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Sumário: 1 Introdução – 2 A construção de índices estatísticos sociedade. Nessa primeira parte, serão descritas
e sua ausência de neutralidade – 3 O cálculo do Produto
Interno Bruto (PIB) – 4 Os limites e opções do cálculo do PIB – essas etapas (simplificação, extrapolação, comen-
5 Conclusão – Referências suração, reificação, julgamento simbólico) e como
são inseridos julgamentos de valor (juízos de de-
ver-ser) e relações de poder em cada uma delas e
1 Introdução a relação de umas com as outras. Já na segunda
Neste estudo, o que se propõe é a realiza- parte serão demonstradas as três formas para se
ção de uma análise da construção do Produto calcular o Produto Interno Bruto (PIB): ótica da re-
Interno Bruto (PIB), como índice matemático de ceita, ótica da produção e ótica do consumo. Tal
política econômica que é, a fim de avaliar as suas demonstração tem por escopo tornar mais com-
conexões com o campo jurídico, a partir da iden- preensíveis as críticas que serão realizadas na ter-
tificação do conteúdo axiológico de suas opções ceira parte do estudo. Nessa terceira parte (final),
subjacentes. Considera-se que essa análise crí- os valores consagrados no ordenamento jurídico
tica é um primeiro passo no sentido de se estudar brasileiro na Constituição Federal de 1988 serão
propostas para alterações institucionais que ense- confrontados com as opções valorativas subjacen-
jem mudanças estruturais no artefato matemático tes ao cálculo do PIB em temas sensíveis como: o
utilizado ou, ao menos, de tornar mais transparen- trabalho voluntário, a questão de gênero, o meio
tes as suas limitações como índice de medição ambiente, a prestação de bens e serviços subsi-
de riqueza e, portanto, do sucesso e prosperidade diados ou de forma gratuita pelo Estado, os pro-
de um país. gramas assistenciais e o fluxo de capitais para
O texto está dividido em três partes que países estrangeiros e paraísos fiscais. Ao final
precedem a conclusão. A primeira parte aborda serão apontadas algumas conclusões pertinentes
o mito da neutralidade dos índices estatísticos, ao que foi discutido.
que deriva da (falsa) ideia de que todas as cons-
truções matemáticas são isentas de posiciona- 2 A construção de índices estatísticos e
mentos axiológicos. Nos tempos atuais, quando sua ausência de neutralidade
a matemática tem sido a base intelectual de vá- Índices estatísticos, muito embora travesti-
rios programas governamentais, as políticas públi- dos de uma aparente neutralidade que decorre da
cas têm sido consideradas corretas se elas forem autoridade que a expertise matemática lhes dá,
uma corporificação resultante de suas bases ma- não são isentos. A sua construção envolve em si
temáticas. No entanto, a correção técnica (mate- opções valorativas voluntárias, ou fruto de con-
mática) da política pode estar desconectada dos venções sociais, ou decorrentes de circunstâncias
valores estabelecidos pela Moral e pelo Direito.1 momentaneamente incontornáveis, como limita-
Isso porque a própria construção do índice esta- ções tecnológicas, limitações de base de dados
tístico utilizado para a avaliação da efetividade da ou de coleta de dados.2 Em todo caso, essas
política pública, como o será demonstrado, en-
volve opções axiológicas subjacentes às etapas
2
A própria decisão de construir um índice é em si uma opção
de sua elaboração que podem ou não estar de valorativa posto que se dá com algum objetivo ou finalidade pre-
acordo com a Moral e o Direito prevalecentes na viamente estabelecidos e tidos por desejáveis ou indesejáveis
por quem o constrói. Assim Alain Desrosières: “The only way of
understanding the recurrent opposition in politics, in history and
in science between on the one hand contingency, singularity
1
CASTRO, Marcus Faro de. Policies, Technology and Markets: and circumstance and on the other hand generality, law, regular-
Legal Implications of Their Mathematical Infrastructures. Law ity and constancy is to ask: ‘for what purpose?’ The question
and Critique, [s.l.], v. 30, n. 1, p.91-114, 9 jan. 2019. Springer is not: ‘Are these objects really equivalent?’ but: ‘Who decides
Science and Business Media LLC. Disponível em: http://dx.doi. to treat them as equivalent and to what end?’” (DESROSIÈRES,
org/10.1007/s10978-018-9236-9. Alain. How to make things which hold together: Social science,
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opções acabam por fazer sobressair determina- valorados. Assim, são construídas as boas ou
das características e informações e ocultar outras más reputações internacionais dos países, que
que, para o bem ou para o mal, estimulam ou de- lhes permitem ou negam o acesso a organizações
sestimulam comportamentos dos usuários desti- internacionais públicas ou não governamentais,
natários, sejam governos de países, organizações fóruns, redes de relacionamento internacional
internas ou internacionais públicas ou privadas da com vários países e instituições, acordos interna-
sociedade civil com ou sem fins lucrativos, empre- cionais e recursos financeiros fornecidos interna-
sas e pessoas. cionalmente por essas entidades como fundos,
Assim, os índices são ferramentas cognitivas doações, créditos e empréstimos, bem como in-
derivadas de um complexo processo de constru- vestimentos privados. Tudo com base em uma
ção que pode valorar ou desvalorar condutas das boa ou má avaliação comparativa de performance
instituições e pessoas avaliadas, segundo um mo- (ranqueamento) alicerçada em um dado índice glo-
delo ideal ou fim a ser atingido, ainda que tenham bal (quantificação).4 Enfim, trata-se de um sistema
uma aparência de neutralidade. Nesse sentido, de incentivos comportamentais que guia uma go-
os índices têm aptidão para se manifestar como vernança global com modelos de políticas públi-
instrumentos de poder a serem utilizados para o cas e padrões normativos a serem seguidos por
seu exercício tanto em um momento anterior (mo- todos, sendo que a exclusão desse modelo, a de-
mento da própria construção do índice) quanto em pender da pressão exercida e das circunstâncias
sua aplicação posterior (eficácia política, jurídica, do agente que a sofre, não se torna uma opção
econômica e social do índice) diretamente por viável.
quem detém o poder para tal, ou indiretamente Como esses índices são altamente depen
por meio da influência sobre o comportamento de dentes de um apelo retórico à expertise au-
outros agentes. torizada, eles precisam se apresentar como
A utilização dos índices como instrumentos “neutros”, isto é, como livres de qualquer ideo-
de poder é potencializada pela avaliação com- logia5 e cientificamente justificáveis para todos
parativa que eles proporcionam. Segundo André os sujeitos avaliados e para todos aqueles que
Broome e Joel Quirk, tais avaliações “neutralizam” fazem uso da avaliação. Isso é feito por meio de
e “universalizam” uma gama de agendas, cálcu- um processo dissimulatório e de imposição de
los políticos e valores normativos (como liberdade significações que se assemelha a um exercício
de expressão, democracia, desenvolvimento hu- de violência simbólica.6 Em tal processo é feita
mano, proteção ambiental, combate à pobreza, a tradução de agendas e valores normativos em
“modernização” estatal e livre mercado), propor-
cionando um exercício indireto de poder ou “gover-
4
Para uma listagem exemplificativa de vários desses índices e
nança a distância” por meio de um processo de indicadores ver o sítio: https://warwick.ac.uk/fac/soc/pais/
matematização da sociedade.3 Acrescente-se que, research/researchcentres/csgr/benchmarking/database.
