estado. A ideia era recupe- complexos os processos de criação e de
rar a tradição da Faculdade de Direito implantação do novo curso, sempre à
em estudar, investigar e produzir qua- revelia e com forte oposição de alguns
dros para a vida pública e as questões de setores, até mesmo, evidentemente, estu-
Estado, pela via da institucionalização dantis. Na criação do curso de Ciências
de um Bacharelado vespertino ampara- do Estado houve um embate entre três
do pelo Programa de Reestruturação e projetos:34 um primeiro, inspirado pelo
Expansão das Universidades Federais – autor do presente ensaio, marcadamen-
REUNI, lançado pelo Governo Federal te estatalista, crítico e fi losófico; um
e que propiciou novas vagas docentes e segundo, inspirado por Miracy Gustin,
vastos recursos para a Faculdade. baseado em sua rica experiência no já
Não que a Faculdade de Direito mencionado Programa Pólos e em uma
não houvesse, em outros momentos, percepção do relevo de um curso voltado
imaginado ou desenvolvido cursos e para o chamado terceiro setor, o que os
atividades além-jurídicos; tivemos no países anglófonos e os intelectuais neo-
passado o Bacharelado em Ciências liberais chamam de governança social;
Sociais, já mencionado, e nos anos e um terceiro projeto, capitaneado pelo
2000 chegou a tramitar na UFMG a Coordenador que efetiva e competen-
proposta de criação, na Faculdade de temente implantou o curso, Marcelo
Direito, de um Bacharelado em Relações Andrade Cattoni de Oliveira, este último
Internacionais, gestada pelo interna- buscando um equilíbrio entre as concep-
cionalista Leonardo Nemer Caldeira ções fortemente comprometidas com o
Brant. Sempre, é bem dizer, com opo-
33

Econômicas Internacionais.
porque cada vez mais seremos Universidade.
34 Sobre a história da implantação do
33 Não prosperou, desafortunadamente para a Bacharelado em Ciências do Estado, estamos
Faculdade de Direito, o projeto de criação preparando uma série de ensaios. O primeiro
do Bacharelado em Relações Internacionais. deles, sobre o projeto que elaboramos, tem
Todavia, nossa Faculdade de Ciências como título Neosocialismo e Ciências do
Econômicas – FACE valeu-se do REUNI e Estado. Sobre o segundo projeto, o texto se
criou, em 2009, o Bacharelado em Relações chamará Neoliberalismo e Ciências do Estado.
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legado ocidental do Estado de Direito evento dos 120 anos da Faculdade de


e as concepções comprometidas com Direito seja a formatura da primeira
novos arranjos produtivos e concertos turma de bacharéis em Ciências do
sociais. A solução de compromisso enge- Estado.37
nhosamente orquestrada por Cattoni de Podemos nos perguntar se as
Oliveira veio a ser implantada em 2009, renovações pelas quais vem passando
representando uma ampla renovação a Faculdade de Direito representam
no temário investigado pela Faculdade uma Modernidade tardia ou uma
de Direito, com a retomada dos estu- Hipermodernidade, para usar os ter-
dos políticos outrora estabelecidos sob mos correntes no debate filosófico atual.
a influência de Orlando Carvalho e a Como interpretar o fenômeno da eleição,
abertura do corpo discente para um em 2011, de dois jovens docentes para
alunado mais politizado, engajado e o comando da Faculdade? Como com-
genuinamente interessado nos saberes preender o tempo presente e dele extrair
universitários. 35 Além disso, o novo um sentido de futuro?
curso trouxe novas metodologias, em As respostas que buscamos,
um cenário de equipes docentes e de todos aqueles que sonhamos o sonho
progressiva superação do modelo coim- de Afonso Pena e dos co-fundadores de
brão de aulas expositivas em favor de nossa Faculdade, outra não pode ser que
seminários de leitura e debate de textos, mergulhar nas mais elevadas tradições
casos e problemas.36 deste educandário que aprendemos a

A implantação do curso não se amar. Nosso caminho, daqui em diante,

dá, nem se poderia dar, sem percalços e é genuinamente neoclássico: inovarmos

oposições, mas é extremamente honroso a tradição, reconhecendo a herança que

e significativo que o mais importante recebemos das gerações pretéritas como


um legado utópico de construir nas

35 Virtudes que, vale mencionar, pudemos en-


contrar também nos Bacharelandos em Rela- 37 Acredita-se que, em breve, a Faculdade de
ções Econômicas Internacionais da FACE. Direito venha a sediar um Departamento
de Ciências do Estado, o que será de
36 No Bacharelado em Ciências do Estado, fundamental importância tanto para reforçar
como se vê, buscamos equacionar as graves o perfil interdisciplinar da Faculdade quanto
questões do ensino à luz das célebres para reduzir a pressão dos encargos didáticos
advertências de San Tiago Dantas no clássico sobre os atuais quatro departamentos
DANTAS, 1955. existentes.
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José Luiz Borges Horta

Minas Gerais um centro de pensamento


e compreensão do Estado e do Direito
que não deva nada, em qualidade e ex-
celência, a nenhuma outra universidade
do mundo.38
Transformar a utopia de Afonso
Pena, de Orlando Carvalho, de Alberto
Deodato, de Washington Albino e de
José Alfredo de Oliveira Baracho em
uma realidade viva é a tarefa que nos
incumbe.
Nosso destino, o destino da
Vetusta Casa de Afonso Pena, esta Casa
da liberdade e do pensar jurídico-políti-
co interdisciplinar, é o de atendermos à
tarefa que Roberto Mangabeira Unger
propõe para as faculdades de Direito:
tornarem-se verdadeiros centros de ima-
ginação institucional.39

38 Entre os esforços que estamos empreenden-


do no momento, destaca-se o de interna-
cionalização da pesquisa e das carreiras de
nossos professores. Só no recente biênio,
quatro docentes licenciaram-se em estudos
pós-doutorais com apoio da CAPES, sempre
em faculdades de Filosofia, o que reforça o
caráter interdisciplinar da nova geração da
Casa: Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
(Roma), José Luiz Borges Horta (Barcelona),
Brunello Souza Stancioli (Oxford) e Mariá
Brochado (Heidelberg).
39 A análise de Mangabeira Unger sobre as Fa-
culdades de Direito e sua conexão com a
Weltanschauung do autor podem ser estuda-
das em UNGER, 2001 e 2008.
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