5
Emprega-se a palavra “ideologia” aqui no sentido de um conjunto
mais do que a eleição do próprio modelo desejado de ideias (ideário) que serve a interesses particulares, os quais
e seu grau de atingimento, a forma como se dá a tendem a se apresentar como interesses universais, comuns
ao conjunto do grupo (BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico.
construção desses índices acaba por determinar Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1989. p. 10).
como os diversos países avaliados devem atin- 6
A “violência simbólica” é um conceito criado pelo sociólogo
gir tais objetivos, quais políticas públicas devem francês Pierre Bourdieu que tem por base a fabricação
contínua de crenças no processo de socialização, as quais
desenvolver e qual o desenho institucional que induzem o sujeito a se posicionar no espaço social seguindo
tais políticas devem ter para que os atores sejam critérios e padrões estabelecidos por um discurso dominante
que impõe valores, hábitos e comportamentos sem recorrer
bem ranqueados internacionalmente. Ou seja, necessariamente à agressão física. Devido a esse amplo
mede-se também o grau com que os meios são conhecimento do discurso dominante, a violência simbólica se
manifesta por meio do reconhecimento da legitimidade desse
empregados para atingir os fins positivamente mesmo discurso tanto por dominantes quanto por dominados.
Em suma, faz com que o dominado aceite por “convencimento”
as razões de sua própria dominação. Para Pierre Bourdieu, a
violência simbólica é o meio de exercício do poder simbólico.
statistics and the state. In: WAGNER, P.; WITTROCK, B.; WHIT- Segundo o sociólogo: “Todo poder de violência simbólica, isto é,
LEY, R. P. Discourses on Society: The Shaping of the Social todo poder que chega a impor significações e a impô-las como
Science Disciplines. Dordrecth: Kluwer Academic Publishers, legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base
1990. p. 201). de sua força, acrescenta sua própria força, isto é, propriamente
3
BROOME, Andre; QUIRK, Joel. Governing the world at a distance: simbólica, a essas relações de força” (BOURDIEU, Pierre;
the practice of global benchmarking. Review of International PASSERON, Jean Claude. A reprodução: elementos para uma
Studies, [s.l.], v. 41, n. 5, p.819-841, 25 nov. 2015. Cambridge teoria do sistema de ensino. Tradução de Reynaldo Bairão. 3.
University Press (CUP). passim. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992. p. 15 et seq.).
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representações numéricas por meio dos mecanis- determinadas situações ou sujeitos avaliados.
mos de simplificação, extrapolação, comensura- Dito de outra forma, a extrapolação estende a va-
ção, reificação e julgamentos simbólicos.7 Todos lidade de uma afirmação ou conclusão além dos
esses mecanismos que serão descritos adiante limites em que ela é comprovável.9 Outrossim, de
são etapas precedentes, concatenadas e neces- ver que a escolha do método que será usado para
sárias à quantificação e ao ranqueamento que os o preenchimento das lacunas por si só já enseja
índices proporcionam e que efetivam a sua utiliza- uma segunda escolha valorativa de quem constrói
ção como instrumento de poder. o índice, pois descarta outras opções que neces-
sariamente levariam a resultados diversos.
2.1 A simplificação
A simplificação se dá por meio da perda da
2.3 A comensuração
complexidade contextual na busca da quantifica- A comensuração trata de uma unificação da
ção e comparabilidade. Diz respeito aos limites métrica adotada a fim de se estabelecer uma hie-
e dificuldades da quantificação enfrentados por rarquia. Essa característica é derivada das duas
quem constrói o índice, sejam tecnológicos, sejam anteriores, pois usa a suposta “homogeneidade”
de base de dados, de coleta de dados ou da pró- forçada pela simplificação e pela extrapolação
pria necessidade ou opção de se ignorar contex- para estabelecer um parâmetro único entre os su-
tos específicos (históricos, culturais, políticos, jeitos e situações avaliados, possibilitando a sua
econômicos, sociais, etc.) em favor de uma ên- graduação e o seu ranqueamento, e ignorando
fase em propriedades mais genéricas e, portanto, suas particularidades ou insuficiência de dados.
presentes em maior ou menor grau em todos os Aqui há a transformação de elementos qualitati-
sujeitos avaliados. A simplificação oculta as es- vos heterogêneos e, portanto, incomparáveis, em
pecificidades e variantes daquilo que é avaliado, elementos quantitativos homogêneos e, portanto,
estabelecendo uma equivalência e, em alguma comparáveis e classificáveis por ordem de magni-
medida, trata-se de uma opção eletiva feita por tude. De observar que é a quantificação enquanto
quem constrói o índice.8 ato de vontade que impõe a homogeneidade e não
o inverso. É o olhar do sujeito cognoscente (insti-
2.2 A extrapolação tuição responsável pelo índice), com suas esco-
lhas, limitações e preconceitos, que interfere e
A extrapolação deriva da simplificação e
constrói a homogeneidade do objeto cognoscível
ocorre quando a ausência ou dificuldade de ob-
(objeto ou situação avaliados) para atender o que
tenção de base ou coleta de dados específicos
dele se espera (enquadramento em um índice es-
confiáveis e compreensíveis para a construção
tatístico com determinada finalidade).
do índice leva à necessidade de (ou opção pela)
utilização de aproximações, imputações ou ana-
logias com situações já previamente quantifica-
das, a fim de serem preenchidas as lacunas para
9
Em Direito, a “extrapolação” assemelha-se aos métodos herme-
nêuticos juspositivos tradicionais de analogia e interpretação
7
BROOME, op. cit., p. 827-829. extensiva para a integração do ordenamento jurídico. Enquanto
8
Alain Desroisières, após estudar a evolução da taxonomia para a analogia é empregada quando não há lei expressa a respeito
fins estatísticos das categorias profissionais da França, con- do fato examinado, buscando-se amparo em outra lei seme-
cluiu que os estatísticos podem extrair equivalências já pré- lhante que rege situação análoga, porém diversa, a interpre-
-construídas na sociedade mediante convenções sociais (e por tação extensiva é empregada quando há lei sobre o tema cujo
isso fruto de conflitos sociais), ou podem eles mesmos cons- significado pode ser ampliado para abarcar a situação fática
truir essas equivalências de modo arbitrário, consoante liga- examinada. Em ambos os casos, há a necessidade de um ato
ções sociais que consideram circunstancialmente relevantes. de vontade do hermeneuta a intermediar a aplicação das duas
Afirma ainda que as diferenças entre as próprias nomenclatu- técnicas que têm consequências jurídicas diversas. A presença
ras escolhidas precisam ser eliminadas conforme a necessi- de um ato de vontade, por si só, já retira a neutralidade do pro-
dade de ampliação da abrangência do índice para a constru- cesso. Além disso, há a necessidade de uma aceitação social
ção de um ranking que seja universalmente válido, diluindo ou institucionalmente negociada do meio jurídico para legitimar
a própria construção histórica da taxonomia. A essa decisão a equivalência realizada seja por um ou por outro método, o que
convencional de construir uma classe equivalente mais geral enterra de vez o mito da neutralidade. Essa “convenção social
para abranger objetos diversos deu o nome de “codificação” de equivalência” é a mesma necessária para o cumprimento
(DESROSIÈRES, Alain. How to make things which hold together: das etapas de simplificação (em que é feita a classificação
Social science, statistics and the state. In: WAGNER, P.; WIT- dos objetos analisados) e de extrapolação na construção de um
TROCK, B.; WHITLEY, R. P. Discourses on Society: The Shaping índice estatístico. Em raciocínio semelhante sobre a equidade
of the Social Science Disciplines. Dordrecth: Kluwer Academic jurídica no Direito Inglês e a noção de equivalência, ver DES-
Publishers, 1990. passim). ROISÈRES, op. cit., p. 199 et seq.
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de dados duvidosos até o exercício de poder estatística mais importante do Sistema de Contas
simbólico entre agentes e instituições, impondo Nacionais (SCN) e representa o conjunto de rique-
programas e agendas internacionais a países zas que é gerado no país para o lapso temporal
refratários. Em relação a este segundo ponto, em questão, ou seja: o valor agregado de uma
não por acaso muitos dos esforços de avaliação dada economia, sua produção de bens e serviços,
comparativa global concentram-se na performance seu fluxo de riquezas. Trata-se de um índice eco-
política e econômica dos Estados.14 É o caso da nômico que engloba praticamente toda a cadeia
mensuração do Produto Interno Bruto (PIB), nosso produtiva e, por isso, permite saber se a atividade
objeto de estudo. econômica de um dado país está crescendo ou
O PIB insere-se dentro do Sistema de Contas diminuindo e em quais setores ou segmentos.
Nacionais – SCN, que tem como referência meto- Também permite comparar o desempenho entre
dológica os manuais da Organização das Nações as economias de diversos países. A queda do PIB
Unidas – ONU (System of National Accounts – por um curto período (geralmente dois trimestres
SNA/1993 e sua revisão pelo System of National consecutivos) é tratada como recessão. Já a sua
Accounts – SNA/2008), feitos em parceria com o queda contínua por um período maior é tratada
Banco Mundial, a Organização para a Cooperação e como depressão. Seu crescimento por trimestres
Desenvolvimento Econômico (OCDE), a Comissão consecutivos é tratado como um sinal de prospe-
das Comunidades Europeias (Eurostat) e o Fundo ridade do país.
Monetário Internacional (FMI). Trata-se de um im- Como já mencionado, o cálculo do PIB in-
portante instrumento de governança internacional sere-se dentro do Sistema de Contas Nacionais
por meio da matematização de políticas públicas (SCN), que tem como referência metodológica os
e, portanto, comportamentais. Como será visto manuais da Organização das Nações Unidas –
adiante, na construção do PIB há uma série de ONU (System of National Accounts – SNA/1993
limitações, opções e tomada de decisões que, e sua revisão pelo System of National Accounts –
explícita ou implicitamente, valoriza de modo ar- SNA/2008),15 feitos em parceria com o Banco
bitrário determinadas visões de mundo, papel do Mundial, a Organização para a Cooperação e
Estado e economia que não são necessariamente Desenvolvimento Econômico (OCDE), a Comissão
aquelas que democraticamente predominam (ou das Comunidades Europeias (Eurostat) e o Fundo
poderiam predominar) nos ordenamentos jurídicos Monetário Internacional (FMI). Dessa forma, o cál-
dos países avaliados. culo do PIB integra-se com as estatísticas constan-
tes de outros manuais, como o OECD Guidelines
3 O cálculo do Produto Interno Bruto on Foreign Direct Investment e os manuais do FMI
(PIB) sobre balanço de pagamentos e estatísticas finan-
ceiras do governo. No Brasil, o Instituto Brasileiro
Antes de destrincharmos as escolhas valora-
de Geografia e Estatística (IBGE) é o órgão oficial
tivas que estão subjacentes ao índice mais impor-
produtor das contas nacionais.16
tante utilizado internacionalmente como padrão de
Dentro do Sistema de Contas Nacionais,
avaliação do crescimento econômico, progresso
há três formas de se calcular o PIB sendo que
social, riqueza dos países e, portanto, governança
todas, tecnicamente, devem chegar ao mesmo
a distância em todo o mundo, o Produto Interno
resultado, contudo permitem extrair informações
Bruto (PIB), convém esclarecer como é efetuado
de natureza econômica diferentes. São elas, na
o seu cálculo.
ordem em que serão apresentadas: (i) pela ótica
O Produto Interno Bruto (PIB), esse índice eco-
da Receita/Renda: representa a receita total ob-
nômico que trimestralmente (período em que é cal-
tida em dado período; (ii) pela ótica da Produção/
culado) inunda os noticiários da televisão, Internet
Oferta: representa a quantidade total de produtos
e demais meios de comunicação, é considerado a
produzidos em dado período; e (iii) pela ótica dos
Gastos/Consumo/Demanda: representa o valor
14
Segundo Broome e Quirk, muitos dos índices criados total demandado em determinado período.
veiculam valores normativos das agendas liberal e neoliberal
desenvolvidos pelos países ocidentais. Assim os seus modelos
de Estado de Direito, liberdade de expressão, democracia, 15
UNITED NATIONS. SNA 2008: System of National Accounts
desenvolvimento humano, proteção ambiental, redução da 2008. New York, 2009.
pobreza, modernização do Estado e livre mercado. Não por 16
FEIJÓ, Carmem Aparecida et al. (Org.). Contabilidade social: a
acaso os países orientais geralmente ocupam o final das nova referência das contas nacionais do Brasil. 4. ed. Rio de
classificações, e os ocidentais, o topo (op. cit., p. 829). Janeiro: Elsevier, 2013, p. 4.
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3.1 O cálculo do Produto Interno Bruto O conjunto dos dispêndios de juros, aluguéis
(PIB) pela ótica da Receita ou Renda e lucros também recebe o nome de Excedente
Operacional Bruto – EOB. Sendo assim, costuma-
A primeira forma (Receita/Renda) diz res-
se dizer que esse método aditivo engloba a soma
peito à adição de todas as rendas pagas a todos
dos dispêndios de salários aos do Excedente
os fatores de produção dentro do país que agre-
Operacional Bruto – EOB (juros, aluguéis, lucros)
gam valor no período indicado (trimestre, ano,
e, ao final, para se considerar as transações das
etc.), ou seja, é um somatório dos valores agre-
gados das empresas de toda a economia consi- empresas com o Estado/Governo, são somados
derando o que essas empresas pagam para que os valores dos impostos indiretos sobre as ven-
possam produzir (à exceção dos valores pagos das (considerando produção e importação) e sub-
aos insumos materiais ou bens de consumo traídos os subsídios concedidos também sobre as
intermediário).17 Parte, portanto, de um método vendas (considerando produção e importação).18
aditivo de aferição do valor agregado sob a ótica Para exemplo, considerando uma economia
de saída da empresa, pois, antes de se conside- fechada ao exterior, formada somente por duas uni-
rar os efeitos do Governo/Estado na economia, dades produtivas (Empresa 1 e Empresa 2) e sem
realiza o somatório dos dispêndios feitos pelas governo, sendo que a Empresa 1, por estar no iní-
empresas aos fatores de produção em troca dos cio da cadeia produtiva, não usa insumos e fornece
serviços produtivos: salários (renda paga aos os insumos que serão utilizados pela Empresa 2,
trabalhadores em troca de mão de obra), juros um quadro didático da primeira fase desse cál-
(renda paga aos credores em troca do capital), culo (isto é, sem considerar as transações com o
aluguéis (renda paga aos proprietários em troca Estado/Governo) tem a seguinte aparência:
do uso da propriedade) e lucro (renda paga aos
sócios em troca do risco do empreendedorismo).
17
Em verdade, como se verá no quadro seguinte, esses valores 18
Os primeiros assumem a forma genérica de Impostos sobre
não são contabilizados porque o produto da Empresa 1 é o in- o Valor Agregado (IVAs) e os segundos são chamados de sub-
sumo da Empresa 2 e, para não ser contabilizado em duplicida- venções e recuperações de custos. De observar que, como
de, somente é computado na Empresa 1 na condição de valor será visto adiante, para o cálculo do PIB segundo a ótica da
agregado, não na Empresa 2 como insumo. Essa situação é Produção/Oferta, diferentemente do cálculo de acordo com a
conhecida em economia como “problema de dupla contagem”. Receita/Renda, não são considerados os impostos e subsídios
Se houver contabilização dupla, o PIB é falseado para maior. sobre a importação, apenas os incidentes internamente.
40 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 234, p. 35-56, agosto 2020
No exemplo dado, tem-se que, para a ou seja, considerando todos os dispêndios feitos
Empresa 1, que está na primeira etapa do ciclo no país, separadamente, para cada fator de pro-
econômico (hipoteticamente extrai matéria-prima dução (faixa de salários, faixa de juros, faixa de
e não faz uso de insumos), o somatório dos dis- aluguéis, faixa de lucros), permitindo a compara-
pêndios feitos aos fatores de produção em negrito, bilidade entre eles em períodos e locais (Países,
como Salários ($35), Juros ($25), Aluguéis ($20), Estados, municípios, etc.) distintos.
Lucros ($20), leva ao resultado do valor agre- Em uma segunda fase desse cálculo, con-
gado ($100). Já o valor agregado da Empresa 2 siderando a presença do Estado/Governo e uma
dá-se também pelo somatório dos dispêndios fei- economia aberta com transações com o exterior,
tos aos fatores de produção negritados: Salários os impostos incidentes sobre a produção e im-
($30), Juros ($10), Aluguéis ($60), Lucros ($50), portação também são contabilizados porque são
levando ao resultado de valor agregado ($150). O dispêndios realizados pelas empresas. A equação
valor agregado do sistema composto pelas duas do Produto Interno Bruto aqui passa a tomar a se-
unidades produtivas (PIB total do sistema) é dado guinte forma: [PIB = (∑W salários) + (∑R aluguéis)
pela soma dos dois valores agregados de cada + (∑i juros) + (∑P lucros) + (∑BT impostos sobre
empresa/setor ($100 + $150 = $250), o que é a produção e importação) – (∑subsídios sobre pro-
soma dos dispêndios feitos aos fatores de produ- dução e importação)]; ou [PIB = (∑W salários) +
ção de todo o sistema. A equação tem a seguinte (∑EOB excedente operacional bruto) + (∑BT im-
forma: [PIB = (∑W salários) + (∑R aluguéis) + (∑i postos sobre produção e importação) – (∑subsí-
juros) + (∑P lucros)]; ou [PIB = (∑W salários) + dios sobre produção e importação)].
(∑EOB excedente operacional bruto)]. Segundo a última fórmula acima, registre-se
Essa ótica de aferição do PIB é a que per- os dados do IBGE para o ano de 2013, quando o
mite observar a evolução dos rendimentos criados PIB brasileiro tomou a seguinte feição, superando
no país e a sua distribuição entre os fatores de os R$5,3 trilhões de reais:
produção, já que a soma pode se dar por faixas,
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do que é produzido pelo setor (valor de venda ou a natureza, origem e evolução da produção, ou
valor de produção), que, subtraído do custo dos seja, quais os setores (agropecuário, industrial,
insumos materiais ou bens de consumo interme- comércio e serviços) que mais contribuem para a
diário para cada setor, gera o valor agregado do economia do país, Estado, município, etc. e como
setor. A soma desses valores agregados de todos se deu a evolução da produção em cada um des-
os setores gera o PIB total. ses casos. Considerando uma economia com as
Tal é o que se convenciona chamar de mé- mesmas condições informadas para a Tabela 1
todo subtrativo de aferição do valor agregado, pois acima, o quadro apresentado passa então a ter a
implica que os custos materiais sejam subtraídos seguinte composição:
do valor de produção. Essa ótica permite observar
RENDAS DA EMPRESA 1
INSUMOS Insumos/Consumo $0
Lucros $20
Valor de Venda do bem, serviço ou Valor da Produção
$100 $100
($0 + $35 + $25 + $20 + $20) = $100
RENDAS DA EMPRESA 2
INSUMOS Insumos/Consumo $100
Salários $30 PIB, valor agregado ou
subtração dos insumos do valor
Juros $10
FATORES DE PRODUÇÃO de venda
Aluguéis $60 ($250 - $100) = $150
Lucros $50
No exemplo dado, tem-se que o valor agre- atingido por outro método.19 Imaginando estar-se
gado da Empresa 1, que hipoteticamente está na diante de uma economia em que a Empresa 1 es-
primeira etapa do ciclo econômico (extrai matéria- teja no setor agropecuário, a Empresa 2 esteja
prima e não faz uso de insumos), é dado pelo no setor industrial e não exista setor de serviços
Valor de Produção ($100) subtraído do Valor dos (valor agregado = 0), a equação aqui toma a se-
Insumos/Consumo ($0), o que leva ao valor de guinte forma: [PIB = (∑A agropecuário) + (∑I indus-
($100). Já o valor agregado da Empresa 2 é dado trial) + (∑S serviços)].
pelo Valor de Produção ($250) subtraído do Valor
dos Insumos/Consumo ($100), o que leva ao valor
de ($150). O valor agregado do sistema composto
19
Aqui, assim como no método de cálculo pela ótica da receita ou
renda, deve-se evitar o “problema de dupla contagem”. Como
pelas duas unidades produtivas (PIB total do sis- já observado, o produto da Empresa 1 é o insumo da Empresa
2 e, para não ser contabilizado em duplicidade, somente
tema) é dado pela soma dos valores agregados de é computado na Empresa 1 como produto, não na Empresa
cada empresa/setor ($100 + $150 = $250), re- 2 como insumo. No método de cálculo do PIB pela ótica da
Produção ou Oferta o valor dos insumos é subtraído do valor de
sultado idêntico à forma de cálculo anterior, mas produção, evitando assim a contabilização em duplicidade.
42 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 234, p. 35-56, agosto 2020
Ao final, em um segundo momento, con- ∑Subsídios)]. O cálculo também pode ser feito
siderando a presença do Estado/Governo, aqui pela soma de todos os Valores de Produção do
também são somados os valores dos impostos sistema e impostos sobre produtos, subtraído da
indiretos sobre as vendas (Impostos sobre o Valor soma do custo de todos os insumos materiais ou
Agregado – IVAs) incidentes internamente e sub- bens de consumo intermediário do sistema e sub-
traídos os subsídios governamentais concedidos sídios aos produtos. Seguindo esse último mo-
para a produção interna.20 A equação passa a ter delo, a apresentação abaixo dos dados do IBGE
a seguinte apresentação: [PIB = (∑A agropecuário) para o Brasil no ano de 2013:
+ (∑I industrial) + (∑S serviços) + (∑Impostos –
22
Assim como nos métodos de cálculo anteriores, deve-se evitar
20
Para o cálculo do PIB, segundo a ótica da Produção/Oferta, o “problema de dupla contagem”. Como já observado, o produto
diferentemente do cálculo de acordo com a Receita/Renda, não da Empresa 1 é o insumo da Empresa 2 e, para não ser contabili-
são considerados os impostos e subsídios sobre a importação, zado em duplicidade, somente é computado na Empresa 1 como
apenas os incidentes internamente, por isso a diferença produto, não na Empresa 2 como insumo. No método de cálculo
numérica existente a menor entre as linhas referentes a do PIB pela ótica do Consumo, como o valor utilizado é um só,
impostos e subsídios da Tabela 2 e da Tabela 4. apenas o do bem final, desprezando-se os anteriores, o valor dos
21
FEIJÓ, op. cit., p. 43. insumos está nele embutido e computa-se uma única vez.
Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 234, p. 35-56, agosto 2020 ARTIGOS 43
PIB total do sistema = Valor do bem final vendido pela Empresa 2) = $250
Fonte: Concepção do autor.
44 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 234, p. 35-56, agosto 2020
Na sequência serão examinadas as escolhas Há aí uma valoração positiva, a conduta é tida por
valorativas que estão subjacentes aos limites do desejável sem maiores questionamentos. Desse
cálculo do PIB ou a sua escolha como índice de modo, as opções na construção do índice veicu-
maior relevância econômica internacional. lam um dever-ser, ainda que se intente apresentá-
lo como dotado de “neutralidade”, como sendo
4 Os limites e opções do cálculo do PIB um mero medidor “objetivo”.24
Ora, se o índice adentra ao campo do dever-
No início deste trabalho, afirmamos que índi-
ser que é específico dos ordenamentos normativos
ces estatísticos não são isentos, pois sua cons-
como o Direito, a Moral e a Religião, é possível re-
trução envolve opções valorativas realizadas por
alizar uma análise crítica dos comandos subjacen-
quem detém o poder de sua feitura e conforme
tes ao índice sob os pontos de vista jurídico, ético
os objetivos por ele visados. Para o provar descre-
e religioso, respectivamente. Portanto, a questão
vemos as etapas de construção de um índice es-
que se coloca para uma análise jurídica desse ín-
tatístico cientificamente reconhecidas na doutrina
dice de política econômica é saber se a escala de
de André Broome, Joel Quirk e Alain Desrosières. valores arbitrária e implicitamente defendida pelo
Em relação à construção do PIB, que, em modo de cálculo do PIB está ou não de acordo
tese, tem por objetivo medir a riqueza de um país com a escala de valores expressamente estabe-
e, por consequência, o bem-estar de uma popula- lecida dentro do ordenamento jurídico do país (ou
ção, temos que, quando seus contabilistas oficiais países) que dele faz (ou fazem) uso. Para o caso
dizem que algo não é manifestação de riqueza (ou em exame, interessa saber se os fins implicita-
representa manifestação de riqueza menor do que mente defendidos pelas opções subjacentes ao
efetivamente é ou poderia ser), na prática estão PIB estão de acordo com os princípios e normas
excluindo ou minorando esse algo como objetivo
social a ser alcançado pelo país analisado. Este
algo está sendo desvalorado, sendo tratado como 24
Conhecida a clássica lição de Hans Kelsen: “O juízo segundo o
qual uma conduta real é tal como deve ser, de acordo com uma
indesejável. O raciocínio inverso também é verda- norma objetivamente válida, é um juízo de valor, e, neste caso,
deiro. Quando se diz que determinada conduta um juízo de valor positivo. Significa que a conduta real é ‘boa’. O
juízo, segundo o qual uma conduta real não é tal como, de acordo
aumenta o PIB, na prática se está estimulando com uma norma válida, deveria ser, porque é o contrário de uma
esta conduta, pois se convencionou que ela pro- conduta que corresponde à norma, é um juízo de valor negativo.
Significa que a conduta real é ‘má’. Uma norma objetivamente
duz riqueza e, portanto, seria benéfica a todos. válida, que fixa uma conduta como devida, constitui um valor
positivo ou negativo. A conduta que corresponde à norma tem
um valor positivo, a conduta que contraria a norma tem um va-
23
No quadro a sigla ISFLSF – Instituições Sem Fins Lucrativos a lor negativo” (Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista
Serviço das Famílias. Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 12).
Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 234, p. 35-56, agosto 2020 ARTIGOS 45
46 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 234, p. 35-56, agosto 2020
de benesses e acesso a bens, serviços, crédito e serão discutidas aqui, homens gastam mais tempo
investimentos se não produzisse algo que fosse dedicando-se ao trabalho remunerado que as mu-
mensurável pelas estatísticas e índices utilizados lheres. E o inverso também é verdadeiro para o
internacionalmente para a concessão de acesso a trabalho não remunerado, ou seja, mulheres dedi-
essas facilidades. Indiretamente, o país hipotético cam-se mais ao trabalho não remunerado que os
e sua população estão sendo forçados a se en- homens. Segue tabela abaixo que comprova a afir-
quadrar em padrões econômicos mais egoísticos mação, tomando como exemplo a razão do tempo
em que o trabalho deveria ser pago e individual, e utilizado pelo homem e pela mulher no exercício
não voluntário e social. do trabalho remunerado (Paid work), do trabalho
A situação agrava-se ao adicionarmos como não remunerado (Unpaid work) e do lazer (Leisure)
tempero a questão de gênero. Sabidamente, por em seis países (Alemanha, Itália, Reino Unido,
questões histórico-culturais complexas que não França, Finlândia e Estados Unidos da América):
A consequência disso é que as mulheres são supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e
as principais trabalhadoras gratuitas dentro das sem preconceitos, fundada na harmonia social”.28
famílias, são as que mais exercem essa solidarie-
dade para com os seus familiares os quais se be- 4.2 O Produto Interno Bruto (PIB) e a
neficiam disso. Sendo assim, elas produzem uma questão do meio ambiente
riqueza e bem-estar que não são contabilizados Este mesmo problema de incentivos contra-
pelo PIB e, portanto, são dados como sem valor postos aos valores consagrados no ordenamento
algum. Seu trabalho não é reconhecido como pro- jurídico brasileiro surge em relação ao meio am-
dutivo pela sociedade. biente. Com efeito, no processo de simplifica-
Nessas condições, não é difícil observar ção, o PIB também não leva em consideração a
que o cálculo do PIB nesse ponto conflita com degradação da qualidade do meio ambiente. Os
alguns dos objetivos fundamentais da República recursos ambientais que não se qualificam como
Federativa do Brasil, assim o art. 3º, da CF/88: “ativos” econômicos (como o ar ou a biodiversi-
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da dade) são excluídos da medição da degradação,
República Federativa do Brasil: I - construir uma que somente leva em consideração os direitos de
sociedade livre, justa e solidária; IV - promover o propriedade exercíveis. Dito de outra forma, so-
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, mente a exaustão de recursos do subsolo como
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de dis- direitos sobre a exploração de reservas de pe-
criminação”. Do mesmo modo, há conflito com o tróleo, minas, etc., que representem direitos de
texto do preâmbulo da Constituição Federal que
preconiza “a igualdade e a justiça como valores 28
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federa
tiva do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
27
STIGLITZ; SEM; FITOUSSI, p. 128. Acesso em: 03 mar. 2020.
Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 234, p. 35-56, agosto 2020 ARTIGOS 47
propriedade exercíveis, é de alguma forma conta- Nessa ótica, também de fácil constatação
bilizada (v.g. considera-se o volume total de uma que os valores subjacentes ao cálculo do PIB
bacia petrolífera, o que já foi dela extraído e o conflitam com vários dispositivos normativos da
quanto se pode ainda extrair e em quanto tempo). Constituição Federal de 1988, a saber: “Art. 23.
Contudo não existe registro semelhante para os É competência comum da União, dos Estados,
danos ambientais em geral causados de forma di- do Distrito Federal e dos Municípios: VI - prote-
fusa. Dessa forma, como não existe tal registro, ger o meio ambiente e combater a poluição em
o que se estimula é o comportamento econômico qualquer de suas formas; [...] Art. 170. A ordem
degradante do meio ambiente, pois é esse com- econômica, fundada na valorização do trabalho
portamento que aumenta a medição do PIB, pois é humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar
tido por “produtivo”. Outrossim, mesmo nas situa- a todos existência digna, conforme os ditames da
ções em que a degradação é medida como perda justiça social, observados os seguintes princípios:
de “ativos” econômicos, essa perda se dá sobre o VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante
capital, isto é, sobre a riqueza acumulada/estag- tratamento diferenciado conforme o impacto am-
nada (patrimônio) e não sobre a receita (fluxo de
biental dos produtos e serviços e de seus pro-
entrada) ou consumo (fluxo de saída). Levando em
cessos de elaboração e prestação; [...] Art. 174.
consideração que o PIB é medido apenas pelos
[...]. §3º O Estado favorecerá a organização da
fluxos, dessa forma, a degradação não é contabili-
atividade garimpeira em cooperativas, levando em
zada e, quando é contabilizada, o é fora do PIB.29
conta a proteção do meio ambiente e a promoção
Em outra situação igualmente preocupante,
econômico-social dos garimpeiros. [...] Art. 186.
os gastos das empresas poluidoras preventiva-
A função social é cumprida quando a propriedade
mente com os cuidados para evitar a contaminação
rural atende, simultaneamente, segundo critérios
ou simultaneamente com suas atividades produti-
vas para a descontaminação v.g. de um rio feita e graus de exigência estabelecidos em lei, aos
por elas próprias são contabilizados para essas seguintes requisitos: II - utilização adequada dos
empresas infratoras como Insumo/Consumo, por- recursos naturais disponíveis e preservação do
tanto reduzem a sua participação no PIB.30 Assim, meio ambiente; [...] Art. 200. Ao sistema único de
estranhamente se apresentam como condutas in- saúde compete, além de outras atribuições, nos
desejáveis. No entanto, quando o mesmo gasto é termos da lei: VIII - colaborar na proteção do meio
efetuado pelo Estado ou pela própria empresa que ambiente, nele compreendido o do trabalho. [...]
paga uma outra empresa para limpar a contami- Art. 220. §3º Compete à lei federal: II - estabele-
nação já realizada ele aumenta o PIB como gasto cer os meios legais que garantam à pessoa e à
governamental ou de investimento.31 A mensagem família a possibilidade de se defenderem de pro-
escamoteada aqui é a de que para a riqueza de gramas ou programações de rádio e televisão que
um país e de uma sociedade interessa mais que contrariem o disposto no art. 221, bem como da
o Estado ou a poluidora efetuem a contenção e propaganda de produtos, práticas e serviços que
limpeza dos danos ambientais já causados (re- possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
pressão) do que haja uma atuação socioambiental Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente eco-
preventiva para evitar tais danos. Isso, de modo logicamente equilibrado, bem de uso comum do
algum, está de acordo com o ordenamento jurí- povo e essencial à sadia qualidade de vida, im-
dico nacional, já que afronta a função social da pondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever
empresa e o direito ao meio ambiente equilibrado, de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e
principalmente se considerarmos que há danos futuras gerações. Art. 231. §1º São terras tradi-
ambientais irreversíveis ou de difícil reversão, por cionalmente ocupadas pelos índios as por eles
mais que se gastem recursos com o seu reparo. habitadas em caráter permanente, as utilizadas
para suas atividades produtivas, as imprescindí-
29
STIGLITZ; SEM; FITOUSSI, op. cit., p. 92. veis à preservação dos recursos ambientais ne-
30
Recorde-se o item 3.2, que tratou do cálculo do PIB pela ótica
da Produção ou Oferta: o PIB é dado pelo Valor de Produção cessários a seu bem-estar e as necessárias a sua
subtraído do Valor dos Insumos/Consumo. reprodução física e cultural, segundo seus usos,
31
Porque aqui ele entra no cálculo como Valor de Produção da
empresa contratada, consoante o item 3.2, que tratou do costumes e tradições”.32
cálculo do PIB pela ótica da Produção ou Oferta. Já para o
item 3.3, cálculo pela ótica dos gastos, há o incremento das
variáveis “G” e “I” da fórmula PIB = (C consumo das famílias)
+ (G gastos do governo) + (I investimentos das empresas) +
(X exportações – M importações). 32
BRASIL, op. cit.
48 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 234, p. 35-56, agosto 2020
33
Há aqui uma incongruência derivada da escolha da teoria do valor feita pelo estatístico. Enquanto a “teoria da utilidade marginal” (teoria
que considera como valor o preço de mercado) é utilizada para medir a produtividade do setor privado, a produtividade do governo na
prestação direta de serviços é medida por uma “teoria objetiva da produção” (o valor deriva da quantidade de trabalho necessária
para a sua produção). Essa escolha arbitrária desfavorece a avaliação da produtividade do Estado na prestação de serviços idênticos
àqueles prestados pelo setor privado. Isso revela a existência de um processo voluntário de homogeneização e ausência de neutralidade
(MAZZUCATO, Mariana. El valor de las cosas: quién produce y quién gana en la economía global. Tradução de Ramón González Ferriz.
Barcelona: Taurus, 2019. Edição do Kindle. passim).
34
Assim no relatório da Comissão Fitoussi: “These services tend to be large in scale but badly measured. Traditionally, for government-
provided non-market services, measures have been based on the inputs used to produce these services rather than on the actual outputs
produced. An immediate consequence of this procedure is that productivity change for government-provided services is ignored, because
outputs are taken to move at the same rhythm as inputs. It follows that if there is positive productivity growth in the public sector, our
measures under-estimate growth” (STIGLITZ; SEN; FITOUSSI, op. cit., p. 26).
35
STIGLITZ; SEN; FITOUSSI, op. cit., p. 28.
Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 234, p. 35-56, agosto 2020 ARTIGOS 49
A questão aqui é que o governo gasta forne- da produção de riqueza do Estado para o setor pri-
cendo bens e serviços gratuitos que, caso fossem vado, em uma ilegítima relação de trade off.
fornecidos pelo mercado, seriam-no a preços maio- Essas constatações acima são bastantes
res (em outras palavras: na fórmula “PIB = C + preocupantes, pois impactam diretamente em pa-
G + I + X – M”, o registro feito em “G” é a preço íses como o Brasil, que têm uma forte rede de
de custo e o registro feito em “C” é a preço de proteção social espelhada nos direitos sociais à
mercado). Por consequência, toda vez que o go- educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia,
verno opta por fornecer bens e serviços, em vez transporte, lazer, segurança, previdência social, e
de deixar o setor privado fazê-lo, isso acaba refle- assistência aos desamparados. Essa rede de pro-
tindo negativamente no valor do PIB e, portanto, teção depende da realização de políticas públicas
na avaliação que as instituições internacionais que exigem gastos públicos, seja na entrega de
fazem desse país. bens ou de serviços de forma gratuita, subsidiada
Um país que opta por prestar muitos bens ou transferência direta de recursos em moeda.
e serviços a seus cidadãos é avaliado negativa- Sabidamente, o ordenamento jurídico bra-
mente, ainda que tenha condições econômicas e sileiro prevê: “Art. 3º Constituem objetivos fun-
riqueza para fazê-lo ou que sua Constituição (orde- damentais da República Federativa do Brasil:
namento jurídico) assim o determine. Há aí uma III - erradicar a pobreza e a marginalização e re-
postura ideológica escamoteada dentro do índice duzir as desigualdades sociais e regionais;
e que se traduz no incentivo para se entregar toda IV - promover o bem de todos [...]. Art. 6º São
a prestação de bens e serviços para o mercado direitos sociais a educação, a saúde, a alimenta-
privado, a fim de ter uma avaliação do PIB maior, ção, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer,
mesmo que esses serviços o sejam prestados a segurança, a previdência social, a proteção à
pelo setor privado em qualidade igual ou inferior à maternidade e à infância, a assistência aos de-
do setor público. Isso porque o que interessa para samparados [...]. Art. 193. A ordem social tem
o PIB é o preço cobrado pelo setor privado ao final como base o primado do trabalho, e como objetivo
e não a qualidade do que se efetivamente fez. o bem-estar e a justiça sociais. Art. 194. A segu-
Já para o setor público, como a medição se ridade social compreende um conjunto integrado
baseia nos insumos (em valor e volume) utilizados de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da
para a produção desses bens e serviços, não se sociedade, destinadas a assegurar os direitos re-
mede efetivamente o valor agregado, o valor de lativos à saúde, à previdência e à assistência so-
mercado, mas apenas o “preço de custo”. A lógica cial. Art. 196. A saúde é direito de todos e dever
então é a de que o Estado, mesmo que se esforce do Estado, garantido mediante políticas sociais e
em criar serviços de qualidade, não gera riqueza, econômicas que visem à redução do risco de do-
não agrega valor. Assim, o Estado é visto como ença e de outros agravos e ao acesso universal
um “peso” para a economia, ainda que preste e igualitário às ações e serviços para sua promo-
serviços de qualidade. O uso generalizado do PIB ção, proteção e recuperação. Art. 201. A previdên-
como estatística diretriz mundial acaba por deses- cia social será organizada sob a forma do Regime
timular qualquer tentativa estatal de prestar dire- Geral de Previdência Social, de caráter contributivo
tamente bens e serviços. e de filiação obrigatória, observados critérios que
Já sob a ótica das empresas, ainda há um preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e aten-
outro fator que agrava a situação, é que, se fosse derá, na forma da lei, a: I - cobertura dos eventos
contabilizado de forma fictícia (por imputação) um de incapacidade temporária ou permanente para o
preço (equivalente ao de mercado) para esses ser- trabalho e idade avançada; II - proteção à mater-
viços fornecidos gratuitamente pelo governo para nidade, especialmente à gestante; III - proteção
as empresas, tal serviço configuraria gasto da em- ao trabalhador em situação de desemprego invo-
presa com Insumos/Consumo, o que reduziria a luntário; IV - salário-família e auxílio-reclusão para
participação do setor privado na composição do os dependentes dos segurados de baixa renda;
PIB, na proporção em que aumentaria a do Estado. V - pensão por morte do segurado, homem ou mu-
Isso significa que, em verdade, a medição feita pelo lher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes
PIB, além de desestimular a prestação estatal de [...]. Art. 203. A assistência social será prestada
bens e serviços, desloca artificialmente a medição a quem dela necessitar, independentemente de
50 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 234, p. 35-56, agosto 2020
contribuição à seguridade social, e tem por obje- cálculo do PIB como gastos das famílias (Consumo)
tivos: I - a proteção à família, à maternidade, à e gastos das empresas (Investimentos), respecti-
infância, à adolescência e à velhice; II - o amparo vamente, e não como despesas de consumo do
às crianças e adolescentes carentes; III - a promo- governo (Governo). Dessa forma, a participação do
ção da integração ao mercado de trabalho; IV - a Governo no PIB, e, portanto, na criação de riquezas
habilitação e reabilitação das pessoas portadoras do país, é subestimada, sendo dada maior impor-
de deficiência e a promoção de sua integração à tância à participação do setor privado.37
vida comunitária; V - a garantia de um salário mí- Para exemplo, a figura abaixo mostra a evo-
nimo de benefício mensal à pessoa portadora de lução da contribuição ao PIB por parte do governo
deficiência e ao idoso que comprovem não possuir dos Estados Unidos da América (linha negra) em
meios de prover à própria manutenção ou de tê-la comparação com os gastos efetivos do governo
provida por sua família, conforme dispuser a lei. para o mesmo período (linha cinza). A diferença
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do entre as duas linhas evidencia a subestimação de
Estado e da família [...]. Art. 206. O ensino será que se fala e que deriva do fato de que nem todo
ministrado com base nos seguintes princípios: o gasto do governo é tido como contribuição dele
IV - gratuidade do ensino público em estabeleci- (do Estado) diretamente ao PIB.
mentos oficiais; Art. 215. O Estado garantirá a
todos o pleno exercício dos direitos culturais e
acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará
e incentivará a valorização e a difusão das ma-
nifestações culturais. Art. 216-A. §1º O Sistema
Nacional de Cultura fundamenta-se na política
nacional de cultura e nas suas diretrizes, estabe-
lecidas no Plano Nacional de Cultura, e rege-se
pelos seguintes princípios: III - fomento à produ-
ção, difusão e circulação de conhecimento e bens
culturais; Art. 217. É dever do Estado fomentar
práticas desportivas formais e não-formais, como
direito de cada um, observados: II - a destinação
de recursos públicos para a promoção prioritária
do desporto educacional e, em casos específicos,
para a do desporto de alto rendimento”.36
Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 234, p. 35-56, agosto 2020 ARTIGOS 51
Isso significa que o gasto efetivo do governo é é o descarte da relevância do destino da renda
sempre maior que a sua participação no PIB e aqui produzida dentro do país e aqui cabem algumas
cabem as mesmas observações já feitas acima no explicações.
item 4.3.1 em relação aos artigos da Constituição Com efeito, a partir do PIB avaliado pela ótica
Federal de 1988 que estariam sendo afrontados do produto (item 3.2), mede-se o total do valor
pelo método de cálculo do PIB. Notadamente, são adicionado produzido por empresas operando no
os dispositivos normativos que estabelecem uma país, independentemente da origem do seu capi-
rede de proteção social dependente da realização tal, ou seja, mede-se o total da produção ocorrendo
de políticas públicas que exigem gastos públicos no território do país. Segundo o mesmo método
agora sob a forma de transferência direta de recur- de cálculo, após se descontarem do PIB (Valor
sos em moeda (v.g. bolsa família, auxílio-reclusão, de Produção subtraído do Valor dos Insumos/
subvenções para as empresas, etc.). Consumo) os pagamentos efetuados aos fatores
O PIB, portanto, fornece uma visão distorcida de produção de não residentes no país (salários,
da participação do Estado no processo de criação juros, aluguéis, lucros e dividendos, royalties),
de riquezas de um país, privilegiando um modelo chega-se à Renda Nacional Bruta (RNB), que é o
econômico em que o Estado deve se retrair, posto índice que considera o valor adicionado gerado por
que suas atividades não geram valor ou, quando fatores de produção de propriedade de residentes,
geram, são subavaliadas, muito embora elas ou seja, mede a renda que efetivamente perma-
sejam benéficas para a economia e para o bem- nece no país, já que é paga aos residentes.38
estar geral da população, notadamente a menos Em países em desenvolvimento, como o
favorecida. Trata-se, portanto, de um sistema que Brasil, a RNB é menor que o PIB, uma vez que as
reproduz desigualdade social e desestimula o de- empresas transnacionais enviam grande parte de
senvolvimento sustentável, pois premia comporta- seus lucros para seus países de origem ou para
mentos econômicos que vão de encontro a esses paraísos fiscais por meio de artifícios como o pa-
dois objetivos. gamento de juros, dividendos, royalties, prestação
de serviços e preços de transferência. Da mesma
forma, em países que sediam muitas empresas
de atuação global, como nos Estados Unidos da
4.4 O PIB, a extração de valor de países
América, o RNB tende a ser maior que o PIB, já
em desenvolvimento e os paraísos
que há uma grande absorção dos lucros gera-
fiscais
dos por suas empresas no exterior. Há um evi-
Outra escolha subjacente quando se uti- dente fluxo de extração de valores dos países em
liza o PIB como principal índice para a medição
de riqueza e bem-estar da população dos países 38
FEIJÓ, op. cit., p. 31.
52 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 234, p. 35-56, agosto 2020
39
No gráfico anterior temos que: a) em 2011, fossem contabilizados também os dados de flu-
para um PIB de R$4.376 bilhões, a RNB foi de xos ilícitos de valores para o exterior (Ampla Fuga
R$4.262 bilhões – diferença de R$114 bilhões; de Capitais), sabe-se que o volume de extração
b) em 2012, para um PIB de R$4.815 bilhões, a de riquezas tenderia a ser, no mínimo, por volta
RNB foi de R$4.731 bilhões – diferença de R$84 de 5,5 vezes maior, considerando uma média dos
bilhões; c) em 2013, para um PIB de R$5.332 bi- países em desenvolvimento. Abaixo segue tabela
lhões, a RNB foi de R$5.267 bilhões – diferença que assim o demonstra.
de R$65 bilhões; d) em 2014, para um PIB de
R$5.779 bilhões, a RNB foi de R$5.664 bilhões –
diferença de R$115 bilhões; e) em 2015, para um
PIB de R$6.001 bilhões, a RNB foi de R$5.871
bilhões – diferença de R$130 bilhões; f) em 2016,
para um PIB de R$6.267 bilhões, a RNB foi de
R$6.135 bilhões – diferença de R$132 bilhões.
Para o período de 2011 a 2016, tem-se uma
média oficial de extração de valores do Brasil para
o exterior da ordem de R$106,6 bilhões ao ano.
Os números apontados refletem apenas as
estatísticas oficiais de Transferência Líquida de
Recursos (Net Resource Transfer – NRT) ou Renda
Líquida Enviada ao Exterior (RLEE), são as cha-
madas Transferências Registradas (RecT). Caso
39
IBGE. Brasil em síntese: contas nacionais. 2020. Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: https://
brasilemsintese.ibge.gov.br/contas-nacionais/renda-nacional-
bruta.html. Acesso em: 04 mar. 2020.
Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 234, p. 35-56, agosto 2020 ARTIGOS 53
40
O estudo acima levou em consideração de- Isso tem reflexo também nas situações típi-
zenas de países em desenvolvimento. Da tabela, cas de paraísos fiscais, pois esses países são uti-
verifica-se que a média de transferências oficiais lizados para receber e incrementar esse fluxo de
para o período é da ordem de US$90,1 bilhões, receitas, ou seja, são utilizados como depósitos
sendo que a média de transferências líquidas to- ou corredor de passagem para o capital extraído
tais é da ordem de US$495,4 bilhões, ou seja, a dos países em desenvolvimento. O caso da Irlanda
extração de valor foi mais de cinco vezes maior. é emblemático de um paraíso fiscal especializado
Nessas condições, a glorificação de um ín- em dar saída para esse fluxo de capitais.41 Veja-se
dice que oculta tamanha extração de valor invoca na figura abaixo como a renda irlandesa declina
também a escolha de um modelo de economia em em proporção ao PIB como reflexo de uma parcela
que não se valoriza o princípio de justiça de que crescente dos lucros repatriados por investidores
a renda deve permanecer no local onde é gerada, estrangeiros. Muito embora os lucros sejam inclu-
melhorando o padrão de vida da população local, ídos no PIB, eles não aumentam o poder de com-
posto que nele é que foram criadas as condições pra dos cidadãos irlandeses, em franca violação
de um modo geral para o seu surgimento (princípio ao princípio do benefício.
do benefício). O que se favorece então é o deslo-
camento da riqueza e o aumento das desigualda-
des entre pessoas e países do capitalismo central
e periférico.
40
NORUEGA. Centro de Pesquisa Aplicada. Escola de Economia
da Noruega. Fluxos financeiros e paraísos fiscais: uma
combinação para limitar a vida de bilhões de pessoas. Oslo,
2015. Disponível em: http://www.inesc.org.br/noticias/
biblioteca/publicacoes/livros/2017/fluxos-financeiros-e- 41
Nesse sentido, VIEGAS, Miguel. A fraude e a evasão fiscal na
paraisos-fiscais-uma-combinacao-para-limitar-a-vida-de-bilhoes- União Europeia: do “Luxleaks” aos “Panama papers”. Porto:
de-pessoas. Acesso em: 12 set. 2017. Vida Económica, 2018. passim.
54 ARTIGOS Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 234, p. 35-56, agosto 2020
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exercício ilegítimo de poder simbólico. biblioteca/publicacoes/livros/2017/fluxos-financeiros-e-
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pelos índices em questão criticar o grau e modo
de utilidade do índice para o atingimento de seus STIGLITZ, Joseph E.; SEN, Amartya; FITOUSSI, Jean-Paul.
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fins específicos como sociedade e democratica- Performance and Social Progress. 2009. Disponível em: https://
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daqueles exclusivamente impostos externamente
UNITED NATIONS. SNA 2008: System of National Accounts
pela governança global. Para o caso, apontou-se
2008. New York, 2009.
que o PIB, como um desses grandes índices de
VIEGAS, Miguel. A fraude e a evasão fiscal na União Europeia:
governança global, apresenta várias limitações e do “Luxleaks” aos “Panama papers”. Porto: Vida Económica,
opções valorativas que precisam ser mais bem 2018.
averiguadas consoante os valores defendidos pela
Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, não podendo de forma alguma ser glorifi- Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR
cado e aceito de forma acrítica como um indicador 6023:2018 da Associação Brasileira de Normas Técnicas
(ABNT):
neutro e também como o indicador mais impor-
tante de riqueza e progresso social. VALENTE, Christiano Mendes Wolney. Análise jurídica do PIB
como índice e suas opções subjacentes. Fórum Administrativo –
FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 234, p. 35-56, ago. 2020.
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